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SINOPSE
Mykaela Skies é uma vagabunda fria e prepotente.
Ela tem plena consciência disso e está muito confortável com esse
fato, obrigada, pois essa foi a única forma que encontrou de conviver numa
alcateia que não confiava nela. Desde sua infância violenta à morte de quase
todos os seus parentes, a garota e seu irmão tiveram de crescer com traumas
que mudaram suas personalidades de forma drástica. Ela se tornou uma
licantropa implacável e orgulhosa... Já seu irmão, Eiko, terminou arrogante,
manipulador, com ganância demais e escrúpulos de menos.
Reconstruindo a própria reputação para escapar do rótulo de “irmã do
traidor”, Mykaela agora terá de aprender a interagir amistosamente com seus
piores inimigos, as bestas-feras que por décadas massacraram seu povo. Para
não colocar em risco o tratado de paz pelo qual os líderes da sua matilha tanto
lutaram, ela precisará controlar o temperamento e a língua afiada antes que
suas atitudes ameacem a frágil trégua... Ela só não esperava que Hassam
Imanur fosse aquele a lhe ajudar nessa empreitada.
Com seu tamanho descomunal, cicatrizes grotescas e sorriso
selvagem, o lupino nomeado Carcaças é o terceiro em comando na própria
matilha e também é a fonte de todos os tormentos de Mykaela. Para quem
achava que o sujeito não passava de um brutamontes, a garota descobrirá que
há muito mais para se ver em Hassam — e é quando uma interação cínica se
desenvolve numa tensão ardente que coloca ambos de joelhos.
Mykaela sabe lidar com o lupino entre os lençóis, mas com certeza
não sabe lidar com os sentimentos que lhe assolam quando estão fora deles.
Suas diferenças são gritantes no mínimo e seus temperamentos explosivos no
máximo. Não há como evitá-lo, mas também não há como negar a si
mesma.... E, antes que perca uma das poucas coisas boas que já lhe
ocorreram, a licantropa terá de enfrentar suas partes mais detestáveis e
escolher entre as próprias ambições e a própria felicidade.
Era um pesadelo.
Tinha de ser um pesadelo.
Em um instante, o sol estava alto no céu, aquecendo as costas de
Mykaela e Eiko enquanto ambos brincavam perto de casa.
No seguinte, uma sombra havia coberto os dois como um manto de
escuridão fria, e o sol se fora como se nunca estivesse lá. Os gêmeos haviam
parado, então, estáticos e atônitos. Mykaela pensara que fora culpa de uma
nuvem de chuva.
Mas, quando ela olhara para cima, havia um círculo negro faminto
onde o astro-rei antes deveria estar.
Khonse.
Mas... Era impossível. Eles saberiam caso um eclipse estivesse
previsto para aquele dia, aquele horário. Segundos excruciantes de confusão
haviam se passado. Eiko franzira a testa para ela, tão sem ação quanto a irmã.
Então os gritos na vila começaram.
Tia Lyanna viera correndo, os olhos tão esbugalhados e a respiração
tão fora de controle que fizera lágrimas subirem aos olhos da menina de
imediato.
Havia algo muito, muito errado.
—Para dentro! — sussurrara ela, naquele tom desesperado de quem
queria gritar, mas não podia. — Para dentro, agora! Os dois!
A face amedrontada de Eiko era um espelho da dela.
—Tia, o que está...
—Eu disse agora!
Ela arrastou os dois pelos ombros com tanta força que Mykaela
pensou que deslocaria um músculo. Seus olhos dourados e cheios de pânico
nunca deixavam a floresta, ou o ponto do qual viera correndo. Era medo,
sólido e palpável na expressão da tia, como a menina nunca antes tinha visto.
Tia Lyanna também nunca tinha sido tão bruta ou autoritária. Porém, estava
sendo movida por uma emoção maior do que o carinho que costumava ter
pelos únicos sobrinhos; sabia como qualquer gesto brusco na direção dela e
do irmão fazia as lembranças dolorosas com o pai serem engatilhadas.
Kadam se fora há quase dois anos agora, mas a memória das surras
ainda afetava Eiko, e a da pressão psicológica ainda desestabilizava Mykaela.
Lyanna se esforçava muito para mostrar que nunca seria como o pai deles.
Mesmo depois de todo aquele tempo, ainda parecia um sonho bom demais
para ser assimilado. A mãe morrera, e haviam sido vinte e três meses no
inferno, com apenas Kadam como responsável legal. Então ele também
morrera, um ano e meio antes, e a vida dos gêmeos melhorara imensamente
sob a tutela da tia e única familiar restante.
Eiko ainda estava se esforçando para deixar o comportamento
maldoso e frio que adquirira da convivência com o pai de lado — mas estava
conseguindo, aos poucos. Eles eram felizes com a tia, com as outras crianças,
e principalmente, sem o pai.
Mas o comportamento nada característico de tia Lyanna estava
finalmente assustando-a, o que quase fez Mykaela tropeçar num pedregulho
solto no caminho. O frenesi de pavor, por sua vez, fez a tia começar a arrastá-
la com força pelo braço enquanto corriam para a cabana.
—Vamos, vamos, andem!
Mykaela começou a chorar.
—Tia Lyanna, estou com medo!
—É bom que esteja mesmo, menina — arfou a tia, ao subirem as
escadas aos tropeços e fecharem a porta com veemência. — Vai manter seus
reflexos aguçados e seus instintos alertas.
Eiko tentava se manter inalterado, mas mesmo ele tinha os lábios
trêmulos ao indagar, enquanto a tia girava as três trancas na porta com os
dedos instáveis:
—Por que não pode dizer o que está acontecendo?
Mas ela nem precisara.
Os sons oriundos da vila eram explicação o suficiente.
Rosnados guturais, urros violentos, gritos agoniados e estrondos
ruidosos.
Mykaela só ouvia esse tipo de cacofonia em específico à noite,
quando os três iam para o salão nas noites de lua cheia... Quando as bestas
decidiam atacar e mutilar e destruir.
—Isso são lupinos? — o irmão dela indagou então, a face lívida com
o horror.
—Subam — a tia deles apontou para a escada, se dirigindo então para
coleção particular empoeirada de Kadam que a menina sabia estar enfiada no
armário. — Se tranquem no banheiro de Myka, selem a porta do quarto com
o guarda-roupa.
Ela tirou uma das maiores espadas do pai deles do armário; uma
espata pesada de prata que quase fez o braço da mulher ir ao chão junto com
ela. Moedora de Ossos, o pai a batizara. Lyanna não conseguia nem ao
menos erguer a lâmina.
—Precisa vir com a gente!
Tia Lyanna abriu um sorriso tranquilizador e a abraçou, mas havia
lágrimas em seus olhos também. Mykaela soube que ela estava apenas
tentando ser forte pelos sobrinhos.
—Essa casa é afastada, querida — murmurou ela, num fiapo de voz.
— Os guardiões cuidarão deles antes que cheguem aqui. Ficarei só por
precaução.
Era mentira. Com a cabeça encostada no peito da tia enquanto
saboreava o calor do aconchego dela pela última vez, a menina ouvira o
coração destrambelhado de Lyanna falhando com toda a precisão. Ela estava
tentando poupá-los. Estava tentando protegê-los, mas não era uma guardiã,
nem ao menos uma loba com preparo em combate.
—Vamos ajudar — Eiko declamou, as feições sérias apesar do medo.
— Eu venho treinando na arena com os guardiões, Mykaela aprendeu a usar
um bastão farpado, nós podemos...
—Meu amor — soluçou Lyanna, ao soltá-la e correr da direção do
irmão para outra última despedida. — Preciso que vocês cuidem um do outro.
Você entende isso, não entende? São crianças espertas. Se algo acontecer
comigo aqui embaixo, vocês terão mais chance juntos lá em cima.
Uma resignação gélida cobriu o rosto do irmão depois de segundos de
uma relutância angustiada, mas Mykaela ainda chorava e sacudia o braço da
tia.
—Não faça isso! Vamos nos esconder todos juntos! Temos mais
chances todos juntos!
—Ela está certa, Myka — a falta de emoção na voz do gêmeo a fez
querer estapeá-lo, mas a menina o ignorou.
—Tia Lyanna!
—Mykaela, vá — comandou a mulher, irredutível, mesmo que sua
postura firme parecesse tão frágil quanto uma peça de cristal, prestes a se
despedaçar diante do mais grosseiro dos toques. — É uma ordem.
Eiko começou a arrastá-la na direção das escadas, grunhindo e
lutando contra os esforços de Mykaela para espernear e rugir sua revolta. Ela
não podia acreditar que ele deixaria a tia à própria sorte, que não insistiria
em....
Foi quando a porta da frente explodiu em pedaços e uma besta com o
dobro do tamanho e o triplo da largura da tia se arremessou pela entrada,
rosnando e arreganhando as presas amareladas para a visão à sua frente:
Mykaela, gritando; Eiko, arregalando os olhos e congelando com o
medo.
E Lyanna, erguendo a espata com dificuldade nas mãos trepidantes,
apesar do mais puro pavor contorcendo seu rosto bonito.
O lupino decidiu considerar a mulher como a ameaça iminente. A
criatura avançou na tia, e o berro agudo da menina ecoou no ambiente outra
vez. Lá fora, a batalha ainda rugia e os licantropos ainda lutavam pela própria
sobrevivência, alheios às vidas sendo destruídas ali dentro.
Eiko estava vociferando com ela para que subisse com ele, para que o
obedecesse, mas Mykaela não conseguia se mover. Não diante da vida da tia
pendendo por um fio à sua frente.
Não diante do momento em que Lyanna foi lenta demais para desviar
da investida da besta e caiu sob o peso esmagador da criatura.
—Não! — gritou Mykaela, aos prantos.
Mas o lupino já tinha cravado a mandíbula na jugular da mulher, que
se sacudia em desespero com o sangue esguichando pela garganta estirada.
Ela arregalou os olhos, cheios de dor e desespero, e ergueu a mão para os
sobrinhos uma última vez.
Então a luz se apagou nas íris douradas, agora vítreas e imóveis.
O lupino se virou para Mykaela e o irmão, e Eiko se enfiou na frente
dela num esforço final de bravura. Ele encarou o lupino com todo o ódio e a
agonia acumuladas em seu peito, toda a força das lágrimas que escorriam por
suas bochechas.
A besta salivou e rosnou, parecendo sorrir de forma doentia diante do
desafio risível que o menino representaria.
Mykaela soube que estavam mortos, naquele instante. Para onde quer
que fossem, ela só esperava nunca mais ter de ver o pai, se é que existia
alguma justiça na pós vida.
Disparando na direção dos dois, o lupino chegou meros centímetros
de abocanhar as panturrilhas de Eiko, mas um imenso lobo castanho derrubou
o corpanzil de lado num golpe direto e sorrateiro. Os gêmeos se
sobressaltaram com a surpresa enquanto as duas feras rolavam pelo assoalho
e terminavam de arruinar a mobília. Lobo não, a menina percebeu.
Loba.
Porque aquela era a Topázio, herdeira direta de Hila e capitã da
guarda. Mãe da Diana, avó de Howl.
Nye Reiters tinha sido aquela a vir em auxílio dos dois.
A besta não representou ameaça alguma diante dela. Em segundos,
estava tudo acabado. Graças à melhor guardiã que a alcateia possuía,
Mykaela e Eiko tinham sobrevivido.
Mas a tia, não.
O desgraçado aguentava.
Mykaela estaria mentindo se dissesse o contrário.
Quando a Platina aparecera para o dia de ringue naquela manhã
trajando seus couros e toda a arena se assentara numa quietude sobrenatural,
Hassam tinha sido o primeiro a pular as grades e aceitar seu desafio
silencioso. Vestindo proteção nos ombros massivos e placas de couro nos
pulsos, ele parecia inquietantemente relaxado com a apreensão nervosa dela.
A guardiã podia sentir cada mira na multidão estancada em si,
naquele momento.
Ela não era uma cadela louca e esnobe. Podia mostrar que sim, nem
que precisasse deixar Hassam vencê-la para isso.
—Espada? Adaga? Machado? Lança? — indagou ele, os braços
enormes cruzados enquanto analisava sua pose tensa.
—Nada — respondeu ela, e o canto dos lábios dele se ergueu.
—Nada, então.
E tirou as ombreiras, seguidas então pelas placas de couro, jogando as
peças de lado no canto da arena.
A alfinetada saiu sem querer:
—Talvez devesse ter mantido essas coisas.
—Pode mostrar a que veio ou pode continuar com essas ameaças
vazias, Platina. Tenho a manhã toda.
Risadas baixas e assobios esparsos soaram pelo público amontoado
em volta do ringue. Algo faiscou com a provocação no interior da garota, e a
sensação não era de todo ruim. Era motivação, e era deliciosamente focada.
Seu corpo estava retesado com a antecipação, os músculos esquentando com
a vontade de entrar em movimento. Sua visão se afiou em algo cuidadoso,
nítido, praticamente extracorpóreo.
Ela queria tanto aquilo que chegava a trincar seus dentes. A frustração
e o estresse vinham lhe cobrando tanta tensão e pouco alívio que nem as
noites nas quais se sentia disposta a escorregar a mão entre as pernas
ofereciam algum consolo. Mykaela precisava distribuir alguns hematomas,
levar algumas pancadas, rolar na terra entre socos até sentir algum músculo
saindo do lugar.
Hassam ofereceu mais do que esperava a princípio, sendo honesta.
Ela começara experimentando a defesa dele, atenta à velocidade com
que respondia aos seus golpes, consciente de como ele movia os pés para
bloqueá-la, atacá-la, desviar dela. Notando como ele conseguia manter o
controle sobre sua respiração, sobre sua força, sobre seu peso. Uma ínfima
parte de Mykaela esperara que sua fraqueza residisse ali — no fato de que
Hassam era enorme, pesado e obviamente mais lento que ela.
Ele podia ser todas essas coisas, mas não era nada estúpido ou
inexperiente, e ela sabia que o lupino não a deixaria se aproveitar desse fato,
desde que vinha estudando suas táticas no ringue depois de todas aquelas
manhãs assistindo as lutas. Fora uma vantagem, contudo: ela conhecia
bastante da técnica dele, e Hassam estava apenas começando a analisar a sua.
Mesmo que houvessem se enfrentado antes, nas noites prévias ao
tratado em que a lua de Diana ascendia, não podia ser comparável àquilo.
Enfrentar um inimigo sedento por sangue na forma animal enquanto lutava
pela própria vida era inteiramente diferente.
Então Mykaela conseguiu acertar o primeiro golpe, uma pancada
lateral na panturrilha que o fez grunhir e fintar para longe dela com uma
careta. Pelo menos não tinha exagerado na força — tinha se certificado de
não quebrar o tornozelo dele, na verdade.
Alguns licantropos comemoraram de forma sutil, e ela ouviu a voz de
Feuer gritar:
—Acabe com ele, Skies!
Três ou quatro lupinos vaiaram em resposta, mas isso só fez a capitã
da guarda dar risada.
Eles coreografaram uma valsa naquele ritmo de investidas e recuos,
de golpes e bloqueios por quase três minutos. Hassam era bom, e seus
reflexos eram afiados o bastante para prever cada avanço dela e impedi-lo
com um giro de antebraço ou flexionar de ombro. Mykaela achou que estava
indo bem, porque a multidão parecia cada vez mais animada com o rumo da
luta.
Seu oponente não, entretanto.
—Que merda você está fazendo?! — ele sibilou, baixo demais para
que qualquer um além dela escutasse, antes de desviar de um chute que teria
acertado suas costelas.
—O que foi? — arfou a Platina, escapando de um agarre frontal.
—Você está se contendo, porra.
Ela estava. É claro que estava, viera para esse conflito se obrigando a
fazer isso. Mas aquele ritmo estava bom para a garota; para quem não tinha
um bom arranca-rabo há meses — nem com Feuer —, aquele combate
programado era a droga do paraíso. Seu coração estava acelerado, seus
músculos latejavam com a força imposta em toda ação e cada mísero erro
poderia significar uma derrota vergonhosa, mas Mykaela finalmente estava se
sentindo viva, se sentindo bem.
Hassam não estava, porém, porque a cara de homicida agora contorcia
o rosto dele.
—Você é muito melhor que isso, Skies — rosnou. — Pare de sacudir
os punhos como uma menininha e me soque como a porcaria de uma mulher.
Ela franzia a testa ao ofegar e tirar alguns fios de cabelo da testa
suada.
—Não, isso é um combate esportivo — retrucou, confusa. — Você
mesmo disse que...
—Eu disse para se libertar. Disse que aguentava. Não falei para você
reprimir seus golpes nem ser condescendente comigo.
Era indignação endurecendo o semblante do lupino. Raiva e uma
revolta silenciosa, também. Ele pensava que ela estava se contendo porque
não achava que Hassam conseguia enfrentá-la, como se tivesse pena dele.
Merda.
—Não é isso — chiou, se abaixando segundos antes que ele enfiasse o
cotovelo em sua boca. — Não é nada disso, Imanur.
—Então mostre, caralho! — ele rugiu.
Mykaela perdeu a sustentação de um dos pés. Sua postura oscilou e
ela soube que Hassam não hesitaria. Teria se sentido ofendida se ele
hesitasse, assim como ele se ofendera segundos antes.
O lupino não a decepcionou.
Sua defesa foi lenta demais e o punho fechado dele atingiu sua
mandíbula em cheio, fazendo o rosto da Platina girar noventa graus para a
esquerda. A visão dela piscou com um borrão negro graças à dor lancinante
na bochecha e na droga do seu crânio, e por um triz seus pés quase não
aguentaram o próprio peso. Tropeçando para longe de Hassam antes que ele
pudesse atingi-la naquele estado e recuperando o controle sobre os próprios
movimentos, Mykaela arreganhou os lábios e rosnou de forma animalesca ao
firmar os pés e cuspir sangue no chão.
Se ela tivesse perdido um dente por causa daquele filho de uma puta...
—Aí está você — Hassam sorriu, maldoso, inclinando a cabeça e
acenando convidativamente. — Estava me perguntando quando sairia para
brincar de verdade.
A Platina avançou.
Prevendo que ele bloquearia seu primeiro soco, seu outro braço se
lançou na direção do esterno exposto do lupino e serviu de distração o
suficiente; ocupado com seu ataque superior, a perna de Mykaela o fez perder
o equilíbrio ao enfiar o calcanhar atrás do dele e puxar com força. Ela ainda
enfiou o punho em sua barriga enquanto ele caía. Vaska tinha lhe ensinado
esse golpe ao aplicá-lo nela anos antes e, pela gargalhada eufórica da Ônix
vinda da plateia acima do urro animado da multidão, Feuer se lembrava
muito bem do ocorrido.
Hassam rolou de costas na terra depois de cair, antes que ela pudesse
finalizar a investida e apagá-lo, e Mykaela pulou para fora do alcance das
pernas dele quando uma rasteira quase lhe derrubou. Ele se levantou num
salto, o sorriso selvagem esticando as cicatrizes e fazendo seus olhos
castanhos faiscarem, e a garota tomou o gesto como razão para mirar outro
soco na direção dele.
Seus movimentos se tornaram mais impiedosos, mais frenéticos, e ela
conseguiu acertar um pisão no peito do pé, uma cotovelada na lombar e dois
socos antes de levar o primeiro chute dele. A dor a recompensou por todos os
seus golpes de uma vez, no entanto — podia ser sobrenaturalmente mais
forte, mas ele ainda era um lupino com dez centímetros e sessenta quilos a
mais do que ela. O golpe pesou como uma marreta em seu abdômen, e
Mykaela foi atirada a três metros de distância, arquejando em busca de ar
depois do impacto dolorido.
Talvez ela tivesse quebrado uma costela — mas pelo menos Hassam
também tinha quebrado um dedo.
Se erguendo com um rosnado colérico, a guardiã se jogou com tudo
contra o corpo dele e a força do impulso arremessou os dois no chão,
Mykaela montando em cima do lupino e acertando só um mísero soco
naquele sorrisinho prepotente antes de ser lançada na terra e imobilizada sob
o peso esmagador daquele brutamontes.
Seu joelho voou para esmagar o meio das pernas do lupino, mas
Hassam se moveu no último segundo e a pancada atingiu sua coxa interna.
Ainda arrancou um gemido sufocado dele, e a guardiã se sentiu
vingada.
O cotovelo de Mykaela atingiu a traqueia do bastardo e o pouco de
fôlego que ele tinha foi bloqueado e arrancado. Ele se apoiou nos joelhos,
furioso, agarrou seu braço e girou para trás, colocando-a de bruços na terra e
quase ameaçando deslocar seu ombro. O peito arfante de Hassam pressionou
suas costas e seu braço preso quando ele se inclinou para rosnar em seu
ouvido:
—Acho que gosto mais de você assim.
—Filho da...!
Ela lançou o pé para trás e atingiu a coxa dele com um baque
satisfatório, forte o bastante para fazer Hassam perder o agarre em seu pulso.
Mykaela girou então, livre, e usou o próprio peso para jogá-lo para trás com
um rugido selvagem. A coisa toda tinha ido de luta contida entre guerreiros
experientes para algo mais parecido com uma rusga exaltada de taverna, mas
não que a Platina se importasse. Ele agarrou seus braços antes que ela
pudesse esmagar a maldita daquela garganta entre os dedos em garra e...
—Tempo! — gritou alguém da plateia. — Tempo!
—Tempo o caralho! — Mykaela vociferou, se contorcendo no aperto
dele e praticamente rebolando em seu colo, mas àquele ponto teria feito de
tudo para livrar os braços e arrancar um globo ocular fora.
Hassam apertou seus braços até ela sentir que vergões se formariam
em sua pele, mais tarde — o lupino também parecia ver que soltá-la naquele
momento poderia fazê-lo terminar cego de um olho.
Mãos agarraram Mykaela por trás, pela cintura, pelos ombros.
—Larguem!
—Mykaela, o tempo máximo de luta são quinze minutos! — alguém
berrou para ela.
A garota arremessou o punho contra o Jade antes de ser contida outra
vez.
—Não terminei com esse filho da puta! — ela urrou, lutando como
um animal descontrolado nos braços de uma figura feminina que cheirava a
Feuer. — Não terminei!
Hassam gargalhava alto, sem fôlego, ainda caído no chão, o nariz
sangrando e um enorme arroxeado se formando na maçã do rosto direita. A
Platina não devia estar muito melhor, mas seu orgulho com certeza terminara
mais ferido do que o resto.
Quinze minutos inteiros... E ela não conseguira nocauteá-lo. Tiveram
de interromper o embate porque o maldito do tempo tinha acabado, não
porque ela acabara com a raça dele.
O lupino sorriu para a figura alucinada dela com toda a presunção do
mundo.
—Quem sabe mais sorte na próxima. Se é que vai se dignar a parar
com a merda de ficar refreando os golpes.
Ela gritou de ódio, arranhando os braços da Ônix para tentar alcançá-
lo. Uma parte do seu cabelo tinha se soltado da trança, e ela provavelmente se
parecia com uma maluca. Não dava a mínima; continuaria parecendo uma
maluca e vendo vermelho até fazer Imanur engolir cada um daqueles dentes
depois de socá-los todos garganta abaixo...
—Hassam — a voz parecia a de Safira, então, repreensiva e
levemente consternada. — Acredite, você não quer que a deixemos arrancar
sua parte preferida a dentadas.
O lupino só riu mais alto, fungando e se levantando com um bocado
de dificuldade.
—Deixe que ela tente — a provocação implícita na voz dele a fez
recomeçar a rosnar. — Veremos até onde ela aguenta engolir.
Feuer soltou um ruído engasgado atrás dela, e Mykaela quase avançou
nele outra vez com a distração momentânea da capitã da guarda.
—Deixe minha boca fora da merda da sua mente suja, Imanur — ela
ameaçou.
—Só se prometer não tentar me deixar duro enquanto tenta me matar
ao mesmo tempo.
Safira cobriu o sorriso com as mãos e os olhos da Platina se
arregalaram por um instante, com o choque, com o embaraço, com o horror.
Ela tinha se esfregado nele, não tinha? Deusa e todas as malditas estrelas, que
merda. Que merda imunda e infindável.
Mykaela latiu antes que começasse a corar e desse mais motivos para
Hassam zombar dela:
—Se acha que aquilo era eu tentando te deixar duro, Imanur, então eu
sinto pena do seu repertório sexual.
Deleite e desafio faiscaram nos olhos dele.
—Se você se contém na cama como se contém no ringue, então acho
que posso dizer o mesmo.
—Tuuuudo bem — fez Vaska, tentando a todo custo não rir como
Mykaela estava vendo que ela queria fazer. — Eu realmente não previ a
direção que essa conversa tomou, mas acho que já chega.
Farah, a Diamante, estava com a cara vermelha feito um tomate, e a
Granada, prima de Feuer, também parecia estar dando tudo de si para não
irromper em gargalhadas.
De repente, preenchida pelo pavor, Mykaela se deu conta de que
ainda estava sendo segurada. Que estava sendo contida como uma besta
raivosa, que certamente se parecia com uma. Exatamente como todas as
outras vezes em que perdera o controle e atacara alguém, que desapontara
tudo e todos com seu temperamento desprezível.
A vontade de xingar Hassam e nunca mais olhar na cara do filho da
puta por causa daquela ideia ridícula veio à tona como uma enxurrada, e suas
íris se cravaram na expressão do lupino com o mais puro ódio.
Mas a expressão dele, por sua vez, despretensiosamente dizia olhe ao
seu redor.
Ela o fez, desorientada.
E viu que os guardiões ao seu redor estavam sorrindo, nada surpresos
ou irritados com ela, que a multidão ao redor da arena ainda vibrava, que o
estresse pulsando em sua cabeça junto com seus músculos tensos agora não
passavam de um cansaço aliviado. A diferença vital daquela vez, pelo visto,
fora o fato dela ter lutado num ambiente feito para isso; ninguém a estava
julgando por ter perdido as estribeiras.
Mykaela relaxou o corpo e Feuer a libertou com um aceno, sorrindo
marota.
—Nada mal, Skies. Mais alguns minutos e você poderia tê-lo apagado
— a Ônix cruzou os braços. — Ou arrancado as roupas do infeliz, o que
viesse primeiro.
A Platina enfiou um soco no ombro da capitã da guarda, e a risada do
grupo de guardiões ao redor delas, aquele clima leve de camaradagem, a fez
se sentir incluída, vista, acolhida.
Pela primeira vez em anos.
Ela lançou uma expressão atravessada de soslaio a Hassam.
Ele apenas piscou um olho de volta.
Isso é idiota.
Eu sou idiota.
E devia estar em casa.
Devia estar mergulhada em gelo até o pescoço.
Devia ter me oferecido para substituir Eora e me afundar na neve de
Ellayi até parar de sentir as extremidades do corpo.
Mesmo que essa última opção a fizesse ter de encarar Ulsa, pelo
menos Mykaela não encararia... O que quer que fosse encarar a seguir.
Era a falta de saber o que esperar que lhe cobrava mais caro: sabia que
estava sendo ridícula — para não dizer arrogante — ao retornar para pedir de
Imanur o que ela mesma lhe negara. Mas ele era um macho; um homem.
Homens não costumavam rejeitar esse tipo de acordo... Certo?
Mykaela superara o próprio horror diante da possibilidade com uma
velocidade incômoda, depois da fantasia da noite anterior — uma que fizera
sua consciência latir um “hipócrita” mais rápido do que Howl derrubava
guardiões menos experientes com suas odiosas rasteiras. Ela passara o turno
de vigília da manhã se contorcendo de ansiedade e se obrigando a não pensar
nas imagens detalhistas que sua mente imunda bolara.
Até Safira notara seu comportamento incomum durante uma
caminhada matinal, o tique nervoso em seus dedos girando suas facas de
forma distraída, seu olhar perdido nos limites da vila enquanto patrulhava os
arredores.
—Você está bem? — indagara a Diana, acompanhada de Ruby, a alfa
lupina e sua mãe.
Mykaela piscara para a Lunar, tentando colocar a cabeça em ordem.
A guardiã não podia deixar de tomar um susto quase toda vez que
olhava para ela, mesmo depois de quase um ano. O cabelo branco e as íris
prateadas faziam diferença, é claro, mas não era exatamente isso. Safira
passara de uma jovem enfezada e fechada para uma soberana altiva,
confiante. O posto lhe caía bem, por mais que um fragmento antigo e bobo de
Mykaela odiasse admitir. E é claro, a Platina lhe devia todo o respeito e
lealdade, agora. Ela não era só sua Diana, mas também uma das poucas
pessoas que haviam decidido confiar nela outra vez, que haviam visto além
da cadela louca.
—Eu estou ótima. Como está a pequena Maria?
Mykaela tinha decidido entrar na aposta e arriscar por uma pequena
fêmea, só para contrariar Meistens e torcer para que tivessem uma alfa na
próxima geração.
Safira revirara os olhos diante do comentário.
—Chutando mais do que a droga do pai num dia movimentado na
arena — respondera, com um suspiro e uma careta repreensiva. — E não
desvie do assunto, Skies.
—Acho que o lado maternal já está levando a melhor sobre você.
—E eu não acharia isso ruim em nada — dissera Ruby, suavemente.
—Isso é inesperado, vindo de você — a Lunar rebatera, seca.
Uma expressão dolorida se instalara na face da alfa lupina, então. Ela
se desculpara de modo desconfortável e se despedira em seguida,
balbuciando algo sobre ter compromissos na própria alcateia.
Elas ainda não se entendiam muito bem. Safira a tolerava e fazia isso
pelo bem da matilha, mas não superara o histórico covarde de abandono
proposital da mãe. Ruby basicamente catava migalhas de atenção da filha,
mas Mykaela via a agonia em seu rosto a cada vez que a Diana era ignorante
ou dura com a matriarca.
—Sabe — começara a Platina, com cautela, enquanto as duas
observavam a soberana lupina se afastar. — Eu sei que sua mãe não é
exatamente digna de uma postura carinhosa ou afetiva, mas... Mas eu ainda
acho que poderia pegar mais leve com ela.
—Você — zombara Safira, cruzando os braços sobre a barriga
avantajada de sete meses. — Você acha que eu deveria pegar leve com
alguém?
—Eu sei — a garota expirara com força, armando uma careta. — É
que a situação me faz pensar na minha mãe e no que ela sofreu na mão do
meu pai. E às vezes... Às vezes acho que preferia que ela estivesse bem,
mesmo que fosse longe de mim. Não morta pelo marido que nunca a
valorizou como deveria, que a tratava como lixo e era violento com ela. Pelo
menos eu sei que ela me amava, e você sabe que Ruby também te ama. Ela já
fez de tudo para te provar isso.
A Diana piscara em descrença, abrindo e fechando a boca de modo
aturdido. Será que suas palavras haviam soado tão ridículas assim?
—O que há com você, ultimamente? Will disse que você também
apostou a respeito do gênero do bebê. Howl estava feliz por você ter
ingressado as lutas no dia de ringue. Eora comentou que vocês ficaram
conversando sobre machos numa tarde no chalé — ela soara cuidadosamente
incrédula. — Será que você finalmente está amolecendo e quer que eu faça o
mesmo, Skies?
Mykaela revirara os olhos com uma veemência sarcástica.
—Só não te dou um safanão agora por causa dessa barriga de pata
choca, Reiters.
Uma gargalhada baixa deixara os lábios de Safira diante da resposta.
—Aí está a Platina que todos conhecemos e tememos. Vou ficar
grávida mais vezes então, se isso impedir suas surras.
A garota se arrepiou com um honesto e amedrontado frio na alma.
—Faça por sua conta e risco.
Agora, enquanto procurava Hassam e tentava não sair correndo na
direção oposta, com medo dele notar o nervosismo exposto em cada poro da
sua pele como a Diana fizera, Mykaela também se perguntava se intimá-lo
valia o risco de levar um belo e sonoro não.
Seu orgulho não aguentaria o golpe, não depois de passar horas
apenas imaginando o toque dele sobre ela, imaginando seus dedos como se
fossem os de Imanur no ápice de suas coxas na noite passada. Mas, olhando
por outro lado, talvez aguentasse.
Ela já fora rejeitada pelo próprio noivo (mais de uma vez), afinal,
aquele que no momento era seu atual alfa. As circunstâncias não podiam ficar
piores que aquilo, podiam?
Depois de esquadrinhar a alcateia de forma discreta, como se tudo não
passasse de uma ronda rotineira, a Platina se dirigiu para a floresta e seguiu o
cheiro que ela havia aprendido a reconhecer de forma involuntária. Algo
como cedro e limão, a lembrança do aroma que a fizera arfar e se contorcer
em êxtase na última noite.
A vontade era jogar Imanur na superfície mais próxima e cavalgá-lo
até perder a consciência, mas sua mente estava gritando em sobreaviso e sua
confiança ameaçava fazê-la vacilar. Mykaela nunca fora o tipo que recusava
um desafio, no entanto, e isso era a única coisa fazendo-a continuar
procurando o macho pela mata como uma tola no cio.
Ela se aproximou o bastante do território da alcateia lupina para saber
que o homem estava entre os seus, e isso murchou boa parte da sua
disposição em encontrá-lo. A guardiã estancou no limiar da região, perto o
bastante para avistar as tendas e longe o suficiente para que não fosse
identificada, e soltou um suspiro frustrado.
Aquela fora uma péssima ideia. Talvez isso fosse apenas uma maneira
da deusa avisá-la a respeito.
Contudo, como se Diana não gostasse de ser usada como justificativa
de forma errônea, a figura desproporcionalmente grande de Hassam surgiu
entre as estruturas de tecido e se dirigiu para a parte norte do território — na
direção da matilha licantropa, de onde ela viera.
Mykaela honestamente considerou girar nos calcanhares e correr
antes que ele a notasse. Viu acontecendo, sentiu seus músculos se
tensionando para a disparada.
Mas a lembrança do dia anterior fez suas pernas hesitarem — o modo
como ele em nenhum momento a fez se sentir julgada, ou desconfortável na
própria pele. Então talvez, se a garota propusesse aquilo, ele... Ele não faria
troça dela. Ele seria compreensivo, e educadamente explicaria sua rejeição.
Hassam era um idiota com tópicos levianos, não com tópicos sérios. Era um
dos poucos machos que ela conhecia que sabiam distinguir um do outro, na
verdade.
Então, antes que a vergonha e a relutância levassem a melhor sobre
ela, a Platina saiu de detrás das árvores e caminhou até Imanur com toda a
calma fingida do mundo.
O lupino se tensionou com a visão da figura dela, os olhos passeando
pela paisagem ao redor como se Hassam quisesse encarar qualquer outro
lugar ou coisa que não Mykaela.
Desconforto. Era vergonha e relutância que ela percebia nele, em vez
de em si própria.
Isso a motivou a murmurar, direta e inalterada:
—Posso falar com você? Em particular?
As íris castanhas do homem se estreitaram, pura desconfiança se
mostrando em sua postura rija. Depois do que pareceu uma eternidade, o
queixo de Imanur assentiu de leve, e ela soltou o ar que nem notara estar
prendendo.
Mykaela se virou e andou na direção oposta às matilhas — a leste,
indo para a vila humana ou no caminho para a cabana de Nye Reiters. Os
passos de ambos esmagaram folhas e terra e grama por sobre suas botas até
que ela estivesse confiante de que não estava ouvindo nada nem ninguém; e
que nada nem ninguém os ouviria.
Antes mesmo de girar para encará-lo, ela começou:
—Hassam, sobre ontem...
—Eu sei, Skies — a voz dele soou frustrada. — Fui um idiota, é isso
que queria ouvir? Já pedi desculpas.
Ela observou a falta de jeito no rosto moreno do lupino com uma
confusão curiosa. Ele correu as mãos pelo cabelo de modo inquieto.
—Não. Não era isso que eu queria ouvir, mas...
—Sim, eu interpretei nossas interações da maneira errada — admitiu,
engolindo em seco. — Pode me chamar de brutamontes convencido, eu
mereço. Me perdoe se te deixei incomodada. Isso estava bem longe da reação
que eu esperava.
Ele estava nervoso. Mykaela teve de conter o sorriso porque estava
achando adorável, mas aparentemente foi a coisa errada a se fazer, porque
uma sombra indignada cobriu as feições de Hassam.
—Sei que deve estar achando tudo isso muito engraçado — grunhiu,
gélido. — Mas eu não vejo necessidade nessa humilhação alheia. Como eu
disse, já pedi desculpas. Agora, se me dá licença...
—Imanur, espere! — ela avançou para alcançá-lo, mas as pernas do
desgraçado eram ainda maiores que as suas e lhe levaram para longe em
meros segundos. — Você não interpretou nada errado!
Tudo bem, aquilo fora uma mentira, mas ela queria que ele não
tivesse interpretado errado. Queria que ela própria tivesse notado as
vantagens daquelas interações antes.
—Chega, Skies — ele rosnou, sem nem olhar para trás. — Os jogos
só têm graça quando você não está me fazendo de idiota.
A Platina negaria caso isso lhe fosse perguntado mais tarde, mas a
verdade era que disparou e se meteu na frente de Hassam com um rosnado
insistente, batendo o pé feito uma criança.
—Cale a maldita boca e me escute! — ela empurrou os ombros dele
para fazê-lo parar. — Eu fui a idiota ontem, tudo bem? Acho que uma parte
de mim estava sim te incentivando, e a outra... A outra só era muito turrona
para me deixar admitir isso.
A testa do lupino se franziu.
—O quê?
—Eu sei! — a guardiã jogou as mãos para o alto, irritada. — Sei que
não estou fazendo sentido, eu só... Preste atenção, tudo bem? Eu só sei que
seria bom. Isso. Eu, você. Quando penso em você, eu... — a garganta dela
parecia um campo de algodão. — Eu não sinto vontade de afastá-lo. Não
sinto vontade de ser rude.
—Essa é a parte em que eu deveria agradecer por isso? — ele
zombou.
Mykaela sibilou em resposta, mas percebeu que o tom da sentença
fora mais suave, não frio ou ofendido, apenas cauteloso. Ele estava ouvindo.
Um exalar profundo deixou os lábios dela.
—Quando penso em você, eu... Eu quero deixá-lo se aproximar — ela
ousou erguer a mão para roçar o antebraço colossal de Imanur com um toque
hesitante, e os olhos castanhos intensos seguiram seu movimento. — Quero
deixá-lo me tocar, quero... Quero cada parte disso. Demorei a perceber, mas...
Mas eu quero você. Eu não sei, só...
A mão de Hassam a puxou pela cintura antes mesmo que Mykaela
conseguisse terminar, colando as frentes dos corpos de ambos com uma
pressão estarrecedora. Ela só percebeu o quanto ele lhe afetava e o quanto
vinha ansiando por aquilo quando seu coração tropeçou no peito e seu
estômago deu duas ou três cambalhotas.
Foi quando a insegurança realmente lhe atingiu com tudo.
A ideia de alguém tendo tanto poder sobre ela ou seu corpo não lhe
agradava.
—Eu também não sei o que é isso, Skies — ele respirou, o hálito
resvalando no dela, a voz rouca fazendo um arrepio correr pela guardiã
inteira. — Só sei que não consigo mais ignorar.
Ela estava mesmo insana. Tinha perdido a maldita da cabeça. Devia
ter corrido para longe dali antes que não conseguisse revogar aquela loucura.
Mas apenas se viu sussurrando de volta, incapaz de impedir as
palavras:
—Então não ignore.
Os cílios dele tremularam, o vislumbre da língua aparecendo para
umedecer os lábios entreabertos de Hassam fazendo seus batimentos
galoparem. Mas ele continuou imóvel. Inegavelmente expectante, mas ainda
imóvel. Deixando que ela tomasse a atitude, que ela lhe desse a anuência.
Mykaela o fez.
A mão dela subiu para envolver o cabelo de Hassam ao mesmo tempo
em que seus lábios se colavam com uma fome voraz. Os dedos dele já
apertavam sua cintura, um grunhido grave e satisfeito deixando sua garganta
quando os gestos afoitos da guardiã o surpreenderam de modo
irrevogavelmente agradável. Então aquela boca cheia e atrevida que Mykaela
tanto se criticara por encarar no dia anterior estava se movendo e
mordiscando a dela, contornando-a com a língua para abrir passagem.
O beijo se aprofundou com aquele toque quente e molhado, e um
arquejo deliciado escapou da garota com a explosão de faíscas que o contato
fez explodir em seu interior.
Aquilo queimava. Era quente ao extremo e fazia suas entranhas
formigarem, sua cabeça rodar, sua consciência se perder em meio aos sons
guturais que Hassam soltava enquanto a beijava. Ela nunca se sentira
arrebatada por completo com um macho antes, mas não sentia que tinha
muito escolha com ele. Aquela provocação maliciosa entre os dois vinha lhe
deixando maluca há dias, mesmo que não tivesse percebido a tensão se
acumulando em seu interior. Mykaela nunca sentira nada parecido.
Então ela simplesmente ignorou a metade horrorizada de si mesma e
prensou o lupino contra uma árvore, ainda sem descolar os lábios dos dele.
Hassam gemeu quando a guardiã se comprimiu ao corpo forte e largo.
Não havia gentileza, não havia suavidade ou calma. Era fogo, era
puro fogo ardendo entre eles, ardendo com toques lascivos e movimentos
impacientes.
Fazia tanto tempo, tanto maldito tempo...
Ela conseguiu arfar enquanto os dedos desfaziam os nós da camisa
dele às pressas:
—Você toma algum contraceptivo?
Mykaela costumava tomar um... Antes de ser presa. Seu ciclo
demorara a voltar após passar dois meses com fome e com frio, enfurnada
numa cela suja e minúscula. Ele ainda estava irregular, mas a curandeira que
lhe vendia o chá anticoncepcional lhe dissera que, no momento, ele faria mais
mal às suas regras mensais do que bem.
E a guardiã queria Hassam, não arriscaria aquilo. Nunca aquilo.
—Sim — foi tudo que o lupino respondeu, ajudando a puxar a camisa
por cima da própria cabeça, apenas para jogá-la longe e voltar a beijar a
guardiã um segundo depois.
Graças à deusa e todas as malditas estrelas.
Ele beijava bem. Muito bem mesmo. O encaixe dos dois, a maneira
como seus corpos ondulavam em sintonia e como pareciam saber exatamente
como tocar a melodia que os fazia cantar de prazer... Era estranho e
avassalador. Mykaela não se permitiu pensar a respeito, não quando cada
lugar onde os dedos calejados de Hassam resvalavam ficava impossivelmente
sensível e quente.
Não quando a pele musculosa cheia de cicatrizes do peitoral enorme e
agora desnudo também parecia ferver sob o toque das suas mãos.
Ah, deusa, como era bom poder fazer aquilo, como ela sentira falta de
um corpo masculino estremecendo contra o dela. E por mais que lhe doesse
admitir, Hassam era de longe o mais palatável deles. Todas aquelas
reentrâncias e vincos em seu abdômen trincado, nos bíceps como toras, nos
músculos poderosos das costas... A boca de Mykaela estava seca.
Honestamente seca. Ela sempre gostara de machos largos, de anatomia forte,
e ninguém se comparava a Hassam naquele quesito, nem mesmo Howl.
Os beijos e a língua provocante do lupino desceram por seu maxilar,
sua mandíbula, seu pescoço, e a garota se arqueou inteira para ele assim que
as mãos largas envolveram suas nádegas para apertá-la contra o volume
considerável abaixo da cintura de Hassam. Os dedos da guardiã se apertaram
nas mechas escuras e longas do cabelo dele, e um pequeno gemido escapou
entre seus lábios ao se esfregar naquela sobressalência grossa e extensa.
Ansiosa, ela estava tão ansiosa para verificar se ele era mesmo tão grande
quanto o restante do seu corpo...
Hassam rosnou na curva do seu ombro com as investidas arfantes da
Platina, como se soubesse exatamente para onde os rumos dos seus
pensamentos haviam ido.
Uma das mãos dele subiu pela saia do uniforme convenientemente
curto da guarda e um ruído grave de surpresa e satisfação vibrou em seu peito
quando o lupino descobriu apenas pele por baixo dos couros.
—Lobos não usam roupa íntima — ela abriu um sorriso deliciado,
mesmo sabendo que Hassam não podia vê-lo pelo fato de ainda ter a cabeça
enterrada em seu pescoço.
Ele grunhiu de todo jeito, no entanto.
—Acho que é a primeira vez que não me verá jurando aos deuses em
relação a isso.
—Isso...?
—Isso de poderem se transformar quando quiserem sem esforço — a
mão de Hassam continuou o trajeto pela parte interna da coxa da garota, e
Mykaela se achou francamente capaz de derreter em uma poça de tremeliques
aos pés dele. — Isso de não precisarem usar roupa íntima.
Uma risada baixa e conivente escapou dela, mas o som logo se tornou
um ofegar estrangulado quando os dedos dele deslizaram com facilidade pelo
meio encharcado das suas pernas.
—Porra, Kaelie — sibilou Hassam, mordendo o lóbulo da sua orelha
e respirando com dificuldade. — Já está pronta para mim?
Kaelie.
Ela passara de Platina, a Skies, a Mykaela e então a Kaelie.
Ele lhe dera um apelido. A única pessoa que usava um apelido com
ela era Eiko.
A guardiã não se deixou prender àquele tópico perturbador. Não
quando aqueles dedos estavam a meros milímetros da sua entrada.
—Acho que pode se esforçar mais um pouco, Imanur — ela arquejou
contra o peitoral quente e rígido, enfatizando o uso do sobrenome dele como
se para reforçar a impessoalidade da situação.
Mesmo que não houvesse nada de impessoal no modo como Hassam
a tocava. Nada de impessoal no modo como a olhava.
Nada de impessoal no modo como os dedos dele se entremearam pelo
seu cerne e a fizeram gemer ao escorregarem para dentro dela.
Mykaela soltou um gemido sem fôlego, os quadris arremetendo
involuntariamente contra o estímulo infame de Hassam.
—Porra — repetiu ele contra seu pescoço, trêmulo ao morder a pele
sob seus lábios de leve, a língua lambendo o suor da pele dela como se
quisesse estar lambendo o lugar em que sua mão estava alojada. — Porra,
Kaelie.
Mykaela não conseguiu mandá-lo parar de usar o apelido, até porque
não conseguia reunir consciência o bastante nem para lembrar do nome
verdadeiro. A palma dele esfregando o ápice de suas coxas ao mesmo tempo
em que seus dedos a penetravam tornava isso muito, muito difícil.
Hassam incrementou a pressão na base da mão, e a guardiã teve que
conter o arquejo sonoro que quis escapar entre seus lábios entreabertos.
Longe, eles estavam longe o suficiente para não serem ouvidos, mas a
audição licantropa não devia ser subestimada. Ela sabia muito bem disso.
As mãos de Mykaela desafivelaram o cinto e a calça do lupino, e ela
conseguiu recuperar um pouco do controle quando os movimentos de
Hassam perderam o ritmo assim que a Platina o envolveu com ambas as
mãos.
Mas seus olhos se arregalaram, e ela foi forçada a olhar para o volume
pulsando em seus dedos.
Grande. Muito maior do que ela previra, sendo honesta, e caralho de
abismo flamejante, não caberia nela. Mykaela podia estar acostumada com a
sensação — sua experiência sexual não a deixara tão “estreita” assim —, mas
sua bacia ainda era, de fato, pequena. Podia ser musculosa, mas seu tipo
físico ainda era esguio, magro, principalmente nos quadris.
Ela seria empalada.
—Kaelie — a voz de Hassam adentrou seus pensamentos em pânico.
— Kaelie, olhe para mim.
A guardiã se obrigou a erguer a mira, engolindo em seco.
Havia malícia reluzindo nos olhos castanhos dele, mas também havia
uma suavidade paciente.
Mykaela se retesou. Ela não precisava que Imanur sentisse pena dela.
Não precisava que a arrogância dele se elevasse à estratosfera por causa
daquela droga de pau gigantesco. Que o abismo a queimasse se ela não
preferia ser empalada a recuar naquele instante.
—Acho que posso ajudar nessa questão — ele arqueou uma
sobrancelha escura entretida, mas ela mal registrou as palavras. — Acredite,
estou um pouco acostumado.
Hassam apenas retirou as mãos dela do membro latejante e
inacreditavelmente grosso, e trocou as posições deles logo antes de cair de
joelhos; era a Platina agora quem tinha as costas pressionadas contra a árvore,
a expressão descrente se desfazendo em êxtase quando ele colocou uma de
suas pernas sobre o ombro largo e desceu a boca sobre sua intimidade úmida
e sensível.
Deusa e malditas estrelas acima.
—Oh, sim — Mykaela deixou as pálpebras pesadas se fecharem por
completo quando a língua dele passeou pela sua entrada, provocando o ponto
acima com uma habilidade enervante, e toda a insegurança foi varrida da sua
mente como uma onda. — Bem aí, bem... Ah...
Era uma ironia de merda que ele soubesse usar aquela boca tão bem.
Ela supunha que Hassam precisara aprender a ficar bom naquilo... Já que uma
mulher precisaria ficar encharcada para tomá-lo dentro de si sem se contorcer
de dor. Mykaela particularmente não gostava daquele tipo de material... O
desconforto com o tamanho não costumava valer a pena.
Naquela vez, no entanto, ela tinha a impressão de que ele sabia o que
estava fazendo. E é claro que o mandaria parar se não estivesse sentindo
prazer, porque ela não era altruísta ou tola o bastante para priorizar as
vontades dele acima das dela. Havia outras formas de dar e receber prazer,
afinal.
Mas ah, como ele era incrível naquela forma em específico.
Mykaela tremia contra a boca de Hassam. A língua dele a provocava
enquanto a mão a estimulava, enquanto os dedos longos a masturbavam,
enquanto ele mesmo se tocava à medida que a fazia gemer entre ofegares
erráticos. E era errado, era errado de tantas formas...
Então qual era a razão de conseguir sentir apenas certeza em relação
ao que faziam?
Ela não aguentou, por fim. Sabia que estava perto, sabia que em breve
explodiria em prazer e êxtase, mas queria fazer isso com ele dentro dela.
Mykaela sempre sentira mais prazer com dois tipos de estímulo ao mesmo
tempo.
—Hassam — suplicou ela, tentando erguê-lo pelos ombros em gestos
um pouco desesperados. — Hassam, Hassam, Hassam...
Ele estava de pé no milésimo de segundo seguinte, o corpo forte a
pressionando contra o pinheiro, a boca faminta devorando a dela enquanto
suas mãos erguiam a saia de Mykaela e envolviam suas coxas com um
grunhido grave ao erguê-la no colo.
A guardiã se segurou nos ombros fortes e mordiscou o lábio inferior
do lupino quando Hassam se esfregou na intimidade dela numa provocação
deliberada.
—Dentro de mim — arfou ela, se impulsionando contra aquele
volume duro e latejante. — Dentro de mim agora.
Hassam rosnou, segurando-a pela coxa apenas com uma das mãos, e
porra de abismo infernal, obedeceu.
Mykaela se sentiu estirar com uma arremetida intensa, deixando
escapar um gemido agudo com a sensação de tê-lo preenchendo-a por inteiro.
Ela não estava brincando quanto à parte do “inteiro”.
Ele era enorme, enorme, enorme, mas não era tão ruim quanto temia.
A Platina ainda precisou de alguns segundos para se acostumar ao tamanho
desconcertante, contudo. Hassam estremecia a cada contração involuntária
dos músculos internos dela, afoitos para se ajustar à extensão e grossura do
lupino.
—Sim — sussurrou ela, depois de alguns instantes, usando as pernas
para se mover sobre o lupino. — Oh, isso...
Era estímulo o bastante para ele.
Um recuo, vagaroso, provocante, enlouquecedor.
Então uma arremetida dura que a fez ver estrelas e arquejar alto. De
novo, e outra vez.
Recuo. Arremetida. Recuo.
Mykaela estava gemendo na boca dele e se agarrando a cada trecho de
pele que conseguia alcançar. Ela movia os quadris em círculos contra Imanur,
esfregando o ápice do próprio prazer em gestos lânguidos, e pouco tempo se
passou até que perdessem a paciência para a provocação.
As mãos de Hassam a seguraram com força e Diana e estrelas, a
garota achou que poderia morrer de júbilo a cada estocada poderosa que fazia
seu ventre se contrair e formigar. Os sons que ambos emitiam ecoavam como
música entre as árvores, pura brutalidade suada e fogo ardente e intensidade
carnal. Ela não conseguiu nem ao menos se lembrar de quem era, que dirá do
desconforto que temia sentir minutos antes.
Seus seios foram descobertos e tomados pela boca do lupino em
algum momento, e a Platina teve uma verdadeira dificuldade em conter o
gemido alto que quase soltou. Ela o cavalgava enquanto uma das mãos de
Hassam a segurava e a outra se ocupava com o meio das suas pernas, e
Mykaela francamente não soube como ele ainda estava sustentando ambos
contra aquela árvore. A deusa sabia que ela já teria se desfeito em espasmos
no chão da floresta com o quão bambas suas pernas estavam naquele instante.
O impacto contra a madeira em suas costas era um eco distante em
sua mente, o esforço físico nada além de um incômodo insignificante.
Mykaela queria mais, ela o queria por inteiro.
A garota estapeou os dedos de Hassam para longe e assumiu as rédeas
do prazer com os próprios.
—Mais forte — soluçou ela, enquanto se agarrava a ele com uma das
mãos e se tocava naquele ritmo intenso e familiar com a outra.
O lupino se lançou em impulsos inclementes ao rosnar, pele e suor e
luxúria se chocando com força, segurando ambas as nádegas da guardiã para
impulsionar as estocadas firmes. Mykaela apertou as pálpebras com a
vontade de gritar e o beijou em desalento em vez disso, os movimentos
perdendo o rumo e a precisão entre suas pernas com a iminência do clímax
violento. Incrementando a pressão no ápice de suas coxas com a tensão
insuportável em seu baixo ventre, a garota ondulou por arrebatadores
segundos antes de jogar a cabeça para trás e deixar um gemido longo e
arrastado escapar.
O orgasmo a fez se retorcer e arquejar contra Hassam, os músculos
internos se contraindo a cada pulso longo de êxtase, e isso só pareceu
incentivá-lo a alcançá-la. As estocadas se tornaram erráticas, arremetendo
impiedosamente contra Mykaela, e um rugido contido entredentes
sincronizado com a explosão morna em seu interior a fez perceber... Merda,
como aquele som a deixava satisfeita. Como ouvir Hassam gozando —
gozando nela, para ela — a deixava saturada e preenchida por arrogância
feminina.
E gostou mais daquele som do que se permitiu assimilar naquele
momento.
—Puta merda, Kaelie — arquejava ele, os braços trêmulos com o
esforço de mantê-la erguida em seu colo. As coxas de Mykaela latejavam
com os apertões que provavelmente formariam hematomas leves em breve.
Ela não se importou nem um pouco. — Puta merda.
Ela sabia o que ele queria dizer, é claro que sabia. Nunca tinha sido
assim com ninguém, não numa primeira vez. Então sim, as palavras
ressonando na consciência extasiada da guardiã também eram uma sequência
infindável de “puta merda”.
—Quando posso vê-la de novo? — questionou Hassam, a testa colada
na dela à medida que ambos tentavam recuperar o controle sobre as próprias
respirações.
As farpas em suas costas começavam a incomodá-la.
—Nos vemos quase todo dia, Imanur — respirou, sem fôlego.
Uma risada baixa e maliciosa.
—Tudo bem — ele murmurou, então estocou dentro dela outra vez,
fazendo Mykaela soltar um pequeno grito de surpresa e, que a porcaria do
abismo a queimasse, deleite. — Quando podemos fazer isto de novo?
Ela devia ter respondido “nunca”. Devia ter respondido “nos seus
sonhos”.
Mas, talvez por culpa do orgasmo — o melhor que tivera em meses
inteiros —, do cansaço satisfeito, ou simplesmente pela maneira com que ele
a olhava depois de erguer a cabeça; o cabelo suado caindo sob a testa, as íris
castanhas queimando com o desejo e a súplica.
—Amanhã — resfolegou Mykaela. — Me encontre aqui amanhã.
Parte III
Escolhida Pela Verdade
Os dias se passaram como um borrão.
Entre as lutas no ringue, as obrigações como guardiã, as interações
com suas colegas de chalé e os momentos roubados com Hassam... Mykaela
verdadeiramente entendera a expressão que dizia que o tempo corria mais
rápido quando se estava fazendo o que gostava. Ela estava tão
vergonhosamente feliz que chegava a ser esquisito. Nunca tinha se sentido
tão... Disposta.
Acordava animada para os turnos de vigília, jogava conversa fora com
Othella e Eora durante o almoço, se encontrava com Imanur à tarde quando
podia e ia dormir com um sorriso tolo e exasperado no rosto.
E, do jeito que as coisas estavam indo, ela provavelmente acabaria
com o estoque de parafina da matilha em poucos meses.
Naquele primeiro dia, ela hesitara. Se perguntara se realmente valeria
à pena continuar aquele arranjo carnal com o lupino. Porém, passara a noite
se revirando no colchão pensando em como fora bom... O mero toque dele. A
sensação da pele quente contra a sua. A boca pecaminosa, as mãos calejadas,
o corpo torneado.
Então, na manhã seguinte, Mykaela o seguira até uma gruta na cadeia
de montanhas ao sul do território cuja passagem se dava por um trecho
íngreme e estreito de rocha pela lateral do Oldravon. A tenda de Hassam, por
maior que fosse (o miserável era o terceiro em comando, afinal), era
simplesmente muito exposta, e ela dividia o chalé com outras duas guardiãs,
então ele fora aquele a sugerir uma localização distinta para os encontros dos
dois. As corredeiras violentas do rio abafavam todo e qualquer barulho nos
arredores do lugar, ela percebera, depois de precisar gritar para que ele a
escutasse perguntando onde estavam indo.
A entrada era uma reentrância camuflada na pedra escura e úmida, e a
garota nem fora capaz de notá-la até ver Imanur sumir na abertura com um
sorriso perverso e piscar em surpresa.
Sua parte desconfiada a deixou com a guarda em alerta num primeiro
instante, — um esconderijo isolado onde ela não poderia gritar por ajuda nem
escapar com facilidade não era exatamente sua primeira ideia de diversão —
porém, quando atingiu o interior fresco e pouco iluminado da gruta que devia
ter algo em torno de poucos metros a menos que seu quarto, tudo que
conseguiu notar foram algumas peles e mantas no chão antes de Hassam
prensá-la contra a parede desnivelada e tomar sua boca na dele.
Valia a pena.
O que aquele simples beijo fazia com suas entranhas, suas pernas, sua
cabeça... Valia à pena.
Ela perdeu os sentidos naqueles lábios por longos e extasiantes
minutos antes de se afastar rosnando, um pouco sem fôlego.
—Não — ela o empurrou apesar do olhar de confusão no rosto do
lupino, apenas para prensá-lo contra a parede logo em seguida. — Você será
aquele a dormir com dor nas costas esta noite.
Hassam riu ao lamber sua boca, ao envolver sua cintura com os
braços, ao se esfregar nela com uma provocação tortuosa.
—A poderosa Platina está ressentida com algumas míseras farpas de
pinheiro?
—Tive de dormir de bruços — ela reclamou com um bico teatral,
enquanto tentava não sucumbir à vontade de rasgar a camisa dele em
farrapos. — Ainda não acho que tirei todas elas.
O sorriso sacana dele contornou sua bochecha, seu pescoço, seu
ombro, e as pontas dos pés de Mykaela se curvaram dentro das botas.
—Deixe-me ajudá-la com isso.
Ele a deixara quente e molhada com os dedos, então. A curvara sobre
os joelhos contra aquelas peles e a fizera implorar, o punho enrolado em seu
cabelo, a mão comprimindo seu quadril a cada estocada bruta, o gemido
grave arfando em seu ouvido a cada vez que a guardiã rebolava contra ele.
Então, quando estavam ofegantes e esgotados, parte do corpo de
Imanur em cima dela, a liberação ainda fazendo suas coxas estremecerem
com os espasmos finais, ele se jogara de lado nas mantas e rira feito o
canalha que era.
—Nenhuma farpa, Kaelie — arquejara, com um sorriso arrogante de
macho esticando suas cicatrizes. — Nenhuma sequer.
Mykaela lhe dera um soco no ombro, para logo em seguida subir em
cima do enorme corpo suado e beijá-lo até senti-lo endurecer entre suas
pernas novamente. Ela o guiara para dentro daquela vez, o cavalgara até
sentir que estava perto de colapsar, e atingira o clímax com a boca de Hassam
em seus seios, com os dedos dele no botão túrgido no ápice do seu cerne.
Imanur aprendia rápido, mas a Platina também tomava seu tempo
estudando cada gemido e reação dele.
À medida que os dias foram se passando, aprendeu que ele gozava
mais rápido em sua boca, mas o fazia com mais intensidade quando estava
dentro dela. Aprendeu que ele gostava de estar no comando, mas que não
tinha problema nenhum em deixá-la assumir as rédeas quando Mykaela assim
desejava. Aprendeu que ele tinha um apreço especial por imobilizar suas
mãos e fazê-la se contorcer, e por mais que uma parte dela achasse que
odiaria a experiência... Estava errada. Fora excitante e ardente e novo, como
tudo naquela relação com Hassam era.
Mas, acima de tudo, ela aprendera que ele gostava da sua companhia.
E isso talvez fosse o que Mykaela valorizava acima de tudo.
—Nunca corte seu cabelo.
Ela tomou um gole do cantil que havia passado a trazer aos encontros
com Imanur para tentar recuperar o ritmo com o qual seus pulmões deveriam
funcionar, os olhos escorregando para as mechas castanhas desgrenhadas
caindo pelo seu ombro nu.
Estavam se vendo há duas semanas, e ela estava certa de que acabaria
viciada no gosto dele, na sensação dos seus beijos, no êxtase dele
preenchendo-a. Deixava uma fração sua preocupada e isso a fazia agir como
se não passasse de algo corriqueiro, mas quanto mais se encontravam, mais
ela o queria.
—Isso é uma ordem, Imanur? — suas sobrancelhas se ergueram em
desdém.
O lupino alcançou seus fios cor de caramelo, os dedos se entremeando
por entre eles com reverência.
—É um favor que estará fazendo a si mesma — a observou de
soslaio. — Ele é lindo.
Seu cabelo não tinha nada de especial. Ela passava tanto tempo com
ele preso que mal se lembrava da sensação das mechas balançando até o meio
das suas costas. E odiava quando ele ficava caindo em seus olhos ou
restringindo seus movimentos.
Mas seu olhar se prendeu no de Hassam naquele instante, e ela soube
que nunca esqueceria aquele elogio, aquela simples constatação casual.
Mykaela desceu a boca contra a curva do pescoço dele, e Imanur
soltou um gemido sôfrego.
—Inferno, Kaelie. Você quer me matar, não quer? — arquejou ele,
enquanto os lábios dela desciam pelo peitoral moreno, pelo abdômen rijo,
pela ereção já crescendo imponente entre suas coxas.
A mão dele se fechou ao redor dos seus fios castanho-claros quando a
língua da guardiã contornou o topo daquele volume pulsante, e uma risada
baixa lhe escapou em resposta.
—Entendi por que gosta do meu cabelo.
Ele respirava com dificuldade ao descer as íris castanhas anuviadas
com a luxúria na direção dela.
—Com certeza não foi a isso que me refe...
Ela o enfiou na boca e o protesto se perdeu na garganta de Hassam,
substituído por uma prece engasgada.
Suas horas com ele se resumiam a isso. Suor e saliva, gemidos e
arquejos, combustão e cansaço... Tudo isso intercalado com comentários
ocasionais, diálogos irrelevantes e sorrisos roubados. Os dois só conseguiam
se encontrar nos horários de folga de Mykaela, e isso quando Hassam não
tinha algo a fazer na própria matilha, mas era perceptível que Imanur parecia
tão absorto quanto ela, que desejava aqueles momentos tanto quanto ela.
E eles eram tão discretos quanto possível, mas era difícil esconder
suas escapadas das duas licantropas que viviam debaixo do mesmo teto que a
Platina.
—Você está se dando bem, não está? — Eora perguntou durante um
almoço, a face preenchida por uma diversão maliciosa.
—Por que não se renega a abrir a merda da boca só quando algo de
útil for sair dela, Feuer?
Othella rira, apontando o garfo para sua expressão emburrada de
modo acusatório.
—Oh, ela está irritada. Ela só volta a ser uma vaca conosco quando
está irritada, então acho que seu palpite acertou na mosca.
—Cale a boca você também, Benikov.
—Quem é? — a Quartzo deixou o garfo de lado para plantar o queixo
nos punhos e observá-la em expectativa, como uma velha fofoqueira. — Pode
contar, sabe? É aquele lupino que mencionou?
—Imanur? — Eora arregalou os olhos, quase engasgando com um
pedaço de alface roxa.
—Não, concluímos que não era Imanur, lembra? — Othella negou
quase que de imediato, poupando Mykaela de uma bela e reveladora
taquicardia. — Vamos, pode dizer!
—Não tenho porcaria nenhuma para dizer — ela se levantou, o prato
oscilando por pouco em suas mãos. — Enfiem os narizes enxeridos na bunda
de outra pessoa.
Seus dedos tremiam de leve, mas a garota apertou a porcelana até sua
pele ficar branca antes que suas risonhas colegas de chalé notassem.
Ela não sabia por que continuava escondendo as coisas com Hassam,
mas simplesmente se acostumara a fazê-lo. Era mais confortável ter um
refúgio com ele, um lugar secreto onde poderia ser outra pessoa por inteiro,
esquecer de tudo e todos entre os braços dele. Uma parte sua se perguntava se
acabaria tendo vergonha do que faziam, mas então sua parte restante
questionava: vergonha do quê?
Era adulta, era capaz de tomar decisões sozinha, era dona do próprio
corpo e da própria liberdade. As respostas que antes lhe ocorreriam àquela
indagação — ele é um lupino, ele é um monstro, é uma besta-fera, é o
inimigo — soavam inconvenientemente como coisas que Eiko diria, que seu
pai diria, coisas que tinham enfiado em sua cabeça e lhe acostumado a
aceitar.
Então Mykaela continuou se encontrando com Hassam, continuou
encontrando prazer e júbilo em cada pequeno momento com ele.
E se viu livre de amarras, livre de preconceitos, livre de coisas que
antes só lhe limitavam.
Se viu feliz.
Ela não havia trazido parafina na bolsa, então tivera de usar as velas
do candelabro repousando na cômoda do quarto no qual lhe tinham colocado.
Provavelmente teria de depender na visão noturna licantropa nas
próximas duas noites, mas Mykaela não dava a mínima. Mesmo enquanto se
vestia e não conseguia tirar o sorriso idiota do rosto, não havia nenhum pingo
de remorso apertando seu peito.
Inclusive, mais tarde, quando ela, Imanur e o restante dos guardiões
seguiam Howl e Safira para outra reunião — política dessa vez, não
introdutória e inútil como a do dia anterior — tudo que a guardiã queria fazer
era olhar para ele por cima do ombro. Por três vezes quase o fez, e por três
vezes o escutou rindo baixo atrás de si.
Mas pura teimosia a fez se virar para Drania, já que a primeira-tenente
Pravka-Argentae os estava acompanhando graças à presença da própria alfa-
mor no grupo, e indagou de modo casual:
—Onde estão Ávila e Naiara?
As duas soldadas tinham sido simpáticas com Mykaela no dia anterior
durante o trajeto até o salão, e ela só se lembrara dos seus nomes porque
ambas sabiam debater estratégia de combate muito bem.
Diaspur soltou um exalar irritado, as botas ressonando duras contra o
piso escuro de mármore.
—As duas belezuras e mais uma terceira subordinada minha
acordaram tão mal hoje que nem conseguiam se manter de pé direito. Nyädja
normalmente teria o triplo de escolta a mais do que hoje, mas não me deixou
punir as que exageraram na farra noite passada porque foi aquela a autorizar
que se divertissem.
Sua intenção tinha sido puxar uma conversa amena, mas a informação
deixou seus nervos à flor da pele, mesmo quando a Platina se calou e
continuaram virando esquinas e subindo escadarias e atravessando andares.
Era verdade que a segurança parecia bem reforçada nos últimos dias,
afinal se tratava de um evento de magnitude notável. Reunir dezenas de
líderes poderosos num só lugar sempre exigiria cautela. O encantamento na
entrada do salão no primeiro encontro geral, a quase centena de Pravka-
Argentae rondando pelo baile da noite anterior... A guarda não preveniria a
Morada com tanto afinco se não fosse necessário.
E se a alfa-mor normalmente andava com três vezes mais guardas do
que aquilo...
Mykaela lançou um olhar de transtorno a Meistens, caminhando com
os ombros erguidos nos couros reforçados ao seu lado, e a visão do receio
dela foi tudo que lhe precisou para saber que precisava se manter atento. Ele
estreitou os olhos e analisou os arredores com um cuidado renovado, as íris
verdes preenchidas pelo sobreaviso passando o recado adiante para Hassam e
Eora.
Podia estar sendo paranoica, podia estar sendo tola, mas ela mesma já
se envolvera num esquema parecido: soldados aparecerem bêbados ou não
conseguirem completar um turno por causa do álcool... Aquele fora um dos
fatores que lhe permitira libertar seu irmão, já que Berion se encarregara de
drogar um dos guardiões de vigília. A garota não gostava de arriscar.
Seu palpite, ao que parecia, se provara perigosamente certo quando o
Esmeralda estancou no meio do caminho de um dos jardins suspensos do
quarto andar da Morada. Uma fonte decorada jorrava pacífica à direita deles,
e o caminho de pedra rodeado por sempre-verdes e rosas selvagens estava
calmo como seria de se esperar num dia ameno de fim de inverno.
—Esperem — Will disse, a postura tensa.
Howl demorou milésimos de segundo para decifrar a expressão do
próprio soldado e puxar Safira para perto de si, os olhos dourados
esquadrinhando o jardim silencioso com receio.
Meistens encarou a Platina com algo como resignação no semblante,
o maxilar rígido.
—Sangue — informou, num tom sombrio.
Drania se enrijeceu ao lado dela, o foco disparando na direção da alfa-
mor parada a alguns metros de distância, a cabeça inclinada em confusão.
—Duas guardas deviam estar posicionadas na frente leste desse
jardim, atrás das estátuas.
Eora e Will cercaram Howl e Safira, as três Pravka-Argentae
presentes fizeram o mesmo com Nyädja, e a mira de Mykaela varreu a área
outra vez. Tudo parecia dentro do normal, aquela quietude mórbida lhe
enchendo de insegurança, mas... Ali.
Atrás de um pé de cerejeira, aquele arbusto de hortênsias se mexera
para o oeste, mesmo que o vento soprasse para o norte. Entre as pétalas
violeta-escuro arredondadas... Algo ali não era uma pétala.
Era uma ponta.
—Flechas! — Mykaela vociferou, no instante em que o gatilho da
besta se ativou e o som de setas voando cortou o ar ao redor deles. — Se
abaixem!
Merda, merda, merda, pensou, enquanto os projéteis voavam acima
da sua cabeça e ela disparava na direção do casal alfa da sua alcateia.
Trouxera apenas uma adaga no cinto, e Meistens só tinha uma espada
embainhada nas costas. Todas as Pravka-Argentae estavam armadas, pelo
menos, e a maioria das flechas acertava as lâminas inclementes girando em
suas mãos.
—Encontrem os atiradores! — Drania esbravejou, a espada recurva
em seu punho cortando o ar como um lampejo mortal de prata.
O alvo daquela emboscada, obviamente, era a alfa-mor, para onde a
maioria das flechas estava direcionada. Duas soldadas se separaram do
círculo de proteção de Nyädja quando três machos surgiram dos arbustos
altos atrás da fonte e atacaram com lâminas em vez de setas. Howl e Meistens
estavam ocupados com uma fêmea e um outro macho vindos do outro lado, e
alguém tinha dado uma espada a Safira mesmo com Eora e Hassam
defendendo sua retaguarda de modo feroz. Os oponentes tinham os números,
mas não tinham a habilidade para derrotar licantropos que haviam passado
metade da vida batalhando com criaturas com o dobro de tamanho e o triplo
de sede de sangue.
Principalmente não com a dominância exponencial de uma Lunar
adicionada ao combate.
A Diana não estava lutando fisicamente, mas com certeza estava
fazendo mais estrago do que a maioria deles. Qualquer adversário num raio
de dez metros não conseguia dar nem dois passos antes de cair de joelhos e
espasmar em submissão diante das ondas impiedosas de Safira.
Mas as flechas ainda voavam, e uma delas acabou atingindo uma das
soldadas de Drania.
—Gah! — gritou ela, quando o projétil se fincou na sua panturrilha
direita, a face contorcida com a dor. — Estão embebidas com Vuk’ropesch!
As feições lívidas da primeira-tenente ficaram brancas como o
mármore das estátuas ao redor do jardim. Ela se virou para Mykaela, que
terminava de fatiar uma fêmea dentre os inimigos com as garras, nada além
de pânico nas íris bicolores.
—Não deixe nenhuma daquelas flechas atingir sua Diana. Nem um
mero arranhão, está me ouvindo?!
Então seu corpo se desfez em areia diante dos olhos da guardiã. A
nuvem de partículas de terra se lançou na direção dos atacantes com arcos à
direita e a Platina balançou a cabeça para sair do transe aturdido ao se
posicionar atrás de Safira, as mãos pegajosas com o sangue da mulher que
havia caído sob seu ataque.
Ela se esquecia que Drania tinha aquele poder esquisito, graças à
ascendência manipuladora demitra. Outras Pravka-Argentae com habilidades
híbridas mágicas teriam sido úteis, mas a primeira-tenente era a única delas
naquele grupo em específico.
De todo modo, a luta estava quase no fim. Imanur e Eora estavam
liquidando os últimos três adversários próximos, consideravelmente
incapacitados pela dominância da Lunar, e Howl, a alfa-mor e as outras
soldadas tinham ido atrás dos outros atiradores. O som dos reforços
licantropos de Nyädja subindo pela escadaria oeste do jardim suspenso quase
bambeou os joelhos de Mykaela, mas nem tudo estava acabado.
Um dos oponentes da Granada se afastou o suficiente do alcance
dominante de Safira e fuzilou a Filha da Lua com puro e incandescente ódio
no olhar. Sabia que ela era o motivo de seus companheiros terem caído antes
mesmo de conseguirem golpear um deles.
A lança na mão dele voou — e Mykaela se arremessou na direção de
Reiters, o corpo pequeno tombando sob seu peso centímetros antes da arma
passar zunindo pelas suas cabeças. A guardiã girou na queda e usou o próprio
corpo como amortecedor para ela antes que a barriga de Safira atingisse o
caminho de pedra, girando no chão outra vez logo em seguida após o
impacto, para cobri-la com as costas caso algum projétil fosse direcionado à
posição vulnerável da Diana.
E novamente, seu palpite não estava errado.
A Platina ouviu a flecha de besta chiando, ouviu o impacto com carne
e o grunhido furioso de dor — mas ele não viera dela.
O horror preencheu a face de Mykaela quando ela se voltou para trás
e encontrou Hassam tirando a seta da própria coxa ensanguentada com um
rosnado irritado. Ele tinha se postado à frente das duas fêmeas caídas, e agora
enfrentava o último atirador restante. Os projéteis do macho tinham acabado,
então ele largou a besta e pegou a lança da qual Mykaela e Safira haviam
escapado, disparando na direção do lupino com um urro animalesco.
—Não!
O coração da garota quase saiu pela boca com o arroubo de
velocidade, de violência daquele adversário... Mas Hassam apenas agarrou a
lateral superior da arma centímetros antes da ponta atingir seu peito — e o
tranco fez ambos se moverem apenas míseros centímetros.
O macho inimigo arreganhou os lábios e empurrou com mais força,
mas a face de Imanur subitamente se retorceu com algo selvagem, a
mandíbula se alongando e os dentes se tornando presas amareladas do
tamanho de pequenas facas na bocarra avantajada. Garras curvas e escuras
cresceram em seus dedos, e o lupino só precisou dar um mero passo para
frente para a lança se partir em duas com um estalo violento — e sua mão
agarrar a garganta do macho com o tropeço que a arma quebrada fez o infeliz
dar para frente.
A expressão grotesca de Hassam se esticou num sorriso cruel,
erguendo o sujeito acima do chão com a força descomunal rugindo em seu
sangue, e suas garras se afundaram na jugular do macho com um esguicho
sonoro enquanto ele se contorcia e esperneava. O sangue verteu pela roupa
dele como a fonte a poucos metros de distância, e Imanur largou o corpo de
qualquer jeito no solo do jardim destruído.
Assim que a cabeça de Mykaela parou de gritar com o terror, ela
finalmente se virou para Safira — ainda embaixo dela — e resfolegou:
—Você está...
—Bem? — a Diana também tinha os olhos arregalados na direção do
lupino, o rosto avermelhado e transtornado. — Estou, na medida do possível.
Graças a você, Skies.
—Tem certeza?
Ela se ergueu, um pouco trêmula, e ajudou a Diana a se sentar com
cuidado.
—Tenho — com as mãos protetoramente alojadas sobre a barriga, a
Lunar levantou o rosto e franziu a testa para Imanur, ainda em pé à frente das
duas. — Não posso dizer o mesmo de você, Hassam. O que fez foi
absurdamente corajoso e insano, mas muito obrigada.
—Não por isso — ele grunhiu, as feições já de volta ao normal e as
garras retraídas nas pontas dos dedos.
—Você está bem mesmo? — Mykaela indagou baixinho, a garganta
oscilando.
A expressão dele suavizou ligeiramente.
—Essa merda arde, mas vou sobreviver com um torniquete.
—Esse fato se deve ao sangue humano correndo em suas veias, eu
imagino — a voz de Drania soou atrás deles, e a mira preocupada de Mykaela
se fixou nas sobrancelhas erguidas da primeira-tenente, também já de volta à
forma normal. — O que te faz mais fraco é o que está te mantendo vivo.
Interessante.
Hassam inclinou a cabeça de um modo não muito lisonjeado.
—O que quer dizer com mais fraco?
—As flechas tinham Vuk’ropesch nas pontas — esclareceu a fêmea,
com um semblante soturno. — É ruína-de-lobo, mas misturada com mais
algumas coisinhas abomináveis. Enxofre, beladona, estramônio e,
principalmente, magia. O veneno se espalha no metabolismo licantropo com
poucos segundos, e causa uma morte dolorosa em minutos se não for tratado
com urgência. Ele estanca a transformação, mas... Você ainda conseguiu
mudar, o que significa que o Vuk’ropesch deve estar funcionando com menos
eficiência no seu organismo.
—Bom, então o que está esperando?! — Mykaela bradou. — Vá
chamar uma curandeira, uma bruxa, pegar um antídoto, qualquer merda!
—Nossas Hylians já estão a caminho — Nyädja garantiu ao surgir ao
lado de Drania, arfante e demonstrando frustração. A pele negra reluzia com
o suor, e havia uma mancha de sangue na manga direita do casaco da fêmea.
— Sinto muito por tudo isso. Eu não devia ter sido tão relapsa com a
segurança essa manhã, devia ter percebido...
—Devíamos, minha senhora. O erro foi mais meu do que seu —
grunhiu a primeira-tenente. — Não há identificação nesses corpos. Pelo
menos não uma que possamos relacionar a uma das matilhas presentes no
evento, mas poucas teriam condições de estocar Vuk’ropesch. Isso reduz
nossos suspeitos, felizmente.
—Acha que uma alcateia rival é responsável pela emboscada —
constatou Safira, ao se levantar cautelosamente com a ajuda da Platina, que
não tinha tirado os olhos da coxa ferida de Imanur.
—Não é a primeira vez que algo assim acontece — a soberana
licantropa de Leyan abriu um sorriso amarelo, amargo. — O posto de alfa-
mor garante bastante poder a quem quer que o possua. Minha mãe foi morta
por um usurpador com o mesmo objetivo desse grupo de ataque, uma década
atrás, e outro alfa assumiu por alguns anos antes que eu lhe desafiasse num
duelo e retomasse o título para minha família novamente. Ser emboscada é
basicamente algo cotidiano, nesse ramo.
—Se não fosse pelo aviso do Esmeralda e sua atenção naquelas
flechas, Platina... — Drania olhou para ela com gratidão e respeito. —
Poderíamos não ter conseguido reagir tão bem à cilada. Eu poderia fazer bom
uso de uma fêmea como você nas minhas fileiras.
A garganta de Mykaela teria se fechado com o orgulho numa outra
situação — ela, uma Pravka-Argentae? — mas tudo no que sua consciência
conseguia se concentrar era Hassam, ferido, Hassam, envenenado, Hassam,
possivelmente morrendo. Ele havia se sentado na borda da fonte, xingando
baixo enquanto envolvia a perna com um pedaço de tecido rasgado, e
Meistens estava lhe fazendo companhia.
Graças à deusa e todas as malditas estrelas, as curandeiras chegaram
com a rapidez que a alfa-mor prometera. Uma das flechas tinha arranhado
outra das soldadas e Eora ganhara alguns hematomas nas costelas, mas
aparentemente todas sobreviveriam. Howl fora o único a usar a forma animal
para lutar, porque sua transformação era de longe a mais rápida e eficiente. O
alfa de Ultha ainda estava como lobo negro, o focinho cutucando o braço da
companheira grávida de modo preocupado.
—Estou bem — Safira ficava garantindo, ainda que continuasse
parecendo corada e sem fôlego.
Uma das curandeiras recomendou que a fizessem dormir antes que o
estresse causasse mais danos — podendo até propiciar um parto precoce —, e
a Diana foi mandada às pressas para os próprios aposentos, e Hassam e as
outras feridas, para a enfermaria. Aparentemente, o veneno causava um mal
crônico que se acumulava nos órgãos de modo lento, agonizante, e as Hylians
precisavam tirar o máximo que conseguissem dos metabolismos dos
atingidos pelo Vuk’ropesch antes que o estado deles piorasse.
Drania lhe observou de modo austero, interpretando sua angústia de
modo equivocado ao pousar uma mão tranquilizadora em seu ombro.
—Nenhuma baixa recairá nas suas costas hoje, menina. Seus soldados
voltarão inteiros.
Mas era a sanidade dela que não estava inteira.
E assim ela ficaria até que visse Imanur bem, recuperado, a salvo, em
seus braços.
Mykaela não sabia o que seria dela caso contrário.
Ela teve tolas esperanças de que o chalé estaria vazio quando voltasse,
mas Eora estava lendo um livro sobre a bancada da cozinha, os pés
pendurados na borda enquanto mastigava uma maçã e sorria para Mykaela.
—Ei — a Granada inclinou a cabeça para o pacote em suas mãos. —
O que tem aí?
—Não é da sua conta.
A Platina deu a volta pela sala e contornou o sofá, tudo para que as
ervas passassem longe do faro da outra licantropa presente, mas algo em sua
postura tensa devia ter denunciando o mais absoluto nervosismo enrijecendo
seus ossos.
O baque que lhe informou que Eora tinha descido da bancada a fez
acelerar — mas seus movimentos afoitos apenas fizeram a projeto de Feuer
disparar na sua direção; perto o bastante para sentir o cheiro das ervas na
sacola.
As mesmas que a Granada arrancou das suas mãos num puxão brusco
antes que ela pudesse impedir.
—Devolva essa merda, Feuer!
Ela demorara dois tortuosos dias inteiros para achar, tivera de
procurar uma bruxa no coven que...
—O que no abismo você está fazendo passeando com acônito por aí,
Skies? — riu a menina, desdenhosa. — Quer envenenar nosso almoço com
ruína-de-lobo e finalmente se livrar das nossas carcaças? Vai matar algum
licantropo infeliz por aí?
Uma respiração fraca e dolorida deixou os lábios da Platina.
—Só um muito pequeno.
As sobrancelhas da Granada se uniram, descrentes.
—Está querendo dizer que vai matar uma crian...
Os olhos dourados desceram até a barriga de Mykaela à medida que
sua voz perdia força. Pararam, estáticos.
Então se arregalaram, estupefatos.
—Eu sabia — balbuciou Eora, apertando o pacote de acônito contra o
peito de forma mortificada. — Sabia. Você disse que não era Imanur, mas
durante a viagem... Durante a viagem eu até tentei provocá-la e me aproximar
dele para te fazer admitir que gostava do miserável... E você vem passando
mal. Vem amaldiçoando meu perfume a cada vez que sente o cheiro dele — o
rosto da licantropa ficou pálido. — Ele não sabe, não é?
—Não — a garota baixou o tom de voz para algo frio e ameaçador,
tomando o pacote de acônito dela de volta num gesto ríspido. — E as coisas
permanecerão assim. Só você e Meistens tem conhecimento desse
contratempo.
—Contratempo? — ecoou, horrorizada. — É um bebê, deusa acima,
você não...
—Essa informação não vai deixar essa sala, está me ouvindo?!
—Mykaela...
—Esse segredo não é seu para contar a mais ninguém, Eora — cuspiu
a Platina, cheia de rancor e, no fundo, medo. — Se trair minha confiança, vou
fazer do resto da sua vida um longo e doloroso inferno.
A Granada engoliu em seco, o semblante tomado pela revolta e a
angústia.
—Você se arrependerá.
Dando as costas a ela e bufando ao subir as escadas com passos duros,
Mykaela afastou a dor no peito por ter cortado um talho tão fundo no
relacionamento com a colega de chalé.
—Deixe que eu me resolva quanto a isso.
Quando Safira e Vaska irromperam esbaforidas pelo quarto nem uma
hora depois, Mykaela soube que Eora não tinha deixado que ela se
resolvesse.
Uma parte dela esperava que sua companheira de cabana levasse seus
sentimentos em consideração depois de todo aquele tempo cultivando uma
amizade hesitante, mas obviamente se enganara.
—Diga que não fez isso — a capitã da guarda implorou, as íris
douradas queimando. — Diga que não fez.
Recostada sobre a cabeceira da cama, com o olhar perdido no vazio e
o peito sendo revirado por algo pontudo e afiado, ela mal conseguiu forças
para responder:
—Não tenho que dar explicações a nenhuma de vocês duas.
Safira ergueu o queixo de modo implacável.
—Eu sou sua Diana e ordeno que me dê explicações, Skies. Tomou o
acônito? Você abortou seu bebê?
O comando direto fez a consciência da guardiã espasmar e se
contorcer, e suas pernas se encolheram no colchão.
—Não — arquejou, baixinho.
As duas soltaram suspiros aliviados em uníssono, ombros tombando e
mãos sendo levadas aos peitos como se elas fossem aquelas carregando um
feto, não Mykaela.
—Não ainda — terminou.
Vaska arreganhou os dentes, furiosa.
—O inferno com esse “ainda”. Como pode ser tão insana? Você não é
uma curandeira, não sabe o quanto de acônito usar, nem devia estar usando
acônito. O bebê pode sobreviver e ter deformações. Você pode ter sequelas,
ou pior.
—A bruxa que me vendeu a ruína-de-lobo me deu algumas
instruções. Eu aguento.
Ela sempre aguentaria.
—Instruções dadas ou não, essa bruxa ainda não acha recomendável
usar acônito, muito menos para um aborto, Mykaela — insistiu Safira.
A Platina franziu a testa.
—Como você...
—Como acha que chegamos aqui tão rápido? — bufou Feuer. — A
bruxa contou sobre sua pequena ida ao mercado mágico a Dalila, e Dalila nos
contou de imediato.
Então não tinha sido Eora. A Granada não tinha sido aquela a lhe
delatar, mas a vendedora bruxa.
A Lunar lhe tirou dos próprios devaneios divididos entre a emoção e a
raiva ao respirar fundo, lhe dirigindo um tom consideravelmente mais calmo:
—Mykaela, por que você faria uma coisa dessas?
—Porque não quero um filho.
Era simples assim, e também era compreensível por poucos.
Ela não tinha o necessário para criar alguém naquele mundo, e
também não queria ter. Não queria a responsabilidade, não queria o trabalho
ou os gastos ou o tempo que a tarefa exigia. Costumava ser tão paranoica
com contraceptivos exatamente por causa disso. Sabia que não tivera uma
culpa direta, nem Hassam, graças àquele maldito tônico que provavelmente
anulara o efeito do chá anticoncepcional, mas... Mas ela ainda seria a mais
prejudicada. Ela ainda teria de carregar uma vida no ventre por nove meses,
de amamentar e dar mais atenção e ser encarregada de criá-la e educá-la.
Mykaela entendia como outras fêmeas podiam ansiar e gostar do laboro, mas
não ela.
Não ela.
—Mykaela, e Hassam? — pressionou Safira. — Não acha que ele
tem alguma decisão nisso, também? Você o ama e vai esconder algo assim
dele?
Ela não queria pensar nisso. Ele nem chegaria a saber, ele...
—O... O que disse? — titubeou, atônita.
Você o ama e vai esconder isso dele?
—Negar é inútil — a Filha da Lua cruzou os braços. — Eu te vi
atravessando minha sacada para checá-lo quando Imanur se feriu, vi a
expressão no seu rosto quando notou que ele tinha se colocado em perigo
para nos salvar, em Folkov.
—E-Eu...
—Os olhos do sujeito realmente te seguem para toda parte —
comentou Vaska, com uma careta. — Eu notei o interesse da parte dele, mas
não tinha notado o da sua até Tenna mencionar que o comportamento...
suspeito... De vocês na arena podia ter se tornado algo mais, porque Hassam
ficava pedindo notícias suas a ela enquanto estava debilitado, restrito na
matilha lupina.
O coração dela se apertou e diminui de tamanho no peito. A garota
queria Hassam ali consigo, apenas os braços dele ao seu redor, apenas o calor
que tanto aprendera a valorizar.
Você o ama e vai esconder isso dele?
Se não fosse aquela bruxa estúpida e enxerida, ninguém nunca teria
descoberto nada, mas agora com Safira e Vaska cientes...
—Não podem dizer nada a ele — seus ombros enrijeceram com o
pavor. — Não podem.
—Você tem que dizer tudo a ele! — Feuer jogou as mãos para cima,
exasperada de um jeito que dizia a Mykaela que ela queria era estar lhe
socando. — Não pode simplesmente ignorar a influência dele nessa questão!
Reiters estava concordando com a cabeça:
—Skies, ele te ajudou tanto! Você é uma pessoa completamente
diferente perto de Hassam. Conseguiu mudar por ele, você...
—Eu não mudei por ele, Safira — rosnou, ofendida. — Eu mudei por
mim mesma, mudei pela minha alcateia. Não nego o papel de Imanur nessa
empreitada, mas não se engane quando digo que sei quem quero ser e como
quero agir, no momento. Antes eu estava limitada, confusa e mentalmente
instável. Nunca neguei isso. Mas então fiquei livre... De tudo. Finalmente
livre. E agora essa criança vai me limitar por inteiro outra vez! Será que você
pode tirar o nariz da sua perspectiva de família perfeita com Howl e entender
o que estou dizendo?! Eu tenho o direito de não querer um filho, inferno!
—Não fale assim com ela, Skies! — urrou Vaska.
Safira engoliu em seco, as pálpebras tremulando, e Mykaela tentou
controlar o ritmo do fôlego descompassado antes que a capitã da guarda
avançasse nela. Reiters não era a culpada da situação, mas... Abismo
flamejante, a guardiã não conseguia lembrar de nenhum dos motivos para não
descontar seu desespero em tudo e todos que visse pela frente.
—Tudo bem — disse a Diana, por fim, num sopro curto de ar. —
Tudo bem, você tem razão. Esse direito é seu... Mas também é de Hassam,
Mykaela. Não o ponha de fora disso. Deixe seu posicionamento claro, mas
não o exclua dessa decisão. Você pode se arrepender amargamente disso,
mais tarde.
—Ele não me deve nada, Reiters. E eu não tenho nenhuma obrigação
perante ele.
—O abismo que não tem — ralhou a Ônix. — Uma criança não é
concebida sozinha. Ele não só tem responsabilidades, deveres sobre a
situação, como também tem o direito de opinar nela. Converse com ele,
Skies. Ao menos tente. Hassam é um macho bom e honrado, ele...
—Não preciso que me lembrem de nada disso. Eu conheço Hassam.
Eu o amo.
—E ainda assim acha que Imanur te perdoará quando souber que
tentou tomar essa decisão sem ele?
Mykaela não respondeu.
Ela sabia a resposta daquela pergunta.
Todas elas sabiam.
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