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A - Funcao - Do - Luto - Na - Filosofia - Politica - de Judith Butler
A - Funcao - Do - Luto - Na - Filosofia - Politica - de Judith Butler
Butler
Carla Rodrigues
(UFRJ)
“Problema” talvez não precise ter uma valência tão negativa. No dis-
curso vigente na minha infância, criar problema era precisamente o
que não se devia fazer, pois isso traria problema para nós. A rebel-
dia e sua repressão pareciam ser apreendidas nos mesmos termos,
fenômeno que deu lugar a meu primeiro discernimento crítico da
artimanha sutil do poder: a lei dominante ameaçava com proble-
mas, ameaçava até nos colocar em apuros, para evitar que tivés-
semos problemas. Assim, concluí que problemas são inevitáveis e
nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a me-
lhor maneira de tê-los (BUTLER, 2003, p. 7).
Ainda que por caminhos diferentes dos percorridos por Butler, des-
cobri muito cedo que não só não é possível evitar problemas como é de
1
Agradeço ao meu amigo Claudio Oliveira o generoso curso sobre Hegel ministrado na UFF em
2016.1.
Correia, A.; Haddock-Lobo, R.; Silva, C. V. da. Deleuze, desconstrução e alteridade. Coleção XVII 329
Encontro ANPOF: ANPOF, p. 329-339, 2017.
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seu dever para com ele é seu dever supremo”. Seguindo ainda o argumen-
to de Butler, Antígona estaria cumprindo esse roteiro quando reivindica
as honras fúnebres para Polinices e diz: “Não foi como escravo que ele
morreu, foi como irmão”. Ao reivindicar seu direito de honrar também a
morte de Polinices, Antígona estaria reivindicando seu próprio direito ao
reconhecimento.
A morte ocupa um lugar central na FE, já que é só quando o senhor
põe a vida em risco que ele se torna senhor, enquanto o escravo permane-
ce escravo por conservar a vida. O desejo de reconhecimento envolvido na
dialética do senhor e do escravo é uma luta de vida ou morte, que aparece
desde o prefácio como elemento central da vida, quando Hegel diz que “a
vida é portadora da morte, e se mantém na própria morte, que é a vida do
espírito”. É como se morte da vida biológica fosse apenas uma mera perda
da consciência natural, já que a vida do espírito se mantém no Absoluto.
Ou, em termos hegelianos, a morte marca o começo da vida do espírito.
No curto trecho da FE em que Hegel se refere à Antígona, o filósofo enten-
de a peça como marco da necessária passagem da lei divina, encarnada na
personagem feminina, para a lei da pólis, defendida por Creonte.
Tina Chanter (1991) observa como os dois personagens e as duas
leis estão co-implicadas a partir da determinação por negação. Dito de
outro modo, Creonte afirma a lei da pólis como negação da lei divina e
Antígona afirma a lei divina como negação da lei da pólis. Ao lutar pelo
reconhecimento do irmão, Antígona está obedecendo a duas leis que são
entendidas por Hegel como excludentes, numa separação que, no entan-
to, a leitura de Butler mostra impossível. Antígona estaria nem dentro
nem fora da lei da pólis.
É assim que as honras fúnebres para Polinices ganham a função
de uma dupla Aufhebung – a superação da sua morte natural, a fim de
marcar o início da vida do espírito, e a superação da consciência natural
de Antígona que, ao arriscar a própria vida, faria a passagem da consci-
ência natural para a consciência de si. O problema de Butler passa a ser
perguntar: por que essa passagem é interditada a Antígona? Em parte,
porque o ato de Antígona enterrar o irmão desafia o poder de Creonte,
em parte porque ela é uma mulher desafiando a hierarquia da diferença
sexual, acusação que tantas vezes Creonte faz contra ela, e principalmente
porque seu irmão é um morto que continua a criar problemas, coisa que
os mortos não deveriam fazer.
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Devo ao meu amigo Rafael Haddock-Lobo a economia de quatros Hs.
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Com esta citação, busco marcar como Derrida faz aqui uma filia-
ção direta do termo différance não apenas com o pensamento do jovem
Hegel, mas sobretudo com a tradução – ou a transposição e a recepção
– da filosofia hegeliana na França. Nesse percurso histórico, différance
se articula com o problema da temporalidade, seja na consciência trans-
cendental em Husserl; seja no horizonte transcendental da questão do
ser, em Heidegger; seja no conceito de inconsciente em Freud, que será
fundamental para o “questionamento da autoridade da consciência” que,
para Derrida, será “antes e sempre, “diferencial”. No caminho de tornar a
diferença ativa uma diferenciação, uma relação diferencial, Derrida esta-
belece uma “relação entre uma différance que se contabiliza e uma diffé-
rance que não se contabiliza, em que o por em presença pura e sem perda
se confunde com a perda absoluta, a morte”.
Essa confusão entre pura presença da vida e perda absoluta, esse
jogo entre economia geral e economia restrita, me abriu caminho para
articular a função do luto em Butler com um processo de différance no
qual nem a vida nem a morte tem valor em si, mas ambas adquirem valor
a partir do momento em que se estabelece uma permanente diferença
ativa entre uma e outra. Para ela, a vida cultural a ser enlutada confere
reconhecimento à vida biológica, numa relação de co-implicação marcada
desde o início da vida. Há um futuro anterior – uma vida terá sido vivida
– que torna possível dizer que para que uma vida venha a ser vivida é
pressuposto que haja vida enlutável se for perdida. “Apenas em condições
nas quais a perda tem importância o valor da vida aparece efetivamen-
te. Portanto, a possibilidade de ser enlutada é um pressuposto para toda
vida que importa (BUTLER, 2015, p. 32).
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Referências
______. Quadros de guerra – quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Re-
cord, 2015.
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