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A BIBLIA

COMO LITERATURA
Uma introdução

JOHN B. GABEL E CHARLES B. WHEELER


l

Edições Loyola

..
Título original
The Bibk as Literature
© Oxford University Press, Inc., 1986, 1990

Tradução:
Adail Ubirajara Sobral
Maria Stela Gonçalves

Apresentação e anexos à edição brasileira:


Johan Konings

Edições Loyola
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apenas no Brasil.
ISBN: 85-15-0073+7
© EDIÇÕES LOYOIA, São Paulo, Brasil, 1993
Sete
Os escritos proféticos _______

Os escritos proféticos do Antigo Testamento ocorrem, sem nenhuma surpresa, na


seção da Bíblia Judaica denominada "Os Profetas". O surpreendente, contudo, é que
os profetas dividam essa seção com os livros históricos: Josué, Juízes, Samuel e Reis.
O motivo disso foi ventilado nos capítulos 3 e 5. Mas agora devemos examinar mais
profundamente a relação entre os profetas e a história, visto que o conhecimento dela
é o requisito para lermos esse difícil corpo de material com simpática compreensão.
Vimos no capítulo 3 ser lahweh, o Deus de Israel, uma divindade que - por mais
qu�,transcendesse a esfera humana em virtude de suas funções criadoras e mantenedoras
no universo - era considerada intimamente envolvida na história humana. Essa divin­
dade interferia de modo constante nos assuntos humanos, evidentemente como forma
de controlar esses assuntos, mas, além disso, de revelar-se às suas criaturas. Quando
produzia os raios solares e a chuva nas estações apropriadas, lahweh fazia um gracioso
exercício de poder em benefício do seu povo, bem como revelava o seu prazer com a
obediência deste. Quando privava o povo dessas boas coisas, levando a lavoura a secar
ou morrer, ou a arruinar-se na época da colheita, também fazia tanto um exercício do
seu poder como uma revelação - revelação da ira divina por alguma falha da parte do
indivíduo ou da comunidade envolvidos.
Uma coisa era saber se lahweh aprovava ações passadas; outra, bem diferente,
determinar o que ele desejava para o presente e para o futuro. No complexo intercâm­
bio dos assuntos humanos, em particular os que envolvessem pessoas em altos cargos
governamentais, como discernir de modo preciso a vontade de Iahweh? Se um inimigo
ameaçasse invadir a terra, deveria Israel submeter-se? Deveria resistir? Deveria aliar­
-se a uma terceira parte? Se um novo rei devia ser escolhido porque o anterior se
mostrara indigno e a sua linhagem fora erradicada, como reconhecer o novo candidato?
Se, com o tempo, o culto de lahweh fosse alterado por meio da introdução de elemen­
tos próprios do culto de outros deuses, com que recursos seriam os detalhes dessa
transgressão descobertos? Em situações em que o ponto em questão requeria uma
resposta direta - sim ou não, isto em oposição àquilo -, poderiam ser empregados
alguns processos simples de seleção de alternativas; por exemplo, tirar à sorte (cujo
resultado nunca foi, para a mente antiga, uma questão de acaso). Mas quando o assunto
envolvido era mais complexo, quando prevalecia a incerteza e era grande o temor, o fiel
tinha anseios de ouvir a palavra autorizada de Deus. Nessa circunstância, era inevitável
que, no antigo Israel, surgissem profetas - pessoas que acreditavam ter com Iahweh
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uma relação especial, que lhes permitia discernir as suas intenções e articular a sua
vontade e os seus juízos. 1
Por todo o longo período de história coberto em Josué, Juízes, Samuel e Reis, e que
se conclui em Esdras-N eemias, representa-se Israel como nação dotada de uma consis­
tente linhagem de porta-vozes (que incluíam algumas mulheres) de Iahweh. Cabia­
-lhes interpretar os eventos do ponto de vista de Iahweh e ou ameaçar o povo com o
julgamento ou prometer-lhe a boa fortuna - de acordo com as circunstâncias. Mas
nessa longa história, que se estende do século XIII ao V a.C., houve um período em
que se destacou a necessidade dos serviços particulares dos profetas; porque foi duran­
te esse período - da metade do século VIII à metade do século VI - que Israel
perdeu a sua independência como nação e foi escravizado. Como isso poderia acontecer
com uma nação que acreditava ser o povo de Iahweh, um país que descendia do grande
Abraão, que nascera e recebera a lei de Iah\veh pe as n ãos do grande lVloisés, um povo
um dia regido pelo grande rei Davi, a quem fora promerido que o seu trono real se
estabeleceria para sempre? Os profetas estavam prontos a explicar com precisão como
isso acontecera, a advertir sobre o que mais poderia acontecer e a prometer libertação
caso as condições de Iahweh fossem atendidas. São tão impressionantes aos olhos
modernos as palavras dos profetas dessa época que o intervalo entre os séculos VIII e
VI a.C. costuma receber dos historiadores bíblicos a denominação "Idade da Profecia".

Os grandes profetas do século VIII


{

Pode-se dizer que essa época começou num certo dia de uma data próxima de 750
a.C., quando Amós de Técua entrou na Samaria, capital do reino do norte, e começou
a denunciar a religião apóstata e a injustiça social que via ao seu redor. Aos olhos dos
forasteiros, o reino parecia gozar de grande prosperidade sob o rei Jeroboão II, mas o
profeta pôde perceber que essa prosperidade fr. obtida a expensas dos pobres e que
a religião organizada não fazia nenhum esforço para lembrar os que viviam bem de suas
obrigações humanas com os irmãos menos afortunados. Amós advertiu que o julgamen­
to se abate sobre uma nação que não se incomodava com a injustiça social nem com
a má religião. Mais ou menos na mesma época em que Amós se pronunciava, Oséias
começava a profetizar com esse mesmo tom no reino do norte, e, pouco depois, 1'11iquéias

1. Alguns profetas bíblicos são representados como tendo recebido as palavras que devem
proferir por m�ios espetaculares. lvloisés, concebido por Israel como o seu maior profeta, é
descrito como alguém que falou com Iah\-veh "face a face, como um homem fala com outro"
(Êxodo 33, 11); figuras menores recebem suas mensagens em sonhos ou em \'isões, ou por meio
de visitações angélicas. Mas também é muito comum que não haja nenhum tipo espetacular de
comunicação divina; e os profetas parecem ter falado com base em sua própria consciência
pessoal de violações das antigas relações religiosas, da dureza de coração no trato com os desva­
lidos, da patente loucura dos líderes nacionais. Num sentido deveras real, toda figura religiosa
de qualquer período da história (inclusive da nossa) que concita fervorosamente os outros a
retornar aos velhos padrões da fé e do comportamento virtuoso desempenha o papel de profeta,
em tudo igual aos grandes porca-vozes, homens e mulheres, de Iahweh no Antigo Testamento.
OS ESCRITOS PROFÉTICOS 99

pregava uma mensagem semelhante a Judá no sul. As meras observâncias religiosas,


insistiam esses profetas, não bastavam para agrádar Iahweh (e em nada ajudava o fato
de algumas delas terem origem pagã). Amós podia estar falando em nome de todos os
profetas quando representou Iahweh dizendo:
Eu detesto, rejeito as vossas festas;
e não gosto de vossas cerimônias sagradas.
Quando fizerdes os vossos sacrifícios e oferendas,
não os aceitarei,
nem atentarei para os bezerros de vossas ofertas pacíficas.
Poupai-me do barulho dos vossos cânticos;
não suporto o som de vossas harpas.
Que o direito corra como um rio
e a justiça como corrente que nunca seca.
(Amós 5,21-24)
O reino do norte caiu sob os assírios em 722 a.C. Para os observadores que manti­
nham a fé no Deus de Israel, pareceu certo que o julgamento viera - como advertiram
os profetas - por causa da apostasia do povo de Israel. E quanto ao reino do sul? Era
ele fiel a Iahweh e escava livre do destino que se abatera sobre o vizinho? Segundo o
maior profeta da época, Isaías (isto é, Isaías de Jerusalém - assim chamado para dis­
tinguir esse homem, cujas profecias e atividades estão registradas em Isaías 1-39, do
autor de Isaías 40-55 e de outro indivíduo, ou indivíduos, respon ·'ável por Isaías 56-66),
não. Isaías não era um humilde homem do campo como Amós, mas conselheiro real e -
um homem com conhecimento de coisas que ultrapassavam em muito as fronteiras do
seu país. É verdade que Amós denunciara os estados circundantes antes de concentrar
a atenção no reino do norte; mas Amós não possuía nada semelhante à visão interna­
cional de Isaías. Para ler Isaías com inteligência, precisamos saber alguma coisa não
somente da história da Assíria (a superpotência que era uma ameaça para todo o Ori­
ente Próximo e :Médio, e com relação à qual os temerosos reis de Judá tinham muita
preocupação), como também de vizinhos próximos, como o Egito, a Síria, fv1oab e
f;dom - os quais, segundo Isaías, eram tanto instrumentos da justiça de Iahweh como,
em última análise, objetos de sua ira. Contudo, tal como Amós, 1\-1iquéias e Oséias
dedicou mais atenção ao seu próprio povo, condenando Judá pela sua idolatria, imora­
lidade e insensível desprezo pelos pobres e desprotegidos.

Os grandes profe tas do século VI

Além desses quatro profetas literários do século VIII a.C. (chamados "literários"
porque há livros bíblicos com o seu nome), há três grandes figuras que profetizaram no
final do século VII e no começo do VI: Jeremias, Ezequiel e o autor de Isaías 40-55
(que os estudiosos chamam de Dêucero-Isaías ou Segundo Isaías). No começo de sua
carreira profética, Jeremias enfatizou um dos grandes temas dos primeiros profetas, a
infidelidade a Iahweh, evidenciada na participação popular em ritos pagãos de culto,
em especial os da fertilidade. l\fas o grande trabalho de sua vida foi dar conselho ao seu
100 A BÍBLIA COMO LITERATURA

povo ao longo dos infelizes anos em que os babilônios hostilizaram Judá e a cidade de
Jerusalém, primeiro deportando uma parcela da população para a Babilônia, em 597 a.C.,
depois, em 587, incendiando o Templo e a cidade e deportando mais gente, e, por fim,
fazendo uma terceira deportação em 582. A mensagem constante de Jeremias durante tudo
isso era o de que a vitória babilônica era inevitável - por ser um julgamento de Deus da
apostasia da nação - e de que o povo deveria submeter-se. Essa mensagem era, com
efeito, impopular entre os líderes de Judá, tendo Jeremias passado grande apuro em suas
mãos por ter dito isso. Dizia ele que os exilados deveriam adaptar-se às suas novas circuns­
tâncias, trabalhar duro e prosperar, rezando pelo bem-estar dos seus captores, porque o seu
exílio seria longo e era preciso prover as futuras gerações de Israel.
Durante parte do tempo em que Jeremias atuava em Jerusalém, Ezequiel também
profetizava para os habitantes dessa cidade condenada, ao que parece enquanto ele
mesmo estava exilado na Babilônia.
Ao que parece, Ezequiel fora levado para esse país na primeira deportação, de 597, e
lá, tendo sido chamado ao ofício profético, comunico 2 sua mensagem a Jerusalém por
escrito. Em termos gerais, essa mensagem era co o a de Jeremias: como Jerusalém
rompera a Aliança e abandonara Iahweh, a destruição se abatia sobre ela. Iv1as a preo­
cupação básica de Ezequiel era retratar a profunda iniqüidade da revolta de Israel
contra Iahweh, razão pqr que ele deu muito meno a enção à política prática dos
últimos dias da cidade ao que Jeremias. E, num gra maior do que este, Ezequiel
exprimiu a confiança de que,· em algum momen o o srael renasceria como nação,
voltaria ao seu antigo território e, doravante, existiria e-orno um estado ideal, com uma
nova relação de aliança com lahweh. A sua t,·isão o f ruro distante de Israel era tão
otimista quanto era pessimista a sua concepção da condição presente.
O terceiro grande profeta do século VI a.C. foi o anônimo chamado Dêucero-Isaías,
autor do grosso dos capítulos 40-55 do livro de Isaías. Esse corpo de material profético, por
vezes denominado "A Consolação de Israel", foi composto, ao que parece, perto da época
em que o rei da Pérsia, Ciro, dera permissão de re·omo a Judá aos israelitas exilados (nessa
época, a Pérsia substituíra a Babilônia como superporência reinante). A mensagem do
Dêutero-Isaías era em grande parte jubilosa, ce ebrando o fato de que estava prestes a
ocorrer um novo êxodo do cativeiro, durante o qual os israelitas, sob a liderança de Iahweh,
cruzariam o deserto e voltariam para casa em triunfo. Israel passara por todo o período de
servidão, não somente pelos seus próprios pecados, mas pelas faltas de todas as nações;
agora estava próxima a época de sua glorificação como servo fiel de Iahweh. Mas a jubilosa
confiança dele era um tanto prematura. De fato, uma comunidade judaica restabeleceu­
-se em Jerusalém pouco depois de Ciro publicar o seu decreto permitindo o retorno; mas
seriam necessárias várias décadas para que ficasse pronto um novo edifício em substituição
ao Templo de Salomão, e só haveria um grande retorno de descendentes dos exilados no
final do século V a.C., na época de Esdras.
Referimo-nos às sete grandes personagens da Idade da Profecia: Amós, Miquéias,
Oséias e Isaías no século VIII, e Jeremias, Ezequiel e o Oêutero-Isaías no século VI.
Houve outras (aos nossos olhos, menos importantes) figuras que profetizaram pouco
antes do século VI, no decorrer dele e depois dele, pessoas cujas palavras se encontram
registradas (ao lado das de Amós, Miquéias e Oséias) na seção denominada Profetas
OS ESCRITOS PROFÉTICOS 101

Menores, ou, nas escrituras judaicas, "O Livro dos Doze". Todos esses profetas, maio­
res e menores, têm em comum o terem sido apanhados por eventos críticos de sua
época, eventos que viram como seguindo um princípio imutável: a infidelidade a Iahweh
traz necessariamente a destruição, mas dessa destruição salva-se algo com que Iahweh
reinstala seu povo para sempre na terra prometida aos seus ancestrais.

Forma poética dos livros proféticos

Antes de considerarmos o atrativo dos livros proféticos para épocas ulteriores, inclu­
sive a nossa, temos de examinar brevemente duas carac erísticas além da sua histori­
cidade; essas duas características vinculam-se com a fo ma. A primeira delas é que
esses livros são compostos quase por inteiro de poesia., fa o muito menos evidente na
Versão do Rei James do que em qualquer tradução ema. Na Nova Bíblia Inglesa
(NEB) ou na Bíblia de Jerusalém, por exemplo, as p--a..ssa0 ens poéticas são dispostas na
página cal como a poesia costuma ser, em versos de p · en o irregular, e não têm
a aparência de prosa que a Versão do Rei James ( · ·) es dá. Essa adequada dispo­
sição poética torna imediatamente evidente o par e ·-mo ( iscucido no capítulo 2) que
constitui um elemento distintivo da poesia heb ·ca_ c..ssa o ganização também predis­
põe o leitor a aceitar a metáfora poética como e não como algo a ser tomado
literalmente.
A existência de tanta poesia nos ·· o- fé · e.os evoca questões inevitáveis: os
profetas antigos seriam na verdade poetas? Te -o es transmitido as suas profecias na
forma poética em que foram preserYa as? É aro que ninguém pode dizer como os
profetas falavam, porque não há como assar das pala...-ras impressas para as faladas. O
que temos quando há discurso dire o nos i · os p oféticos são versões escritas do que
os profetas supostamente teriam d" to em certas ocasiões específicas. Eles talvez te­
nham falado de maneira poética, emp egando uma linguagem altamente padronizada
e figurativa. Ou, quem sabe, essa forma renha sido imposta às suas palavras por aqueles
que as repetiram e as transmitiram para outras gerações, ou pelos que fizeram os
primeiros registros escritos.

Estrutura dos livros proféticos

A outra característica formal dos livros proféticos que merece a nossa atenção é a sua
freqüente falta de coerência. A maioria do material não tem uma organização lógica; po­
demos começar a lê-lo tanto a partir do meio como do começo. Com poucas exceções
(Daniel e Ageu principalmente), os livros proféticos são coietâneas aleatórias de unidades
individuais, chamadas "oráculos", que podem ser classificadas em alguns tipos básicos.
Como vimos, a mensagem profética era bem simples, variando muito pouco de ocasião
para ocasião e de profeta para profeta. Tipicamente, representa-se um profeta olhando ao
seu redor e vendo coisas erradas, com muita freqüência a má religião (que envolvia o culto
da fertilidade, ou outras práticas de baalismo, e o culto meramente exterior de Iahweh) e
102 A BÍBLIA COMO LITERATURA

a injustiça social (tirar vantagem dos pobres, usar pesos e medidas desonestos, aceitar
subornos para obstruir a justiça nas cortes). O profeta denuncia os erros e ameaça que, a
não ser que os pecadores se arrependam, Iahweh fará cair sobre eles terríveis punições que
culminarão na destruição da nação. Esse destino, diz o profera, terminará por trazer ar­
rependimento; então Iahweh se conterá e dará a uma parte do seu povo uma vida boa em
sua terra natal. Cada ponto dessa situação repetitiva, desse paradigma profético, tem o seu
tipo apropriado de oráculo; há oráculos que denunciam a má religião ou a injustiça social,
oráculos que conclamam ao arrependimento, oráculos que anunciam a destruição e orácu­
los que prometem a restauração. Todos esses tipos ocorrem vezes sem conta nos livros
proféticos e - para a confusão do leitor inexperiente - em todos os arranjos possíveis.
As traduções modernas minoram um pouco esse problema porque imprimem os oráculos
individuais com espaços de separação, de modo que o leitor saiba, por assim dizer, mudar
de canal: agora estou lendo um oráculo que denuncia a injustiça social; agora estou lendo
um oráculo que conclama ao arrependimento; e assim por diante.
Dada a sua larga proporção de poesia, sua falta geral de coerência e, em particular, sua
enorme preocupação com a história do Oriente Próximo antigo, os livros proféticos não são
lidos com facilidade - como o pode comprovar todo estudioso iniciante da Bíblia. Apesar
da dificuldade, nenhuma ouua parte do Antigo Testamento, com exceção do Gênesis e
do Êxodo, recebe mais atenção hoje do que os livros proféticos. Basta olhar os anúncios
religiosos de qualquer jornal ou o mural de qualquer campus universitário para ter certeza
disso; sermões, .palestras e conferências sobre os escritos proféticos sempre têm proemi­
nência. Por que deveriam e es receber essa atenção? Não é, afinal, porque registram os
grandes eventos fundacionais do judaísmo ou do cristianismo que encontramos no Êxodo
e nos evangelhos. E não é por e apresentam os princípios básicos de quaisquer dessas
fés, como o fazem o Pentateuco e as cartas de Paulo. Por que esses escritos, vinculados
com a história de eventos remotos de uma parte longínqua do globo, interessam tanto ao
mundo moderno? Onde está o seu atrativo?

O atrativo dos profe tas para os primórdios do judaísmo

Para explicar esse atrativo, cabe começar com a questão do apelo dos escritos pro­
féticos para um público mais amigo - os judeus dos séculos pós-exílicos, durante os
quais os oráculos dos antigos profetas foram transmitidos em forma oral ou escrita,
copiados e recopiados, e unidos em coletâneas editadas. Por que deveriam os judeus
de, digamos, III a.C. aceitar como escri ura sagrada, dotada de significação eterna, um
material completamente vinculado com e\·entos de três ou quatro séculos atrás? Há
várias respostas para essa pergunta. Em primeiro lugar, aos olhos judaicos, a fórmula de
autoridade dos amigos profetas - "Oráculo do Senhor" - não deixava de ser a palavra
do Senhor apenas porque o tempo de sua aplicação original passara. Para o judaísmo,
o que um Amós ou um Miquéias falaram era precioso para sempre e não se podia
deixar que perecesse. O reino do norte tinha sido destruído como Amós e Oséias tinham
advertido, e o reino do sul fora derrotado como .Miquéias, Isaías e Jeremias tinham
previsto. Por conseguinte, a profecia poderia ser estudada como meio de explicar a
situação de Israel no século III a.C., de descobrir o procedimento de um Deus justo
OS ESCRITOS PROFÉTICOS 103

e de perceber a natureza da relação entre Iahweh e seus servos humanos fiéis. Em


segundo lugar, e ironicamente, as palavras dos profetas eram preciosas não só porque
muitas delas tinham se realizado, como também porque muitas outras não o tinham -
seja como for, ainda não. Ou seja, esses escritos continham previsões e promessas ainda
não concretizadas que, sendo as palavras dos profetas a própria palavra de Deus, de­
veriam vir a se realizar. Nos séculos que se seguiram ao exílio babilônico, Israel já não
existia como nação; mas os judeus tinham confiança de que as visões utópicas dos
antigos profetas de um Israel renovado e restaurado, regido outra vez por um descen­
dente de Davi, se cumpririam quando Deus quisesse - por isso, até chegar esse
tempo, era preciso estudar e prezar as palavras dos profetas.
Por fim, e talvez mais significativamen e mesmo as palavras dos profetas que ti­
nham se realizado não tinham por isso per · do o significado. O que os profetas tinham li
dito sobre situações específicas em sua época poderia ser tomado e aplicado a outras
situações semelhantes em épocas poste iores. Vemos um exemplo disso no livro de
l:·'.
Daniel, em que Daniel está "lendo as esc · ruras e refletindo sobre os setenta anos que,
segundo a palavra do Senhor ao pro e a Jeremias, haveriam de passar enquanto Jeru­
salém jazia em ruínas". Enquanto e e .... -tá rezando, angustiado com a contínua escra­
vidão do seu povo, um anjo lhe apa ece e diz:
-:- o teupoYo e tua santa cidade; então, a rebelião
será extinta; o pecado, canc a. a · ·qüidade, expiada; a justiça eterna, instalada; a
visão e a profecia, cumpr· as· e o . gar Santo dos Santos, ungioo (Daniel 9,24).
tos anos depois da época de Jeremias, quan­
do Jerusalém, embora não ·azesse = a·o em ruínas", sofria uma tenebrosa persegui-
ção do seu dominador grego .-\r , Epifânio. Como poderia o período de setenta
anos previsto por Jeremias o sé a.C. ser usado no século II a.C.? Pelo expe-
diente simples de reinterpreta se::e ::a anos como setenta semanas de anos - isto é,
setenta vezes sete, ou quatrocen:o e o ·ema anos, o que estenderia o final do período
(e, portanto, o tempo da libercaç-.ão) à época do próprio escritor, na metade do século
II. fvlediante esse sistema de dupla a licação (que, podemos ter certeza, não era a
in_renção de Jeremias), permitiu-se q e a profecia tivesse tanto o seu sentido original
- no século VI, Jerusalém de fato es e\·e em ruínas por mais ou menos setenta anos
- como um novo sentido imediarameme aplicável ao público do século II do livro de
Daniel.

Atrativo dos profetas para o cristianismo

Os primeiros cristãos, convencidos de que Jesus crudficado ressurgira dos mortos,


procuraram nas escrituras judaicas passagens que pudessem ser entendidas como re­
ferentes a Jesus. Vários acontecimentos da história do AT foram considerados como
previsões de eventos da história do NT (essa maneira de ler o AT se chama "tipológica"
e será discutida um pouco mais no capítulo 15), e, de igual forma, grande número de
observações dos profetas foi entendido como aplicável a Jesus. O escritor do evangelho
de Lucas retrata o Cristo ressuscitado aparecendo diante de alguns discípulos, que não
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o reconhecem de imediato e estavam intrigados com as ocorrências da Crucifixão e da


Ressurreição. Exasperado, Cristo exclama:
"Como sois néscios! ... Como sois lentos para crer em tudo o que os profetas disseram!
Não era preciso que o Messias sofresse essas coisas antes de entrar em sua glória?" E,
começando por Moisés e por todos os profetas, explicava-lhes as passagens de todas as
partes das escrituras que diziam respeito a ele mesmo. (Lucas 24,25-27)
O evangelho de Mateus traz repetidas vezes elementos do AT para aplicar à
vida de Jesus. O mais notável talvez seja a aplicação ao nascimento de Jesus de
Isaías 7,14, uma passagem que, no seu contexto, como o pretendia o autor, diz
apenas que uma mulher jovem vai gerar um filho e que, antes de essa criança
crescer, os inimigos que então avançavam sobre Judá já não serão uma ameaça.
Mateus (que por certo não foi o primeiro a fazê-lo) toma a palavra que designa
"mulher jovem" do texto do AT com o sentido específico que hoje atribuímo�
a "virgem" - uma mulher que não teve relações sexuais - e, assim, introduz
um elemento miraculoso naquilo que o profeta Isaías usou simplesmente como
uma maneira de medir o tempo. O que chama a atenção na aplicação dos escri­
tores do NT de passagens do AT às suas próprias áreas de interesse é o modo
como ignoram o contexto dessas passagens - ignorando, por conseguinte, um
dos mais importantes meios de definir o que o autor original tinha em mente.
Esse método de conseguir textos comprobatórios (isto é, a retirada de uma unidade
fragmentária - de uma complicada afirmação mais ampla) permite que uma pas­
sagem signifique tudo o que o intérprete puder encontrar nela. Assim sendo,
escritos proféticos totalmente enquadrados na história dos séculos VIII ou VI
a.C. puderarri ser liberados da história e levados a se referir à grande história do
Novo Testamento: o nascimento, ministério, morte e ressurreição de Jesus.

Atrativo dos profetas para os tempos modernos

Tendo verificado por que e como os primeiros judeus e cristãos adaptaram às suas
próprias circunstâncias os profetas amigos, podemos voltar à nossa primeira pergunta:
que explica o considerável apelo dos escritos bíblico-proféticos em nossa época? A
resposta é que esses escritos podem ser aplicados às circunstâncias específicas dos
nossos dias tal como o foram aos eventos cruciais da época dos primeiros judeus e
cristãos. Para os leitores modernos da Bíblia, constantemente assaltados por notícias de
ameaças domésticas e estrangeiras, o atrativo dos profetas reside em sua mensagem
geral de destruição dos infiéis e (passado um período de tribulação purificadora) de
recompensa e de bênção eterna para os fiéis. Os grandes atos finais de Deus contra os
iníquos e em favor dos retos ainda não aconteceram, mas, tendo sido previstos pelos
profetas, por cerco acontecerão - acreditam os fiéis. Não poderia isso acontecer na
nossa época, perguntam eles, um período marcado por guerras mundiais e pela tene­
brosa capacidade de autodestruição? Para os preocupados habitantes deste mundo em
que vivemos, a esperança que os profetas trazem e a certeza com que falam podem se
imensamente satisfatórias.
OS ESCRITOS PROFÉTICOS 105

Mas é possível retirar dos livros proféticos mais do que algo tão genérico. Porque
a mensagem global desses livros não é veiculada em termos abstratos, mas através dos
detalhes específicos da antiga história hebraica, detalhes que podem ser selecionados,
examinados e aplicados à nossa época ("Afinal, eles estão na Bíblia, não estão?") com
pouca preocupação pela sua significação original e pelo modo como se enquadram na
situação histórica mais ampla de que os profetas participaram. Assim, podemos ouvir
comentadores da Bíblia dizer que "o norte" na profecia é sempre uma referência à
Rússia, "o leste" sempre se refere à China e toda águia remete sempre aos Estados
Unidos. As previsões dos escritos proféticos de um retomo à terra natal dos judeus
deportados para a Babilônia no século VI a.C. são levadas a se aplicar à fundação do
moderno Estado de Israel, em 1948; o templo ideal que Ezequiel concebe como cons­
truído pelos exilados retornados é utilizado como referência a um templo a ser cons­
truído na época do Anticristo; o temível Dia do Senhor eirado por Amós como o tempo
em que a destruição cairia sobre o reino do norte é tomado como menção à destruição
final do mal no nosso futuro próximo; etc. etc. ,,
,,"
Que deveríamos pensar dessa espécie de interpre�ação da profecia que ignora as
reais circunstâncias históricas a que ela se aplica? Não se t ata com certeza de invenção
recente, já que, como vimos, era praticada por judeus em épocas pré-cristãs e usada
com particular intensidade pelos primeiros seguidores e Jesus. Mas, embora o seu
pedigree seja longo, a interpretação desse tipo é um joguinho muito fácil. O intérprete
busca o texto com o preconceito de que ele se aplica de odo direto (não -àpen::is em
termos morais ou como exemplo) aos dias de hoje; ele considera as associações que as
palavras e frases individuais criam nele e as relações que elas podem ter com eventos
recentes do mundo; e, a partir daí, ele desenvolve um enunciado sobre o que o texto
"significa" para nós hoje (quando não diz o que significou para o seu autor há uns dois
mil e quinhentos anos!) ..Mas como, podemos perguntar, é possível determinar o acerto
ou erro da interpretação resultante, visto que toda interpretação dessas difere inevita­
velmente das outras em aspectos significarivos?.E não é possível que uma interpretação
feita em, digamos, 1950, seja diferente de uma elaborada quarenta anos mais tarde,
considerand.9-se que as circunstâncias históricas variam de década para década? Nada
há na literatura religiosa que se desatualize com tanta rapidez do que um livro profético
escrito nessas linhas.
É provável que o melhor preventivo contra os exageros de interpretação dos pro­
fetas seja o exame de uma questão simples. Será possível que Amós, Miquéias, Isaías
ou Ezequiel, postados nas ruas poeirentas da Samaria ou de Jerusalém, e dirigindo-se
aos curiosos cidadãos que se acumulavam ao seu redor, estivessem falando da América,
da Europa e da Ásia na era nuclear? Há alguma probabilidade de que alguma coisa
falada por eles pretendesse referir-se a eventos específicos que ocorreriam dois mil e
seiscentos anos depois, do outro lado do mundo? Responder afirmativamente é ir longe
demais e por certo revela mais sobre nós mesmos e sobre nossas necessidades e ansie­
dades do que virá a revelar sobre os profetas.
Todas as pessoas que abordarem com seriedade a profecia bíblica pela primeira vez
sempre deverão usar, diante de sua base histórica, uma tradução moderna acompanha­
da de notas que expliquem as referências históricas e de mapas que mostrem as partes
do mundo antigo para as quais o texto estava originalmente voltado. O sentido histó-
106 A BÍBLIA COMO LITERATURA

rico, como é evidente, pode não esgotar todo o significado da profecia bíblica, mas é
inegável ser ele o alicerce para todas as demais significações genuínas. Seja qual for a
visão religiosa que levarmos para a leitura dos profetas, deveremos estar cônscios de
que a referência deles sempre são circunstâncias e eventos de sua época. Ignorar esse
fato é recusar com obstinação o meio mais seguro de compreensão do sentido das
palavras dos profetas.

Sugestões de leitura

Bernhard Lang, Monotheism ond the Prophetic Ninorit)': An Essoy in Biblicol History ond Sociology,
The Social \Vorld of Biblical Antiquity Series, n. 1, Sheffield, Inglaterra, The Almond Press,
1983.
David L. Petersen, Prophecy in Israel: Seorch for on Jdentil]·, Issues in Religion and Theology, n.
10, Filadélfia, Fortress Press, 1987.
The lnterpreter's Dictio1101) of the Bible, ed. George_-\_ Bu trick, �ashville, Tenn., Abingdon Press,
1

1962. Ver artigo sobre Prophet, Prophecism. Sup emento, 1976: ver artigos sobre Prophecy
in Ancienc Israel e Prophecy in the Ancient .Near East.

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