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FLORESTAN FERNANDES

Vida e obra
Laurez Cerqueira
Laurez Cerqueira

FLORESTAN FERNANDES:
Vida e obra
Laurez Cerqueira

FLORESTAN FERNANDES:
Vida e obra

2ª edição

EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo 2013


Copyright © 2004, by Expressão Popular - texto gentilmente cedido
pelo autor para nossa publicação.

Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho e Juliano Carlos Bilda


Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design
Caderno de fotos: Acervo da família
Foto da capa: sobre foto de Eder Luiz Medeiros - Folha Imagem
Impressão: Cromosete
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
Cerqueira, Laurez
C416f Florestan Fernandes: vida e obra / Laurez Cerqueira. –
2.ed.-- São Paulo : Expressão Popular, 2013.
176 p.

Livro indexado em GeoDados-http://www.geodados.uem.br

ISBN: 85-87394-67-3
1. Fernandes, Florestan, 1920-1995 – Biografia.
2. Socialismo - Militante politico - Biografia.
3. Sociólogos – Biografia.
II. Título.

CDD 21.ed. 320.531092


330.092
Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

Edição revista e atualizada conforme a nova regra ortográfica

4ª reimpressão: outubro de 2009


2ª edição: setembro de 2013

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA


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Fone: (11) 3522-7516 / 4063-4189 / 3105-9500
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livraria@expressaopopular.com.br
SUMÁRIO

Trajetórias paralelas, caminhos cruzados............................................... 7


Vladimir Sachetta

1 – De “Vicente” a Florestan................................................................ 11

2 – Construir a sociologia científica e interpretar o Brasil..................... 31

3 – 1964: Um golpe no sonho, um corte na


produção intelectual acadêmica..................................................... 85

4 – O cientista militante e a esperança no socialismo............................ 111

5 – O professor Florestan Fernandes no Congresso Constituinte.......... 121

6 – Compromisso e coerência............................................................... 153

Bibliografia........................................................................................... 165

Anexo 1 - Trajetória biobibliográfica..................................................... 167

Anexo 2 - Carta a Florestan Fernandes................................................. 175


TR AJETÓRIAS PAR ALEL AS ,
CAMINHOS CRUZADOS
VLADIMIR S ACC H E T TA

Este livro celebra a inauguração da Escola Nacional Florestan


Fernandes, erguida em Guararema, interior de São Paulo, graças ao
extraordinário esforço coletivo dos companheiros do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e à solidariedade de seus
amigos e apoiadores. Uma biografia e um espaço de reflexão prestam
justa homenagem ao pensador que deu o melhor de si por um Brasil
melhor, com liberdade, igualdade e felicidade.
Fruto do texto original de Laurez Cerqueira para a coleção “Perfis
Parlamentares”, cedido generosamente por seu autor à Editora Expres-
são Popular para a formação política de militantes dos movimentos
sociais, Florestan Fernandes: vida e obra resgata a trajetória do homem
e do intelectual que jamais perdeu a perspectiva socialista nem suas
raízes de classe.
Nascido e viabilizado no âmbito de um amplo projeto da Coor-
denação de Publicações do Centro de Documentação e Informação
da Câmara do Deputados, focado na memória dos parlamentares
de esquerda – que até a gestão de João Paulo Cunha permaneciam
esquecidos –, o volume dedicado a Florestan Fernandes abriu essa
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nova fase dos “Perfis”. Lá e aqui, o texto ágil e preciso estabelece in-
teressante paralelo entre autor e personagem. Assim como Florestan,
seu biógrafo, de origem igualmente humilde, superou limitações e
conseguiu, com garra e coragem, inserir-se no contexto político e
cultural da sociedade, colocando a produção intelectual a serviço
dos despossuídos.
Natural de Mortugaba, interior da Bahia, um dos 14 filhos de
família camponesa semianalfabeta, Laurez Cerqueira trabalhou até
os 18 anos na lavoura. Concluído o antigo ginasial, embarcou num
caminhão com destino a São Paulo para tentar prosseguir os estudos.
Instalado num cortiço no bairro da Mooca e operário da construção
civil por quase um ano, transferiu-se para Brasília, onde foi faxineiro
do Banco Central, ascensorista do Ministério da Agricultura, datiló-
grafo e auxiliar­de serviços administrativos nos Correios. Finalizando
o segundo grau, passou no vestibular para Geologia na UnB, mas o
curso, exclusivamente diurno, era inviável para quem precisava ga-
nhar o sustento. Depois de um período em que viveu entre Bolívia,
Chile e Peru, ligado às lutas das cidades e do campo, volta a Brasília
e, agora aluno de Letras, começa a militar no movimento estudantil.
Entra para a Câmara dos Deputados no final de 1983, assessorando
parlamentares da primeira bancada do Partido dos Trabalhadores.
Sua ligação com Florestan Fernandes deu-se por intermédio
do professor Hélio Alcântara, chefe de gabinete do então deputado
constituinte. A identificação entre ambos foi imedia­ta e uma amizade
cresceu e consolidou-se nas longas conversas sobre as dificuldades
comuns para sobreviver e estudar. Impressionado com a curiosidade
de Laurez, Florestan, com paciência e carinho, indicava leituras e
emprestava livros.
Passando a trabalhar diretamente com o sociólogo-deputado,
Laurez aprofundou ainda mais a relação em discussões sobre os as-
suntos do dia que ia lendo nos jornais e na bibliografia recomendada
por Florestan. Na bancada do PT foi encarregado das articulações
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com os movimentos sociais. Atuou como assessor de imprensa de


Maria da Conceição Tavares, Virgílio Guimarães e do deputado
gaúcho Henrique Fontana, com quem escreveu dois livros: Governo
Fernando Henrique Cardoso: crise, decadência e corrupção e O Outro
Lado do Real: as marcas de um governo neoliberal no Brasil. Com a
posse de Lula na presidência da República tornou-se assessor do líder
do governo, Aloí­sio Mercadante. Atualmente no gabinete do deputa-
do catarinense Mauro Passos, Laurez costuma referir-se a Florestan
Fernandes como seu pai intelectual, a Conceição como sua mãe e a
Mercadante como tio... Por seu lado, Florestan encantava-se com a
história de vida do colaborador e amigo, enxergando nela sua própria
infância e juventude.
Florestan Fernandes nos deixou há quase uma década. Suas ideias
transformadoras e revolucionárias permanecem mais vivas do que
nunca nas páginas deste livro e na Escola Nacional do MST de que
é referência, pensamento fecundante e patrono.
CAPÍTULO 1

DE “VICENTE” A F LO R E S TA N

Acho que a coisa mais difícil


que fiz foi permanecer
fiel à minha classe de origem.
Florestan Fernandes

O professor Aziz Ab’Saber, um brasileiro notável da geografia


no mundo e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), costuma recordar um colega de turma
muito especial, que se tornaria seu grande parceiro no compartilhar
da velha carteira de duplo assento, nos tempos da universidade: Flo-
restan Fernandes. Alguns cursos aconteciam em conjunto, entre as
turmas de Geografia e Ciências Sociais. Nas aulas de Antropologia
de Emílio Willems, um dos precursores dos estudos de contatos
étnicos e culturais da região Sul do Brasil, Aziz lembra que boiava
um pouco, enquanto Florestan acompanhava com facilidade: “Esse
colega extraordinário me influenciou mais que muitos professores.
Além de morarmos no mesmo bairro e dividirmos a mesma cartei-
ra, tomávamos juntos o mesmo bonde, da Praça da Sé até a Quarta
Parada”. Esse personagem despontaria no panorama intelectual pela
primazia do pensamento humanista com uma compreensão fluente
dos temas mais complexos do conhecimento no mundo acadêmico.
As raízes estão na mais tenra infância do homem que viria a se tor-
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nar uma referência destacada entre estudiosos de todo o mundo. A


dura experiência de vida o tornou “um aprendiz de sociólogo” desde
criança, como costumava dizer, constrangido a enfrentar os desafios
da sobrevivência.
Compreendeu – inicialmente nas ruas – as relações de poder
e a luta de classes, as injustiças sociais e o acúmulo de privilégios,
nessa pedagogia do cotidiano que o marcou profun­damente. Para
compreen­der seu gênio e seu empenho ao interpretar o mundo, é
necessário conhecer suas histórias, da vida na gangorra de uma exis-
tência privada das facilidades reservadas aos bem-nascidos. É singular
o modo contundente­com que ele próprio interpreta sua origem:
Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado
e sem a socialização pré e extra-escolar que recebi, através das duras
lições da vida (...). Iniciei a minha aprendizagem ‘sociológica’ aos seis
anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto, e penetrei,
pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convi-
vência humana e a sociedade (...). A criança estava perdida nesse mundo
hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar, nas
‘técnicas do corpo’ e nos ‘ardis dos fracos’, os meios de autodefesa, para
a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém, a
soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela
‘tempestade da vida’ e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem.1

Não se dá filho
Florestan Fernandes nasceu em São Paulo, no dia 22 de julho de
1920, de um parto que envolveu risco de vida por subnutrição. Sua
mãe, dona Maria Fernandes, uma senhora de origem portuguesa que
prestava serviços em casas de famílias paulistanas, chegou ao Brasil
com 13 anos de idade, no início do século passado.

1
Fernandes, F. A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação
e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 142-143.
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Oriunda de uma região pobre de Portugal, veio para trabalhar


nas lavouras no interior paulista. Era uma moça bonita, impetuosa,
mas submetida a um pai durão, conservador, que mantinha os filhos
a rédeas curtas. Sob sua rígida vontade, dona Maria casou-se ainda
adolescente com um colono português, prometida muito tempo antes
ao pai do noivo.
O casamento durou pouco. Vítima da “gripe espanhola”, o marido
faleceu. Desgostosa da vida e do trabalho nas lavouras, dona Maria
resolveu morar na capital, São Paulo, onde passou a trabalhar como
empregada doméstica. Florestan nasceu de uma paixão por um moço
que também prestava serviços em uma das casas onde trabalhou. Ela
ficou grávida e manteve o fato em segredo.
Preferiu desaparecer na cidade à procura de novo emprego e ter o
filho longe da tortura da maledicência. Conseguiu emprego na casa de
um casal sem filhos, da família Bresser, alta classe média de São Paulo.
Sua patroa falava francês, tocava piano e gostava de tomar chá com
as amigas nas tardes paulistanas. Encontrou apoio na amizade de um
motorista alemão chamado Florestan, um homem gentil e generoso
que se casaria depois com Julieta, uma das suas melhores amigas.
O rapaz a ajudou muito nos momentos mais difíceis da gravidez,
com solidariedade e consideração – em tal intensidade que o recém-
-nascido ganhou o apropriado batismo de Florestan.
O nome é uma exaltação a um personagem da única ópera de
Beethoven, Fidélio, drama sevilhano no qual a mulher Leonora luta
pelo seu amor, Florestan, e consegue libertá-lo das masmorras de
Dom Pizzaro. A ópera, concluída em 1814, quando a Áustria esteve
sob o domínio de Napoleão, mais do que uma exaltação ao amor é
um hino à liberdade, à lealdade e à justiça.
Na hora do batismo, a patroa, que seria a madrinha, não admitia
que o bebê se chamasse Florestan. Dizia com desdém que esse nome
era para gente de classe social elevada, não para filho de lavadeira. E
decidiu que o nome da criança seria Vicente. A madrinha, o marido
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e os parentes de dona Maria passaram a chamá-lo assim, mas a mãe


o chamava de Florestan. A pessoa do Vicente, contaria depois o pro-
fessor Florestan, dominou uma parte da sua vida até que o Florestan
superasse o Vicente. Para a madrinha, talvez, aquele nome seria
apropriado ao filho que não teve e, apesar de dedicar seu carinho ao
recém-nascido, não o considerava digno de tal honraria.
Sob esse conflito, Florestan, que estimava a madrinha, vivenciou
ainda muito cedo o que seria uma verdadeira contradição de classe.
Mais tarde, o sociólogo Florestan Fernandes tratou amplamente dessa
e de outras situações semelhantes numa outra dimensão, a sociológica.
Além desse episódio, uma outra situação afetava Florestan à medi-
da que crescia e estabelecia relações de convivência: via-se obrigado a
responder a indagações sobre o seu pai. Isso o incomodava e ele repetia
a versão da mãe, que seu pai havia morrido quando ainda era bebê.
Essa controvérsia foi desmanchada mais tarde por dona Maria, já no
final da vida, em 1992. Ela revelou o nome do pai dele a dona Myrian
Fernandes, mulher do professor Florestan. E, com a delicadeza que o
assunto­requeria, dona Myrian aguardou o momento adequado para
transmitir-lhe a confidência: seu pai ainda estava vivo. Perguntou se ele
gostaria de conhecê-lo. Lacônico, o professor Florestan disse não, que
não tinha pai e que não se interessava por aquele assunto. Com esta
decisão a família resolveu deixar as coisas como estavam.
Mas quando Florestan faleceu, em 1995, dona Myrian Fernandes
descobriu em sua carteira o nome do pai escrito num pequeno pedaço
de papel, como se aquilo fosse uma fotografia. Ficou surpresa, pois
imaginara sempre um total desinteresse pela figura do pai.

***

Até então muito monótona, a casa da madrinha de Florestan


ganhou vida com a chegada de “Vicente”. Uma criança astuta, inte-
ligente e muito simpática.
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A velada discriminação não impediu que o convívio fosse agradável.


O garoto passou a ser o centro da descontração na família. O casal
tinha prazer de comprar livros infantis e lia para ele as histórias. Foi
quando conheceu uma revista chamada O Tico-Tico. Disse Florestan
que essa leitura o levou a lugares de sua imaginação ainda não visitados.
A leitura, embrião de uma vigorosa atividade intelectual, passou, então,
naturalmente a fazer parte de sua vida a partir desse período.
Mas apesar dos bons tratos a “Vicente”, a certa altura a relação
com a patroa deteriorou-se a ponto de, um dia, dona Maria arrumar
as malas, pegar Florestan e partir novamente em busca de emprego,
mudando-se para uma casinha de dois cômodos na periferia. Na
lembrança do filho, sua mãe era uma mulher de olhar penetrante,
determinada, independente, amante da vida, que oscilava entre a
suavidade e a aspereza, e preservava a dignidade como poucos.
Depois da mudança da casa da madrinha de Florestan, se casou
com um garçom, voltou a lavar roupas, mas desistiu. Passou a cuidar
apenas da própria casa. Esse casamento também não durou. Quando
percebia que o relacionamento não tinha futuro, dona Maria se an-
tecipava em anunciar o desenlace, arrumava as coisas e desaparecia
na cidade sem deixar endereço.
Mesmo com todas as dificuldades, dona Maria não deixou de
levar seu filho para visitar a madrinha de vez em quando. No Na-
tal, quase sempre era a madrinha que visitava “Vicente”. Parava na
porta da casa num automóvel bonito e descia com um presentinho.
Costumava dar uma volta de carro com ele pelo bairro e depois ia
embora. Aquilo o deixava contente e orgulhoso perante os vizinhos.
Duas pessoas o visitavam no Natal e no aniversário: a madrinha
e uma filha de criação dela, Ivana, que Florestan considerava a
melhor amiga que teve na vida. Dizia que Ivana o amou mais que
a sua própria mãe.
No Natal, ele se antecipava. Antes do anoitecer, tomava banho,
penteava os cabelos, vestia sua melhor roupa e ficava sentado num
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cantinho da calçada a esperar a madrinha ou Ivana com os presentes.


Esperava até altas horas da noite. Quando não aparecia ninguém ele
se recolhia, mergulhado numa profunda tristeza. Dizia que o Natal
era o dia mais feliz de sua vida; mais ainda quando recebia a visita
dessas duas pessoas. Era quando se sentia criança de verdade.
Numa dessas ocasiões, a madrinha convenceu dona Maria a
deixá-lo viver com ela novamente. “Vicente” completara seis anos e a
situação dos dois estava muito difícil. Embora relutante, dona Maria
concordou. Nesse período, entre os seis e sete anos, enquanto morou
com o casal, ele frequentou uma pequena escola.
Certo dia, a mãe foi visitá-lo e, numa conversa cheia de rodeios,
a madrinha insistiu para que dona Maria lhe “desse Vicente” defi-
nitivamente. dona Maria ficou profundamente ofendida com o que
ouviu. Como não era mulher de meias palavras, mirou os olhos da
outra e, indignada, deu-lhe uma resposta à altura: “não se dá filho,
o que se ‘dá’ são cães”. E levou Florestan de volta para casa. Juntos,
enfrentaram a vida, sozinhos, na cidade de São Paulo, morando em
casas de cômodos sombrios e em cortiços.

As crianças eram tratadas como classe inferior


O retorno ao convívio com a mãe roubou-lhe a infância. A falta
de recursos, as mudanças constantes, os miseráveis lugares onde mo-
rou, o trabalho infantil, tudo isso prejudicou sua formação escolar,
impedindo-o de cursar regularmente a escola­primária.
Além disso, nas escolas que ele pôde frequentar prevalecia a pe-
dagogia da violência, e isso desanimava as crianças. Os três primeiros
anos, ele estudou no Grupo Escolar Maria José, na Bela Vista. Lá, se
batia com palmatória, os professores ajoelhavam os alunos em grãos
de milho, colocavam-lhes orelhas de burro. Enfim, as escolas viviam
uma situação deplorável.
Florestan chegou a ser castigado nessa escola com a aprovação
da mãe, mas como era uma criança muito inteligente os professores
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o utilizavam como auxiliar nas atividades em classe. Por um lado,


isso o deixava feliz; por outro, lhe criava problemas, pois aquilo era
entendido pelos companheiros de sala como um privilégio.
Quando ia tomar a tabuada dos colegas, respondiam chutando
sua canela. Mas ele não deixava por menos, revidava. Os garotos se
juntavam na saída da escola e ficavam esperando Florestan para irem
à forra. Como não era de correr de briga, ele exigia enfrentar um de
cada vez. Apoiava-se numa convenção dos conflitos de rua, onde era
considerada covardia duas pessoas lutarem contra uma. Apesar de
franzino ele tinha agilidade no corpo e coragem, sabia aproveitar
essas habilidades e costumava levar a melhor com a turma da escola.
As brigas também lhe renderam amizades. Já no fim do período
em que morou na casa da madrinha, cabulava aula explorando as
áreas ao redor da escola com os amigos. Subiam o Morro dos Ingleses,
onde havia palácios em lugares descampados cercados por muros altos.
Trepavam nas árvores para espiar­as residências das famílias ricas
paulistanas, sonhavam, faziam planos, como se o futuro os esperasse
com todas aquelas coisas encantadoras que viam.
Depois da mudança da casa da madrinha para a casa da mãe, no
bairro da Bela Vista, a situação da família se agravou. Dona Maria
tinha se casado novamente, mas o padrasto ficou doente e o que ela
ganhava, lavando roupas, não dava para suprir as necessidades da
família. Florestan teve que se lançar às ruas em busca de trabalho, um
pouco antes de completar os sete anos de idade. O menino Florestan
ora engraxava sapatos, encerava casas no bairro, ajudava numa fábrica
de colchões, ora entregava compras de feira em domicílios. Fazia os
biscates que apareciam.
Seu primeiro trabalho foi limpar as roupas dos fregueses numa
barbearia. Criança franzina, engraçadinha, tinha a simpatia dos
clientes e boas gorjetas. No fim do dia ia para casa com bons
trocados no bolso. Nessa de ter de levar para mãe, todos os dias,
uma quantia qualquer para as despesas, ele acabou desenvolvendo
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uma técnica de suprimento que não deixava faltar dinheiro em


casa. Como num dia ganhava mais e noutro ganhava apenas o
suficiente para comer, voltando de mão abanando, a partir de um
certo momento ele passou a fazer o seguinte: quando ganhava mais
que o necessário para o sustento diário, guardava o excedente no
sapato. Chegava em casa, dava uma parte para a mãe. Na hora de
dormir, tirava o que estava no sapato, guardava num saquinho de
pano que ele mesmo costurou e colocava numa pequena fenda feita
no colchão em que dormia.
Quando não ganhava nada, recorria à reserva e dava para a mãe.
Com esse jeito peculiar de lidar com o dinheiro ele aprendeu a se
prevenir para enfrentar as incertezas do dia a dia. Daí em diante,
Florestan trabalhou em muitos serviços ocasionais. Ainda na barbea­
ria ficou sabendo de um negrinho, com quem dividia a tarefa, que o
serviço que mais rendia dinheiro era engraxar sapatos.
Com uma escova, flanela e uma lata de graxa na mão partiu
para os pontos de maior circulação da cidade. Primeiro estudou os
melhores. Começou na Bela Vista, depois Cambuci, mas descobriu
que os de melhor renda ficavam em Vila Mariana, no Largo Ana
Rosa, em frente da estação dos bondes. Ali, ele teve um ponto por
um bom tempo, entre uma barbearia e um bar. Nesta época morava
no Bosque da Saúde, um lugar distante e ermo que lhe obrigava a
voltar para casa com dia claro. Para o Largo Ana Rosa ia a pé, não
dispunha de dinheiro para pagar transporte. Por outro lado, não podia
perder tempo, tinha que levar para casa qualquer quantia todos os
dias. Procurava compensar as horas de baixa do fluxo de pessoas no
ponto percorrendo as residências da redondeza à procura de sapatos
para engraxar. Engraxava uma média de dez pares por dia. Dessa
forma, ele garantia as suas despesas diárias e as de sua mãe.
Contava o professor Florestan que as experiências de trabalho
nas ruas de São Paulo foram muito duras para ele, mas não tanto
quanto aturar o jeito dos adultos de lidar com as crian­ças pobres.
LAUREZ CERQUEIRA 19

“As crianças eram tratadas como ‘classe inferior’; quando estava com
fome e pedia uma ajuda a alguém, a pessoa quase sempre me servia
como se estivesse dando comida a um cão”.
Não aceitava a humilhação. Podia estar morrendo de fome, mas
recusava comida em condições degradantes. Preferia arranjar um
tostão, comprar um pudim de pão chamado “mata-fome”, que deixava
a ele e aos outros meninos de barriga cheia pelo resto do dia, embora
desnutridos. Um amigo, filho de uma professora, às vezes lhe oferecia
comida, e, sendo a única casa que o servia decentemente, ele aceitava.
A disputa pelos pontos de engraxate nas praças era grande, a
concorrência acirrava, chegavam à luta física. Florestan se destacava
por ser pequeno, franzino, mas andava limpinho e bem vestido,
apesar da maioria das roupas herdadas de outras crianças. Quando
ia para a rua com aquelas roupas inadequadas para o seu tamanho,
a meninada zombava, dizia que era roupa de defunto. Ele aguentava
calado, fingia não dar importância e fazia de tudo para não se indis-
por com os colegas.

A válvula de equilíbrio era a fantasia


Apesar das dificuldades, Florestan era uma criança bem cuidada
pela mãe e trabalhava com a responsabilidade de um provedor, não
era como muitas outras que viviam na rua, abandonadas pelos pais.
Seu jeito chamava a atenção e isso lhe rendia clientes fixos nos cantos
das praças, mas também provocava reações de despeito e desavenças.
Muitas vezes teve que sair no braço com companheiros que se
sentiam prejudicados pela preferência dos clientes. E como era muito
franzino, quase sempre levava a pior. Dona Maria, muito severa,
não admitia que ele brigasse na rua; se brigasse apanhava em casa.
Ela batia nele com palmatória, tamanco, cipó, com qualquer coisa
ao alcance da mão. Nas surras, ele aprendeu a se defender. Quando
começava a apanhar, se atirava ao chão, segurava na perna da mãe,
cravava-lhe os dentes, fazia marcas profundas até que ela se rendesse.
20 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Por serem fontes de renda, os pontos de engraxate na maio­ria das


vezes eram conquistados com a capacidade de luta de cada um. Ainda
no Largo Ana Rosa, já com seus nove anos, um garoto de quatorze
ou quinze anos não queria deixá-lo trabalhar na área. Estabeleceu-se
um conflito.
Um dia, os dois se enfrentaram. Na briga, Florestan estava com
uma caixa de sapólio Radium, bem reforçada. Enquanto Florestan
girava de um lado para o outro, tentando se defender dos golpes, o
garoto abriu a guarda, Florestan aproveitou e espatifou a caixa na
cabeça do sujeito. O garoto caiu tonto, levantou-se como um bêbado
e saiu cambaleando pelo meio das pessoas. Nunca mais ele se meteu
a poderoso da área com Florestan. Assim, o ponto foi conquistado
até a próxima batalha.
Contava o professor Florestan que na turma havia um grandalhão
chamado Papaiano, de uns dezesseis anos, muito temido pelos garotos.
Ele costumava se impor submetendo os menores a seus comandos.
Florestan já tinha sido vítima de alguns safanões desse rapaz. Na arena
não havia como se render, coisas piores podiam acontecer.
Naquela época havia um código de desafio para as brigas.
Primeiro, os garotos cuspiam no chão, esfregavam o pé no cuspe
e depois passavam a mão no nariz do sujeito. Certo dia, Flores-
tan estava sentado no batente da porta de uma loja fechada, de
cabeça baixa, meio desolado, porque fora expulso de seu ponto.
Quando se levantou e colocou a caixa de engraxate no ombro,
Papaiano apareceu. Postou-se à sua frente, cruzou os braços, cuspiu
no chão e passou a mão no nariz de Florestan. Ele ficou quieto,
sentiu o medo percorrer sua espinha, não tinha musculatura para
enfrentá-lo. Sem alternativa, Florestan deu meia-volta e correu
como uma bala rua abaixo, pelo meio das pessoas, foi embora
para casa apavorado.
A primeira coisa que disse à sua mãe ao chegar foi que te­riam
que se mudar, porque a situação tinha se complicado para ele na
LAUREZ CERQUEIRA 21

rua. Insistiu com dona Maria, mas ela foi irredutível. Disse que não
tinham condições de mudar e que ele tratasse de esquecer aquela
ideia. Florestan foi para os fundos da casa, sentou-se no primeiro
degrau da escada que dava na porta da cozinha e começou a brincar
com uma gilete usada, apanhada no chão, enquanto matutava um
jeito de enfrentar aquela situação.
As crianças da época costumavam usar botinhas de couro,
amarradas por cadarço. Enquanto brincava com a lâmina, teve a
ideia de enfiá-la no bico da bota, entre as camadas do solado. Ele
a partiu em vários pedaços, experimentou colocar as farpas em
cada pé. Deu certo. No dia seguinte, voltou à praça e lá estava
engraxando o sapato de um homem. Papaiano chegou e ficou por
perto rondando, esperando a hora de dar o bote, não quis provocar
Florestan diante do freguês.
Assim que o freguês foi embora, Papaiano se aproximou, cruzou
os braços diante de Florestan e cuspiu no chão. Florestan passou o
pé em cima. Papaiano passou a mão na cara de Florestan e Flores-
tan fez o mesmo na cara dele. Quando Papaiano levantou a mão
para passar na cara de Florestan outra vez, levou um chute certeiro
na canela e caiu aos gritos, rolou no chão com as mãos cobrindo
o corte na perna.
Temendo a reação dos companheiros de Papaiano, que eram
muitos e podiam massacrá-lo, Florestan apanhou sua caixa e se
embrenhou entre as pessoas da praça, subiu num bonde para não
ser pego e foi embora. No dia seguinte, estava de volta ao mesmo
ponto. Nenhum dos garotos se atreveu a comentar o caso com ele.
Essa forra teve uma repercussão importante, não só no meio dos
garotos. Ele obteve apoio dos clientes que o conheciam. E da turma
da área, o reconhecimento e o respeito por sua coragem.
Florestan trabalhou também carregando compras em feiras livres.
Certa vez, acompanhou uma senhora, elegantemente vestida, que
queria comprar frutas. Ele a ajudava carregando uma sacola, enquanto
22 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

ela escolhia. Numa das barracas, ela viu umas mangas muito bonitas
e resolveu comprar. Como na sacola não cabia mais nada, o dono da
barraca arranjou um saco e ela acabou comprando uma quantidade
grande. A senhora pediu a Florestan que a ajudasse a levar a sacola
até sua casa, numa rua próxima. Como não era possível levar todas
as compras de uma só vez, primeiro ele levou a sacola, depois voltou
para pegar o saco de mangas.
Na barraca, tentou colocar o saco de mangas nas costas, mas viu
que não tinha força suficiente para carregá-lo. Mesmo assim, pro-
curou cumprir seu compromisso. A alternativa foi arrastar o saco de
mangas. Arrastou-o com toda força, até certa altura da rua. Como
era numa ladeira, e já estava exausto, resolveu amarrar a boca do saco
e rolá-lo ladeira acima, até a porta da casa. Ao chegar, percebeu que
as mangas estavam bastante amassadas. Mas não havia o que fazer.
Estava ali cumprindo o combinado.
Temeroso, bateu na porta e ficou esperando para ver o que ia acon-
tecer. Quando a dona das mangas apareceu, viu que o saco estava sujo
e molhado e não precisou muito para adivinhar o estado das frutas.
Furiosa olhou para ele, mas ao perceber o desapontamento daquele
menino de olhar envergonhado, conteve o impulso de repreendê-lo de
forma agressiva, resumindo-se a dizer algo mais brando. A vergonha
baixou-lhe a cabeça. Ela pegou no queixo dele e, procurando seus olhos,
disse: “Olha aqui: você nunca deve assumir, com ninguém, compro-
missos além das suas possibilidades. O professor Florestan dizia que
essa cena foi tão forte, que nunca mais a esqueceu. E que as palavras
daquela senhora ressoaram por muito tempo em sua memória.
Dona Maria Fernandes era uma mulher rígida e educou Florestan
de forma muito dura. Exigia disciplina, compreensão e um engaja-
mento na vida como se ele fosse um adulto. Queria que ele aprendesse
uma profissão desde criança, para garantir o ganho da sobrevivência
e a independência, para ela um valor fundamental. Não queria ver o
filho se humilhar por necessidades básicas da vida.
LAUREZ CERQUEIRA 23

Com esse intuito, ela o colocou para trabalhar numa alfaia-


taria, quando ele tinha entre nove e dez anos. Começou fazendo
entrega de encomendas nas casas de famílias de alta classe média
em São Paulo. O alfaiate exigia que ele vestisse paletó e gravata
para fazer as entregas. Como o alfaiate era baixinho, deu um
terno velho de uso pessoal para Florestan usar no serviço. Mas a
roupa ficava muito grande; ele se revoltava quando vestia e tinha
que dobrar a manga do paletó, a perna da calça ou franzir o cós
ao apertar o cinto.
No vaivém pelas ruas, entregando encomendas nas casas lu-
xuosas das famílias paulistanas, ele entrou em contato com o lado
da vida até então desconhecido, o mundo da opulência, dos ricos.
O professor Florestan dizia que ficava encantado com as casas,
com os jardins e todas aquelas coisas bonitas que as pessoas ricas
podiam comprar.
Quando passava em frente ao cine Paramount, parava e ficava
a contemplar os metais dourados e os lustres brilhantes; esperava
a hora da sessão de cinema para ver os carros bonitos pararem, os
motoristas vestidos de ternos abrirem as portas e aquelas senhoras
elegantes descerem, de sapatos de salto alto, chapéus enfeitados e xales
nos ombros. Naquela época, dizia o professor Florestan Fernandes,
seu grande sonho era trabalhar, ganhar muito dinheiro, comprar um
carro daqueles, roupas bonitas para dona Maria e um dia levá-la ao
cine Paramount.
Depois da fase de entrega de encomendas, ele passou à função
de auxiliar, na alfaiataria. Pregava botões, fazia alinhavo e bainhas
de calças. Dona Maria insistia para que aprendesse a profissão de
alfaiate, mas naquela idade era muito complicado para ele. Morava
longe e tinha de voltar para casa todos os dias, tendo de percorrer
uma longa distância até sua casa. A solução encontrada por ela
foi conseguir que ele dormisse no trabalho; o alfaiate concordou
em arrumar um cantinho. Mas, toda vez que ia à casa da mãe nos
24 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

finais de semana, Florestan se queixava do lugar onde dormia e


da comida que lhe serviam. Preocupada, certa noite dona Maria
resolveu ir até lá para ver as condições da hospedagem e ficou
chocada com o que viu. Seu filho estava dormindo num porão-
zinho de paredes carcomidas abaixo do nível da rua, enfestado
de baratas, numa caminha improvisada, em cima de um armário
velho, encostado na parede.
O professor Florestan contava que quando se deitava, via através
da grade do respirador os sapatos das pessoas que passavam pela cal-
çada, quase rentes ao seu rosto. Antes de dormir, ele ficava olhando os
vultos das pessoas deslizarem na parede do quarto, ouvindo o ruído
dos sapatos e pedaços de conversas.
Ao contar esta história, ele dizia, brincando com as condições
do lugar onde viveu, que aquele era o seu cineminha Paramount,
disponível e de graça todas as noites antes de dormir.
Quando chovia, a água escorria pela parede e atingia a cama.
Ele juntava retalhos de tecidos e costurava uns nos outros até formar
um feixe bem grande, com o qual vedava os buracos para se proteger
tanto da chuva quanto do frio das noites paulistanas, que penetrava
pelas frestas do porão.
Magoada, dona Maria decidiu tirar seu filho de lá. Disse ao al-
faiate que ele era um homem sem coração e que aquilo não era lugar
para o descanso de um ser humano.
Se tinha pouco tempo para aproveitar a infância, nem por isso deixava de
sofrer o impacto humano da vida nas trocinhas e de ter réstias de luz que
vinham pela amizade que se forma através do companheirismo (nos grupos
de folguedos, de amigos de vizinhança, dos colegas que se dedicavam ao
mesmo mister, como meninos de rua, engraxates, entregadores de carne,
biscateiros, aprendizes de alfaiate e por aí afora). O caráter humano chegou-
-me por essas frestas, pelas quais descobri que o ‘grande homem’ não é o que
se impõe aos outros de cima para baixo ou através da história; é o homem
que estende a mão aos semelhantes e engole a própria amargura para com-
partilhar a sua condição humana com os outros, dando-se a si próprio, como
LAUREZ CERQUEIRA 25

fariam os meus Tupinambá. Os que não têm nada que dividir repartem com
os outros as suas pessoas.2

Eis parte da complexa formação de Florestan, salpicada neste


trecho de A sociologia no Brasil, que revela detalhes de uma per-
sonalidade forjada sob uma atenção aguda de si mesmo e sobre o
que ocorria ao seu redor. O trabalho iniciado precocemente em
ramos de atividade tão diversos, ora como engraxate, ora como
ajudante de açougue, marcenaria, padaria, bar, restaurante, ora
como vendedor de material para consultórios de dentistas, expan-
diu essa socialização, marcada pela observação da realidade, pelo
desejo de compreendê-la e de ir além desses limites até chegar às
Ciências Sociais. Da marcenaria, dizia, ficaram as lembranças do
perfume das madeiras, que lhe encantava quando, de manhã, abria
o portão da oficina; a determinação e a habilidade dos marceneiros
ao esculpir as peças.
Entre todas as atividades exercidas nessa fase de trabalhador
humilde, as que ele dizia ter mais gostado eram as de garçom e ven-
dedor, pelo fato de possibilitar o contato direto com os movimentos
complexos da cidade por meio da vida das pessoas que lhe chegava
nos balcões, das situações vividas por cada um, ricas de significados
e de conhecimento da realidade.
Foi trabalhando como garçom que ele decidiu voltar aos estudos,
interrompidos no terceiro ano primário quando se mudou da casa
da madrinha. Mas, mesmo longe das salas de aula, o contato com
os livros nunca foi interrompido. Seu padrasto gostava de ler, tinha
muitos livros em casa e ele aproveitava o pouco tempo disponível
dedicando-se à leitura. “A válvula de equilíbrio era a fantasia, uma
forma de se aliviar da dura realidade que eu vivia”, dizia ele.

2
Fernandes, F. A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação
e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1988.
26 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Ele tem jeito de reformador social


Ganhava muitos livros e achava isso muito curioso. Os fregueses
dos bares e restaurantes onde trabalhou percebiam, ele era uma pessoa
interessada que conhecia certos assuntos incomuns a um trabalhador
humilde; gostava muito de contos, novelas, ficção, folclore e, sabendo
disso, lhe davam livros. Certo dia, um delegado de ensino chamado
Luís do Amaral Vargas, que costumava frequentar o Bar e Restau-
rante Bidu, onde ele trabalhava, colocou sobre o balcão uma caixa
com quarenta livros e disse: “Florestan, eu estava em casa arrumando
minha estante e lembrei-me de você. Como eu sei que você é um
leitor voraz, aqui está um presente”.
Florestan andava com livros debaixo do braço, lia no bonde,
em pontos de espera, nos intervalos do trabalho, nos bancos das
praças, em todos os lugares aonde ia. O livro parecia compor a sua
vestimenta.
A volta aos estudos começou por acaso, depois de uma conversa
com um cliente no bar, naquela época muito frequentado por jor-
nalistas e intelectuais. Florestan devia ter catorze ou quinze anos,
morava na Penha, um bairro distante do centro da cidade. Estava
numa fase de inquietude, questionava tudo, não dispensava uma
boa discussão sobre qualquer assunto. Quando a conversa entre os
clientes era sobre temas da história ou os acontecimentos políticos
do momento, ele dava um jeito de participar e demonstrava um
conhecimento incomum. Os fregueses ficavam impressionados com
aquele garçom. Entre quatorze e dezessete anos, Florestan andou
lendo ensaios e livros de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo,
Bakunin, Proudhon e vários outros dessa linhagem.
No restaurante, deixava os livros num cantinho detrás do balcão.
Quando não havia clientes, ele ia para trás do balcão e punha-se a
ler, até alguém solicitar atendimento. Esse movimento de atender
aos clientes e depois voltar para o canto do balcão, posicionando-se
de olhar fixo para baixo, despertou a curiosidade de um jornalista a
LAUREZ CERQUEIRA 27

quem ele sempre atendia. O jornalista quis saber o que Florestan lia,
deixou a mesa e se dirigiu ao balcão. Para surpresa dele, Florestan
estava lendo um romance de um escritor russo e aproveitou para mos-
trar outros livros que ele tinha. O cliente ficou admirado, perguntou
por que ele trabalhava como garçom, quando aparentava ser uma
pessoa tão culta. Florestan disse que não conseguia emprego melhor
porque havia abandonado os estudos no terceiro ano primário, e que
não tinha qualificação para outras atividades. Inconformado com o
que ouviu, o jornalista convidou-o a sentar-se à mesa e, numa longa
conversa, Florestan foi convencido a voltar a estudar. Em frente do
restaurante onde trabalhava havia sido fundado o Colégio Riachuelo.
Lá, funcionava um curso supletivo (madureza), preparatório para
exames de acesso à faculdade.
Chegando em casa, animado, foi logo dizendo a dona Maria
que tinha decidido estudar. Esperava que ela recebesse a notícia com
alvíssaras, mas a reação foi contrária. Com olhos marejados disse a
ele que não concordava com sua decisão porque tinha medo de ser
abandonada, caso fizesse carreira. Achava que os estudos o deixariam
vaidoso e, quando frequentasse o meio das pessoas cultas, teria ver-
gonha dela, por ser analfabeta.
Apesar de abatido com a reação da mãe e com as dificuldades
para pagar o colégio, não desistiu. Manteve-se firme. Procurou o
diretor do curso de “madureza” e conseguiu, num primeiro momen-
to, assistir às aulas sem precisar pagar. Depois o diretor concordou
manter a matrícula mediante o pagamento­de uma taxa simbólica.
Naquela época, o ginásio era cursado em cinco anos e o curso de
“madureza”, em três.
Florestan trabalhou no Bar e Restaurante Bidu durante três anos
e, nesse período, conseguiu manter a frequência às aulas. Mas, o
Colégio Riachuelo mudou para Campos Elíseos, um lugar distante
dali, e ele teve de arranjar outra ocupação para continuar os estudos.
No bar Bidu, Florestan conheceu Manoel Lopes de Oliveira Neto, o
28 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

“Maneco”, diretor de uma empresa de produtos químicos chamada


Novoterápica, que se tornou seu amigo e lhe conseguiu um emprego
de entregador de amostras. Nesse período, ele prestou o serviço mili-
tar, o “Tiro de Guerra”, e conseguiu, com a anuência dos patrões, ir
ao quartel três vezes por semana para receber instruções.
Sua ascensão na Novoterápica foi meteórica. Quando terminava
o curso de “madureza” foi promovido a chefe da sessão de vendas de
artigos dentários, o cargo mais alto que podia alcançar na empresa.
Nessa época ele conheceu uma família de origem italiana de militan-
tes socialistas e alguns anarquistas, por intermédio de um rapaz que
também trabalhava na Novoterápica. Essa convivência o aproximou
ainda mais do movimento e das ideias socialistas.
Concluído o curso com destaque nos exames, Florestan queria
estudar Química, mas as condições não eram favoráveis, teria de
ficar o dia inteiro na faculdade e precisava trabalhar. Por outro
lado, os livros eram muito caros e não dispunha de recursos para
comprá-los. Os outros cursos que o interessavam e que estavam,
materialmente, ao seu alcance eram Filosofia, Ciências Sociais,
História e Geografia. Ali estava colocada uma situação para ele que
não era novidade, ou seja, a negação da oportunidade de acesso ao
curso superior que ele mais desejava. Na hora da escolha, pesou
uma observação feita, em sala, pelo seu professor do curso de “ma-
dureza”, Benedito de Oliveira, de quem gostava muito: “Florestan
é um aluno muito quieto, compenetrado, isolado dos outros. Ele
tem jeito de reformador social”.
Entre a dúvida e as condições para continuar os estudos, ele es-
colheu Ciências Sociais. Para a habilitação à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, em 1941, ele contava com uma considerável van-
tagem sobre os demais candidatos. Os conhecimentos adquiridos na
vida que teve, nos livros que leu nos estribos dos bondes, nos bancos
das praças, nas horas de espera, estavam somados a uma extraordinária
força mental e à coragem de enfrentar os desafios.
LAUREZ CERQUEIRA 29

A banca examinadora era composta por dois professores franceses,


(Roger Bastide, que viria a ser seu professor no futuro, e Paul Bastide).
Naquela época, a seleção incluía sorteio de pontos e o candidato teria
de comentar os assuntos e responder às perguntas da banca examina-
dora. Foi sorteado um texto do livro De la division du travail social:
étude sur l’organisation des sociétés supérieures, de Emile Durkheim.
O ponto e as perguntas eram em francês e Florestan não falava, mal
lia nesta língua. Pediu, então, aos professores para fazer a prova em
português. Diante daquela situação insólita, se reuniram nos fundos
da sala e decidiram aceitar.
Como Florestan conhecia bem o texto sorteado, comentou as
ideias de Durkheim com tamanha desenvoltura que deixou os pro-
fessores impressionados. Eram 29 candidatos, dos quais apenas seis
foram aprovados, entre eles Florestan.
Logo depois dos exames, ele saiu da Novoterápica. Recebeu uma
proposta de trabalho melhor e foi para uma empresa chamada Boti-
cão Universal. Começou atendendo no balcão. O patrão reconhecia
suas qualidades de bom vendedor, mas não gostava que ele estudasse
e tentou demovê-lo da ideia; queria dedicação exclusiva à empresa.
Duvidou que Florestan fosse capaz de fazer o curso na Faculdade de
Filosofia. Disse que sua filha também estudava lá e não estava dando
conta de acompanhar.
Florestan se indignou com o patrão e resolveu vender em troca de
comissão, assim teria tempo flexível para estudar. Ganhou as ruas de
São Paulo, fez um mapa com possíveis pontos de venda, conseguiu
freguesia em São Caetano, Jundiaí, São Bernardo e na capital. Man-
tinha bom relacionamento com as enfermeiras, empresta-lhes livros
e elas reservavam pedidos para ele. Era época da II Guerra Mundial,
circulavam muitos produtos no “mercado negro”. Ele comprava no
atacado, independentemente da firma, revendia e ganhava um bom
dinheiro. Em pouco tempo, Florestan estava concorrendo com o
Boticão. Houve um conflito na época com um gerente e ele preferiu
30 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

se demitir. Surgiu uma outra oportunidade como propagandista de


um laboratório com sede no Rio de Janeiro. Ele fez o teste e con-
seguiu o emprego. Trabalhou nesse laboratório até 1946, dois anos
depois de completar a licenciatura em Sociologia, já como assistente
do professor Fernando Azevedo.
LAUREZ CERQUEIRA 31

CAPÍTULO II

CONSTRUIR A SOCIOLOGIA
C I E N T Í F I C A E I N T E R P R E TA R O
BRASIL

O Vicente que eu fora estava finalmente morrendo e nascia em


seu lugar, de forma assustadora para mim, o Florestan que eu iria ser.
Florestan Fernandes

A vida na universidade foi muito dura para Florestan, levando-se


em consideração sua trajetória e as condições de que dispunha para
iniciar uma carreira desafiadora. As aulas eram dadas em inglês, francês,
italiano e alemão. Os métodos de ensino praticados eram os mesmos
das universidades europeias e os professores não faziam concessões nem
se importavam se estavam no Brasil. Toda essa situação tornou-se um
desafio ainda maior do que fora a retomada dos estudos e o acesso à
faculdade. Florestan não era de recuar diante das dificuldades.
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi criada para
atender à elite paulistana, que antes mandava os filhos estudar na
Europa. Naquele ambiente, onde os alunos conversavam com os
professores fluentemente em suas línguas de origem, imperava uma
aristocracia acadêmica que o discriminava, como se ele fosse um
estrangeiro de classe. Muito pela sua aparência, seus trajes simples
de trabalhador humilde, que percorria as ruas de São Paulo como
vendedor de produtos dentários ou peças de automóveis. “Não fui
recebido com hostilidade ostensiva, mas com frieza, como se para
aquelas pessoas fosse melhor se eu mantivesse certa distância deles”,
disse certa vez.
32 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Porém, como não era homem de concessões fáceis, preferiu enfren-


tar aquela situação. Não a subestimou ou deixou que a indiferença o
tomasse por completo e alimentasse seu “orgulho selvagem”. Também
não se entregou à resignação, uma opção dos fracos. Recorreu ao seu
talento e dedicou-se intensivamente aos estudos.
A situação melhorou um pouco mais tarde, quando ele passou a
conviver com o professor Antonio Candido e a publicar seus artigos
no jornal Folha da Manhã. Aos poucos foram amenizadas as resistên-
cias, os ânimos se abrandaram e o reconhecimento começou a brotar
das mais inesperadas pessoas, não só na faculdade, mas também no
meio intelectual e político paulistano.

Cumpria sua tarefa com zelo


O professor Antonio Candido conta que conheceu Florestan
em 1944 numa circunstância curiosa. Ele era assistente da cadeira
de Sociologia e Florestan ainda era aluno. Naquela época, Antonio
Candido era crítico literário e escrevia no jornal Folha da Manhã,
textos que misturavam literatura e socio­logia. Florestan lia e escrevia
cartas enormes para ele, discutindo os temas com muita erudição e
com questionamentos profundos, demonstrando conhecimento e
muita segurança nas afirmações. Os professores Fernando Azevedo e
Roger Bastide faziam comentários elogiosos na faculdade sobre aquele
aluno, que se destacava dos demais com uma produção intelectual
considerável.
Certo dia, Antonio Candido, andando pelos corredores da Fa-
culdade, já com algumas referências sobre Florestan, o viu encostado
numa janela com uma pasta cheia de livros, lendo A vida de Buda.
Aproximou-se, cumprimentou Florestan e conversaram sobre as car-
tas e os estudos. Apesar de muito sério e ao mesmo tempo cordial, a
conversa fluiu agradavelmente. Daí em diante ficaram amigos.
Florestan graduou-se em Sociologia no mesmo ano em que se co-
nheceram, 1944. O professor Antonio Candido era primeiro assistente
LAUREZ CERQUEIRA 33

da cadeira de Sociologia e havia uma vaga de segundo assistente, para


a qual o professor Fernando Azevedo indicou Florestan. Em seguida
foi extinta a hierarquia entre os assistentes e, em 1947, o expediente,
que era de meio período, passou a integral para que pudessem apro-
fundar os estudos e debater textos com os alunos.
Lembra o professor Antonio Candido que, nos debates do grupo
ou com os alunos, Florestan era rigoroso, não gostava de pessoas que
se contentavam com a forma superficial com que lidavam com os
problemas. Exigia que as pessoas fossem à raiz das coisas e discutissem
com profundidade os assuntos. Ele tinha uma capacidade motivadora
extraordinária, passava tarefas, debatia, criticava os trabalhos, cobrava
bastante dos alunos e orientava aqueles que tinham vocação, para que
fossem bons acadêmicos.
Essa dedicação com tanta paixão e entusiasmo ao trabalho era,
talvez, o que o fazia tão sério e muitas vezes indisponível, quando
estava envolvido em suas obrigações. Florestan tinha uma força
criativa incomum, escrevia com extrema profundidade e com imensa
erudição. Era um profundo conhecedor não só da sociologia e da
antropologia, mas de literatura, das artes em geral, de economia,
filosofia, história e outras áreas afins.
O professor Antonio Candido conta que, no início da convivên-
cia, ficou impressionado com a sua capacidade de trabalho. Florestan
chegava pontualmente às oito horas e, enquanto os colegas ficavam
papeando, ele lia e fichava os assuntos, compenetrado, em silêncio,
com a expressão de quem não estava gostando da conversa. Para ele,
aquilo era uma perda de tempo, achava que os colegas deviam estar
aproveitando para se aprofundar mais nos estudos, como ele fazia. Lia
dez, doze, até quatorze horas por dia, se necessário, com um poder
de concentração e absorção extraordinário, não se distraía quando se
dedicava ao trabalho intelectual. Nas fichas de cartolina, utilizadas
para anotar os resumos dos livros que lia, suas observações, escritas
com uma famosa caneta de tinta roxa, se transformavam em textos
34 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

longos e densos. Ele não perdia a oportunidade de deixar registradas


suas opiniões e sua inquietude em relação aos assuntos estudados.
Diz o professor Antonio Candido que quando iam embora, no
final do expediente, enquanto andavam entre a Praça da Repúbli-
ca, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, e a Rua 7 de Abril,
Florestan discutia as questões relativas à universidade, os teóricos,
as teorias, até que o ônibus chegasse. Ele ia para casa e Florestan,
em vez de ir descansar, dirigia-se à Biblioteca Municipal perto dali,
onde lia até as 11 horas da noite, quando a biblioteca fechava. Àquela
altura, ele já dominava a bibliografia da escola sociológica francesa, o
funcionalismo inglês, americano, o marxismo e outras vertentes do
conhecimento; já era um intelectual sólido para o trabalho acadêmico.
Florestan adotou um ensinamento do professor Emílio Willems,
decisivo na sua formação intelectual. Willems recomendava aos
assistentes que estudassem no mínimo quatro horas por dia, sempre
na parte da manhã, e à tarde fossem para a universidade. Ele dizia
que, se se multiplicassem essas horas de estudo pelo total de dias
do ano, o rendimento seria extraor­dinário. Florestan adotou essa
disciplina rigorosamente, e a seguiu ao longo de toda sua carreira
acadêmica.
Ele conseguiu juntar a disciplina, o talento, a inteligência ma-
nifestada precocemente, o desejo de superação das carências­de sua
infância e juventude, a busca incansável das raízes dos problemas e a
percepção da importância daquele núcleo de estudos para construir
sua obra. “Florestan, antes de entrar para a universidade, era puro,
não viveu em ambiente intelectual, não teve o que colegas contem-
porâneos dele tiveram”, diz Antonio Candido. Afirma ainda que a
vida acadêmica permitiu a Florestan não apenas construir sua obra,
mas também a própria personalidade. Florestan revela isso em A
sociologia no Brasil.
Eu me descobrira e, ao mesmo tempo, sentia crescer dentro de mim uma
vocação adormecida, que me dava força e argúcia para aceitar o desafio
LAUREZ CERQUEIRA 35

de tornar-me um professor e um intelectual. No princípio, as coisas não


possuíam muita clareza para mim. Mas já no segundo ano do curso eu
sabia muito bem o que pretendia ser e me concentrava na aprendizagem do
ofício – portanto, não me comparava ao bebê, que começa a engatinhar e a
falar, porém ao aprendiz, que transforma o mestre-artesão em um modelo
provisório. A cultura dos meus mestres estrangeiros me intimidava. Eu
pensava que jamais conseguiria igualá-los. O padrão era demasiado alto
para as nossas potencialidades provincianas (...) e especialmente para mim,
com a minha precária bagagem intelectual e as dificuldades materiais com
que me defrontava, as quais roubavam grande parte do meu tempo e das
minhas energias (...). Contudo, como me propunha a ser um professor
de nível médio, as frustrações e os obstáculos não interferiram no meu
rendimento possível. O desafio era trabalhado psicologicamente e, na
verdade, reduzido à sua expressão mais simples: as exigências diretas das
aulas, das provas e dos trabalhos de aproveitamento. Com isso, empobre-
cia o meu horizonte intelectual e humano. Não poderia sobrepujar-me e
resolver os meus problemas concretos sem essa redução simplificadora,
que se corrigiu por si própria, à medida que progredi como estudante e
adquiri uma nova estatura psicológica. Em suma, o Vicente que eu fora
estava finalmente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora
para mim, o Florestan que eu iria ser.3

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, seu ex-aluno, disse,


em entrevista à TV Câmara, que aos dezessete anos conheceu Flo-
restan, já como assistente do professor Fernando de Azevedo e com
dedicação exclusiva, na Faculdade de Filosofia. E o que mais chamou
sua atenção foi essa devoção e o rigor com que ele se dedicava ao tra-
balho acadêmico. Diz Fernando Henrique que, no início do curso,
não entendia bem as aulas, mas Florestan passou a ter consideração
por ele. Quando cursava o segundo ano, foi convidado por Florestan
a tomar um chope num bar da Avenida São João e nesse encontro
foi convencido a estudar Sociologia e seguir a carreira acadêmica.

3
Fernandes, F. A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação
e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 156-157.
36 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

A partir disso, a amizade entre eles se consolidou e permaneceu ao


longo de toda a vida, apesar das diferenças de posições ideo­lógicas e
políticas surgidas no caminho.
Fernando Henrique disse que após sua decisão de estudar So-
ciologia, Florestan passou a ser a mais importante referência em sua
carreira acadêmica. Eles chegaram a ser vizinhos na Rua Nebraska,
no Brooklyn dos anos de 1950, o que permitiu cultivar a amizade
e desfrutar melhor da vida intelectual do mestre. Àquela altura, na
hierarquia da Universidade, Fernando Henrique já era auxiliar de
ensino do professor francês Roger Bastide.
Em 1953, Florestan fez concurso para livre-docência e foi
nomea­do para a cadeira de Bastide, que havia voltado para a França.
Ao ocupar o novo cargo, Florestan nomeou Fernando Henrique
como primeiro assistente, uma posição logo abaixo do seu posto.
Naquela época, Florestan era seu orientador de tese e, na condição
de assistente, tinha a obrigação de assistir às suas aulas e dos outros
professores.
Fernando Henrique conta que a convivência no grupo era es-
timulante, havia uma profusão de debates e estudos, os conteúdos
dados em sala eram exaustivamente discutidos. Alunos e professores
tinham uma intensa vida intelectual. Essa regra instituída pela fa-
culdade rendia resultados excepcionais para a formação dos alunos.
Lembra ainda que a militância político-partidária praticamente não
tinha espaço na Faculdade de Filosofia. As atividades absorviam todo
o tempo dos alunos e os professores exigiam muita leitura, organi-
zação de seminários e produção abundante de textos. Ele conta que,
mais tarde, se aproximou de um grupo que havia na universidade e
começou a ter uma participação política mais ativa. Isso desagradou
Florestan, por entender que desviava dos objetivos do trabalho aca-
dêmico. Aquele momento era, para Florestan, de formação de bons
acadêmicos, autônomos e dedicados à pesquisa e à elaboração de
teses que pudessem ser referência para ajudar a entender a sociedade.
LAUREZ CERQUEIRA 37

O grupo coordenado por Florestan, segundo Fernando Henrique,


dedicava-se ao estudo do método na busca de soluções para os problemas
enfrentados na elaboração dos trabalhos. Lembra que Florestan havia
escrito um livro denso, intitulado Fundamentos empíricos da explicação
sociológica, no qual ele demonstrava um profundo domínio das obras
dos funcionalistas ingleses, estadunidenses e franceses. “Florestan
queria resolver uma questão que perturbava todos naquele momento:
compatibilizar as concepções de Emile Durkheim, Max Weber e Karl
Marx, de forma que esses pensamentos aparentemente incompatíveis,
tivessem coerência e consistência”, disse. Fernando Henrique observa que,
naquela fase, Florestan não poderia ser considerado um marxista e sim
um funcionalista, pois estudou com ele funcionalismo e não marxismo.
A turma da Faculdade de Filosofia, da qual eram professores
Antonio Candido, Florestan e outros, era famosa pela seriedade com
que encaravam a atividade acadêmica. Os brincalhões de plantão
diziam que eles estudavam tanto que não sobrava tempo nem para
namorar. Lá estavam figuras ilustres como Maria Isaura Pereira de
Queiroz, Paula Beiguelman, Fernando Henrique Cardoso, Octavio
Ianni, Marialice Mencarini Foracci, Maria Sílvia Carvalho Franco,
Paul Singer, Roberto Cardoso de Oliveira, Luiz Pereira, Leôncio
Martins Cardoso, José de Souza Martins e muitos outros.
Os professores tinham que acordar cedo e dar aulas às 7 horas
da manhã, não havia como combinar noites mal dormidas com as
atividades acadêmicas e a produção em que estavam envolvidos. Se
fossem intelectuais boêmios, certamente não teriam construído a
“sociologia crítica” e dado à universidade o destaque que ela conseguiu
nas Ciências Sociais.
Florestan teve, nessa fase, um desentendimento com Oswald de
Andrade, mas isso por certas provocações que o Oswald fazia com a
turma da Filosofia. Eles se conheceram no jornal Folha da Manhã e,
nesse encontro, ao cumprimentá-lo, Oswald disse: “Você é o Florestan
Fernandes? Pensei que você fosse um velho maluco”.
38 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Disse isso em tom de ironia por causa dos artigos e da fama


de sério que Florestan tinha. Oswald andava frequentando a Fa-
culdade de Filosofia, estava interessado no concurso de cátedra,
mas no final não conseguiu, quem ganhou foi o professor Antonio
Candido.
Nessas idas e vindas na faculdade, um dia ele entrou na sala do
grupo da Sociologia e lá estava Florestan, concentrado, trabalhando
nos textos de sua tese de mestrado. Quando Florestan estava em
seu canto trabalhando, ninguém o interrompia, temiam sua reação.
Oswald ousou interrompê-lo com uma discussão que não o interes-
sava. Como sabia que Florestan estava estudando os Tupinambá,
ficou tentando discutir “antropofagia”. Florestan foi cordial com
Oswald, deu atenção a ele, mas a certa altura tomou aquilo como
uma amolação, levantou-se e, bastante irritado, disse:
Olha, Oswald de Andrade, você nunca levou a vida a sério, sempre ficou
brincando com assuntos que não são divertidos. Agora, a Faculdade de
Filosofia é uma coisa séria, não é matéria de diversão. A Faculdade de Filo-
sofia é uma coisa muito importante. Você não pode tratá-la levianamente
como está fazendo. Você vem aqui, faz um concurso sem ter se preparado,
não tem base para ser professor de uma cadeira como essa e ainda quer
atormentar os que estão trabalhando.4

Oswald ficou furioso tentando retrucar, mas Florestan, naquele


ímpeto, não lhe dava chance e disse: “Quer saber de uma coisa?
Ponha-se daqui para fora. Eu tenho de trabalhar e já não tolero mais
sua presença aqui”.
Daí em diante Florestan ganhou um inimigo. No jornal O Estado
de S. Paulo, Oswald de Andrade tentou escrever atacando Florestan,
mas foi demovido da ideia pelo Dr. Júlio de Mesquita Filho, que se-
gurou o artigo. Dr. Júlio chamou Oswald para uma conversa e disse:
“Você quer escrever contra Florestan, escreve. Mas ele é uma pessoa

4
Revista Veja, julho de 1995.
LAUREZ CERQUEIRA 39

séria. Eu queria então que você escrevesse um artigo sério, um artigo


com mais arte”. Devolveu o artigo e não publicou.
Essa integridade de Florestan foi comentada pelo professor An-
tonio Candido, em entrevista à TV Câmara:
‘Florestan era um homem de gênio forte, que não transigia e não fazia
nada apenas por amabilidade ou respeito humano. (...) Admirava na per-
sonalidade dele a capacidade que tinha de provocar o escândalo, mas o
escândalo no bom sentido, que é muito difícil, não a farolagem’.
‘Certa vez, na reunião da Congregação das Faculdades, Florestan disse
estar escandalizado com certo colega que andava publicando uma revista
de verdadeira picaretagem, e que isso envergonhava a Universidade. Ele
dizia aquilo não com o intuito de ferir o colega, mas pela revista em si, que
considerava de nível aquém dos propósitos da Universidade. Suas observa-
ções eram temidas na Congregação, pelo seu jeito direto e impiedoso, mas
sempre movido pela responsabilidade e compromisso com a construção e
a compreensão das Ciências Sociais’.5

O professor Antonio Candido atribui esse caráter de Florestan


à “qualidade do homem íntegro, de senso de missão, que cumpria
sua tarefa com zelo”, diz. Ao mesmo tempo, no convívio, era um
homem agradável, brincalhão, gostava de contar anedotas inte-
ligentes e transmitir aos outros suas observações do lado cômico
da vida.
Com seu humor desconcertante, Florestan costumava dizer que
tudo que conseguiu na vida intelectual devia à sua bunda. Ela que lhe
possibilitou, em média, dez a quinze horas de leitura por dia sentado
numa cadeira, dizia.

Militância política
Outro aspecto da trajetória de Florestan que gerou especulações
foi sua militância política vinculada a organizações de esquerda. Ao
contrário do que se imagina, o ativismo político dele não começou na

5
Antonio Candido, entrevista à TV Câmara, 2003.
40 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

universidade. Ele não gostava da atuação do grêmio da Faculdade de


Filosofia, havia uma relação umbilical com o Estado que rendia aos
“líderes” vantagens e certos privilégios. Isso o desanimou a se engajar
ostensivamente no movimento político universitário com vinculação
direta, não combinava com suas posições políticas e com a militância
que iniciara numa organização clandestina fora da faculdade. Mesmo
assim, participou de algumas atividades, viajou ao Paraguai como
membro de uma missão cultural, onde fez uma palestra sobre “As-
pectos étnicos da formação brasileira”, e noutra ocasião foi premiado
num concurso com um trabalho sobre folclore.
Florestan viveu durante certo tempo o dilema de combinar o
exercício da atividade acadêmica e a militância política. Isso chegou
a ser debatido na Congregação. Essa divisão entre o militante polí-
tico e o professor universitário, se o professor tinha ou não o direito
de expor aos alunos suas convicções políticas em sala de aula, se era
compatível o magistério e o empenho político ficou em aberto, cada
um adotou a postura que considerava conveniente.
Após profunda reflexão, ele compreendeu a importância estraté-
gica da construção do núcleo de estudos das ciências sociais e havia
percebido a necessidade imperiosa de formar uma geração de acadê-
micos cientistas. Esta conclusão o deixou mais livre para se dedicar
à universidade sem misturar com a militância político-partidária, até
porque não havia tempo suficiente para tantas atividades.
Entre os anos 1942 e 1943, ainda estudante de Sociologia, Flores-
tan entrou em contato com o jornal Folha da Manhã, por intermédio
de um amigo chamado Jussiê da Cunha Batista. Lá conheceu o jor-
nalista Hermínio Sacchetta, um ativo militante da IV Internacional
oriundo do Partido Comunista Brasileiro. Sacchetta fora secretário
do PCB em São Paulo e havia rompido com o comitê central do
partido por discordar de suas posições em relação às eleições de 1938,
frustradas pelo golpe do Estado Novo, aderindo ao trotskismo após
um período na prisão.
LAUREZ CERQUEIRA 41

Antes, Florestan havia se aproximado do Partido Comunista,


mas percebeu que o espaço político era restritivo para um intelectual
questionador como ele. Também não concordava com as alianças e
com a posição adotada naquela conjuntura política do país, que deses-
timulavam um jovem radical como ele a permanecer na organização.
Por outro lado, os trotskistas possibilitavam debates mais apropriados
para aquele momento. Eram mais atraentes e não tinham alianças
com nenhum setor comprometido com as forças de sustentação da
ditadura Vargas.
Florestan desfrutou de uma preciosa amizade com Hermínio
Sacchetta. Referia-se a ele não só como companheiro de militância,
mas como uma pessoa que teve uma influência decisiva no curso
de sua vida. Era um amigo que transcendia os limites da política.
Possibilitava compartilhar as dores e os prazeres da vida, o convívio
familiar, uma produção intelectual intensa e o ativismo político, leito
de sua rebeldia.
Foi Hermínio Sacchetta quem publicou seu primeiro artigo no
jornal Folha da Manhã, em 1º de julho de 1943, sob o título “Livros
que valem”. A partir desse momento, Florestan agregou à sua carreira
acadêmica a função de intelectual publicista, com presença marcante
no debate das questões políticas, sociais e culturais. Por isso e por
tudo que os unia, ele foi eternamente grato a Sacchetta.
Convidado a integrar a corrente trotskista e se engajar no movi-
mento subterrâneo contra o Estado Novo, Florestan passou a militar
no Partido Socialista Revolucionário (PSR). A certa altura, algumas
atividades precisaram ser realizadas em locais que oferecessem mais
segurança para os militantes. Florestan cedeu sua própria residência
para reuniões e debates dos documentos da organização enviados
pela sede, na França. Além disso, eram produzidos textos para dis-
cussão, rodados em abundância num mimeógrafo instalado num dos
compartimentos da casa. Naquela época, um mimeógrafo era um
equipamento perigoso para a ditadura.
42 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Desse momento de intensa militância surgiu um documento


intitulado “Anteprojeto Técnico Eleitoral”, da Coligação Demo-
crática Radical (CDR), organização de frente ampla, originária
do PSR, da qual Florestan fazia parte. Esse documento, divulgado
em 1945, cuja elaboração teve sua decisiva participação, criticava
de forma contundente o Estado Novo e apresentava reivindicações
do movimento para as eleições presidenciais e parlamentares à
Constituinte de 1946.
Eis um trecho do documento:
No plano político: eleições diretas em todos os níveis com voto secreto;
liberdade de agremiação, reunião e imprensa livre; liberdade sindical
e direito de greve; igualdade de direitos políticos para ambos os sexos;
liberdade de consciência e de culto; separação do Estado da Igreja;
ensino leigo; liberdade de cátedra e de pesquisa; sistema unicameral
de representantes do povo; transferência do comando supremo das
forças armadas do Poder Executivo para o Poder Legislativo; abolição
dos tratados secretos. No plano econômico: estatização dos bancos e
companhias concessionárias de serviços públicos; abolição dos trustes,
monopólios e cartéis de qualquer espécie; proteção ao pequeno e médio
produtor; partilha da terra nas regiões mais atrasadas com fornecimento
pelo governo, aos produtores, dos instrumentos de trabalho; abolição
dos impostos indiretos e revisão democrática do imposto sobre a renda.
No plano social: aperfeiçoamento da legislação trabalhista, com a re-
vogação da parte de direito corporativo e permissão para os sindicatos
livres exercerem a fiscalização; extensão da legislação do trabalho ao
campo; seguro contra o desemprego; instituto da universalização da
previdência social; ensino primário obrigatório e gratuito até 14 anos.
Escolas no número necessário para absorver, em todo território da
República, os menores proibidos, por lei, de trabalhar; vinte e cinco
por cento, no mínimo, de todas as rendas públicas para o ensino; re-
muneração condigna para os professores, com adicio­nais nos rincões
longínquos; Plano Nacional de Educação e Conselhos Estaduais de
Mestres; ensino gratuito, nos níveis mais altos, para os filhos de pais
que não paguem impostos sobre a renda; bolsas de estudo para estu-
dantes carentes; admissão dos autodidatas à Universidade; instituição
LAUREZ CERQUEIRA 43

do divórcio; instituição do combate às grandes endemias; garantia da


alimentação às populações em dificuldade de prover o seu sustento.6

Esse documento recebeu apoio de notáveis intelectuais, políticos


e sindicalistas de esquerda da época. Mas a organização teve vida
efêmera, não conseguiu atrair as forças necessárias para se viabilizar
como alternativa ao Partido Comunista.
Nesse período, Florestan tentava conciliar a militância política
com a tarefa de escrever sua tese de mestrado, que viria a ser o grande
clássico, A organização social dos Tupinambá. Seu talento de escritor
e formulador não mais se restringia às atividades intramuros da uni-
versidade, se expandia e ganhava outros terrenos.
Em 1944, Hermínio Sacchetta fundou e assumiu a direção da
Editora Flama, que se dedicava a publicar obras clássicas do marxis-
mo, do próprio Marx, Engels, Kautski, Rosa Luxemburgo e outros,
e Florestan foi convidado a traduzir o livro Contribuição à crítica
da economia política, de Karl Marx. Além da tradução, ele escreveu
uma introdução bastante comentada e prestigiada pelos intelectuais
da época. Nesse trabalho ele se comprometeu muito mais como
sociólogo que como ativista político. Foi essa realização que marcou
sua trajetória de sociólogo, quando encontrou em Marx a riqueza e a
modernidade de um pensador contemporâneo que o fascinou. Depois
foi a vez da organização dos seminários sobre Economia e Sociedade,
de Max Weber. Florestan analisou esta obra profundamente e teve
uma participação decisiva nos debates com exposições que revelaram
o cientista social maduro que era àquela altura, comprometido com
as grandes causas dos oprimidos. Esse seminário teve importante
repercussão no meio acadêmico e no movimento político da época.
Portanto, a experiência política orgânica de Florestan se deu com
maior intensidade no início e no final da sua carreira. No meio dela

6
Coligação Democrática Radical – “Anteprojeto de Programa Técnico-Eleitoral”,
São Paulo, 1945.
44 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

predominou a dedicação intensa às atividades acadêmicas. Porém,


ele não era um exilado da política; da sua trincheira solitária man-
tinha o olhar atento sobre os fatos, acompanhava os movimentos e
participava quando possível.
Foi assim quando se engajou ativamente na campanha nacional
pela escola pública, que tinha à frente o professor Fernando Aze-
vedo e o educador Anísio Teixeira. Ele integrou o movimento com
entusiasmo, dando palestras de corte socialista em defesa da escola
pública, numa campanha que percorreu os quatro cantos do país.
A capacidade de localizar os problemas, tanto na ciência como
na sociedade, característica marcante de sua personalidade, o moveu
no sentido de manter um trabalho acadêmico cria­tivo e autônomo,
indispensável para dar respostas às perguntas colocadas pela socie-
dade. Esse atributo e a coerência com suas teses defendidas foram
fundamentais para a produção de uma obra original e necessária.

O método de interpretação funcionalista na Sociologia


Antonio Candido diz que houve um primeiro e um segundo Flo-
restan, em momentos contraditórios. “O primeiro é aquele dos estudos
sobre o folclore, que desenvolveu suas pesquisas até os trabalhos sobre
os Tupinambá.” Nessa fase ele publicou “Folclore e grupos infantis”
(Sociologia, vol IV, n. 4, 1942); “Educação e cultura infantil” (Idem,
vol. V, n. 2, 1943); “Congadas e batuques em Sorocaba” (ibidem, n. 3);
“Aspectos mágicos do folclore paulistano” (ibidem, vol VI, ns. 2-3, 1944);
“Tiago Marques Aipobureu: um bororo marginal” (Revista do Arquivo
Municipal, Vol. CVII, São Paulo, 1946); “As ‘trocinhas’ do Bom Retiro”
(ibidem, vol. CXII, 1947).
Nessa época, ele ainda trabalhava como propagandista de labo-
ratório e militava no movimento trotskista. Posteriormente, passou
a se dedicar à elaboração de sua tese de mestrado. As atividades aca-
dêmicas exigiam cada vez mais seu envolvimento e a militância foi
sendo deixada de lado, por absoluta falta de condições de atender a
LAUREZ CERQUEIRA 45

tantas tarefas. Na célula da organização os companheiros percebiam e


faziam comentários sobre a irregularidade da frequência de Florestan
nas reuniões. Um dia, Hermínio Sacchetta o convidou para uma con-
versa e o convenceu de que ele seria mais útil ao movimento socialista
produzindo como acadêmico na universidade. Disse também que via
com bons olhos essa opção de servir à causa por outros meios. De
certa forma, isso o tranquilizou e o ajudou a resolver o dilema que
vivia em relação à militância e à universidade.
Florestan se desligou do movimento trotskista em meados de 1947
e terminou de escrever A organização social dos Tupinambá, que lhe
garantiu o título de mestre em Antropologia pela Escola Livre de So-
ciologia e Política de São Paulo; em 1951 conquistou o título de doutor
em Sociologia com A função social da guerra na sociedade Tupinambá;
em 1953, tornou-se livre-docente da cadeira de Sociologia I da FFCL/
USP, com a tese que resultou no livro O método de interpretação fun-
cionalista na Sociologia. O antropólogo pernambucano Gilberto Freyre
foi convidado para fazer parte da banca examinadora, juntamente com
Fernando Azevedo, Roger Bastide, Herbert Baldus, Mário Wagner
Vieira da Cunha e Octávio da Costa Eduardo. Porém, Gilberto Freyre
não compareceu e se justificou em uma carta ao professor Eurípedes
Simões de Paula, Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Àquela altura, Florestan já havia abandonado o emprego no laboratório,
para dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa.
A publicação de A organização social dos Tupinambá em 1949,
aos 27 anos de idade, teve grande repercussão, não só no meio in-
telectual paulistano, mas internacionalmente. Claude Lévi-Strauss,
antropólogo francês, que foi professor de Sociologia em São Paulo,
ao tomar conhecimento do livro disse que Florestan havia realizado
uma verdadeira façanha. Foi categórico: disse tratar-se de uma obra
que havia revolucionado a Antropologia.
Florestan conseguiu realizar essa pesquisa a partir do relato dos
cronistas e viajantes reconstituindo a organização e o funcio­namento
46 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

da sociedade Tupinambá, extinta no século 17. Até então, um trabalho


dessa natureza era considerado impossível de ser feito, segundo o consenso
geral da Antropologia. Alguns antropólogos conseguiram estudar certos
aspectos dos Tupinambá, como a religião, a cultura material, mas a orga-
nização social sequer era cogitada. Com métodos científicos disponíveis e
recursos desenvolvidos por ele, resgatou a organização daquela sociedade
a partir do mesmo material utilizado pelos paleo­n­tólogos, biólogos e
antropólogos que estudavam aspectos particulares dela.
Nessa fase, Florestan escreveu “Tiago Marques Aipobureu: um
bororo marginal”,7 uma pesquisa sobre um índio bororo, do Mato
Grosso, educado por missionários salesianos, fora da tribo. Aipobureu
recebeu educação dupla e socialização contraditória. Em razão disso
tornou-se um homem culturalmente marginal, vivendo o limite de
duas culturas distintas, a branca e a indígena. Pelo lado dos brancos
foi tratado como não-branco e pelos índios como não-índio. Como
consequência, tornou-se um homem de comportamento marginal em
relação aos dois meios onde recebeu a educação conflitante. Tiago
Marques Aipobureu estudou línguas, tornou-se professor e viajou
por vários países da Europa fazendo conferências.
A trilogia formada pelos livros sobre os Tupinambá e o método
funcionalista consagrou Florestan Fernandes como cientista seguro
de suas convicções. Lutava por uma universidade aberta à experiência
nova, à imaginação criadora, à inovação, ao talento, enfim, queria
uma universidade pronta para os sonhos mais elevados. Percebia a
possibilidade dos voos e os alçava com precisão, com o domínio dos
instrumentos que havia ao seu alcance.
O segundo Florestan, na opinião do professor Antonio Candido,
surgiu nos anos de 1950, quando o professor Roger Bastide iniciou
uma pesquisa patrocinada pela Unesco sobre a formação da sociedade

7
Fernandes, F. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1960.
LAUREZ CERQUEIRA 47

escravocrata brasileira, tendo como foco o preconceito racial contra


os negros em São Paulo.
Quando foi convidado por Bastide para realizar a pesquisa,
Florestan não aceitou, alegou que estava preocupado com outros
projetos e que naquele momento não estava interessado nos estudos
sobre a questão racial. Bastide colocou a participação de Florestan
como condição imprescindível para realizar o trabalho. Argumentou
que o considerava o mais preparado, porque detinha uma experiência
de pesquisa de campo muito própria e indispensável para conduzir o
tipo de investigação que a Unesco pretendia.
Depois de relutar, Florestan finalmente concordou com a proposta
e a partir daí montou, com Bastide, uma estrutura de pesquisa e aná-
lise sociológica até então sem paralelo na universidade. Os recursos
disponibilizados pela Unesco eram irrisórios para um trabalho de
tamanha envergadura.
Apesar disso, em vez de apenas estudar os negros como objeto,
como se fazia até então, Florestan e Bastide resolveram mobilizar a
comunidade negra para participar da pesquisa como sujeito, junto
com os pesquisadores. Levaram um contingente considerável da co-
munidade para dentro da Faculdade. Isso causou um forte impacto
na universidade. Houve reações de professores que não aceitaram
aquela inovação e criticaram os métodos adotados para a pesquisa.
Não é caso de repetir aqui o que foi o desenrolar da pesquisa. Graças ao
prestígio de Bastide na comunidade negra, contamos com uma maciça
colaboração de negros e mulatos de várias categorias sociais e das diferentes
gerações em contato. A primeira reunião foi celebrada na Biblioteca Pública
Municipal, com uma massa notável de ouvintes e participantes. As demais
foram realizadas no auditório da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP. Tínhamos a intenção de coligir documentos pessoais, elaborados
pelos próprios sujeitos. O nível médio de escolaridade e de maturidade
intelectual mostrou que só alguns sujeitos estavam em condições de nos
proporcionar os materiais desejados. Isso nos obrigou a uma tática rica
de investigação. Substituímos o documento pessoal (mantido para um
48 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

número pequeno de sujeitos) pela observação participante em substituição


grupal (o que aumentou o interesse daquelas reuniões e dos materiais­es-
tenográficos resultantes). E logo empreendemos reuniões paralelas com as
mulheres (que se revelaram mais maduras que os homens na percepção da
realidade ambiente) e com os intelectuais negros (que se tornaram também
pesquisadores, elaborando estudos de casos especiais). Assim, tínhamos
a grande reunião formal, de mês em mês; o seminário com as mulheres
(de quinze em quinze dias) e o seminário com os intelectuais (todos os
sábados, em uma associação cultural negra localizada na Rua Formosa).
A bateria de materiais­era complementada pelo recurso ao questionário,
aplicado por estudantes; por entrevistas formais e informais (eventual-
mente, com sujeitos recrutados naquelas três situações); e pela observação
direta de situações concretas e estudos de caso (sobre personalidades negras
e mulatas; cortiços, bairros etc). Os brancos e as barreiras raciais­foram
focalizadas por recursos proporcionados por essas técnicas de investigação
e pela colaboração de estudantes mais avançados na elaboração de estudos
de caso (famílias tradicionais, empresas de grande e médio porte, serviços
de seleção de pessoal etc.). A reconstrução histórica ficou a meu cargo,
com a colaboração de Renato Jardim Moreira; uma importante sonda-
gem quantitativa sobre incongruências de atitudes e valores na esfera das
relações raciais foi conduzida por Roger Bastide, com a colaboração de
Lucila Herrmann. Os materiais referentes à Lei Afonso Arinos, por sua
vez, além de uma coleta paralela de opiniões e reações espontâneas, foram
arrolados através de uma sequência de debates.8

A integração do negro na sociedade de classes


Fervilhava na época, na universidade, a discussão da obra de Gil-
berto Freyre, autor de Casa grande & senzala. Os críticos alinhados
com o campo ao grupo ao qual pertencia Florestan, a considerava
de visão amena e conservadora. Àquela altura, Florestan já era
uma referência na universidade e gozava de considerável prestígio

8
Revista USP – “Dossiê Florestan – A questão racial brasileira na obra de Flo-
restan Fernandes”. Pereira, João Batista B. Pereira - São Paulo, mar-mai de
1996 – citando Olga R. de M. Von Sinson (org.), op. cit., p. 16-17.
LAUREZ CERQUEIRA 49

intelectual, em razão da repercussão de sua obra e de sua atuação


no meio acadêmico.
A forma como estava sendo conduzida a pesquisa e os obje­
tivos da investigação – percebidos como uma novidade no meio
acadêmico – e as expectativas sobre os resultados mobilizaram as
atenções na universidade e estabeleceu um clima de grande agitação
intelectual. Personalidades da comunidade acadêmica reagiram a
essa pioneira modalidade de levantamento das informações, que
consistia na ida dos informantes negros aos locais onde eram rea­
lizados encontros de interação com os pesquisadores, para expor
as suas experiências e conhecer o projeto, os estudiosos e a própria
universidade. Ali estava sendo rompida uma redoma em que vivia
a academia e abaladas as estruturas do poder burocrático, que se
fazia sentir nos hábitos arraigados e na rotina dos pesquisadores.
As reações à pesquisa: de imediato, fomos considerados ‘tendenciosos’ e
responsáveis pela ‘deformação da verdade’ em vários níveis da Sociedade
circundante. Houve, mesmo, uma ocorrência típica. O diretor de uma
escola de sociologia que afirmou publicamente que Bastide e eu estáva-
mos introduzindo ‘o problema’ no Brasil! A comunidade negra, por sua
vez, exagerou a importância de nossa contribuição. Estava maravilhada
com o fato de termos rompido aquele isolamento psicossocial e históri-
co, feito dele uma arma da razão e da crítica. Principalmente, ficaram
encantados com o fato de suas ‘lutas’ terem encontrado resposta e con-
firmação. Parecia-lhes que a Sociologia lhes abria uma ‘ponta de justiça’,
acenando como a perspectiva de que aquilo que não se convertera em
história poderia vir a sê-lo no futuro próximo. Fomos cuidadosos. Não
tentamos indicar a falta de correlação entre a reação coletiva do negro
e a gravidade do dilema racial na sociedade brasileira. De que adianta
esse exercício literário? Bastara-nos indicar que a integração nas classes
começava outra história, porque conferia ao negro a possibilidade de
acesso a uma forma mais eficiente de conflito aberto e de luta contra
uma ordem racial iníqua.9

9
Id., ibid., p.18.
50 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Dessa pesquisa brotaram outros frutos, dando início a uma


prodigiosa fase de investigação e reflexão sobre problemas de alta
relevância. Novas frentes de estudos foram abertas e o sociólogo
Florestan Fernandes se apresentou ainda mais intenso no domínio
do que ele chamava de “sociologia crítica”.
Com Roger Bastide ele escreveu “Brancos e Negros em São
Paulo”, publicado, previamente, na Revista Anhembi, em 1953. Em
1964, logo após o golpe militar, ele publicou A integração do negro na
sociedade de classes, apresentado como tese no concurso de cátedra,
um clássico reconhecido no Brasil e internacionalmente como uma
das mais importantes obras da sociologia moderna. Traduzido para
o inglês, foi premiado nos EUA como melhor livro do ano sobre o
racismo. Tornou-se referência em diversas universidades e também
para lideranças do movimento negro estadunidense, que naquele
momento travava a histórica­luta pelos direitos civis.
Surgido dessa fase de intenso labor intelectual de Florestan e do
debate que ocorreu na época, principalmente sobre a obra de Gil-
berto Freyre e outros autores da mesma linhagem teórica, este livro
colocou em evidência a violência, o preconceito e a segregação contra
os negros como elementos fundamentais na formação da sociedade
brasileira. Florestan subverteu a visão contemplativa sobre a escravi-
dão que havia a partir da “casa grande” em relação à “senzala”, uma
visão que colocava em relevo a miscigenação como fator indutor da
“democracia racial”. Ele contestou essa tese, colocou a questão racial
na perspectiva do oprimido, a partir da “senzala” em relação à “casa
grande” sem, contudo, mistificar a senzala. Junto com as comunida-
des negras segregadas, desenvolveu uma interpretação da realidade
social do negro tomando como base a necessidade de uma segunda
abolição. Pela primeira vez foi abordada, de forma sistematizada,
sua tese sobre a revolução burguesa, inconclusa no Brasil, e o modo
dramático e subalterno pelo qual os negros são integrados ao novo
regime, após a abolição da escravatura.
LAUREZ CERQUEIRA 51

Esse trabalho revolucionou a Sociologia e passou a ser considerado


um marco nos estudos sobre os afrodescendentes no Brasil. A partir
dele, a visão predominante até a década de 1950 foi superada, rompeu
os limites da universidade e abriu outras vertentes para a abordagem
das questões relativas à escravidão.
Os negros são os testemunhos vivos da persistência de um colonialismo
destrutivo, disfarçado com habilidade e soterrado por uma opressão
inacreditável. O mesmo ocorre com o indígena, com os párias da terra e
com os trabalhadores semilivres superexplorados das cidades. Por que o
negro? Porque ele sofreu todas as humilhações e frustrações da escravidão,
de uma Abolição feita como uma revolução do branco para o branco e dos
ressentimentos que teve de acumular, vegetando nas cidades e tentando
ser gente, isto é, cidadão comum. O negro surgia como um símbolo,
uma esperança e o teste do que deveria ser a democracia como fusão de
igualdade com liberdade.10
(...) A realidade histórica de hoje não é a mesma. Não obstante, desvincu-
lada da estrutura de classes da sociedade atual, da margina­lização secular
que tem vitimado o negro nas várias etapas da revolução burguesa e da
exploração capitalista direta ou da espoliação inerente à exclusão, os
estoques raciais perdem o seu terrível potencial revolucionário e dilui-se
o significado político que o negro representa como limite histórico da
descolonização (negativamente) e da revolução democrática (positiva-
mente). Portanto, para ser ativada pelo negro e pelo mulato, a negação do
mito da democracia racial no plano prático exige uma estratégia de luta
política corajosa, pela qual a fusão de ‘raça’ e ‘classe’ regule a eclosão do
Povo na história.11

A partir dos trabalhos sobre o negro, Florestan deixou de ser neu-


tro em relação à sociedade de classes e passou a pesquisar os problemas
que afetavam particularmente “os debaixo” – como ele costumava
denominar a população da base da pirâmide social – isto é, do ponto

10
Bastide, Roger e Fernandes, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em
São Paulo. 3ª ed., São Paulo: Editora Nacional, 1959.
11
Idem.
52 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

de vista dos oprimidos. Como homem de esquerda, socialista, ajudou


a colocar em relevo a questão do negro como fundamental para a luta
da esquerda no Brasil e se tornou uma referência para o movimento.
Florestan transformou o estudo sobre o negro numa militância a favor
do negro. Ele emergiu da pesquisa da Unesco como marxista aberto,
incorporou o marxismo ao seu trabalho e aos seus ensinamentos. A
sociologia moderna conquistou, através dele, mais um instrumental
teórico fundamental para a interpretação do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, aprimorou-se para a reflexão sobre a sociedade
e ganhou uma contribuição preciosa para a construção do que ele
chamava de “sociologia crítica e militante”.
Essas ideias foram incorporadas definitivamente à produção
acadêmica de Florestan e novos veios de investigação cien­t ífica
foram abertos, tendo como uma das mais importantes referências
o descompasso entre o tempo econômico e o tempo político, que o
inquietou a ponto de produzir outros trabalhos. Desta lavra surgiram:
Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Zahar Editores, 1968), e A
revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica (Zahar
Editores, 1975), desdobrados em tantos outros, também considerados
clássicos indispensáveis à compreensão do Brasil e das relações na
sociedade de classes.
Observando essa evolução iniciada a partir da pesquisa sobre
folclore, passando pelas teses sobre os Tupinambá, A integração do
negro na sociedade de classes, Sociedade de classes e subdesenvolvimento,
A revolução burguesa no Brasil e outros que se sucederam, nota-se que
a obra de Florestan é lastreada, do primeiro ao último trabalho. O
sociólogo e o socialista aparecem fundidos em todo o conjunto de sua
obra, forjada no compromisso radical com as lutas pela transformação
da sociedade brasileira numa sociedade democrática e justa.
A coerência de Florestan em relação à independência e à autono-
mia da pesquisa foi mantida ao longo de toda sua trajetória acadêmica.
Em 1953, logo após assumir a cátedra do professor Roger Bastide,
LAUREZ CERQUEIRA 53

Florestan reuniu seus assistentes diretos, Fernando Henrique Cardo-


so, Renato Jardim Moreira, Octavio Ianni e Maria Sílvia Carvalho
Franco e juntos elaboraram um plano de ensino e pesquisa, fundando
o Centro de Sociologia Industrial. Alguns colegas não acreditavam
no projeto, achavam difícil de ser concretizado devido às condições
materiais e financeiras. Este centro, aberto para colaboração de pro-
fessores e pesquisadores, contou com um modesto financiamento da
Unesco para uma pesquisa sobre as relações sociais em São Paulo.
Desse trabalho, que mobilizou a comunidade negra e contou com a
colaboração de várias lideranças, resultaram as teses de doutoramento
de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.
O sonho de Florestan era fazer com que aquele centro de estudos
e pesquisas se tornasse uma referência de teses que contribuíssem
para a compreensão da sociedade brasileira. Ele queria expandir essa
experiência para toda a América Latina e mostrar que era possível
fazer pesquisas com independência num país pobre, com limitações
de recursos financeiros e materiais. Florestan recusou recursos dis-
ponibilizados por agências estrangeiras, como da Fundação Ford e
Rockefeller. Ele queria evitar a dependência financeira, política e
cultural e não aceitava a posição subalterna e colonizada frente aos
países ricos. Sua preocupação era criar condições para um desenvol-
vimento autônomo da produção do conhecimento e não deixar que
os pesquisadores saíssem do Brasil antes de terminar o doutorado.
Assim teriam um horizonte intelectual mais seletivo e não cairiam
na tentação de reproduzir o conhecimento produzido lá fora. Nesse
sentido, Florestan costumava lembrar o que aconteceu com Fernando
Henrique Cardoso e Octavio Ianni, que, ao irem para o exterior, já
tinham uma posição respeitável no meio intelectual brasileiro.
Depois que Florestan assumiu profissionalmente a carreira aca-
dêmica, o que se verifica é que sua produção científica não traz a
chancela de financiamentos de instituições que não a universidade.
Era um pesquisador autônomo que desenvolvia seus trabalhos com
54 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

os recursos humanos, materiais e financeiros (quase sempre irrisórios)


apenas da universidade.
Nessa luta incansável pela produção científica autônoma e
independente, ele se deparou com situações desalentadoras, mas
não se desanimava com qualquer obstáculo, pois sua tenacidade só
admitia recuos em casos realmente impossíveis de serem solucio-
nados. Dizia ele que muitas vezes ficava triste quando percebia que
na cultura de um país subdesenvolvido, com instituições científicas
frágeis, havia grande dificuldade em se reter os avanços realizados.
“A falta de recursos acaba impedindo um crescimento cumulativo.
A universidade, no Brasil, cresce como instituição de ensino e não
de pesquisa, o que faz com que os recursos não sejam distribuídos
de forma equitativa”.

A Escola Paulista de Sociologia


Essa determinação de Florestan em buscar a afirmação da so-
ciologia crítica e formar pesquisadores autônomos teve origem no
núcleo de sociologia da Faculdade de Filosofia e foi determinante
na consolidação do desenvolvimento de uma sociologia construída
a partir da situação de um país periférico no desenvolvimento capi-
talista. O núcleo de sociologia se empenhava em entender o Brasil,
retrospectivamente, através das raízes dos problemas subjacentes de
uma sociedade marcada por ritmos desiguais de desenvolvimento e
por grupos sociais diversificados no tempo histórico.
Seus alunos e colaboradores, Fernando Henrique Cardoso,
Octavio Ianni, Marialice Mencarini Foracci, Maria Sílvia Car-
valho Franco, Luiz Pereira, Paul Singer, Juarez Brandão Lopes,
Leôncio Martins Rodrigues Neto, Roberto Cardoso de Oliveira,
José Carlos Pereira, José de Souza Martins, José César Aprilanti
Gnaccarini, Gabriel Cohn e outros da mesma linhagem trilharam
o mesmo caminho, desenvolveram pesquisas sobre a questão racial
e outras áreas afins. Publicaram trabalhos na mesma linha de
LAUREZ CERQUEIRA 55

interpretação, com produção autônoma e ajudaram a consolidar


a sociologia moderna.
Míriam Limoeiro, socióloga e professora da USP, estudiosa da
obra de Florestan, observa que apesar da firmeza na construção da
sociologia crítica, ele não era considerado um dogmático como soció­
logo. Ela não concorda também com o que costuma afirmar alguns
acadêmicos e intelectuais, de que havia uma decisão de Florestan no
sentido de se criar uma “escola paulista de sociologia”.
No trabalho desenvolvido em toda sua trajetória na Universidade ficou
evidente que o empenho dele era no sentido de formar pesquisadores e
pensadores livres. Ele não queria que seus alunos se tornassem discípulos,
seguidores ou algo do gênero. Tanto assim que os seus colaboradores di-
retos da fase mais produtiva na Faculdade de Filosofia construíram seus
próprios caminhos.
O que o mobilizou para formar o grupo e desenvolver o trabalho foi
o fato de haver aqui uma sociedade sem uma explicação razoável e
defensável cientificamente. Como não havia esses recursos disponíveis,
ele e seus auxiliares se viram diante de um problema, cuja responsabi-
lidade era deles enquanto cientistas sociais e, institucionalmente, da
universidade. Florestan assumiu essa tarefa, teve o cuidado de dar aos
seus auxiliares uma boa formação teórica, domínio técnico e controle
lógico indispensáveis à produção científica necessárias aos estudos da
sociedade e os incentivou a fazer o mesmo, formar suas equipes de
trabalho para estudar essa realidade social por intermédio de uma
sociologia científica.

Míriam Limoeiro:
O conhecimento científico transcende as fronteiras, os continentes.
Mesmo antes dos meios de comunicação eletrônicos, havia os livros e as
ideias circulam neles, nos congressos, nos seminários. Na medida em que
há publicações, não importa a origem de quem pensou e divulgou, se um
brasileiro, um inglês, um francês ou um alemão. Portanto, essa ideia de
uma ‘escola paulista de sociologia’ não combina com a forma nem com a
prática implementada na produção cientifica do grupo da Faculdade de
Filosofia (...).
56 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

(...) Uma produção científica de grande porte nunca é individual, é sempre


de equipes, e Florestan tinha isso como praxe. No grupo havia troca
constante de experiências e discussão exaustiva das questões em estudo.
Cada um fazia sua parte, mas o conjunto da obra era de todos. Ele fez
isso ao longo de toda a sua trajetória na universidade e foi totalmente
destruído. A sociologia que passou a ser feita depois dele é outra coisa.
Há muita distância entre o que aquele grupo, coor­denado por Florestan,
fazia, e o que é feito hoje.

Ela chama atenção ainda para outro aspecto da produção de


Florestan, que faz questão de lembrar em suas palestras e nos seus
estudos.
Toda sua obra é um conjunto de significado teórico muito maior do
que se admite. Quando se fala do Florestan se pinça os trabalhos sobre
folclore, sobre os negros, os métodos que ele utilizou para os estudos
sobre os Tupinambá, isto é, coisas isoladas como se fossem contribuições
estanques. Florestan construiu uma sociologia de peso com determinadas
formulações que não são encontradas em outros autores.12

Sociedade de classes e subdesenvolvimento


De fato, as formulações de Florestan têm sua base numa profun-
da investigação para se responder às perguntas sobre qual sociedade
vivemos, onde ela está ancorada, quais os vínculos que ela tem. As
respostas a essas perguntas foram tomadas por ele como problemas
a serem estudados, debatidos e daí formuladas teses que ainda não
estavam postas antes dele.
Lembra a professora Míriam Limoeiro que por meio desses
estudos ele chegou a conclusões que demarcaram definitivamente
o momento do surgimento da sociologia moderna brasileira. Dessa
fase, ela destaca o conjunto da obra dele que trata do “capitalismo

12
Míriam Limoeiro (entrevista para este livro, nov/2003).
LAUREZ CERQUEIRA 57

dependente”, com muitas respostas à questões colocadas para a


sociedade brasileira até então adormecidas.
Diz ela:
Ele esclareceu o fato de a história do Brasil se inserir, de alguma forma,
no movimento de construção internacional do capitalismo, e que o país
não está isolado. Somos parte dessa grande expansão. Primeiro como
colônia, depois como Estado e nação independente.13

Em Sociedade de classes e subdesenvolvimento Florestan publicou,


como introdução, um texto de atualidade indubitável. Este traba-
lho sintetiza a problemática do “capitalismo dependente”, como
fenômeno sociológico e o seu desenvolvimento. Dá as premissas
fundamentais, não só para a compreensão da formação original
da sociedade brasileira, mas também no que ela se tornou depois.
Nele, Florestan desorganizou toda uma visão elitista e senhorial da
sociedade e mostrou que a sociedade brasileira não era formada só de
classes, mas de estamentos, classes e castas. Mostrou também que o
subdesenvolvimento, nas sociedades capitalistas dependentes, não é
apenas fruto de uma contingência ou uma condição transitória. As
universidades, por exemplo, dizia Florestan, foram montadas pelas
oligarquias para as oligarquias e elas, na sua grande maioria, ainda
reproduzem “o modelo autocrático-burguês”.
Nesse trabalho, os aspectos econômico, social, cultural e político
foram alinhavados numa configuração singular. Nele são expostas
as contradições que levaram o Brasil ao desenvolvimento proble-
mático. A integração do negro na sociedade de classes e Sociedade de
classes e subdesenvolvimento são obras reconhecidas como um dos
mais importantes conjuntos de análises contemporâneas para se
interpretar a sociedade brasileira. A Introdução de Sociedade de
classes e subdesenvolvimento sintetiza essa problemática e constitui

13
Ibidem.
58 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

uma peça sociológica indispensável. O texto transcrito a seguir, uti-


lizado como Introdução ao Capítulo I, é parte de uma conferência
feita na então Alemanha Ocidental, em novembro de 1967. Assim
escreve o professor Florestan:
O capitalismo não é apenas uma realidade econômica. Ele é também, e
acima de tudo, uma complexa realidade sociocultural, em cuja formação
e evolução histórica concorreu vários fatores extra-econômicos (do direito
e do Estado nacional à filosofia, à religião, à ciência e à tecnologia). Na
presente discussão, esse ponto de vista é aplicado à análise das influên-
cias estruturais e dinâmicas da ordem social global sobre a absorção e a
expansão do capitalismo no Brasil, uma sociedade nacional do ‘mundo
subdesenvolvido’.
Antes de examinar os aspectos que foram selecionados para exposição,
convém estabelecer claramente algumas ponderações preliminares, mas
essenciais. Primeiro, é preciso notar que a sociedade nacional, que constitui
o principal foco de referência deste trabalho (e em todo caso a única que ser-
viu como unidade de fundamentação empírica das conclusões formuladas),
originou-se para a história moderna como parte da expansão do mundo oci-
dental e do papel que nela tomaram os portugueses. Essa ponderação possui
duas implicações decisivas. De um lado, ela significa que a ‘colonização’ do
Brasil coincidiu com as etapas finais da crise do mundo medieval na Europa
e com a elaboração concomitante das formas sociais que floresceram sobre
seus escombros. De outro, que o empreendimento colonial português não
acarretava, nem podia acarretar, a transplantação destas formas sociais em
elaboração, com suas tendências históricas características. Ao contrário, a
própria ‘colonização’ pressupunha, em terras brasileiras como em outras
plagas, a revitalização do regime estamental, graças à simbiose entre grande
plantação, trabalho escravo e expropriação colonial.
Segundo, a formação de um Estado nacional independente desenrolou-
-se sem que se processassem alterações anteriores ou concomitantes na
organização da economia e da sociedade. Portanto, ela se deu sem que o
regime de castas e estamentos sofresse qualquer crise, pois ele constituiu
a base econômica e social da transformação dos ‘senhores rurais’ numa
aristocracia agrária. Sob esse aspecto, a inclusão da economia brasileira
no mercado mundial representou um simples episódio do ciclo de mo-
dificações dos laços coloniais, no quadro histórico criado pela elevação
LAUREZ CERQUEIRA 59

da Inglaterra à condição de grande potência colonial. Os laços coloniais


apenas mudaram de caráter e sofreram uma transferência: deixaram de
ser jurídico-políticos, para se secularizarem e se tornarem puramente eco-
nômicos; passaram da antiga Metrópole lusitana para o principal centro
de poder do imperialismo econômico nascente. No entanto, esse processo
histórico-social, que vinculou o destino da Nação emergente ao neocolo-
nialismo, provocou conse­quências de enorme monta para a estruturação
e a evolução do capitalismo dentro do País. Em um nível, como revolução
política ele culminou na eliminação das formas preexistentes de expropria-
ção colonial, de fundamento ‘legal’; na reorganização do fluxo interno do
excedente econômico, o qual deixou de ser estritamente regulado a partir
de fora; e na transferência do poder político institucionalizado para as elites
nativas (ou seja, as elites dos estamentos senhoriais). No nível econômi-
co, ele não teve o mesmo sentido revolucionário. As estruturas sociais e
econômicas do mundo colonial ficaram intactas, como condição mesma,
seja para o controle do poder pelas elites senhoriais nativas, seja por causa
das necessidades do mercado mundial, em relação ao qual a economia
tropical preenchia uma função especia­lizada, de natureza heteronômica.
Todavia, a alteração dos laços de dependência colonial e a substituição
do pólo hegemônico dos mesmos produziam efeitos imediatos e remotos
de profundo alcance. Desde que desaparecia a forma legal de expropria-
ção colonial, os negócios de exportação e de importação tinham de ser
organizados segundo critérios econômicos vigentes no mercado mundial
e a partir de dentro. Esse fenômeno se precipitara anteriormente, com a
transferência da Corte portuguesa, a abertura dos portos e a subsequente
elevação do Brasil a reino (acontecimentos ocorridos entre 1808 e 1815).
Mas ele sempre seria neutralizado, enquanto impasse a ‘dominação por-
tuguesa’. Só a emancipação política e a criação de um Estado nacional
independente (datas de referência: de 7/9/1822 a 12/8/1834) fariam com
que o fenômeno adquirisse plena vitalidade. O controle colonial e pura-
mente econômico tinha de basear-se na existência, no funcionamento
regular e no crescimento progressivo de instituições econômicas novas.
Por essa razão, a Independência, malgrado seu significado ambíguo no
plano econômico, inaugura a Idade Moderna do Brasil. Sem qualquer
maturação interna prévia, as instituições econômicas inerentes ao capita-
lismo comercial são absorvidas ex abrupto, de modo desordenado, mas sob
condições de relativo otimismo e certa intensidade, constituindo-se assim
60 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

um setor econômico novo e moderno, montado e dirigido, diretamente


ou à distância, por interesses e organizações estrangeiros.
Terceiro, esse encadeamento entre os dois tipos de colonialismo explica
por que a sociedade nacional emergente não era uma Nação independente,
do ponto de vista econômico. Contudo, ele também explica algo mais
complexo e relevante. A partir da ruptura com o antigo sistema colonial,
o país poderia firmar-se e evoluir sobre os seus próprios pés. A ausência de
riquezas, que pudessem estimular outras formas de acomodação no nível
do mercado mundial e das estruturas internacionais de poder, acabou
favorecendo uma linha de desenvolvimento bem diversa da que prevaleceu
em outras regiões do globo. Por conseguinte, o poder político, organizado
em bases independentes, iria desempenhar funções socialmente constru-
tivas, tanto como mera condição e agente ordenador da formação de uma
economia integrada em escala nacional, quanto como o fulcro imediato
e o pólo dinâmico permanente da construção de uma nação moderna. A
modernização, que no contexto da emancipação política apenas disfarçava
e matizava os novos laços de dependência colonial, aos poucos iria adquirir
o significado e as proporções de um amplo processo de transplantação de
gente, de técnicas ou instituições sociais e de ideais de vida da Europa
para o meio brasileiro. Embora quatro quintos da sociedade nacional
emergente continuas­sem estrutural, emocional e moralmente presos à
ordem social legada pelo mundo colonial, esta não só entrara em crise
irreversível: a história dos homens passara a ser feita e contada em função
de sua capacidade de lidar com o capitalismo como uma realidade interna.
Esse rápido bosquejo sugere duas conclusões, sobre as quais convém insistir.
Em primeiro lugar, as nações politicamente ‘livres’ mas economicamente
‘dependentes’, que surgiram como produtos históricos da ‘expansão do
mundo ocidental moderno’, não evoluíram para o capitalismo por causa das
estruturas econômicas vinculadas à economia exportadora das plantações.
No caso brasileiro, por exemplo, essa economia só ganhou significado capi-
talista interno após a ruptura com o antigo sistema colonial e, ainda assim,
preservou (em grau variável, conforme as regiões do país que se considerem)
sua organização e funções extracapitalistas, nas quais repousava o poder
econômico, social e político dos grandes proprietários rurais, mesmo após
o desaparecimento da escravidão (que se deu em 1888), a desagregação
do regime de castas e a universalização do trabalho livre. Entretanto, é
a estrutura agrária dessas nações que fornece, ao mesmo tempo, a base
LAUREZ CERQUEIRA 61

política e os fundamentos econômicos ou sociais para a absorção inicial


do capitalismo (organizada em torno dos ‘negócios de exportação e de
importação’) e sua implantação definitiva, como uma realidade histórica
interna (graças à viabilidade daquele desenvolvimento e às suas repercus-
sões posteriores sobre a diferenciação do sistema econômico).
Em segundo lugar, cumpre observar que a modernização mencionada não
é uma simples reprodução da evolução anterior do capitalismo da Europa.
Sem dúvida, nos quadros históricos do século 19 ela equivale a europei-
zação e acarreta efeitos europeizadores. Opera-se um salto, em várias
esferas concomitantes da vida, do legado português às formas econômicas,
jurídicas e políticas da Europa moderna – do liberalismo econômico, do
parlamentarismo e da monarquia constitucional, dos mitos progressistas.
Mas trata-se, sobretudo, de uma europeização dos níveis de aspiração das
classes dominantes ou de suas elites dirigentes, nem sempre dos modos
de agir, raramente dos modos de ser e muito superficialmente do estilo
da vida acessível a todos. Em suma, o que se transfere, de imediato, não
é nem um padrão de cultura nem um padrão de integração da ordem
social. A transferência se deu no nível das normas, instituições e valores
sociais, que iriam orientar o comportamento efetivo, em seguida, através
da cooperação ou do conflito, na direção daqueles padrões. Nesse sentido,
o que prevaleceu, como força histórico-social dinâmica, foi a identificação
com a civilização ocidental, a qual explica os vários caminhos tomados
pelos diferentes círculos das camadas dominantes para ajustar interesses
socioeconômicos mais ou menos toscos e imediatistas às estruturas eco-
nômicas, sociais e jurídico-políticas requeridas pelo capitalismo.
Em semelhante contexto histórico-social, ‘modernização’ significava mais e
menos que ‘europeização’. Era mais, porque estava em jogo a implantação,
em bloco, de uma civilização demasiado complexa, diferenciada e instável
para as condições ecológicas, materiais, sociais­e morais, dadas na situação
sociocultural existente. Era menos, porque nenhum grupo social possuía
meios para saturar historicamente, imprimindo-lhe plena eficácia, as téc-
nicas, as situações e os valores importados da Europa. Um exemplo banal
é suficiente para esclarecer esse aspecto: o liberalismo, em suas conexões
ideológicas e utópicas com um disfarce para ocultar a metamorfose dos
laços de dependência colonial, para racionalizar a persistência da escra-
vidão e das formas correlatas de dominação patrimonialista, bem como
para justificar a extrema e intensa concentração de privilégios econômi-
62 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

cos, sociais e políticos na aristocracia agrária e na sociedade civil, que lhe


servia de suporte político e vicejava à sua sombra. Portanto, a mudança
de cenário e de agentes acarretava uma mudança de ritmo e de direção na
história. A civilização ocidental não se espraiou como as águas de um rio
que transborda. Ao saltar suas fronteiras, ela se corrompeu, se transformou
e por vezes se enriqueceu, convertendo-se numa variante do que deveria
ser, à luz dos modelos originais. O que interessa, à presente exposição, é
que, apoiando-se nos rebentos de uma mesma civilização transplantada
ao longo de um amplo e contínuo processo de migrações sucessivas ou
por meio da difusão cultural, os homens reconstruíram essa civilização
e, por isso, escreveram através dela uma história econômica, social e cul-
tural particularíssima, que nos dá a justa medida do que pode e do que
deve ser a dita civilização a partir de uma condição colonial permanente,
embora instável e mutável.Nessa conjuntura, a vigência dessa civilização
e sua capacidade de renovar-se, em função das alterações das exigências
internas ou externas da situação, não podem impedir a inexorável con-
tradição entre o ‘ideal’ e o ‘possível’, entre aquilo que o homem aspira,
por causa do conteúdo e a organização de seu horizonte cultural, e aquilo
que ele realiza, na prática. No plano de nossa análise, essa contradição
transparece na consciência falsa do agente econômico, que se representa
como um ‘construtor de impérios econômicos’, segundo as regras (na
realidade, solapadas ou destruídas pelo capitalismo monopolista e pelo
intervencionismo estatal) de um capitalismo avançado, auto-suficiente e
autônomo. Na verdade, não passa de um laborioso artífice (e sobre vários
aspectos de uma vítima) do antípoda desse capitalismo: o capitalismo
diferenciado, porém subdesenvolvido na esfera econômica, pelos antigos
povos coloniais que nasceram, biológica, cultural e historicamente, da
‘expansão ocidental.14

A professora Míriam Limoeiro, ao comentar a questão do “ca-


pitalismo dependente” na obra de Florestan, e do desenvolvimento
e subdesenvolvimento, numa entrevista para este livro, construiu

14
“Problemas das sociedades em desenvolvimento industrial”. Conferência no
Segundo Colóquio Científico Ultramarinho das Universidades e Escolas Su-
periores da Alemanha Ocidental.
LAUREZ CERQUEIRA 63

uma interpretação ressaltando sua atualidade e sua riqueza para se


compreender os novos acontecimentos da vida do País e suas conse-
quências para o futuro.
Comenta ela:
No desenvolvimento capitalista há a criação sobre o capitalismo monopo-
lista, no momento monopolista do desenvolvimento do capitalismo, o que
Florestan chamou de capitalismo dependente, isto é, uma forma específica
de inserção dessas regiões no movimento do capital, comandado pelo
capital, com as diferenciações internas do capital. Ou seja, uma grande
burguesia internacional e as burguesias locais, que são pedaços dela. Elas
se articulam, mas não constroem nacionalidades, trabalham dentro das
suas nacionalidades para terem controle sobre o Estado Nação. O Estado
Nação é fundamental para definir as políticas que podem fornecer ou
não esse desenvolvimento pretendido. Isso cria consequências políticas
importantes na hora de se definir como resolver os problemas da nação
seguindo a política dessa burguesia local, fração capitalista dependente
da grande burguesia internacional. A política dessa burguesia capitalista
dependente não é construtora da nacionalidade.
(...) Florestan coloca a necessidade da autonomia dos trabalhadores na
definição da situação do setor social, dos deserdados, dos ‘de baixo’, dos
oprimidos em geral, do ódio de classe, que se carrega desde a escravidão.
Essa concepção causa um impacto extraordinário e incide diretamente
na questão das alianças. Ele problematiza a fragilidade da possibilidade
de integração nacional e as necessidades dos trabalhadores. Em razão
disso, surge uma forte resistência política, facilmente compreensível,
quando ocorre no campo da elite. Mas torna-se incompreensível quando
o mesmo acontece nos setores da chamada esquerda, no campo de luta
dos trabalhadores, que continuam resistindo e não se abrem para essa
formulação. Com essas teses, Florestan tornou-se solitário, mas com a
crença profunda na razão, no seu esforço teórico, no cuidado técnico,
no rigor lógico da formulação de um conhecimento novo, de uma força
política indubitável.”15

15
Míriam Limoeiro (entrevista para este livro, nov/2003).
64 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

A revolução burguesa no Brasil


Em A revolução burguesa no Brasil, livro iniciado no primeiro
semestre de 1966, concluído e lançado em 1974, portanto, quase
uma década depois, Florestan esmiuçou os limites do liberalismo
no Brasil com uma combinação de análises como historiador, eco-
nomista e sociólogo. Na nota explicativa, datada de 14 de agosto de
1974, constante na primeira edição, ele diz que este livro seria uma
resposta intelectual à situação política que se criara com o regime
instaurado em 1964. Lamenta o fato de ter sido impedido de trabalhar
nesta obra como gostaria, isto é, sem pressa, e com tempo suficiente
para se aprofundar mais na análise interpretativa, numa perspectiva
histórica, devido a sua dedicação às atividades ligadas ao ensino,
seu envolvimento no movimento universitário, entre 1967 e 1968, e
posteriormente seu afastamento da USP e o exílio, entre 1969 e 1972.
Nesse estudo, ele analisa a formação do capitalismo no Brasil,
as bases e as estruturas da ordem escravocrata senhorial, e como a
escravidão funcionou como fator determinante na transição do neo­
colonialismo para a fase subsequente, o capitalismo competitivo.
Florestan traçou neste livro um perfil dos homens do poder e do
dinheiro, mostrando a resistência da elite à mudança social.
Na segunda parte de A revolução burguesa no Brasil, intitulada
“A formação da ordem social competitiva”, sublinhada como “frag-
mento”, Florestan tece a tese sobre a formação da ordem social com-
petitiva em países de origem colonial como o Brasil, e constrói com
os recursos da sociologia científica, da história e da economia uma
estrutura interpretativa abrangente, para explicar como o capitalis-
mo é introduzido antes da constituição da ordem competitiva nas
“sociedades nacionais”, dependentes, de origem colonial.
Eis trechos do que escreveu Florestan:
(...) a ordem social escravocrata e senhorial não se abriu facilmente aos
requisitos econômicos, sociais, culturais e jurídico-políticos do capitalis-
mo. Mesmo quando eles se incorporavam aos fundamentos legais daquela
LAUREZ CERQUEIRA 65

ordem, eles estavam condenados à ineficácia ou a um entendimento parcial


e flutuante, de acordo com as conveniências econômicas dos estamentos
senhoriais (largamente condicionadas e calibradas pelas estruturas eco-
nômicas, sociais e políticas herdadas do mundo colonial).
(...) a emergência e o desenvolvimento da ordem social competitiva ocor-
reram paulatinamente, à medida que a desintegração da ordem social
escravocrata e senhorial forneceu pontos de partida realmente consisten-
tes para a organização das relações de produção e de mercado em bases
genuinamente capitalistas. Sob este aspecto, nem sempre as dificuldades
à expansão interna do capitalismo procederam da ‘resistência à mudança’
por parte dos estamentos, senhoriais. É a própria situação ‘periférica’ e
‘marginal’ das economias capitalistas dependentes de origem colonial que
explica tal fenômeno, com seus reflexos estruturais e dinâmicos sobre a
ordem social competitiva correspondente. (p. 151)
(...) Aqui, cumpre ressaltar, em especial, a estreita vinculação que se esta-
beleceu, geneticamente, entre interesses e valores sociais substancialmente
conservadores (ou, em outras terminologias: particularistas e elitistas) e
a constituição da ordem social competitiva. Por suas raízes históricas,
econômicas e políticas, ela prendeu o presente ao passado como se fosse
uma cadeira de ferro. Se a competição ocorreu, em um momento histórico,
para acelerar a decadência e o colapso da sociedade de castas e estamen-
tos, em outro momento ela irá acorrentar a expansão do capitalismo a
um privatismo tosco, rigidamente, particu­laristas e, fundamentalmente,
autocrático, como se o ‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor
antigo’. (p. 167-168)16

No capítulo 5 deste mesmo livro, sob o título de “A concre­tização


da Revolução Burguesa”, Florestan analisa a “revolução burguesa”
numa perspectiva histórico-sociológica, focalizando os momentos de
crise e de superação da crise do “poder burguês” e da “dominação bur-
guesa” no Brasil. Ao analisar a transição do capitalismo competitivo
para o capitalismo monopolista, ele mostra como as elites primeira-
mente se dedicaram à unificação política do Estado sob a hegemonia

16
Fernandes, F. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica.
São Paulo: Zahar, 1975.
66 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

do poder senhorial, oligárquico, monolítico, de base heterogênea,


nacional e internacional.
Diz ele:
Na acepção em que tomamos o conceito, Revolução Burguesa denota um
conjunto de transformações econômicas, tecnológicas, sociais, psicocul-
turais e políticas que só se realizam quando o desenvolvimento capitalista
atinge o clímax de sua evolução industrial. Há, porém, um ponto de partida
e um ponto de chegada, e é extremamente difícil localizar-se o momento
em que essa revolução alcança um patamar histórico irreversível, de plena
maturidade e, ao mesmo tempo, de consolidação do ‘poder burguês’ e da
‘dominação burguesa’. A situação brasileira do fim do Império e do co-
meço da República, por exemplo, contém somente os germes desse poder
e dessa dominação. O que muitos autores chamam, com extrema impro-
priedade, de crise do poder oligárquico não é propriamente um ‘colapso’,
mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia
da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se
configuram, historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa.
Essa composição marca o início da moder­nidade no Brasil e praticamente
separa (com um quarto de século de atraso, quanto às datas de referência
que os historiadores gostam de empregar - a Abolição, a Proclamação da
República e as inquietações da década de 20) a ‘era senhorial’ (ou o antigo
regime) da ‘era burguesa’ (ou a sociedade de classes) (...) (p. 203).
(...) Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias
de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais
complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz
sua unificação no plano político, antes de converter a dominação socio-
econômica (...) (p. 204).
(...) À oligarquia, a preservação e a renovação das estruturas de poder, her-
dadas no passado, só interessavam como instrumento econômico e político;
para garantir o desenvolvimento capitalista interno e sua própria hegemonia
econômica, social e política. Por isso, ela se converteu no pião da transição
para o ‘Brasil moderno’. Só ela dispunha de poder em toda a extensão da
sociedade brasileira: o desenvolvimento desigual não afeta o controle oli-
gárquico do poder, apenas estimulava a sua universalização. Além disso, só
ela podia oferecer aos novos comensais, vindos dos setores intermediários,
dos grupos imigrantes ou de categorias econômicas, a maior segurança
LAUREZ CERQUEIRA 67

possível na passagem do mundo pré-capitalista para o mundo capitalista,


prevenindo a ‘desordem da economia’, a ‘dissolução da propriedade’ ou o
‘desgoverno da sociedade’. Foi ela que definiu o inimigo comum: no passado,
o escravo (e, em sentido mitigado, o liberto); no presente, o assalariado ou
semi-assalariado do campo e da cidade (...) (p. 210).17

No capítulo 7, sob o título “O modelo autocrático-burguês


de transformação capitalista”, Florestan analisa a transformação
capitalista tomando como objeto central da investigação o modelo
denominado “autocrático-burguês”, seus requisitos econômicos,
socioculturais e políticos para se estabelecer. Contesta a ideia de que
a dependência e o subdesenvolvimento dos países periféricos sejam
estágios passageiros tendentes a desaparecer no processo de desen-
volvimento do capitalismo. No trecho a seguir, assim ele analisa:
A extrema concentração social da riqueza, a drenagem para fora de grande
parte do excedente econômico nacional, a consequente persistência de
formas pré ou subcapitalistas de trabalho e a depressão medular do valor
do trabalho assalariado, em contraste com altos níveis de aspiração ou
com pressões compensadoras à democratização da participação econô-
mica, sociocultural e política produzem, isoladamente e em conjunto,
consequências que sobrecarregam e ingurgitam as funções especificamente
políticas da dominação burguesa (quer em sentido autodefensivo, quer
numa direção puramente repressiva). Criaram-se e criam-se, desse modo,
requisitos sociais e políticos da transformação capitalista e da dominação
burguesa que não encontram contrapartida no desenvolvimento capitalista
das nações centrais e hegemônicas (mesmo onde a associação de fascismo
com expansão do capitalismo evoca o mesmo modelo geral autocrático-
-burguês). Sob esse aspecto, o capitalismo dependente e subdesenvolvido
é um capitalismo selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com fre-
quência, por meios políticos e no terreno político (p. 292).18

Portanto, Florestan explica sob rigorosa análise essa peculiaridade


da ordem nacional, tendo a crise do “poder burguês” como causa central
17
Idem.
18
Ibid.
68 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

da grande crise que se arrasta pela história do país desde o início da


transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista,
dependente dos centros hegemônicos. E mostra as dificuldades intrín-
secas que impedem o rompimento com o padrão de desenvolvimento
estabelecido em sua origem, seus vínculos externos e as ingerências.
Analisando o período da história recente, os fatores que resul-
taram no golpe militar de 1964 são ressaltados nesta obra, como a
configuração do “drama do mundo burguês no Brasil”, quando o
país passou a viver um ciclo de industrialização intensiva, mantidos
o subdesenvolvimento interno e a dominação externa.
Tomando como base o veio histórico iniciado na independência,
Florestan faz um verdadeiro inventário da estrutura do “modelo
autocrático burguês de transformação capitalista” que se refez em
novos padrões, apoiado pelos militares e políticos oligarcas. A revo-
lução burguesa no Brasil figura entre os cinco mais importantes livros
escritos no Brasil, nos últimos cinquenta anos.

Em defesa da escola pública


Entre 1960 e 1961, engajado ativamente na campanha “Em defesa
da escola pública”, junto com intelectuais e educadores (Anísio
Teixeira, Fernando Azevedo, Roque Spencer, Laerte Ramos e outros),
Florestan participou de um périplo pelos mais importantes centros de
debates do país, fazendo palestras, dando entrevistas, participando de
manifestações, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade para
os problemas educacionais. Esteve em Brasília com uma delegação do
movimento para se encontrar com parlamentares, com o presidente da
República, João Goulart, e tentar obter deles o compromisso de votar
o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), apoia­do
pelo movimento, que estava em tramitação no Congresso Nacional.
Esse projeto, segundo Florestan, visava confrontar o “Estado burguês”
com suas próprias contradições, forçando-o a assumir a tarefa de
promover a educação pública e gratuita para todos os brasileiros.
LAUREZ CERQUEIRA 69

O projeto apoiado pelos “pioneiros da educação” tinha como pontos


mais importantes, entre outros, a liberdade de ensino e verbas públicas
para o ensino público. Concorria com este, no Congresso Nacional,
um projeto substitutivo, do deputado Carlos Lacerda, elaborado com
um grupo de educadores leigos e católicos, ligados ao ensino privado
e confessional. Era fundamental rejeitar o substitutivo do deputado
Carlos Lacerda, considerado conservador pelo grupo ao qual pertencia
Florestan. João Goulart se negou a comprometer-se com a delegação
de intelectuais e educadores, de vetar o projeto de Carlos Lacerda,
caso este fosse aprovado.
Florestan defendia teses inovadoras, queria a universidade autônoma,
democratizada, aberta ao aproveitamento dos talentos, com garantia
de acesso a todos; produção de ciência e tecnologia para promoção do
desenvolvimento econômico e modernização da sociedade, de forma
justa. Na campanha, Florestan alertava em suas palestras a não se
confiar na competência dos “populistas” no cumprimento da função
do “Estado educador”. Dizia-se convencido da importância decisiva
da universidade no processo de democratização da sociedade, na
reestruturação do país e afirmação da soberania nacional.
Florestan Fernandes, avós maternos, tios e mãe

Florestan aos 5 anos


A mãe com a filha

Florestan com colegas do


Madureza, 1930
Florestan, grupo
escolar (acima)

Credencial Folha da Manhã,


1943 (ao lado)
Casamento com Myrian Rodrigues, 1944
Florestan e Myrian com
Heloísa no colo, 1946

BENEDICTO
NAIR

Florestan com indígenas


Registro de professor, 1942

Congresso no Chile, 1972


Florestan, 1950 (ao lado)

Reencontro com as filhas


Heloísa e Noêmia,
após prisão, 1964 (abaixo)
E S TA D O
AG.
-
M A R I C ATO
OSWALDO

Manifestação
dos excedentes,
março de 1968
IMAGEM
FOLHA
Passeata em defesa do ensino público, 1988

Orlando Fals Borda, Celso Furtado e Florestan, Universidade de Münster, 1967


Florestan, 1975

ABRIL
EDITORA
-
NAMBA
CARLOS
SIMAS
PAULA

Promulgação da Constituição, 1988


Florestan e Antonio Candido

Banca de doutoramento de Octavio Ianni


Florestan e Aziz Ab’Saber

Florestan com Lula


Florestan com Gilberto Freyre, Münster, Alemanha

Florestan, Ricardo Antunes, Francisco de Oliveira, Almino Afonso e Alípio Freire.


Debate “Eleições e partidos políticos”, 1982
JSRANGEL
1ª reunião de campanha, 1986

Última foto de Florestan com a família, 1995


Florestan, 1995
EDER LUIZ MEDEIROS FOLHA IMAGEM
CAPÍTULO III

1964: UM GOLPE NO SONHO, UM


CORTE NA PRODUÇÃO INTELECTUAL
ACADÊMICA

Uma nação que prefere desviar recursos para financiar


a implantação de multinacionais, a infraestrutura de
desenvolvimento capitalista monopolista em vez de aten-
der os problemas de saúde pública, educação das massas,
expansão do mercado interno etc. está ignorando a sua
revolução nacional.
Florestan Fernandes

Nos anos de 1960, início do regime militar, o grupo da USP sofreu


um duro impacto e foi desarticulado. Os fatídicos dias em que a
repressão política chegou à USP são lembrados por contemporâneos
amigos e companheiros de trabalho de Florestan como um impacto
mortal no projeto de universidade sonhado pelos acadêmicos mais
comprometidos com a consolidação da autonomia universitária e
com a pesquisa científica. Um ciclo virtuoso da produção científica
foi interrompido, não só o dele e de seus auxiliares, mas da univer-
sidade como um todo, que vivia naquela época sua afirmação como
instituição autônoma e indispensável para o desenvolvimento do país.
Professores foram afastados das atividades acadêmicas, Florestan foi
preso em 1964, expulso da USP e exilado no Canadá, onde passou
a dar aulas em Toronto.

A principal virtude do intelectual é a rebeldia crítica


A universidade passou a ser o principal ponto a ser mudado no
sistema educacional. Em menos de dois meses uma comissão de
86 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

especialistas, formada por educadores estadunidenses e brasileiros


conservadores, elaboraram um projeto de reestruturação profunda
das instituições de ensino superior no país, nos mesmos moldes
do sistema universitário dos EUA. Esse projeto se transformou em
decreto-lei e, a partir daí, a universidade foi burocratizada e desviada
da rota que vinha sendo construída por acadêmicos do campo ao
qual pertencia Florestan.
O episódio da prisão e banimento de Florestan e de muitos outros
professores companheiros seus se tornou emblemático e revelador do
grau de violência que se estabeleceu no país após a tomada do poder
pelos militares. O clima de tensão nas salas de aula ficou insuportável.
Os órgãos de repressão, com a colaboração de alunos e alguns profes-
sores que aderiram ao golpe militar, fizeram uma lista de acadêmicos
a serem expulsos da universidade, e nela estava o nome de Florestan.
Muitos professores, sob o temor de serem encarcerados, anteciparam
suas saídas e procuraram exílio em outros países.
Numa noite chuvosa, o antropólogo Paulo Duarte bateu à porta
da casa de Florestan para avisá-lo que seu nome estava na primeira
relação dos professores que seriam cassados e que o Dr. Júlio de
Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de S. Paulo, havia
pedido ao general Orlando Geisel para retirá-lo da lista.
Florestan era amigo pessoal do Dr. Júlio e era grato pelo espaço
cedido a ele para publicação de seus artigos. Mas apesar disso, Flo-
restan não deixou de manifestar sua indignação e sua fúria com o
fato de ele ter tomado aquela atitude, sem consultá-lo.
“Que direito ele tem de dispor da minha pessoa? Eu não pedi
nada a ele. Como vou olhar para os meus colegas que estão sendo
perseguidos, sabendo que fui poupado por causa de minha ami-
zade com o Dr. Júlio? O professor Mário Schenberg, que é tão
amigo dele quanto eu, ficou na lista. E os outros?”22 – perguntou

22
Conforme Florestan Fernandes Jr. (entrevista para este livro).
LAUREZ CERQUEIRA 87

Florestan a Paulo Duarte. A partir daquele momento, Florestan


não procurou mais o Dr. Júlio. A amizade deles acabara de sofrer
um forte abalo.
A lista foi para o Rio de Janeiro e, lá, Castelo Branco entendeu
que a punição não era da sua competência, porque se tratava de uma
universidade estadual e devolveu a lista para o governador Adhemar
de Barros. O governador, por sua vez, não teve coragem, no primeiro
momento, de colocar Florestan para fora da universidade, temendo
a repercussão do ato.
Porém, cerca de três meses depois, Florestan foi preso por criticar
severamente o golpe de Estado nos debates com estudantes e profes-
sores, a reestruturação do ensino superior e as perseguições policiais
na Faculdade de Filosofia. Prevendo a prisão, Florestan se preparou
com antecedência, escreveu uma carta para ser entregue na hora em
que ele deveria ser inquirido. Lida nos dias de hoje, essa carta não
tem grande importância, mas naquele contexto, com os militares de
fuzis em punho, ela tinha outro significado.
O professor Alberto da Rocha Barros, da Faculdade de Direito,
amigo e companheiro, e Antonio Candido leram a carta e aconselha-
ram Florestan a não entregá-la, pois, certamente, seria entendida como
uma retaliação formal e a situação poderia se complicar ainda mais.
Florestan argumentou que esse gesto atendia a razões de foro
íntimo e que cada um escolhe aquilo que é mais compatível com
sua consciência e personalidade. Quando o coronel responsável pela
operação chegou à sala da Diretoria da Faculdade de Filosofia, na
Rua Maria Antônia, Florestan entregou a carta e disse:
A principal virtude do militar é a disciplina e a do intelectual é a rebeldia
crítica; por isso, eu não devo aceitar essa situação passivamente. Eu só me
disponho a prestar o depoimento se o senhor aceitar esta carta. Não há
nada de fato. O senhor não precisa se preocupar. Ou o senhor lê a carta
e aceita a carta e eu presto o depoimento, ou o senhor lê a carta, recusa a
carta e eu não faço o depoimento.
88 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

O coronel relutou, mas acabou lendo. Sublinhou algumas frases


e sentenciou:
A carta só piora a situação do senhor. Nós não queremos fazer nada de
mal. Retire a carta, é melhor para o senhor e para nós.

Florestan respondeu:
Então eu retiro, mas também não presto depoimento.

O professor Mário Guimarães Ferry, diretor da Faculdade, aliado


de Florestan na discussão sobre a reestruturação da universidade,
também apelou para que a carta fosse retirada. Pediu a ele que revisse
sua posição.
Essa atitude coloca em risco sua família.

Irritado, Florestan reagiu:


Eu acho que minha família não gostaria que eu me acovardasse. Acho até
que eles não só vão me entender, mas vão aprovar o que eu estou fazendo.

O professor Ferry insistiu:


Mas e o pessoal que trabalha com você? Você não pode arriscar a situação
de todos os assistentes.

Naquela época, a cadeira de Sociologia contava com dezenove


colaboradores. Florestan argumentou:
Meus assistentes, todos os colaboradores não esperam de mim uma ati-
tude diferente, estou correspondendo a eles. O senhor está muito iludido
se pensa que eles esperam de mim que eu me submeta às injunções da
ditadura sem nenhuma reação. 23

Diante da firmeza de Florestan, o coronel não teve alternativa.


Deu-lhe voz de prisão. Florestan pediu para ir à sua sala, queria tele-
fonar para a família. Lá aproveitou e deu sinal verde a sua secretária,

23
Idem
LAUREZ CERQUEIRA 89

dona Noemi, para distribuir cópias da carta aos estudantes que aguar-
davam o desfecho da audiência, concentrados em frente à diretoria
da Faculdade. Aquela carta era um símbolo. No dia seguinte, estava
estampada nos jornais:
São Paulo, 9 de setembro de 1964.
Senhor Tenente-Coronel:
Há quase vinte anos venho dando o melhor do meu esforço para ajudar a
construir em São Paulo um núcleo de estudos universitário­s digno desse
nome. Por grandes que sejam minhas falhas e por pequena que tenha sido
minha contribuição individual, esse objetivo constitui o principal alvo de
minha vida, dando sentido às minhas atividades como professor, como
pesquisador e como cientista. Por isso foi com indisfarçável desencanto e
com indignação que vi as escolas e os institutos da Universidade de São
Paulo serem incluídos na rede de investigação sumária, de caráter ‘policial
militar’, que visa a apurar os antros de corrupção e os centros de agitação
subversiva no seio dos serviços públicos mantidos pelo governo estadual.
Não somos um bando de malfeitores. Nem a ética universitária nos per-
mitiria converter o ensino em fonte de pregação político-partidária. Os
que exploram meios ilícitos de enriquecimento e de aumento do poder
afastam-se, cuidadosa e sabiamente, da área do ensino (especialmente
do ensino superior). Em nosso país, o ensino só fornece ônus e pesados
encargos, oferecendo escassos atrativos mesmo para os honestos, quanto
mais para os que manipulam a corrupção como estilo de vida. Doutro lado,
quem pretendesse devotar-se à agitação político-partidária seria desavisado
se se cingisse às limitações insanáveis que as relações pedagógicas impõem
ao intercâmbio das gerações.
Vendo as coisas desse ângulo (e não me parece que exista outro diverso),
recebi a convocação para ser inquirido ‘policialmente’ como uma injúria,
que afronta a um tempo o espírito de trabalho universitário e a menta-
lidade científica, afetando-me, portanto, tanto pessoalmente, quanto na
minha condição de membro do corpo de docentes e investigadores da
Universidade de São Paulo. Foi com melancólica surpresa que vislumbrei
a indiferença da alta administração universitária diante dessa inovação,
que estabelece nova tutela sobre a nossa atividade intelectual. Possuímos
critérios próprios para a seleção e a promoção do pessoal docente e de pes-
quisas. Atente Va. Sa. para as seguintes indicações, que extraio de minha
90 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

experiência pessoal e que ilustram um caso entre muitos. Formado entre


1941-1944, obtive meu grau de mestre em ciências sociais em 1947, com
um trabalho de 328 p. (em composição tipográfica); o grau de doutor, em
1951, com um estudo de 419 p. (também em composição tipográfica);
o título de livre-docente, em 1953, com um ensaio de 145 p. (idem); e,
somente agora, acho-me em condições de me aventurar ao passo decisivo,
o curso de cátedra, com uma monografia de 743 p. (idem). Nesse ínterim,
trabalhei como assistente de 1945 a 1954, sendo responsável pela direção
da cátedra que ocupo apenas depois de 1955. Outros colegas, que militam
em setores onde a competição costuma ser mais árdua, enfrentam crivos
ainda mais duros para a realização de suas carreiras. Isso evidencia, por
si só, que dispomos de padrões próprios – a um tempo: adequados, alta-
mente seletivos e exigentes – para forjar mecanismos autossuficientes de
organização e de supervisão.
Não obstante, acato as determinações, que não estão em meu alcance
modificar. Por quê? Por uma razão muito simples. Nada tendo a ocultar
ou a temer, entendo que seria improdutivo enfrentar de outra forma tal
vicissitude. A nossa escola, por ser inovadora e por ter contribuído de
maneira poderosa para a renovação dos hábitos intelectuais e mentais im-
perantes no Brasil, foi vítima de um processo de estigmatização que muito
nos tem prejudicado, direta e indiretamente. Não podendo destruir-nos,
os agentes da estagnação cultural optaram pela difamação gratuita e pela
detratação sistemática. Ambas não impediram que a nossa escola avançasse
até atingir sua situação atual, ímpar no cenário cultural latino-americano.
Conseguimos sobreviver e vencer, apesar dessa resistência tortuosa e dos
seus efeitos nocivos. Cada professor que desse, nas atuais circunstâncias,
vazão a seus sentimentos e convicções pessoais, recusando a submeter-se
ao inquérito policial-militar, estaria favorecendo, ineludivelmente, esse
terrível jogo, para o desdouro final da nossa escola.
Ao aceitar, pois, a posição a que me vi reduzido, faço-o sob plena consciên­
cia de deveres intelectuais maiores, a que não posso fugir ou desmerecer.
Todavia, esse procedimento não envolve transigência ou omissão. Como
no passado, continuo e continuarei fiel às mesmas normas que sempre
orientaram o meu labor intelectual, como professor, como pesquisador
e como cientista. Não existem dois caminhos na vida universitária e na
investigação científica. A liberdade intelectual, a objetividade e o amor à
verdade resumem os apanágios do universitário e do homem de ciência
LAUREZ CERQUEIRA 91

autênticos. Estamos permanentemente empenhados numa luta sem fim


pelo aperfeiçoamento incessante da natureza humana, da civilização e
da sociedade, o que nos leva a perquirir as formas mais eficientes para
aumentar a capacidade de conhecimento do Homem e para elevar sua
faculdade de agir como crescente autonomia moral. Não desertei nem
desertarei dessa luta, a única que confere à Universidade de São Paulo
grandeza real, como agente de um processo histórico que tende a incluir
o Brasil entre as nações democráticas de nossa era.
Aproveito o ensejo para subscrever-me, atenciosamente,
Dr. FLORESTAN FERNANDES
Professor da Cadeira de Sociologia I

Ao Exmo. Senhor
Tenente-Coronel Bernardo Schönmann
Encarregado do Inquérito Policial-Militar junto à Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP – Em mãos.

Florestan foi levado para o quartel do II Exército, na Rua Con-


selheiro Crispiniano. No caminho, o coronel voltou ao assunto da
carta e Florestan disse a ele: “Coronel, o senhor já deve ter percebido
que eu estou fazendo um jogo calculado. Eu criei uma armadilha
e o senhor caiu nela”.24 O coronel respondeu que havia percebido,
mas já era tarde. Na viatura, a conversa evoluiu para outros assuntos
a respeito da situação política do país. Os argumentos de Florestan
sobre as razões que levaram os militares e a elite ao golpe de Estado
eram demolidores. Tanto que o coronel começou a se interessar
pela explicação dada por ele. No final do percurso pelas ruas de São
Paulo, em direção ao quartel, o coronel pediu a Florestan alguns de
seus livros. Disse que queria conhecer sua obra e que havia ficado
impressionado com aquela conversa. Posteriormente, Florestan o
presenteou com exemplares autografados.

24
Ibid.
92 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Dois dias depois, Florestan foi solto. Passou por sua casa para
rever a família, tomou um banho e em seguida se dirigiu para a Fa-
culdade de Filosofia. Conta seu filho, Florestan Fernandes Jr., que,
ao chegar, o professor Florestan se encontrou na entrada com um
funcionário. E ficou ali, em pé, conversando sobre sua prisão e os
últimos acontecimento na universidade, quando de repente alunos e
professores começaram a deixar as salas de aula e a descer as escadarias
do prédio em direção ao saguão onde ele estava. Uma multidão se
aglomerou em torno dele, aplaudindo-o e cantando o Hino Nacional.
Numa emocionante manifestação de apoio e solidariedade, como
demonstração de reconhecimento de sua força intelectual e moral. O
sociólogo, cientista, pensador e militante estavam ali, fundidos num
revolucionário, em seu campo de batalha, o qual conhecia muito bem
e, como poucos, sabia o que estava em risco.
No final do ano, Florestan foi ao jornal O Estado de S. Paulo e
resolveu visitar o Dr. Júlio de Mesquita Filho. No encontro, Flores-
tan não deixou de dizer algumas coisas que deveria ter colocado no
momento do episódio da lista.
Eu devia ter visitado o senhor para agradecer o que o senhor fez, tirando
o meu nome da lista. Mas achei que aquilo não era uma homenagem que
o senhor me prestava, porque eu de fato mereci ser punido. Eu combati a
ditadura e vou continuar a combater. Nós somos inimigos de classe, ainda
que o senhor não tenha pensado nisso. Se a situação fosse o inverso, eu não
retiraria o seu nome de lista nenhuma. O senhor seria tratado duramente
como inimigo da revolução.25

Dr. Júlio pediu desculpas, reconheceu que devia tê-lo consultado


sobre aquela decisão e disse que a atitude dele era uma demonstra-
ção de amizade, de afeto, pois gostava muito de Florestan e sabia
da sua importância para a universidade, apesar das diferenças de
suas posições políticas. O encontro ajudou a salvar a amizade, mas

25
Ibid.
LAUREZ CERQUEIRA 93

não foi suficiente para reparar o estrago. O jornal apoiou o golpe


militar e isso abriu um fosso entre eles: na luta política estiveram em
campos opostos. O professor Florestan contava que o Dr. Júlio era
um conservador, mas o seu conservantismo tradicionalista também
tinha valores que ele cultivava. “Ele vivia dividido entre uma razão
teórica iluminista e uma razão prática e política conservantista.”
dizia Florestan.

A universidade é uma instituição das elites


Aqueles acontecimentos da Rua Maria Antônia marcaram profun-
damente a vida de Florestan. A prisão de Florestan teve repercussão
nacional e até no exterior, de onde começaram a chegar manifesta-
ções de repúdio à violência do regime que se estabeleceu no país e de
solidariedade a ele e aos aliados da resistência à reforma universitária
imposta pelos militares. Estava estabelecido um confronto com o
governo e a implantação da reforma educacional subordinada ao
acordo MEC/USAID.
Na noite do dia 22 de março de 1968, a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP teve seus portões trancados com cadeados,
após um incidente ocorrido entre alunos e a direção da universida-
de, por causa das novas regras anunciadas como parte da reforma
universitária. Florestan havia se tornado uma liderança destacada da
resistência às mudanças pretendidas pelo governo. Ele combatia de
peito aberto o acordo MEC/USAID, foco central da crise no interior
da universidade. A reestru­turação estava na contramão da luta que
ele e seus aliados desenvolviam em prol da democratização do ensino
superior, com garantia da igualdade de oportunidades para todos, e a
institucionalização da pesquisa científica e do ensino competente na
universidade. “A universidade é uma instituição das elites.” Dizia ele.
Em entrevista à imprensa, Florestan declarou:
Sou contra o acordo pelas implicações que traz ao nosso ensino, que
não tem as mesmas condições da vida norte-americana e no seu aspecto
94 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

negativo essencial, representado pela perda de nossa independência em


relação a outro país. (...) A revolta dos jovens é uma consequência, exa-
tamente, da resistência que amplos setores da socie­dade e, portanto, de
parte de seus professores, oferecem aos impulsos existentes à adaptação
da Universidade, para que ela utilize mais racio­nalmente os seus recursos
em benefício de toda a coletividade e de maneira a dar acesso a um nú-
mero maior de brasileiros. (...) Mesmo que os cientistas paguem um preço
alto, devemos continuar dizendo aquilo que a pesquisa rigorosamente
científica nos impõe a dizer. (...) Se sou indesejável na Universidade, que
digam isto claramente e então sairei para trabalhar em outro lugar onde
possa continuar minhas pesquisas científicas. (...) Essa situação atinge à
totalidade dos intelectuais brasileiros. (...) Isto é característico. Foi assim
também na Itália, na Alemanha, em Portugal e na Espanha. Primeiro
começa-se a desmoralizar os intelectuais de uma nação. Depois, passa-se
à Universidade e, quando seus cientistas acordam, ela já está controlada.
(...) Não tenho intenção de deixar o Brasil para trabalhar em universidades
estrangeiras ou em organismos internacionais. Acho que os intelectuais
devem esforçar-se para ficar aqui e fazerem o pouco que é possível fazer.26

Depois da prisão, várias universidades de diversos países con-


vidaram Florestan para lecionar, mas ele entendia que não devia
abandonar o país naquele momento. Dizia que seu lugar era aqui,
ao lado dos seus amigos e companheiros de luta. Chegou a atender
a alguns convites para cursos, palestras, seminários, em países como
México, EUA, Noruega, Alemanha e França. Deu um curso durante
seis meses na Universidade de Columbia, ainda em 1964. Voltou ao
Brasil e viajou de novo para dar outro curso em Harvard.
Em todas as viagens aos EUA, naquele período de intensa mili-
tância, Florestan teve problemas com visto de entrada no país, por
causa das denúncias de suas atividades, fornecidas pelos órgãos de
informação. Em 1962, foi convidado para participar de um congresso
em Washington. O consulado estadunidense, em São Paulo, negou-
-lhe o visto de entrada. Com muito trabalho conseguiu o visto, mas,

26
Jornal Folha de S. Paulo, 23/3/1968.
LAUREZ CERQUEIRA 95

chegando ao aeroporto de Nova York, foi submetido a um inquérito


policial humilhante. Professores estadunidenses chegaram a fazer um
protesto contra as perseguições do governo estadunidense a Florestan.
Em 1966, novamente o consulado não lhe deu permissão, alegan-
do acusações de envolvimento em agitações no Brasil e em território
estadunidense. O movimento das comunidades negras andava a
pleno vapor. O livro de Florestan, A integração do negro na sociedade
de classes, premiado nos EUA, era muito lido e comentado no meio
intelectual e político. Seus cursos e palestras nas universidades esta-
dunidenses eram muito prestigiados. Ele tinha ligações com liderança
dos Panteras Negras, uma organização radical do movimento negro.
Florestan, num diálogo tenso com o vice-cônsul, disse:
Eu devo ter perdido essas páginas da minha vida. Pelo dossiê de vocês,
eu fui uma verdadeira ‘La Passionária dos Pampas’, pois vocês dizem que
agitei o Rio Grande do Sul inteirinho. Eu gostaria muito de ter vivido
tudo isso que está no relatório, mas infelizmente não vivi.27

Conta seu filho, Florestan Fernandes Jr., que numa dessas viagens,
para dar um curso de curta duração nos EUA, o Ministério das Re-
lações Exteriores não concedeu passaporte a Florestan. Impedido de
viajar, telefonou para a universidade estadunidense e relatou o fato
aos professores. Naquela época, o ministro da pasta era o político
mineiro Magalhães Pinto que, coincidentemente, estava em viagem
aos EUA. Alunos e professores foram ao encontro dele e, numa sala do
hotel, sitiaram-no. Só permitiram a saída do ministro depois que ele
telefonou para o Brasil e ordenou a entrega do passaporte a Florestan.
No Brasil, à medida que se intensificavam as pressões do governo
para se implantar a política educacional subordinada ao acordo MEC/
USAID, crescia a reação nas universidades contra a reforma conservadora.
Com a decretação do AI-5 em dezembro de 1968, a repressão
política ganhou proporções ainda maiores. O Congresso Nacional foi

27
Jornal Porandubas – PUC, out/1983.
96 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

fechado por tempo indeterminado. A imprensa passou a ser censurada.


Estados e municípios sofreram intervenção. Foi suspenso o direito
a habeas corpus e todos aqueles que assumiram a linha de frente no
combate à ditadura, como Florestan, que já havia sido preso e respon-
dido a Inquérito Policial Militar, estavam sendo presos novamente,
muitos torturados, perseguidos e exilados. Os relatórios da Divisão
de Informação do Departamento de Ordem Política e Social (Dops),
dão conta de que as atividades de Florestan eram monitoradas passo
a passo pelos órgãos de informação do regime militar. Numa das
peças do relatório do Dops, um delegado traçou o perfil de Florestan
com deduções próprias. Escreveu: “Dotado de ambição sem limites,
desleal, despatriado, amoral e revoltado com sua humilde origem
(filho de lavadeira)”.28
No dia 25 de abril de 1969, o general Costa e Silva, que ocupava a
presidência da República, decretou a aposentadoria, com base no AI-5,
de 44 professores, três dos quais lecionavam na Universidade de São
Paulo: Florestan Fernandes, João Batista Vilanova Artigas (arquiteto)
e Jaime Tiomno (físico). Quatro dias depois foi baixado outro decreto,
desta vez aposentando 23 professores, todos da USP, perfazendo um
total de 26 professores aposentados compulsoriamente.
Após seu banimento da USP, Florestan foi exilado no Canadá,
em 1969, tornando-se professor titular da Universidade de Toronto.
Três anos depois, renunciou ao cargo na universidade canadense por
considerar mais útil sua presença no Brasil.

O dilema de ensinar sob forte tensão psicológica


Numa entrevista dada à revista Ensaio (Ano IV, n. 8) Florestan
revelou o drama de ter sido impedido precocemente do livre exercício
de suas atividades acadêmicas no Brasil. Diz ter sofrido um processo

28
Relatório do Dops, s/d.
LAUREZ CERQUEIRA 97

de “desabamento da sua relação com o mundo intelectual”, após ver


rompidas suas ligações com a universidade.
Florestan, considerado por muitos intelectuais contemporâneos
seus, não só no Brasil como em outros países, mestre fundador da
Sociologia moderna brasileira estava sendo perseguido em seu pró-
prio país. Conta o professor Carlos Guilherme Mota que em 1977,
num restaurante em Londres, enquanto conversava com o grande
historiador e professor Eric J. Hobsbawm, sobre as agruras que se
viviam no Brasil sob o regi­me militar, ouviu dele que, dos cinco
maiores cientistas sociais do mundo, um era brasileiro, referindo-se
ao professor Florestan Fernandes.
De volta ao Brasil, em 1972, tentou emprego fora do seu
campo, mas não conseguiu. Recebeu uma oferta de trabalho do
recém-criado Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Ce-
brap), uma instituição financiada pela Fundação Ford voltada para
a reflexão no campo das ciências humanas, mais especificamente
a sociologia e a economia. O financiamento era “generoso” e o
objetivo real era o aproveitamento dos cérebros da esquerda em
trabalhos sobre a realidade brasileira. Florestan rejeitou o convite
peremptoriamente. Disse que era inadmissível colocar sua inteli-
gência a serviço de um projeto dos EUA. Em seguida, convidado
por Dom Paulo Evaristo Arns para lecio­nar na PUC, organizou
um curso, segundo ele, aproveitando toda sua experiência anterior,
enfrentando o dilema de ensinar sob forte tensão psicológica,
decorrente de sua frustração.
Foi um curso dado em condições extremamente dramáticas, eu não podia dar
o curso que dei. Na verdade, nos fins de 72, quando vim para cá, pensei: ‘Eu
fui para Toronto e fiquei lá pensando que podia lutar ali contra a ditadura.’
Depois descobri que lá não se luta contra a ditadura. Os que nos ouviam eram
pessoas que eu não precisaria convencer; além de constituírem um público
fechado, minoritário. O esforço maior, lá, ia na direção de fortalecer a ditadura.
Por isso é que pensei: ‘Eu volto para o Brasil e lá eu vou poder lutar.’ Vim e não
98 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

pude lutar coisa alguma, porque, realmente, de 1973 em diante vivi dentro de
um isolamento tremendo. Até 1975 eu tinha o que fazer dentro da produção
anterior. Podia viver assim, o isolamento de maneira equilibrada. Mas, depois
eu resvalei. E a radicalização pela qual eu passei engendrou o desequilíbrio,
que tive de enfrentar como pessoa. Não vá pensar que um intelectual, um
sociólogo, está livre das contingências que afetam todos os seres humanos.
E na medida em que eu estava isolado eu vi amigos e companheiros que
sequer se lembravam de mim, eu fiquei prisioneiro da família. É uma bela
prisão, mas, entra ano e sai ano, ficava só com essa convivência e com um
desdobramento que não vem ao caso discutir. Através desse desdobramento,
eu tinha um diálogo intelectual útil e permanente. Dei alguns cursos no
‘Sedes Sapientae’ e um cursinho sobre a teoria do autoritarismo, uma coisa
intermediária. De repente, me vejo diante de um curso e da necessidade de
engolir a condição de professor, que eu não queria engolir de novo. O que
eu queria era exatamente voltar a uma atividade militante e só militante. Daí
essa tensão, essa frustração. De novo vejo que o Brasil não dá mais que isso.
Tentei fazer mais do que isso. Você fica preso a um grupúsculo e neste gru-
púsculo fica na condição em que eu fiquei na década de 1940, patinando. O
movimento socialista aqui ainda não engendrou a ponto de se diferenciar, de
criar um espaço para o ser humano poder sobreviver e lutar dentro dele. Não
conseguimos isso. A ruptura com a ordem é tão superficial que as pessoas só
sobrevivem se realmente se ‘radicali­zarem’. Se as pessoas não perceberem que
o status de classe média é instrumental para sobreviver, elas se destroem. Então
o que aparece ali como tensão é uma tensão psicológica. Eu tive que aceitar o
fato de não ser nada mais do que um intelectual divergente. Tive de engolir
este fato, e estou engolindo. Durante todo o curso, ao dar as aulas, engoli essa
terrível frustração, daí a tensão. Agora, é claro que o desgaste da ditadura abre
perspectivas. Mas perspectivas que dependem de que o movimento socialista
se solte. Se ele não se soltar, nós voltamos a todas aquelas situações que nós já
vivemos longamente. Tenho a impressão de que, nesse ponto, os militantes
que ficam absorvidos pelo conformismo intrínseco ao movimento da esquerda
aqui, são protegidos por esse tipo de ruptura superficial com a ordem. Eles
podem ser úteis ao processo de luta política e ao mesmo tempo não precisam
viver o drama que nós acabamos vivendo de maneira intensa.29

29
Revista Ensaio, ano IV, n. 8, s/d.
LAUREZ CERQUEIRA 99

Apesar de se sentir exilado em seu próprio país e privado da


condição que tinha anteriormente ao golpe militar, Florestan não
permitiu ser aniquilado enquanto intelectual militante. Insistia nas
suas palestras com os cientistas e intelectuais que eles deviam desen-
volver seu talento e enfrentar as dificuldades, por maiores que fossem,
aqui. Rebatia aqueles que pensavam que ele estava marginalizado na
luta política e encarava como normais as consequências sofridas por
ele ao combater o governo tecnocrático ditatorial.
O que não admitia, e que lhe doía, era o afastamento de antigos
colegas e companheiros que evitavam o contato com ele. Dizia que
o intelectual brasileiro havia internalizando o medo sob a forma de
pânico e que isso não tinha relação com o tipo de opressão existente
na sociedade brasileira. Para ele, os intelectuais, em média, haviam
falhado por não oferecerem a resistência que deles se esperava ante
um regime de força, e que as oportunidades de lutar nos anos de 1960
e 1970 foram desperdiçadas ou mal aproveitadas.
Apesar de inconformado com a falta de engajamento de grande
parte dos intelectuais no movimento de combate à ditadura, Florestan
se dizia impossibilitado de julgar qualquer um deles porque as razões
de cada um, para essa “neutralidade”, eram variadas e uma questão
de consciência individual, talvez um mecanismo de autoproteção.
Uma grande parte dos que se formaram no Exterior, especialmente em
Ciências Sociais, foi educada e treinada segundo a filosofia da ‘neutrali-
dade ética’. Por essa razão atuam como se fossem cientistas de laboratório,
acham que não se devem comprometer e que o trabalho deve ser, em
essência, objetivo. Como dizia Weber, a ciência é incompatível com a
irresponsabilidade.30

Questionado sobre a geração formada sob o Estado Novo e à


geração recente formada sob 1964 e 1968, Florestan assim interpretou:

30
Folha de S. Paulo, 24/7/1977.
100 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Durante o Estado Novo as classes médias e altas possuíam setores pro-


fundamente conflitados com a ditadura, enquanto o atual regime tem
contado com um amplo apoio dos diferentes setores da burguesia. Ainda,
recentemente, quando um empresário arriscou-se a uma crítica ao governo,
vários empresários reagiram, declarando ser preferível ter a atual situação
do que retornar a 64. (...) Não seria bom ao populismo, cujo conceito, aliás,
tem sido mal empregado. Nós nunca tivemos populismo, o que tivemos
foi uma demagogia que manipulava as massas populares que passou a ser
descrita por este termo. O temor, na verdade, é de sair de uma democracia
restrita para uma democracia ampliada na qual, naturalmente, as mino-
rias elitistas perderiam o monopólio do poder. (...) Jamais tivemos uma
eclosão de um movimento popular autêntico com lideranças, nas cidades,
das classes populares. No máximo, líderes conservadores como Getúlio,
João Goulart, Jânio Quadros, Juscelino e Adhemar de Barros, alguns até
pessoas muito ricas que lançavam mão da demagogia, capaz de atrair o
apoio popular. Resultava uma espécie de tentativa de barganha política,
algumas concessões em troca de apoio de massa. Até o momento em que
a pressão popular pareceu ameaçar as classes conservadoras, quando se
alterou o comportamento e se suprimiu o demagogo e sua função. Os
que se aventuraram mais acabaram ou se suicidando, ou renunciando, ou
fugindo do país ou traindo o pacto demagógico. Realmente, a demagogia
aqui sempre foi um instrumental para a dominação burguesa e para o
comportamento conservador; de outro lado, as massas nunca conseguiram
condições de formar suas próprias liderança e meios de ação.31

Poder autocrático burguês


Ao analisar o que estava acontecendo no Brasil, Florestan fazia
questão de deixar claro que não havia qualquer semelhança com
a revolução burguesa europeia, vista de uma perspectiva clássica,
principalmente com o modelo da grande revolução francesa. Dizia
que lá não houve a dissociação do desenvolvimento econômico da
revolução nacional, pois a revolução era o eixo que determinava a
importância do desenvolvimento.

31
Idem.
LAUREZ CERQUEIRA 101

Reafirmou sua tese sobre a temática tratada em A revolução bur-


guesa no Brasil, demonstrando que o “poder autocrático burguês”
havia se reciclado com a aceitação da filosofia do “desenvolvimento
com segurança” dissociado da revolução e que esta não foi somente
colocada em segundo plano, mas asfixiada.
Uma nação que prefere desviar recursos para financiar a implantação de
multinacionais, a infraestrutura de desenvolvimento capitalista monopolis-
ta em vez de atender os problemas de saúde pública, educação das massas,
expansão do mercado interno etc. está ignorando a sua revolução nacional.
E usa esta dissociação para privilegiar­os interesses particularistas da sua
burguesia nacional e estrangeira. Se esta atitude dos militares causa espanto
é necessário que se veja que não são só os militares que participam desta
filosofia. Desde a II Guerra, civis e militares passaram por um processo de
reeducação no exterior no qual foi incorporada uma nova filosofia às elites
do país. A revolução nacional deve ser prioridade sobre o desenvolvimento
econômico, subordiná-lo a seus objetivos, como aconteceu nos Estados
Unidos à época da independência e depois da guerra civil americana.32

Sobre o “milagre econômico”:


Não acho que se deve enquadrá-lo como manifestação de demagogia. É
um efeito de propaganda que eu chamaria mais de uma propaganda cínica.
Não houve um milagre brasileiro, mas sim um processo de incorporação
do Brasil à economia do capitalismo monopolista, às nações hegemônicas
e às superpotências, absorvendo um padrão de desenvolvimento diverso
daquele que tínhamos antes. Toda vez que isso ocorre, os países incorpo-
rados recebem um volume de tecnologia e de capital e dá um salto. De
imediato, cria-se uma aparente situação eufórica, em seguida o país tem
que pagar a conta, quando se percebe as desvantagens. E enfrentar um
longo processo, que eu calculo de 15 a 25 anos, para atingir a estabilização
dentro do novo padrão. Todos os países que viveram o ‘milagre’ tiveram
uma fase de euforia muito curta, depois uma crise profunda e, em seguida,
restabeleceram o equilíbrio já em bases novas. Nós estamos entrando em
declínio, justamente numa fase de depressão do mercado mundial, com os

32
Ibid.
102 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

problemas de petróleo etc. Essas normas não são estabelecidas pelo país.
O ‘milagre’ é imposto por instituições mundiais.33

Essa linha de contestação de Florestan tem como referência seus


estudos que resultaram nas teses sobre o “capitalismo dependente”
e o desenvolvimento. Florestan evitou entrar nos polêmicos debates
sobre as reforma de base, por decisão pessoal, atendo-se à campanha
em defesa da escola pública e à temática do desenvolvimento e sub-
desenvolvimento.
Depois de uma viagem ao México, em 1960, onde fez uma
conferência sobre aspectos sociais do desenvolvimento, Florestan
voltou ainda mais seguro de suas convicções sobre a questão do
desenvolvimento. Passou a contestar certas teses defendidas no
âmbito de instituições ligadas à ONU (grupos que atuavam no
interior da Unesco e da Cepal) argumentando que aquele modelo
de “desenvolvimento autossustentado”, pensado para a América
Latina, não resolveria os problemas do Brasil nem das nações peri-
féricas. Participou do debate reafirmando os aspectos da formação
econômica, social, política e cultural da sociedade brasileira, objeto
de estudo dele e do núcleo de pesquisadores da USP. Considerava
que aqueles elementos estavam sendo desprezados pelos intelectuais
e técnicos ligados aos organismos internacionais. Argumentava: “As
nações periféricas entram nesse rateio mais como vítimas do que
como beneficiárias dos parceiros ricos”.
O programa “Aliança para o Progresso”, particularmente, e o
“Relatório Rockefeller” sofreram duras críticas dele e de intelectuais
do campo ao qual pertencia. Florestan publicou vários trabalhos nessa
linha de contestação. Mas vale destacar uma contestação ancorada nos
seus estudos científicos, sem vínculo ideológico ou de filosofia política,
apesar de socialista convicto. Como fica evidente nessa afirmação:

33
Ibid.
LAUREZ CERQUEIRA 103

O desenvolvimento exige certos requisitos de ordem social ou premissas


históricas, que não podem ser transplantados com as técnicas, com as
instituições empresariais, educacionais ou de pesquisa e por intermédio
dos valores sociais assimilados.

Àquela altura, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb),


criado em 1955 por Café Filho e implementado por Juscelino
Kubitschek, havia se projetado como centro formulador de uma
ideologia desenvolvimentista no país. Também era referência de
uma concepção de cultura que movimentava os centros de debate,
impulsionava transformações socioeconômicas e buscava fixar
identidades nacionais.
Para Florestan, as teses do Iseb estavam “imbricadas em pres-
supostos falsos, de raízes dúbias e havia se disseminado a ideia de
que era possível fazer a revolução através do desenvolvimento”. O
instituto facultava cursos de formação a estudantes e funcionários
públicos, e essa ideia repercutia no movimento de esquerda, pro-
vocando revolta contra os militantes e intelectuais­do campo ao
qual pertencia Florestan, que, por sua vez, procurava discutir o
desenvolvimento e subdesenvolvimento de um ângulo diferente.
O problema central era o da democracia. Se o desenvolvimento se
acelerasse, não haveria ganhos reais. Eu coloquei tudo isso, porque, na
verdade, para um socialista, o problema da reforma de base seria o de
alargar a ordem social competitiva, pinçar o inchaço que pode haver
dentro da sociedade burguesa e partir para um movimento de negação
dessa mesma ordem.(...) Se há uma resistência à mudança, se as classes
possuidoras só mudam em termos de seus interesses estratégicos, então é
claro que o nosso campo de ação tem de ser outro. Apesar de que em um
dos artigos eu tenha falado do combate junto com a classe trabalhadora,
de o intelectual subir com ela às questões essenciais, não explicitei as
posições socialistas. Todavia, elas estão bem evidentes. Naquele momento
eu usava o discurso do PT hoje.34

34
Revista Ensaio, ano IV, n. 8, s/d.
104 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Há um Florestan que a ditadura pensou ter morto


A prisão e o banimento de Florestan do Brasil foram um marco em
sua vida, enquanto acadêmico e socialista. Desse episódio em diante
ele estreitou ainda mais seus vínculos com o movimento da esquerda,
dando contribuições concretas para a construção da democracia no
Brasil. Os problemas contemporâneos como a globalização, as relações
de centro e periferia, a dependência, a luta dos trabalhadores foram
temas que mereceram maior dedicação.
Para Bárbara Freitag, socióloga e professora da Universidade de
Brasília, houve uma “ruptura epistemológica” na obra de Florestan, a
partir dos anos de 1970, que ela distingue entre uma fase “acadêmico-
-reformista” e uma fase “político-revolucionária.” Segundo ela, o
momento dessa ruptura coincidiu com a aposentadoria compulsória
pelo AI-5, que teve repercussão marcante na sua produção intelectual.
A primeira fase, diz Freitag, corresponde “ao debate e à reflexão teórica
da Sociologia, a análise antropológica do índio brasileiro e ao estudo
pormenorizado da realidade brasileira”.35
Outros estudiosos da obra de Florestan, como a professora Mí-
riam Limoeiro, por exemplo, percebe um lastro em toda a obra dele.
O fato é que a partir da década de 1970, Florestan intensificou sua
contribuição com o movimento de esquerda com uma produção
intelectual de análise da conjuntura política, através de conferências,
entrevistas, artigos e ensaios publicados. Isso, porém, não prejudicou
o trabalho teórico que desenvolvia. Nesse período ele aprofundou os
estudos sobre o pensamento de Lenin, organizou uma coletânea de
textos do dirigente russo e se dedicou à reedição de textos clássicos
sobre o marxismo.
Enfrentou a ditadura com maestria no terreno intelectual e po-
lítico, expôs as contradições do regime, deixando para as gerações

35
O Saber Militante. Ensaio sobre Florestan Fernandes. São Paulo: Unesp/Paz e
Terra, 1987.
LAUREZ CERQUEIRA 105

futuras uma obra de análise, não só sobre esses terríveis anos do


país no aspecto político, econômico, social e cultural, mas publicou
também obras fundamentais para a Sociologia, a Antropologia e para
a pesquisa científica.
Há um Florestan que a ditadura pensou ter morto. Ela não o matou, mas
a universidade o perdeu, na medida em que eu repudiei a vida acadêmica
e, especialmente, o padrão universitário de trabalho, de vida intelectual
e de esperança humana.36

Publicou Elementos de sociologia teórica (1970); O negro no mundo


dos brancos (1972); Capitalismo dependente e classes sociais na Améri-
ca Latina (1973); A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios
(1975); A universidade brasileira: reforma ou revolução? (1975); A re-
volução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica (1975);
Circuito fechado. Quatro ensaios sobre o “Poder Institucional” (1976);
A Sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e
desenvolvimento (1977); ‘Lenin’, coleção ‘Os grandes cien­tistas sociais’,
(1978); O folclore em questão (1978); A condição do sociólogo, (1978);
Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo”, (1979) e Da guerrilha
ao socialismo: a Revolução Cubana (1979). Alguns desses trabalhos
foram iniciados em anos anteriores, quando se dedicava à Faculdade
de Filosofia da USP.
Jacob Gorender, historiador e professor visitante do Instituto de
Estudos Avançados da USP, em artigo para a Revista Adusp, assim
interpreta, em síntese, a importância da teoria marxista na formação
intelectual de Florestan:
O marxismo não foi para Florestan tão somente uma das três vertentes
confluentes do método sociológico. O marxismo teve para ele a significação
singular e única de indicador dos temas de pesquisa, de crivo inicial das
opções de investigação.37

36
Idem.
37
Revista Adusp, out/1995.
106 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Nos anos de 1970, Florestan foi além das fronteiras brasileiras.


Debateu, por intermédio de artigos em revistas, jornais, livros e pa-
lestras a situação da América Latina, as lutas de libertação na África,
a situação da União Soviética, Albânia, Polônia, a social-democracia
na Europa, as ditaduras fascistas de Franco, na Espanha, e de Salazar,
em Portugal, e muitos outros temas correlatos, sempre sob o crivo do
marxismo. Assumiu o combate­aos problemas do capitalismo com
coragem e abnegação.
Ao estreitar seus laços com intelectuais e acadêmicos latino-
-americanos, Florestan verificou que a produção científica no campo
das ciências sociais e a movimentação política nas nações vizinhas e
na América Central eram análogas à do Brasil. Muitos autores esta-
vam realizando trabalhos em condições independentes, com novas
descobertas no âmbito das ciências sociais. Pesquisas revelaram que a
modernização cultural e o crescimento econômico, mesmo acelerados,
não resolviam os dilemas sociais fundamentais da América Latina.
Em seus livros A sociologia numa era de revolução social e Poder e
contrapoder na América Latina e outros trabalhos, Florestan analisou
os vínculos das classes burguesas nativas e das nações centrais como
sócias de empreendimentos que impedem o processo da democracia
e provocam a concentração de riqueza, de cultura e de poder no topo
da sociedade civil. Essas reflexões estão também sistematizadas em
Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina.
No prefácio do livro Democracia e desenvolvimento – a transfor-
mação da periferia e o capitalismo monopolista da era atual, Florestan
aponta a “guerra fria” como fator que amalgamou as corporações
associadas no processo de internacionalização da economia, da
cultura e do poder. Diz que a possibilidade da revolução nacio­nal,
democrática, foi afastada e que o mercado interno não atingiu as
classes mais pobres, porque a reforma agrária e a reforma urbana
não foram realizadas. Comenta o fato de os empregos e a renda
não terem crescido e a violência organizada se estabelecido, tendo
LAUREZ CERQUEIRA 107

como foco central o combate ao movimento dos trabalhadores e


dos setores organizados da sociedade.
Dizia:
A periferia adquiriu o caráter de lado podre dos países centrais. A ques-
tão central punha-se com clareza: sem democracia, o desenvolvimento
econômico, acelerado ou não, promovia o fortalecimento do privilégio.
A injustiça social assumiu tais proporções, que até a Igreja Católica saiu
de sua neutralidade e gerou uma esquerda militante, como a Teologia
da Libertação, e ‘comunidades de base’, que se envolviam no combate à
ignorância, à miséria e à espoliação, com frequência com baixo grau de
radicalização ideológica. Sem quebrar-se a faculdade das classes domi-
nantes de admitir mudanças generalizadas e profundas, mas se preser-
vando quase todas as suas posições do controle do poder, permaneciam-se
em um beco sem saída. As mudanças nasciam despojadas de conteúdo
reformista ou revolucionário, como um processo conservador. Os funda-
mentos autocráticos da dominação burguesa e o apego à dualidade ética
herdado do remoto passado colonial e escravista convertiam o homem
culto e rico em lobo de outros homens, apesar de aquele se considerar
‘cristão’ e ‘católico’.38

A Revolução Cubana
No processo de observação dos movimentos na América Lati-
na, Cuba mereceu um livro de Florestan. Depois de uma viagem
de uma semana à ilha caribenha, onde se reuniu com intelectuais
para conhecer de perto o processo revolucionário daquele país, ele
organizou um curso de pós-graduação na PUC/SP a convite do
Centro Acadêmico de Ciências Sociais (Ceupes) e do DCE Livre
Alexandre Vanucchi Leme. Repetido posteriormente na USP,
em 1979, o curso resultou no livro Da guerrilha ao socialismo: a
Revolução Cubana.

38
Fernandes, F. Democracia e desenvolvimento – a transformação da periferia e o
capitalismo monopolista da era atual. São Paulo: Hucitec, 1994.
108 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Neste livro ele percorreu o fio da história cubana desde a crise


econômica e política do antigo sistema colonial, passando por
históricos conflitos da colonização europeia na América Latina,
até o surgimento do Estado oligárquico, que regulou e dirigiu a
“emancipação nacional”. Analisou os movimentos pela independên-
cia no século 19 até a revolução socialista em Cuba e as mudanças
implementadas pelo governo revolucionário. Florestan ressaltou a
importância da revolução cubana para toda a América Latina e sua
peculiaridade em relação às demais revoluções socialistas.
Colocou em evidência a guerrilha, como instituidora de uma
mentalidade que serviu de elemento catalisador da organização e do
sentimento socialista. Apontou como a ilha do mar azul do Caribe
irradiou a esperança no movimento socialista por toda a América
Latina, arrebatando corações e mentes na Bolívia, Chile, Argentina,
Uruguai, El Salvador, Nicarágua, Brasil e tantos outros, discorrendo
sobre como setores da esquerda desses países perceberam a possibilida-
de da ruptura com o regime excludente e a herança colonial e viram
na perspectiva revolucionária as condições de realização de um outro
futuro. A situa­ção política desses países foi debatida por Florestan
numa grande profusão de artigos para a imprensa, conferência e livros.
A Revolução dos Cravos em Portugal também foi alvo de atenção
especial de Florestan. Um pouco talvez por seus vínculos ancestrais,
por suas relações de amizade com exilados portugueses no Brasil,
como Miguel Urbano Rodrigues, e personalidades acadêmicas e
políticas daquele país, mas, sobretudo, pelo fato de se tratar de uma
revolução democrática que derrubou uma versão do fascismo, arrai-
gada em “tradições sacrossantas”, muito próprias de Portugal.
O salazarismo representava uma forma ‘racional’ e ‘inovadora’ de defender
e restabelecer o monopólio do poder das classes privilegia­das, que se viam
ameaçadas pela revolução democrático-republicana. Ele combinava a típica
restauração reacionária a um elemento político moderno, o uso estratégico
do poder político concentrado do Estado, em fins que se poderiam definir
LAUREZ CERQUEIRA 109

como totalitários (embora o totalitarismo se prendesse à autodefesa de


classes ameaçada pelas mudanças econômicas, sociocultural e política).39

Superado por um desejo profundo da grande maioria dos portu-


gueses de uma ordem democrática, o salazarismo entrou em estado
de decomposição e sucumbiu no cenário político europeu.
Além dessa contribuição para compreensão dos movimentos
políticos e sociais dos países periféricos em busca da democracia,
Florestan intensificou o trabalho voltado para os problemas internos
do Brasil. Participou mais ativamente da política interna e tornou-se
definitivamente uma referência para o movimento de esquerda.

39
Conferência: “Perspectivas da revolução democrática em Portugal”, 3/10/1967.
LAUREZ CERQUEIRA 111

CAPÍTULO 1V

O CIENTISTA MILITANTE E A
ESPERANÇA NO SOCIALISMO

A ciência é incompatível
com a irresponsabilidade.
Max Weber

Os anos de 1970 foram dramáticos para os setores democráticos


do país. Mas foram também anos de ampliação da participação
popular na vida política brasileira. Intelectuais, artistas, donas de
casa e trabalhadores enfrentaram o regime autoritário, engajaram-
-se no movimento pela anistia, pelo restabe­lecimento de eleições
diretas, por uma assembleia nacional constituinte, na campanha
contra a carestia, enfim, pelo estabelecimento da ordem democráti-
ca. Florestan percorreu sindicatos, universidades, escolas e todos os
auditórios possíveis onde pudesse alcançar os que sofriam a violência
do regime, para ajudar a dar voz a quem desejava mudança.
Os movimentos abriram fendas irreversíveis no regime ditato-
rial e o minou com ações diretas dos setores mais pobres e mais
oprimidos. Particularmente as condições de trabalho e as perdas
salariais provocadas pela inflação, que causaram forte revolta, que
se espalhou pelos mais importantes centros industriais do país. A
opressão aos trabalhadores ao longo de duas décadas havia criado
uma situação explosiva.
112 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

O PT não era o partido sonhado por Florestan


Nos últimos anos da década de 1970, o movimento sindical e
o movimento universitário ganharam mais força e apresentaram
perspectivas de crescimento e consolidação de uma aliança entre
trabalhadores dos centros urbanos e do campo, para fazer frente ao
quadro político estabelecido. Das greves do ABC e dos movimentos
que brotaram em todo o país nasceu o Partido dos Trabalhadores.
Um partido considerado por Florestan ainda de características
burguesas, mas surgido da base com compromissos efetivos com
os de baixo.
Logo depois da fundação do PT (1978), Lula o convidou para
uma conversa na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, queria que Flo-
restan entrasse para o partido. Na conversa, em tom de brincadeira,
Lula perguntou: “Você é nosso aliado ou inimigo?” Referindo-se aos
acadêmicos que estavam entusiasmados com o movimento operário.
Florestan respondeu:
Isso não pega comigo, porque eu tenho uma origem social inferior à sua.
Para mim, um operário tanto pode aderir a um movimento fascista quanto
a um movimento revolucionário socialista, ou ficar indiferente. Eu não sou
obreirista e não me ajoelho diante do deus operário. Para eu entrar no PT,
quero que ele defina seu programa, esclarecendo melhor quais as opções
que envolvem a sua presença como núcleo político da classe trabalhadora.40

O PT não era o partido sonhado por Florestan, mas ele considerava


o mais próximo das condições que os trabalhadores dispunham para
romper com a subalternização. Entendia que naquele momento as con-
dições sociais, culturais e políticas do país não permitiam a existência
de um partido revolucio­nário. Porém, percebia a necessidade de um
sistema que organizasse as manifestações operárias nas bases. Dizia-se
também assustado com aquele arco de forças, que ia desde o movimento
de comunidades de base sem conotação política, de caráter humanitário,

40
Revista Teoria e Debate n. 13 – São Paulo, jan-mar/1991.
LAUREZ CERQUEIRA 113

passando por um núcleo social-democrático até socialistas democráticos


e comunistas e socialistas revolucionários. Ele acreditava que o partido
promoveria uma grande­transformação na cultura política do país.
Com o curso que dei sobre a Revolução Cubana e a análise que fiz do caso
chileno, compreendi que na América Latina a fraqueza das classes subal-
ternas acaba criando a necessidade de partidos que são frentes ideológicas
e políticas que unem tendências diferentes.41

Para Florestan, o PT era o único partido que procurava seguir


numa certa cadência o ritmo das massas.
O que deu origem ao PT? A inexistência de um partido dos de baixo
que pudesse atuar, simultaneamente: na criação de uma democracia que
conferisse peso e voz aos trabalhadores e aos oprimidos na atual socieda-
de de classes, realizando tarefas políticas monopolizadas pelos de cima;
abria a ordem existente para reformas sociais de interesse específico para
os trabalhadores e os oprimidos; formar as premissas históricas de uma
revolução socialista. O PT desprendeu-se quer do populismo dos partidos
das classes dominantes, quer do oportunismo de partidos de esquerda,
que se conformavam com os papéis de cauda da política burguesa, pseu-
doprogressista e pseudodemocrática.42

Lula consolidou sua liderança política e Florestan revigorou sua


esperança na possibilidade daquele movimento vir a evoluir e mudar
o rumo do país.
O reconhecimento da liderança de Lula no cenário das lutas que
se travava surgiu não apenas nas observações da sua participação nas
greves e na articulação do movimento nacional, mas também nos
encontros mantidos ao longo desse perío­do, quando Florestan teve a
oportunidade de trocar ideias e conhecer de perto quem ele considera-
va a maior liderança dos de baixo surgida na história recente do Brasil.

41
Idem.
42
Fernandes, F. O PT em movimento – contribuição ao I Congresso do Partido dos
Trabalhadores. São Paulo: Cortez, 1991.
114 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Seu apreço por Lula transcendia a política. Dizia-se tocado pela


afetividade, pela sensibilidade e inteligência daquele operário que
conquistava a confiança e o respeito dos trabalhadores, das pessoas
humildes, de intelectuais, professores, estudantes e de tantos outros
setores da sociedade.
Lula descobriu o significado da subalternização dos trabalhadores aos
capitalistas, apostando, com outros companheiros, na organização dos
de baixo em um partido próprio, o PT. Cortou assim, o nó górdio que
prendia lideranças sindicais de vulto à ‘cauda do movimento burguês’.
(...) Lula simboliza, em grau extremo, o operário como inventor de ideias
e atesta que o socialismo não está morto; o movimento operário, assim
como outros movimentos verticais convergentes do PT (dos negros, mu-
lheres, indígenas, crianças de rua etc.) carregam consigo detonadores de
alta-tensão. Ele logrou descobri-los. Afirmou-se, pois, como intelectual
orgânico das classes destituídas ou subalternizadas, com alta capacidade
de provocar tentativas históricas de arrancar o Brasil da barbárie.43

O movimento pelas eleições diretas, que levou centenas de mi-


lhares de pessoas às praças, em diversas capitais do país, foi derrotado
no Congresso Nacional. A “Emenda das Diretas” não foi aprovada.
A proposta de uma constituinte exclusiva também não prosperou. Os
parlamentares não foram dignos da democracia que o país merece.
Elegeram o presidente da República, pelo voto indireto, o senador
Tancredo Neves. Depois de sua morte, substituído pelo vice da chapa,
senador José Sarney.
O problema político da convocação de uma ANC numa situação histórica
em que se sai de uma ditadura é um problema político grave. As forças da
ordem ocupam as posições de comando. Se o movimento das ‘diretas-já’
tivesse tido êxito, teria sido possível alijar o maior número de elementos
do antigo regime do sistema de poder.44

43
Fernandes, F. A contestação necessária: retratos intelectuais de incorformistas e
revolucionários. São Paulo: Ática, 1995.
44
Jornal do DCE – UFRGS, jun/1985.
LAUREZ CERQUEIRA 115

Em 1986, quando o PT se preparava para disputar as eleições ao


Congresso Constituinte, Lula telefonou para Florestan e o convidou
para uma conversa na sede do partido, juntamente com Eduardo
Suplicy e José Dirceu. Propôs que ele se candidatasse a deputado
constituinte. Florestan agradeceu a gentileza e disse: “Não sou político
profissional, portanto não sei fazer campanha política. Não tenho
recursos para financiar uma campanha. Também estou recém-saído
do hospital e a campanha vai ser muito desgastante para mim”. Lula
insistiu. Aí Florestan perguntou: “o que o PT oferece para que eu seja
candidato? Vocês vão me dar alguma coisa? Lula disse: “Nada. Você
é que vai dar 30% de tudo o que recolher para o partido”. Florestan
deu uma gargalhada e disse: “Está bom, assim eu aceito”.45
Na avaliação de Lula, de integrantes do partido e de amigos de
Florestan, ele teria uma contribuição inestimável a dar na elaboração
da nova carta constitucional. Inicialmente relutou em aceitar, alegan-
do que um mandato parlamentar não era visto como um aconteci-
mento natural de sua carreira de intelectual acadêmico, com a maioria
de suas incursões políticas fora dos partidos políticos. O problema de
saúde também pesava na decisão, a família temia o agravamento da
doença. Florestan sofria de hepatite-C, contraída numa transfusão
de sangue, em 1972, no Hospital do Servidor Público.
Até então, Florestan não era filiado ao PT. Ele tinha uma postura
muito independente, dialogava com várias correntes da esquerda. A
única militância orgânica que teve foi no Partido Socialista Revolu-
cionário (PSR), uma organização clandestina, na década de 1940,
na luta contra o Estado Novo. Conversava com os trotskistas, com
militantes do Partido Comunista, com os anarquistas, com os por-
tugueses e espanhóis antifascistas, com militantes das mais diversas
correntes da esquerda na América Latina e era respeitado por todos.

45
Revista Teoria e Debate n. 13, São Paulo, jan-mar/1991.
116 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

... quem ganha é o socialismo e não as pessoas


Após a filiação, a candidatura de Florestan foi referendada na
Convenção do PT e em seguida começaram os preparativos para a
campanha. Seu filho, Florestan Fernandes Jr., telefonou para algumas
pessoas e marcou uma reunião para o final de uma tarde de domingo,
na casa da Rua Nebraska, onde ficava a biblioteca e o escritório. Além
de Florestan, estiveram nessa reunião: o professor Hélio Alcântara,
que viria a ser seu assessor em Brasília, o professor Octavio Ianni,
Cláudio Semiatz e Vladimir Sacchetta (filho de Hermínio Sacchetta,
amigo e companheiro trotskista de Florestan nos anos de 1940), que
se tornou um dos coordenadores do mandato em São Paulo.
Vladimir conta que depois dessa reunião foi formado o que ele
chamava de “O incrível exército de Florestan Fernandes”, referindo-se
ao contingente de apoiadores espontâneos, das mais variadas correntes
da esquerda, que Florestan conseguiu arregimentar. Professores, an-
tigos e novos estudantes, leitores, intelectuais de renome, familiares,
operários e sindicalistas de diversas categorias, ativistas da extrema
esquerda, do movimento negro, de mulheres e trabalhadores rurais se
juntaram em grupos espalhados pela capital e por inúmeras cidades
do interior do estado de São Paulo.
O “ecumênico” comitê recebia diariamente uma grande quanti-
dade de manifestações de apoio de pessoas e setores inesperados. Até
mesmo anarquistas engajaram-se na campanha porque “Florestan era
Florestan”, diziam eles.
O “Cavaleiro da Esperança”, Luiz Carlos Prestes, enviou uma
carta-manifesto de apoio; comunistas históricos como Jocob Goren-
der e tantos outros o seguiram; Miza Boito, líder trotskista do jornal
O Trabalho, uma corrente importante do movimento, juntou-se ao
comitê. Miza ficou furiosa com o fato de ter que dividir tarefas com
antigos estalinistas. Florestan dizia: “debaixo do meu guarda-chuva
cabem todos os rebeldes”.
LAUREZ CERQUEIRA 117

Apesar da doença, que àquela altura já o havia debilitado bas-


tante, ele demonstrou uma disposição impressionante na campanha.
A cada dia Florestan aparentava mais disposto, como se os desafios
bulissem com suas forças. Cumpriu uma extensa jornada de palestras
e reuniões, tanto na capital quanto no interior.
Ao saber da decisão de Florestan, de se candidatar, o professor
Antonio Candido, preocupado com a saúde dele, chegou a comentar
com sua esposa que esse novo caminho escolhido certamente o levaria
à morte. “Aquela escolha tinha tudo a ver com o senso de missão de
um servidor público que ia morrer lutando”, disse Antonio Candido.
Aquele homem, aparentemente taciturno, sisudo, fazia incendiar
os auditórios, com seu jeito muitas vezes teatral, no bom sentido, e
com o poder de suas palavras.
A campanha foi feita basicamente com palestras, venda de
livros e festas. O jornalista Vladimir Sacchetta, ex-assessor de
Florestan, costuma contar boas passagens da campanha. Vladimir
disse que nos primeiros dias recebeu uma oferta de um empresário
do setor de informática, que queria dispo­nibilizar computadores,
softwares, equipamentos, enfim, uma informatização completa
do comitê.
Vladimir levou o caso a Florestan. Quando disse que o empresário
queria a defesa da reserva de informática na Constituinte, Florestan
disse: “Está vendo? Eles não dão nada de graça”. Disse a Vladimir
que não aceitasse a oferta, porque a reserva de informática ele já de-
fendia. Deixou claro que seus compromissos não estavam vinculados
a contribuições daquela natureza, e não queria ficar devendo nada a
ninguém. Recomendou à coordenação do comitê que a campanha
devia continuar com os recursos recolhidos nas atividades de mobi-
lização dos grupos de apoio.
Mas, apesar dos parcos recursos, a campanha ganhou um bom
impulso com as dobradinhas, que se multiplicaram com os deputa-
dos estaduais. A campanha se espalhou pelo estado com agenda de
118 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

atividades conjuntas e com a divisão de espaço na propaganda dos


candidatos.
De José Dirceu, por exemplo, que era candidato a deputado es-
tadual, Florestan recebeu a colaboração de um grupo de apoiadores
dele, bastante experientes, para estruturar a campanha.
Palanques e mesas de debate com candidatos do próprio parti-
do eram divididos sem disputar votos. Isso causou estranhamento.
Florestan fazia questão de explicar que não estavam em discussão
projetos pessoais, mas a construção do socialismo.
Certa vez, ele dividia uma mesa de debate com Luiz Eduardo
Greenhalgh, que também concorria a uma cadeira na Câmara Fede-
ral. Parte do público não entendia como dois “concorrentes” podiam
buscar votos no mesmo evento. Florestan explicou que ali estavam
dois companheiros socialistas e não dois políticos profissionais com
seus vícios. “Não importa quem será escolhido. Se eleito, seja quem
for, quem ganha é o socialismo e não as pessoas”, disse.
A campanha foi construída assim, com a solidariedade dos ami-
gos, dos companheiros e dos colaboradores anônimos voluntários.
No final, Florestan foi eleito com 50.024 votos, o quarto deputado
mais votado do partido. O mapa eleitoral dele mais parece uma
constelação. Apareceram votos espalhados por todo o Estado, em
localidades onde não se imaginava haver apoiadores.
Três dias depois de anunciado o resultado da eleição, Vladimir
recebeu um telefonema de Antonio Candido. Ele queria saber sobre a
dívida da campanha e como poderia ajudar a pagar. Feitas as contas,
verificou-se que o débito correspondia a mais ou menos a metade do
valor de um carro popular. Ao ligar no dia seguinte para informá-lo,
Antonio Candido pediu a Vladimir que fosse à sua casa. Quando
chegou, já estava um cheque preenchido no valor total da conta.
Vladimir ponderou dizendo que a quantia era muito alta para ele
arcar sozinho e que a ideia era fazer um rateio das despesas entre os
colaboradores da campanha. Mas o professor Antonio Candido foi
LAUREZ CERQUEIRA 119

irredutível. Disse que aquele dinheiro estava reservado e que era de


um prêmio conquistado num concurso literário do Grupo Moinho
Santista. Insistiu que fazia questão de zerar as contas da campanha,
porque Florestan era seu querido irmão e queria que ele comemorasse
a vitória juntamente com seus colaboradores em paz, sem dívidas.
Vladimir recebeu o cheque e foi ao encontro de Florestan. Quando
relatou o fato a Florestan ele foi às lágrimas, pegou o telefone e ligou
para o professor Antonio Candido, emocionado, para agradecer
aquele gesto fraterno.
Florestan desfrutou de uma sólida amizade com o professor
Antonio Candido. “Candido foi um irmão que a natureza não me
deu”, dizia. Eles eram tão amigos que costumavam se beijar quando se
encontravam. Certa vez, perguntaram ao professor Antonio Candido
por que ele beijava Florestan e ele respondeu: “Só faz essa pergunta
quem nunca beijou um amigo”.
LAUREZ CERQUEIRA 121

CAPÍTULO V

O PROFESSOR FLORESTAN
FERNANDES NO CONGRESSO
CONSTITUINTE

Participar do Parlamento e do governo é importante para desencadear


reformas sociais bloqueadas pelas classes proprietárias. A ordem social
competitiva absorve reformas e revoluções – como a reforma agrária, a refor-
ma urbana, a reforma educacional, a descolonização, a revolução nacional, a
reforma democrática etc. – que reduzem ou modificam os conteúdos e a forma
da dominação de classe e da hegemonia ideológica da burguesia.
Florestan Fernandes

Naquela manhã quente de domingo tropical, 1° de fevereiro de


1987, deputados e senadores vindos de caminhos diversos, se prepara-
vam para tomar posse e escrever a nova Constituição brasileira. Carros
cortavam a Esplanada dos Ministérios num vai e vem interminável
transportando autoridades, familiares e convidados, do aeroporto e
dos hotéis da cidade para o Congresso Nacional. O sol, num céu azul
salpicado de nuvens brancas, deixava mais nítida a leveza dos traços
do arquiteto Oscar Niemeyer. O silêncio, a frieza e o enorme espaço
daquela praça pareciam reduzir o tamanho das coisas e das pessoas
que por ela passavam.
No Salão Verde e nos gabinetes, o clima era, ao mesmo tempo, de
festa e trabalho. Parlamentares, familiares e convidados elegantemente
vestidos se misturavam a fotógrafos, câmeras, luzes e jornalistas, nas
rodas de conversas animadas, ou se dispersavam em passeios pela
Casa.
Ao contrário de outros colegas, que tiveram de disputar gabinetes
para instalação, a Florestan foram oferecidos dois. Os ex-deputados
Eduardo Suplicy (PT) e Israel Dias Novaes (PMDB) faziam ques-
122 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

tão de lhe passar o gabinete que abandonavam. Ele ficou com o de


Eduardo Suplicy, que se elegera senador.
Enquanto se dirigiam ao gabinete da liderança do PT, onde
estavam concentrados os deputados da bancada para a cerimônia
de posse, Florestan e sua esposa, Myrian Fernandes, pararam
diversas vezes no caminho para receber cumprimentos de parla-
mentares e funcionários da Casa, com a reverência dispensada aos
mestres. Praticamente todos o chamavam de professor, raramente
de deputado, como de costume. Certamente pelo fato de se ter
um pensador da estirpe de Florestan ocupando uma cadeira no
Parlamento brasileiro.
Sentindo-se peixinhos fora d’água? Talvez. Pudera, aquele am-
biente era bastante diferente do meio em que viviam. Ele estava ali
como um homem de missão, abnegado como sempre foi, para realizar
mais uma tarefa grandiosa. Defender os interesses dos “de baixo”,
como ele dizia.

Transição lenta, gradual e segura


As expressões nos rostos de grande parte dos constituintes osci-
lavam entre a satisfação e a preocupação. Havia uma tensão no ar.
Afinal, as incertezas eram grandes e o desafio maior ainda. Para a
maioria dos aliados do governo do presidente José Sarney a situação
era mais confortável, o dia era de festa. Mas, para quem vinha da
jornada de lutas nas ruas, do exílio ou dos cárceres, o medo e a
desconfiança ainda povoavam corações e mentes. Aquele caminho
que se iniciava poderia levar o país ao Estado democrático de direito
almejado ou a uma situação de consolidação do conservadorismo, e
com isso mais dificuldades para as mudanças necessárias.
O dia anterior fora de reuniões tensas e de muitas indefinições.
As articulações e as longas conversas continuaram como que num
reconhecimento do terreno onde se daria a grande batalha; para uns,
tentar assegurar as conquistas de um longo ciclo de lutas, para outros,
LAUREZ CERQUEIRA 123

preservar privilégios. Era hora de colocar em atividade as habilidades


e a força de cada um.
O panorama político era preocupante. Crescia a insatisfação
da população com o governo. A violência explodia no campo e nas
cidades, e os militares espreitavam, com olhos de rapina, todos os
movimentos que ameaçavam a estratégia da “transição”. A perma-
nência do presidente Sarney no governo tornava-se, a partir daquele
momento, incompatível com o momento político do país; os impasses
que se criaram em torno do deputado Ulysses Guimarães, candidato
a presidir os trabalhos de elaboração da nova Carta, ilustram estas
observações. No final do impasse ele acumulou a presidência da
Câmara dos Deputados e da Constituinte, como queria o Planalto.
O espaço democrático conquistado pelo movimento nacional pela
democratização do país necessitava de cuidados, eram constantes as
ameaças de retrocesso.
Nas reuniões que precederam a instalação do Congresso Consti-
tuinte, o campo da esquerda chegou à conclusão de que a “transição
lenta, gradual e segura”, conduzida pelos setores aliados aos milita-
res, dava sinais claros de que havia risco de o Brasil vir a ter uma
Constituição muito aquém das necessidades reais. Os conservadores
eram maioria no Congresso e o campo chamado “progressista”, que
agregava forças dos partidos da esquerda e de parte do centro era,
numericamente, bastante inferior. Havia uma convicção generalizada
de que a Assembleia se inclinaria por construir não uma ordem de-
mocrática, mas um regime, uma ordem jurídica, para dar cobertura
ao modelo econômico e político vigente. A saída vislumbrada por esse
grupo seria garantir, no regimento da Constituinte, a participação
direta do movimento social. Sem a pressão popular havia risco de
não se conseguir as conquistas desejadas.
Nos dias anteriores à instalação do Congresso Constituinte,
lideranças partidárias tiveram intensa movimentação e os jornais do
dia apontaram os conflitos do novo quadro político nacional.
124 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

O jornal O Estado de S. Paulo, em extensa cobertura sob o título


“Brasil escreve sua nova Constituição”, trazia a reação dos governis-
tas que queriam ter o controle sobre o processo constituinte. Não
queriam aceitar a participação popular que estava sendo articulada.
Naquele momento, o movimento social era pulsante e ascendente.
Os governistas temiam as pressões dos partidos de esquerda sobre a
Constituinte, que queriam fazer valer suas históricas reivindicações.
O ministro da Justiça do governo José Sarney, Paulo Brossard,
disse em entrevista que a pressão de grupos populares e lobbies sobre
a Assembleia Nacional Constituinte significava “descrença na de-
mocracia representativa.” Na mesma entrevista, ele não conseguiu
esconder o pacto de tutela dos militares sobre o governo Sarney.
Defendeu a manutenção do papel das Forças Armadas na garantia
da ordem interna e que esperava “uma Constituinte para o Brasil de
sempre, partindo do Brasil de hoje”.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira
Alves, que presidiria a sessão de instalação do Congresso Constituinte
naquele mesmo dia, tentava esconder a violência do regime militar.
Em entrevista, comentou: “o Brasil está encerrando um ciclo revo-
lucionário sem revoluções, sem derramamento de sangue, por via da
conciliação”.
O deputado Ulysses Guimarães, na época presidente do PMDB,
impaciente com as articulações para lançar um candidato de oposição
a ele para a presidência da Câmara, que seria o vice-presidente da
República, já que José Sarney ocupara o lugar de Tancredo Neves,
disse, em tom de represália, que não ia aceitar nenhuma disputa,
porque seu nome já havia sido escolhido pela bancada do seu partido,
que detinha a maioria.
O serviço de segurança do Palácio do Planalto chegou a alterar o
roteiro de ida do presidente José Sarney ao Congresso Nacional para
a cerimônia de instalação da Constituinte. O presidente não ia mais
subir a rampa do Congresso, teria de entrar por uma porta lateral do
LAUREZ CERQUEIRA 125

prédio para evitar um possível incidente com o público que estava


em frente, numa manifestação convocada pela Central Única dos
Trabalhadores e outras entidades.
O jornal O Globo estampara extenso editorial na primeira página
com o título “Golpe, não” atacando a proposta, em discussão, de uma
constituinte exclusiva e soberana. Dizia o editorial: “O ingresso do
país na plenitude do estado de direito não pode ser assinalado por
medidas golpistas e casuísmos que consubstanciem atentados à ordem
constitucional vigente”.
O Jornal do Brasil, sob a manchete “Sarney se diz traído e PMDB
recua”, revelava uma declaração ameaçadora do presidente: “A Cons-
tituinte foi convocada para construir uma nova ordem e não para
quebrar a ordem vigente”.
Essas amostras colhidas nos principais jornais do dia da insta-
lação da Constituinte parecem suficientes para demonstrar em que
condições o Congresso Nacional elaboraria a nova carta constitu-
cional do país. Falava-se em mudanças, na conquista das liberdades
democráticas, no “fim da transição democrática”, mas tudo isso sob
o olhar dos generais que tutelavam o governo. Analistas políticos e
personalidades da vida pública comentavam a fragilidade institucional
e o império do chamado “entulho autoritário” ainda vigente, que
ameaçavam a oportunidade de o Brasil vir a ter uma Constituição
que rompesse com o atraso e pudesse contemplar as aspirações da
maioria de sua gente por uma vida melhor. Ao mesmo tempo, os
governistas insistiam em manter presentes o medo e a insegurança.
Tinham microfones e câmeras abertas para darem o tom da “tran-
sição”. Eram frequentes as ameaças de volta dos militares ao poder,
caso a transição não ocorresse nos padrões de “segurança nacional”.
A imprensa revelava as conversas de diplomatas das embaixadas
estrangeiras que, apesar da postura de não ingerência nos assuntos
internos do país, demonstravam apreensão quanto ao curso dos traba-
lhos do Congresso Constituinte. Havia expectativa de os congressistas
126 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

discutirem a dívida externa e a redução dos percentuais dos pagamentos


dos serviços, a legislação que regia os acordos internacionais, a questão
da empresa estrangeira e a reserva de mercado na área de informática.
Nesse clima foi instalado o Congresso Nacional Constituinte. As reu-
niões e deliberações ocorriam em condições extremamente negativas e
desfavoráveis. Começou por não ter aquela autonomia de uma Consti-
tuinte originária e autêntica. Ainda na campanha por eleições diretas,
nutria-se a esperança de uma “Assembleia Nacional Constituinte Livre
e Soberana”, uma reivindicação do movimento de esquerda, mas o que
se conseguiu foi uma Constituinte restrita. A Constituinte devia ter sido
eleita conjuntamente com o presidente da República, uma oportunidade
de discutir abertamente com a população todas as grandes questões
nacionais. Mas o que se fez foi garantir o mandato do vice-presidente
eleito no colégio eleitoral, José Sarney, prorrogado por mais um ano, e
em seguida efetivar as regras da “transição”.
Com a rejeição da proposta de uma Assembleia Constituin­te
exclusiva, com amplos poderes, o período correspondente à elabo-
ração da nova Carta foi marcado pela predominância do Congresso
como polo de poder político, em razão da debilidade do governo
José Sarney. O deputado Ulysses Guimarães tornou-se o principal
articulador político.

Os trabalhadores e a Constituição
Essa fase da “transição” foi considerada, por grande parte dos
analistas da época, como a mais crítica, devido à insegurança que se
tornou presente em relação ao futuro político do país. A “transição” se
prolongou amaciando as tensões políticas e so­ciais­, tentando domesticar
as forças que trilhavam o caminho da ruptura. Enfim, a elite política
conseguiu o que queria, manteve a ordem conveniente a seus interesses.
Esse período da história do Brasil foi exaustivamente analisado
por Florestan numa vasta produção de livros, artigos para jornais e
revistas, entrevistas e palestras.
LAUREZ CERQUEIRA 127

No dia seguinte à instalação do Congresso Constituinte, ele pu-


blicou um artigo intitulado “Os trabalhadores e a Constituição”, na
sua coluna semanal, no jornal Folha de S. Paulo, em tom de denún­cia,
sobre a situação política do movimento dos trabalhadores, a cam-
panha pelas eleições diretas e as tramas que estavam sendo urdidas
pela cúpula do governo para o controle­do processo de elaboração
da nova constituição.
O ano de 1986 fica, pois, na história do Brasil, como o ano de redenção
da ditadura militar. Aproveitando-se dos mesmos meios, os civis abriram
de par em par as portas do tesouro, serviram-se e deixaram que todos os
apaniguados se servissem à plenitude daquilo que, sendo da nação, é nosso,
como se o Brasil sofresse uma socialização às avessas e o inteligente, de
fato, é o que não dá ponto sem nó. A ditadura não desapareceu por com-
pleto, mas deixou, com seus meios­e sua herança, o dilúvio. Só a retórica é
grandiosa. Só ela promete, afirma a felicidade e oferece a todos o reinado
próximo da terra sem males.
(...) O que fazem o governo e os poderosos? Reúnem-se para conspirar, pois
é uma conspiração o que fazem, com toda a transparência, para defender
o que aí está, do mandato sagrado de seis anos do ‘presidente Sarney’ ao
pacto social, à democracia da plutocracia e do imperialismo. Os trabalha-
dores, como classe social, têm dois caminhos a percorrer simultaneamente.
No plano imediato, derrotar essa conspiração. Exercer sobre o Congresso
Constituinte uma fiscalização exemplar e insistente.46

Considerado o mais destacado representante da esquerda no Con-


gresso Constituinte, Florestan fez questão de deixar claro, por meio
de artigos e entrevistas, que estava pronto para o embate, e que não
alimentava ilusões. Percebia que na Constituinte a maioria da nação
não se achava representada. Mas, dizia ele, o Congresso poderia ser
um espaço importante para levar o debate sobre os dilemas históricos
do país ao extremo e uma oportunidade de expor as contradições do
projeto da elite.

46
Folha de S. Paulo, 2/2/1987.
128 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Desobediência proletária
Naquele momento os conflitos que se afloravam em diversos
setores da sociedade tendiam a evoluir para uma situação de cir-
cunstâncias imprevisíveis. Os empresários falavam em movimento
de desobediência civil, numa demonstração de reconhecimento da
força das manifestações públicas e da rebelião que se espalhava nos
centros urbanos e no campo. Indagado sobre isso, Florestan respon-
deu: “Lenin dizia que quando os de cima não logram mais mandar,
os de baixo se recusam a obedecer”.
Para ele, não havia propriamente uma desobediência civil no
país e, sim,
uma desobediência proletária, os trabalhadores estavam rejeitando uma
ordem existente. (...) A desobediência civil do tipo burguesa está identifi-
cada com o aperfeiçoamento da ordem democrática burguesa, enquanto
que a desobediência dos trabalhadores quer implodir essa ordem, e isso é
um elemento recente na vida política brasileira.

Essa recusa coletiva, segundo ele, eclodia nos centros urbanos e


no campo porque os trabalhadores não estavam mais aceitando “a
exploração capitalista. (...) Os trabalhadores não sabem o que querem,
mas sabem o que não querem.”
A crise econômica e social havia se agravado com o fracasso do
Plano Cruzado, editado pelo governo da “nova República”. O plano,
que congelou os preços até a realização das eleições, rendeu uma
avalanche de votos aos candidatos dos partidos aliados do governo
Sarney, em especial, aos do PMDB e PFL. A classe média, princi-
palmente, que fora convocada pelo presidente José Sarney para ser
fiscal dos preços, revoltou-se com o desabastecimento de produtos de
primeira necessidade nos supermercados e com a cobrança de ágio
dos fornecedores. A inflação voltou com força e os trabalhadores, que
amargavam perdas salariais, desencadearam uma onda de protestos
e reivindicações, criando uma situação explosiva e a iminência de
desestabilização da “transição”.
LAUREZ CERQUEIRA 129

Uma oportunidade rara para a burguesia


Analisando aquela situação, Florestan apontou a contradição que
vivia o governo.
A nossa burguesia está se mostrando impotente para lidar com os proble-
mas-chave do país. Os problemas brasileiros são insolúveis porque essa
burguesia se alia ao grande capital estrangeiro e fica sem meios materiais
para resolver as grandes questões nacionais: o excedente econômico é
drenado para o exterior não só na forma de juros da dívida, mas também
através de outros mecanismos. (...) Não há como resolver o problema da
descontração de renda nas condições de acumulação capitalista no Brasil
hoje, porque o que conta é a reparação do grande capital nos centros
imperiais.47

Florestan considerava a Constituinte “uma oportunidade rara


para a burguesia”, dizia. As condições eram ideais para se tentar ame-
nizar as distorções do “capitalismo atrasado” vigente no país, antes
que fosse sucumbida pela crise econômica e pela barbárie. Para ele,
com esse dilema e a fragilidade do governo restava a Constituinte.
Dizia que a conciliação em curso era conservadora e repetia a tradição
histórica, porque levava em conta apenas os interesses dos setores do
poder econômico.
Há uma tradição brasileira de manipulação que, nesses momentos, sempre
conjuga conciliação e reforma. Mas nunca há reforma, é sempre conciliação
conservadora. Há muita retórica, os que detêm o poder fazem concessões
e, assim, respiram e seguram as rédeas do poder. (...) Conciliam-se, em
nome da integração nacional, os interesses dominantes, que levam em
conta apenas a nação dos poderosos. As outras, compostas pelos pobres,
indígenas e escravos, não formam opinião pública, não falam, não têm
peso e voz na sociedade civil, não existem. Os poderosos é que recom-
põem a ordem e acusam as outras nações de ameaçarem a ordem, serem
anarquistas e subversivos. A conciliação sempre indica a impotência dos
setores dominantes em construir um projeto estrutural de reforma. Os

47
Jornal do Brasil, 8/2/1987.
130 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

trabalhadores, proletários urbanos, posseiros, grileiros, boias-frias, todas


essas pessoas aviltadas estão fazendo uma revisão mais profunda do que
os que tendem a ver a história pela ótica capitalista.48

Logo no início dos trabalhos da Constituinte, Florestan percebeu


que a força da esquerda aliada aos setores chamados “progressistas”
era pequena. Para fazer frente aos conservadores a alternativa foi
criar canais de comunicação entre os movimentos organizados com
o núcleo heterogêneo formado pelo PT, PCdoB, PSB, PCB, parte
do PMDB e PDT.
Nos primeiros dias de trabalho no Congresso ele constatou o que
havia imaginado antes de tomar posse. Os representantes dos inte-
resses dos proprietários de terra, dos grandes empresários (industriais
e comerciais) e dos banqueiros tinham muita força e não estavam
alinhados com a democratização profunda da sociedade.
O nosso capitalista é um capitalista ainda submetido ao imperialismo,
nossa burguesia é uma burguesia covarde, nesse plano, e ela é aliada ao
grande capital estrangeiro, ela é serviçal do imperialismo, e, portanto, ela
não tem coragem de enfrentar as grandes revoluções sociais que o capi-
talismo permite. E isso cria um problema grave, porque esse é o espaço
histórico de uma Assembleia Nacional Constituinte; nas condições exis-
tentes no Brasil, uma Assembleia Nacional Constituinte é uma rea­lidade
burguesa. Se a burguesia recua, resiste, então, a capacidade de avanço no
Parlamento acaba sendo muito limitada.49

Com a inclusão, no regimento interno do Congresso Constituinte,


do dispositivo que possibilitou a apresentação de emendas populares,
os partidos políticos passaram a interagir diretamente com as organi-
zações da sociedade civil. Isso amenizou a angústia de parlamentares
como Florestan que precisava do respaldo popular para avançar na
luta política em busca das conquistas necessárias.

48
Idem.
49
Jornal O Corneta, ano I, n. 17, 1ª quinzena de março de 1987.
LAUREZ CERQUEIRA 131

Florestan andava desapontado com o Congresso depois do blo-


queio à aprovação da emenda das diretas e da negação da Constituinte
exclusiva, reivindicada pelo movimento político da época. Quando
foi convidado por Lula para se candidatar a deputado constituinte
ele imaginou as dificuldades que iria enfrentar. Mas compreendia
a importância do espaço político do Congresso para se debater os
problemas do país naquela fase. Por outro lado, ajudava a viabilizar
o Partido dos Trabalhadores, que atravessava um momento difícil
sob o ataque cerrado dos setores remanescentes do regime militar,
incomodados pela presença no cenário político de um partido que
se dedicava à organização dos de baixo, a dar voz aos movimentos
pela democratização do país, contra a crise econômica e demonstrava
insubordinação à ordem vigente.
O melhor seria que me tivessem credenciado para acompanhar em Bra-
sília o processo político. Como comentarista, intelectual engajado, eu
seria mais útil, mas não poderia rejeitar o apelo que me foi feito: o PT
estava sob um processo de pressão, tentavam criar condições artificiais
para jogá-lo na ilegalidade – o partido era responsabilizado por um as-
salto a banco em Salvador e por mortes na greve de Leme. Além disso,
candidatei-me por coerência pessoal para defender, no Congresso, as
posições que sempre preguei.50

A ordem social competitiva absorve reformas e revoluções


No início dos trabalhos Florestan ficou impressionado com o Con-
gresso, dizia que era pior do que ele imaginava. Mas, dizia também
dispor de uma oportunidade privilegiada para observação e participação
do processo constituinte, de perto e por dentro. “O Congresso é um
laboratório extraordinário para se conhecer o Brasil através das entra-
nhas do poder. Tenho o Brasil à mão, posso analisá-lo melhor”, dizia.
No seu livro Pensamento e ação, ele confirmou isso.

50
Jornal do Brasil, 8/2/1987.
132 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Participar do Parlamento e do governo é importante para desencadear


reformas sociais bloqueadas pelas classes proprietárias. A ordem social
competitiva absorve reformas e revoluções – como a reforma agrária, a
reforma urbana, a reforma educacional, a descolonização, a revolução
nacional, a reforma democrática etc. – que reduzem ou modificam os
conteúdos e a forma da dominação de classe e da hegemonia ideológica da
burguesia. Essa estratégia prolonga a duração e a profundidade da revolu-
ção burguesa, mas não elimina a ordem social competitiva. Ao contrário,
as classes proprietárias aprendem a usar melhor as instituições-chave da
ordem social competitiva, adotam novas técnicas pelas quais combinam
melhor (em sentido autodefensivo e ofensivo) promessa e repressão e são
impelidas a formar elites mais competentes e duras no manejo dessas
técnicas e na reprodução da ordem existente.51

Parlamentar dos mais assíduos do Congresso comportava-se


como um aluno disciplinado. Chegava na hora certa da sessão, sen-
tava na mesma cadeira e mesmo com o Plenário esvaziado ele ouvia
atentamente todos os pronunciamentos. Às vezes procurava o orador
para conversar sobre o tema do discurso. Tentava assimilar os com-
plicados artifícios e as regras “não escritas” praticadas no Congresso
e dizia que sua preocupação maior, entretanto, era não ficar isolado
no nicho do PT.
No início das sessões, o presidente mandava soar a campai­nha,
para chamar os parlamentares ao Plenário. Era um barulho chato,
que a todos irritava e ele não se conformava com o fato de os par-
lamentares saberem do horário das sessões e não comparecerem na
hora estabelecida. Certo dia, procurou o então presidente, Ulysses
Guimarães, para pedir a desativação do sistema de chamada ao Ple-
nário e disse a ele:
“Presidente, quando ouço essa campainha eu me sinto um boi,
parece que somos uma boiada que está sendo arrebanhada para um

51
Fernandes, F. Pensamento e ação – o PT e os rumos do socialismo. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
LAUREZ CERQUEIRA 133

curral ao toque de um berrante. Como podem os parlamentares


da nação serem tratados dessa forma?” Ele deu uma gargalhada e
respondeu:
“Professor, o senhor é uma pessoa surpreendente. Duvido que
outro parlamentar tenha se atentado para isso. O senhor tem toda
razão. Mas, infelizmente, sem essa campainha o Plenário desta Casa
não funciona”.
Nada escapava aos olhos e ouvidos de Florestan. Ele ouvia todos os
discursos e não se conformava com a falta de atenção dos deputados
às falas dos colegas. Considerava os debates muito superficiais, apesar
das questões pautadas serem de extrema importância. Mas, para ele,
isso não era motivo para tamanha indiferença.
Na convivência acabou confirmando o que imaginara: a maioria
dos parlamentares era despreparada. Poucos intelectuais­tinham
condições de discutir com profundidade os problemas do país. No
início isso o impressionou muito. Afinal, ele era um acadêmico
com vocação social que estava ali cumprindo uma função um tanto
diferente daquela que se dedicara ao longo de sua vida, num am-
biente de comportamentos diferentes. Observava que nas relações
predominavam a esperteza e o oportunismo, o que muitas vezes
o deixou perplexo. Algumas situações o incomodaram bastante,
rendeu muitas queixas aos companheiros mais próximos, mas não
a ponto de desanimar.
Cumpriu suas atribuições com a mesma disciplina, dedicação e
determinação que o fez um dos mais brilhantes sociólogos do país.
Nas reuniões da bancada do partido e de grupos temáticos discutindo
os temas que mais o interessavam, suas intervenções eram marcadas
por reflexões profundas e pela demonstração de uma capacidade inte-
lectual incomum. Reclamava do pouco tempo destinado aos debates
nas reuniões, que não permitia uma análise adequada. Participou de
praticamente todas as manifestações das categorias dos trabalhadores
que iam a Brasília pressionar o Congresso Constituinte.
134 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Numa manifestação de trabalhadores rurais, em frente do Con-


gresso, ele tirou a gravata, jogou para o público e fez um emocionante
discurso. Sua satisfação de estar participando diretamente naquele
movimento renovava suas energias e sua esperança.
Deu atenção especial ao movimento nacional pela educação pú-
blica e gratuita, participando ativamente da articulação do Fórum
Nacional da Educação, que se transformou na base de apoio para
garantir as reivindicações do movimento de professores e estudan-
tes. Florestan não só foi o porta-voz do movimento no Congresso
Constituinte, mas também um militante ativo que se desdobrou em
discursos, artigos de combate nos jornais e palestras nos mais variados
fóruns em viagens pelo país.
No seu primeiro pronunciamento, dizendo considerar-se “um
noviço”, admitiu estar vivendo uma experiência nova tendo que
assimilar “as complicadas artimanhas e regras não escritas” dos po-
líticos profissionais: “eu talvez seja o calouro mais velho desta Casa e
sinto-me honrado em estar nesta condição de calouro aos 66 anos”.
Situando historicamente o Congresso, disse que nada tinha a ver
com os anteriores, pelo momento atípico e por ter-se juntado, pela
primeira vez, as oito ou dez nações que o Brasil abriga. Apesar de não
se assustar com a estrutura de poder instalada, alertou em seu discurso:
Não se pode afastar do horizonte a possibilidade de ocorrer o mesmo que
se deu em 1946 e em 1964. (...) Não alimento qualquer sentimento de
repulsa pelos militares e nem os discrimino. (...) O pentagonismo não é
um fenômeno brasileiro. (...) Quase todos os países do mundo passaram
por esse processo social. (...) Os militares foram vítimas de um tipo de
socialização que os deformou e os desfocou de suas funções.

A Constituição inacabada
Florestan gozava de respeito intelectual e moral não só dos seus
companheiros da esquerda, mas também de muitos parlamentares
adversários históricos, como Jarbas Passarinho, Roberto Campos,
LAUREZ CERQUEIRA 135

Delfim Netto, entre outros. Era tratado com cordialidade. Ele encan-
tava as pessoas com sua inteligência e simplicidade. Era um homem
gentil, generoso, de fala branda e muito discreto. Quando andava
pelas dependências da Casa, políticos e funcionários paravam para
cumprimentá-lo, sempre com satisfação, talvez pela oportunidade de
conviver com um parlamentar tão especial.
Apesar dos discursos dele, na maioria das vezes, provocar um raro
momento de silêncio no Plenário, emudecendo os parlamentares mais
tagarelas, e de suas intervenções nas reu­niões e seus artigos publicados
nos jornais serem uma referência para o debate, ele percebia que o
conservadorismo parecia soldado como um amálgama impenetrável.
Isso o angustiou muito, mas ele se manteve firme. Sabia que a força
para as transformações do país não estava ali, mas nas ruas, nas
mobilizações da população, que poderiam repercutir no Congresso
e alterar o resultado do jogo.
No começo, sua presença no Congresso despertou expectativas,
como se toda bagagem que trouxera, sua história e o poder de co-
municação de que dispunha fossem exercer influên­cia definidora do
rumo dos trabalhos. Essa expectativa ocorreu principalmente com
os parlamentares que não conheciam bem a cultura política da Casa,
seus movimentos envolventes e dissipadores de conflitos.
Florestan era daqueles que conhecia bem o segredo das palavras,
seu poder de construir e destruir. Seus textos e pronunciamentos ti-
nham o refino de quem escolhia com cuidado a palavra de significado
certeiro e o seu lugar adequado no discurso.
A responsabilidade do educador comprometido com a transfor-
mação da sociedade era notável na sua entrega apaixonada às causas
que abraçara como justas. Sustentava suas teses com vigor nos mais
variados foros e tinha nos textos que produzia uma força incomum,
sempre com explícita parcialidade socialista e revolucionária.
Não só os discursos de reflexões profundas marcaram a presença
de Florestan no Plenário, mas alguns episódios reveladores de sua
136 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

coragem intelectual e física fazem parte da história de sua passagem


pelo Congresso Nacional.
Certo dia, ele estava discursando no microfone, que fica na
primeira fila dos apartes, quando não foi suficientemente entendido
por um deputado, que do outro lado ocupava a tribuna. O deputado
não lhe deu o tratamento devido, fez-lhe algumas provocações e o
desacatou. Florestan abandonou o discurso que fazia e desafiou o
parlamentar. Disse: “Se V. Exa. quiser, podemos resolver isso de outra
maneira. Vamos lá para fora, não sou homem de engolir provocações.”
Furioso, Florestan insistia no microfone. Foi quando o deputado
Vladimir Palmeira, assustado com o que via, interveio e conseguiu
retirá-lo daquela turra.
Noutra ocasião, estava o então deputado Roberto Campos dis-
cursando na tribuna, fazendo uma importante reflexão sobre o Brasil.
Ninguém prestava atenção. Os poucos deputados que havia em Plená-
rio estavam a fazer balbúrdia. Florestan tentava ouvir o discurso, mas
não conseguia, por causa das conversas paralelas e das gargalhadas
de alguns parlamentares que se aglomeraram em sua frente. Isso o
irritou profundamente. Inconformado, ele se levantou da cadeira e
ali, sem microfone, começou a bradar por silêncio. Os deputados
pareciam não ouvi-lo. O deputado Roberto Campos percebeu a cena
e parou de falar. Em seguida os parlamentares deram conta do que
estava ocorrendo e Florestan, ainda em pé, iracundo, deu uma bronca
neles. Disse: “Os senhores me desculpem, eu posso não concordar
com o deputado Roberto Campos, temos divergências conhecidas,
mas tenho o direito de ouvi-lo, ele é um homem inteligente e merece
o respeito de todos nós”.
Imediatamente fez-se silêncio no Plenário, alguns deputados
atenderam seu apelo, outros saíram para conversar noutro lugar e o
deputado Roberto Campos continuou seu pronuncia­mento. Finali-
zado o discurso ele desceu a escada que dava acesso à tribuna e foi
cumprimentar Florestan pela sua atitude. Esse episódio os aproximou
LAUREZ CERQUEIRA 137

e durante os trabalhos, tanto da Constituinte quanto depois, no


exercício do seu segundo mandato, se encontravam no Plenário ou
nas comissões técnicas, conversavam, mas não chegaram a se visitar
nos respectivos gabinetes. Mantiveram uma relação respeitosa, sem
entrar no mérito das grandes questões, pois o abismo político entre
eles era enorme. Nesses breves encontros, trocavam impressões sobre
o Congresso Nacional e sobre a política em geral, nada mais que isso.
Uma aproximação semelhante ocorreu com o ex-senador e
ex-ministro da Educação dos governos militares, Jarbas Passari-
nho. Conta o ex-senador que não o conhecia pessoalmente. Ficou
impressionado quando o ouviu pela primeira vez na tribuna. Ele
lia seus artigos na imprensa, sabia das suas posições políticas, mas
nunca o tinha visto discursando. Florestan estava fazendo um
pronunciamento sobre a reforma agrária marcado pela erudição
na abordagem, quando Jarbas Passarinho entrou no Plenário. Logo
percebeu algo diferente, os parlamentares estavam em silêncio pres-
tando atenção no que dizia o orador. Sentou-se na bancada mais
próxima e ficou ali meio que hipnotizado pelas palavras. Quando
Florestan encerrou o discurso, Jarbas Passarinho se levantou e foi
cumprimentá-lo. Conversaram um pouco sobre o que ele ouviu e
a partir desse momento passaram a se encontrar no Plenário. Às
vezes sentavam lado a lado e conversavam bastante sobre os assun-
tos que estavam sendo debatidos, sempre com muita cordialidade.
O ex-senador disse certa vez não acreditar que Florestan fosse um
revolucionário “leninista”: “Como pode um homem tão puro, com
tamanha erudição e fineza no trato com os adversários ser um re-
volucionário radical, como dizem?”
Com o ex-senador José Paulo Bisol foi diferente. Ele era o principal
interlocutor de Florestan no Congresso. Tornaram-se amigos, tanto
que no Plenário era comum vê-los sentados lado a lado em conver-
sas animadas. A admiração era recíproca. Eram dois intelectuais de
altíssimo nível, marxistas, de certa forma inadequados àquele meio
138 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

inóspito à interpretação do Brasil. Ficavam impressionados com o


que viam e ouviam no Plenário. Visitavam-se, discutiam, mas parti-
cularmente não se sentiam motivados o suficiente para participar de
certos debates naquele espaço. O Congresso ainda estava impregnado
do ranço da ditadura militar, os parlamentares da esquerda eram mal
vistos e muitas vezes eram alvos de zombaria. Florestan, como era
“da esquerda do PT”, classificação de que ele não gostava, enfrentou
dificuldade, não só nas discussões do Plenário e das comissões, mas
também na própria bancada do partido.
O deputado Lysâneas Maciel foi outro parlamentar que se tornou
amigo e admirador. Tanto que foi convidado a escrever o prefácio de
um dos seus livros A Constituição inacabada – vias históricas e signi-
ficado, uma coletânea de textos sobre o processo constituinte. Ao se
referir a Florestan, Lysâneas cita trecho de um artigo seu, publicado
no jornal Folha de S. Paulo. Disse:
Pessoalmente estou profundamente impressionado com a atuação de um
parlamentar do PT, que chegou pela primeira vez ao Congresso e que
contribuiu para a dignificação da Casa e da atividade política em geral.
Trata-se do Professor Florestan Fernandes. Sempre soubemos de sua ati-
vidade como professor da USP, no período da ditadura, quando jamais
abriu mão de sua independência e nunca abandonou o compromisso que
tinha com os colegas e alunos nos momentos mais dramáticos e perigo-
sos daquela época. Para ele, não havia separação entre seu compromisso
de cientista e a responsabilidade moral para com a sociedade. Esta foi a
tônica de sua trajetória, reconhecida por todos os que acompanharam de
perto sua atuação.52

Defensor intransigente do ensino público e gratuito


Com os conservadores acontecia algo intrigante. Sua condição
de intelectual e sociólogo de renome, frisada nas reuniões­, funcio-

52
Folha de S. Paulo, 9/8/1988.
LAUREZ CERQUEIRA 139

nava muitas vezes como uma forma velada de tentar neutralizá-lo.


Ele percebia, e em muitos momentos desfazia esse jogo com tiradas
irônicas. Os parlamentares faziam questão de ouvi-lo quando tinham
de tomar decisões sobre a educação, ciência e tecnologia, cultura e
outros temas estudados por ele. Nas discussões mais importantes,
o deputado Ulysses Guimarães costumava recomendar: “Antes de
qualquer decisão, consulte o Florestan. Ele sempre tem algo impor-
tante a dizer sobre esses assuntos”. Os parlamentares o procuravam,
discutiam, mas o conservadorismo plasmava quase tudo e deixava
uma margem muito pequena para as mudanças.
Como Florestan era um apaixonado pela realidade brasileira,
dialogava, curiosamente, com os representantes de cada estado
sobre os problemas trazidos por eles, como se aproveitando de uma
oportunidade rara.
Nos debates ele se destacava como um rigoroso defensor dos traba-
lhadores, dos humildes e dos temas com que mantinha compromisso
desde sua militância na academia e na política. A educação, a ciência e
tecnologia, a universidade, os problemas dos negros, o movimento dos
trabalhadores, as organizações políticas, os aspectos mais variados da
vida social, política e cultural do país eram exaustivamente analisados
com objetividade em discursos no Plenário e nas comissões técnicas,
nos artigos e entrevistas para a imprensa.
Nutria a esperança na revolução educacional como poucos, queria
a educação pública, laica, gratuita, de boa qualidade, acessível a todos.
Considerava a educação o mais importante instrumento de mudança
dos padrões sociais, de civilização, de consolidação da identidade
cultural e da conquista da cidadania.
Florestan foi um defensor intransigente do ensino público e
gratuito. Sua preocupação com o destino do ensino superior e da
pesquisa científica era manifestada em todas as oportunidades em
que esse tema era colocado em questão. Procurou sempre alertar sobre
os riscos que o Brasil corria, caso não dispusesse de universidades
140 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

capazes de contribuir de forma autônoma na construção da soberania


nacional, do desenvolvimento e da civilização.
Logo após a instalação da Constituinte, na primeira reunião da
bancada do PT, Florestan manifestou seu desejo de fazer parte da
subcomissão que tratava da educação, mas se deparou com outros
pretendentes. Ele alegou seus laços históricos, seu compromisso com o
movimento e sua dedicação ao longo de toda sua vida à luta pela edu-
cação pública. Mas isso parece não ter sido suficiente para convencer
os colegas de que seu lugar era na Subcomissão de Educação. Com o
impasse criado, viu sua chance de se dedicar a esse tema escorrer pelo
ralo. Tomado por um ímpeto, por se sentir preterido, chegando em
casa num final de tarde foi logo dizendo para dona Myrian: “Vamos
arrumar as malas, vamos embora, vou renunciar ao meu mandato.
Já que eu não sirvo para tratar da educação na Constituinte não devo
servir para mais nada. Não tenho o que fazer aqui”.53
Estava indignado e decidido. Dona Myrian tentava acalmá-lo,
mas ele não se conformava. Enquanto conversava com ela e telefonava
para algumas pessoas para tratar do assunto, bateram à porta. Era
Lula, na época líder da bancada do PT na Constituinte, e queria con-
versar com ele para tentar demovê-lo da ideia de desistir do mandato
e resolver o problema da indicação para a Subcomissão de Educação.
Conversaram bastante e a situação foi contornada. Florestan ficou
como titular da Subcomissão de Educação, Cultura e Esportes.
O trabalho da Constituinte começou com as subcomissões temá-
ticas, que recebiam e debatiam as emendas populares, encaminhadas
pelas entidades civis, as propostas dos parlamentares e as contribuições
colhidas nas audiências públicas. Encerrada a primeira fase, passava-
-se à segunda, a da comissão temática, e assim, até a Comissão de
Sistematização. Florestan representou o PT em todas as fases. Na

53
Myrian Rodrigues Fernandes (entrevista para este livro, nov/2003).
LAUREZ CERQUEIRA 141

Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes; na da Ciência


e Tecnologia e da Comunicação; como suplente da Subcomissão de
Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança; na Comissão da
Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições.

Um militante revolucionário não deve se deixar cooptar


Na bancada do PT ocorreram disputas ásperas. O partido
emergira das lutas de contestação nas ruas, estava acostumado
a denunciar e a marcar posições no Parlamento. Sentia dificul-
dade em negociar. Porém, o momento era outro, a bancada era
expressiva e tinha pela frente uma constituição a ser feita. Marcar
posição apenas não fazia mais sentido. Era fundamental negociar
para não perder possíveis conquistas nas votações e deixar que
os conservadores fizessem a Carta. Essa novidade na vida do PT
provocou acalorados debates e uma mudança radical da prática
política no Parlamento.
O ex-líder da bancada do PT, Plinio Arruda Sampaio, diz ter
boas recordações das discussões e que não se conforma com o fato
de ter convivido com Florestan sem conhecer amplamente sua obra.
Disse que Florestan não se contentava com análises superficiais, fazia
questão de elevar o nível dos debates com exposições instigantes.
Deixava todos estimulados para enfrentar os desafios.
Ele diz guardar como um tesouro um ensinamento de Florestan,
que o marcou profundamente, quando a bancada se viu às voltas
com o dilema entre marcar posição ou negociar. Disse Florestan:
“Um militante revolucionário não deve se deixar cooptar. Não deve
se deixar liquidar. Deve trazer vitórias para o povo”.
Lembra Plinio que, no início, ele percebeu a dificuldade de Flo-
restan para se adaptar ao trabalho. Mas não demorou muito para que
ele compreendesse os movimentos do Parlamento. Florestan viveu
situações difíceis quando esteve nas mesas de negociação. Numa
reunião com deputados que representavam interesses dos donos de
142 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

escolas privadas e confessionais, as negociações foram suspensas


porque ele não abria mão das suas posições.
Naquele impasse, procurou Lula para discutir o assunto e na
conversa ele continuava inflexível, tentava convencê-lo de que as
propostas que defendia eram históricas, por isso não admitia recuar.
Aí Lula, com muito jeito, ponderou. Disse a Florestan que havia uma
distância entre o que ele desejava e o que se poderia conseguir. Pediu
a ele que voltasse a conversar com os negociadores para definir os
avanços que pretendia conseguir. Foi quando Florestan percebeu que,
em vez de se manter irredutível e perder tudo, teria de ceder alguns
pontos para ganhar outros, ou seja: “trazer vitórias para o povo”.
Essa experiência deixou ainda mais claras para ele as limitações
do Parlamento. As orientações e o apoio de Lula foram decisivos para
as conquistas. Florestan costumava dizer que Lula foi seu mestre em
negociação e que havia aprendido muito com ele.
Das divergências ocorridas na bancada, as que envolviam interes-
ses da Igreja eram as mais delicadas. Nos temas controversos, como
aqueles relativos à separação da Igreja do Estado e do indivíduo do
Estado (eutanásia, aborto, autonomia do corpo, entre outros), verba
pública somente para escola pública, ele e seus aliados enfrentaram
um duro debate e não conseguiram reverter a tendência do campo
alinhado às teses da Igreja. Derrotado, ia ao Plenário e votava de
acordo com as decisões da bancada. Vale ressaltar que Florestan
cumpriu com fidelidade as decisões da direção do partido. Dispensou
a autoridade moral que tinha sobre os companheiros e desfrutou do
respeito­de todos.
Num artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, analisou a
posição da Igreja em relação à defesa do ensino privado e pago. Não
deixou que suas convicções permanecessem intramuros, no âmbito
da bancada.
Aliado aos que combateram a ditadura, a pobreza, a opressão dos perse-
guidos e oprimidos, agente de belas páginas nos combates pelos indígenas
LAUREZ CERQUEIRA 143

e pela reforma agrária, com mártires incontáveis, e dos que criaram o


desenvolvimento dialético da pedagogia dos oprimidos e da teologia da
libertação, a Igreja Católica não perdeu a outra face reacionária e obscu-
rantista, a vocação de ser um império dentro do Estado. (...) a Convenção
Batista Brasileira dirige várias instituições educacionais as quais não rece-
bem nenhuma verba pública. É uma questão de princípio fundamental. (...)
Esse é o princípio correto. É preciso deixar o ensino público desenvolver-se
e tornar-se acessível a todos e melhorar a qualidade. Essa é a alternativa
democrática. A outra equaciona um Estado prebendário, que reparte
sinecuras com os poderosos e com as instituições fortes.

Florestan apresentou 96 emendas à Constituinte. Dessas, 34


foram aprovadas.
A educação como direito inalienável do cidadão e dever do Estado,
visando o desenvolvimento pleno da personalidade humana, à aquisi-
ção de aptidões para o trabalho, à formação de uma consciência social
crítica e à preparação para a vida em uma sociedade democrática foi
proposta por Florestan, nestes termos, e aprovada com a redação um
pouco diferente, mas com a preservação do seu mérito.Uma outra,
dele, que foi aprovada, garante o atendimento em creches e pré-escolas
a todas as crianças de zero a seis anos de idade.
A questão das verbas públicas só para escolas públicas foi defendi-
da por ele como um dos pontos das funções do Estado democrático,
fundamental para a promoção, expansão e aperfeiçoamento do ensino.
Essa proposta foi derrotada em todas as fases pelos conservadores.
Florestan, por meio de uma emenda de sua autoria, garantiu que
o ensino, em qualquer nível, teria que ser ministrado em português.
Na mesma emenda assegurou direito igual às nações indígenas e o
ensino ministrado em suas línguas nativas.
A autonomia universitária, uma das aspirações da comunidade
acadêmica, correspondente a autonomia didático-cien­tífica, adminis-
trativa e financeira, associa o ensino à pesquisa, à extensão e – o mais
importante – à democratização efetiva da universidade, através da
autogestão e do estabelecimento de critérios públicos e transparentes,
144 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

com a participação dos docentes, alunos e funcionários. A proposta


apresentada por Florestan, nesses termos, foi aprovada e incorporada
ao texto constitucional.
Mais uma de suas preocupações com os setores mais pobres está
na proposta que iguala o direito ao lazer ao direito à educação desde
o nascimento. A pouca tradição, no Brasil, da cultura do lazer faz
com que os setores mais pobres tenham raras oportunidades de recre-
ação, principalmente aquelas consagradas pela cultura popular para
corrigir essa carência na formação da personalidade. Esta proposta,
inicialmente apresentada na Subcomissão da Família, do Menor e do
Idoso, foi aprovada no mérito, ficando a parte relativa à gratuidade
do ensino para crianças de até seis anos de idade em creches e pré-
-escolas no capítulo da Educação.
Florestan conseguiu aprovar uma emenda que assegurou aos
Estados e Distrito Federal a vinculação de parcelas das receitas or-
çamentárias a entidades públicas de fomento à pesquisa científica e
tecnológica para o desenvolvimento dessas áreas. Uma outra de sua
autoria, também aprovada, incumbe o Estado da promoção do desen­
volvimento científico, da autonomia e capacitação tecnológica. Dá
prioridade à pesquisa científica básica, desenvolvida com autonomia,
e direciona a pesquisa tecnológica para a solução dos grandes proble-
mas de âmbito nacional, regional e local. Assegura o compromisso
do Estado com a valorização dos recursos humanos envolvidos na
pesquisa científica e tecnológica.
Tentou quebrar o monopólio privado dos meios de comunicação,
principalmente dos grandes grupos, pertencentes às oligarquias, com
uma emenda que retirava do presidente da República e do ministro
das Comunicações a competência de outorgar concessões de canais
de rádio e TV, transferindo para o Congresso Nacional, tendo como
órgão auxiliar o Conselho Nacional de Comunicação. Inicialmente
essa proposta foi atropelada pelo grupo denominado “Centrão”, que
representava os interesses dos donos dos impérios de comunicação.
LAUREZ CERQUEIRA 145

No final, foi feita uma negociação e o dispositivo constitucional ficou


com uma redação diferente, de forma a preservar os grandes grupos.
O direito ao décimo terceiro salário, uma reivindicação histórica
dos aposentados e pensionistas, também foi objeto de uma emenda de
Florestan. A aprovação dessa proposta rompeu com a discriminação
sofrida pelos idosos. Trata-se de uma conquista de valor inestimável
para os trabalhadores.
A discriminação aos filhos adotivos ou a filhos nascidos fora do
casamento não acontecia apenas no nível jurídico. No intuito de pro-
curar resolver essa questão, Florestan conseguiu a aprovação de uma
proposta, de sua autoria, com a seguinte redação: “Os filhos, havidos
ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discrimi-
natórias relativas à filiação”. Essa proposta resolveu um problema de
muitos, como ele, que desde criança conviveu com a discriminação,
pelo fato de ter nascido de uma relação fora dos padrões familiares
tradicionais.
No Congresso Nacional, Florestan foi um elo de ligação entre a
bancada e o movimento nacional pela educação pública e gratuita.
Recebeu e deu atenção especial aos professores, estudantes e militantes
de outros setores interessados na discussão das propostas relativas
à educação. Por delegação da bancada, coordenou a ação política
sobre a questão educacional e cultural em sintonia com as decisões
do partido e seu programa.
Enfrentou o lobby das escolas privadas, denunciou a concepção
mercantilista do ensino e mostrou que não apenas rendiam lucro para
os donos, mas que discriminava, elitizava e não permitia o acesso
aos pobres, principalmente aos negros, afastados da possibilidade de
ascender socialmente através da educação.
Entre outros temas, Florestan votou contra a pena de morte, o
mandato de cinco anos para Sarney e a legalização do jogo do bicho.
Votou a favor do rompimento de relações diplomáticas com países
146 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

que mantinham política de discriminação racial­, da limitação do


direito de propriedade produtiva, do mandato de segurança coletivo,
da legislação do aborto, da estabilidade no emprego, da remuneração
50% superior para o trabalho extra, da jornada semanal de 40 horas,
do turno ininterrupto de seis horas, do aviso prévio proporcional, da
pluralidade sindical, da soberania popular, do voto aos 16 anos, do
presidencialismo, da nacionalização do subsolo, da estatização do
sistema financeiro, do limite de 12% ao ano para os juros reais, da
proibição do comércio de sangue, da criação de um fundo de apoio
à reforma agrária, da anistia aos micro e pequenos empresários e da
desapropriação da propriedade produtiva.
Promulgada a Constituição em outubro de 1988, Florestan se
voltou para duas tarefas grandiosas. Era preciso cuidar da elaboração
da lei de Diretrizes e Bases da Educação e da campanha eleitoral
à presidência da República, a primeira depois de duas décadas de
ditadura militar, desta vez com um operário candidato.

O desafio educacional
A discussão da LDB teve início em dezembro de 1988. Um processo
difícil, não só por se tratar de uma matéria complexa, mas por envolver
concepções ideologicamente conflitantes sobre a educação no âmbito da
Comissão de Educação. Nesse sentido, Florestan era uma referência para
o movimento dos educadores e para os parlamentares que se alinhavam
com a defesa das posições históricas defendidas por ele. O poderoso
lobby das escolas privadas e confessionais se articulava diretamente com
um grupo de parlamentares na Comissão de Educação. Por outro lado,
Florestan, Octávio Elísio, Zaire Rezende, Arthur da Távola, Ubiratã
Aguiar, Hermes Zanetti, Carlos Luppi, Maria Luíza Fontenelle, Renildo
Calheiros, Raul Pont e outros, trabalhavam em interação com o Fórum
Nacional em Defesa do Ensino Público e Gratuito, formado pela An-
des, UNE, CNTE, Fasubra, CUT e vários sindicatos, que manteve-se
permanentemente em Brasília dando sua colaboração.
LAUREZ CERQUEIRA 147

Florestan conseguiu assegurar a participação dos representantes


do Fórum nas reuniões informais que eram realizadas nas depen-
dências da Casa. Apesar da complexidade da matéria, que muitas
vezes dividia os parlamentares do campo da esquerda, esse respaldo
ajudou a amenizar as pressões do grupo liderado pelo deputado He-
raldo Tinoco, que mantinha posições bastante diferentes daquelas
defendidas pelo Fórum.
Os parlamentares ligados às entidades representadas no Fórum
viveram momentos difíceis nas negociações. Tinham compromissos
assumidos nos debates que precederam a elaboração da LDB e,
naquele estágio, em razão da correlação de forças na Comissão, a
formulação final do projeto produzido pelo Fórum teve de ser fle-
xibilizada. Em sua maioria as propostas consideradas corporativas
foram sacrificadas.
As propostas eram examinadas e negociadas à exaustão. Quando
um dos parlamentares aliados estava em negociação e surgia um
impasse, recorria a Florestan, tal o respeito que tinham por ele.
Ele examinava pacientemente os termos de cada emenda, buscava
alternativa, ouvia as partes interessadas e fixava sua posição. Na hora
em que ele apresentava seus argumentos a confusão se encerrava.
Os parlamentares o ouviam porque suas justificativas tinham um
notável poder de convencimento. Diz o deputado Renildo Calhei-
ros que, se Florestan estava concordando ou discordando é porque
o acordo era razoável, em razão da experiência que ele tinha e o
respeito que todos devotavam a ele. Ele era uma espécie de barreira
que impedia o avanço da privatização do ensino. Nesse momento
ele reconheceu suas habilidades de negociador, até então desco-
nhecidas. Geralmente ia a voto somente quando esgotava todas as
possibilidades de acordo.
Na discussão da LDB, Florestan foi um formulador e uma refe-
rência, que dava segurança e balizava o comportamento dos parla-
mentares ligados à defesa do ensino público e gratuito.
148 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Havia muita polêmica no Fórum e aquilo deixava os parlamen-


tares ligados ao movimento confusos em relação ao resultado das
negociações. Florestan passava certa tranquilidade para os negocia-
dores. Diferentemente de outros parlamentares, que não dispunham
de trânsito com os setores ligados ao ensino privado, ele não tinha
indisposição política nas relações. Arbitrava com maestria os conflitos
mesmo mantendo suas divergências ideológicas no mérito das matérias.
Conseguia discutir com parlamentares dos partidos conservadores,
como Heraldo Tinoco, Ângela Amim, Sandra Cavalcanti, sem maior
resistência ao que ele dizia, porque ele defendia as propostas com a
força do seu conhecimento e, sobretudo, com simplicidade. Procurava
enriquecer a discussão lembrando fatos da sua trajetória, tanto da vida
pessoal quanto da compreensão profunda que ele tinha da importância
do ensino público.
O deputado Renildo Calheiros lembra que Florestan tinha inclu-
sive estatística dos parlamentares que se dedicaram à defesa do ensino
público e que não conseguiram se reeleger. Dizia que ele foi um dos
poucos que conseguiu retornar à Câmara. Mostrava a dificuldade que
os parlamentares ligados a certas lutas tinham com o processo eleitoral.
As pessoas que defendiam o ensino público com afinco não tinham
respaldo desse setor, porque era um setor muito dividido no processo
político eleitoral e acabava se deparando com uma oposição muito con-
centrada daqueles que representavam os interesses do setor da educação
privada. Ele não dizia isso no sentido de desencorajar, mas como alerta,
porque essas pessoas eram importantes no Congresso. Isso aconteceu
com Octávio Elísio, Hermes Zanetti, Maria Luíza Fontenelle, Carlos
Luppi e o próprio Renildo Calheiros.
O espaço criado para as negociações com os representantes das en-
tidades foi fundamental para a conquista de um texto mais próximo do
que almejava os parlamentares do campo da esquerda e do movimento.
No final desse processo foram preservados os principais eixos do
projeto original, apoiado pelo Fórum, que resultou numa lei de visão
LAUREZ CERQUEIRA 149

sistêmica da educação, ficando clara a opção pela escola pública e pela


democratização da educação no Brasil.
O país estava saindo de um regime autoritário e necessitava de uma
LDB que removesse as estruturas que impediam o livre funcionamento
do sistema educacional. O projeto refletiu o esforço pela democracia
que a própria sociedade envidava naquele momento.
Aprovado em todas as Comissões necessárias foi enviado ao
Plenário da Câmara. Sob alegação do excessivo número de emendas
foi devolvido às comissões, mas o principal motivo foi a restrição a
dispositivos que se chocavam com o “espírito conservador” da maioria
dos parlamentares.
Enquanto isso, no Senado, um projeto de LDB, elaborado pelos
senadores Darcy Ribeiro e Marco Maciel, um tanto diferente do que
foi apreciado na Câmara e apoiado pelo governo, ganhou a dianteira.
O projeto da Câmara, além de outras críticas, estava sendo acusado
de corporativista. No final foi aprovado o do Senado. Isso causou a
Florestan uma grande decepção, pois, apesar de bastante debilitado
pela doença, decidira se candidatar ao segundo mandato, em 1990,
para honrar seu compromisso de concluir a elaboração da LDB na
Câmara. Sonhava oferecer ao Brasil uma lei com premissas básicas
para a reforma do sistema educacional, adequada às necessidades da
sociedade.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, desde sua concepção
até sua votação final foi analisada passo a passo por ele em inúmeros
pronunciamentos, palestras, ensaios, artigos para os jornais e em livros
publicados naquele período. Em destaque, O desafio educacional54 e
LDB – Impasses e Contradições,55 um conjunto de textos que reconstitui
o debate sobre a educação no Brasil.

54
Fernandes, F. O desafio educacional. São Paulo: Cortez, 1989.
55
Florestan Fernandes, Câmara dos Deputados, 1993, n. 20.
150 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Uma candidatura do campo da esquerda


Quando a candidatura de Lula à presidência da República foi
lançada no V Encontro Nacional do PT, em 1988, Florestan avaliou,
em vários de seus artigos, a possibilidade da eleição vir a se polarizar
entre um candidato apoiado pelas forças conservadoras, tutoras da
“transição, lenta, gradual e segura”, e uma candidatura do campo da
esquerda, com chances reais de vitória. Nesse campo, a candidatura
Lula despontava apoiada pelo movimento sindical e popular, pelas
forças do movimento que lutou contra a ditadura e que foi às ruas
na campanha das diretas.
Num ensaio para a revista Teoria e Debate, do PT, Florestan
analisou aquele momento político focando a “Frente Brasil Popular”,
(PT, PSB, PCdoB, PCB e PV) articulada depois da Constituinte para
apoiar a candidatura Lula.
Relembrou os pecados das “políticas de frente” pelo mundo afora e
ressaltou as características peculiares do Brasil e de países da América
Latina, formados por Estados senhoriais, escravistas e “democráticos”.
Justificou seu apoio à frente de partidos de esquerda, levando
em consideração aquele contexto político em que os trabalhadores
brasileiros haviam rompido com o cerco de sua marginalização e
repressão sistemática.
O sonho do ‘desenvolvimentismo econômico acelerado’ converteu-se em
pesadelo. Quatorze anos depois do golpe de Estado, os trabalhadores dão
resposta coletiva à situação global, renegando ao mesmo tempo a ditadura,
a burguesia associada e o terrorismo de Estado como veículo de defesa
da ordem.56

Em relação à Constituinte, Florestan escreveu:


A Constituição instituiu um ‘Estado de direito’, com liberdades políti-
cas, garantias individuais e direitos sociais que só têm vigência se não
afetam uma concepção obstinadamente reacionária da ordem legal e da

56
Revista Teoria e Debate, n. 8, São Paulo, out-dez, 1989.
LAUREZ CERQUEIRA 151

iniciativa privada. O que consagra uma dualidade constitucional: há uma


Constituição escrita, que exprime a ‘vontade da Nação’, mas converte-se
em biombo para esconder o arbítrio e a violência; há uma Constituição
consuetudinária, produzida pelo ânimo bélico das classes possuidoras
e de suas elites dirigentes, consagrada pelo governo e por suas forças de
repressão policial-militar e, frequentemente, judiciária. Essa dualidade
constitucional é um desafio e um freio para a ação política dos trabalha-
dores livres e semilivres, os segmentos radicais da pequena burguesia e
das classes médias. É preciso exterminá-la, porque ela institui a violência
a partir de cima, a ‘legitimidade’ de um código não escrito que anula o
texto constitucional, servindo somente para demonstrar o quanto a ‘Nova
República’ é sucessora hipócrita da ditadura militar e como se renova o
despotismo da grande burguesia.57

Na campanha eleitoral de 1989, entusiasmado, Florestan cum-


priu uma extensa agenda partidária pelos auditórios, sempre lotados,
país afora, dando palestras, participando de debates, caminhadas,
publicando artigos nos jornais, enfim, colaborou intensamente com
o movimento que levou Lula ao segundo turno. Foi articulador da
candidatura do senador José Paulo Bisol a vice de Lula, na chapa
apoiada pela “Frente Brasil Popular”. Lula obteve uma votação ex-
traordinária e se colocou no segundo turno, mas na disputa perdeu
a eleição para Fernando Collor, apoiado pelos setores empresariais e
por uma poderosa estratégia de mídia.

Ou você é socialista ou...


Em junho desse mesmo ano, Florestan fez um pronunciamento
polêmico no Plenário, sobre os acontecimentos políticos ocorridos
na China, que lhe custou duras críticas. O governo chinês havia
reprimido uma manifestação de estudantes e populares na Praça da
Paz Celestial, em Pequim, com extrema violência, matando milhares
de pessoas.

57
Idem.
152 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

No pronunciamento ele condenou o massacre e ao mesmo tempo


defendeu o governo chinês, tecendo uma análise sobre a revolução
numa dimensão mais ampla. Disse que a China estava lutando para
superar as contradições que estava vivendo e, por meio da revolução,
poder estabelecer condições para que fatos como aquele não mais
ocorressem no futuro. Lembrou que numa situação revolucionária
deve haver meios de autodefesa, que podem ser pacíficos ou violentos.
Mesmo quando não se defende a revolução, mas a contrarrevolução,
acontece a mesma coisa, dizia.
O problema é que naquele momento os parlamentares, em
grande parte, estavam entusiasmados com o novo governo e com a
onda do neoliberalismo, alimentada pelos conflitos que resultaram
na crise política dos países do Leste europeu. O discurso incendiou
o Plenário. A reação foi intensa, até mesmo deputados da esquerda
viam no massacre a incapacidade do socialismo de se aperfeiçoar,
se modernizar, e se colocaram contra a revolução. Florestan não se
conformou com aquilo. Manteve-se firme nas suas considerações em
defesa da revolução chinesa e na condenação do massacre.
A China, com a vinculação que possui, poderá ou não se manter comunista.
Não cabe à esquerda tomar a posição da direita. Eu estava indignado com
os colegas, inclusive do PT, que foram rivais ali e piedosamente iam atrás
da ordem. Ou você é socialista ou você não é socialista, o que vale tanto
para socia­lista reformista quanto para socialista revolucionário”.

Concluiu Florestan em seu discurso.


LAUREZ CERQUEIRA 153

CAPÍTULO V1

COMPROMISSO E COERÊNCIA

Acho que a coisa mais difícil que fiz foi permanecer


fiel à minha classe de origem.
Florestan Fernandes

Em 1990, sua candidatura ao segundo mandato enfrentou dificul-


dades. Mas ele tinha um compromisso histórico com a educação e
queria ajudar a concluir a elaboração da LDB. O estado de saúde se
agravou e a concorrência entre os candidatos do próprio partido, se
acirrou. Ele ficou triste com isso. Condenava a disputa por ferir uma
praxe sublime do socialismo: o companheirismo.
No início da campanha ele perdeu um grande amigo e assessor
do mandato – o historiador e professor Hélio Alcântara – planejador
das atividades do pleito eleitoral. Uma pessoa querida e de muita
capacidade organizativa. Esse acontecimento provocou uma baixa
nos ânimos dele e dos colaboradores. As atividades da campanha
ficaram paralisadas durante três meses.
Mesmo assim, muitos colaboradores, de forma espontânea,
criaram comitês em vários municípios e a campanha se desenvolveu
lentamente. Alguns, com a falta de material que muitas vezes não
chegava, faziam os próprios panfletos e iam para a rua distribuir. Com
todas essas dificuldades, ele foi eleito com 27.676 votos.
154 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Mas o ano de 1990 não foi só de transtornos, foi também marcado


por uma grande alegria. Florestan foi um dos poucos no mundo e o
primeiro brasileiro a ser agraciado com o título de Doutor Honoris
Causa da Universidade de Coimbra. Uma prova de reconhecimento de
sua obra e da sua importância como sociólogo mais completo de sua
geração. O título fez parte das homenagens especiais comemorativas
do aniversário de 700 anos da universidade.
Na cerimônia esteve presente o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso. Florestan fez um emocionante discurso, como se todo o
grupo que trabalhou sob sua coordenação na USP estivesse sendo
homenageado. A filha, Heloísa Rodrigues Fernandes, conta que
Fernando Henrique Cardoso, que estava­sentado ao seu lado, foi às
lágrimas.

Razões de consciência
Nos primeiros anos da década de 1990, o quadro de saúde
de Florestan se agravou. Andava pelos corredores da Câmara a
passos lentos, a voz perdia o vigor e, por recomendação médi-
ca, teve de fazer uma redução drástica em sua agenda. Tomava
medicamentos tão fortes que lhe davam prostração. Num dado
momento, começou a ter crises de hemorragia. Isso lhe causou
algumas internações.
Numa dessas crises, em São Paulo, antes da cirurgia, ele passou
mal em casa. Era madrugada e o jeito foi procurar recurso, como de
costume, no Hospital do Servido Público. Dona Myrian telefonou
para o filho e o avisou. Quando Florestan Jr. chegou ao hospital o
pai estava vestido de pijama, numa longa fila, esperando para ser
atendido. O filho o questionou por que não foi para o Hospital
Albert Einstein ou outro hospital de melhores condições, pois seria
atendido de imediato. Florestan respondeu: “Eu vim para cá porque
eu sou servidor público e este é o hospital que deve cuidar de mim.
E estou na fila porque tem fila”.
LAUREZ CERQUEIRA 155

Inconformado com a resposta, o filho procurou o médico de


plantão e relatou a situação. O médico convenceu Florestan a deixar
a fila e o colocou numa cama, encostada numa parede do corredor
do hospital, tomando uma injeção de soro, enquanto se preparava
para os exames. O quadro clínico recomendava cuidados e internação
para observação.
Conta Florestan Jr. que ao lado da cama, no canto esquerdo de
um mural onde os médicos e enfermeiros afixavam recados aos cole-
gas, estava um recorte do jornal Folha de S. Paulo, já amarelado pelo
tempo. Era um artigo de Florestan defendendo a saúde pública e a
educação. O hospital era o mesmo que, no passado, numa transfusão
ele recebeu sangue contaminado com o vírus da hepatite C. Naquele
momento vivia uma situação dramática, sem recurso, abandonado
pelo Estado.
Reabilitado, Florestan voltou às atividades. Não deixou de cum-
prir rigorosamente seus compromissos no Congresso Nacional. Na
Comissão de Educação, as discussões e negociações da LDB andavam
a pleno vapor.
Depois da sua reeleição, Florestan enfrentou um difícil debate no
partido sobre a revisão constitucional, prevista para aquele período.
Bancada e Comissão Executiva do PT viveram um impasse. Uma
parte defendia a reapresentação de emendas importantes rejeitadas
na Constituinte; a outra não concordava, por considerar a revisão um
risco para as conquistas.
Em sua coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo, Florestan
alertou sobre o possível retrocesso que poderia ocorrer. Os parlamen-
tares dos partidos de apoio ao governo Fernando Collor articulavam
a intervenção no processo de revisão constitucional. Assim escreveu
Florestan:
Os que tiveram de ceder a preceitos constitucionais, impostos pela
pressão dos de baixo, a inovações que contrariavam suas posições na
estrutura de poder, viram na revisão um mecanismo de recuperação do
156 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

espaço perdido. Os que se beneficiaram, ainda que superficialmente,


de preceitos constitucionais que alteravam a ordem legal, liberando a
sociedade para maiores rupturas, consideraram a revisão como meio
de mudança social.
(...) Os que antes queriam a revisão por causa de fins particularistas,
como jornada de trabalho, lucros e salários, agora se apegam a ela como
salva-vidas.
Neste contexto contingente, a revisão constitucional converteu-se em algo
destrutivo, que precisa ser detido pelo contrapoder do povo. Este deve
passar a ator principal e decisivo. Devidamente alertado e esclarecido,
tem de agir, acima e além da representação parlamentar. Se não o fizer,
todos recairemos ao congelamento histórico da ruptura, aceitando como
autêntica uma Constituição de ficção.58

Em cumprimento aos compromissos assumidos com o Movimen-


to Negro Unificado (MNU) e com outros setores da comunidade
negra de São Paulo – das quais teve forte apoio nas duas eleições –
Florestan decidiu apresentar uma emenda à revisão constitucional. Ele
foi o único deputado petista que, contrariando a ordem do partido,
de se posicionar contra a revisão constitucional, apresentou uma
emenda defendida pelo MNU, acrescentando ao título “Da ordem
social”, um capítulo reservado aos negros.
A bancada do PT não aceitou, sob a justificativa de que uma
determinação da Comissão Executiva Nacional do Partido vetava aos
parlamentares a apresentação de emendas. Em carta encaminhada ao
líder da Bancada, José Fortunati, Florestan alegou “razões de cons-
ciência” e o que motivou sua iniciativa. Disse que estava disposto a
enfrentar as consequências perante a Bancada, a Comissão Executiva
Nacional e o Diretório Nacional.
Explicou em uma ampla exposição seus laços profundos com o
movimento de protesto social, em especial o “dilema racial do negro”,
como ele chamava, e sua vasta obra dedicada aos problemas do negro.

58
Folha de S. Paulo, 4/10/1994.
LAUREZ CERQUEIRA 157

Lembrou o fato de o deputado Carlos Alberto Caó ter conseguido


incluir no texto constitucional (Capítulo VII) a criminalização do
racismo entre seus temas vitais. A emenda de Florestan visava intro-
duzir na parte relativa à Ordem Social (Capítulo VIII) a igualdade
de direitos dos negros aos dos brancos.
No mesmo período, os partidos políticos se movimentavam com
a discussão para o plebiscito sobre a forma e sistema de governo da
República, previsto na Constituição para realização no dia 21 de
abril de 1993. Florestan entrou no debate com memoráveis artigos
publicados em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, discursos no
Plenário e intervenções nas reuniões do partido.
O parlamentarismo conta as melhores fórmulas para realizar duas tarefas
contrastantes. Ele favorece a disseminação do poder. Deixa de haver uma
cabeça reinante e se constituem mecanismos de dissolução do governo que
são democráticos, no nível da decisão interpares ou de uma figura como
o presidente da República, que desencadeia a demissão do gabinete. Ele
favorece, como ‘contraface’, uma melhor organização do poder das classes
dominantes. O Estado e o governo ficam menos ‘amorfos’, justamente
para os que comandam a sociedade civil e exercem a hegemonia ideológica
sobre ela como um todo. Sob esses aspectos, o ‘mais democrático’ implica,
paradoxalmente, uma ocultação maior dos métodos duros ou brandos de
dominação de classe e uma mistificação mais refinada da ação coletiva
das elites dirigentes. (...) Esse parece ser um obstáculo de difícil superação.
Implantar o parlamentarismo como uma aventura seria um desastre ainda
maior que repetir, em outros moldes, a farsa da proclamação da Repú-
blica. (...) O parlamentarismo virá lastreado – se vier – numa herança e
em práticas arraigadas execráveis. Será uma tarefa gigantesca desprendê-
-lo desse ventre fatídico. (...) Participei de várias discussões acesas, na
bancada do PT e com colegas de outros partidos, que defendiam ‘o
parlamentarismo já’, como se ele fosse a sobremesa de um banquete
esplêndido. A posição do PT parecia aberrante e anacrônica. Sustentei
objetivamente dois fatos irretorquíveis. Primeiro, o Brasil não possui
os requisitos (ou as premissas históricas) para a implantação do parla-
mentarismo – sequer em nível da mentalidade e do comportamento da
158 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

maioria dos parlamentares. Segundo, o parlamentarismo, sem suporte


na cultura cívica e na participação popular, favorece o monopólio do
poder das elites: lembremo-nos do Império, de seu Estado escravista e
das funções que nele desempenhou o parlamentarismo.59
Num debate realizado pelo Jornal da Constituinte, Florestan
deixou claro suas convicções sobre o parlamentarismo, mas con-
siderava o momento inadequado para institucionalização desse
regime de governo naquele momento político em que vivia o
país. Disse:
Minha posição é difícil porque, como socialista, sou, teoricamente,
parlamentarista. Agora, como sociólogo, e especialmente como soció-
logo que estudou a sociedade brasileira desde a ocupação portuguesa,
sou levado a pensar que o presidencialismo ainda representa uma
esperança para nós e que o parlamentarismo seria, ao contrário do
que sucedeu na Europa, um regime de governo que iria facilitar ainda
mais a concentração do poder político. Temos o exemplo do Império.
(...) Não foi o parlamentarismo que criou a base material. Foi a base
material que gerou a estabilidade política, e, por sua vez, permitiu que
o parlamentarismo se desenvolvesse segundo padrões que praticamente
contrastavam com a rusticidade da sociedade brasileira. (...) Por que
prefiro o presidencialismo? Porque o presidencialismo permite, àquela
massa dos destituídos, ter uma relação direta com alguém no topo do
sistema de poder.60

A contestação necessária
Florestan enfrentou toda essa maratona de trabalho com a
doença destruindo-o lentamente. As crises decorrentes da hepa-
tite tornaram-se mais frequentes. O sistema de coagulação do
sangue não estava funcionando como deveria. Ele passou a ser
acometido por hemorragias. Numa avaliação clínica no Hospital

59
Fernandes, F. Parlamentarismo: contexto e perspectivas. Brasília-DF: Câmara
dos Deputados, 1991.
60
Jornal da Constituinte, n. 14, Brasília, 31/8 a 6/9/1987.
LAUREZ CERQUEIRA 159

Sarah Kubitscheck, em Brasília, a equipe médica recomendou uma


intervenção cirúrgica para extirpar varizes que se formaram no
esôfago. A cirurgia abrandou as dores e afastou por um tempo o
risco de hemorragias mais graves.
Mesmo assim, Florestan não suspendeu suas atividades.
Cumpriu o seu segundo mandato quase se arrastando pelos cor-
redores da Câmara. Quando estava no hospital, pedia papel às
enfermeiras, escrevia os artigos para sua coluna semanal no jornal
Folha de S. Paulo e textos para o livro intitulado A contestação
necessária, dedicado aos amigos intelectuais e revolucionários que
ele mais admirou e respeitou. Trata-se de um retrato das ideias e
da trajetória de personalidades marcantes, muitas vezes esquecidas
num canto da história. São eles: Antonio Candido, Caio Prado
Jr., Carlos Marighella, Cláudio Abramo, Fernando de Azevedo,
Gregório Bezerra, Henfil, Hermínio Sacchetta, José Carlos Ma-
riátegui, José Martí, Luiz Carlos Prestes, Lula, Octavio Ianni,
Richard Morse e Roger Bastide.
A contestação necessária focaliza como seu objeto o eclodir de aspira-
ções utópicas, que foram destroçadas pelas classes dominantes e pelo
recurso extremo a duas ditaduras. Assinala esperanças frustradas, que
se encontram pairando sobre a sociedade brasileira.61

Nesse período, admiradores começaram a organizar homena-


gens a Florestan em diversas instituições. Ele dizia que não gostava,
ainda mais naquela fase da vida, convivendo com uma doença que
de certa forma lhe dava noção do limite da sobrevivência. Como
ele era de um humor desconcertante, de vez em quando dizia: “O
pessoal parece não entender que cada homenagem dessas é como se
jogassem um punhadinho de terra no meu olho”.

61
Fernandes, F. A contestação necessária: retratos intelectuais de inconformistas e
revolucionários. São Paulo: Ática, 1995.
160 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

O que me mantém vivo é a chama do socialismo que está dentro


de mim
No início de 1995, a doença atingiu o grau de esgotamento dos
recursos até então utilizados. Florestan foi submetido a uma bateria
de exames no Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo e
o médico Silvano Raia sugeriu, como solução para o caso, um trans-
plante de fígado. Depois de meses de espera, surgiu a oportunidade.
Uma mulher de 50 anos, vítima de morte cerebral, seria a doadora.
Antes de se internar no Hospital das Clínicas, para realização
do transplante, Fernando Henrique Cardoso telefonou e propôs
a ele ir se tratar nos Estados Unidos. Em 1995, Florestan havia
sido condecorado com a medalha “Ordem de Rio Branco, grau de
Grande Oficial”, que lhe dava condições privilegia­das em situações
como aquela. Em estado gravíssimo, Florestan agradeceu o gesto
generoso do ex-aluno e disse a ele: “Não posso aceitar esse privilé-
gio. Eu sempre disse que confio nas pesquisas feitas no Brasil, que
acredito em nossa medicina. Não poderia fugir na hora em que
estou sendo colocado à prova”.
Seis dias depois do transplante, no dia 10 de agosto de 1995,
na fase de recuperação, Florestan faleceu, por descuido da equipe
médica, vítima de uma embolia, provocada pela entrada de uma
imensa quantidade de ar (em vez de sangue) nos vasos sanguíneos
dos pulmões, coração e cérebro. O laudo do Instituto Médico Legal
atesta que uma pinça, que deveria vedar a passagem de soro, estava
fora do lugar, permitindo o bombeamento de ar.
Em entrevista à revista Veja, a enfermeira Eloísa Pereira assumiu
a responsabilidade: “Errei por não ter trocado o frasco de soro da
máquina de hemodiálise antes de ir ao toalete. Errei também porque
jamais deveria ter deixado uma auxiliar despreparada em meu lugar”.
O responsável pela equipe, Dr. Silvano Raia, acusou o médico Pedro
Caruso, que atendeu o professor Florestan após uma parada cardíaca,
de não ter sido suficientemente competente. “Ele (Pedro Caruso) lidou
LAUREZ CERQUEIRA 161

com uma situação maior que sua experiên­cia. Quando a situação é


maior que a pessoa, ela se sai mal.”
O Dr. Pedro Caruso, por sua vez, acusou a equipe de ter conhe-
cimento das condições de Florestan para se submeter ao transplante
e, mesmo assim, a decisão de realizar a cirurgia foi tomada com a
anuência do chefe da equipe, Dr. Silvano Raia: “Todos sabiam que
Florestan não sobreviveria ao transplante. A embolia apenas apressou
o inevitável. Naquela noite, eu ainda não tinha certeza da causa da
morte, mas Raia foi avisado”, disse Pedro Caruso.
O delegado Eduardo Hallage, encarregado de investigar o caso,
restringiu a responsabilidade à enfermeira: “Pedro Caruso fala a
verdade. Ele fez tudo o que podia para salvar Florestan. A culpa é de
Eloísa, que deve ter-se esquecido de colocar a pinça na máquina de
hemodiálise”, disse o delegado à Veja.
Florestan Fernandes Júnior, inconformado com as circunstâncias
da morte do pai e com as explicações dadas pela equipe, disse que a
família foi convencida pelo Dr. Silvano Raia a realizar o transplante:
“O Dr. Silvano Raia vendeu uma ilusão a meu pai e a minha família.
Disse que ele sairia andando do hospital para uma vida nova. Meu
pai poderia estar vivo conosco, nem que fosse por alguns meses”.
Em 21 de agosto, a família encaminhou um pedido de investi-
gação e apuração do caso junto ao Conselho Regional de Medicina
do estado de São Paulo. Era a primeira manifestação da família de
Florestan, preocupada com as implicações técnicas e éticas de um
ato cirúrgico polêmico e discutível. A nota distribuída à comunidade
universitária em 7 de novembro daquele ano – e lida por Vladimir
Sacchetta no anfiteatro de História no campus da USP – dá a medida
da indignação dos familiares do mestre e de seus companheiros e
amigos.
O fato é que Florestan morreu vítima de um segundo erro médi-
co. O primeiro foi quando ele, numa cirurgia, em 1972, contraiu a
doença que o vitimou, ao receber sangue contaminado com o vírus
162 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

da hepatite-C, tendo que conviver com a doença durante 23 anos. E


o segundo quando se submeteu ao transplante, como último recurso,
para continuar vivendo.
Florestan foi velado no Salão Nobre da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP. O velório reuniu familia­res, in-
telectuais, lideranças do PT, do movimento social e a primeira-dama,
Ruth Cardoso, sua ex-aluna na década de 1950, que representou o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ao lado do caixão, duas bandeiras vermelhas, uma do PT e outra
do Movimento dos Sem Terra, acompanhadas por uma coroa de
flores vermelhas em formato de estrela, rodeadas de rosas brancas,
simbolizavam suas profundas ligações com a luta dos de baixo, como
ele dizia. No final do velório, ele foi homenageado por professores,
ex-alunos, intelectuais, companheiros da esquerda e representantes
do movimento negro.
No fim da tarde, seu corpo seria cremado no cemitério de Vila
Alpina, zona leste da capital, mas a cerimônia não pôde ser realizada,
devido a uma determinação policial para verificação da causa da mor-
te. O corpo foi levado para o Instituto Médico Legal para realização
de autópsia. A família recorreu à Justiça, mas a decisão não passou
de uma censura ao chefe da equipe, Dr. Silvano Raia, no âmbito do
Conselho Regional de Medicina.
A profunda convicção de Florestan de que o socialismo era o
melhor caminho para o país ficou gravada numa frase que ele pro-
nunciou na entrada da sala de cirurgia: “O que me mantém vivo é a
chama do socialismo que está dentro de mim”.
O respeito e o reconhecimento do legado de luta e obra de Flo-
restan, de sua coerência e de seus compromissos com sua classe de
origem ficaram registrados numa cena memorável, ocorrida numa
manifestação de professores da rede pública estadual, em São Paulo.
Florestan Fernandes Júnior, que trabalhava como repórter naquele
dia, conta que havia cerca de 40 mil professores, estudantes e fun-
LAUREZ CERQUEIRA 163

cionários da área de educação de todos os municípios, concentrados


numa pista no meio de um vale descampado, bradando palavras
de ordem por melhores salários e melhores condições de trabalho.
Os manifestantes estavam aglomerados naquele espaço porque fora
proibida a concentração em frente do Palácio dos Bandeirantes.
De repente, do alto do carro de som, um sindicalista anunciou
a presença de Florestan na manifestação. Ele foi ovacionado com
uma longa salva de palmas. O sindicalista então o convidou a falar
aos professores. Mas ele estava muito distante dali, do outro lado,
na ponta da rua, separado pela multidão que lotava o vale e parte
das ruas adjacentes.
Já bastante debilitado pela doença, se firmando numa bengala,
ele começou a andar pela pista, a passos lentos, em direção ao carro
de som. Desligaram o som. Fez-se um silêncio sepulcral no vale.
A multidão abriu uma larga passagem para ele. Os mais curiosos,
sussurrando, se acotovelavam para ver o mestre passar. No final do
percurso o silêncio foi quebrado por uma estrondosa salva de palmas.
Só encerrada quando ele, já em cima do caminhão, pronunciou as
primeiras palavras ao microfone. Com a voz branda, meio trêmula,
ele fez um discurso emocionante. A multidão foi às lágrimas.
LAUREZ CERQUEIRA 165

BIBLIOGRAFIA

CANDIDO, Antonio. Florestan Fernandes. Ed. Perseu Abramo, São Paulo,


2001.
D’INCAO, Maria Angela. O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes.
Ed. Unesp/Paz e Terra, São Paulo, 1987.
FERNANDES, F. A contestação necessária: retratos intelectuais de inconfor-
mistas e revolucionários. Ed. Ática, São Paulo, 1995.
__________. Parlamentarismo: contexto e perspectivas. Câmara dos Deputados,
Brasília-DF, 1992.
__________. O processo constituinte. Câmara dos Deputados, Brasília-DF, 1988.
__________. A transição prolongada. Cortez Editora, São Paulo, 1990.
__________. Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. Ed. Brasiliense,
São Paulo, 1989.
__________. LDB: impasses e contradições. Ed. Câmara dos Deputados,
Brasília-DF, 1993.
__________. A Constituição inacabada: vias históricas e significado. Ed. Estação
Liberdade, São Paulo, 1989.
__________. O desafio educacional. Cortez Editora, São Paulo, 1989.
__________. Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o
capitalismo monopolista da era atual. Ed. Hucitec, São Paulo, 1994.
__________. O significado do protesto negro. Cortez Editora, São Paulo, 1989.
166 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

__________. O PT em movimento: contribuição ao I Congresso do Partido dos


Trabalhadores. Cortez Editora, São Paulo, 1991.
__________. Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. T. A. Queiroz
Editor, LTDA, São Paulo, 1979. *
__________. Mudanças sociais no Brasil. Ed. Difusão Europeia do Livro, São
Paulo, 1974.
GARCIA, Sylvia G. Destino ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes.
Ed. 34, São Paulo, 2002.
MARTINEZ, Paulo Henrique (org.). Florestan ou o sentido das coisas. Ed.
Boitempo, São Paulo, 1998.
REVISTA DE HISTÓRIA – Órgão oficial do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
n. 129/131, Ed. USP, São Paulo, 1993/1994.
VÁRIOS AUTORES. Memória viva da educação brasileira. Vol. I, Ed. MEC/
INEP, Brasília-DF, 1991.
VÁRIOS AUTORES. Anteprojeto Técnico de Programa Técnico-Eleitoral –
Coligação Democrática Radical. São Paulo, 1948. (A. N. Sueli Garcia;
Ana Maria Almeida; Roberto Stefannelli; TV-Câmara - Núcleo de Vídeos
Especiais)
LAUREZ CERQUEIRA 167

ANEXO 1

TR AJETÓRIA BIOBIBLIOGR ÁFICA*

Nascido em 22 de julho de 1920, na cidade de São Paulo, Florestan Fer-


nandes foi casado com Myrian Rodrigues Fernandes com quem teve cinco
filhas e um filho.
Faleceu em 10 de agosto de 1995, seis dias após ter sido submetido a um
transplante de fígado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.

Aprendizagem
1. Curso primário incompleto (até o terceiro ano): Grupo Escolar Maria
José, Bela Vista, São Paulo.
2. Curso secundário e Colegial (“Curso de Madureza”), sob o artigo 100:
Ginásio Riachuelo (anos letivos de 1938, 1939 e 1940).
3. Curso superior: Ciências Sociais, na Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade de São Paulo (anos letivos de 1941, 1942 e 1943).
Licenciatura no curso de Didática da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP (ano letivo de 1944).
4. Curso de pós-graduação em Sociologia e Antropologia: Escola Livre de
Sociologia e Política, São Paulo (anos letivos de 1945 e 1946).

*
Organizada por Florestan Fernandes e Vladimir Sacchetta.
168 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Títulos acadêmicos
1. Mestre em Ciências Sociais (Antropologia): Escola Livre de Sociologia
e Política (1947), com a tese “A organização social­dos Tupinambá”.
2. Doutor em Ciências Sociais (Sociologia): Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP (1951), com a tese “A função social da guerra na
sociedade Tupinambá”.
3. Livre-Docente: Cadeira de Sociologia I, Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da USP (1953), com a tese “Ensaio sobre o método de interpretação
funcionalista na Sociologia”.
4. Professor Titular: Cadeira de Sociologia I, Faculdade de Filosofia, Ci-
ências e Letras da USP (1964), com a tese “A integração do negro na sociedade
de classes”.

Cargos ocupados
1. Segundo-Assistente da Cadeira de Sociologia II da Faculdade de Filo-
sofia, Ciências e Letras da USP (1o/3/1945 a 27/11/1952).
2. Primeiro-Assistente da Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP (27/11/1952 a 31/12/1954).
3. Professor contratado da Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filo-
sofia, Ciências e Letras da USP (1o/1/1954) a 23/2/1965).
4. Professor catedrático efetivado por concurso de títulos e provas, a partir
de 23/2/1965. Afastado sob aposentadoria compulsória, com vencimentos
proporcionais ao tempo de serviço, em 24/4/1969, por aplicação do Ato Ins-
titucional n. 5 pela ditadura militar.
5. Vários: “Visiting-Scholar” na Columbia University (último semestre
de 1965 a janeiro de 1966); professor de Sociologia, como Latin American
in Residence, na Universidade de Toronto (1969/1970); professor titular na
Universidade de Toronto a partir de 1970. Em fins de 1972, regressou ao Brasil:
professor de cursos de extensão cultural no Instituto Sedes Sapientiae (1976 e
1977); professor contratado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
último trimestre de 1977; “Visiting-Professor” na Yale University, primeiro
semestre de 1977; professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, a partir de 1978.
LAUREZ CERQUEIRA 169

Atividade parlamentar
1. Deputado Federal Constituinte pelo Partido dos Trabalhadores no
período de 1987 a 1990.
2. Deputado Federal pelo Partido dos Trabalhadores, reeleito para o
período de 1991 a 1994.

Trabalhos publicados
Obs: com exceção de livros de múltipla autoria e de colaboração em jor-
nais e revistas. Esta foi iniciada em 1943, chegando a ter continuidade, por
longo tempo, em O Estado de S. Paulo; Folha da Manhã; Folha de S. Paulo,
desde 27/10/1980; Jornal do Brasil, desde 25/9/1987; Jornal de Brasília, desde
25/9/1988.

- Tradução e introdução da obra Contribuição à crítica da Economia Política,


de Karl Marx, São Paulo, Editora Flama, 1946.
- A organização social dos Tupinambá. São Paulo, Instituto Progresso Editorial,
1949; 2a edição, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1963.
- A função social da guerra na sociedade Tupinambá. São Paulo, Museu
Paulista, 1952; 2a edição, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, Editora da
Universidade de São Paulo, 1970.
- A Etnologia e a sociedade no Brasil. Ensaio sobre aspectos da formação e
desenvolvimento das ciências no Brasil. São Paulo, Editora Anhambi, 1958.
- Negros e brancos em São Paulo. Em colaboração com Roger Bastide, Edi-
ção Independente, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959; 3a edição,
1971. Publicação prévia, Revista Anhembi, 1953; edição original, com outros
trabalhos de vários autores, São Paulo, Editora Anhambi, 1955.
- Mudanças sociais no Brasil. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1960;
2a edição, refundida, com um ensaio global introdutório, 1974; 3a edição, 1979.
- Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada. São Paulo, Livraria Pioneira Edi-
tora, 1960; 2a edição, 1971; 3a edição, 1976.
- Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. São Paulo, Editora
Anhambi, 1961; 2a edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1979.
- A Sociologia numa era de revolução social. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1962; 2a edição reorganizada e ampliada, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1976.
- A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP, 1964; 2a edição, em dois volumes, São
170 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Paulo, Editora Dominus, Editora da Universidade de São Paulo, 1965; 3a


edição, em dois volumes, Editora Ática, 1978.
- Educação e sociedade no Brasil. São Paulo, Editora Dominus, Editora da
Universidade de São Paulo, 1966.
- Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1967; 2a edição, 1967, reimpressão, 1972; 3a edição, Rio de
Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1978; 4a edição, T. A. Queiroz, Editor,
l980.
- Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1968; 2a edição, 1972; 3a edição, 1975; 4a edição, 1981.
- The Latin American in residence lectures. Toronto, University of Toronto,
1969/1970.
- Elementos de Sociologia Teórica. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1970; 2a edição, 1974.
- O negro no mundo dos brancos. São Paulo, Difusão Europeia do Livro,
1972.
- Comunidade e sociedade no Brasil. Leituras básicas de introdução ao estudo
macrossociológico do Brasil. (Org.) São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1972; 2a edição, 1975.
- Comunidade e sociedade. Leituras sobre problemas conceituais, metodológicos
e de aplicação. (Org.) São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1973.
- Comunidade e sociedade (como organizador), tomos ainda inéditos.
- Las classes sociales en América Latina (em co-autoria com N. Poulantzas
e A. Touraine). México, Siglo Veintiuno Editores, Unam, 1973; publicado no
Brasil como As classes sociais na América Latina, Rio de Janeiro, Editora Paz
e Terra, 1977.
- Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1973; 2a edição, 1975; 3a edição, 1981.
- A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis, Editora
Vozes, 1975.
- A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1975; 2a edição, 1976; 3a edição, 1981.
- A universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo, Editora Alfa-
-Ômega, 1975; 2a edição, 1979.
- Circuito fechado. Quatro ensaios sobre o “Poder Institucional”. São Paulo,
Editora Hucitec, 1976; 2a edição, 1977.
LAUREZ CERQUEIRA 171

- A Sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e de-


senvolvimento. Petrópolis, Editora Vozes, 1977; 2a edição, 1980.
- A condição de sociólogo. São Paulo, Editora Hucitec, 1978.
- O folclore em questão. São Paulo, Editora Hucitec, 1978.
- Lenin, organização e introdução (p. 7-49), São Paulo, Editora Ática,
1978 (duas edições).
- Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. São Paulo, T. A. Queiroz,
Editor, 1979.
- Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo”. São Paulo, Editora
Hucitec, 1979.
- Brasil: em compasso de espera. São Paulo, Editora Hucitec, l980.
- A natureza sociológica da Sociologia. São Paulo, Editora Ática, 1980.
- Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo, Editora Hucitec, 1980.
- Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1981.
- O que é revolução? São Paulo, Editora Brasiliense, 1981 (seis edições).
- A ditadura em questão. São Paulo, T. A. Queiroz, Editor, 1982 (duas
edições).
- K. Marx - F. Engels: história, organização e introdução (p. 9-143), São
Paulo, Editora Ática, 1983.
- A questão da USP. São Paulo, Editora Brasiliense , 1984.
- Que tipo de República? São Paulo, Brasiliense, 1986 (três edições).
- Nova República? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1986 (três edições).
- O Processo Constituinte. Brasília, Câmara dos Deputados, Centro de
Documentação e Informação, 1988.
- A Constituição inacabada. Vias históricas e significado. São Paulo, Estação
Liberdade Editora, 1989.
- O desafio educacional. São Paulo, Cortez Editora, l989.
- Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo, Editora
Brasiliense, 1989.
- O significado do protesto negro. São Paulo, Cortez Editora, l989.
- A transição prolongada. São Paulo, Cortez Editora, 1990.
- As lições da eleição. Brasília, Câmara dos Deputados, Centro de Docu-
mentação e Informação, 1990.
- Depoimento. Coleção Memória Viva da Educação Brasileira, 1, Brasília,
INEP, 1991.
172 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

- O PT em movimento - contribuição ao I Congresso do Partido dos Traba-


lhadores. São Paulo, Cortez Editora/Autores Associados, 1991.
- Reflexão sobre o socialismo e a autoemancipação dos trabalhadores. São
Bernardo do Campo, Departamento de Formação Política e Sindical, Sindicato
dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, 1992.
- Parlamentarismo: contexto e perspectivas. Brasília, Câmara dos Deputados,
Centro de Documentação e Informação, 1992.
- LDB: impasses e contradições. Brasília, Câmara dos Deputados, Centro
de Documentação e Informação, 1993.
- Democracia e desenvolvimento - a transformação da periferia e o capitalismo
monopolista da era atual. São Paulo, Editora Hucitec, 1994.
- Consciência negra e transformação da realidade. Brasília, Câmara dos
Deputados, Centro de Documentação e Informação, 1994.
- Tensões na educação. Salvador, SarahLetras, 1995.
- A contestação necessária: retratos intelectuais de inconformistas e revolucio-
nários. São Paulo, Editora Ática, 1995, obra que recebeu da Câmara Brasileira
do Livro, em 1996, o “Prêmio Jabuti” na categoria “Ensaio”.
- Em busca do socialismo. São Paulo, Editora Xamã, 1995.

Trabalhos publicados em outras línguas


- “La guerre et le sacrifice mumain chez les Tupinambá”, tradução de
Suzanne Lussagnet, publicado e editado em separata por Journal de La Societé
des Americanistes, Paris, Musée de L’Homme, 1952.
- Fundamentos empíricos da explicação sociológica, México, UNAM, s/d
(em espanhol).
- The negro in brazilian society, Tradução de Jacqueline D. Skiles, A. Brunel
e Arthur Rothwell, editado por Phyllis B. Eveleth, New York/Londres, Co-
lumbia University Press, 1969 e, como paperback, Atheneum, New York, 1971.
- Die Integration des Negers in die Klassengesellschaft, vol. 1, Verlag Gehlen,
Bad Homburg v.d.H, Berlin/Zurich, 1969 (tradução de Dr. Jrgen Grabvener);
vol. 2, Wilhelm Fink Verlag, Munchen, 1977 (tradução de Angela Dulle).
- La revolución burguesa en Brasil. Tradução de Eduardo Molina, México,
Siglo Veintiuno Editores, 1978.
- Reflections on the Brazilian Counter-Revolution, organizado com introdução
de Warren Dean, Armonk, New York, M. E. Sharpe, Inc., 1981.
LAUREZ CERQUEIRA 173

Obras a seu respeito


- Barbara Freitag, Die Sozio-Okonomische Entwiklung Brasiliens ans der Sicht
Eines Brasilianischen Sozialwissenshaftlers, Saabruchen 1969, Verlag der SSIP-
-Schriften D. Breitenbach, Saarbrucken Universitat.
- Octavio Ianni (organizador), Florestan Fernandes, São Paulo, Editora
Ática, 1986.
- Maria Angela D’Incao (organizadora), O saber militante. Ensaios sobre
Florestan Fernandes. São Paulo, UNESP e Editora Paz e Terra, 1987.
- Gabriel Colins, “Padrões e dilemas: o pensamento de Florestan Fernan-
des”, in R. Moraes, R. Antunes e V. B. Ferrante (orgs.), Inteligência brasileira.
São Paulo, Brasiliense, 1989, pp. 125-148.
- Eliane Veras Soares, Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo,
Cortez Editora, 1997.
- José de Souza Martins, Florestan – Sociologia e consciência social no Brasil.
São Paulo, EDUSP/FAPESP, 1998.
- Paulo Henrique Martinez (organizador), Florestan ou o sentido das coisas.
São Paulo, Boitempo Editorial/Centro Universitário Maria Antonia – USP,
1998.
- Sylvia G. Garcia, Destino ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes.
São Paulo, Editora 34, 2002.

Distinções e Prêmios
- “Prêmio Temas Brasileiros”, Grêmio da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da USP, 1944, com o trabalho “As Trocinhas do Bom Retiro”. Sele-
cionador e Julgador: Professor Roger Bastide.
- “Prêmio Fábio Prado”, 1948.
- “Medalha Silvio Romero”, Prefeitura do Rio de Janeiro, DF, 1958.
- “Título de Cidadão Emérito”, conferido pela Câmara Municipal de São
Paulo, 24/4/1961.
- “Prêmio Jabuti de Ciências Sociais”, 1963.
- “Prêmio Sociedade Brasil-Israel”, São Paulo, 1966.
- “Prêmio The Anisfield-Wolf Award in Race Relations for 1969”, Cleve-
land Foundation sponsored by the Saturday Review. Comitê selecionador e
julgador em 1969: Ashley Montagu, chairman, Oscar Handlin e Pearl Buck.
- “Título de Professor Emérito”, Universidade de São Paulo, 1985.
- “Doutor Honoris Causa”, Universidade de Utrecht, 1986.
174 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

- “Prêmio Estácio de Sá”, categoria Ciência, Governo do Estado do Rio


de Janeiro, 1989.
- “Doutor Honoris Causa”, Universidade de Coimbra, 1990.
- “Ordem Nacional do Mérito Educativo”, grau de Grande Oficial, Mi-
nistério da Educação, 1993.
- “Prêmio Almirante Álvaro Alberto/Ciências Humanas”, Secretaria de
Ciência e Tecnologia da Presidência da República/CNPq, 1993.
- “Cidadão Honorário de São Carlos”, Câmara Municipal de São Carlos,
1994.
- “Ordem de Rio Branco”, grau de Grande Oficial, Ministério das Relações
Exteriores, 1995.
- “Cidadão Honorário de Brasília”, homenagem póstuma por iniciativa
da Câmara Legislativa de Brasília, 1995.
- Patrono da Escola Nacional “Florestan Fernandes”, do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no município de Guararema, São
Paulo, inaugurada em janeiro de 2005.
LAUREZ CERQUEIRA 175

ANEXO 2

CARTA A FLORESTAN FERNANDES*

Este é sem dúvida o momento mais difícil de minha vida.


Apesar de ter consciência de que a morte é a única coisa certa que nós
temos nesta passagem pela terra, eu preservava a ilusão de infância de que
meu pai era imortal como todos os heróis das histórias em quadrinhos.
Agora que a realidade se impôs forte e imutável, percebi que a ilusão
tinha, em sua essência, um fundo de verdade.
As pessoas vão, mas seu amor, suas ideias e seus ensi­namentos ficam
e é isso que as torna imortais.
Como já disse o poeta Drummond, “de tudo fica um pouco”.
Do meu pai ficaram as ideias de igualdade e de justiça nos livros, nos
artigos e nas entrevistas. E, acima de tudo, uma prática de vida coerente
com seus princípios.
Ficou também um pouco dele em cada um dos seis filhos.
Na filha Heloísa, única socióloga, ficou a maneira apaixonada de ver
e sentir o mundo.

*
Lida por Florestan Fernandes Jr. no velório de seu pai, em 10 de agosto de 1995.
176 FLORESTAN FERNANDES - VIDA E OBRA

Na Noemia, a fidelidade e a energia inesgotável na defesa de uma


causa justa.
Na Beatriz, a solidariedade humana e a dignidade moral.
Na Silvia, a determinação e força dos grandes guerreiros que sempre
estão prontos para a batalha.
Na Miriam Lúcia, a caçula, a sensibilidade e olhar terno e doce dos
que sofrem calados.
Em mim, ficou a lealdade de um verdadeiro amigo que, como ele,
sonha com um Brasil melhor.
Todos nós somos um pouco da personalidade de Florestan Fernandes.
Mas este homem, que nós amamos e admiramos tanto, deve a duas
mulheres o sucesso que teve como pai, intelectual e político.
A primeira foi sua mãe, D. Maria, uma camponesa de origem portu-
guesa que, sozinha, mesmo sendo pobre e analfabeta, soube dar ao filho a
formação de caráter que a maioria das escolas não dá.
Já adulto, por mais de cinquenta anos, uma outra mulher, D. Myrian,
foi a companheira que socializou o marido com a universidade.
Discreta, ela foi para o sacrifício. Durante o exílio cuidou dos filhos
fazendo o duplo papel de pai e mãe.
Sem ela, Florestan teria muita dificuldade para escrever seus mais de
cinquenta livros. Por isso, ela é, por justiça, coautora de toda esta obra.
Se existe mesmo céu, neste momento meu pai deve estar numa conversa
boa com os amigos Caio Prado, Sérgio Buarque, Roger Bastide, Hermínio
Sacchetta e tantos outros.
E quem sabe eles não estão iniciando agora uma nova revolução.

Florestan Fernandes Jr.

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