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Para todas as Mykaelas – vocês aguentam.

SINOPSE
Mykaela Skies é uma vagabunda fria e prepotente.
Ela tem plena consciência disso e está muito confortável com esse
fato, obrigada, pois essa foi a única forma que encontrou de conviver numa
alcateia que não confiava nela. Desde sua infância violenta à morte de quase
todos os seus parentes, a garota e seu irmão tiveram de crescer com traumas
que mudaram suas personalidades de forma drástica. Ela se tornou uma
licantropa implacável e orgulhosa... Já seu irmão, Eiko, terminou arrogante,
manipulador, com ganância demais e escrúpulos de menos.
Reconstruindo a própria reputação para escapar do rótulo de “irmã do
traidor”, Mykaela agora terá de aprender a interagir amistosamente com seus
piores inimigos, as bestas-feras que por décadas massacraram seu povo. Para
não colocar em risco o tratado de paz pelo qual os líderes da sua matilha tanto
lutaram, ela precisará controlar o temperamento e a língua afiada antes que
suas atitudes ameacem a frágil trégua... Ela só não esperava que Hassam
Imanur fosse aquele a lhe ajudar nessa empreitada.
Com seu tamanho descomunal, cicatrizes grotescas e sorriso
selvagem, o lupino nomeado Carcaças é o terceiro em comando na própria
matilha e também é a fonte de todos os tormentos de Mykaela. Para quem
achava que o sujeito não passava de um brutamontes, a garota descobrirá que
há muito mais para se ver em Hassam — e é quando uma interação cínica se
desenvolve numa tensão ardente que coloca ambos de joelhos.
Mykaela sabe lidar com o lupino entre os lençóis, mas com certeza
não sabe lidar com os sentimentos que lhe assolam quando estão fora deles.
Suas diferenças são gritantes no mínimo e seus temperamentos explosivos no
máximo. Não há como evitá-lo, mas também não há como negar a si
mesma.... E, antes que perca uma das poucas coisas boas que já lhe
ocorreram, a licantropa terá de enfrentar suas partes mais detestáveis e
escolher entre as próprias ambições e a própria felicidade.

OBS.: este é um spin-off da duologia Safira de Prata, e é


recomendável que seja lido após completos os dois volumes principais.
Sumário
SINOPSE
Parte I
Parte II
Parte III
GLOSSÁRIO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
Parte I
Condenada Pelo Sangue
Quando o irmão dela cuspiu um dente fora depois do quarto tapa,
Mykaela finalmente tomou a coragem para agarrar a calça do pai e gritar.
—Pare! — ela sacudiu o tecido com força entre as mãos trêmulas, os
olhos arregalados e cheios de lágrimas não derramadas. A menina já tinha
aprendido que chorar só o deixava mais irritado. — Pai, pare, por favor!
Chega!
O homem girou para encará-la com os olhos dourados ardendo com a
fúria e seu coração foi parar na garganta.
—Quieta — rosnou Kadam. Ele nunca precisava levantar a voz. A
dominância explodindo dos poros do patriarca era mais do que imponente o
bastante. — Aprenda onde é seu lugar, menina.
Mykaela se retorceu com o incômodo, contendo os soluços, tentando
não desmoronar com a visão do irmão limpando o sangue da boca, ainda
caído no chão. Uma parte dela ficou grata pelo fato de a mãe estar fora na
Ildrea, ou o pai com certeza acharia um modo culpá-la também.
—Eiko não p-perdeu sua faca de caça — ela gaguejou, terrivelmente
amedrontada. Ele não devia ter assumido a culpa. Não era justo que Eiko
sempre levasse as surras. Ela aguentava. Seu irmão pensava que não, mas
aguentava. — Eu a peguei para t-tentar treinar co...
Kadam estreitou os olhos de modo cínico, jocoso.
—Você a pegou para treinar?
—Eu não queria ter perdido, juro — murmurou ela, tremendo.
Se ao menos não a tivesse deixado na estante de armas, na arena, por
acidente. Quando Mykaela voltara para pegar a faca, mais tarde, o objeto já
tinha sumido, provavelmente levada por algum guardião, ou então colocada
num lugar diferente — que ela não conseguira achar, mesmo depois de horas
procurando.
—Isso é verdade, garoto? — Kadam agarrou Eiko pela gola do
casaco, erguendo-o quase até seus pés deixarem o chão.
O irmão fungou, inabalado, o sorriso de deboche manchado de
vermelho.
—Que te importa?
Era o que mais a deixava aterrorizada, se precisasse ser honesta. O
fato de que Eiko conseguia desligar qualquer emoção externa e parecer
perfeitamente bem, até expressar tédio. Era o que mais irritava Kadam, e o
menino tinha aprendido a usar isso como arma.
O pai socou as costas dele contra a mesa de centro da sala, osso e
madeira estalando, e Mykaela gritou outra vez.
—Quer perder mais um dente, garoto?! — o homem vociferou. Então
se virou para ela, sibilando. — E você, menininha, não minta de novo para
mim. Você mal consegue erguer uma colher de pau para ajudar sua mãe, que
dirá uma faca de caça de prata.
Isso era porque Mykaela odiava auxiliar a mãe na cozinha. Ela
gostava de brincar na arena com Eiko e as outras crianças, quando os
guardiões deixavam e quando o pai não estava por perto.
A menina não entendia por que Kadam deixava Eiko usar suas armas
e ela, não. Tinham a mesma idade, o mesmo tamanho, eram gêmeos.
Mas Mykaela tinha de usar saias. Mykaela tinha de ficar em casa
bordando com a mãe. Mykaela tinha de ficar longe das adagas do pai.
Mykaela não podia respondê-lo, ou encará-lo de frente, ou ao menos pensar
em desobedecê-lo.
Se o fizesse, a punição seria o que Eiko estava recebendo naquele
momento.
O irmão assumia a culpa para protegê-la, poupá-la. A menina era a
única que não apanhava em casa. Ela tinha a impressão de que o pai usava
isso como um tipo de redenção moral doentia própria; mesmo quando ele
sabia que Eiko estava mentindo para livrar Mykaela, Kadam descontava a
raiva no garoto. Usá-lo como saco de pancadas para espairecer a raiva de
tudo e todos havia se tornado seu passatempo cruel.
Mykaela não se orgulhava desse pensamento, mas às vezes desejava
muito que o pai estivesse morto. O alfa atual poderia tê-lo matado no duelo
que tirou o posto de Kadam, mas então nem ela nem Eiko existiriam.
Às vezes, a menina se deitava na cama à noite, ouvindo o homem
gritando com sua mãe, ouvindo móveis rachando ou vidro quebrando, e
desejava que o pai puxasse briga com algum guardião mais capaz. Ou que
fosse pego num ataque lupino. Ou que pelo menos escorregasse e quebrasse o
pescoço.
Ela tinha contado isso a Eiko, e a única coisa que ele dissera fora: “se
ele não estiver morto ou se não me matar antes que eu fique mais velho e
mais forte, terminarei o serviço por nós dois”.
Mykaela quase disse que o ajudaria, se o dia chegasse.
Quase.
Mas a verdade era que a menina apenas queria que o pai morresse,
não que ela fosse a responsável por matá-lo. No entanto, ali estavam os
gêmeos, tramando a morte do próprio pai enquanto as outras crianças na
alcateia brincavam pelo mercado e eram recebidos em casa com amor e
carinho.
Ela e Eiko, em vez disso, recebiam murros que arrancavam dentes e
berros furiosos.
E Mykaela estava cansada disso.
—Largue ele — ela pediu, a voz firme, ainda que suas pernas
tremessem. — Eu perdi a faca na arena, Eiko não fez nada. Larga ele.
As narinas do pai se inflaram com a ordem subentendida em seu tom.
O irmão dela prendeu a respiração, os olhos se arregalando de pavor
por Mykaela. A menina fechou as mãos em punhos quando Kadam largou
Eiko de qualquer jeito sob o móvel danificado e caminhou com passos
vagarosamente enervantes até ela. Ele nunca havia erguido a mão para a
filha... Mas ela também acabara de cruzar um limite nunca ultrapassado.
Três passos de distância.
Dois.
Eu aguento, eu aguento, eu aguento.
Mykaela ofegava sob o escrutínio letal do pai, e Eiko se preparou para
atacá-lo por trás.
Aguento, aguento, aguento.
Por Eiko, por mamãe, por mim mesma.
Batidas soaram na porta.
O mundo virou de cabeça para baixo e voltou ao eixo numa fração de
milésimos de segundo. Quem quer que estivesse lá fora devia estar ouvindo
os batimentos desenfreados no peito da menina. Kadam tinha parado, os
olhos cravados na porta como se quisesse parti-la em duas com um machado.
Mykaela cambaleou, zonza, na direção da maçaneta, o estômago
embrulhado com o alívio e a insegurança.
Quando ela abriu a porta, Howl Vowen estava parado no portal com a
testa franzida.
Segurando a faca de caça do pai dela na mão direita.
—Você esqueceu isso na arena, ontem.
Mykaela nem ao menos conseguiu falar. Ela pegou a arma com as
mãos instáveis e tentou não parecer tão fraca quanto se sentia, mas não devia
ter funcionado muito bem, porque a ruga entre as sobrancelhas escuras do
filho do alfa aumentou de tamanho.
—Você está bem?
Howl era muito sério e observador para uma criança. Ele era só um
ano mais velho que ela, mas já agia como se tivesse as responsabilidades de
alfa sobre os ombros. Mykaela normalmente queria revirar os olhos para ele
durante a maior parte do tempo, mas naquele momento ela quis abraçá-lo.
Eiko não gostava do menino, mas ela achava que o irmão fingia boa parte
daquela rivalidade apenas para não enfurecer o pai e diminuir a quantidade de
surras; Lother era o rival de Kadam, então Howl também seria o de Eiko.
Tudo uma grande bobagem territorial masculina, na opinião dela.
O pai se adiantou e tirou a faca das mãos da menina com brusquidão,
o quadril batendo no ombro dela com força e quase fazendo Mykaela cair.
—Você pegou isso, pivete? — ele chiou para Howl.
A carranca do menino se acentuou, como se ele estivesse realmente
ofendido pela pergunta — e nada amedrontado.
—Não.
Kadam expôs as presas.
—Se eu sequer sentir seu cheiro perto das minhas armas, você vai se
arrepender, está me ouvindo?
Howl inclinou a cabeça, a expressão completamente neutra.
Mykaela tinha certeza de que ele estava tentado a soltar um “ah, é?”
— porque ela estaria, no lugar do menino — mas o filho do alfa não era esse
tipo de macho. Ele tinha muito mais controle que o pai, mesmo tendo boas
décadas a menos. Howl sabia que Kadam não poderia levantar nem um dedo
na direção dele — o pai do menino era o alfa, a mãe dele era uma Lunar, a
avó era a capitã da guarda.
É claro que o pai adoraria uma desculpa para machucá-lo, mas Howl
não roubaria nada de ninguém. Ele não era assim, e seus pais acreditariam
nele caso fosse sua palavra contra a de Kadam.
Ninguém acreditava mais em Kadam.
—Fique fora da minha vista, bastardinho — grunhiu o pai,
embainhando a faca no cinto e marchando floresta adentro.
A casa deles ficava mais afastada das outras; Kadam não gostava mais
de interagir na vila, e a vila também não gostava mais de interagir com ele.
Era um acordo que beneficiava ambas as partes, mas que só piorava a
situação de Mykaela, Eiko e Mhytila: pouquíssimas pessoas interferiam
quando a gritaria e o caos começavam a extrapolar os limites.
Ela e Howl observaram o homem se afastar no sereno da mata, e os
sons abafados de Eiko se levantado atrás dela alcançaram seus ouvidos.
O futuro alfa se virou para encará-la, austero, o cabelo escuro com
mechas brancas sacudindo com algumas gotas de chuva.
—Alguém guardou a faca numa prateleira alta na parte norte da arena.
Minha mãe me ajudou a achar.
Mykaela piscou por um instante, confusa e ainda um pouco sem
rumo. Ele tinha ido procurar a lâmina?
—O-Obrigada.
—Não precisávamos da sua ajuda — Eiko tropeçou na direção deles
espumando com a vergonha e a raiva, a boca ainda sangrando, um hematoma
se arroxeando na maçã esquerda do rosto.
Howl arqueou uma sobrancelha para ele, para o sangue em sua face e
a mobília destruída atrás dos dois.
—Deu pra perceber.
Eiko rosnou.
—Já pode ir embora!
—Eiko! — Mykaela repreendeu, exasperada.
—Tenho mesmo que ir. Minha mãe deve estar preocupada — o filho
do alfa começou a descer as escadas da varanda, mas parou e lançou um
último olhar na direção dela, como se quisesse dizer outra coisa.
Eiko se adiantou, envolvendo a mão de Mykaela na dele, a respiração
ainda um pouco errática. Howl examinou os ferimentos do irmão dela, então
passou os olhos dourados sempre um tom mais vívido do que os deles pela
anatomia imaculada da menina.
Então assentiu e foi embora.
—Idiota — o irmão dela murmurou consigo mesmo, os dentes
trincados. — Quem ele pensa que é?
Mas Mykaela estava pensando no que ele dissera antes:
Não precisávamos da sua ajuda.
Era mentira, por mais que ela quisesse que fosse verdade. Se Howl
não tivesse aparecido, o pai provavelmente teria descartado a frágil máxima
própria de não bater nela. Eiko não poderia fazer nada, ela não poderia fazer
nada, a mãe não poderia fazer nada. Mykaela se tornaria o último saco de
pancadas restante.
Deusa, como ela odiava, com todas as suas forças, odiava ser indefesa
a Kadam.
E pouquíssimas pessoas tentavam ajudá-los. Tia Lyanna, Demina,
Temise, Vasilisa, Rajar... Eles sempre se mantinham perto dela e de Eiko
quando possível, mas ainda não tinham o direito de passar todas as horas de
todos os dias dessa maneira. Em algum ponto, o pai achava uma brecha para
voltar a ser violento com o irmão, com a mãe deles.
Não precisávamos da sua ajuda.
Ela não queria precisar.
Não queria precisar de ninguém.
Naquele mesmo momento, Mykaela apertou a mão do irmão gêmeo
de volta e prometeu a si mesma que não se deixaria minguar numa fêmea
amedrontada e subserviente como a mãe. Mhytila já tinha desistido de lutar,
nunca tivera o preparo necessário, e agora não tinha mais o tempo para isso.
Mas a menina aprenderia com esses erros.
Ela ficaria forte. Ela tomaria o controle da própria vida. Ela protegeria
Eiko, como ele sempre se esforçara para protegê-la. Ela não precisaria de
ninguém comprando brigas e sangrando para poupá-la.
Mykaela compraria suas próprias brigas e faria seus próprios
oponentes sangrarem.

Era um pesadelo.
Tinha de ser um pesadelo.
Em um instante, o sol estava alto no céu, aquecendo as costas de
Mykaela e Eiko enquanto ambos brincavam perto de casa.
No seguinte, uma sombra havia coberto os dois como um manto de
escuridão fria, e o sol se fora como se nunca estivesse lá. Os gêmeos haviam
parado, então, estáticos e atônitos. Mykaela pensara que fora culpa de uma
nuvem de chuva.
Mas, quando ela olhara para cima, havia um círculo negro faminto
onde o astro-rei antes deveria estar.
Khonse.
Mas... Era impossível. Eles saberiam caso um eclipse estivesse
previsto para aquele dia, aquele horário. Segundos excruciantes de confusão
haviam se passado. Eiko franzira a testa para ela, tão sem ação quanto a irmã.
Então os gritos na vila começaram.
Tia Lyanna viera correndo, os olhos tão esbugalhados e a respiração
tão fora de controle que fizera lágrimas subirem aos olhos da menina de
imediato.
Havia algo muito, muito errado.
—Para dentro! — sussurrara ela, naquele tom desesperado de quem
queria gritar, mas não podia. — Para dentro, agora! Os dois!
A face amedrontada de Eiko era um espelho da dela.
—Tia, o que está...
—Eu disse agora!
Ela arrastou os dois pelos ombros com tanta força que Mykaela
pensou que deslocaria um músculo. Seus olhos dourados e cheios de pânico
nunca deixavam a floresta, ou o ponto do qual viera correndo. Era medo,
sólido e palpável na expressão da tia, como a menina nunca antes tinha visto.
Tia Lyanna também nunca tinha sido tão bruta ou autoritária. Porém, estava
sendo movida por uma emoção maior do que o carinho que costumava ter
pelos únicos sobrinhos; sabia como qualquer gesto brusco na direção dela e
do irmão fazia as lembranças dolorosas com o pai serem engatilhadas.
Kadam se fora há quase dois anos agora, mas a memória das surras
ainda afetava Eiko, e a da pressão psicológica ainda desestabilizava Mykaela.
Lyanna se esforçava muito para mostrar que nunca seria como o pai deles.
Mesmo depois de todo aquele tempo, ainda parecia um sonho bom demais
para ser assimilado. A mãe morrera, e haviam sido vinte e três meses no
inferno, com apenas Kadam como responsável legal. Então ele também
morrera, um ano e meio antes, e a vida dos gêmeos melhorara imensamente
sob a tutela da tia e única familiar restante.
Eiko ainda estava se esforçando para deixar o comportamento
maldoso e frio que adquirira da convivência com o pai de lado — mas estava
conseguindo, aos poucos. Eles eram felizes com a tia, com as outras crianças,
e principalmente, sem o pai.
Mas o comportamento nada característico de tia Lyanna estava
finalmente assustando-a, o que quase fez Mykaela tropeçar num pedregulho
solto no caminho. O frenesi de pavor, por sua vez, fez a tia começar a arrastá-
la com força pelo braço enquanto corriam para a cabana.
—Vamos, vamos, andem!
Mykaela começou a chorar.
—Tia Lyanna, estou com medo!
—É bom que esteja mesmo, menina — arfou a tia, ao subirem as
escadas aos tropeços e fecharem a porta com veemência. — Vai manter seus
reflexos aguçados e seus instintos alertas.
Eiko tentava se manter inalterado, mas mesmo ele tinha os lábios
trêmulos ao indagar, enquanto a tia girava as três trancas na porta com os
dedos instáveis:
—Por que não pode dizer o que está acontecendo?
Mas ela nem precisara.
Os sons oriundos da vila eram explicação o suficiente.
Rosnados guturais, urros violentos, gritos agoniados e estrondos
ruidosos.
Mykaela só ouvia esse tipo de cacofonia em específico à noite,
quando os três iam para o salão nas noites de lua cheia... Quando as bestas
decidiam atacar e mutilar e destruir.
—Isso são lupinos? — o irmão dela indagou então, a face lívida com
o horror.
—Subam — a tia deles apontou para a escada, se dirigindo então para
coleção particular empoeirada de Kadam que a menina sabia estar enfiada no
armário. — Se tranquem no banheiro de Myka, selem a porta do quarto com
o guarda-roupa.
Ela tirou uma das maiores espadas do pai deles do armário; uma
espata pesada de prata que quase fez o braço da mulher ir ao chão junto com
ela. Moedora de Ossos, o pai a batizara. Lyanna não conseguia nem ao
menos erguer a lâmina.
—Precisa vir com a gente!
Tia Lyanna abriu um sorriso tranquilizador e a abraçou, mas havia
lágrimas em seus olhos também. Mykaela soube que ela estava apenas
tentando ser forte pelos sobrinhos.
—Essa casa é afastada, querida — murmurou ela, num fiapo de voz.
— Os guardiões cuidarão deles antes que cheguem aqui. Ficarei só por
precaução.
Era mentira. Com a cabeça encostada no peito da tia enquanto
saboreava o calor do aconchego dela pela última vez, a menina ouvira o
coração destrambelhado de Lyanna falhando com toda a precisão. Ela estava
tentando poupá-los. Estava tentando protegê-los, mas não era uma guardiã,
nem ao menos uma loba com preparo em combate.
—Vamos ajudar — Eiko declamou, as feições sérias apesar do medo.
— Eu venho treinando na arena com os guardiões, Mykaela aprendeu a usar
um bastão farpado, nós podemos...
—Meu amor — soluçou Lyanna, ao soltá-la e correr da direção do
irmão para outra última despedida. — Preciso que vocês cuidem um do outro.
Você entende isso, não entende? São crianças espertas. Se algo acontecer
comigo aqui embaixo, vocês terão mais chance juntos lá em cima.
Uma resignação gélida cobriu o rosto do irmão depois de segundos de
uma relutância angustiada, mas Mykaela ainda chorava e sacudia o braço da
tia.
—Não faça isso! Vamos nos esconder todos juntos! Temos mais
chances todos juntos!
—Ela está certa, Myka — a falta de emoção na voz do gêmeo a fez
querer estapeá-lo, mas a menina o ignorou.
—Tia Lyanna!
—Mykaela, vá — comandou a mulher, irredutível, mesmo que sua
postura firme parecesse tão frágil quanto uma peça de cristal, prestes a se
despedaçar diante do mais grosseiro dos toques. — É uma ordem.
Eiko começou a arrastá-la na direção das escadas, grunhindo e
lutando contra os esforços de Mykaela para espernear e rugir sua revolta. Ela
não podia acreditar que ele deixaria a tia à própria sorte, que não insistiria
em....
Foi quando a porta da frente explodiu em pedaços e uma besta com o
dobro do tamanho e o triplo da largura da tia se arremessou pela entrada,
rosnando e arreganhando as presas amareladas para a visão à sua frente:
Mykaela, gritando; Eiko, arregalando os olhos e congelando com o
medo.
E Lyanna, erguendo a espata com dificuldade nas mãos trepidantes,
apesar do mais puro pavor contorcendo seu rosto bonito.
O lupino decidiu considerar a mulher como a ameaça iminente. A
criatura avançou na tia, e o berro agudo da menina ecoou no ambiente outra
vez. Lá fora, a batalha ainda rugia e os licantropos ainda lutavam pela própria
sobrevivência, alheios às vidas sendo destruídas ali dentro.
Eiko estava vociferando com ela para que subisse com ele, para que o
obedecesse, mas Mykaela não conseguia se mover. Não diante da vida da tia
pendendo por um fio à sua frente.
Não diante do momento em que Lyanna foi lenta demais para desviar
da investida da besta e caiu sob o peso esmagador da criatura.
—Não! — gritou Mykaela, aos prantos.
Mas o lupino já tinha cravado a mandíbula na jugular da mulher, que
se sacudia em desespero com o sangue esguichando pela garganta estirada.
Ela arregalou os olhos, cheios de dor e desespero, e ergueu a mão para os
sobrinhos uma última vez.
Então a luz se apagou nas íris douradas, agora vítreas e imóveis.
O lupino se virou para Mykaela e o irmão, e Eiko se enfiou na frente
dela num esforço final de bravura. Ele encarou o lupino com todo o ódio e a
agonia acumuladas em seu peito, toda a força das lágrimas que escorriam por
suas bochechas.
A besta salivou e rosnou, parecendo sorrir de forma doentia diante do
desafio risível que o menino representaria.
Mykaela soube que estavam mortos, naquele instante. Para onde quer
que fossem, ela só esperava nunca mais ter de ver o pai, se é que existia
alguma justiça na pós vida.
Disparando na direção dos dois, o lupino chegou meros centímetros
de abocanhar as panturrilhas de Eiko, mas um imenso lobo castanho derrubou
o corpanzil de lado num golpe direto e sorrateiro. Os gêmeos se
sobressaltaram com a surpresa enquanto as duas feras rolavam pelo assoalho
e terminavam de arruinar a mobília. Lobo não, a menina percebeu.
Loba.
Porque aquela era a Topázio, herdeira direta de Hila e capitã da
guarda. Mãe da Diana, avó de Howl.
Nye Reiters tinha sido aquela a vir em auxílio dos dois.
A besta não representou ameaça alguma diante dela. Em segundos,
estava tudo acabado. Graças à melhor guardiã que a alcateia possuía,
Mykaela e Eiko tinham sobrevivido.
Mas a tia, não.

—Você é uma loba ou uma galinha chorona, Skies?! — Feuer a


derrubou pela sexta vez seguida, e a neve encharcou a parte de trás do casaco
de Mykaela quando suas costas atingiram o chão úmido e gelado da arena. —
Levante!
A garota arreganhou as presas para a maldita Vaska Feuer e se ergueu
num pulo cheio de raiva, o punho errando o ombro da outra licantropa por
meros centímetros.
—Muito lenta — provocou Feuer, fintando para longe dela.
Se Mykaela pudesse, arrancaria todos os fios daquela cabeleira escura
e cacheada sem dó nem piedade. Passaria horas fazendo isso. Se divertiria
horrores.
Fio por fio.
Suas garras despontaram em seus dedos e quase arrancaram um dos
olhos de Vaska fora, o que apenas fez a maluca soltar uma risada deliciada.
—Então vai apelar? Gosto quando o jogo fica acirrado — as próprias
unhas da loba de ébano se tornaram navalhas escuras. — A vitória sempre
vem mais doce.
Mykaela rosnou e sua perna subiu sessenta graus para chutar Feuer
para longe. Ela se equilibrou com habilidade e desviou do primeiro soco
cruzado da garota, mas não conseguiu escapar do segundo gancho. A
sensação dos nós dos seus dedos se chocando contra o maxilar daquela
desgraçada arrogante foi bastante satisfatória, por mais que seu punho tenha
latejado com um espasmo de dor.
Vaska retribuiu o golpe com uma joelhada impiedosa em sua barriga.
A garota tropeçou para trás, tentando recuperar o ar, enquanto a outra
cuspia sangue na neve.
—Aquele não foi péssimo.
Mykaela abriu um sorriso de desdém por entre os arquejos.
—Quem você acha que é, Feuer? A maldita da minha professora?
—Bem que você poderia aprender uma coisa ou duas comigo — ela
estalou o pescoço, a pele negra reluzindo com o suor mesmo no frio cortante
que fazia naquela manhã. — Como não ser uma tola covarde, por exemplo.
Os olhos dourados de Mykaela se estreitaram em fendas incrédulas,
mesmo enquanto as duas se rodeavam numa dança de tensão e violência
contida.
—O que foi que disse?
— “O que foi que disse?” — zombou Vaska, imitando o movimento
das pálpebras semicerradas da adversária de maneira ofensiva. — Não se
finja de tonta. Por que não vai tentar ingressar a guarda? Você é boa, sua
idiota. Tem muitas chances.
A garota quase foi pega por uma tentativa de chave de braço com a
distração pelo comentário, mas desviou no último segundo e bufou, irritada.
—Não preciso de você me dizendo o que fazer essa hora da manhã,
Feuer.
—Acho que precisa, sim. Por que não assume que está com medo e
enfrenta isso de uma vez? Melhor do que deixar a oportunidade passar. Ainda
dá tempo, você conseguiria acompanhar as lições.
Ela estava certa, e isso era o que mais irritava Mykaela — não em
relação a ela estar com medo, no entanto. A garota tinha medo de
pouquíssimas coisas na vida, e medo de arriscar os testes para se tornar
guardiã com certeza não era uma delas.
Era, na verdade, uma das coisas que ela mais queria, não que temia.
Aquela oportunidade não apareceria de novo em breve. Cinco
guardiões haviam sido perdidos cinco meses atrás — um já tinha sido
reposto. Quatro vagas restavam: Âmbar, Esmeralda, Obsidiana e Ônix, e o
período de treinamento para que novos recrutas pudessem substituí-los
finalmente começaria. Até Feuer estava dando a cara a tapa... Buscando a
posição do irmão falecido, Vikram. Ela e o bobo apaixonado do melhor
amigo estavam no páreo com dezenas de outros lobos, incluindo Eiko.
O que era justamente o motivo de Mykaela estar se mantendo de fora,
por mais que isso a fizesse querer gritar de raiva e frustração.
Ela quase levou outro golpe na barriga graças à conversa mole de
Vaska.
—Sério? — ofegou a garota, rosnando. — Isso é trapaça, Feuer.
—O que posso fazer se você não consegue falar e lutar ao mesmo
tempo? — Feuer abriu um sorriso maldoso. — Para a sua sorte, essa não é
uma habilidade requisitada para os testes.
Vaska estava melhor que ela graças aos treinos para a admissão na
guarda — e isso lhe doía admitir. Antes, Mykaela teria conseguido se manter
em pé de igualdade com ela sem esforço. Agora até aquela mestiça
rechonchuda e loirinha devia conseguir derrubá-la.
Seu orgulho estava fumegando e querendo quebrar coisas com o ódio
incandescente.
As coisas não deviam ter acontecido assim.
—Chega desse merda — cortou Mykaela, desviando de uma rasteira e
lançando o cotovelo contra as costelas de Feuer, que infelizmente girou na
hora certa e escapou por um triz.
A desgraçada ainda conseguiu se abaixar e enfiar o calcanhar na
frente da sua panturrilha, puxando o pé com brutalidade e fazendo Mykaela
cair com tudo pela sétima vez — a única diferença daquela queda foi que
Vaska subiu em cima dela, imobilizando seus movimentos quase que por
completo, o que deixou a garota vociferando e rosnando como um animal
selvagem.
—Admita, Skies! — ela arfava com o esforço de conter Mykaela. —
Você sabe que conseguiria, mas está recuando. Está com medo.
—Você não sabe de nada, vagabunda prepotente! — xingou a outra,
se retorcendo de raiva e tentando a todo custo arranhar os pulsos de Feuer. —
Saia de cima, porra!
—Você saberia como tirar a vagabunda prepotente daqui se estivesse
nos treinos.
—Vai se foder!
—Mas isso está tão divertido.
Mykaela urrou com a ira queimando seu âmago, arremessando o
joelho na lombar da loba de ébano e libertando o pulso quando Vaska arfou
com a dor do golpe movido pela cólera. A garota envolveu os dedos ao redor
da pele macia da garganta dela e apertou, empurrando a laringe e empurrando
a oponente junto, que agora engasgava com a falta de ar e caía para trás
tossindo e arquejando.
Foi a vez de Mykaela subir em cima dela e acertar um soco bem dado
naqueles dentes brancos.
Vaska a tirou de lá com bem mais facilidade depois de se recuperar do
golpe, mas a experiência ainda fora recompensadora.
As duas terminaram estiradas na neve, o frio queimando suas costas e
seus pulmões, muito ocupadas recuperando oxigênio e forças para tentar
discutir mais.
—Se... Se não é medo... — arfou Feuer, limpando o nariz que
sangrava com o dorso da mão. — Então o que é, sua fedelha insuportável?
—Cale a boca.
Vaska jogou neve nela, o que fez Mykaela soltar um palavrão e tentar
chutá-la.
—Anda, fale — insistiu. — Não pode ser porque você não quer. Eu
sei que quer.
Os dentes da garota bateram, mas não tinha nada a ver com o frio.
—Chega, Feuer.
—São quatro vagas, Skies. Você conseguiria uma delas. Seria melhor
que Zyhe, com os treinos. Juro que a ideia de você sendo a única outra fêmea
na guarda é algo que eu abomino, mas ainda é melhor do que ingressar
sozinha — a testa dela se franziu. — O imbecil do seu irmão não está te
impedindo de participar nem nada, está?
—É claro que não — retrucou Mykaela de imediato, quase que
ofendida. — Eiko nunca me impediria de fazer nada.
—Há muitas formas indiretas de se oprimir fêmeas por aqui, Skies —
Vaska rebateu, seca. — Você, acima de muitas outras, com certeza sabe
disso.
Mykaela desviou o olhar, fumegando quieta.
—Sei das formas indiretas e diretas até demais. Eiko com certeza não
é o culpado de nenhuma delas.
Feuer ficou muito tempo em silêncio. Tempo demais, o que fez a
garota começar a desconfiar. Aquela ali falaria pelos cotovelos mesmo se não
tivesse braços.
—Você está deixando a vaga para ele, não está? — acusou Vaska de
repente, a voz oscilando com a revolta.
Quando nenhuma resposta foi oferecida, a loba de ébano só pareceu
mais irritada do que antes.
—Deusa e estrelas, isso é ainda mais estúpido! Mykaela, me diga que
você não é tão burra assim!
—Feuer, que merda te importa o que eu faço com a minha própria
vida?! Vá enfiar seu nariz enorme nos assuntos dos outros.
—Mas você quer isso! Desde pequena, você adorava aprender a
manejar armas, a se defender, a mostrar aos machos desse lugar que podia
chutar a bunda de qualquer um que quisesse! Você é como eu, inferno! —
Argumentou, furiosa. — E agora está simplesmente desistindo para poupar o
ego do seu irmãozinho caso você ganhe?
—Feuer, cale a porra da boca! — explodiu a garota, se erguendo num
salto, o rosto vermelho e afogueado. — Você acha realmente que eles dariam
uma vaga na guarda para nós dois?! O conselho já odeia o fato de eu querer
ser uma guardiã. Sua vaga já está praticamente garantida. Meistens vai ser
escolhido pelas habilidades de rastreamento. Mesmo que eu e Eiko
ficássemos com as pontuações mais altas depois de vocês, eles ainda não me
dariam o posto. Nós somos os irmãos Skies, confiáveis apenas sob vigia, e
não é inteligente nos colocar juntos em posições altas na hierarquia. Quem
sabe quando o poder subirá à nossa cabeça, não é mesmo?
Vaska tinha os braços cruzados, o lindo rosto congelado numa
máscara impassível.
—Bom, quem sabe se seu irmão não agisse como a droga de um
psicopata para cima de Vowen...
—Isso realmente importa? — bufou Mykaela. — Ele ainda é aquele
com bolas entre nós dois, e ele ainda seria considerado mais capaz. Os juízes
com certeza dariam um jeito de inferiorizar minha pontuação e colocar outra
pessoa no meu lugar.
A loba de ébano franziu os lábios, incomodada.
—Mas se você ao menos se mostrasse melhor que...
—Olhe nos meus olhos e diga que não é verdade, inferno. Que eu não
teria de me esforçar o triplo de vezes para ao menos ser considerada na frente
dele.
Vaska piscava, os lábios agora comprimidos em uma linha fina.
Então seus ombros caíram. Sua postura teimosa murchou.
Mykaela se virou para se afastar daquilo, daquela discussão, daquele
tópico inútil e frustrante...
Eu aguento, eu aguento.
Mas a voz de Feuer a alcançou antes.
—Tudo o que disse pode até ser verdade, Skies — disse ela,
ressentida. — Mas isso não significa que deva desistir. Mostre que você
merece estar junto de nós naquele posto. Mostre que é mais capaz do que
quase todos ali, inferno, porque isso também é verdade.
Mykaela não a escutou.
Ela não se importava de dar a chance a Eiko. Ele merecia — era tão
habilidoso quanto a irmã, e duas vezes mais astuto. Lhe doía perder a chance,
mas ela talvez tivesse outras... Quando o conselho acalmasse os ânimos. Se
ela conseguisse mostrar que não era como seu pai. Vowen daria uma chance
a ela caso eles aquiescessem, Mykaela tinha certeza.
Por isso as palavras de Vaska ainda ficaram martelando em seu crânio
por quase um ano.
Mostre que é mais capaz do que quase todos ali, inferno, porque isso
também é verdade.
Ela o fez.

Eiko irrompeu pelo quarto com o rosto contorcido em fúria e puro


instinto assassino.
—Diga que não é verdade — ele quase implorou, antes mesmo dos
seus olhos encontrarem os dela. — Diga que não tiraram sua posição de...
Mas ele notou suas lágrimas. Notou os soluços silenciosos que faziam
seus ombros sacudirem de leve. Notou a expressão arrasada de Mykaela e
toda a raiva em sua face foi substituída por angústia e pesar.
Por ela.
—Ah, Myka — os braços do irmão gêmeo estavam ao seu redor no
instante seguinte. — Myka, eu sinto muito.
—N-Não é sua c-culpa — soluçou ela, mesmo enquanto enterrava o
rosto no peito dele e retribuía o abraço com todo o restante das suas forças.
Ela estava chorando no quarto há quase uma hora.
Estava noiva de um lobo que não a amava. Estava ligada a um macho
que, ela sabia, não ligava para as ilusões de afeto que ela tinha para um
relacionamento.
E, principalmente, estava destituída da sua posição de Platina.
A posição pela qual lutara, pela qual se esforçara tanto. Mykaela
passara quase um ano se aproximando das pessoas certas, passando força,
confiança e lealdade. Tinha feito amizade com conselheiros, se submetendo
mesmo à tagarelice irritante de Vierra Linois... Tinha até conquistado o
respeito de Vowen. Tudo para que considerassem deixá-la ser guardiã. Tudo
para que vissem que ela merecia o posto, com ou sem passado recriminador,
com ou sem sangue desleal.
Quando o antigo Platina se aposentara, Mykaela se agarrara à chance
com garras e presas.
Três míseros anos, fora só o que ela conseguira.
Três anos se sentindo completa, se sentindo capaz, se sentindo feliz
fazendo aquilo que nascera para fazer. Protegendo seu povo, destroçando as
bestas que ameaçavam aqueles que lhe eram caros, treinando e se
fortalecendo e crescendo na hierarquia. Ganhando respeito, admiração, poder,
força. Ela tinha estancado abaixo de Feuer, a terceira na contagem de pontos
da guarda, acima até de Eiko, e ainda pretendia subir. Tudo estava perfeito.
Então o conselho lhe oferecera a posição de futura Diana.
Ela tivera três dias para pensar... E sua decisão fora inteiramente
baseada em Eiko.
Seu irmão odiava, com todas as forças, estar abaixo de Vowen; e a
verdade era que não estava, não realmente. Ele, Howl, Vaska e Mykaela
tinham aproximadamente o mesmo nível de habilidade em combate; a única
coisa que distinguia suas posições eram seus diferenciais.
Vowen era o mais dominante, o mais experiente.
Feuer era a mais rápida, a mais corajosa.
Mykaela era a mais dedicada, a mais esforçada.
E Eiko era o mais astuto, o mais calculista.
Suas respectivas habilidades haviam feito com que escalassem mais
ou menos na contagem, mas na realidade todos os quatro teriam muita
dificuldade enfrentando uns aos outros. Em combate corpo-a-corpo, ela
honestamente não sabia quem venceria.
Por isso Eiko desafiava tanto a autoridade de Howl. Por isso o
provocava, por isso o insultava, por isso puxava tanto a coleira que o capitão
da guarda mantinha ao redor dele. Ele sabia não ser inferior ao Diamante... E
não gostava de ser tratado como se fosse. Eiko sempre odiara a aura de
semidivindade que rodeava o rapaz. Os dois irmãos Skies tinham crescido
cercados de desconfiança e pena cautelosa, e Howl crescera como o guerreiro
heroico e promissor da matilha, o futuro alfa, descendente da primeira
licantropa, filho de uma Lunar e agora, capitão da guarda.
Infelizmente, a rivalidade estúpida que o pai deles tinha com os
machos Vowen havia se agarrado à consciência de Eiko, e apenas evoluído
na última década. Mykaela temia que o irmão fizesse alguma besteira
irreversível em nome daquela ambição, daquele desejo por reconhecimento e
valor.
Por isso ela aceitara o noivado, porque então... Porque então, talvez,
Eiko se satisfaria por ela. Veria que eles agora eram aceitos, que ela seria a
futura Diana e ele ainda seria um dos melhores guardiões. Era mais do que
qualquer linhagem integrante da matilha poderia pedir. A família Skies
recuperaria sua antiga relevância, sua glória. Além disso, ela poderia ajudar
os seus. Fazer melhoras, incluir mais fêmeas nos meios que eram reservados
apenas aos machos, principalmente. Isso a deixava animada para ser
soberana.
Mas então Lother dissera, depois de um breve sorriso impessoal, os
dois sozinhos na sala dele:
Fico feliz que aposentará seus couros e lâminas, menina. Você dará
herdeiros poderosos ao meu filho.
Seu estômago se revirara, então. Por instantes infinitos, sua mente
ficou em branco, se perdendo em si mesma de novo e de novo enquanto as
palavras do alfa se assentavam.
O... O q-quê?
Ela perguntara, a pele ficando gelada e escorregadia com o suor em
segundos. A garota precisava ter entendido errado. Entretanto, Lother
confirmara: ela não poderia ser Diana e guardiã. Ou era uma, ou outra.
Mykaela nunca teria previsto aquilo... Que o alfa a faria escolher. A própria
Temise fora uma guardiã. Por que ela não poderia sem ambas? insistira, em
desespero.
Lother não cedera, contudo.
Ela tinha desistido do próprio destino, de si mesma, para se tornar
uma égua reprodutora.
Mykaela nem queria filhos.
O problema nem era Vowen — ele era perfeitamente agradável aos
olhos dela, atraente até, e a garota não teria problema nenhum em se deitar
com ele. Ela decidira fazer aquela concessão dolorida pelo futuro dela e do
irmão, abdicar do horror que tinha da maternidade por aquela chance
inestimável.
Pararia em dois pirralhos, porque satisfaria o conselho, não
importando se não fossem machos como os idiotas daquele lugar preferiam.
Deixaria babás cuidarem das coisinhas, se resolveria com o mínimo possível
da educação delas. Talvez lhes desse alguma atenção quando fossem velhos o
bastante para treinar nos ringues.
Mykaela não fora feita para limpar fraldas, ou amamentar bebês
chorões, ou reprimir atitudes insolentes, ou ficar sem dormir por causa de
berros incessantes durante a madrugada. Ela não assistiria seu corpo se esticar
e murchar e perder vitalidade para que seu ventre servisse de incubadora,
cuspindo pequenos lobos barulhentos e exigentes.
O mero pensamento fazia arrepios correrem pela sua pele, a náusea
quase derrubá-la.
Mas agora... Agora aquela era sua única opção.
A garota não teria nem a vida como guardiã para distraí-la daqueles
tormentos. Ela sacrificara tudo. Tudo. Nem um laço de pares lhe seria
permitido — Vowen não a amava, ela não retribuía. Desejo nenhum
mantinha um relacionamento duradouro ou estável.
Pelo menos ele é decente, ela tentara se consolar, sem muito sucesso.
Pelo menos ele é honrado e cuidadoso e nunca me diminuiria como Lother
faz com Aya.
Diminuiria em questões políticas na administração da matilha, porque
Howl também nunca seria capaz de diminui-la fisicamente. Mesmo se
tentasse, ele apanharia tanto em resposta que Mykaela provavelmente seria
condenada ao exílio, ou à morte. Macho nenhum tinha esse tipo de controle
sobre ela, não mais.
Mas, novamente... Mykaela fora tola. Ela não queria ser mãe, mas
ainda desejava um companheiro. Alguém que fervesse seu sangue, que
tivesse as bolas necessárias para encará-la de frente, que a respeitasse e ainda
merecesse seu respeito. A maioria dos machos corria dela, do seu
temperamento, das suas habilidades e dominância. Eles não eram nem perto
do bastante para fazê-la sequer considerar.
Contudo, a garota nunca pensara que nem ao menos isso teria. Que
seria privada de toda e qualquer escolha.
Seu futuro minguara e se acinzentara diante dela.
Agora, não parecia nada além de uma maldição, uma sina cruel.
—Vou resolver isso, Myka — jurou Eiko, enquanto ela estremecia em
seu abraço e chorava em silêncio. — Prometo a você que resolverei isso.
Mykaela odiava chorar. Odiava demonstrar qualquer tipo de fraqueza.
Mas Eiko...
—Não há nada para resolver — fungou ela, tentando estampar um
semblante menos miserável. — Lother não vai viver para sempre. Assim que
ele abdicar ou morrer, vou me tornar guardiã outra vez, mesmo sendo a
Diana.
Ele não podia tomar nenhuma atitude estúpida por causa dela, ou usar
a situação como combustível para a própria ganância. Será que não entendia
que Mykaela tinha feito aquilo tudo por ele, por ambos? Ela não era uma
donzela para ser salva, para ser protegida ou ter as coisas resolvidas por ela.
Sabia muito bem o que estava fazendo e o que estava arriscando. Eiko tinha
de parar de se colocar na mira de fogo por ela, porque a garota aguentava.
Ela sempre aguentava.
—Quanto tempo acha que isso vai levar, Myka? — ele questionou
suavemente, ainda que tivesse as linhas do rosto tensas.
Eiko não era suave ou gentil com ninguém além dela. Antes, Mykaela
costumava gostar disso... Mas agora já não tinha tanta certeza se era uma
coisa para se gostar — o fato dele não confiar em nada ou ninguém além da
irmã.
—Anos? Décadas? Lother não vai abdicar, você conhece o
desgraçado. Ele vai se agarrar àquele posto até seu último e maldito suspiro.
Está preparada para essa probabilidade?
—Não tenho escolha, Eiko — ela rebateu, começando a se irritar.
Mykaela não queria que ele piorasse suas expectativas com mais
realidades dolorosas.
—Isso não é justo — o irmão insistiu, angustiado.
—Isso é o que é, Eiko.
—Isso não é quem você é.
O queixo dela se ergueu, todo orgulho e teimosia.
— Eu já tomei minha decisão e não vou voltar atrás.
Eiko engoliu em seco, a face sendo coberta por uma sombra diante da
expressão no rosto da irmã. Notando o oscilar em sua voz, a dor do
arrependimento em seus olhos. Ela não fora forte o bastante para esconder.
E ele sabia.
Sempre soubera.

Mykaela ainda arfava quando Howl terminou de se vestir.


Ela poderia passar horas admirando o modo como suas costas
poderosas se moviam, ou como seus braços flexionavam, como seu abdômen
se contraía. Um macho cheio de músculos e tamanho e reentrâncias trincadas
sempre lhe despertara o apetite. Vowen não deixava a desejar em nada no
quesito.
E o melhor de tudo: pelo menos ele sabia o que estava fazendo.
O Diamante havia aprendido a ler suas reações, a incrementar força
ou rapidez na hora certa, a identificar cada espasmo e som que ela soltava
com maestria. Até naquilo ele era irritantemente habilidoso.
A única coisa que Howl não era bom, no entanto, era em ficar.
Depois de todo aquele suor, gemidos e combustão mútua, de todo o
prazer e a satisfação compartilhados, ele nunca a beijava. Ele não a abraçava,
não sorria para ela, nem ao menos conversava com Mykaela. A garota não
esperava que ele lhe despejasse juras de amor eterno — nunca esperaria isso
de alguém como Howl —, mas... Gostaria de um bocado de afeto. Até um
maldito pouco de atenção seria o bastante.
Ela não imploraria, entretanto. Nunca diria a ele que esperava mais
daquele noivado. Não queria que ele sentisse pena ou ficasse desconfortável.
Mykaela não era nenhuma merda de cachorrinho carente e abandonado.
Mas sabia que Vowen percebia o ressentimento no rosto dela a cada
vez que ele deixava o quarto sem expressar uma mera sílaba. E era o maldito
quarto dele.
—Onde está indo? — indagou, deixando a voz soar casual,
preguiçosamente despreocupada.
Ele soltou um suspiro enquanto terminava de amarrar os laços da
calça.
—A comemoração de boas-vindas ao ciclo de Selenia será em
algumas horas. Preciso verificar o perímetro e falar com Safi... — ele hesitou,
a testa se franzindo. — Resolver algumas outras pendências.
Mykaela conteve o fogo queimando em seu estômago.
Um fogo destrutivo, territorial, violento.
Vowen estava distante desde que começara a treinar aquela mestiça
mirrada. Mais distante do que o normal, isso era. Ele mal tinha tempo para
Mykaela antes — agora usava todo minuto livre que possuía com a maldita e
inútil Safira Erklare. Porque ela era muito fraca, porque não conseguia se
transformar, porque era praticamente uma humana com tamanho de menos e
atitude demais.
Uma parte minúscula de Mykaela admirava a coragem dela e o que
fizera pela família Ahmed, pelo fato de que era uma fêmea que não engolia
desaforo nem se permitia abaixar a cabeça... Mesmo que sua loba fosse
submissa. Ela não era digna de nenhuma nota além dessa, contudo. A garota
odiava sentir ciúme de uma mestiça ninguém como Erklare, mas não tinha
mais controle sobre o sentimento.
Ela tinha ouvido os rumores. Sobre como eles passavam muito tempo
juntos, sobre como Vowen até procurava-a para conversar, caminhar, treinar.
Mykaela escutara sobre o caso com Berion Zandar há pouco; ele tinha usado
dominância para fazer a mestiça sentir dor e Howl quase explodira seus
miolos do mesmo modo como resposta. Ele não costumava ser tão
descontrolado nas punições, não quando o assunto não era da sua arcada de
influência.
E o fizera para sair em defesa de Erklare. Deixara o precioso controle
escapar — mesmo que de maneira efêmera — por causa dela.
Os rumores ainda diziam que Berion provocara Howl a respeito de
Safira. Que a mestiça abrira as pernas e Vowen se deixara sucumbir. Sobre
ele defendê-la com tanto afinco porque ela escalara o caminho até seus
lençóis... Os mesmos lençóis que Mykaela e o Diamante normalmente
compartilhavam.
A garota não acreditava em nenhuma daquelas merdas.
Em primeiro lugar, porque Howl não era assim. Em segundo, porque
a maldita Erklare também não era; o orgulho da mestiça não a deixaria ser
tratada como amante ocasional de macho nenhum. E terceiro, Mykaela teria
percebido. Teria sentido o cheiro de um em outro, teria ao menos captado um
sinal da presença dela naquele quarto.
Mas a fofoca não era infundada. Howl e Erklare estavam se
aproximando, mesmo que aos poucos. Isso enchia Mykaela de insegurança,
por mais que odiasse a sensação.
Pois ela não suportaria, não toleraria ser trocada por uma mestiça.
Não aguentaria ser passada para trás por aquela anã temperamental de sangue
misto depois de tudo que sacrificara por aquele noivado.
Howl era sim seu prêmio de consolação — Mykaela queria saber dele
tanto quanto ele queria saber dela, mas o posto de futura Diana ainda era seu.
O que mais ela tinha se não isso? A única coisa que a fazia continuar, que lhe
dava esperança de melhora no futuro... Era dela. Só dela. Erklare não tinha a
porra do direito.
Ela se livrou dos lençóis e caminhou na direção de Vowen, descalça e
ainda nua. A brisa de outono vindo da janela fazia sua pele se arrepiar, seus
mamilos endurecerem. Mykaela deslizou os dedos com o mais lânguido dos
toques pelo braço definido dele.
—Como você disse, ainda tem algumas horas — ronronou. — Fique
mais um pouco.
Os olhos dele correram vagarosamente pela figura esguia do seu
corpo. Era a única coisa que parecia atrair seu interesse; os momentos que
dividiam na cama. Isso a machucava, mesmo que agisse como se fosse o
suficiente, como se fosse seu desejo também.
—Mesmo que eu quisesse... — um suspiro. — Tenho
responsabilidades, Mykaela.
Ela piscou.
Então suspirou e armou um biquinho, mesmo que por dentro sentisse
que tinha levado um tapa.
“Mesmo que eu quisesse...”
O que significava que ele não queria. Nem a promessa ardente da pele
dela suando contra a dele parecia um atrativo para Vowen mais. Mykaela
resistiu à vontade de mandá-lo ir se foder.
Ou melhor, mandá-lo ir foder a cadela da mestiça.
Mas ela mesma já tinha consciência de que esse golpe feriria mais seu
orgulho do que ela tinha a chance de suportar, então engoliu a própria raiva e
sorriu de modo frio.
—Como quiser.
Algo deve ter transparecido em seu tom. Em sua face, ou em seus
movimentos tensos em demasiado, porque algo no semblante de Howl
suavizou um pouco. Mykaela odiou, odiou, odiou aquela pena cautelosa nos
olhos do noivo.
Ele abaixou a cabeça e entremeou a mão nos seus cabelos.
—Podemos terminar o que começamos aqui mais tarde — os lábios
quentes roçaram contra os dela. — Depois da celebração.
A possibilidade aqueceu seu baixo-ventre com o tom rouco da voz
grave, apesar de uma parte sua ter se revoltado com o lampejo de resignação
que vira na íris dele. A garota mordeu o lábio inferior de Vowen com um
pouco mais de força do que teria sido necessário graças à indignação, mas ele
interpretou apenas como uma fração do seu desejo reprimido, e a beijou de
volta com todo o calor acumulado de um bloco de gelo castrado.
O beijo dele não a fazia sentir nada. Nunca. A boca de Howl só
prestava para alguma coisa quando estava em sua pele, entre o vale dos seus
seios, entre suas pernas. Agora quando se beijavam, línguas duelando, dentes
se chocando e lábios trocando uma ardência impessoal... Nada. Tão excitante
quanto se esfregar num cacto em temperaturas negativas.
Mas Mykaela aguentava. Ela podia não conseguir acumular carinho
ou nada além de desejo por ele, mas aguentava o resto. Estava lutando pelo
próprio futuro quando lutava por ele.
Então sorriu, deixando apenas malícia transparecer no gesto.
Nada da mágoa revirando seu estômago se mostrou ali.
—Depois da celebração — concordou.
Aquela foi a última vez que se deitou com Howl.

—Ande. Ande, ande, ande — Mykaela puxou o irmão para fora do


fosso com toda a pouca força que lhe restava, agarrando a camisa em trapos
que lhe cobria em desespero para içá-lo para cima quando ficou claro que ele
quase não conseguia aguentar o próprio peso.
Magro. Eiko estava ainda mais magro do que ela.
Que merda, que monte de merda fodida e insuportável...
—Myka — ele arfara então, os olhos anuviados com o alívio e o
cansaço. — Você está aqui. Está livre.
Olhos que, naquela manhã, não tinham expressado nada além de
desprezo, maldade e ignorância. As palavras rudes e debochadas inteiramente
diferentes do tom cheio de gratidão e afeto que agora ele dirigia a ela.
Às vezes, Mykaela não sabia quem o próprio irmão era. Ela não sabia
quem ele preferia ser, ou se qualquer uma das partes deles era real.
Seria o licantropo maldoso e psicótico uma fachada?
Ou seria o irmão doce e preocupado a versão falsa?
Ela não sabia mais. Achava que sim, porém não mais.
—Ande, precisa sair enquanto todos estão no festival — ela grunhiu
com o esforço de terminar de puxá-lo.
Eles não tinham se falado até então, desde o dia em que Eiko atraíra
Safira Erklare para uma armadilha e quase a matara, com o objetivo atroz de
desestabilizar Howl, de levá-lo à insanidade pela perda do par que seu lobo
escolhera.
Ele passara semanas fora tramando com as bestas — o que ainda
revirava o pouco conteúdo no estômago da garota toda vez —, fugindo e
sobrevivendo até ser capturado por um esquadrão de guardiões. A investida
tinha custado três soldados; soldados licantropos que Eiko havia ajudado a
emboscar.
A dolorosa, dolorosa verdade era que Mykaela não queria mais
reconhecer aquele homem diante dela. Não queria aceitar que a violência, a
manipulação e a maldade corriam no sangue deles como uma infecção, como
uma doença da qual não conseguiam escapar. De algum modo, o que Eiko
tramara parecia quase pior do que todos aqueles anos nos quais Kadam fora
um desgraçado abusivo com a própria família.
Quase, porque quando Eiko se dirigia a ela, a garota ainda via seu
irmão nele. Aquele que a protegera com tudo que tinha, que faria o possível e
o impossível por ela, assim como ela faria por ele. Sua única família restante.
Eiko se esparramou no solo úmido e gelado por alguns segundos
preciosos, a respiração errática, pesada, a encarando como se fosse tudo de
que precisasse, tudo que poderia querer.
—Está aqui. Você está mesmo aqui.
Ela engoliu em seco, desviando o olhar do sorriso atencioso e exausto
no rosto dele.
—Achei que até você tinha desistido de mim, Myka — a voz dele
soava embargada, e o coração da garota se quebrou em milhares de pedaços
pontiagudos. — Nos últimos dias, quando se recusava a falar comigo nas
celas e hoje, no julgamento, eu achei... Achei que realmente tinha te perdido.
Ela sabia que exigia dele. Fingir que nada o afetava, que era
invulnerável e inatingível embaixo daquela máscara de zombaria... Era
custoso para Eiko, sempre fora. Ele ainda era apenas um garoto... Ainda era
apenas o irmão dela, cheio de defeitos e esperanças, de desejos e traumas.
—Não ainda, seu moleque insano e prepotente — ela enfiou os braços
nas axilas dele e se esforçou para erguê-lo sob o próprio traseiro imbecil. —
Agora me ajude a levantar, antes que alguém nos ouça e venha verificar.
—Zandar te deixou sair, não foi? Ele te colocou a par das
informações?
—Ah, sim — ela grunhiu, irritada. — Também deixou bastante claro
que não acharia recomendável caso eu abrisse a boca para delatá-lo, quando
me deu as gazuas.
E ameaçara envenenar Howl e Safira por meio de terceiros, caso algo
lhe acontecesse. Ela percebera então que artimanha do irmão envolvia muito
mais do que apenas a obsessão por poder que ele tinha. Também envolvia
Berion, que queria a mão de Kiara Vowen em casamento e uma posição
permanente para sua família no conselho, e ainda outros que desejavam lucrar
com a deposição de Lother e sua indiferença fria.
Kiara, que tinha apenas dezesseis anos. Howl e Safira, que morreriam
depois de terem-na auxiliado mesmo contra todas as expectativas. Deusa e
estrelas, Safira era basicamente a única que lhe mostrara alguma compaixão
desde que ela fora condenada por ser a irmã do traidor. Conversara com ela,
confiara nela para ajudar no treinamento das fêmeas, lhe dirigira alguma
empatia, lhe mandara mais cobertores e mais refeições enquanto estava presa.
E agora Mykaela estava ajudando os machos que a queriam morta.
A vergonha fez o caminho até sua garganta e espalhou um gosto
amargo por sua língua.
Ela já tinha superado a inimizade com Erklare. Já tinha aprendido do
modo mais difícil que não era justo diminuir a nova futura Diana por algo
que ela não escolhera — seu sangue misto. Se havia uma coisa que a Deusa
tinha se encarregado de esfregar em sua cara com veemência, fora aquilo.
Safira, de todas as fêmeas, fora considerada digna por Diana para se tornar
sua Protegida. Uma fêmea mestiça-ninguém — considerada digna.
Todas as suas convicções haviam caído por terra, naquele dia. A
pureza do seu sangue sempre fora motivo de orgulho para Mykaela, antes. O
gene humano, por outro lado, geralmente fazia outros licantropos mais fracos,
mais lentos, menos dominantes. Inferiores, ela julgara.
Mas quem — quem — era ela para julgar algo acima da Deusa?
Ela não era nada. Seu sangue puro se provara inútil, não servira para
livrá-la da prisão ou da condenação por ser uma mera parente de outro lobo.
O sangue mestiço de Safira também não provava nada — porque ela tinha
conquistado o que hoje possuía por meio da sua força de vontade, seu
coração honesto, seu altruísmo involuntário. A uma-vez-mestiça-mirrada
agora tinha tudo que Mykaela um dia almejara: o coração do futuro alfa, a
lealdade dos melhores soldados da guarda, o respeito da alta hierarquia da
alcateia, a chance de mudar a vida do povo delas para melhor.
Ambas sangravam vermelho, ambas tinham bocas, narizes, braços,
pernas.
O que Safira tinha e Mykaela não, aparentemente, era apenas bom
senso.
—Podemos atravessar o território em duas horas, se não pararmos
para descansar. Você tem alguma comida, algum mantimento?
—Não tenho, mas Eiko...
—Não importa — ele se apoiou num pinheiro para erguer o próprio
corpo, as pernas ainda um pouco instáveis, então abriu um sorriso perverso.
— Sei exatamente de quem roubar as coisas das quais precisaremos.
—Me escute. Os casais estão fora, espalhados pela floresta e pela vila.
Você precisará ter muito cuidado se não quiser...
—Ei. Vamos nos virar — ele pegou o rosto dela entre as mãos
calejadas e sujas, os olhos reluzindo com a satisfação, até uma pontada de
alegria. — Orwen vai arranjar um lugar para ficarmos até que as bestas se
reorganizem. Minha reputação com a alfa esquentadinha deles não está lá
essas coisas — armou uma careta. — Mas não importa mais. Ninguém teria
coragem de nos impedir, ou habilidade para nos enfrentar.
—Eiko... — ela tirou as mãos dele das próprias bochechas, os olhos
marejados e repletos de angústia.
Seu irmão finalmente deu um passo para trás, a testa franzida,
analisando-a da cabeça aos pés.
—O que houve? Está machucada?
—Eiko, não posso ir com você. Não vou.
Ele piscou como se ela tivesse falado em outra língua. Então, diante
do seu silêncio, recuou como se tivesse levado um tapa.
—Como assim não vai comigo? — a incredulidade contorceu suas
feições angulosas. — Mykaela, vão te matar. Saberão que você me libertou,
os guardiões que você apagou vão testemunhar contra você. Sei que seu
coração é muito mole para cogitar matar qualquer um deles, então qual a
porcaria do sentido de permanecer em um lugar que...
—Não matar integrantes da nossa própria matilha não é ter coração
mole, Eiko — ela rosnou, sentindo o temperamento escapar por entre os
dentes cerrados. — É ter alguma porra de respeito. De honra.
—Ter respeito e honra não mantiveram os infelizes vivos.
—Milo jogava cartas com você nos intervalos dos turnos! — ela
empurrou o ombro dele com força, a voz ficando aguda e emotiva. — Gean
chegou a brigar feio com nosso pai uma vez, quando ainda era um guardião
jovem e novato, depois de te pegar com uma costela quebrada. Nós os
conhecíamos. Eram nosso povo, nossos cole...
—Nenhum deles fez nada enquanto essa matilha afundava em
conflitos internos e batalhas externas, Mykaela! — Eiko apertou o nariz entre
o polegar e o indicador. — Isso não é justo, está bem? Sei que não é. Eles
deviam ter recuado assim que viram os números lupinos. A emboscada
deveria tê-los assustado e me permitido escapar.
—Soldados licantropos?! — vociferou ela. — Fugindo da merda de
uma briga? Se assustando?! Você consegue mentir melhor que isso, Eiko. E
com certeza consegue lembrar que não sou tão tola quanto os civis que você
iludiu hoje, no tribunal. Você não deu às bestas a oportunidade de assustá-los.
Deu a elas a chance de exterminá-los.
—Poderíamos estar a quilômetros daqui, agora, se não fosse essa
discussão inútil.
—Não é inútil, Eiko! — Mykaela bateu o pé, controlando a
necessidade de erguer a voz, ou sacudi-lo pelos ombros. — Eu não sei mais
quem você é!
Os olhos dourados dele se estreitaram, faiscando com uma ofensa
soturna.
—Sou seu irmão, Myka. Sempre fui seu irmão.
—O irmão que eu conheço e amo nunca teria condenado inocentes,
nunca teria prejudicado nossa alcateia em função dessa disputa sangrenta.
Nem ao menos sei mais dizer o que você não sacrificaria em nome dessa
causa — as lágrimas começaram a escorrer pelas bochechas dela. — Quem
será o próximo alvo, Eiko? O abrigo, cheio de crianças indefesas? Alguma
outra esposa ou familiar vulnerável de um guardião? Eu, que represento uma
provável última vulnerabilidade para você?
O rosto dele ficara branco feito cera.
—Como pode dizer isso? — era mágoa. Mágoa verdadeira em seu
timbre vacilante. — Como pode achar que eu faria isso com você? Mykaela,
você é tudo que me resta. Eu morreria por você, mataria, eu...
—Eiko, não importa mais.
Cada palavra dele a atingia como uma faca em brasa no abdômen. Ela
sabia que o irmão estava sendo honesto do jeito deturpado e frio dele,
daquela sua maneira megalomaníaca de enxergar tudo e todos. Ela não sabia
se chegaria o momento em que Eiko começaria a enxergá-la como uma
fraqueza, algo a ser usado contra ele... Uma desvantagem dispensável.
Mas já não duvidava da possibilidade.
E ela estava cansada de sangrar e apanhar pelos erros dele. Estava
cansada de sacrificar e sofrer para impedir que as ações dele arruinassem a
vida dos dois. Mykaela sabia que Eiko pensava estar ajudando ambos...
Conseguindo poder para ambos.
No entanto, aquilo não era o que ela queria. Nunca fora.
A garota não tinha mais saco para pagar pelos erros do irmão.
Uma parte dela achava que Eiko tinha feito a mesma coisa que o pai:
a colocado num pedestal como sua redenção moral doentia. O último pedaço
de humanidade que lhe restava.
As palavras de Eiko, as que Erklare contara a ela, nunca haviam
deixado sua mente.
Eu não era um monstro. Precisei me tornar um.
Mykaela sabia. Entendia cada parte daquela jornada na qual ele se
endurecera para aguentar as surras e maus tratos do pai, a desconfiança e
exclusão constante da matilha. Ela presenciara tudo aquilo ao lado dele, mas
não podia continuar agindo como se suas ações tivessem algum perdão ou
justificativa.
Não tinham.
Ter sido criado por um monstro não era motivo para ser monstruoso
com outros.
Howl e Kiara eram a prova disso. Erklare era a prova disso. Até a mãe
e a tia de Mykaela, que permaneceram boas mesmo crescendo num meio
familiar opressivo e violento.
Portanto jurou, jurou a si mesma que aquela seria a última vez.
Porque ela amava o irmão e única família que lhe restava. Porque não
conseguiria deixá-lo morrer. Porque queria dar a ele aquela última chance de
escapar e continuar longe, onde ele não poderia ferir mais ninguém. Mesmo
que longe dela. Mesmo que a ausência dele também fosse lhe doer como o
inferno.
—Me prometa que vai fugir, Eiko — ela pediu, a voz trêmula. — Que
não vai voltar, que não vai retomar a aliança com as bestas, que não vai
tramar contra essa matilha. Por favor.
Ele balançava a cabeça, um ceticismo quase piedoso em seus olhos.
—Mykaela, não posso desistir. Eu cheguei longe, tão longe...
—Pois já chegou longe demais — sibilou, o rosto endurecendo. —
Estou traçando a porra da linha, Eiko. Se ultrapassá-la, vai me perder de
verdade.
Os lábios dele se comprimiram numa linha fina, seu orgulho e sua
carga emocional duelando pela dominância em seu semblante.
—Venha comigo, então — ele respirou. — Venha comigo, e seremos
só eu e você longe daqui.
Mykaela suspirou.
Não. Muito rápido. Ele respondera muito rápido.
O coração de Eiko já não vacilava mais quando ele mentia. Ele
dominara a habilidade com uma destreza aterradora. Contar a verdade ou não,
não importava; seu rosto, seus gestos, seus batimentos cardíacos já não
delatavam nada.
Mas Mykaela tinha uma vantagem sobre outros — ela o conhecia
quase melhor do que ele mesmo. O irmão estava tentando fazê-la de idiota,
mesmo que a intenção fosse nobre.
Não pretendia desistir... Só queria tirá-la dali. Mykaela era sua última
e única fraqueza: seu irmão diria tudo que ela quisesse ouvir para arrancá-la
das mãos de Lother.
Mas se ela era tudo que fazia Eiko hesitar, também era a única coisa
protegendo o lugar que chamara de lar durante a vida toda. Tudo que
conhecia e amava... Estava ali. Seu povo, suas melhores lembranças, suas
chances de redenção.
Mesmo que tudo aquilo fosse tão alcançável quanto cinzas ao vento,
naquele instante.
—Não, Eiko — ela fechou os olhos, apertando os braços ao redor de
si mesma com força. — Eu fico. E você vai. Não é negociável.
O rosto dele se contorceu.
—Vão querer matá-la. Como pode querer ficar?! Vão querer matá-la
por me libertar e você sabe!
—Enfrentarei as consequências da porra das minhas ações, Eiko —
ela alfinetou, sentindo aquela lâmina cortar fundo nele. — Das minhas e das
suas. Não me importa mais, não depois de tudo que fiz.
Ela esperava que Vowen intercedesse por ela... Que qualquer um
intercedesse. Estava com medo, estava cansada, estava tão miserável e triste
porque tudo tinha sido arrancado dela, mas não podia esperar misericórdia
nem da própria matilha.
Se fugisse com Eiko, para onde iria? Para os lupinos? Ela preferia
morrer a se juntar às feras que haviam matado sua tia, que haviam matado
tantos dos seus. Para o mundo humano? Também fora de cogitação. Ela e
Eiko seriam caçados, nunca aceitos, não com os olhos amarelados como os
de animais selvagens, a força e sentidos sobrenaturais. Ela nunca teria paz.
Preferia ficar e oferecer um último escudo à alcateia — contra Eiko —
do que suas opções restantes.
Era sua última investida. Pelo irmão, para salvá-lo de si mesmo, pelo
próprio povo, que não tinha culpa pela ignorância dele.
Ela só estava tão cansada.
Tão cansada de perder tudo e todos.
Mykaela desatou aquele último laço. Aquela última corrente
prendendo sua existência àquele lugar, àquelas pessoas. Sentiu sua força se
esvair, seu peito rachar, o ar escapar dos seus pulmões. Estava vazia.
Então ela verdadeiramente perdera tudo.
Tudo e todos.
Eu aguento, eu aguento, eu aguento.
—Vá embora, Eiko, antes que eu me arrependa e te arremesse naquela
merda de fosso de novo.
—O que você fez? — a descrença arregalara os olhos do irmão.
Mesmo ele percebera o lapso de dominância, de conexão que antes a ligava
aos outros. — Você... Você se desligou da alcateia.
Desgarrada. Ômega. Loba solitária.
Todos os termos que ela mais abominava, todos agora aplicados a ela.
Mykaela conteve o choro antes que realmente jogasse o irmão de
volta na queda escura e inescapável de sete metros pelo que fizera a ela, pelo
que fizera a eles.
—Agora não podem me forçar a falar — murmurou ela, perdida e
absolutamente deplorável. — Não vou delatar você, nem seus planos, nem
Berion. Vá.
—Mykaela...
—VÁ EMBORA! — ela urrou, e Eiko olhou ao redor, assustado.
Ela poderia ter atraído todos os lobos num raio de quilômetro. Não se
importava. Não dava a mínima. Não mais.
Mykaela já não se importava com porra nenhuma.
E ninguém se importava com ela.
Ela teve certeza desse fato quando o irmão se afastou, balançando a
cabeça com pesar e culpa, e saiu correndo na direção do breu da floresta,
antes que alguém viesse verificar a origem do grito.
A garota tombou de joelhos, as lágrimas caindo em suas mãos, seu
colo.
Eu aguento, eu aguento, eu aguento.
Mas ela não sabia se aguentava. Não havia mais forças em seu peito.
Não havia mais nada.
Parte II
Perdoada Pela Honra
Quando Feuer acertou o quarto soco seguido, a multidão ao redor da
arena poderia muito bem ter estourado os tímpanos de Mykaela.
Ela ainda não sabia por que os infelizes se dispunham a assistir. Os
poucos lobos que conseguiriam vencer a capitã da guarda no ringue nunca
estavam disponíveis para fazê-lo — e por um bom motivo. As
responsabilidades de Feuer haviam perdido boa parte da urgência com o
tratado, então ela era a única com tempo livre para desperdiçar aquele tanto
de estamina no descampado da guarda.
No entanto, consequentemente, isso quase sempre fazia de Vaska a
campeã invicta. Mykaela achava ridículo que os outros ainda tentassem,
depois de vê-la arrancando tantos dentes e quebrando tantas costelas. Os
licantropos tinham a vantagem de se recuperar mais rápido, mas os lupinos...
Os lupinos eram só estúpidos.
—Tudo bem, Belthor — gritou Tenna de modo abrupto, estalando os
dedos e flexionando os ombros antes de pular as grades com um sorriso
ferino no rosto. — Você já nos envergonhou o bastante.
O homem cuspiu sangue na areia e rosnou para a herdeira lupina.
Ela rosnou de volta.
—Fora.
Belthor pareceu querer conservar o orgulho restante, porque apenas
grunhiu consigo mesmo e cambaleou para fora da arena. Mykaela tinha
experiência o suficiente nas rusgas com Feuer para saber que a visão dele
devia estar girando alguns graus depois daquele quarto soco. O gancho de
direita da Ônix era uma calamidade a ser evitada a qualquer custo, uma vez
que você aprendia seus verdadeiros danos.
Desymer era uma das que já tinham aprendido, na verdade. Fora uma
das poucas a verdadeiramente lutar com Feuer, e não apenas apanhar dela.
Mykaela ajustou a posição para assistir melhor o embate, subitamente
atenta. Meistens, que tinha os cotovelos apoiados de modo relaxado contra as
grades ao lado dela, sorriu de forma marota e fez o mesmo, um brilho de
animação reluzindo em seus olhos verde-floresta.
—Ah, as coisas acabaram de ficar interessantes.
A garota grunhiu em concordância.
Vaska e Tenna se rodearam com expressões idênticas de deleite, o
ambiente ao redor sendo preenchido por aquela tensão ambígua entre a
atração e a violência.
—Eu estava me perguntando quando você viria salvar o traseiro
desses miseráveis.
Desymer tinha aquele dom exótico de Nye e Howl — sorrir e fazer
parecer uma exposição de lâminas.
—Quando você terminasse com o espetáculo de pompa, é claro,
Feuer.
Vaska curvou os lábios de um jeito teatralmente ofendido.
—Feuer? Por que é que quando eu piso para fora da sua cama você
volta a me chamar de Feuer? — ela plantou as mãos na cintura, dramática. —
Podia jurar que era meu nome que você estava gritando ontem quando minha
boca...
Tenna quase arrancou a cabeça dela fora com um chute, e a risada de
Will ecoou na arena como um sino.
—Isso mesmo, cunhada! — exclamou ele, erguendo o punho e
vibrando junto dos lupinos rodeando a arena. — Chute o traseiro insolente
dela!
—Cale a boca, Meistens! — Feuer gritou do ringue, enquanto
desviava dos golpes inclementes de Desymer e tentava distraí-la com algum
outro truque sujo.
A herdeira lupina já tinha aprendido que Vaska adorava uma pequena
exibição, e não se abalava com as técnicas sórdidas dela para irritar seus
oponentes até a maldita alma. Mykaela tinha aprendido que Tenna era tão
composta quanto uma montanha, e pouca coisa a tirava do sério. Nem a
língua suja da loba de ébano a fazia ao menos corar — não fora do quarto,
aparentemente.
A garota estremeceu com uma pontada de repulsa diante da
constatação, mas empurrou o pensamento para um canto da sua mente que
gostava de chamar de “antiga Mykaela”.
Safira tinha recomendado que ela fizesse isso, quando se deparasse
com um conceito que sua versão maldosa e desnecessária formara. Aquela
versão, no momento, não conseguia entender como Feuer se dispunha a se
deitar com uma lupina e parecer perfeitamente feliz, mas bom, a vida era
dela. Vaska não se importava mais com o fato de que aquelas eram as bestas
que haviam matado sua avó, sua amiga, um terço da sua alcateia. Ela, assim
como Safira e Kiara, era uma das que tinham se esforçado para fazer as
espécies interagirem de um jeito não-violento e saudável.
Elas não tinham conseguido lidar com a primeira parte muito bem,
então decidiram focar na segunda.
Os dias de ringue eram uma fonte de entretenimento esportivo para as
matilhas. Todos poderiam se candidatar, fossem os adversários da mesma
espécie ou não, porque até algumas das bruxas se dispunham a participar
quando um dos comitês do coven estava de visita.
Antes dos combates controlados, licantropos e lupinos costumavam se
meter em qualquer tipo de conflito banal, onde qualquer faísca de rancor
poderia iniciar outra guerra. Antes que as coisas piorassem de maneira
irrevogável, a própria capitã da guarda tinha sugerido que deixassem os
cabeças-quentes quebrarem as mandíbulas uns dos outros: só que com hora,
lugar e oponente marcado. Surpreendentemente, o arranjo funcionara melhor
do que previsto.
Havia uma camaradagem brutal nesse tipo de evento. Você via um
inimigo levando uma joelhada entre as pernas do mesmo sujeito que te
quebrara o nariz e pronto; era motivo o bastante para se solidarizar. De
repente, lupinos e licantropos se viam torcendo pelo mesmo combatente, ou
então antagonizando outro em conjunto. A Lápis-Lazúli e o Opala ainda
tinham vindo com a ideia de distribuir barris de cerveja preta de graça no
anoitecer do dia; Howl e Safira tinham hesitado, porém acabaram
concordando. Ambos os grupos costumavam estar cansados demais no
crepúsculo para fazer algo além de se embebedar, debater as lutas e rir como
tolos. No fim, um laço involuntário terminara se formando e os ânimos que
normalmente se elevavam nas horas erradas eram bem gastos nas lutas
programadas. Fora uma boa solução para a agressividade que cantava no
sangue das duas alcateias.
Teria sido uma boa solução para a agressividade que cantava no
sangue da Platina, caso ela se dispusesse a participar.
Mas ela se recusava. Naquilo, a “antiga Mykaela” não recuaria, por
mais que tentasse.
Toda vez que Tenna ou Ruby sorriam, a garota via apenas sua tia
morrendo, seu irmão sendo arrastado pela própria ganância até as bestas, sua
alcateia sendo estraçalhada. Ela poderia assistir às lutas, torcer por alguns dos
seus e até brincar de aliada amistosa, mas no fundo estava se controlando
para não ir até a arena e espancar alguns lupinos até a inconsciência.
Ela não fora a primeira a pensar nisso; no início, muitos de ambos os
lados tinham usado os combates para extrapolar, machucar integrantes da
matilha oposta de verdade e sair impunes. Safira e Ruby tinham expulsado os
engraçadinhos do ringue, e eles não voltavam a ganhar permissão para
ingressar a arena.
Mykaela não queria ser aquele tipo de pessoa mais. A que precisava
ser controlada, a que era imatura, que representava um problema, que era
vista como uma dor de cabeça.
Então se mantinha fora das lutas, por mais que seu orgulho e sua loba
se revoltassem explicitamente com a decisão.
Vaska, por outro lado, amava os dias de ringue quase tanto quanto
amava deixar as pessoas constrangidas com aquela tagarelice incessante.
—Seu irmão bate mais forte que isso, Desymer!
Tenna só respondeu com um avanço impiedoso, uma investida de
ombro no abdômen e uma cotovelada magnânima no nariz da Ônix.
Mykaela podia reclamar o quanto quisesse dos lupinos, mas no fundo
gostava de ver Vaska levando uma surra. Esse era um espetáculo ao qual nem
mesmo a nova Mykaela se recusaria a assistir.
Antigos hábitos demoravam a morrer.
Feuer soltou uma risada engasgada com o sangue escorrendo pelo
lábio inchado.
—Eu te ensinei esse golpe, sua cobra traiçoeira.
A herdeira lupina ergueu um ombro de forma displicente, os olhos
cintilando.
—Ao contrário de você, que ainda não aprendeu a manter essa língua
atrevida no lugar certo — provocou a mulher. — Eu faço bom uso das
minhas lições.
Vaska bufou, limpando o suor da testa com o dorso da mão.
—Você não estava reclamando da minha língua essa manhã...
—Também não vou reclamar dela essa noite — Tenna girou numa
finta exemplar e mirou o punho nas costelas da capitã da guarda, que
conseguiu bloqueá-lo por um mísero triz. — Isso se não a morder para fora
depois que eu deslocar esse maxilar esculpido.
A risada de Vaska tilintou pela arena outra vez, e Mykaela jurou ter
ouvido metade do público suspirar.
As lutas das duas sempre pareciam aquela novela; golpes sujos,
provocações ainda mais sujas, sorrisos e olhares escorrendo luxúria e, ainda
assim, afeto. A Platina via então, porque Vaska se deixara convencer. Estava
no jeito como ela se movia ao redor da herdeira lupina, na maneira como suas
íris douradas a seguiam, como sua gargalhada se tornava mais límpida
quando Tenna estava por perto. Mykaela não entendia como era possível,
mas entendia que era verdadeiro. Contra todas as expectativas, aquelas duas
se completavam de um jeito atordoante e sincero, e o laço de pares se
encaixara sem hesitação. Apenas nove meses tinham se passado desde o
estabelecimento do Tratado, mas Feuer e Desymer agiam como se estivessem
juntas há anos.
Mykaela costumava achar que a Ônix devia ficar com o bobo
apaixonado que agora vibrava ao lado dela; agora tinha certeza de que nunca
fora para ser. Meistens havia se redescoberto com a bruxa curandeira, e
Tenna parecia ter sido feita para Vaska. O laço que ambos tinham formado,
mesmo que não um com o outro, era algo digno de nota.
A inveja era quase inevitável — sempre que ela via Safira e Howl, ou
Tenna e Vaska, ou Will e Yundra, até Kiara e Calan... Fazia algo no
estômago da garota se contrair. Ansiar. Um par não era algo qual precisava,
no entanto... No entanto, um companheiro ainda era algo que queria.
Mas Mykaela não queria um lupino, muito menos um mago. E já
conhecia praticamente todos os machos da alcateia; todos tinham medo dela,
a repudiavam, a odiavam, ou simplesmente não lhe causavam nada além de
náuseas. O único que lhe parecera tentador por breves momentos... Agora
estava sete palmos abaixo do chão.
A guardiã estava mais do que decidida a concluir que terminaria
sozinha e celibatária, naquele ponto da coisa.
Uma coisa da qual não tinha inveja, no entanto, era da figura
arredondada e desproporcional da Diana.
Safira veio sacudindo as ancas inchadas até os dois, um sorriso
pendurado no canto da boca diante da interação dramática da melhor amiga e
da meia-irmã emprestada no ringue ensanguentado.
Mykaela achava que conhecia a metáfora da cobra que tinha engolido
um sapo antes de ver Reiters grávida de seis meses, mas claramente tinha se
enganado. Ela era minúscula e já estava enorme, então andava com a
elegância de um flamingo manco e a destreza de uma pata choca.
Outra coisa pela qual Mykaela ficava feliz: não carregar os filhos de
Howl.
Ela honestamente tinha pesadelos ao cogitar como uma criança que
descendia daquele macho passaria pela sua bacia estreita, pela sua estrutura
esguia. Safira tinha quadris largos, mas ainda era pequena, e o bebê já tinha
atingido um tamanho considerável.
Bom... Aquilo não era mais problema seu, graças à deusa.
—Qual das duas está ganhando?
—Considerando que parecem estar competindo para ver quem se
envergonha mais na frente de dezenas de pessoas, eu diria que estão num
patamar bem equilibrado — disse Mykaela, seca.
Will soltou uma risadinha.
—Todos aqui gostam de ver a disputa verbal dessas duas. Acho que
vêm mais pelo entretenimento do que pela luta — ele balançou a cabeça,
bem-humorado. — Eu, particularmente, adoro ver Tenna não se abalando
com a falta de noção de Vaska. Esperei anos pra conhecer alguém que não
fosse afetado por essa façanha.
O canto dos lábios de Mykaela se ergueu.
—Não tenho como argumentar com isso.
A antiga Mykaela ainda se horrorizava com o quão amigável suas
interações com Meistens haviam se tornado. Eles não eram verdadeiramente
amigos, apenas... Não se abominavam mais, pelo menos. A nova Mykaela
ainda o achava bobo e risivelmente suscetível, mas apreciava o humor
sarcástico do Esmeralda de vez em quando.
—Não acha que está expondo o Júnior a más influências assistindo a
essa desforra?
De vez em quando. Bem de vez em quando.
—Como se o bebê conseguisse enxergar alguma coisa — a Platina
revirou os olhos com tanta força que não soube como seus globos oculares
não foram parar na própria nuca.
—De um modo ou de outro, ele terá de se acostumar com as desforras
cedo ou tarde — Safira pousou a mão na barriga arredondada de modo
inconsciente. — Crescer entre alcateias temperamentais tem suas vantagens e
desvantagens.
—A boca suja das tias dele não é uma das vantagens, garanto —
apontou Meistens, enquanto as duas rolavam pela arena numa confusão de
chaves de braço e golpes baixos.
—Por que continua chamando o bebê de júnior? — questionou
Mykaela. — Você não sabe se será um “ele”.
Ele deu de ombros, projetando o lábio.
—Faísca disse que sua amiguinha sem coração terá um feitiço para
discernir o sexo até semana que vem. Estou confiante no meu palpite — o
rapaz esfregou as mãos. — Além do mais, eu e Vaska estamos apostando.
—Claro que estão. Quero só saber quem é que vai até lá pegar esse
feitiço — Safira arqueou as sobrancelhas. — Nem Kiara quer saber daquela
garota mais.
Di’rashya tinha colocado até a doce caçula Vowen para correr. A
parte do “sem coração” não era exagero da parte de Will. A aliada de Dalila
no continente longínquo conseguia ser mais difícil do que a bruxa do fogo,
por mais que Mykaela não tivesse acreditado até interagir com a garota
pessoalmente.
Não era uma experiência que desejasse repetir, pelo menos não nas
próximas décadas, por mais que adorasse as viagens a Ellayi. Os corredores
suntuosos das Quatro Moradas da arquicidadela; divididas em oito seções
distintas e únicas, as salas equipadas com mais armas do que ela poderia
contar, os centros especializados de treinamento das Pravka-Argentae,
Folkov faiscando com vida e diversidade... Depois de visitar a capital de
Leyan e ter o queixo arremessado no chão, Mykaela com certeza entendia a
fascinação de Kiara pelo continente longínquo.
No entanto, para pegar aquele feitiço, eles teriam de ir até as terras
bruxas, não a Leyan, então a guardiã não estava tão inclinada a se dispor para
a tarefa.
—Eu posso ir — ofereceu Meistens. — Yundra gosta de visitar
Mhiramar.
Safira sorriu para ele.
—Seria muita gentileza de vocês, Will.
—Disponha, novata.
Os três voltaram a atenção para a arena quando a multidão rugiu de
forma mais enfática — Vaska estava embaixo de Tenna, o olho roxo e o nariz
sangrando, mas ainda rindo como a tola escandalosa que era. A herdeira
lupina se abaixou para beijá-la depois de um comentário que apenas as duas
compartilharam, e Mykaela desviou os olhos. Meistens estava assobiando e
batendo palmas com o restante deles, e Safira estava sorrindo ao balançar
cabeça, mas a maioria dos sons se extinguiu quando Hassam Imanur pulou as
grades de ferro do ringue e apontou a grande espada na direção de Tenna.
—Eu desafio a vencedora.
Vaska grunhiu quando Desymer saiu de cima dela com um gesto
fluido.
—Pelo menos o entretenimento não baixou o nível — ela expôs os
dentes na direção do lupino, também conhecido como Carcaças. — Mas
espadas são entediantes.
Mykaela achava que espadas eram o que salvariam o rabo de Tenna
naquela disputa; poucas pessoas ali conseguiam sobrepor a força física
daquele homem, fossem elas lupinos ou licantropos.
—Quase tão entediantes quanto sua conversa mole, Feuer — ele
devolveu, mordaz.
Os olhos da Platina correram pela figura imponente do terceiro em
comando lupino. Desde à orelha dilacerada ao nariz quebrado, dos cabelos
escuros batendo nos ombros ao rosto moreno cheio de cicatrizes sombreado
pela barba por fazer e as enormes mãos calejadas, dos ombros largos às coxas
poderosas. Sua aparência não era nada além de grotesca, mas Mykaela sabia
que havia uma coisa extra nele que atraía fêmeas como luz atraía mariposas.
Era a confiança, o porte de comando, a voz aveludada grave e os olhos
castanhos intensos. Era um daqueles machos que não precisava de um rosto
divino para chamar atenção, apesar de ela já ter aprendido que beleza
nenhuma substituía fatores como respeito, decência, afeto genuíno.
Mas não que Imanur possuísse qualquer uma daquelas características.
Não com aquele jeito bruto, com aquela pose convencida, com aquela
selvageria descompensada.
Tenna escolheu uma arma, os olhos faiscando com o desafio.
Hassam sorriu e avançou.

—Ora, mas vejam só se não é a vadia arrogante.


Mykaela resistiu à vontade de revirar os olhos.
Ela fora uma das que se opuseram à ideia da cerveja após o dia de
ringue, e ali estava o motivo.
Cinco lupinos, praticamente uma destilaria contida em corpos quase
humanos. Se o cheiro exalando das roupas fétidas não estivesse lhe pregando
peças, os infelizes também tinham adicionado rum à mistura.
Lupinos bêbados na forma humana.
Lhe desafiando.
Ela não tinha paciência para aquela merda.
Os sons noturnos da floresta crepitavam ao redor do grupo. O fim da
sua vigília tinha sido perto da parte sul da alcateia, mas ela apenas tivera o
azar de topar com aqueles sujeitos enquanto voltava para a cabana que dividia
com Othella e Eora. Nem sempre os visitantes externos retornavam à matilha
lupina — muitos ficavam tão alcoolizados que precisavam passar a noite, e
vice-versa, quando as interações ocorriam no território deles. Aquele, no
entanto, era um óbvio grupo de imbecis que intentavam desbravar a escuridão
da floresta enquanto mal conseguiam se manter de pé.
Era por isso que os dias de ringue nunca aconteciam em noites de
Diana — ela não queria saber o que a cerveja faria com o raciocínio de bestas
que já normalmente nem tinham consciência.
—Por que você não luta, vadia arrogante? — a fala trôpega de um
deles a fez arquear uma sobrancelha em descrença. — Por que se acha tão
melhor a ponto de torcer o nariz para qualquer um de nós?
A própria situação em vigência era a resposta àquela pergunta, mas a
Platina apenas cruzou os braços e ficou calada. Ela tinha passado o dia inteiro
sob o sol quente de fim de verão da arena, e depois se atrasado o bastante
para um turno de ronda exaustivo que a fez perder o almoço. Mykaela estava
suja, com fome, com sono e irritada.
Aquela nunca era uma boa combinação ao seu temperamento.
Ela aprumou os ombros, respirou fundo e tirou um pouco da poeira
nas saias do uniforme de guardiã.
Nova Mykaela. Aquela era a nova Mykaela, e a nova Mykaela não
matava aliados apenas pelo fato de serem imbecis. Ela tinha de respeitar o
tratado, ou Howl arrancaria seu couro. E além disso, era a palavra de cinco
deles contra a dela. Se eles dissessem que a guardiã tinha começado a briga...
Ela tinha recuperado sua reputação a duras penas. Tinha mostrado que
era leal a custo de muito — muito. Se ameaçasse aquele tratado, se ameaçasse
a paz frágil entre as alcateias... Safira não a pouparia outra vez, não lhe daria
outra chance.
Mas ainda foi bastante difícil de conter a mão quando o olhar de um
deles acompanhou seus movimentos e desceu por suas pernas nuas com algo
parecido com fome.
Mykaela franziu os lábios — eu aguento, eu aguento, eu aguento — e
se virou na direção oposta, os passos esmagando as folhas secas que cobriam
o chão da floresta com uma tensão contida...
—Estou falando contigo, puta!
Ela o escutou se movendo — o da extrema direita. Suas roupas
farfalharam, o ar se moveu ao redor do seu tronco e um pouco do líquido
restante na garrafa que ele segurava chacoalhou. A Platina se virou no
segundo seguinte, erguendo o braço com uma precisão sobrenatural.
Segurando a garrafa que ele tinha jogado nela centímetros antes dela
atingir sua nuca.
O sangue dela ferveu e borbulhou. Seus dedos tremiam com a ira
correndo por suas veias enquanto ela baixava o vidro em sua mão e o deixava
quicar no solo úmido.
Algo como medo verídico lampejou nos olhos do homem que lhe
atacara. Um deles sacou uma faca do cinto.
—Que merda você tem na cabeça, Julius?
A voz grave de Hassam fez os cinco pularem no lugar, mesmo que a
Platina tenha permanecido imóvel como uma estátua. Ela tinha ouvido os
passos dele, mas sabia que tinha sido apenas porque o lupino queria que ela o
fizesse. Hassam, assim como Ruby, Tenna e alguns raros outros, tinha
dominado a habilidade de se mover com toda a discrição e cautela,
praticamente em silêncio absoluto — haviam precisado fazê-lo depois de
anos lutando com seres de audição superdotada.
O grupo bêbado relaxou visivelmente com a presença dele.
—Hassam — respirou o aparente líder, o que tinha lhe chamado de
vadia primeiro. — Veio nos ajudar a dar uma lição na vagabunda?
—Eu? — bufou o homem, os braços cruzados e o enorme corpo
coberto por calças escuras e uma camisa sem mangas recostado calmamente
contra um cipreste. — Eu vim vê-la chutando seus traseiros inúteis, e
provavelmente vou ter de arrastar o que sobrar de vocês até em casa.
Mykaela quase achou graça.
Quase.
A lembrança daquela garrafa sendo arremessada contra ela tinha
despertado um lugar cruel e frio na sua consciência. Um que ainda se
lembrava de quando o pai usava qualquer tipo de objeto para bater e oprimir
a mãe quando perdia o controle — um que não suportava um macho violento
e prepotente o bastante para pensar que podia enfrentá-la.
O semblante de Imanur lhe mostrou com clareza que ele era o único
ali que verdadeiramente imaginava do que ela seria capaz. Carcaças já tinha
sido seu oponente em batalha — sabia muito bem que nenhum daqueles
homens seria páreo para ela.
Não mate os miseráveis, por gentileza, dizia aquele semblante.
Era exasperação em seus olhos, mas também receio pelos comparsas.
Ele brincara a respeito de assisti-la lhes dar uma surra, mas a Platina sabia
que Hassam interferiria caso ela passasse dos limites e colocasse a vida deles
em perigo. Era um pedido educado, ainda que firme — que não a
subestimava, pelo menos.
Só por aquilo, Mykaela resolveu cooperar.
Um deles começou a reclamar, com uma careta:
—Como assim não vai aju...
Ela se moveu sem dar nenhum indício prévio. Seu pé ergueu a garrafa
do chão e sua mão a pegou no ar para atirá-la contra o pinheiro mais próximo
do que tinha lhe desafiado — e ele se assustou o bastante para não a ver
avançando do outro lado e descendo o cotovelo contra a parte macia entre seu
pescoço e ombro: um inconsciente, quatro faltando.
Sua segunda vítima reagiu mais rápido e pulou com a faca de lâmina
curta para cima da licantropa, mas o antebraço de Mykaela bloqueou o golpe
e seu joelho encontrou as bolas do desgraçado logo antes de encontrar sua
barriga e, em seguida, seu nariz. Ele desabou contra a terra e ela se abaixou
antes do terceiro homem agarrá-la por trás.
A Platina girou no chão e sua perna se esticou à sua frente para se
lançar à direita e quase atravessar a panturrilha do seu adversário; o infeliz
tombou como um saco de batatas e ela se certificou de apagá-lo com uma
pancada na têmpora antes de se erguer num pulo para enfrentar os dois
restantes. Seu coração cantava com a satisfação e a adrenalina incrementava o
trabalho dos seus pulmões enquanto ela controlava a respiração e media a
força de cada golpe, cada investida, cada bloqueio e desvio magistral.
Deusa, como sentira falta daquilo.
A última briga em que se metera fora para separar dois engraçadinhos
também alcoolizados na Ildrea, meses antes. Algumas pessoas se acalmavam
lendo, ou fazendo jardinagem, ou caminhando na mata, ou meditando, ou
lavando louça.
Mykaela se acalmava fazendo o que nascera para fazer: batendo e
suando e defendendo e afiando sua concentração em algo letal e impiedoso.
Ela acabou com os dois que sobraram em menos de sete segundos.
Sabia disso porque contara, porque aproveitara cada milésimo de tempo.
Um; ela se levantara e girara para longe de um soco desajeitado. Dois;
pulara para fora do alcance do chute do outro enquanto lhe agarrava o braço e
torcera até o sujeito gritar. Três; batera a testa do adversário imobilizado
contra o tronco de um pinheiro. Quatro, cinco; deixara o bastardo caído por
lá antes de escapar do golpe furioso do quinto e último homem. Seis; chutara
o abdômen desprotegido dele com força e o observara engasgar com o
próprio vômito antes de lançar o pé contra seu maxilar e fazê-lo desabar de
cara na terra.
Quando terminou e todos se encontravam no chão, mal uma gota de
suor escorrendo por suas costas eretas, a respiração sob controle ferrenho, o
que a tirou do transe de batalha foi o som das palmas de Hassam.
Lentas, cadenciadas, quase zombeteiras.
Era deboche em seu rosto, sim, mas também um toque de admiração e
assombro. Ela gostou do respeito resignado nas feições dele; impressionar
uma besta tão destrutiva e mortal quando Carcaças não era um feitio banal.
Ele até tinha derrotado Tenna no embate mais cedo, apesar da inegável
habilidade da herdeira lupina.
—Sabe, se lutasse assim no ringue, nenhum deles teria a coragem de
se meter com você aqui fora.
Mykaela inclinou a cabeça.
—Não preciso provar nada a desgraçados bêbados como esses.
—Pelo menos teria lhe poupado o esforço de apagá-los.
—Chama isso de esforço?
Um sorriso viperino repuxou a cicatriz que cortava a maçã do rosto de
Imanur.
—Você não pode ser invulnerável, Platina — escarneceu. — Algo ou
alguém vai acabar lhe cansando o bastante, algum dia.
Ela sentiu que devia ter uma segunda intenção ofensiva por baixo
daquela frase. Uma segunda intenção que ela teria prontamente rechaçado e
até se revoltado com, mas... Não havia nada no rosto dele, nenhum indicativo
ou maldade explícita, então sibilou:
—Até lá, vou continuar chutando os traseiros inúteis de qualquer um
dos seus homens que tente se engraçar comigo.
Hassam riu baixo, apenas um rouquejar suave que, se precisasse
admitir, a deixou mais relaxada do que deveria na presença dele.
—Justo.
Se ela precisasse acompanhar mais um comitê de comércio entre uma
matilha e outra, Mykaela dormiria em pé.
Ela não precisaria ter ido como escolta se Yan estivesse ali, em vez de
Kiara, mas o infeliz do beta estava muito ocupado com sua esposa afetada e
escandalosamente grávida — e com escandalosamente a Platina queria dizer
a poucos dias de dar à luz. Aqueles dois não tinham perdido tempo nenhum.
Pelo menos Howl também estava ali, o que significava que as
negociações seriam mais rápidas, já que decisões seriam mais facilmente
tomadas. O mesmo acontecia quando Safira era aquela a participar dos
comitês, porque Reiters tinha decretado que sua Diana agora teria o mesmo
nível de poder que ele. Uma parte da garota se enojava com tamanha
melosidade deferente — vinda de Howl, ainda por cima —, mas a fração
consciente da sua personalidade se lembrava de que aquilo era uma coisa boa.
Safira agora tinha tanta influência para melhorar as coisas quanto tinha
disposição para tal.
Então sim, as coisas se resolveriam mais rápido, porque o alfa
também estava impaciente e muito próximo de abocanhar alguém caso aquela
troca mercantil de materiais têxteis não fosse resolvida logo.
Os lupinos tinham bons contratos com comerciantes de tecidos — e
com a maioria dos outros comerciantes em Arye também, já que se pareciam
inteiramente com humanos e não precisavam ser tão cautelosos e discretos
quanto os licantropos nas negociações —, e Ruby oferecera a parceria em
troca de três fêmeas reprodutoras e dois machos saudáveis do rebanho
caprino da alcateia. Kiara era aquela lidando com os pormenores da
negociação, graças à Deusa, porque se dependessem da carranca assassina do
soberano licantropo, não teriam conseguido dizer nem uma mera palavra
antes dele rosnar algo rude e marchar de volta para sua fêmea.
Sua fêmea grávida e potencialmente vulnerável.
Não que houvesse algo de vulnerável na Diana, no geral — ela
provavelmente conseguia se defender melhor do que qualquer um ali, com
sua dominância exponencial e a ajuda do Clamor em emergências — mas
Mykaela tinha ciência de que nada daquilo seria argumento o suficiente para
sanar o lobo de Howl. Ele devia estar rugindo algo bastante eloquente e
civilizado na cabeça do rapaz naquele instante, como: voltar, rosnado, agora,
rosnado, proteger, rosnado, estraçalhar ameaças.
Kiara deixou dois dos mercadores mais experientes da alcateia
discutindo com os comerciantes lupinos enquanto puxava o irmão num canto
pelo braço e sibilava;
—Pare de franzir a testa como se quisesse matar todo mundo num
raio de dois quilômetros — repreendeu. — Estamos tentando parecer
amigáveis e você só está atrapalhando.
—Quantas malditas horas se pode levar para trocar cinco cabras em
alguns metros de tecido?! — ele rebateu, os olhos chispando.
—Com certeza espero que dure menos do que a vez que ficamos seis
horas aqui apenas para permutar temperos maasianos por carne seca —
grunhiu Mykaela.
Howl soltou um impropério agudo.
—É isso. Estou indo embora.
Kiara lhe deu um beliscão.
—Vai ficar quieto aqui, vai apertar as mãos dos comerciantes lupinos
e elogiar suas mercadorias, e ainda vai agradecer com um sorriso educado
que me satisfaça — ordenou ela, tudo enquanto acenava elegantemente para
algumas lavadeiras caminhando do lado de fora da tenda de comércio.
A caçula Vowen tinha se adaptado à matilha lupina como se adaptava
a todo o resto — perfeitamente bem. Por causa da proximidade com Calan, a
guardiã tinha certeza de que ela era a figura licantropa de quem todos mais
gostavam, ali... Assim como era a figura de quem mais gostavam na própria
matilha licantropa, também.
Ela tinha amadurecido e crescido mais do que todos, talvez, naqueles
últimos dez meses. Eleita alta-embaixadora da alcateia licantropa e
representante honorária da alcateia lupina, Kiara agora era quem tinha todos
os contatos com Ellayi, quem representava os acordos políticos e econômicos
entre os continentes, e ainda quem mantinha boa parte daquela aliança de pé.
Podia parecer coisa demais para uma garota de dezessete anos, mas a verdade
é que ela se dava mais do que bem no cargo, e isso também a fazia mais do
que feliz.
Mykaela tinha certeza de que a deusa tinha dado um empurrãozinho
na direção daqueles dois... Calan e Kiara. Graças ao pequeno romance
inocente e nada secreto dos dois, ambos os líderes dos povos — e por
consequência, as próprias alcateias — pensariam duas vezes antes de fazer
qualquer movimento agressivo um contra o outro. Ruby, porque ela não
gostaria de magoar o filho ao separá-lo de Kiara, e Howl, porque ele não faria
o mesmo com a irmã mais nova... Por insistência de Safira, é claro, porque o
alfa nunca exatamente aprovara a relação dos dois caçulas por conta do ciúme
superprotetor fraterno.
Os alfas se preocupavam com seus respectivos protegidos, portanto as
matilhas também o faziam. Os lupinos até mais do que os licantropos, a
Platina às vezes cogitava. Todos ali eram absurdamente integrados e leais uns
aos outros... Bem diferente da hierarquia excludente dos licantropos, que
Howl e Safira agora se esforçavam tanto para extinguir.
O acampamento lupino sempre estava fervilhando de gente, Mykaela
percebera, das poucas vezes que viera e pudera dar uma olhada na área. Por
entre as barracas menores e as tendas comunitárias do território íngreme na
base da cadeia de montanhas que ladeava o Oldravon, havia bem mais
humanos ali do que na alcateia licantropa por motivos óbvios — muitos deles
até eram descendentes distantes de bestas que não herdaram o gene da
transformação e ainda possuíam um pouco da rapidez e força sobrenaturais,
assim como vários mestiços na alcateia.
E havia muitas crianças.
Crianças catarrentas e escandalosas por todos os lados.
A Platina mal conseguia dar dois passos antes de ter de desviar de um
ou dois pestinhas desvairados correndo enquanto riam e tropeçavam pelo
caminho entre as estruturas de tecido e lona.
A matilha de lupinos costumava ser nômade, mas com o crescimento
sobrepujante dos números e o constante treinamento de Ruby aos seus
soldados, eles tinham decidido que valia o risco fincar território naquela parte
da província, e ainda lentamente construíam casas e algumas outras estruturas
de pedra. A maioria das moradias ainda era composta por abrigos e pavilhões
cobertos por tecido, contudo, não por tetos sólidos.
Durante o inverno, pensou a guardiã, teriam de fazer aquele tipo de
reunião na alcateia licantropa, ou congelariam por culpa do vento glacial
entrando pelas aberturas das tendas.
E era estranho pensar que continuariam negociando com as bestas no
futuro. Muito estranho, não importando quanto tempo passasse.
—Apresse essas pessoas — urgiu Howl para Kiara depois de meros
dez minutos, a carranca ainda pior do que antes. — Agora.
O pé dele quicava incessantemente contra o assoalho, e Mykaela teve
certeza de que um dos comerciantes lupinos ficara branco feito cera diante da
feição nada amigável do alfa licantropo.
—Howl — Kiara criticou, entredentes. — Comporte-se.
—Isso sou eu me comportando. Quer ver como meu comportamento
ficará daqui quinze segundos, irmãzinha?
A menina soltou um chiado frustrado.
—Você é impossível. Safira está bem.
—Eu gosto de tê-la no alcance da minha vista.
—E eu gosto de manter nossas relações diplomáticas intactas.
—Que bom que essa é sua função, não minha.
—Só mais alguns minutos.
O alfa expôs os dentes, e o Ametista, o outro guardião de escolta junto
com Mykaela, lançou um olhar entretido para os dois, mas tudo que a cena
causou na Platina foram náuseas e uma dor dilacerante no peito.
Ela e Eiko costumavam ser daquele jeito, um dia; se metendo em
brigas bobas e se provocando à toa, mas nunca se atracando de verdade num
conflito. Ele era a única pessoa com quem Mykaela não se atracava, na
verdade. A intimidade fácil e as conversas simples que os dois tinham fazia
tudo melhorar no seu dia. Com ela, Eiko costumava rir, fazer piadas, baixar a
guarda, desabafar. Mas só isso não fora o bastante.
Mykaela não fora o bastante.
—Você está com uma cara de merda.
Dessa vez, que o abismo lhe queimasse, ela acabou se assustando com
a proximidade da voz grave de Hassam. Quando ele tinha surgido na tenda e
por que no inferno estava falando com ela?
—O que diabos... — ela começou, a face incrédula, se obrigando a
manter o tom e os punhos baixos, antes que enfiasse um soco no nariz do
bastardo. — Qual o seu problema?
—Ah, nenhum — ele deu de ombros, mantendo o volume de sussurro
conspiratório, como o dela. — Mas você está com uma cara de merda.
A Platina fechou a expressão, mesmo tendo que erguer os olhos mais
do que desejava para encará-lo, já que Hassam ainda era quase uma cabeça
inteira mais alto que ela.
—Agora está com uma cara homicida.
—Suas habilidades de percepção visual me impressionam.
—Ora, que gentileza sua notar esse fato — o sorriso sacana do lupino
a fez ter de tensionar os dedos outra vez para que a ideia do soco não voltasse
a lhe parecer tão tentadora.
Ele estava usando as mesmas calças escuras da outra vez, mas agora
uma camisa vermelha escura com mangas compridas lhe cobria o tronco, um
cinto de couro marcando a parte inferior da cintura e o abdômen definido. A
peça era tão reveladora quanto uma sem mangas seria, porque seus braços
sempre pareciam prestes a explodir a costura do tecido, cada músculo e curva
naqueles bíceps monstruosos se mostrando por baixo com um detalhismo
revelador. Hassam preenchia suas roupas muito bem, a guardiã tinha de
admitir, mesmo que a contragosto.
E ela não devia estar pensando em como o corpo dele era agradável
naquele momento.
Em momento nenhum, para ser mais exata.
—Ótimo, ótimo. Platina, Ametista, podem ajudar os outros a colocar
os tecidos na carroça, por favor? — Kiara dizia para os mercadores, e
Mykaela se obrigou a prestar atenção. Então a menina notou o brutamontes
ao seu lado e abriu um sorriso radiante. —Ah! Não tinha te visto, Hassam.
A expressão do lupino suavizou para se dirigir à caçula do alfa, e a
visão fez a testa de Mykaela se franzir. Ela sabia que Hassam era próximo de
Calan, o que provavelmente o tinha feito ficar próximo de Kiara, mas ainda
assim... Estranho. Ver as feições dele tão abertas, as cicatrizes pouco
acentuadas e os olhos livres de qualquer zombaria...
Estranho.
—É sempre um prazer revê-la, princesinha.
Kiara riu baixo, fazendo uma reverência educada com a cabeça.
—Guarde esse charme galante para alguém do seu tamanho —
retrucou ela, bem-humorada. — Agora me faça um favor e use esses troncos
que você chama de braços para ajudar a colocar os pacotes na carroça,
também.
—Sim, senhora.
A Platina, Hassam e Dane se dirigiram para fora, os três empilhando
montes de seda, cetim, algodão, tricoline, organza e lã dentro do espaço
quadriculado do veículo de tração. Os tecidos reluziam no sol de outono
passando por entre as copas das árvores, e mesmo com o toque Mykaela
soube que as tramas e fibras eram de boa qualidade. Pelo menos as bestas não
estavam lhes passando a perna.
—Então, vai contar por que estava com uma cara de merda antes? —
Hassam indagou, quando o Ametista se afastou para pegar o restante dos
carregamentos com os comerciantes.
—Se eu disser que foi porque você entrou no cômodo, vai me deixar
em paz?
O canto dos lábios dele se ergueu.
—Não vou, se considerarmos que deu pra notar que não me ouviu
entrando.
—Quase tão observador quanto é enxerido.
—Quase tão atraente quanto é mal-educada.
Mykaela piscou.
Uma, duas, três vezes.
Ele me chamou de mal-educada logo depois de dizer que sou
atraente?
O sorriso de Hassam dobrou de tamanho.
—Não tem uma resposta afiada na ponta da língua dessa vez, Platina?
— provocou. — Achei que demoraria mais do que isso para te deixar sem
palavras.
Isso a fez recuperar o controle sobre a própria consciência.
—Ah, eu sou a mal-educada? Não sou eu quem está invadindo o
espaço pessoal dos outros e lhes importunando com perguntas claramente
indesejadas.
—Ah, também não sou eu, se é a isso que se refere — ele replicou,
inalterado. — Não fui nada além de cortês com você. Me mantive a todo
tempo a pelo menos três passos de distância e não expressei nada além de
desejo por uma conversa amena. As iniciativas rudes vieram todas de você.
Ela repassou a breve e irritante conversa deles por inteiro na cabeça.
Bom, merda.
—Por que é que ainda está tentando conversar comigo, afinal de
contas? — ela jogou os braços para cima, sem querer admitir que tinha ficado
incomodada com o fato de não ter sido nada além de imbecil com ele.
Tudo bem que “você está com uma cara de merda” não era o tipo de
coisa a se dizer para alguém quando o objetivo era iniciar uma conversa
educada, mas ainda assim.
—Não sou superior ou digno o suficiente para te dirigir a palavra,
Platina?
Um arrepio incômodo correu pela pele dela com a súbita frieza na voz
de Hassam. Ele nem ao menos levantara o olhar, as mãos ocupadas com os
tecidos e as caixas na carroça.
—Eu nunca insinuei nada disso — a guardiã devolveu, num tom
ferido.
Seria melhor ter fingido que o comentário não lhe afetara, mas afetara
até demais. Ela não queria ter passado essa impressão... Não mais.
—Isso é só o que vem insinuando nos últimos dez meses — disse
Hassam, o tom leve de conversa desdenhosa sendo substituído por algo
amargo, gélido. — Você mal se dignou a olhar para qualquer um de nós
desde o início do tratado. Torce o lábio para qualquer tentativa de um dos
nossos de se aproximar de você. Até rosna para as crianças, porra.
Um dos homens que lhe atacara havia dito algo parecido.
Por que se acha tão melhor a ponto de torcer o nariz para qualquer
um de nós?
Ela cruzou os braços, na defensiva, ainda que a culpa tivesse
encontrado trajeto até seu peito. Era por isso que ele vinha tentando falar com
ela? Por que Mykaela estava agindo como uma vaca egoísta sem sentimentos
outra vez?
—Eu tento não ser rude, tudo bem? E não gosto de crianças. É melhor
que eu me mantenha afastada para não ofender ninguém.
—O fato de você se manter afastada já parece uma ofensa — os olhos
do lupino lhe queimavam. — Se sua personalidade fosse reservada ou tímida,
entenderíamos. Mas a verdade é que você só olha para nós como se não
fôssemos muito mais do que lama embaixo das suas botas.
As bochechas da guardiã esquentaram.
—É difícil me acostumar. Não foi o que eu quis...
—Todos tivemos quase um ano para nos acostumarmos, agora. Mas o
seu queixo continua tão empinado que deve te dar torcicolo.
Mykaela comprimiu os lábios, engolindo saliva com dificuldade.
Estava com vergonha, mas também estava com raiva. Seu primeiro
instinto fora xingá-lo. Dizer que não dava a mínima para nenhum deles, que a
opinião de nenhuma besta-fera lhe importava, que as palavras dele nem ao
menos permaneceriam na mente dela até o dia seguinte.
Mas Hassam pareceu ver tudo aquilo em seu rosto, porque latiu antes
mesmo dela formular um pensamento coerente:
—Se continuar esnobando nossa aliança e agindo dessa maneira, o
evento de alguns dias atrás não será o único nem o último — lembrou, se
referindo ao ataque risível dos lupinos bêbados. — Da próxima vez, você
pode não conseguir pegar aquela garrafa. Pode ser nocauteada ou ficar
atordoada o bastante para levar uma facada nas costas ou na jugular.
As palavras fizeram uma fúria ardente se espalhar em seu âmago.
—Isso foi uma ameaça? — rosnou Mykaela, baixo demais para que
alguém além dele ouvisse.
—Foi um aviso — corrigiu, voltando à pose tranquila de antes como
se não tivesse acabado de lhe dar um sermão detestável sobre boas maneiras.
— Um aviso amigo, por enquanto.
Você é um idiota se pensa que somos amigos, ela quis cuspir.
Não o fez, contudo.
Nova Mykaela, nova Mykaela, nova Mykaela.
Hassam estava certo, por mais que a constatação lhe parecesse aquela
tal facada na jugular. Ela vinha sendo fria e arrogante com o restante dos
lupinos. Passara metade da vida sendo fria e arrogante com uma parcela do
seu próprio povo, então Mykaela achou que sua nova versão ainda poderia
ser considerada um avanço, mas... Ele estava tentando ajudar. Estava lhe
avisando sobre como os lupinos se sentiam, como a recusa dela em interagir
com eles os deixava ressentidos e rancorosos. Era verdade que a Platina
odiava a ideia de ser obrigada a conviver com eles, mas não tinha mais
escolha.
Eles eram aliados, agora. Ela não queria estragar aquela chance para
sua alcateia, para as gerações futuras de ambas as matilhas. Não era uma vaca
egoísta sem sentimentos.
Não tanto assim, pelo menos.
—Tudo bem — ela murmurou, baixinho, com um suspiro resignado.
Então se obrigou a expulsar as palavras: — Você tem razão, minha atitude
foi... Desprezível. O que posso fazer para mudar isso?
Hassam parou, então franziu a testa para a sentença entredentes da
garota.
—Não foi um pedido de desculpas, mas já é um começo — ele
arqueou uma sobrancelha. — Em primeiro lugar, pare de me olhar com essa
expressão azeda em toda e cada vez que te dirijo a palavra. Em segundo,
chega de rosnar para as crianças. Terceiro, comece a lutar nos dias de ringue.
Ela quase roncou uma risada cética.
—Está brincando, certo? — exigiu, só para ter certeza. — Não sou a
pessoa mais indicada a ter autorização para usar armas pertos dos seus...
Comparsas. Mesmo meus punhos deveriam ser restringidos.
Quando a adrenalina corria pelo seu sangue e tudo que havia em sua
mente era o instinto clamando por violência, Mykaela não sabia se
conseguiria se refrear numa luta com uma das bestas. Ela avançaria para
machucar, para mutilar, para matar, não para entreter uma plateia de maneira
esportiva.
—Pelo menos você tem consciência desse fato — grunhiu o lupino.
— Você não vai espancar todos os meus homens até a inconsciência. Vai
marcar embates comigo, com Tenna, ou com qualquer um dos seus que
aguente seus golpes. Comece por cima, nem que seja para tirar o nariz da
testa. Pelo menos veremos que está tentando.
Ela revirou os olhos, sopesando os prós e contras daquela sugestão
péssima.
A Platina não queria que a vissem na arena e voltassem a tratá-la
como uma cadela louca, quando percebessem que era muito violenta, muito
descontrolada, quando percebessem que ela gostava das brigas e da sensação
de carne afundando sobre seus punhos e pés. Não queria ser taxada sob
aquele rótulo de novo, e muito menos queria piorar a opinião que os lupinos
tinham dela caso exagerasse nas lutas.
E, principalmente, não queria que seu próprio povo a rejeitasse outra
vez, que a olhasse com decepção e asco se Mykaela arruinasse o tratado entre
as duas alcateias.
Hassam, como das outras vezes, pareceu ler seu rosto como um livro,
ver o receio e a insegurança em cada linha de expressão.
—Olhe pelo lado bom, Platina — ele abriu os braços ostensivamente,
o sorriso sacana fazendo aquela vontade de socá-lo aflorar na guardiã outra
vez. — Pelo menos vai poder tentar me atacar como sei que vem querendo
fazer o dia todo, e não ser responsabilizada por isso.
Ela ergueu uma sobrancelha, mais interessada do que deveria estar
naquela proposta.
Ah, seria ótimo tirar aquele semblante convencido da cara dele com
seus punhos, ou pés, ou com uma lâmina ou um porrete. Seria bem
satisfatório mesmo.
Mas...
—Você consegue — ele adicionou, num timbre sério. — Estou vendo
que se esforçou para admitir seu equívoco, hoje, que não deixaria seu bando
ser prejudicado pelas suas atitudes. Sei que consegue. Pense nisso como um
teste bônus... Para controlar seu temperamento.
Mykaela bufou.
—Boa sorte com isso — disse, seca. — Meu próprio alfa vem
tentando domar meu temperamento há anos e tudo que conseguiu foi um belo
monte de nada. Nem ele gostava de me aturar.
E isso fazia uma parte ácida e lamentável dela se encolher.
—Não estou te pedindo para domar coisa alguma. Estou falando para
se libertar — rebateu Hassam. — Se libertar com quem aguenta, com quem é
capaz de devolver essa sua raiva destrutiva.
Cruzando os braços, a garota ergueu o queixo e estreitou os olhos,
instigada.
—E quem será esse infeliz? Você?
Outro sorriso sacana, e Mykaela rosnou.
O gesto só o fez rir.
—Acho que terá de descobrir isso por si mesma.

O desgraçado aguentava.
Mykaela estaria mentindo se dissesse o contrário.
Quando a Platina aparecera para o dia de ringue naquela manhã
trajando seus couros e toda a arena se assentara numa quietude sobrenatural,
Hassam tinha sido o primeiro a pular as grades e aceitar seu desafio
silencioso. Vestindo proteção nos ombros massivos e placas de couro nos
pulsos, ele parecia inquietantemente relaxado com a apreensão nervosa dela.
A guardiã podia sentir cada mira na multidão estancada em si,
naquele momento.
Ela não era uma cadela louca e esnobe. Podia mostrar que sim, nem
que precisasse deixar Hassam vencê-la para isso.
—Espada? Adaga? Machado? Lança? — indagou ele, os braços
enormes cruzados enquanto analisava sua pose tensa.
—Nada — respondeu ela, e o canto dos lábios dele se ergueu.
—Nada, então.
E tirou as ombreiras, seguidas então pelas placas de couro, jogando as
peças de lado no canto da arena.
A alfinetada saiu sem querer:
—Talvez devesse ter mantido essas coisas.
—Pode mostrar a que veio ou pode continuar com essas ameaças
vazias, Platina. Tenho a manhã toda.
Risadas baixas e assobios esparsos soaram pelo público amontoado
em volta do ringue. Algo faiscou com a provocação no interior da garota, e a
sensação não era de todo ruim. Era motivação, e era deliciosamente focada.
Seu corpo estava retesado com a antecipação, os músculos esquentando com
a vontade de entrar em movimento. Sua visão se afiou em algo cuidadoso,
nítido, praticamente extracorpóreo.
Ela queria tanto aquilo que chegava a trincar seus dentes. A frustração
e o estresse vinham lhe cobrando tanta tensão e pouco alívio que nem as
noites nas quais se sentia disposta a escorregar a mão entre as pernas
ofereciam algum consolo. Mykaela precisava distribuir alguns hematomas,
levar algumas pancadas, rolar na terra entre socos até sentir algum músculo
saindo do lugar.
Hassam ofereceu mais do que esperava a princípio, sendo honesta.
Ela começara experimentando a defesa dele, atenta à velocidade com
que respondia aos seus golpes, consciente de como ele movia os pés para
bloqueá-la, atacá-la, desviar dela. Notando como ele conseguia manter o
controle sobre sua respiração, sobre sua força, sobre seu peso. Uma ínfima
parte de Mykaela esperara que sua fraqueza residisse ali — no fato de que
Hassam era enorme, pesado e obviamente mais lento que ela.
Ele podia ser todas essas coisas, mas não era nada estúpido ou
inexperiente, e ela sabia que o lupino não a deixaria se aproveitar desse fato,
desde que vinha estudando suas táticas no ringue depois de todas aquelas
manhãs assistindo as lutas. Fora uma vantagem, contudo: ela conhecia
bastante da técnica dele, e Hassam estava apenas começando a analisar a sua.
Mesmo que houvessem se enfrentado antes, nas noites prévias ao
tratado em que a lua de Diana ascendia, não podia ser comparável àquilo.
Enfrentar um inimigo sedento por sangue na forma animal enquanto lutava
pela própria vida era inteiramente diferente.
Então Mykaela conseguiu acertar o primeiro golpe, uma pancada
lateral na panturrilha que o fez grunhir e fintar para longe dela com uma
careta. Pelo menos não tinha exagerado na força — tinha se certificado de
não quebrar o tornozelo dele, na verdade.
Alguns licantropos comemoraram de forma sutil, e ela ouviu a voz de
Feuer gritar:
—Acabe com ele, Skies!
Três ou quatro lupinos vaiaram em resposta, mas isso só fez a capitã
da guarda dar risada.
Eles coreografaram uma valsa naquele ritmo de investidas e recuos,
de golpes e bloqueios por quase três minutos. Hassam era bom, e seus
reflexos eram afiados o bastante para prever cada avanço dela e impedi-lo
com um giro de antebraço ou flexionar de ombro. Mykaela achou que estava
indo bem, porque a multidão parecia cada vez mais animada com o rumo da
luta.
Seu oponente não, entretanto.
—Que merda você está fazendo?! — ele sibilou, baixo demais para
que qualquer um além dela escutasse, antes de desviar de um chute que teria
acertado suas costelas.
—O que foi? — arfou a Platina, escapando de um agarre frontal.
—Você está se contendo, porra.
Ela estava. É claro que estava, viera para esse conflito se obrigando a
fazer isso. Mas aquele ritmo estava bom para a garota; para quem não tinha
um bom arranca-rabo há meses — nem com Feuer —, aquele combate
programado era a droga do paraíso. Seu coração estava acelerado, seus
músculos latejavam com a força imposta em toda ação e cada mísero erro
poderia significar uma derrota vergonhosa, mas Mykaela finalmente estava se
sentindo viva, se sentindo bem.
Hassam não estava, porém, porque a cara de homicida agora contorcia
o rosto dele.
—Você é muito melhor que isso, Skies — rosnou. — Pare de sacudir
os punhos como uma menininha e me soque como a porcaria de uma mulher.
Ela franzia a testa ao ofegar e tirar alguns fios de cabelo da testa
suada.
—Não, isso é um combate esportivo — retrucou, confusa. — Você
mesmo disse que...
—Eu disse para se libertar. Disse que aguentava. Não falei para você
reprimir seus golpes nem ser condescendente comigo.
Era indignação endurecendo o semblante do lupino. Raiva e uma
revolta silenciosa, também. Ele pensava que ela estava se contendo porque
não achava que Hassam conseguia enfrentá-la, como se tivesse pena dele.
Merda.
—Não é isso — chiou, se abaixando segundos antes que ele enfiasse o
cotovelo em sua boca. — Não é nada disso, Imanur.
—Então mostre, caralho! — ele rugiu.
Mykaela perdeu a sustentação de um dos pés. Sua postura oscilou e
ela soube que Hassam não hesitaria. Teria se sentido ofendida se ele
hesitasse, assim como ele se ofendera segundos antes.
O lupino não a decepcionou.
Sua defesa foi lenta demais e o punho fechado dele atingiu sua
mandíbula em cheio, fazendo o rosto da Platina girar noventa graus para a
esquerda. A visão dela piscou com um borrão negro graças à dor lancinante
na bochecha e na droga do seu crânio, e por um triz seus pés quase não
aguentaram o próprio peso. Tropeçando para longe de Hassam antes que ele
pudesse atingi-la naquele estado e recuperando o controle sobre os próprios
movimentos, Mykaela arreganhou os lábios e rosnou de forma animalesca ao
firmar os pés e cuspir sangue no chão.
Se ela tivesse perdido um dente por causa daquele filho de uma puta...
—Aí está você — Hassam sorriu, maldoso, inclinando a cabeça e
acenando convidativamente. — Estava me perguntando quando sairia para
brincar de verdade.
A Platina avançou.
Prevendo que ele bloquearia seu primeiro soco, seu outro braço se
lançou na direção do esterno exposto do lupino e serviu de distração o
suficiente; ocupado com seu ataque superior, a perna de Mykaela o fez perder
o equilíbrio ao enfiar o calcanhar atrás do dele e puxar com força. Ela ainda
enfiou o punho em sua barriga enquanto ele caía. Vaska tinha lhe ensinado
esse golpe ao aplicá-lo nela anos antes e, pela gargalhada eufórica da Ônix
vinda da plateia acima do urro animado da multidão, Feuer se lembrava
muito bem do ocorrido.
Hassam rolou de costas na terra depois de cair, antes que ela pudesse
finalizar a investida e apagá-lo, e Mykaela pulou para fora do alcance das
pernas dele quando uma rasteira quase lhe derrubou. Ele se levantou num
salto, o sorriso selvagem esticando as cicatrizes e fazendo seus olhos
castanhos faiscarem, e a garota tomou o gesto como razão para mirar outro
soco na direção dele.
Seus movimentos se tornaram mais impiedosos, mais frenéticos, e ela
conseguiu acertar um pisão no peito do pé, uma cotovelada na lombar e dois
socos antes de levar o primeiro chute dele. A dor a recompensou por todos os
seus golpes de uma vez, no entanto — podia ser sobrenaturalmente mais
forte, mas ele ainda era um lupino com dez centímetros e sessenta quilos a
mais do que ela. O golpe pesou como uma marreta em seu abdômen, e
Mykaela foi atirada a três metros de distância, arquejando em busca de ar
depois do impacto dolorido.
Talvez ela tivesse quebrado uma costela — mas pelo menos Hassam
também tinha quebrado um dedo.
Se erguendo com um rosnado colérico, a guardiã se jogou com tudo
contra o corpo dele e a força do impulso arremessou os dois no chão,
Mykaela montando em cima do lupino e acertando só um mísero soco
naquele sorrisinho prepotente antes de ser lançada na terra e imobilizada sob
o peso esmagador daquele brutamontes.
Seu joelho voou para esmagar o meio das pernas do lupino, mas
Hassam se moveu no último segundo e a pancada atingiu sua coxa interna.
Ainda arrancou um gemido sufocado dele, e a guardiã se sentiu
vingada.
O cotovelo de Mykaela atingiu a traqueia do bastardo e o pouco de
fôlego que ele tinha foi bloqueado e arrancado. Ele se apoiou nos joelhos,
furioso, agarrou seu braço e girou para trás, colocando-a de bruços na terra e
quase ameaçando deslocar seu ombro. O peito arfante de Hassam pressionou
suas costas e seu braço preso quando ele se inclinou para rosnar em seu
ouvido:
—Acho que gosto mais de você assim.
—Filho da...!
Ela lançou o pé para trás e atingiu a coxa dele com um baque
satisfatório, forte o bastante para fazer Hassam perder o agarre em seu pulso.
Mykaela girou então, livre, e usou o próprio peso para jogá-lo para trás com
um rugido selvagem. A coisa toda tinha ido de luta contida entre guerreiros
experientes para algo mais parecido com uma rusga exaltada de taverna, mas
não que a Platina se importasse. Ele agarrou seus braços antes que ela
pudesse esmagar a maldita daquela garganta entre os dedos em garra e...
—Tempo! — gritou alguém da plateia. — Tempo!
—Tempo o caralho! — Mykaela vociferou, se contorcendo no aperto
dele e praticamente rebolando em seu colo, mas àquele ponto teria feito de
tudo para livrar os braços e arrancar um globo ocular fora.
Hassam apertou seus braços até ela sentir que vergões se formariam
em sua pele, mais tarde — o lupino também parecia ver que soltá-la naquele
momento poderia fazê-lo terminar cego de um olho.
Mãos agarraram Mykaela por trás, pela cintura, pelos ombros.
—Larguem!
—Mykaela, o tempo máximo de luta são quinze minutos! — alguém
berrou para ela.
A garota arremessou o punho contra o Jade antes de ser contida outra
vez.
—Não terminei com esse filho da puta! — ela urrou, lutando como
um animal descontrolado nos braços de uma figura feminina que cheirava a
Feuer. — Não terminei!
Hassam gargalhava alto, sem fôlego, ainda caído no chão, o nariz
sangrando e um enorme arroxeado se formando na maçã do rosto direita. A
Platina não devia estar muito melhor, mas seu orgulho com certeza terminara
mais ferido do que o resto.
Quinze minutos inteiros... E ela não conseguira nocauteá-lo. Tiveram
de interromper o embate porque o maldito do tempo tinha acabado, não
porque ela acabara com a raça dele.
O lupino sorriu para a figura alucinada dela com toda a presunção do
mundo.
—Quem sabe mais sorte na próxima. Se é que vai se dignar a parar
com a merda de ficar refreando os golpes.
Ela gritou de ódio, arranhando os braços da Ônix para tentar alcançá-
lo. Uma parte do seu cabelo tinha se soltado da trança, e ela provavelmente se
parecia com uma maluca. Não dava a mínima; continuaria parecendo uma
maluca e vendo vermelho até fazer Imanur engolir cada um daqueles dentes
depois de socá-los todos garganta abaixo...
—Hassam — a voz parecia a de Safira, então, repreensiva e
levemente consternada. — Acredite, você não quer que a deixemos arrancar
sua parte preferida a dentadas.
O lupino só riu mais alto, fungando e se levantando com um bocado
de dificuldade.
—Deixe que ela tente — a provocação implícita na voz dele a fez
recomeçar a rosnar. — Veremos até onde ela aguenta engolir.
Feuer soltou um ruído engasgado atrás dela, e Mykaela quase avançou
nele outra vez com a distração momentânea da capitã da guarda.
—Deixe minha boca fora da merda da sua mente suja, Imanur — ela
ameaçou.
—Só se prometer não tentar me deixar duro enquanto tenta me matar
ao mesmo tempo.
Safira cobriu o sorriso com as mãos e os olhos da Platina se
arregalaram por um instante, com o choque, com o embaraço, com o horror.
Ela tinha se esfregado nele, não tinha? Deusa e todas as malditas estrelas, que
merda. Que merda imunda e infindável.
Mykaela latiu antes que começasse a corar e desse mais motivos para
Hassam zombar dela:
—Se acha que aquilo era eu tentando te deixar duro, Imanur, então eu
sinto pena do seu repertório sexual.
Deleite e desafio faiscaram nos olhos dele.
—Se você se contém na cama como se contém no ringue, então acho
que posso dizer o mesmo.
—Tuuuudo bem — fez Vaska, tentando a todo custo não rir como
Mykaela estava vendo que ela queria fazer. — Eu realmente não previ a
direção que essa conversa tomou, mas acho que já chega.
Farah, a Diamante, estava com a cara vermelha feito um tomate, e a
Granada, prima de Feuer, também parecia estar dando tudo de si para não
irromper em gargalhadas.
De repente, preenchida pelo pavor, Mykaela se deu conta de que
ainda estava sendo segurada. Que estava sendo contida como uma besta
raivosa, que certamente se parecia com uma. Exatamente como todas as
outras vezes em que perdera o controle e atacara alguém, que desapontara
tudo e todos com seu temperamento desprezível.
A vontade de xingar Hassam e nunca mais olhar na cara do filho da
puta por causa daquela ideia ridícula veio à tona como uma enxurrada, e suas
íris se cravaram na expressão do lupino com o mais puro ódio.
Mas a expressão dele, por sua vez, despretensiosamente dizia olhe ao
seu redor.
Ela o fez, desorientada.
E viu que os guardiões ao seu redor estavam sorrindo, nada surpresos
ou irritados com ela, que a multidão ao redor da arena ainda vibrava, que o
estresse pulsando em sua cabeça junto com seus músculos tensos agora não
passavam de um cansaço aliviado. A diferença vital daquela vez, pelo visto,
fora o fato dela ter lutado num ambiente feito para isso; ninguém a estava
julgando por ter perdido as estribeiras.
Mykaela relaxou o corpo e Feuer a libertou com um aceno, sorrindo
marota.
—Nada mal, Skies. Mais alguns minutos e você poderia tê-lo apagado
— a Ônix cruzou os braços. — Ou arrancado as roupas do infeliz, o que
viesse primeiro.
A Platina enfiou um soco no ombro da capitã da guarda, e a risada do
grupo de guardiões ao redor delas, aquele clima leve de camaradagem, a fez
se sentir incluída, vista, acolhida.
Pela primeira vez em anos.
Ela lançou uma expressão atravessada de soslaio a Hassam.
Ele apenas piscou um olho de volta.

—Tudo bem, estou começando a achar que você está me seguindo,


Skies.
Ele já tinha parado de chamá-la de Platina, o que Mykaela,
estranhamente, parecia apreciar de forma discreta.
O que ela não apreciava, no entanto, era o fato daquele infeliz estar
em todo maldito lugar.
Era verdade que se viam com bastante frequência, mas a culpa podia
ser contabilizada em favor dos dias de ringue. Hassam era seu oponente na
maioria das vezes, mas Vaska, Tenna, Meistens e alguns outros guardiões
também já haviam provado o gosto dos nós dos seus dedos. A guardiã
preferia as rusgas com Imanur, no entanto; uma parte sua reconhecia o lado
selvagem e incontrolável nele como reflexo do seu próprio, quando estavam
na arena. As provocações mútuas não tinham cessado, mas isso não
significava que haviam se tornado menos irritantes.
Ela cruzou os braços e bufou com o máximo de cinismo que
conseguiu, batucando a ponta do pé no solo da floresta de forma descrente.
—Por acaso você realmente acha que eu faço tão pouco com o meu
tempo?
O lupino deu de ombros.
—A Tundrav cobre a maldita da província inteira. Como é que você,
de todas as pessoas, conseguiu me achar, entre todos os lugares?
—Talvez você estivesse me seguindo, seu bruto convencido.
—Bem que você gostaria.
—Eu, pelo menos, tenho a desculpa de ter vindo visitar um lugar
pessoal, como faço toda semana — a garganta dela se fechou por um instante,
mas Mykaela obrigou sua face a permanecer neutra. — Qual a sua desculpa?
Ele estava prestes a responder algo engraçadinho, mas então ali estava
— o modo como o desgraçado notava algo em seu rosto mesmo quando a
garota sabia que não estava mostrando nada. Como ele fazia aquilo, inferno?
—...Lugar pessoal, é?
Novamente, ela agiu como se não significasse nada.
—O túmulo do meu irmão.
Por mais que significasse tudo.
Aquela palavra ainda esfaqueava suas entranhas toda vez.
Túmulo.
Túmulo, túmulo, túmulo.
Onde ela o enterrara, onde passara horas cavando e chorando sozinha,
nada além do silêncio da floresta como companhia. Ninguém lhe dissera um
sinto muito ou ao menos lhe consolara depois; seu irmão não merecera
condolências. Ninguém sofrera pela morte dele além dela.
Nem ao menos o tinham limpado antes de entregarem o corpo a
Mykaela. Ele ainda estava ensanguentado, os olhos vítreos, a algema de
metal rodeando o pescoço, os sulcos das garras do lobo que o matara visíveis
acima do seu peito. A Platina não quisera saber quem fora — tinha um
palpite, mas não tinha a mínima vontade de confirmar. Em sua mente, seu
irmão tinha morrido assassinado pelos próprios atos.
Era mais fácil do que pensar que alguém com quem ela convivia
atualmente sem problema algum havia tirado a vida de Eiko.
Eu aguento.
Ele não aguentou, mas eu aguento.
Ela esperou que a face de Hassam se contorcesse. Que seu lábio se
contraísse. Que ele ficasse desconfortável e dissesse algo como “ah, sim, o
traidor”.
Muitas pessoas tinham dito isso a ela nos últimos meses. Dado uma
olhada na sua figura, se retraído e dito “ah, é você”, quando na verdade
queriam dizer “ah, é a irmã do traidor”.
Sua vida, seus méritos, sua posição, tudo resumido a um mero título
depreciativo.
Irmã do traidor.
Hassam, no entanto, apenas inclinou a cabeça e perguntou, com
cautela:
—Posso ver?
A guardiã se retesou. Mas, antes de dizer “não é da porra da sua
conta”, ela mordeu a língua e indagou:
—Por quê?
Ele deu de ombros.
—Não precisa mostrar, se não quiser — enfiou as mãos nos bolsos da
calça esgarçada, a perfeita imagem do descaso. — A escolha é sua.
Minha. Minha escolha.
Ela soltou uma respiração rasa, vacilante. Nunca tinha ido até lá com
ninguém, ou contado a uma mera alma sobre a localização. Tinha medo de
que profanassem o túmulo, que vandalizassem o local para manchar a
memória dele, e a memória de Eiko na verdade já estava mais do que
manchada o suficiente.
Mas Hassam não se parecia com esse tipo de pessoa. É claro, ele era
sacana e irritante, mas não era mau. Mykaela passara tanto tempo vendo
lupinos como bestas que nunca exatamente parara para pensar nos seus lados
humanos — os lados que eles passavam a maior parte da vida utilizando, os
lados que eram mais presentes e enraizados em suas personalidades.
Um suspiro trêmulo deixou seus lábios e a Platina se virou sem dizer
uma palavra sequer. Seus pés a levaram de volta pelo caminho que tinha
memorizado como a palma da mão, as passadas pesadas de Hassam lhe
seguindo de perto, e logo eles chegaram a uma elevação suave perto de um
riacho afluente. Grande parte da grama ainda estava verde, mas uma área
estava coberta por folhas alaranjadas, vermelhas, marrons e amarelas. O sol
penetrava de modo suave por entre os galhos das árvores mais altas e fazia a
tarde se pintar das mesmas cores à medida que o dia esmaecia.
Não havia nada sobre o espaço onde ela o enterrara além de um monte
de pedras. Mykaela não sabia plantar nem entalhar nada, então aquilo fora o
máximo de homenagem que conseguira.
—É pacífico.
A voz dele a fez pular no lugar.
Hassam estava com os olhos na paisagem, a pose relaxada enquanto
observava o entorno. Um bolo de algodão parecia estar se formando na
garganta de Mykaela. Ela realmente não sabia por que o trouxera ali, mas
tinha a impressão de que devia ter alguma coisa a ver com a falta de
julgamentos na expressão dele.
—Eu gosto. E ninguém vem tão longe — ela murmurou, abraçando o
próprio corpo, então o observou de soslaio. — Normalmente.
O lupino bufou, depois se calou por minutos inteiros.
Mykaela não gostava do que sua cabeça fazia, naquele lugar. Ela dava
voltas e mais voltas até revirar cada grama do seu passado e reviver cada
momento em que falhara com o irmão, e a fazia se sentir a pior pessoa no
mundo. Ela tentava fingir que conversava com ele em sua mente, mas tudo
que escutava em resposta eram suas últimas palavras, a angústia contorcendo
o rosto do gêmeo naqueles últimos momentos.
Eu estava tentando fazer o melhor para nós. Para você.
Você sabe disso, Myka, você me conhece. Eu nunca a machucaria de
propósito.
Eu teria conseguido esse lugar todo para nós, para você.
Nós seríamos felizes...
A Platina tentava então se lembrar da repulsa furiosa que sentira
segundos antes daqueles mesmos momentos, quando ela precisara tirar Eiko
de cima de Safira porque ele estava se forçando contra a Lunar. Porque
estava esmagando o corpo da Diana com o seu porque sabia que a
desarmaria, que a deixaria em pânico por causa do seu trauma. Mykaela
pensara poder tê-lo nocauteado, naquela hora. Ela poderia ter sido aquela
sendo forçada, sendo oprimida por outro macho sem escrúpulos, e Eiko nem
ao menos se importava. Que ele fizesse aquele tipo de coisa com outra fêmea
sem nem ao menos piscar...
Aquele momento travara uma chave nela.
O irmão que ela conhecia e amava já tinha morrido há tempos, e
passara da hora dela aceitar esse fato.
Talvez ele tivesse morrido com a mãe, o pai, com a tia. Talvez muito
antes.
Mas isso não mudava o fato de que Mykaela achara que seria o
bastante para ajudá-lo, que os dois conseguiriam juntos.
Não fora. Não conseguiram.
Você sabe disso, Myka, você me conhece. Eu nunca a machucaria de
propósito.
—Eu tinha uma irmã adotiva — Hassam confessou de repente, o rosto
nublado de emoção, e a guardiã obrigou suas memórias excruciantes a
recuarem. — Brewyl.
A testa dela se franziu, mas tudo que fez foi esperar.
Mais alguns minutos até que ele continuasse — até que conseguisse
continuar:
—Ela foi abandonada na floresta quando criança, e minha família a
acolheu e criou. Ela se tornou uma de nós quando atingiu a maturidade... Mas
foi morta na emboscada licantropa que terminou com nosso grupo
massacrado, me colocou em fuga e capturou Calan.
Mykaela não participara daquela emboscada, ainda estava presa na
época.
E entretanto, por um mísero e surpreendente instante, ficou contente
por esse fato.
Aquele era, em suma, a razão de ela não querer saber a respeito da
identidade do assassino ou assassina de Eiko; a garota simplesmente não
conseguiria olhar nos olhos do licantropo e não ver o cadáver gelado do
gêmeo em seus braços.
—Ela era corajosa e esperta e cheia de vida — continuou o lupino, a
voz cheia de uma dor e ressentimento que Mykaela conhecia bem. — Eu sei
o que vi no seu rosto, naquele dia.
As sobrancelhas da Platina se uniram.
—Que dia?
—O dia da cara de merda — ele abriu um sorriso que era tudo, menos
zombeteiro. Havia melancolia ali, mas também força. — Toda vez que vejo a
princesinha interagindo com o irmão mais velho... O líder de vocês. Quando
vejo irmãos ou mesmo parentes próximos convivendo daquela maneira
íntima e afetuosamente casual... Lembro que nunca verei o sorriso de Brewyl
outra vez. Que nunca poderei provocá-la sobre algo bobo e desnecessário.
Que nunca presenciarei seu rosto criando rugas, e que nunca poderei dizer
todas as coisas que não disse a ela. Essa constatação dói tanto que, às vezes,
preciso passar bons minutos me lembrando de como se respira.
Eu sei, Mykaela quis murmurar, os olhos ardendo, o rosto virado para
longe dele.
Eu sei, eu sei, eu sei.
—Eu não consegui protegê-la — as sílabas oscilaram naquela voz
grave, porém ainda dolorosamente baixa.
—Pelo menos você tentou — a garota respirou. — No final... No
final, meu irmão e eu terminamos lutando um com o outro. Eu praticamente
ajudei a matá-lo.
Túmulo, túmulo, túmulo.
Você sabe disso, Myka, você me conhece. Eu nunca a machucaria de
propósito.
—Eu lembro do seu irmão naqueles últimos dias, ajudei a capturá-lo
— contestou o homem. — Sinto muito, mas não havia nenhuma sanidade
restante nele. Você não teve escolha.
—Eu tive. Tive uma escolha todos os dias — e ainda doía, doía tanto.
Mas pelo menos ela estava falando a respeito. Era a primeira vez que falava
sobre ele em quase um ano. — Podia ter olhado melhor para ele, pedido
ajuda, feito outra coisa a respeito além de foder minha própria vida e achar
que ele se sentiria obrigado a aceitar meu martírio.
Achar que ele se sacrificaria por ela como Mykaela tinha se
sacrificado por ele.
A garota conteve as lágrimas com dificuldade. Estava dando vazão à
angústia, mas não chegara ao ponto de se deixar chorar na frente de um quase
desconhecido... Só que pelo menos o quase desconhecido entendia seu
sofrimento, sua perda.
—Nem sei se meu irmão me amava de verdade — confessou, num
fiapo de voz, aquele que era um dos seus maiores medos. — Ele começou a
mentir com tanta desenvoltura que eu nem conseguia mais dizer o que era
manipulação e o que não era.
Hassam armou uma careta.
—Ele parecia te amar, se é que te consola. Tinha um jeito estranho de
demonstrar, mas... Ele sempre mencionava você. Dizia que, se te
encontrássemos, não podíamos levantar um dedo contra você, ou todo o
acordo estaria acabado.
A Platina apertou os braços ao redor de si mesma com mais força.
—Howl também foi criado por um pai de merda. Kiara tinha uma mãe
que só parecia se importar com sua aparência, pelo menos até seus últimos
dois dias de vida. Mesmo assim, ambos conseguiram achar forças um no
outro... A parte boa deles sobreviveu — seus lábios se comprimiram
involuntariamente. — Às vezes acho que se eu tivesse sido mais
compreensiva... Menos rude ou agressiva, eu poderia tê-lo ajudado ma...
Ele mal a deixou terminar, tom de Hassam saindo cortante, quase
raivoso:
—Você não era a redenção dele, Mykaela. Seu irmão não era sua
responsabilidade moral ou emocional. Ele era um adulto consciente das
próprias decisões que sofreu as consequências por elas — repreendeu, os
olhos ardendo com indignação. — Não se culpe nem por um instante, nem se
martirize por achar que seus esforços não foram o suficiente. Eu entendo que
o ame, entendo que tenha tentado ajudá-lo. Eu teria feito o mesmo, no seu
lugar. Mas agora isso é passado. Não há como mudar o que ele foi, o que ele
escolheu ser.
Era a primeira vez que Hassam lhe chamava pelo nome.
E por que, em nome da deusa, ela ficava notando essas pequenas
banalidades?
—O passado dele afeta cada parte de quem eu sou e serei, Imanur —
rebateu ao sacudir a cabeça, amarga. — Afinal, aqui estou eu, a cadela louca
e preconceituosa, a irmã cabeça-quente do traidor que só arranja problemas e
cujo nariz ainda está pregado na própria testa.
Ele limpou a garganta com um ruído baixo, desconfortável.
Porra.
Ela não queria ter dito aquilo, não como uma acusação cheia de
rancor. Não queria afastar a única pessoa disposta a ouvir suas merdas e tratá-
la como uma igual, recentemente.
—Sabe, rótulos às vezes são inevitáveis — Hassam articulou, os
braços cruzados e a sobrancelha arqueada. — Meus preferidos são
“brutamontes selvagem”, “gigante desmiolado” e... Como foi que me chamou
mais cedo? Bruto convencido?
As bochechas dela queimaram.
—Desculpe — Mykaela se forçou a expelir, com uma careta
desgostosa. — Não foi o que eu quis dizer. Acho que... Acho que só tenho
medo de que as pessoas estejam certas, me rotulando com essas designações.
É verdade que sou uma vadia agressiva durante a maior parte do tempo. Sua
alcateia pode comprovar, e nem você pode contestar isso.
Silêncio.
Uma parte tola dela esperava que ele a consolasse. Não que mentisse
para ela, mas que lhe dissesse que estava tudo bem admitir aquelas coisas,
porque a garota estava tentando mudar. Durante toda a tarde Hassam vinha
lhe contando verdades duras sobre ela mesma e sobre si próprio, verdades
que a Platina não sabia que precisava tão desesperadamente ouvir.
Mas agora... Agora os argumentos dele pareciam ter acabado.
Quando Mykaela estava prestes a tentar conter o desapontamento na
própria voz e murmurar uma despedida, ele grunhiu:
—Você não é a única com problemas para se adaptar à aliança, sabia?
— admitiu Hassam, com feições amargas. — Eu tive... Tive dezessete
chances de matar aquele guardião, nos últimos dez meses... O Rubi. Contei
todas elas porque sei que ele foi o desgraçado responsável por tirar Brewyl de
mim.
Mykaela prendeu a respiração.
Peter.
Peter San-Shankar, que era um macho perfeitamente honrável, até
simpático. O responsável por causar tanta agonia no rosto de Hassam.
—Mas então eu via o filho da puta interagindo com a irmã... A única
que lhe restou — um fôlego raso deixou os lábios do homem. — E eu sabia
que não queria causar essa dor a ela, não de novo, não a mais ninguém. Não
seria justo com ele, não seria justo com meu bando ou com minha líder, que
lutou tanto para recuperar a confiança da filha, para nos trazer paz.
Zaltana e Rayhana San-Shankar costumavam ser as novas gêmeas na
guarda, irmãs de Peter, a Lápis-Lazúli... E a Obsidiana. Mas esta última havia
morrido no massacre que antecedera o tratado. O Rubi já sabia exatamente
como era experimentar a dor que ele havia acarretado ao lupino à frente dela.
Hassam se continha por motivos similares aos seus: como ser tão egoísta ao
sanar as próprias vontades e condenar dezenas de outras?
Essa é a diferença, sussurrou uma voz tímida e suave em sua mente.
Essa é a diferença entre você e seu irmão.
—E eu tenho certeza de que não é fácil para você... Mas também não
está sendo fácil para nenhum de nós. Todos temos partes detestáveis dentro
de nós mesmos... O que importa é como decidimos agir em relação a elas —
Hassam girou a mira para encará-la, os olhos intensos cintilando com algo
que fez Mykaela querer engolir em seco. — Sei que olha para nós e vê
inimigos, mas...
—Não mais — ela interrompeu, quis deixar claro, ao pigarrear. —
Não todos, quero dizer.
Era verdade. Ainda eram bestas, a maioria ainda se tornariam
monstros quando a lua cheia surgisse, contudo... Contudo estava começando
a ver que não exatamente. Não todos. Os lupinos tinham cometido tantas
atrocidades em nome da própria alcateia quanto os licantropos. A Platina não
podia julgá-los por isso.
Não mais do que eles podiam julgá-la.
A expressão dele suavizou de leve com seu comentário.
—Pequenos passos, Skies. Pequenos passos.
Mykaela conteve a frustração por ele ter voltado a chamá-la pelo
sobrenome, mas revirou os olhos, o canto dos lábios tremendo.
—Pelo menos saí do lugar, certo?
Hassam bufou, voltando o para foco seu rosto e abrindo um sorriso de
desdém.
—Mais alguns meses e você terá andado um metro inteiro.
Ela não sabia quem tinha se movido primeiro, mas agora eles
basicamente estavam frente a frente, dentes expostos e olhares travados um
no outro.
—Você é um tremendo pé no saco, sabia?
—Então parece que temos algo em comum além do temperamento.
Mykaela rosnou baixo em provocação, as presas reluzindo a
centímetros de distância da garganta dele. Uma parte sua odiava o quanto ele
era mais alto, mas isso não significava que Hassam normalmente conseguia
olhá-la de modo superior. Não, a Platina sempre deixava claro que o fato dele
ser enorme não a afetava em nada — mesmo que o tornasse um pouquinho
atraente, a contragosto —, porque ele ainda não conseguiria enfrentá-la como
humano, como ela provara no ringue naquele dia.
Fizera questão disso, de que quase nenhum macho fosse capaz de
derrotá-la em combate corpo-a-corpo. O fato de Howl, às vezes, ter a
habilidade para fazê-lo, fora um dos motivos para deixá-la apreensiva com o
casamento. O alfa poderia usar força bruta e dominância para subjugá-la, e
Mykaela nunca se sujeitaria àquilo como a mãe fizera.
Mas Hassam não era um macho cruel. Ele era apenas um lupino
estranhamente empático e irritantemente enxerido.
Um humano teimoso que ela só suportava porque... Porque...
Porque ele estava olhando diretamente para seus lábios arreganhados
com algo parecido com interesse.
Espere, o quê?!
Mykaela só então notou que eles estavam próximos demais, agora.
Escandalosamente próximos. Ela conseguia sentir o calor emanando daqueles
músculos colossais, distinguir a posição tensa dos ombros muito largos,
identificar seu cheiro — um amadeirado cítrico inebriante — se acentuando.
Os olhos do lupino haviam escurecido do castanho-chocolate para um
marrom denso, carregado.
Algo nela respondeu àquele olhar. Se revirou em seu estômago,
acendeu uma fagulha estarrecida de satisfação em seu âmago. A Platina se
viu também descendo a mira para encarar a boca cheia e pecaminosa de
Hassam. Ele tinha lábios carnudos, incomuns para um homem, e isso somado
à barba por fazer só o fazia mais dolorosamente atraente. Ela não gostava de
admirá-lo dessa maneira descarada, mas tinha de admitir que não era algo que
conseguia evitar.
Isso a horrorizava.
Ele ainda era um lupino. Os dois haviam chegado perto de algo como
uma trégua nas últimas semanas, mas o homem havia matado inúmeros dos
seus, assim como ela havia matado inúmeros dos dele. Era uma das mais
selvagens bestas entre seus antigos rivais. Mykaela era obrigada a tolerá-lo
agora que eram algo próximo de aliados e ele até estava cooperando nesse
processo, mas isso não significava que precisava permitir que olhasse para
ela daquela maneira.
Nem que se inclinasse em sua direção como se fosse tomar sua boca
na dele.
—Não... — ela começou a respirar, arregalando os olhos e já
prevendo a bela joelhada entre as pernas que teria de dar a ele para que
respeitasse seu desejo...
Mas Hassam estancou no lugar na mesma hora, os olhos ganhando
lucidez com um balançar de cabeça incrédulo. Algo semelhante a embaraço
se infiltrou em sua expressão e ele pulou para trás no instante seguinte.
—Desculpe, eu pensei que... — balbuciou, esfregando o rosto. Era a
primeira vez que ela o via remotamente desconcertado. Mykaela teria rido se
não estivesse tão estupefata. Mas aquela firmeza inabalável finalmente
endureceu suas feições. — Desculpe, Skies. Isso não acontecerá de novo.
Ela piscou.
Ele recuara. Recuara no mesmo momento. A garota não precisara se
defender da sua investida, não precisara lembrá-lo de que ele não tinha aquele
tipo de poder sobre ela, que não tinha o direito de tocá-la sem sua permissão.
Uma parte sua estava honestamente surpresa com essa constatação. O
tamanho de Hassam, a malícia perigosa que ela sempre via em seu olhar, as
provocações que escutara naquela primeira luta no ringue... Essas coisas lhe
haviam feito pensar que ele era o tipo de homem que tomava, que forçava,
que conseguia o que queria a qualquer custo, mesmo que sua personalidade
não condissesse com tal comportamento. Como seu pai, como Lother,
como... Como Eiko.
Mas Hassam recuara. Se desculpara por sequer cogitar a
possibilidade.
Ela não tinha previsto aquela reação. Ou o que ela provocava em seu
peito.
Respeito. Era respeito e aquela fração final de confiança se
assentando em seu interior, naquele momento.
Não seja ridícula, a Platina rosnou para si mesma. Ele simplesmente
prova que não é o dito bruto convencido e você baixa a guarda sem mais
nem menos?
—Não se repetirá — ela confirmou com a cabeça, o tom irredutível.
Sua voz não soava ríspida como a guardiã queria que soasse, entretanto. —
Lembre-se disso, Imanur.
O pomo de adão se moveu para baixo e para cima na garganta de
Hassam, e ele assentiu em concordância ao desviar os olhos e dar as costas a
ela.
Ele marchou decidido para longe do local de descanso do seu irmão,
as passadas duras estalando nas folhas secas cobrindo o solo, como se não
conseguisse encará-la nos olhos depois do que quase fizera. Mykaela foi
preenchida por uma mistura confusa de curiosidade e relutância.
Hassam tentara beijá-la. Sua racionalidade assumira o controle por ela
e a Platina o impedira de seguir adiante, mas... Mas um fragmento seu estava
assustadoramente tentado a se arrepender por tê-lo feito. Será que ele
entendera a amistosidade com a qual se trataram de forma errônea? Que
tomara as confissões mútuas e íntimas como um sinal positivo de avanço?
Tudo bem que fora um passo e tanto para quem Mykaela costumava ser,
porém... Ela tinha achado que estavam apenas enfim se entendendo, mas o
lupino claramente pensara que estavam alguns passos à frente disso.
Entretanto...
Entretanto aquele fogo nos olhos de Hassam a inflamara por um
instante e tudo que ela quisera fora provar o gosto dele. Fazia tanto tempo... E
a aparência, a anatomia, o fato de que ele a enxergava e parecia não lhe
julgar... Tudo nele a agradava — exceto pela personalidade enlouquecedora.
Se não fosse por isso, se não fosse pelo fato dele ser uma besta-fera
sem escrúpulos...
Mas isso é uma mentira, uma pequena voz em seu interior pestanejou.
Acabou de provar com os próprios olhos que a moral dele merece algum
reconhecimento.
Bom, sim, mas... A Platina arregalou os olhos, ainda sozinha e imóvel
no mesmo lugar onde Hassam a deixara.
Não. Não, não, não, ela não estava amolecendo em relação a ele. Não
estava, porque ele ainda era um monstro. Ainda era um lupino, ainda era tudo
que ela abominava. Uma das feras que haviam matado sua tia, que haviam
assombrado sua alcateia.
Mas eles eram aliados agora... Não eram?
Mykaela não sabia o que isso significava para ela. Não tinha certeza
se queria saber. Porque se permitisse que isso a dobrasse, que a fizesse
ceder...
Quem se tornaria, então? Alguém que teria envergonhado o irmão, o
pai...
Ou alguém de quem ela mesma se orgulharia?

—Onde você esteve durante a tarde inteira?


O corpo de Mykaela congelou por inteiro. Foi verdadeiramente
risível. Se pudesse se enxergar num espelho no momento, era muito provável
que visse uma expressão agressivamente culpada.
Seus olhos escorregaram na direção de Othella com uma frieza hostil.
Que tipo de direito você acha que tem para me perguntar esse tipo de
coisa, fedelha?
As palavras estavam na ponta da sua língua. Ela e Benikov viram o
segundo em que deixariam seus lábios e mandariam a Quartzo de cabeça
encolhida na volta para o próprio quarto. Othella estremeceu com a prévia de
tensão rude.
Mas outras palavras, as da pessoa que ela mais queria esquecer no
momento, vieram à sua cabeça.
Todos temos partes detestáveis dentro de nós mesmos... O que
importa é como decidimos agir em relação a elas.
Othella não merecia aquela sua parte detestável. Ela não tinha feito
nada para ganhá-la, tudo que seu rosto expressara durante a pergunta fora
receio.
A Platina soltou um suspiro enquanto deixava sua adaga e a pedra de
amolar de lado no colchão, descruzando as pernas cobertas por uma manta
felpuda para armar uma careta para a Quartzo.
—Fui visitar o túmulo do meu irmão.
Pronto, a voz de Hassam a provocou internamente, com uma risada
grave e desdenhosa. Não te matou, matou?
Cale a boca, a garota quis rosnar para a presença imaginária.
Othella parecia tão desconcertada pela sua resposta amistosa quanto
ela própria.
—Ah... Ah — Benikov franziu a testa, como se não tivesse previsto a
continuidade da conversa. — Bom, você... Você demorou mais do que o
normal. Estávamos começando a nos preocupar.
Mykaela piscou, aturdida e ligeiramente tocada. Ela nem sabia que as
companheiras de cabana davam a maldita da mínima para ela ou para o que
fazia.
De repente, ser amigável — ou não ser uma completa vaca — já não
lhe parecia tão ruim.
—Eu... Demorei mais do que o normal? — uma desconfiança
cuidadosa se instalou em seu semblante. — Você cronometra minhas saídas?
Sabe quando vou visitá-lo?
A Quartzo corou, sem graça, mantendo o os olhos em qualquer parte
do quarto impessoal, metodicamente organizado e pifiamente decorado
apenas para não ter de encará-la diretamente.
—Você sempre some durante as tardes no seu dia de folga. Volta
depois de mais ou menos uma hora e meia, batendo portas e resmungando
baixo, janta sozinha no seu quarto e não fala com ninguém até a manhã
seguinte. Não é tão difícil de decifrar... Onde esteve, o que fez.
Mykaela arqueou as sobrancelhas. Ela também nunca notara que suas
colegas de chalé percebiam aquele tipo de evento.
—Mas hoje — Othella hesitou, receosa com a possível reação da
guardiã. — Hoje você não parecia tão... Mal. Comeu quando chegou, até
cumprimentou Eora no corredor. Parecia só reflexiva, não... Não melancólica
ou miserável.
Sem saber se aparentava indignação ou embaraço, a Platina preferiu
manter o rosto moderadamente neutro.
Isso era o que acontecia quando ela decidia interagir, ou ser amigável:
as pessoas começavam a achar que tinham intimidade para dizer esse tipo de
coisa.
Você nunca precisou de intimidade para cuspir verdades na cara dos
outros, antes.
Argh, ela grunhiu internamente. Cale a boca você também,
consciência. Eu parei de te dar ouvidos há anos.
—Se eu te dissesse que um lupino me distraiu enquanto eu tagarelava
bobagens, o que você faria?
Ela não sabia de onde a indagação tinha surgido, mas sabia que queria
socar o próprio rosto por ter deixado a informação escapar.
E concluíra que a nova Mykaela era burra e suscetível até demais a
vulnerabilidades emocionais.
Benikov ergueu uma sobrancelha, os lábios se erguendo com o
lampejo fantasma de um sorriso enquanto ela colocava uma mecha escura de
cabelo atrás da orelha. Foi quando Eora, a Granada, surgiu no corredor e
cruzou o braço de prata com o normal de forma atrevida, se recostando no
batente.
—Se me dissesse isso, hipoteticamente... Então eu perguntaria se esse
lupino por acaso seria Hassam Imanur.
Foi a vez da Platina cruzar os braços de forma impassível, então,
contendo a vontade de jogar a adaga que estava afiando na direção da prima
Feuer menos impressionante e tão irritante quanto.
Eora tinha toda a aparência atraente e a atitude espertinha da Ônix,
ainda que não fosse tão desbocada ou audaciosa — e é claro, experiente.
Mykaela conseguiria vencê-la numa luta de olhos fechados e com os pés
algemados.
—Por que perguntaria isso?
—Eu estava lá quando entraram no ringue, lembra? — disse o projeto
de Vaska, sorrindo maliciosamente. — Todos sentiram a tensão a um
quilômetro de distância.
—Você quer dizer que sentiram a prepotência do ego de Imanur dessa
extensão toda? — ela projetou o lábio inferior, fingindo estar impressionada.
— E eu achando que até aquela coisa tinha limites.
—Tenho que concordar com Skies, dessa vez — Othella olhou para a
Granada de soslaio. — Aquele lá parece que só ladra, não morde. E Mykaela
com certeza não gosta dele. Mykaela não gosta nem da gente.
—Eu tolero vocês de modo bem razoável — ofereceu a Platina, blasé.
As duas colegas de chalé riram, fazendo algo tolo e esperançoso no
coração da garota saltitar.
—Acho que você tem um ponto — concedeu Eora, revirando os
olhos. — Mas eu não vejo problema nenhum em investir em Imanur, se é que
me entendem. Ele pode até ladrar, mas não me importaria se ele me
mordesse, também.
Mais um segundo e Mykaela teria rosnado.
Ela disse à coisa irritada, possessiva e totalmente irracional em sua
mente que o que estava sentindo não era ciúmes, de maneira alguma, e
conseguiu transformar o som de ameaça saindo de sua garganta numa risada
rouca. Ela tinha negado Hassam, rejeitado sua investida nem uma hora antes.
Não tinha direito algum de se sentir territorial em relação a ele. Eles não eram
nem amigos — por mais que uma parte dela necessitasse daquela parte dele
que a via de verdade e não a julgava de uma maneira quase que doentia.
Estava sendo ridícula.
No entanto, não conseguiu impedir a si mesma de dizer:
—Com toda aquela pompa em forma de testosterona, não duvido de
que o material seja muito mais fantasia do que realidade.
Era mentira. Ela deixara a sentença no ar, mas é claro que sabia que
era mentira. Ela tinha montado no colo de Imanur e sentido todo o
comprimento da tal pompa: não era fantasia nenhuma. Era largo e extenso e
tudo enquanto ainda flácido.
Mykaela não se orgulhava de ter registrado a sensação entre suas
coxas, mas bom, não havia como simplesmente apagar a experiência da sua
cabeça.
A Granada armou uma careta.
—Você também tem um ponto — ela suspirou. — Machos daquele
tipo costumam exagerar nos próprios dons e não cumprir nada do prometido.
—Imaginem o quão decepcionante seria — Benikov conteve uma
risada jocosa. — Um macho daquele tamanho com uma minhoca em forma
de...
—Eora! Você já está pronta? — a voz aguda de Ulsa Denalyi
alcançou os ouvidos das guardiãs do primeiro andar.
Mykaela notou a frustração murchando seus ombros; ela não queria
que alguém houvesse interrompido aquele momento leve e casual entre elas.
Fora a primeira vez em que se sentira realmente fazendo progresso com suas
companheiras de chalé. Ela costumava se manter distante, cumprimentá-las
de modo educado e às vezes se juntar a elas nas refeições, mas nunca além.
Nunca aquilo, uma conversa amena e despreocupada entre garotas.
E o pior de tudo — Denalyi estava subindo as escadas.
A Platina se retesou diante dos passos da sacerdotisa soando no
corredor, e não foi decepcionada pela reação dela ao alcançar as duas outras
guardiãs no portal do seu quarto.
—Precisamos ir, Feuer — Ulsa grunhiu para Eora, mas sem nem por
um instante tirar a mira gélida da pose tensa de Mykaela. — Ou vamos nos
atrasar. O portal será aberto em minutos.
A Granada alternou olhares nervosos entre uma fêmea e a outra.
—Certo. Só preciso pegar meu casaco.
Era fim de verão ali, mas em Ellayi o inverno estava apenas
começando a se despedir. Mykaela também já tivera turnos escoltando a
sacerdotisa para o continente longínquo em eventos oficiais, e odiara cada
segundo da experiência mesmo adorando visitar a capital de Leyan.
Quase tanto quanto Ulsa a odiava.
Ela e Eora se despediram de Othella — Feuer até lançou um aceno
discreto para Mykaela — e seguiram o próprio caminho. Dezenove segundos
inteiros de silêncio se passaram até que os ouvidos da garota confirmassem
que elas haviam deixado a cabana e se afastavam do alcance auditivo dela.
—Eu nunca... Nunca soube porque ela é assim com você — a Quartzo
comentou, baixinho, como se ainda com medo de que fosse receber um
rosnado insensível da antiga Mykaela.
—Quer dizer fora o fato de que no geral sou uma vagabunda
intratável com tudo e todos?
A outra guardiã abriu um sorriso sem graça — ainda brincalhão,
porém.
—Sim, fora isso.
A Platina bufou.
—O irmão dela... O falecido irmão dela gostava de mim — a garganta
da garota se tornou um deserto, dolorido e espinhoso. — Ele foi o único além
da Diana a se importar comigo quando eu estava presa. Ele foi a razão para
que eu não adoecesse de fome e frio naquela cela, e nunca acreditou nos
rumores de que eu era... Cúmplice de Eiko.
Mesmo a memória do sorriso doce de Torph — o antigo Granada —
lhe doía como um soco no abdômen.
Ele era reservado, quieto, mas seus olhares deferentes sempre lhe
acompanhavam de modo sutil, mesmo enquanto estava noiva de Howl.
Mykaela costumava achá-lo um tolo porque não fazia nada a respeito dos
próprios sentimentos, até que aquele tolo parecera ser o único que ainda lhe
respeitava, que ainda lhe achava digna de algum cuidado e carinho.
No momento em que Howl lhe deu a oportunidade de lutar pela
matilha uma última vez, Mykaela soube que poderia se redimir com todos.
Ela tinha decidido que daria uma chance a Torph, que daria uma chance à sua
timidez afetuosa assim que aquela guerra tivesse um fim.
Mas a guerra acabara findando a vida do guardião, também. Ele
morrera e ela nunca sequer lhe dera esperanças. Ulsa sabia daquilo tudo e
nunca tinha lhe perdoado pelo fato.
Não que a Platina achasse que merecia um perdão.
—Isso não me parece justo — Othella tinha uma expressão solidária
no rosto quadrado. — Você não tem culpa por não corresponder os
sentimentos dele. Nós não escolhemos esse tipo de coisa.
Não, aquela voz em sua cabeça voltou a bufar, cinicamente sarcástica.
Com certeza não.
—Se eu te pedir para ficar sozinha, vai voltar a me olhar como se eu
fosse uma imbecil? — indagou, baixinho.
—Considerando que você pediu educadamente e não simplesmente
latiu algo rude, é claro que não — a Quartzo sorriu de forma hesitante. —
Quem quer que seja o lupino que te distraiu enquanto você tagarelava
bobagens... Perdoe a intromissão não requerida, mas acho que ele te faz bem.
—Não perdoo — resmungou Mykaela, carrancuda, abraçando os
joelhos contra o peito. — A intromissão não requerida não está perdoada.
A risada de Benikov ainda flutuou pelo corredor mesmo depois da
guardiã ter fechado a porta com uma piscadela malandra.
Acho que ele te faz bem.
Era o maior absurdo que ela já tinha ouvido.
Mas... A mera influência de Hassam, a simples presença fantasma
dele em sua cabeça, lhe havia feito iniciar uma interação pacífica e
complacente com as colegas de chalé em uma tarde, coisa que ela não
conseguira se obrigar a fazer sozinha durante nove meses. Ele desenterrara
uma parte sua que estava cansada de se sentir culpada e triste e dissera que
ela não era a única. Que tinha sua parcela de culpa, sim, mas que podia
trabalhar para melhorar isso.
O resultado, por mais que odiasse admitir, fora mais do que
satisfatório.
Mykaela se deixou cogitar, por um efêmero e relutante momento.
O sorriso sacana dele surgiu em sua mente, aquele que antes lhe fazia
querer socá-lo e que agora lhe fazia... Querer outras coisas.
A sensação do toque calejado do lupino tomou sua consciência.
Correndo pela sua pele, se enroscando com força em seu cabelo, descendo
pelo seu mamilo intumescido, deslizando pela sua barriga e... Sim. Ah, sim,
ela conseguia imaginar perfeitamente.
Deusa e todas as malditas estrelas, que merda estou fazendo?
Suas costas contra o peitoral de Hassam, da lembrança do dia de
ringue, invadiram a próxima sequência de delírios masoquistas.
Mykaela de bruços, os pulsos imobilizados enquanto ele se inclinava
sobre ela, a voz rouquejando:
Acho que gosto mais de você assim.
Ela soltou um suspiro baixo e permitiu figurar suas mãos passeando
pelo torso esculpido e largo do homem, as unhas se cravando nos ombros
fortes, as pernas envolvendo seus quadris. Então Imanur, com aquela
expressão que era pura volúpia e arrogância, esfregando a sobressalência
monstruosa em suas calças contra o meio das pernas dela. Ofegando em seu
ouvido, a beijando até lhe deixar sem ar.
Hassam gemendo seu nome enquanto ela o tomava nas mãos, na boca,
no centro úmido e quente de suas coxas.
Hassam estocando duro dentro dela, as mãos enormes comprimindo
seus quadris enquanto Mykaela arfava e se impulsionava contra ele.
Hassam gozando com o rosto pressionado na curva do seu pescoço,
rugindo alto o bastante para estremecer cada centímetro da pele suada dela
enquanto Mykaela o acompanhava.
Sim, ela gritaria ao se agarrar e contorcer contra ele.
Sim.
A Platina abriu os olhos, a respiração descompassada o bastante para
demorar alguns segundos até que notasse o cheiro da sua excitação
empesteando o quarto inteiro. Seu cerne pulsava de um jeito dolorido,
exigente, o rosto acalorado e as pernas trêmulas, as pupilas dilatadas e as
pálpebras instáveis.
Vários segundos mais lhe tomaram o tempo de recuperar a própria
razão — ou algo próximo disso, pelo menos.
Um simples devaneio lhe fizera aquilo.
Uma mera ilusão da sua cabeça perturbada.
Ela sabia que tinha apenas duas míseras opções, a partir daquele
momento.
Ou vivia de banhos gelados pelo resto da sua convivência com
Imanur, ou ia até ele tirar a prova da veracidade daquelas sensações.

Isso é idiota.
Eu sou idiota.
E devia estar em casa.
Devia estar mergulhada em gelo até o pescoço.
Devia ter me oferecido para substituir Eora e me afundar na neve de
Ellayi até parar de sentir as extremidades do corpo.
Mesmo que essa última opção a fizesse ter de encarar Ulsa, pelo
menos Mykaela não encararia... O que quer que fosse encarar a seguir.
Era a falta de saber o que esperar que lhe cobrava mais caro: sabia que
estava sendo ridícula — para não dizer arrogante — ao retornar para pedir de
Imanur o que ela mesma lhe negara. Mas ele era um macho; um homem.
Homens não costumavam rejeitar esse tipo de acordo... Certo?
Mykaela superara o próprio horror diante da possibilidade com uma
velocidade incômoda, depois da fantasia da noite anterior — uma que fizera
sua consciência latir um “hipócrita” mais rápido do que Howl derrubava
guardiões menos experientes com suas odiosas rasteiras. Ela passara o turno
de vigília da manhã se contorcendo de ansiedade e se obrigando a não pensar
nas imagens detalhistas que sua mente imunda bolara.
Até Safira notara seu comportamento incomum durante uma
caminhada matinal, o tique nervoso em seus dedos girando suas facas de
forma distraída, seu olhar perdido nos limites da vila enquanto patrulhava os
arredores.
—Você está bem? — indagara a Diana, acompanhada de Ruby, a alfa
lupina e sua mãe.
Mykaela piscara para a Lunar, tentando colocar a cabeça em ordem.
A guardiã não podia deixar de tomar um susto quase toda vez que
olhava para ela, mesmo depois de quase um ano. O cabelo branco e as íris
prateadas faziam diferença, é claro, mas não era exatamente isso. Safira
passara de uma jovem enfezada e fechada para uma soberana altiva,
confiante. O posto lhe caía bem, por mais que um fragmento antigo e bobo de
Mykaela odiasse admitir. E é claro, a Platina lhe devia todo o respeito e
lealdade, agora. Ela não era só sua Diana, mas também uma das poucas
pessoas que haviam decidido confiar nela outra vez, que haviam visto além
da cadela louca.
—Eu estou ótima. Como está a pequena Maria?
Mykaela tinha decidido entrar na aposta e arriscar por uma pequena
fêmea, só para contrariar Meistens e torcer para que tivessem uma alfa na
próxima geração.
Safira revirara os olhos diante do comentário.
—Chutando mais do que a droga do pai num dia movimentado na
arena — respondera, com um suspiro e uma careta repreensiva. — E não
desvie do assunto, Skies.
—Acho que o lado maternal já está levando a melhor sobre você.
—E eu não acharia isso ruim em nada — dissera Ruby, suavemente.
—Isso é inesperado, vindo de você — a Lunar rebatera, seca.
Uma expressão dolorida se instalara na face da alfa lupina, então. Ela
se desculpara de modo desconfortável e se despedira em seguida,
balbuciando algo sobre ter compromissos na própria alcateia.
Elas ainda não se entendiam muito bem. Safira a tolerava e fazia isso
pelo bem da matilha, mas não superara o histórico covarde de abandono
proposital da mãe. Ruby basicamente catava migalhas de atenção da filha,
mas Mykaela via a agonia em seu rosto a cada vez que a Diana era ignorante
ou dura com a matriarca.
—Sabe — começara a Platina, com cautela, enquanto as duas
observavam a soberana lupina se afastar. — Eu sei que sua mãe não é
exatamente digna de uma postura carinhosa ou afetiva, mas... Mas eu ainda
acho que poderia pegar mais leve com ela.
—Você — zombara Safira, cruzando os braços sobre a barriga
avantajada de sete meses. — Você acha que eu deveria pegar leve com
alguém?
—Eu sei — a garota expirara com força, armando uma careta. — É
que a situação me faz pensar na minha mãe e no que ela sofreu na mão do
meu pai. E às vezes... Às vezes acho que preferia que ela estivesse bem,
mesmo que fosse longe de mim. Não morta pelo marido que nunca a
valorizou como deveria, que a tratava como lixo e era violento com ela. Pelo
menos eu sei que ela me amava, e você sabe que Ruby também te ama. Ela já
fez de tudo para te provar isso.
A Diana piscara em descrença, abrindo e fechando a boca de modo
aturdido. Será que suas palavras haviam soado tão ridículas assim?
—O que há com você, ultimamente? Will disse que você também
apostou a respeito do gênero do bebê. Howl estava feliz por você ter
ingressado as lutas no dia de ringue. Eora comentou que vocês ficaram
conversando sobre machos numa tarde no chalé — ela soara cuidadosamente
incrédula. — Será que você finalmente está amolecendo e quer que eu faça o
mesmo, Skies?
Mykaela revirara os olhos com uma veemência sarcástica.
—Só não te dou um safanão agora por causa dessa barriga de pata
choca, Reiters.
Uma gargalhada baixa deixara os lábios de Safira diante da resposta.
—Aí está a Platina que todos conhecemos e tememos. Vou ficar
grávida mais vezes então, se isso impedir suas surras.
A garota se arrepiou com um honesto e amedrontado frio na alma.
—Faça por sua conta e risco.
Agora, enquanto procurava Hassam e tentava não sair correndo na
direção oposta, com medo dele notar o nervosismo exposto em cada poro da
sua pele como a Diana fizera, Mykaela também se perguntava se intimá-lo
valia o risco de levar um belo e sonoro não.
Seu orgulho não aguentaria o golpe, não depois de passar horas
apenas imaginando o toque dele sobre ela, imaginando seus dedos como se
fossem os de Imanur no ápice de suas coxas na noite passada. Mas, olhando
por outro lado, talvez aguentasse.
Ela já fora rejeitada pelo próprio noivo (mais de uma vez), afinal,
aquele que no momento era seu atual alfa. As circunstâncias não podiam ficar
piores que aquilo, podiam?
Depois de esquadrinhar a alcateia de forma discreta, como se tudo não
passasse de uma ronda rotineira, a Platina se dirigiu para a floresta e seguiu o
cheiro que ela havia aprendido a reconhecer de forma involuntária. Algo
como cedro e limão, a lembrança do aroma que a fizera arfar e se contorcer
em êxtase na última noite.
A vontade era jogar Imanur na superfície mais próxima e cavalgá-lo
até perder a consciência, mas sua mente estava gritando em sobreaviso e sua
confiança ameaçava fazê-la vacilar. Mykaela nunca fora o tipo que recusava
um desafio, no entanto, e isso era a única coisa fazendo-a continuar
procurando o macho pela mata como uma tola no cio.
Ela se aproximou o bastante do território da alcateia lupina para saber
que o homem estava entre os seus, e isso murchou boa parte da sua
disposição em encontrá-lo. A guardiã estancou no limiar da região, perto o
bastante para avistar as tendas e longe o suficiente para que não fosse
identificada, e soltou um suspiro frustrado.
Aquela fora uma péssima ideia. Talvez isso fosse apenas uma maneira
da deusa avisá-la a respeito.
Contudo, como se Diana não gostasse de ser usada como justificativa
de forma errônea, a figura desproporcionalmente grande de Hassam surgiu
entre as estruturas de tecido e se dirigiu para a parte norte do território — na
direção da matilha licantropa, de onde ela viera.
Mykaela honestamente considerou girar nos calcanhares e correr
antes que ele a notasse. Viu acontecendo, sentiu seus músculos se
tensionando para a disparada.
Mas a lembrança do dia anterior fez suas pernas hesitarem — o modo
como ele em nenhum momento a fez se sentir julgada, ou desconfortável na
própria pele. Então talvez, se a garota propusesse aquilo, ele... Ele não faria
troça dela. Ele seria compreensivo, e educadamente explicaria sua rejeição.
Hassam era um idiota com tópicos levianos, não com tópicos sérios. Era um
dos poucos machos que ela conhecia que sabiam distinguir um do outro, na
verdade.
Então, antes que a vergonha e a relutância levassem a melhor sobre
ela, a Platina saiu de detrás das árvores e caminhou até Imanur com toda a
calma fingida do mundo.
O lupino se tensionou com a visão da figura dela, os olhos passeando
pela paisagem ao redor como se Hassam quisesse encarar qualquer outro
lugar ou coisa que não Mykaela.
Desconforto. Era vergonha e relutância que ela percebia nele, em vez
de em si própria.
Isso a motivou a murmurar, direta e inalterada:
—Posso falar com você? Em particular?
As íris castanhas do homem se estreitaram, pura desconfiança se
mostrando em sua postura rija. Depois do que pareceu uma eternidade, o
queixo de Imanur assentiu de leve, e ela soltou o ar que nem notara estar
prendendo.
Mykaela se virou e andou na direção oposta às matilhas — a leste,
indo para a vila humana ou no caminho para a cabana de Nye Reiters. Os
passos de ambos esmagaram folhas e terra e grama por sobre suas botas até
que ela estivesse confiante de que não estava ouvindo nada nem ninguém; e
que nada nem ninguém os ouviria.
Antes mesmo de girar para encará-lo, ela começou:
—Hassam, sobre ontem...
—Eu sei, Skies — a voz dele soou frustrada. — Fui um idiota, é isso
que queria ouvir? Já pedi desculpas.
Ela observou a falta de jeito no rosto moreno do lupino com uma
confusão curiosa. Ele correu as mãos pelo cabelo de modo inquieto.
—Não. Não era isso que eu queria ouvir, mas...
—Sim, eu interpretei nossas interações da maneira errada — admitiu,
engolindo em seco. — Pode me chamar de brutamontes convencido, eu
mereço. Me perdoe se te deixei incomodada. Isso estava bem longe da reação
que eu esperava.
Ele estava nervoso. Mykaela teve de conter o sorriso porque estava
achando adorável, mas aparentemente foi a coisa errada a se fazer, porque
uma sombra indignada cobriu as feições de Hassam.
—Sei que deve estar achando tudo isso muito engraçado — grunhiu,
gélido. — Mas eu não vejo necessidade nessa humilhação alheia. Como eu
disse, já pedi desculpas. Agora, se me dá licença...
—Imanur, espere! — ela avançou para alcançá-lo, mas as pernas do
desgraçado eram ainda maiores que as suas e lhe levaram para longe em
meros segundos. — Você não interpretou nada errado!
Tudo bem, aquilo fora uma mentira, mas ela queria que ele não
tivesse interpretado errado. Queria que ela própria tivesse notado as
vantagens daquelas interações antes.
—Chega, Skies — ele rosnou, sem nem olhar para trás. — Os jogos
só têm graça quando você não está me fazendo de idiota.
A Platina negaria caso isso lhe fosse perguntado mais tarde, mas a
verdade era que disparou e se meteu na frente de Hassam com um rosnado
insistente, batendo o pé feito uma criança.
—Cale a maldita boca e me escute! — ela empurrou os ombros dele
para fazê-lo parar. — Eu fui a idiota ontem, tudo bem? Acho que uma parte
de mim estava sim te incentivando, e a outra... A outra só era muito turrona
para me deixar admitir isso.
A testa do lupino se franziu.
—O quê?
—Eu sei! — a guardiã jogou as mãos para o alto, irritada. — Sei que
não estou fazendo sentido, eu só... Preste atenção, tudo bem? Eu só sei que
seria bom. Isso. Eu, você. Quando penso em você, eu... — a garganta dela
parecia um campo de algodão. — Eu não sinto vontade de afastá-lo. Não
sinto vontade de ser rude.
—Essa é a parte em que eu deveria agradecer por isso? — ele
zombou.
Mykaela sibilou em resposta, mas percebeu que o tom da sentença
fora mais suave, não frio ou ofendido, apenas cauteloso. Ele estava ouvindo.
Um exalar profundo deixou os lábios dela.
—Quando penso em você, eu... Eu quero deixá-lo se aproximar — ela
ousou erguer a mão para roçar o antebraço colossal de Imanur com um toque
hesitante, e os olhos castanhos intensos seguiram seu movimento. — Quero
deixá-lo me tocar, quero... Quero cada parte disso. Demorei a perceber, mas...
Mas eu quero você. Eu não sei, só...
A mão de Hassam a puxou pela cintura antes mesmo que Mykaela
conseguisse terminar, colando as frentes dos corpos de ambos com uma
pressão estarrecedora. Ela só percebeu o quanto ele lhe afetava e o quanto
vinha ansiando por aquilo quando seu coração tropeçou no peito e seu
estômago deu duas ou três cambalhotas.
Foi quando a insegurança realmente lhe atingiu com tudo.
A ideia de alguém tendo tanto poder sobre ela ou seu corpo não lhe
agradava.
—Eu também não sei o que é isso, Skies — ele respirou, o hálito
resvalando no dela, a voz rouca fazendo um arrepio correr pela guardiã
inteira. — Só sei que não consigo mais ignorar.
Ela estava mesmo insana. Tinha perdido a maldita da cabeça. Devia
ter corrido para longe dali antes que não conseguisse revogar aquela loucura.
Mas apenas se viu sussurrando de volta, incapaz de impedir as
palavras:
—Então não ignore.
Os cílios dele tremularam, o vislumbre da língua aparecendo para
umedecer os lábios entreabertos de Hassam fazendo seus batimentos
galoparem. Mas ele continuou imóvel. Inegavelmente expectante, mas ainda
imóvel. Deixando que ela tomasse a atitude, que ela lhe desse a anuência.
Mykaela o fez.
A mão dela subiu para envolver o cabelo de Hassam ao mesmo tempo
em que seus lábios se colavam com uma fome voraz. Os dedos dele já
apertavam sua cintura, um grunhido grave e satisfeito deixando sua garganta
quando os gestos afoitos da guardiã o surpreenderam de modo
irrevogavelmente agradável. Então aquela boca cheia e atrevida que Mykaela
tanto se criticara por encarar no dia anterior estava se movendo e
mordiscando a dela, contornando-a com a língua para abrir passagem.
O beijo se aprofundou com aquele toque quente e molhado, e um
arquejo deliciado escapou da garota com a explosão de faíscas que o contato
fez explodir em seu interior.
Aquilo queimava. Era quente ao extremo e fazia suas entranhas
formigarem, sua cabeça rodar, sua consciência se perder em meio aos sons
guturais que Hassam soltava enquanto a beijava. Ela nunca se sentira
arrebatada por completo com um macho antes, mas não sentia que tinha
muito escolha com ele. Aquela provocação maliciosa entre os dois vinha lhe
deixando maluca há dias, mesmo que não tivesse percebido a tensão se
acumulando em seu interior. Mykaela nunca sentira nada parecido.
Então ela simplesmente ignorou a metade horrorizada de si mesma e
prensou o lupino contra uma árvore, ainda sem descolar os lábios dos dele.
Hassam gemeu quando a guardiã se comprimiu ao corpo forte e largo.
Não havia gentileza, não havia suavidade ou calma. Era fogo, era
puro fogo ardendo entre eles, ardendo com toques lascivos e movimentos
impacientes.
Fazia tanto tempo, tanto maldito tempo...
Ela conseguiu arfar enquanto os dedos desfaziam os nós da camisa
dele às pressas:
—Você toma algum contraceptivo?
Mykaela costumava tomar um... Antes de ser presa. Seu ciclo
demorara a voltar após passar dois meses com fome e com frio, enfurnada
numa cela suja e minúscula. Ele ainda estava irregular, mas a curandeira que
lhe vendia o chá anticoncepcional lhe dissera que, no momento, ele faria mais
mal às suas regras mensais do que bem.
E a guardiã queria Hassam, não arriscaria aquilo. Nunca aquilo.
—Sim — foi tudo que o lupino respondeu, ajudando a puxar a camisa
por cima da própria cabeça, apenas para jogá-la longe e voltar a beijar a
guardiã um segundo depois.
Graças à deusa e todas as malditas estrelas.
Ele beijava bem. Muito bem mesmo. O encaixe dos dois, a maneira
como seus corpos ondulavam em sintonia e como pareciam saber exatamente
como tocar a melodia que os fazia cantar de prazer... Era estranho e
avassalador. Mykaela não se permitiu pensar a respeito, não quando cada
lugar onde os dedos calejados de Hassam resvalavam ficava impossivelmente
sensível e quente.
Não quando a pele musculosa cheia de cicatrizes do peitoral enorme e
agora desnudo também parecia ferver sob o toque das suas mãos.
Ah, deusa, como era bom poder fazer aquilo, como ela sentira falta de
um corpo masculino estremecendo contra o dela. E por mais que lhe doesse
admitir, Hassam era de longe o mais palatável deles. Todas aquelas
reentrâncias e vincos em seu abdômen trincado, nos bíceps como toras, nos
músculos poderosos das costas... A boca de Mykaela estava seca.
Honestamente seca. Ela sempre gostara de machos largos, de anatomia forte,
e ninguém se comparava a Hassam naquele quesito, nem mesmo Howl.
Os beijos e a língua provocante do lupino desceram por seu maxilar,
sua mandíbula, seu pescoço, e a garota se arqueou inteira para ele assim que
as mãos largas envolveram suas nádegas para apertá-la contra o volume
considerável abaixo da cintura de Hassam. Os dedos da guardiã se apertaram
nas mechas escuras e longas do cabelo dele, e um pequeno gemido escapou
entre seus lábios ao se esfregar naquela sobressalência grossa e extensa.
Ansiosa, ela estava tão ansiosa para verificar se ele era mesmo tão grande
quanto o restante do seu corpo...
Hassam rosnou na curva do seu ombro com as investidas arfantes da
Platina, como se soubesse exatamente para onde os rumos dos seus
pensamentos haviam ido.
Uma das mãos dele subiu pela saia do uniforme convenientemente
curto da guarda e um ruído grave de surpresa e satisfação vibrou em seu peito
quando o lupino descobriu apenas pele por baixo dos couros.
—Lobos não usam roupa íntima — ela abriu um sorriso deliciado,
mesmo sabendo que Hassam não podia vê-lo pelo fato de ainda ter a cabeça
enterrada em seu pescoço.
Ele grunhiu de todo jeito, no entanto.
—Acho que é a primeira vez que não me verá jurando aos deuses em
relação a isso.
—Isso...?
—Isso de poderem se transformar quando quiserem sem esforço — a
mão de Hassam continuou o trajeto pela parte interna da coxa da garota, e
Mykaela se achou francamente capaz de derreter em uma poça de tremeliques
aos pés dele. — Isso de não precisarem usar roupa íntima.
Uma risada baixa e conivente escapou dela, mas o som logo se tornou
um ofegar estrangulado quando os dedos dele deslizaram com facilidade pelo
meio encharcado das suas pernas.
—Porra, Kaelie — sibilou Hassam, mordendo o lóbulo da sua orelha
e respirando com dificuldade. — Já está pronta para mim?
Kaelie.
Ela passara de Platina, a Skies, a Mykaela e então a Kaelie.
Ele lhe dera um apelido. A única pessoa que usava um apelido com
ela era Eiko.
A guardiã não se deixou prender àquele tópico perturbador. Não
quando aqueles dedos estavam a meros milímetros da sua entrada.
—Acho que pode se esforçar mais um pouco, Imanur — ela arquejou
contra o peitoral quente e rígido, enfatizando o uso do sobrenome dele como
se para reforçar a impessoalidade da situação.
Mesmo que não houvesse nada de impessoal no modo como Hassam
a tocava. Nada de impessoal no modo como a olhava.
Nada de impessoal no modo como os dedos dele se entremearam pelo
seu cerne e a fizeram gemer ao escorregarem para dentro dela.
Mykaela soltou um gemido sem fôlego, os quadris arremetendo
involuntariamente contra o estímulo infame de Hassam.
—Porra — repetiu ele contra seu pescoço, trêmulo ao morder a pele
sob seus lábios de leve, a língua lambendo o suor da pele dela como se
quisesse estar lambendo o lugar em que sua mão estava alojada. — Porra,
Kaelie.
Mykaela não conseguiu mandá-lo parar de usar o apelido, até porque
não conseguia reunir consciência o bastante nem para lembrar do nome
verdadeiro. A palma dele esfregando o ápice de suas coxas ao mesmo tempo
em que seus dedos a penetravam tornava isso muito, muito difícil.
Hassam incrementou a pressão na base da mão, e a guardiã teve que
conter o arquejo sonoro que quis escapar entre seus lábios entreabertos.
Longe, eles estavam longe o suficiente para não serem ouvidos, mas a
audição licantropa não devia ser subestimada. Ela sabia muito bem disso.
As mãos de Mykaela desafivelaram o cinto e a calça do lupino, e ela
conseguiu recuperar um pouco do controle quando os movimentos de
Hassam perderam o ritmo assim que a Platina o envolveu com ambas as
mãos.
Mas seus olhos se arregalaram, e ela foi forçada a olhar para o volume
pulsando em seus dedos.
Grande. Muito maior do que ela previra, sendo honesta, e caralho de
abismo flamejante, não caberia nela. Mykaela podia estar acostumada com a
sensação — sua experiência sexual não a deixara tão “estreita” assim —, mas
sua bacia ainda era, de fato, pequena. Podia ser musculosa, mas seu tipo
físico ainda era esguio, magro, principalmente nos quadris.
Ela seria empalada.
—Kaelie — a voz de Hassam adentrou seus pensamentos em pânico.
— Kaelie, olhe para mim.
A guardiã se obrigou a erguer a mira, engolindo em seco.
Havia malícia reluzindo nos olhos castanhos dele, mas também havia
uma suavidade paciente.
Mykaela se retesou. Ela não precisava que Imanur sentisse pena dela.
Não precisava que a arrogância dele se elevasse à estratosfera por causa
daquela droga de pau gigantesco. Que o abismo a queimasse se ela não
preferia ser empalada a recuar naquele instante.
—Acho que posso ajudar nessa questão — ele arqueou uma
sobrancelha escura entretida, mas ela mal registrou as palavras. — Acredite,
estou um pouco acostumado.
Hassam apenas retirou as mãos dela do membro latejante e
inacreditavelmente grosso, e trocou as posições deles logo antes de cair de
joelhos; era a Platina agora quem tinha as costas pressionadas contra a árvore,
a expressão descrente se desfazendo em êxtase quando ele colocou uma de
suas pernas sobre o ombro largo e desceu a boca sobre sua intimidade úmida
e sensível.
Deusa e malditas estrelas acima.
—Oh, sim — Mykaela deixou as pálpebras pesadas se fecharem por
completo quando a língua dele passeou pela sua entrada, provocando o ponto
acima com uma habilidade enervante, e toda a insegurança foi varrida da sua
mente como uma onda. — Bem aí, bem... Ah...
Era uma ironia de merda que ele soubesse usar aquela boca tão bem.
Ela supunha que Hassam precisara aprender a ficar bom naquilo... Já que uma
mulher precisaria ficar encharcada para tomá-lo dentro de si sem se contorcer
de dor. Mykaela particularmente não gostava daquele tipo de material... O
desconforto com o tamanho não costumava valer a pena.
Naquela vez, no entanto, ela tinha a impressão de que ele sabia o que
estava fazendo. E é claro que o mandaria parar se não estivesse sentindo
prazer, porque ela não era altruísta ou tola o bastante para priorizar as
vontades dele acima das dela. Havia outras formas de dar e receber prazer,
afinal.
Mas ah, como ele era incrível naquela forma em específico.
Mykaela tremia contra a boca de Hassam. A língua dele a provocava
enquanto a mão a estimulava, enquanto os dedos longos a masturbavam,
enquanto ele mesmo se tocava à medida que a fazia gemer entre ofegares
erráticos. E era errado, era errado de tantas formas...
Então qual era a razão de conseguir sentir apenas certeza em relação
ao que faziam?
Ela não aguentou, por fim. Sabia que estava perto, sabia que em breve
explodiria em prazer e êxtase, mas queria fazer isso com ele dentro dela.
Mykaela sempre sentira mais prazer com dois tipos de estímulo ao mesmo
tempo.
—Hassam — suplicou ela, tentando erguê-lo pelos ombros em gestos
um pouco desesperados. — Hassam, Hassam, Hassam...
Ele estava de pé no milésimo de segundo seguinte, o corpo forte a
pressionando contra o pinheiro, a boca faminta devorando a dela enquanto
suas mãos erguiam a saia de Mykaela e envolviam suas coxas com um
grunhido grave ao erguê-la no colo.
A guardiã se segurou nos ombros fortes e mordiscou o lábio inferior
do lupino quando Hassam se esfregou na intimidade dela numa provocação
deliberada.
—Dentro de mim — arfou ela, se impulsionando contra aquele
volume duro e latejante. — Dentro de mim agora.
Hassam rosnou, segurando-a pela coxa apenas com uma das mãos, e
porra de abismo infernal, obedeceu.
Mykaela se sentiu estirar com uma arremetida intensa, deixando
escapar um gemido agudo com a sensação de tê-lo preenchendo-a por inteiro.
Ela não estava brincando quanto à parte do “inteiro”.
Ele era enorme, enorme, enorme, mas não era tão ruim quanto temia.
A Platina ainda precisou de alguns segundos para se acostumar ao tamanho
desconcertante, contudo. Hassam estremecia a cada contração involuntária
dos músculos internos dela, afoitos para se ajustar à extensão e grossura do
lupino.
—Sim — sussurrou ela, depois de alguns instantes, usando as pernas
para se mover sobre o lupino. — Oh, isso...
Era estímulo o bastante para ele.
Um recuo, vagaroso, provocante, enlouquecedor.
Então uma arremetida dura que a fez ver estrelas e arquejar alto. De
novo, e outra vez.
Recuo. Arremetida. Recuo.
Mykaela estava gemendo na boca dele e se agarrando a cada trecho de
pele que conseguia alcançar. Ela movia os quadris em círculos contra Imanur,
esfregando o ápice do próprio prazer em gestos lânguidos, e pouco tempo se
passou até que perdessem a paciência para a provocação.
As mãos de Hassam a seguraram com força e Diana e estrelas, a
garota achou que poderia morrer de júbilo a cada estocada poderosa que fazia
seu ventre se contrair e formigar. Os sons que ambos emitiam ecoavam como
música entre as árvores, pura brutalidade suada e fogo ardente e intensidade
carnal. Ela não conseguiu nem ao menos se lembrar de quem era, que dirá do
desconforto que temia sentir minutos antes.
Seus seios foram descobertos e tomados pela boca do lupino em
algum momento, e a Platina teve uma verdadeira dificuldade em conter o
gemido alto que quase soltou. Ela o cavalgava enquanto uma das mãos de
Hassam a segurava e a outra se ocupava com o meio das suas pernas, e
Mykaela francamente não soube como ele ainda estava sustentando ambos
contra aquela árvore. A deusa sabia que ela já teria se desfeito em espasmos
no chão da floresta com o quão bambas suas pernas estavam naquele instante.
O impacto contra a madeira em suas costas era um eco distante em
sua mente, o esforço físico nada além de um incômodo insignificante.
Mykaela queria mais, ela o queria por inteiro.
A garota estapeou os dedos de Hassam para longe e assumiu as rédeas
do prazer com os próprios.
—Mais forte — soluçou ela, enquanto se agarrava a ele com uma das
mãos e se tocava naquele ritmo intenso e familiar com a outra.
O lupino se lançou em impulsos inclementes ao rosnar, pele e suor e
luxúria se chocando com força, segurando ambas as nádegas da guardiã para
impulsionar as estocadas firmes. Mykaela apertou as pálpebras com a
vontade de gritar e o beijou em desalento em vez disso, os movimentos
perdendo o rumo e a precisão entre suas pernas com a iminência do clímax
violento. Incrementando a pressão no ápice de suas coxas com a tensão
insuportável em seu baixo ventre, a garota ondulou por arrebatadores
segundos antes de jogar a cabeça para trás e deixar um gemido longo e
arrastado escapar.
O orgasmo a fez se retorcer e arquejar contra Hassam, os músculos
internos se contraindo a cada pulso longo de êxtase, e isso só pareceu
incentivá-lo a alcançá-la. As estocadas se tornaram erráticas, arremetendo
impiedosamente contra Mykaela, e um rugido contido entredentes
sincronizado com a explosão morna em seu interior a fez perceber... Merda,
como aquele som a deixava satisfeita. Como ouvir Hassam gozando —
gozando nela, para ela — a deixava saturada e preenchida por arrogância
feminina.
E gostou mais daquele som do que se permitiu assimilar naquele
momento.
—Puta merda, Kaelie — arquejava ele, os braços trêmulos com o
esforço de mantê-la erguida em seu colo. As coxas de Mykaela latejavam
com os apertões que provavelmente formariam hematomas leves em breve.
Ela não se importou nem um pouco. — Puta merda.
Ela sabia o que ele queria dizer, é claro que sabia. Nunca tinha sido
assim com ninguém, não numa primeira vez. Então sim, as palavras
ressonando na consciência extasiada da guardiã também eram uma sequência
infindável de “puta merda”.
—Quando posso vê-la de novo? — questionou Hassam, a testa colada
na dela à medida que ambos tentavam recuperar o controle sobre as próprias
respirações.
As farpas em suas costas começavam a incomodá-la.
—Nos vemos quase todo dia, Imanur — respirou, sem fôlego.
Uma risada baixa e maliciosa.
—Tudo bem — ele murmurou, então estocou dentro dela outra vez,
fazendo Mykaela soltar um pequeno grito de surpresa e, que a porcaria do
abismo a queimasse, deleite. — Quando podemos fazer isto de novo?
Ela devia ter respondido “nunca”. Devia ter respondido “nos seus
sonhos”.
Mas, talvez por culpa do orgasmo — o melhor que tivera em meses
inteiros —, do cansaço satisfeito, ou simplesmente pela maneira com que ele
a olhava depois de erguer a cabeça; o cabelo suado caindo sob a testa, as íris
castanhas queimando com o desejo e a súplica.
—Amanhã — resfolegou Mykaela. — Me encontre aqui amanhã.
Parte III
Escolhida Pela Verdade
Os dias se passaram como um borrão.
Entre as lutas no ringue, as obrigações como guardiã, as interações
com suas colegas de chalé e os momentos roubados com Hassam... Mykaela
verdadeiramente entendera a expressão que dizia que o tempo corria mais
rápido quando se estava fazendo o que gostava. Ela estava tão
vergonhosamente feliz que chegava a ser esquisito. Nunca tinha se sentido
tão... Disposta.
Acordava animada para os turnos de vigília, jogava conversa fora com
Othella e Eora durante o almoço, se encontrava com Imanur à tarde quando
podia e ia dormir com um sorriso tolo e exasperado no rosto.
E, do jeito que as coisas estavam indo, ela provavelmente acabaria
com o estoque de parafina da matilha em poucos meses.
Naquele primeiro dia, ela hesitara. Se perguntara se realmente valeria
à pena continuar aquele arranjo carnal com o lupino. Porém, passara a noite
se revirando no colchão pensando em como fora bom... O mero toque dele. A
sensação da pele quente contra a sua. A boca pecaminosa, as mãos calejadas,
o corpo torneado.
Então, na manhã seguinte, Mykaela o seguira até uma gruta na cadeia
de montanhas ao sul do território cuja passagem se dava por um trecho
íngreme e estreito de rocha pela lateral do Oldravon. A tenda de Hassam, por
maior que fosse (o miserável era o terceiro em comando, afinal), era
simplesmente muito exposta, e ela dividia o chalé com outras duas guardiãs,
então ele fora aquele a sugerir uma localização distinta para os encontros dos
dois. As corredeiras violentas do rio abafavam todo e qualquer barulho nos
arredores do lugar, ela percebera, depois de precisar gritar para que ele a
escutasse perguntando onde estavam indo.
A entrada era uma reentrância camuflada na pedra escura e úmida, e a
garota nem fora capaz de notá-la até ver Imanur sumir na abertura com um
sorriso perverso e piscar em surpresa.
Sua parte desconfiada a deixou com a guarda em alerta num primeiro
instante, — um esconderijo isolado onde ela não poderia gritar por ajuda nem
escapar com facilidade não era exatamente sua primeira ideia de diversão —
porém, quando atingiu o interior fresco e pouco iluminado da gruta que devia
ter algo em torno de poucos metros a menos que seu quarto, tudo que
conseguiu notar foram algumas peles e mantas no chão antes de Hassam
prensá-la contra a parede desnivelada e tomar sua boca na dele.
Valia a pena.
O que aquele simples beijo fazia com suas entranhas, suas pernas, sua
cabeça... Valia à pena.
Ela perdeu os sentidos naqueles lábios por longos e extasiantes
minutos antes de se afastar rosnando, um pouco sem fôlego.
—Não — ela o empurrou apesar do olhar de confusão no rosto do
lupino, apenas para prensá-lo contra a parede logo em seguida. — Você será
aquele a dormir com dor nas costas esta noite.
Hassam riu ao lamber sua boca, ao envolver sua cintura com os
braços, ao se esfregar nela com uma provocação tortuosa.
—A poderosa Platina está ressentida com algumas míseras farpas de
pinheiro?
—Tive de dormir de bruços — ela reclamou com um bico teatral,
enquanto tentava não sucumbir à vontade de rasgar a camisa dele em
farrapos. — Ainda não acho que tirei todas elas.
O sorriso sacana dele contornou sua bochecha, seu pescoço, seu
ombro, e as pontas dos pés de Mykaela se curvaram dentro das botas.
—Deixe-me ajudá-la com isso.
Ele a deixara quente e molhada com os dedos, então. A curvara sobre
os joelhos contra aquelas peles e a fizera implorar, o punho enrolado em seu
cabelo, a mão comprimindo seu quadril a cada estocada bruta, o gemido
grave arfando em seu ouvido a cada vez que a guardiã rebolava contra ele.
Então, quando estavam ofegantes e esgotados, parte do corpo de
Imanur em cima dela, a liberação ainda fazendo suas coxas estremecerem
com os espasmos finais, ele se jogara de lado nas mantas e rira feito o
canalha que era.
—Nenhuma farpa, Kaelie — arquejara, com um sorriso arrogante de
macho esticando suas cicatrizes. — Nenhuma sequer.
Mykaela lhe dera um soco no ombro, para logo em seguida subir em
cima do enorme corpo suado e beijá-lo até senti-lo endurecer entre suas
pernas novamente. Ela o guiara para dentro daquela vez, o cavalgara até
sentir que estava perto de colapsar, e atingira o clímax com a boca de Hassam
em seus seios, com os dedos dele no botão túrgido no ápice do seu cerne.
Imanur aprendia rápido, mas a Platina também tomava seu tempo
estudando cada gemido e reação dele.
À medida que os dias foram se passando, aprendeu que ele gozava
mais rápido em sua boca, mas o fazia com mais intensidade quando estava
dentro dela. Aprendeu que ele gostava de estar no comando, mas que não
tinha problema nenhum em deixá-la assumir as rédeas quando Mykaela assim
desejava. Aprendeu que ele tinha um apreço especial por imobilizar suas
mãos e fazê-la se contorcer, e por mais que uma parte dela achasse que
odiaria a experiência... Estava errada. Fora excitante e ardente e novo, como
tudo naquela relação com Hassam era.
Mas, acima de tudo, ela aprendera que ele gostava da sua companhia.
E isso talvez fosse o que Mykaela valorizava acima de tudo.
—Nunca corte seu cabelo.
Ela tomou um gole do cantil que havia passado a trazer aos encontros
com Imanur para tentar recuperar o ritmo com o qual seus pulmões deveriam
funcionar, os olhos escorregando para as mechas castanhas desgrenhadas
caindo pelo seu ombro nu.
Estavam se vendo há duas semanas, e ela estava certa de que acabaria
viciada no gosto dele, na sensação dos seus beijos, no êxtase dele
preenchendo-a. Deixava uma fração sua preocupada e isso a fazia agir como
se não passasse de algo corriqueiro, mas quanto mais se encontravam, mais
ela o queria.
—Isso é uma ordem, Imanur? — suas sobrancelhas se ergueram em
desdém.
O lupino alcançou seus fios cor de caramelo, os dedos se entremeando
por entre eles com reverência.
—É um favor que estará fazendo a si mesma — a observou de
soslaio. — Ele é lindo.
Seu cabelo não tinha nada de especial. Ela passava tanto tempo com
ele preso que mal se lembrava da sensação das mechas balançando até o meio
das suas costas. E odiava quando ele ficava caindo em seus olhos ou
restringindo seus movimentos.
Mas seu olhar se prendeu no de Hassam naquele instante, e ela soube
que nunca esqueceria aquele elogio, aquela simples constatação casual.
Mykaela desceu a boca contra a curva do pescoço dele, e Imanur
soltou um gemido sôfrego.
—Inferno, Kaelie. Você quer me matar, não quer? — arquejou ele,
enquanto os lábios dela desciam pelo peitoral moreno, pelo abdômen rijo,
pela ereção já crescendo imponente entre suas coxas.
A mão dele se fechou ao redor dos seus fios castanho-claros quando a
língua da guardiã contornou o topo daquele volume pulsante, e uma risada
baixa lhe escapou em resposta.
—Entendi por que gosta do meu cabelo.
Ele respirava com dificuldade ao descer as íris castanhas anuviadas
com a luxúria na direção dela.
—Com certeza não foi a isso que me refe...
Ela o enfiou na boca e o protesto se perdeu na garganta de Hassam,
substituído por uma prece engasgada.
Suas horas com ele se resumiam a isso. Suor e saliva, gemidos e
arquejos, combustão e cansaço... Tudo isso intercalado com comentários
ocasionais, diálogos irrelevantes e sorrisos roubados. Os dois só conseguiam
se encontrar nos horários de folga de Mykaela, e isso quando Hassam não
tinha algo a fazer na própria matilha, mas era perceptível que Imanur parecia
tão absorto quanto ela, que desejava aqueles momentos tanto quanto ela.
E eles eram tão discretos quanto possível, mas era difícil esconder
suas escapadas das duas licantropas que viviam debaixo do mesmo teto que a
Platina.
—Você está se dando bem, não está? — Eora perguntou durante um
almoço, a face preenchida por uma diversão maliciosa.
—Por que não se renega a abrir a merda da boca só quando algo de
útil for sair dela, Feuer?
Othella rira, apontando o garfo para sua expressão emburrada de
modo acusatório.
—Oh, ela está irritada. Ela só volta a ser uma vaca conosco quando
está irritada, então acho que seu palpite acertou na mosca.
—Cale a boca você também, Benikov.
—Quem é? — a Quartzo deixou o garfo de lado para plantar o queixo
nos punhos e observá-la em expectativa, como uma velha fofoqueira. — Pode
contar, sabe? É aquele lupino que mencionou?
—Imanur? — Eora arregalou os olhos, quase engasgando com um
pedaço de alface roxa.
—Não, concluímos que não era Imanur, lembra? — Othella negou
quase que de imediato, poupando Mykaela de uma bela e reveladora
taquicardia. — Vamos, pode dizer!
—Não tenho porcaria nenhuma para dizer — ela se levantou, o prato
oscilando por pouco em suas mãos. — Enfiem os narizes enxeridos na bunda
de outra pessoa.
Seus dedos tremiam de leve, mas a garota apertou a porcelana até sua
pele ficar branca antes que suas risonhas colegas de chalé notassem.
Ela não sabia por que continuava escondendo as coisas com Hassam,
mas simplesmente se acostumara a fazê-lo. Era mais confortável ter um
refúgio com ele, um lugar secreto onde poderia ser outra pessoa por inteiro,
esquecer de tudo e todos entre os braços dele. Uma parte sua se perguntava se
acabaria tendo vergonha do que faziam, mas então sua parte restante
questionava: vergonha do quê?
Era adulta, era capaz de tomar decisões sozinha, era dona do próprio
corpo e da própria liberdade. As respostas que antes lhe ocorreriam àquela
indagação — ele é um lupino, ele é um monstro, é uma besta-fera, é o
inimigo — soavam inconvenientemente como coisas que Eiko diria, que seu
pai diria, coisas que tinham enfiado em sua cabeça e lhe acostumado a
aceitar.
Então Mykaela continuou se encontrando com Hassam, continuou
encontrando prazer e júbilo em cada pequeno momento com ele.
E se viu livre de amarras, livre de preconceitos, livre de coisas que
antes só lhe limitavam.
Se viu feliz.

—Mykaela, o que acha?


—Não tenho nem ideia do que está falando.
Howl ergueu uma sobrancelha zombeteira na sua direção.
—Qual parte, exatamente, você perdeu?
—Todas elas.
—Não prestou atenção em nenhum dos últimos quinze minutos nos
quais discutimos o procedimento de defesa passiva que utilizaremos na
reunião em Folkov? — o beta pestanejou.
—Nenhum mísero segundo.
—Pode me explicar o que está acontecendo com você hoje?
—Pode me explicar o que aquela coisa está fazendo ali hoje?
Yan franziu a testa para a carranca acusatória no semblante da guardiã
— e para o dedo agressivamente apontado na direção do pequeno embrulho
resmungando de forma suave em seus braços.
—Rajar está quieto. Pare de antagonizar meu filho.
—Só se a fralda dele parar de antagonizar minhas narinas.
Foi a vez do alfa comprimir os lábios numa careta compadecida.
—Acho que ela tem razão, Seyworth.
O beta consolou o monstrinho com um beijo na testa antes de se
levantar da cadeira e sorrir quando o projeto de gente em seu colo soltou um
ruído agudo.
—Acho que perdi boa parte do olfato depois de meros dois meses
com Rajar. Do que está rindo, Reiters? Muito em breve será você no meu
lugar — o beta se virou para ela. — A bolsa dele está em cima do armário
atrás de você, Skies. Pode por favor pe...
—Não.
Howl revirou os olhos e se dirigiu até a sacola de tecido recheada de
coisas de bebê.
—A bolsa não vai te passar uma doença, Mykaela.
—Não vou tomar sua palavra como garantia, obrigada — ela expôs os
dentes, apesar do tom doce.
—Enfim — fez o segundo em comando com um suspiro, enquanto
embalava o embrulho loiro com uma mão e pegava a bolsa que Howl lhe
ofereceu com a outra. — Estávamos debatendo a escolta para a viagem a
Leyan no fim de semana. Como a Ônix ficará aqui comigo para ajudar na
administração da alcateia, você, Meistens e a Granada irão com Howl e Safira
no encontro anual de alcateias em Folkov.
—E eu sou a única achando arriscado enviar uma grávida de trinta e
seis semanas numa viagem intercontinental?
As feições do alfa se torceram de uma maneira que dizia “com
certeza, não”.
—Não consegui fazê-la desistir — Reiters expirou, esfregando o rosto
de uma maneira frustrada. — Kiara disse que é um evento importante e Safira
não quer ter que esperar mais um ano para comparecer à cerimônia. Estão até
levando o projeto de lupino junto.
—E vocês tolos querem que eu faça o quê? Apague a garota e lhe
prenda o tornozelo no pé da cama?
Vaska normalmente lidava com esse tipo de reunião e planejamento,
mas hoje era seu dia de folga e ela estava com Tenna na matilha lupina. A
Ônix nem era a licantropa mais indicada para se levar assuntos a sério no
geral, mas o pavio curto da Platina também não tornava nada mais fácil
naquele tipo de discussão.
—Não há nada que possamos fazer em relação à Diana ou à
obstinação dedicada dela.
—Você quer dizer teimosia irritante — grunhiu Howl.
—Mas estamos considerando levar um quarto guardião, já que Kiara e
Calan também comparecerão e será algo grande... — disse Yan, as mãos
habilidosamente se livrando do pacote pútrido que aquela coisa minúscula
produzira. — Nem que seja pelas aparências.
A garota inclinou a cabeça, deixando escapar antes que pudesse
pensar melhor a respeito:
—E Imanur?
Howl e Yan se viraram para ela com expressões idênticas de
confusão.
—Carcaças? — indagou o alfa.
—Ele é padrinho do menino lupino, não é? — ela armou um
semblante cuidadoso de descaso. — E o tamanho dele supera boa parte dos
licantropos aqui. Se quiserem causar uma primeira impressão impactante às
outras matilhas, a aparência dele seria mais do que suficiente.
Hassam tinha lhe contado que Calan era não somente seu primo em
segundo grau, mas também seu afilhado. Ele ajudara a criar o menino depois
da morte de Fergus Desymer, o antigo alfa lupino e companheiro de Ruby.
Mykaela não queria ter deixado o fato de que sabia dessa informação sair de
modo tão relapso, mas tudo que podia fazer agora era agir como se aquele
parentesco fosse de conhecimento geral.
Estúpida, estúpida, estúpida.
Por que mencionara Hassam? Aquela não seria uma viagem de férias,
Mykaela estaria a serviço dos líderes da sua matilha. Misturar seu trabalho
com o macho com quem dormia não poderia dar em nada de bom.
—Acho... Acho que a Platina pode ter razão — Howl assentiu na
direção dela, satisfação cintilando nos olhos dourados. — Hassam Imanur
com certeza é um homem na medida certa entre o amedrontador e o
impressionante, o que é bom quando não sabemos o que esperar das matilhas
de Ellayi. Ele poderia aceitar ir para manter os olhos em Calan.
Às vezes Mykaela ficava estarrecida com o quão resolvido com os
traumas do próprio passado Reiters era. Ambos os pais haviam morrido nas
mãos dos lupinos, a matilha que ele agora comandava sofrera inegavelmente
com aquela guerra... Mas ali estava o macho, erguendo a cabeça e tentando
manter a paz. Não exatamente esquecendo o histórico com as bestas, mas
sim, fazendo vista grossa, porque ou era isso ou era continuar com a batalha
secular que havia tomado centenas de vidas da alcateia deles.
Por anos, Lother envenenara a cabeça de Howl a respeito das feras e
ainda assim ele continuara são o bastante para fazer o que era certo quando a
hora chegara. Mykaela tinha inveja disso. Ela sempre hesitava, quando se
tratava dos lupinos... Mesmo quando se tratava de Hassam.
Por isso o pânico estava travando sua garganta naquele momento, por
isso cada nervo em seus membros e músculos gritava em protesto.
—E é uma boa maneira de inserir os lupinos no contato com o
continente, mostrar confiança —o beta passou os dedos pelo maxilar
reflexivamente ao concordar com o alfa. — É uma boa ideia, Mykaela.
Não é, gemeu ela internamente. Ah, mas não é mesmo.

Calan soltou um assobio baixo diante do pórtico de mármore azul-


noite na entrada da Morada dos Lares do Luar, a face tomada por assombro.
Mykaela também ficara impressionada, na primeira vez. A pedra lisa escura
parecia reluzir como se a própria luz da deusa e as estrelas reluzissem de
dentro do material.
—Espere até ver o das Cavernas do Crepúsculo — Kiara sussurrou
para ele, deslizando corredor adiante em seu vestido de peles castanhas com
um sorriso de orgulho. — É feito inteiramente de metais e pedras preciosas.
A Platina só tinha visto outro dos pórticos, o da Morada das Selvas do
Sol, uma monstruosidade coberta de folhas exuberantes, plantas exóticas e
galhos trançados em ouro e padrões intrincados, mas ainda havia o das Águas
da Aurora, do lado noroeste da capital.
As relações diplomáticas de Kiara normalmente se retinham àquela
parte de Folkov, no entanto, já que o halfions com descendência de Diana
viviam entre as duas divisões daquela morada.
O grupo caminhou estrutura adiante guiados por duas Pravka-
Argentae — e Mykaela manteve os olhos em cada arco pomposo de marfim,
em cada abóbada pintada com afrescos em homenagem a Diana, em cada
vitral ricamente colorido e montado, mas nunca no homem silencioso
andando alguns passos atrás dela.
Mas a guardiã podia sentir os olhos de Hassam queimando suas costas
sem problema algum.
Eora estava rindo e comentando algo com ele a respeito de toda a
ostentação da sede na arquicidadela, mas a garota sabia que apenas metade da
atenção dele estava concentrada no tópico. Quando Imanur se interessava por
algo de verdade ou queria realmente que seu ouvinte se sentisse... Bom,
ouvido, ele focava as íris castanhas no infeliz e assentia e comentava de modo
inteligente, perguntava a respeito e demonstrava curiosidade. Mykaela sabia
disso porque quando eles eram aqueles debatendo, o lupino tinha a irritante
habilidade de deixá-la completamente envolvida no diálogo apenas ao
mostrar que estava escutando, que gostava de trocar ideias com ela.
Por isso, naquele momento, Hassam estava só parcialmente dando
crédito à Granada e sua tagarelice incessante — era um traço de família — e
a Platina se sentiu um pouco mal por apreciar esse fato. Ela tinha pensado em
dar um toque em forma de tapa na nuca em Eora mais cedo, porque aquela
pequena tola parecia querer investir em Imanur quando mal tinha saído das
fraldas, mas nem ao menos fora preciso. Ele estava sendo simpático com a
projeto de Feuer, é claro, porém nada além do distantemente polido,
solicitamente respeitável.
Mykaela gostava dos seus machos assim.
Espertos.
Caso contrário, eles acabavam fraturando um ou dois ossos por
acidente e simplesmente perdiam a graça para ela. Bem que queria ter dado
algumas cicatrizes a Howl pelo negócio com Safira por suas costas, mas,
depois do que fizera à alcateia ao libertar seu irmão, não achou que fosse
mais estritamente necessário.
E nem havia nada estabelecido entre eles de modo exclusivo,
contudo... Contudo Hassam de certa forma sabia que, no instante em que
Mykaela sentisse o cheiro de outra fêmea nele, o acordo acabaria. Ela ficaria
furiosa, irada, colérica — e muitas outras definições para “absurdamente
fora de si de raiva” — e talvez um pouco desolada, mas acabaria.
Por isso esperava o mesmo dele, e por isso mantinha sua arcada de
interação com outros machos bem baixa. A guardiã já não gostava de
interagir com desconhecidos antes, de todo jeito.
E havia muitos desconhecidos na arquicidadela. Nobres, mercadores,
políticos, conselheiros, operários, criados. A Morada dos Lares do Luar era
uma versão bem mais desenvolvida e rica do território deles em Ultha,
explodindo com integrantes e bens materiais.
Naquele primeiro dia eles teriam uma comitiva de apresentações no
salão principal da Morada, onde Howl, Safira e Kiara seriam formalmente
introduzidos às outras as matilhas, e as mesmas seriam introduzidas a eles.
Mykaela estava até usando o uniforme formal de inverno da guarda, com
golas forradas nas mangas, camadas extras nas articulações e couros curados
reforçados.
Quando chegaram à entrada, no entanto, uma das Pravka-Argentae
deixou Calan e o restante dos guardiões de sobreaviso:
—O portal está encantado — ela indicou a batente com a cabeça. —
Apenas a entrada de sangue alfa é permitida.
—Espera que entremos sem escolta? — Howl inclinou a cabeça de
um modo não muito amigável, e a soldada se remexeu imperceptivelmente
nos calcanhares.
—Não há nada que eu possa fazer a respeito, meu senhor. Todos os
comitês estão sujeitos à regra. Alguns dos mais importantes líderes do
continente estão ali dentro.
E qualquer um podia representar uma ameaça.
Mykaela, como a guardiã encarregada do restante deles, resmungou a
Will e Eora:
—Circulem pelo perímetro.
Os dois deram meia-volta e obedeceram sem hesitação, e a Pravka-
Argentae ainda tentou argumentar quando o restante deles seguiu em frente:
—Mas...
Howl, Safira, Kiara e Calan passaram sem problema algum. Mykaela
sentiu a magia soprar como uma barreira de vento em sua pele quando ela
atravessou a entrada, resistente no início, mas cedendo no fim. Pelo canto da
visão, ela viu o mesmo ocorrer com Hassam.
Os dois estavam distantes da linhagem alfa original — seu pai, uma
vez líder, já estava morto, e Imanur era primo de Fergus Desymer, parente de
Calan — mas ainda foram aceitos pelo encantamento, mesmo que de forma
relutante. Ela viu alguns dos comitês lhes observarem em desagrado ao
notarem o fato; muitos ali não tinham sido permitidos nem ao menos um
soldado como escolta graças à barreira, que dirá dois.
Safira se tornou o centro das atenções em pouquíssimos instantes, e
Mykaela se fez ficar a um mero passo de distância dela em todos os
momentos. Como uma Diana e Lunar que carregava a criança de um
descendente direto de Hila, todos queriam parabenizá-la, se aproximar dela,
ouvir a respeito da sua história e ganhar um pouco da sua atenção. A pobre
garota parecia uma atração de museu ambulante.
Um dos herdeiros licantropos de a deusa-sabia-onde chegou a tentar
alcançar os dedos dela para beijar o dorso da mão de Reiters, mas as garras
da Platina alcançaram o pulso dele primeiro.
—Sem tocar — rosnou, a face implacável.
A Diana deixou um suspiro suave escapar.
—Obrigada, Platina, mas o jovem cavalheiro se comportará melhor
daqui em diante. Pode soltá-lo.
A guardiã obedeceu, ainda encarando o desgraçado como se quisesse
destripá-lo para o jantar, e o comportamento dele ficou bem mais agradável
assim que o rapaz correu dali na direção oposta depois de poucos instantes de
conversa mole.
—E eu pensando que teria alguns minutos de descanso da
territorialidade insana licantropa quando Howl foi pegar uma bebida.
Howl não precisava de uma escolta, então Hassam estava
acompanhando Kiara e Calan, e ela estava como babá da procuradíssima
Filha da Lua.
As duas deslizaram pelo salão, caminhando devagar, Safira acenando
de forma educada para quem a cumprimentava, Mykaela esquadrinhando
cada parte da estrutura pela terceira vez com uma análise minuciosa e
incansável.
—Não conhecemos quase ninguém aqui. Não pode deixá-los tocá-la
dessa maneira, como se fosse um totem abençoado — Mykaela repreendeu,
em baixa voz. — Esse continente tem contato próximo com magia. Muitos
dos lobos aqui são híbridos, podem ter habilidades místicas.
—Dalila lançou proteções em mim e no bebê.
—Melhor prevenir do que remediar, Reiters.
Safira revirou os olhos, mas não discutiu. Ela já tinha visto do que o
coven nortenho era capaz... Mesmo uma garotinha como Lacy tinha um
poder inimaginável e destrutivo nas mãos, caso usado de maneira errada. E
não era fácil neutralizar todas as ameaças com alguns feitiços de proteção.
Mykaela não deixaria Reiters pegar nem ao menos um resfriado sob sua
guarda.
Kiara passou a guiar as introduções formais depois de algum tempo, e
isso deu proximidade o bastante à Platina para que Hassam conseguisse
indagar:
—Quantas armaduras você já contou nesse lugar?
Ela riu baixinho.
—Dezoito.
—Vinte e duas.
—Patéticos.
Uma coisa era vestir roupas de frio na forma humana — outra
inteiramente diferente era se enfiar em metais ornamentados que levariam no
mínimo meia-hora para serem desafivelados e retirados. Todos ali eram
lobos, pelo amor da deusa. A maioria dos lupinos de Leyan (também
incluídos naquela reunião) eram como Hassam; de linhagem longa e pura,
poderosos o bastante para acessar a besta na forma humana. No entanto, a
grande maioria usava corpetes e capas e camadas infindáveis de saias e
casacos. Nada práticos para luta ou mesmo movimentação brusca. Os couros
de Mykaela podiam ser grossos, mas ainda eram moldáveis, macios,
permitiam liberdade.
Tudo bem que Leyan não costumava viver em guerra constante como
Ultha, mas... A garota nunca tinha parado para pensar que sua espécie podia
parecer tão... Humana.
—Cinco machos me perguntaram se a princesinha estava disponível
para matrimônio — bufou Imanur, com uma careta. — Cinco.
—Ela é uma figura à parte, não há como negar. O que você
respondeu?
—Que não, é claro
—Quão conveniente para Calan.
—Ela tem dezessete anos.
—Mas já se transformou. É madura o suficiente para acasalar e
procriar, de acordo com as nossas tradições — disse Mykaela, desgostosa.
—Suas tradições são uma merda.
—Como se humanos fizessem muito diferente.
Ela também não apreciava aquele hábito detestável em nada, mas já
tinha ouvido falar de meninas nobres em Ultha se casando com treze —
assim que suas regras mensais desciam pela primeira vez. Era monstruoso,
porém ainda era o mundo em que viviam.
—Howl não dará a mão dela em casamento a ninguém aqui, não se
não for da vontade dela — a Platina lembrou, não com pouco alívio. —
Graças à deusa por isso.
Ela tinha ouvido que em Leyan as fêmeas já tinham bem mais
autonomia, mas em Ultha jovens lobas ainda costumavam ser tutoradas por
um macho mais velho da família. Reiters deixava a caçula agir como bem
queria, como devia ser de praxe, mas ele era um dos poucos. Muito progresso
ainda precisaria ser feito na alcateia deles — mas pelo menos já tinham
começado. A guarda tinha números equivalentes entre machos e fêmeas
agora, por exemplo, e Safira havia emitido um decreto de ajuda financeira
condicionada para mães solteiras na matilha.
—Ninguém teria ao menos a coragem de pedir a mão dela em
casamento a ele se conhecessem a fama de Quebra-Fêmur como conhecemos.
Assim como a alcateia tinha dado nomeações aos ceifeiros —
Carcaças, Perdição, Sombras —, os lupinos mais letais entre seus antigos
adversários, as feras também haviam batizado alguns dos combatentes dignos
de nota entre os licantropos. Howl era Quebra-Fêmur, Vaska era Noite-
Dentada, Zyhe costumava ser Flagelo-dos-Tolos.
—Eu tinha um desses? — ela indagou, subitamente curiosa. — Um
nome careta e aterrorizante entre os seus, quero dizer.
Um sorriso lento e maldoso se abriu no rosto do lupino.
—O que me dará em troca se eu disser?
Aquele olhar fez seu âmago se contorcer, mas Mykaela se obrigou a
expressar tédio para qualquer um olhando de longe.
—Considerando que posso ir até Calan e fazê-lo falar em poucos
segundos, basicamente nada.
—Deuses, você tira a graça de tudo — ele grunhiu. — Seu título entre
os meus, cara Platina, era Destroça-Gargantas.
Bom... Era realmente a maneira mais fácil de se matar um lupino, se
você conseguisse alcançar a jugular como ela costumava conseguir. Sua tia
tinha morrido desse jeito — as bestas que caíram sob as garras ou presas de
Mykaela tiveram o mesmo destino.
Ela deu de ombros.
—Apropriado.
—Você é adorável, realmente.
—Ora, que gentileza sua notar esse fato — a guardiã provocou.
Hassam abriu a boca para retrucar algo espertinho e irritante, com
toda a certeza, mas Safira se voltou para eles de súbito, se dirigindo a
Mykaela:
—Aparentemente teremos um baile de boas-vindas mais tarde, mas
não acho que meus tornozelos vão durar para a noite se eu permanecer mais
um segundo aqui — ela pousou a mão na barriga avantajada de modo
exasperado. — Kiara insiste que Howl fique, algo relacionado com permutas
comerciais e tratados políticos. Pode me acompanhar até nossas instalações?
A Platina meneou a cabeça, enfiando o desapontamento por sua
interação com Imanur ter sido interrompida num lugar inóspito da sua mente.
—Minha senhora.
Safira riu baixo enquanto se afastavam da comoção do centro,
caminhando na direção do portal encantado.
—Nunca vou me acostumar com você me chamando de “minha
senhora”.
—Tenho de manter as aparências para esses tolos empavonados em
cada esquina.
—Não preciso lembrá-la de que está num salão cheio de criaturas com
audição superdotada, preciso? — a Diana ergueu uma sobrancelha sarcástica.
—Kiara pode ralhar comigo pela falta de habilidades diplomáticas
mais tarde.
A gargalhada dela ecoou pelo corredor extenso e pomposo outra vez.
—Certas coisas nunca mudam, Skies.
Um pequeno sorriso curvou os lábios de Mykaela.
—Não, Reiters. Não mesmo.

—É uma região ensolarada no norte da Benívea. Com certeza já deve


ter ouvido falar.
—Não — Mykaela respondeu, direta e seca. — Nunca.
Ela lera a respeito das espécies e dos reinos ellayishes para as viagens
a serviço da guarda — não porque fora ordenada ou porque gostava do
tópico, mas porque não queria chegar num território desconhecido
despreparada para as possíveis ameaças lá contidas. Um volume da biblioteca
de Ulsa falava sobre o povo benivês; a cultura mais diversa do continente, o
reino mais miscigenado dentre todos os outros, se mantinham
majoritariamente neutros nos conflitos internacionais justamente pelo fato de
abrigarem integrantes de todas as espécies na nação — e ela parara por ali,
então não tinha a menor ideia sobre qual região ensolarada aquele tolo babão
estava tagarelando a respeito.
Só o casaco caro e imaculado fizera a Platina torcer o nariz para ele
desde a primeira sílaba. O cabelo ruivo longo estava preso na nuca por uma
pequena presilha de ouro, os dedos cobertos de anéis do mesmo material, e o
infeliz gostava tanto de falar sobre si mesmo que nem ao menos notava que a
guardiã estava sendo terminantemente rude em suas respostas monossilábicas
apenas para afastá-lo.
A miríade de cheiros diferentes no gigantesco salão abarrotado fazia
seu nariz coçar e o barulho das conversas não lhe deixava focar nas vozes de
Safira e Howl com precisão o bastante — o que consequentemente também
lhe fazia ter de sair para procurá-los com frequência, mesmo que não
estivesse em serviço. Além disso, o álcool era fraco, porque a festa também
fora aberta a familiares mais novos e às escoltas dos comitês, e licantropos e
lupinos bêbados representavam dores de cabeça mesmo para uma estrutura
tão bem preparada como a sede da arquicidadela. Mykaela até recebera a
noite de folga, já que havia Pravka-Argentae explodindo aos montes pelos
poros do lugar, mas ela não gostava de baixar a guarda num lugar tão grande
e com tantas pessoas não confiáveis. Estava mantendo a compostura, apesar
de seu único desejo no momento ser tirar aquela roupa na qual Kiara lhe
enfiara contra sua vontade e cair na cama com a eficiência de uma marreta.
No entanto, mais uma mísera palavra daquele sem noção à sua frente
a faria jogar a compostura pela janela de vitral junto com a carcaça infame
dele.
—Estou com sede — ela latiu de súbito, dentes arreganhados e olhos
faiscando. — Acho que vou pegar uma água.
—Não se incomode — disse o macho de quem ela nem ao menos
lembrava o nome. — Permita-me ir buscar um copo para você.
Assim que ele virou as costas, Mykaela sumiu na multidão, tendo que
erguer as barras do vestido até quase acima do tornozelo para não tropeçar na
maldita coisa. Era um lindo modelo, tinha de admitir: o tecido verde-escuro
era justo na cintura, valorizava seus seios medianos com um decote quadrado,
as camadas de saias lhe mantinham aquecida e as bainhas de veludo negro e
grosso davam o toque final de elegância. Não era nada funcional para uma
emergência ou uma luta, mas atraía olhares e chamava atenção para os
atributos certos em seu corpo esguio, em seu rosto anguloso.
A Platina sabia que tinha uma beleza que muitos consideravam
clássica — cílios longos, maçãs do rosto altas, queixo fino, lábios rosados.
Ela até teria gostado de se sentir apreciada em uma outra ocasião, depois de
tanto tempo sendo renegada pelo noivo e pelos machos da própria matilha,
mas não naquela ocasião. Naquela ocasião, havia apenas uma pessoa em
especial de quem ela queria atenção e a garota já não o via há uma boa hora.
Antes que pudesse se render aos próprios anseios e procurar Imanur,
Eora e Drania Diaspur a abordaram no caminho para o banquete com sorrisos
receptivos.
—Você por acaso já viu tanta gente junta no mesmo lugar? — a
Granada indagou, os olhos reluzindo contentamento e talvez um pouco de
ludíbrio alcóolico. — Mesmo Yundra disse que as cerimônias no palácio em
Petrion não eram tão grandes ou luxuosas.
A bruxa curandeira tinha vindo com eles — com Meistens, na
verdade — por causa de Safira, caso algo acontecesse de inesperado ao bebê,
mas agora estava rodopiando alegremente com o bobo apaixonado pela pista
de dança. Muitos casais ali eram formados por indivíduos de espécies
diferentes, percebera Mykaela, e isso a deixara mais satisfeita do que se
permitiria reconhecer.
—Espere até amanhã de manhã para ver o que esse vinho importado
fará com a parte do luxo — a primeira-tenente da alfa-mor bufou, observando
o salão ao redor com nada além de indiferença. — Moitas vomitadas, vasos
milenares em pedaços, partes de vestuário espalhadas pela Morada inteira.
—Eu bem notei a tendência promíscua dos lobos desse lugar — disse
Feuer, os olhos dourados arregalados. — Dois machos começaram a emitir
zumbidos de acasalamento para mim depois de meros minutos de conversa.
Achei que isso só acontecia num estado mais... avançado... Nas relações
íntimas.
Drania riu.
—Acho que vai descobrir que os licantropos de Ellayi vão um pouco
mais direto ao ponto. Principalmente com a motivação alcóolica.
Mykaela ergueu a própria taça na direção do rosto com uma
sobrancelha erguida.
—Está me dizendo que esse vinho aqui faz tudo isso?
—Você se surpreenderia com o quão fraca para bebida a maioria aqui
é.
Muitos licantropos não gostavam de abusar do álcool, era verdade.
Incomodava os sentidos aguçados, podia engatilhar uma transformação
involuntária, desorientava os instintos ao extremo e a ressaca era
positivamente abominável. Mas Mykaela costumava beber, portanto já tinha
enchido a própria taça quatro vezes e não se sentia nem alegre.
A Platina jogou mais um pouco de conversa fora com Drania e Eora,
porém, logo se cansou de assistir às valsas e de procurar pelos seus quatro
protegidos incessantemente pelo recinto. Ela já não gostava das celebrações
às quais tinha de comparecer como noiva de Howl, com certeza não gostava
daquelas que tinham trinta vezes mais convidados e cem vezes menos
diversão. Pela primeira vez, a guardiã apenas se permitiu confiar na
segurança reforçada das Pravka-Argentae e deixou o salão com um suspiro
de alívio pelo ar fresco batendo em seu rosto ao sair no corredor.
Teria ido direto para o quarto e arrancado aquele vestido — talvez se
dispusesse a enterrá-lo no jardim — quando aquilo lhe atingiu no caminho
para o andar onde a comitiva de Ultha estava alojada.
O cheiro dele.
Não só perceptível, mas acentuado. Convidativo. Excitado.
Ela aprumou os ombros em expectativa e seguiu o aroma de cedro e
limão até a porta de uma sala de estar isolada no andar superior, parcialmente
iluminada por velas e graciosamente preenchida por sofás e estantes altas.
As mãos de Imanur envolveram sua cintura por trás antes mesmo que
ela conseguisse trancar a porta depois de se esgueirar para dentro, o torso
quente pressionando suas costas de modo familiar.
A garota se sentiu derreter instantaneamente, e cada nervo tenso com
o estresse e a impaciência devido ao baile se desfez em calor e conforto e
anseio. Era o que Hassam fazia com ela. Era o que cada parte nela reconhecia
nele como paz e desassossego de modo simultâneo.
Era algo que ainda não entendia, que não sabia se conseguia sequer
fazê-lo, mas que ainda desejava com cada fibra do seu ser.
—Senti sua falta — ele murmurou, a voz rouca fazendo um sorriso se
abrir sem querer no rosto da garota.
—Está bêbado, Imanur?
Uma risada grave e seca.
—Tomei dois cálices de vinho — ele escorregou beijos pelo seu
pescoço de maneira provocante. — Eu e você sabemos que eu precisaria de
bem mais do que isso para ficar ao menos tonto.
Hassam não estava brincando. Mykaela já o tinha visto engolir
metade de um barril de cerveja preta sem ao menos cambalear. Aquele ali
devia ter sido amamentado com álcool em vez de leite.
—Então o que é? — ela indagou, as mãos subindo preguiçosamente
pelos braços dele, inclinando a cabeça para lhe dar mais acesso.
Os dedos do lupino se apertaram em sua cintura.
—O que é, Mykaela... — as palmas calejadas desceram e
pressionaram suas nádegas contra a frente das calças dele. — É que eu
esperei a porra do dia todo para te tocar. É que tive de andar atrás do grupo
inteiro para esconder a ereção que essa merda de roupa me deu quando te vi.
É que te observar sendo devorada pelos olhos de todos os homens naquele
salão me deixou com vontade de separar as cabeças de todos eles dos corpos
miseráveis.
Então o toque dele estava em seus seios, no meio das suas pernas por
cima do tecido, e ela mal conseguiu achar forças para resfolegar:
—Ciúmes, Imanur?
—Tenho certeza de que passei da fase dos ciúmes há umas boas duas
horas — ele rosnou em seu ouvido, os dedos agarrando sua carne com a
própria definição encarnada de possessividade. — Se eu não tivesse saído do
salão, teria arrancado as bolas daquele filho da puta engomadinho babando
em cima de você com uma colher de sobremesa.
Mykaela riu baixinho.
—Achei que você era mais composto que isso.
—Você é minha, Kaelie — o resvalar da língua dele em sua pele se
tornou um resvalar de dentes, e o gesto territorial fez um arrepio correr direto
até o centro das suas coxas. — Minha.
—Não sou a merda de um objeto, Imanur — ela rosnou de volta, as
unhas se fincando no antebraço definido do lupino em desafio e provocação.
— E não sou de ninguém.
—Minha ruína — os lábios profanos de Hassam deslizaram por seus
ombros, sua nuca, os dedos desfazendo os nós do corpete em suas costas de
forma impaciente. — Minha sina e minha perdição. Minha derrota, minha
Kaelie. Toda. Minha.
—Talvez eu precise de um macho menos ciumento. Todo esse zelo
agressivo não costuma me agradar.
A gargalhada grave e baixa dele fez cócegas em sua pele, as palmas
agarrando suas coxas e lhe prendendo contra ele.
—Está me dizendo que vou enfiar os dedos entre as suas pernas e não
te encontrar encharcada, Kaelie? Mentirosa — a risada se tornou um sussurro
rouco, a proximidade enlouquecedora fazendo-a se esfregar nele
involuntariamente. — Vá em frente e procure um dos machos nobres naquele
baile pomposo. Nenhum deles te fará gritar como eu faço. Nenhum te deixará
escorrendo e implorando como eu deixo.
E não seria nada além da mais absoluta verdade. Nenhum daqueles
machos era ele — e nenhum daqueles machos reclamaria a respeito de
ciúmes e não daria um ataque de possessividade na frente de todos. Ela nem
sabia se Howl resistiria ao instinto. Hassam fora embora do salão, no entanto,
porque sabia que algo do tipo a deixaria bem além de furiosa com ele.
Antes que terminasse irrevogavelmente envolvida por aquela
constatação, apelou:
—Sempre voltando à carta de bruto convencido, não é Imanur? —
arfou ela, comprimindo o toque dele contra seu cerne, exigente e irrequieta.
—Se você não me olhasse como se quisesse me lamber a cada vez
que uso esse às, eu já teria parado de jogá-lo na mesa para iniciar a partida.
Foi a vez de um riso baixo deixar os lábios da guardiã.
—Justo.
Hassam impulsionou os quadris e ela deixou um gemido escapar com
o contato ardente enquanto o lupino erguia seu vestido com puxões afoitos.
—Sabe que eu amo observar o contorno da sua bunda naqueles couros
o dia inteiro — murmurou contra sua bochecha, as mãos serpenteando por
baixo do tecido grosso. — Mas deuses, como essas saias são práticas.
Engraçado, Mykaela estava começando a apreciar a utilidade das
malditas coisas justamente pelo mesmo fato.
—Te tomar nessa parede — ele vociferou, quando a Platina usou os
braços para se firmar na porta e se empinar contra Imanur. — Ou te lamber
naquela mesa. Escolha.
—Tenho que me decidir só por uma das opções?
Hassam rosnou e a girou num puxão brusco para jogá-la por cima do
ombro e se dirigir até a superfície lisa de mogno no centro da sala envolvida
pela semiescuridão. De cabeça para baixo e com o cabelo caindo por cima do
rosto, Mykaela só conseguiu rir e se segurar como pôde antes de ser estirada
na mesa e coberta pelo grande corpo do lupino.
Seus lábios se chocaram com uma violência íntima, línguas duelando
com uma necessidade mútua que fazia seu ventre arder, sua pele formigar. A
maneira como ele sabia onde esfregar e pressionar para deixá-la quente e
ofegante era sua ruína, sua sina, sua perdição e sua derrota. Pela primeira vez
em tempos, Mykaela concluiu não dar a mínima para sair vencedora daquela
batalha, porque sabia que ela já estava ganha. Lutar contra seria esforço
desperdiçado.
Os arquejos se tornaram gemidos quando Imanur caiu de joelhos,
deslizou sua roupa íntima pernas abaixo e envolveu suas coxas com os braços
poderosos; quando a língua dele contornou sua umidade com fome e
deferência; quando os dedos calejados provocando sua entrada foram mais do
que o bastante para fazê-la se contorcer.
Ela já estava soluçando com os pedidos roucos por mais e por favor e
aah.
—A sua sorte, Kaelie, é que a música do salão está abafando todo e
qualquer som nesse lugar — Hassam murmurou contra a pele afogueada da
parte interna da sua coxa. — É uma pena que nenhum daqueles machos
pomposos te ouvirá gritando meu nome enquanto goza.
Ela o empurrou com o joelho até ouvir o tump que lhe informou que
ele tinha caído sobre a própria bunda no carpete.
—Ande logo com essa merda, seu idiota tagarela e prepotente.
Mykaela saltou da mesa e se encaixou montada no lupino no instante
seguinte, a gargalhada baixa de Imanur fazendo seu corpo estremecer contra
o peito dele à medida que se beijavam no chão. Ela arremessou a camisa dele
em um sofá — o casaco tinha ido parar atrás da mesa — e o ajudou a
afrouxar os laços superiores do próprio vestido, resfolegando feliz quando a
boca dele deixou a sua para deslizar por seu pescoço, sua clavícula, seus
seios.
Sua feminilidade pulsava com a sensação do comprimento latejante
dele embaixo de si, lançando rajadas de prazer incandescente por toda a sua
pele a cada movimento vagaroso que executava em cima dele.
As mãos de Hassam envolveram suas nádegas e lhe apertaram contra
o volume rígido.
—Kaelie — gemeu em sua boca, em sua língua. — Kaelie, pelo amor
dos deu...
A guardiã já o estava guiando para o meio das próprias pernas depois
de desatar os botões da calça escura, ambos sentindo cada glorioso
centímetro acomodá-lo dentro dela com sons sincronizados de puro e etéreo
êxtase.
Êxtase, porque aquilo já tinha passado de lascívia ou satisfação.
Porque tinha se tornado algo essencial — não o sexo, não as provocações,
não o prazer.
A companhia. A união. O entendimento em cada olhar e semblante,
mesmo quando os tais momentos roubados não resultavam em nada além de
suor bruto e sem fôlego. Nascera da luxúria, sim, mas agora era mais.
Era mais.
—Hassam — ela jogou a cabeça para trás, sentindo a tensão se
acumular cada vez mais em seu baixo ventre, e suas coxas estremeceram com
o esforço de mantê-la cavalgando-o. — Hassam, eu...
Ele a ergueu no colo e a colocou deitada no carpete, o corpo torneado
se assomando sobre ela, a posição que o permitia atingir mais fundo e mais
forte fazendo seus olhos se revirarem. Apoiado nos joelhos a cada estocada
impiedosa, uma das mãos de Imanur estava ao redor da garganta dela
enquanto a outra se ocupava com o ápice de suas coxas, e tudo que Mykaela
conseguia fazer era se agarrar ao antebraço musculoso à medida que sua
visão se desfazia em estrelas, em liberação, em intensidade e som e luz ela se
deixava ir, ir e ir.
A boca do lupino esmagou a dela enquanto a garota gemia alto,
acelerando o ritmo das arremetidas com as contrações espontâneas do interior
dela graças ao clímax, e Hassam se deixou jorrar com um último rugido cujo
a Platina devorou com os lábios — os corpos em combustão entrelaçados
num apelo e numa urgência que costumava ser apenas carnal... Mas agora era
mais.
Era mais.

Ela não havia trazido parafina na bolsa, então tivera de usar as velas
do candelabro repousando na cômoda do quarto no qual lhe tinham colocado.
Provavelmente teria de depender na visão noturna licantropa nas
próximas duas noites, mas Mykaela não dava a mínima. Mesmo enquanto se
vestia e não conseguia tirar o sorriso idiota do rosto, não havia nenhum pingo
de remorso apertando seu peito.
Inclusive, mais tarde, quando ela, Imanur e o restante dos guardiões
seguiam Howl e Safira para outra reunião — política dessa vez, não
introdutória e inútil como a do dia anterior — tudo que a guardiã queria fazer
era olhar para ele por cima do ombro. Por três vezes quase o fez, e por três
vezes o escutou rindo baixo atrás de si.
Mas pura teimosia a fez se virar para Drania, já que a primeira-tenente
Pravka-Argentae os estava acompanhando graças à presença da própria alfa-
mor no grupo, e indagou de modo casual:
—Onde estão Ávila e Naiara?
As duas soldadas tinham sido simpáticas com Mykaela no dia anterior
durante o trajeto até o salão, e ela só se lembrara dos seus nomes porque
ambas sabiam debater estratégia de combate muito bem.
Diaspur soltou um exalar irritado, as botas ressonando duras contra o
piso escuro de mármore.
—As duas belezuras e mais uma terceira subordinada minha
acordaram tão mal hoje que nem conseguiam se manter de pé direito. Nyädja
normalmente teria o triplo de escolta a mais do que hoje, mas não me deixou
punir as que exageraram na farra noite passada porque foi aquela a autorizar
que se divertissem.
Sua intenção tinha sido puxar uma conversa amena, mas a informação
deixou seus nervos à flor da pele, mesmo quando a Platina se calou e
continuaram virando esquinas e subindo escadarias e atravessando andares.
Era verdade que a segurança parecia bem reforçada nos últimos dias,
afinal se tratava de um evento de magnitude notável. Reunir dezenas de
líderes poderosos num só lugar sempre exigiria cautela. O encantamento na
entrada do salão no primeiro encontro geral, a quase centena de Pravka-
Argentae rondando pelo baile da noite anterior... A guarda não preveniria a
Morada com tanto afinco se não fosse necessário.
E se a alfa-mor normalmente andava com três vezes mais guardas do
que aquilo...
Mykaela lançou um olhar de transtorno a Meistens, caminhando com
os ombros erguidos nos couros reforçados ao seu lado, e a visão do receio
dela foi tudo que lhe precisou para saber que precisava se manter atento. Ele
estreitou os olhos e analisou os arredores com um cuidado renovado, as íris
verdes preenchidas pelo sobreaviso passando o recado adiante para Hassam e
Eora.
Podia estar sendo paranoica, podia estar sendo tola, mas ela mesma já
se envolvera num esquema parecido: soldados aparecerem bêbados ou não
conseguirem completar um turno por causa do álcool... Aquele fora um dos
fatores que lhe permitira libertar seu irmão, já que Berion se encarregara de
drogar um dos guardiões de vigília. A garota não gostava de arriscar.
Seu palpite, ao que parecia, se provara perigosamente certo quando o
Esmeralda estancou no meio do caminho de um dos jardins suspensos do
quarto andar da Morada. Uma fonte decorada jorrava pacífica à direita deles,
e o caminho de pedra rodeado por sempre-verdes e rosas selvagens estava
calmo como seria de se esperar num dia ameno de fim de inverno.
—Esperem — Will disse, a postura tensa.
Howl demorou milésimos de segundo para decifrar a expressão do
próprio soldado e puxar Safira para perto de si, os olhos dourados
esquadrinhando o jardim silencioso com receio.
Meistens encarou a Platina com algo como resignação no semblante,
o maxilar rígido.
—Sangue — informou, num tom sombrio.
Drania se enrijeceu ao lado dela, o foco disparando na direção da alfa-
mor parada a alguns metros de distância, a cabeça inclinada em confusão.
—Duas guardas deviam estar posicionadas na frente leste desse
jardim, atrás das estátuas.
Eora e Will cercaram Howl e Safira, as três Pravka-Argentae
presentes fizeram o mesmo com Nyädja, e a mira de Mykaela varreu a área
outra vez. Tudo parecia dentro do normal, aquela quietude mórbida lhe
enchendo de insegurança, mas... Ali.
Atrás de um pé de cerejeira, aquele arbusto de hortênsias se mexera
para o oeste, mesmo que o vento soprasse para o norte. Entre as pétalas
violeta-escuro arredondadas... Algo ali não era uma pétala.
Era uma ponta.
—Flechas! — Mykaela vociferou, no instante em que o gatilho da
besta se ativou e o som de setas voando cortou o ar ao redor deles. — Se
abaixem!
Merda, merda, merda, pensou, enquanto os projéteis voavam acima
da sua cabeça e ela disparava na direção do casal alfa da sua alcateia.
Trouxera apenas uma adaga no cinto, e Meistens só tinha uma espada
embainhada nas costas. Todas as Pravka-Argentae estavam armadas, pelo
menos, e a maioria das flechas acertava as lâminas inclementes girando em
suas mãos.
—Encontrem os atiradores! — Drania esbravejou, a espada recurva
em seu punho cortando o ar como um lampejo mortal de prata.
O alvo daquela emboscada, obviamente, era a alfa-mor, para onde a
maioria das flechas estava direcionada. Duas soldadas se separaram do
círculo de proteção de Nyädja quando três machos surgiram dos arbustos
altos atrás da fonte e atacaram com lâminas em vez de setas. Howl e Meistens
estavam ocupados com uma fêmea e um outro macho vindos do outro lado, e
alguém tinha dado uma espada a Safira mesmo com Eora e Hassam
defendendo sua retaguarda de modo feroz. Os oponentes tinham os números,
mas não tinham a habilidade para derrotar licantropos que haviam passado
metade da vida batalhando com criaturas com o dobro de tamanho e o triplo
de sede de sangue.
Principalmente não com a dominância exponencial de uma Lunar
adicionada ao combate.
A Diana não estava lutando fisicamente, mas com certeza estava
fazendo mais estrago do que a maioria deles. Qualquer adversário num raio
de dez metros não conseguia dar nem dois passos antes de cair de joelhos e
espasmar em submissão diante das ondas impiedosas de Safira.
Mas as flechas ainda voavam, e uma delas acabou atingindo uma das
soldadas de Drania.
—Gah! — gritou ela, quando o projétil se fincou na sua panturrilha
direita, a face contorcida com a dor. — Estão embebidas com Vuk’ropesch!
As feições lívidas da primeira-tenente ficaram brancas como o
mármore das estátuas ao redor do jardim. Ela se virou para Mykaela, que
terminava de fatiar uma fêmea dentre os inimigos com as garras, nada além
de pânico nas íris bicolores.
—Não deixe nenhuma daquelas flechas atingir sua Diana. Nem um
mero arranhão, está me ouvindo?!
Então seu corpo se desfez em areia diante dos olhos da guardiã. A
nuvem de partículas de terra se lançou na direção dos atacantes com arcos à
direita e a Platina balançou a cabeça para sair do transe aturdido ao se
posicionar atrás de Safira, as mãos pegajosas com o sangue da mulher que
havia caído sob seu ataque.
Ela se esquecia que Drania tinha aquele poder esquisito, graças à
ascendência manipuladora demitra. Outras Pravka-Argentae com habilidades
híbridas mágicas teriam sido úteis, mas a primeira-tenente era a única delas
naquele grupo em específico.
De todo modo, a luta estava quase no fim. Imanur e Eora estavam
liquidando os últimos três adversários próximos, consideravelmente
incapacitados pela dominância da Lunar, e Howl, a alfa-mor e as outras
soldadas tinham ido atrás dos outros atiradores. O som dos reforços
licantropos de Nyädja subindo pela escadaria oeste do jardim suspenso quase
bambeou os joelhos de Mykaela, mas nem tudo estava acabado.
Um dos oponentes da Granada se afastou o suficiente do alcance
dominante de Safira e fuzilou a Filha da Lua com puro e incandescente ódio
no olhar. Sabia que ela era o motivo de seus companheiros terem caído antes
mesmo de conseguirem golpear um deles.
A lança na mão dele voou — e Mykaela se arremessou na direção de
Reiters, o corpo pequeno tombando sob seu peso centímetros antes da arma
passar zunindo pelas suas cabeças. A guardiã girou na queda e usou o próprio
corpo como amortecedor para ela antes que a barriga de Safira atingisse o
caminho de pedra, girando no chão outra vez logo em seguida após o
impacto, para cobri-la com as costas caso algum projétil fosse direcionado à
posição vulnerável da Diana.
E novamente, seu palpite não estava errado.
A Platina ouviu a flecha de besta chiando, ouviu o impacto com carne
e o grunhido furioso de dor — mas ele não viera dela.
O horror preencheu a face de Mykaela quando ela se voltou para trás
e encontrou Hassam tirando a seta da própria coxa ensanguentada com um
rosnado irritado. Ele tinha se postado à frente das duas fêmeas caídas, e agora
enfrentava o último atirador restante. Os projéteis do macho tinham acabado,
então ele largou a besta e pegou a lança da qual Mykaela e Safira haviam
escapado, disparando na direção do lupino com um urro animalesco.
—Não!
O coração da garota quase saiu pela boca com o arroubo de
velocidade, de violência daquele adversário... Mas Hassam apenas agarrou a
lateral superior da arma centímetros antes da ponta atingir seu peito — e o
tranco fez ambos se moverem apenas míseros centímetros.
O macho inimigo arreganhou os lábios e empurrou com mais força,
mas a face de Imanur subitamente se retorceu com algo selvagem, a
mandíbula se alongando e os dentes se tornando presas amareladas do
tamanho de pequenas facas na bocarra avantajada. Garras curvas e escuras
cresceram em seus dedos, e o lupino só precisou dar um mero passo para
frente para a lança se partir em duas com um estalo violento — e sua mão
agarrar a garganta do macho com o tropeço que a arma quebrada fez o infeliz
dar para frente.
A expressão grotesca de Hassam se esticou num sorriso cruel,
erguendo o sujeito acima do chão com a força descomunal rugindo em seu
sangue, e suas garras se afundaram na jugular do macho com um esguicho
sonoro enquanto ele se contorcia e esperneava. O sangue verteu pela roupa
dele como a fonte a poucos metros de distância, e Imanur largou o corpo de
qualquer jeito no solo do jardim destruído.
Assim que a cabeça de Mykaela parou de gritar com o terror, ela
finalmente se virou para Safira — ainda embaixo dela — e resfolegou:
—Você está...
—Bem? — a Diana também tinha os olhos arregalados na direção do
lupino, o rosto avermelhado e transtornado. — Estou, na medida do possível.
Graças a você, Skies.
—Tem certeza?
Ela se ergueu, um pouco trêmula, e ajudou a Diana a se sentar com
cuidado.
—Tenho — com as mãos protetoramente alojadas sobre a barriga, a
Lunar levantou o rosto e franziu a testa para Imanur, ainda em pé à frente das
duas. — Não posso dizer o mesmo de você, Hassam. O que fez foi
absurdamente corajoso e insano, mas muito obrigada.
—Não por isso — ele grunhiu, as feições já de volta ao normal e as
garras retraídas nas pontas dos dedos.
—Você está bem mesmo? — Mykaela indagou baixinho, a garganta
oscilando.
A expressão dele suavizou ligeiramente.
—Essa merda arde, mas vou sobreviver com um torniquete.
—Esse fato se deve ao sangue humano correndo em suas veias, eu
imagino — a voz de Drania soou atrás deles, e a mira preocupada de Mykaela
se fixou nas sobrancelhas erguidas da primeira-tenente, também já de volta à
forma normal. — O que te faz mais fraco é o que está te mantendo vivo.
Interessante.
Hassam inclinou a cabeça de um modo não muito lisonjeado.
—O que quer dizer com mais fraco?
—As flechas tinham Vuk’ropesch nas pontas — esclareceu a fêmea,
com um semblante soturno. — É ruína-de-lobo, mas misturada com mais
algumas coisinhas abomináveis. Enxofre, beladona, estramônio e,
principalmente, magia. O veneno se espalha no metabolismo licantropo com
poucos segundos, e causa uma morte dolorosa em minutos se não for tratado
com urgência. Ele estanca a transformação, mas... Você ainda conseguiu
mudar, o que significa que o Vuk’ropesch deve estar funcionando com menos
eficiência no seu organismo.
—Bom, então o que está esperando?! — Mykaela bradou. — Vá
chamar uma curandeira, uma bruxa, pegar um antídoto, qualquer merda!
—Nossas Hylians já estão a caminho — Nyädja garantiu ao surgir ao
lado de Drania, arfante e demonstrando frustração. A pele negra reluzia com
o suor, e havia uma mancha de sangue na manga direita do casaco da fêmea.
— Sinto muito por tudo isso. Eu não devia ter sido tão relapsa com a
segurança essa manhã, devia ter percebido...
—Devíamos, minha senhora. O erro foi mais meu do que seu —
grunhiu a primeira-tenente. — Não há identificação nesses corpos. Pelo
menos não uma que possamos relacionar a uma das matilhas presentes no
evento, mas poucas teriam condições de estocar Vuk’ropesch. Isso reduz
nossos suspeitos, felizmente.
—Acha que uma alcateia rival é responsável pela emboscada —
constatou Safira, ao se levantar cautelosamente com a ajuda da Platina, que
não tinha tirado os olhos da coxa ferida de Imanur.
—Não é a primeira vez que algo assim acontece — a soberana
licantropa de Leyan abriu um sorriso amarelo, amargo. — O posto de alfa-
mor garante bastante poder a quem quer que o possua. Minha mãe foi morta
por um usurpador com o mesmo objetivo desse grupo de ataque, uma década
atrás, e outro alfa assumiu por alguns anos antes que eu lhe desafiasse num
duelo e retomasse o título para minha família novamente. Ser emboscada é
basicamente algo cotidiano, nesse ramo.
—Se não fosse pelo aviso do Esmeralda e sua atenção naquelas
flechas, Platina... — Drania olhou para ela com gratidão e respeito. —
Poderíamos não ter conseguido reagir tão bem à cilada. Eu poderia fazer bom
uso de uma fêmea como você nas minhas fileiras.
A garganta de Mykaela teria se fechado com o orgulho numa outra
situação — ela, uma Pravka-Argentae? — mas tudo no que sua consciência
conseguia se concentrar era Hassam, ferido, Hassam, envenenado, Hassam,
possivelmente morrendo. Ele havia se sentado na borda da fonte, xingando
baixo enquanto envolvia a perna com um pedaço de tecido rasgado, e
Meistens estava lhe fazendo companhia.
Graças à deusa e todas as malditas estrelas, as curandeiras chegaram
com a rapidez que a alfa-mor prometera. Uma das flechas tinha arranhado
outra das soldadas e Eora ganhara alguns hematomas nas costelas, mas
aparentemente todas sobreviveriam. Howl fora o único a usar a forma animal
para lutar, porque sua transformação era de longe a mais rápida e eficiente. O
alfa de Ultha ainda estava como lobo negro, o focinho cutucando o braço da
companheira grávida de modo preocupado.
—Estou bem — Safira ficava garantindo, ainda que continuasse
parecendo corada e sem fôlego.
Uma das curandeiras recomendou que a fizessem dormir antes que o
estresse causasse mais danos — podendo até propiciar um parto precoce —, e
a Diana foi mandada às pressas para os próprios aposentos, e Hassam e as
outras feridas, para a enfermaria. Aparentemente, o veneno causava um mal
crônico que se acumulava nos órgãos de modo lento, agonizante, e as Hylians
precisavam tirar o máximo que conseguissem dos metabolismos dos
atingidos pelo Vuk’ropesch antes que o estado deles piorasse.
Drania lhe observou de modo austero, interpretando sua angústia de
modo equivocado ao pousar uma mão tranquilizadora em seu ombro.
—Nenhuma baixa recairá nas suas costas hoje, menina. Seus soldados
voltarão inteiros.
Mas era a sanidade dela que não estava inteira.
E assim ela ficaria até que visse Imanur bem, recuperado, a salvo, em
seus braços.
Mykaela não sabia o que seria dela caso contrário.

—Sabe que podia apenas ter usado o corredor, não é?


Ela tentou conter a enxurrada de alívio que quase a derrubou no chão
quando pulou da borda da sacada de Hassam e o viu de pé no meio do
aposento, a sobrancelha erguida de maneira acusatória e os braços cruzados
para ela.
Seus pés dispararam na direção dele de modo inconsciente, instintivo.
—Que merda de cacete infernal, Imanur — as mãos de Mykaela o
rodearam por inteiro na busca por ferimentos; rosto, braços, barriga, pernas.
Ela não tinha checado se ele fora machucado de outras maneiras, mais cedo.
— Ninguém me deu porra de notícia nenhuma. Só tive confirmação de que
estava vivo quando ouvi sua voz no corredor!
—Aquele que você poderia ter usado — ele segurou seus pulsos
delicadamente, a expressão calma contrastando com a preocupação voraz da
garota. — Em vez da sacada, que tem uma queda de dezenas de metros até a
parte baixa da cidade. Só eu devia ter arriscado a vida hoje, Kaelie.
—Aquela flecha poderia ter atingido seu peito!
—Poderia ter atingido Safira — a testa dele se franziu de modo sério.
— Uma gota daquele veneno teria matado o bebê antes que qualquer
curandeira pudesse fazer algo a respeito. E pior, poderia ter atingido você.
Poderia ter atingido suas costas, seus pulmões, seu coração. Eu faria tudo
outra vez.
—Não diga isso — Mykaela sacudiu a cabeça, o lábio tremendo e o
punho cerrado com a vontade de socar aquele grande tolo heroico e
desmiolado. — Não diga uma merda estúpida dessas, Imanur, você quase...
—Estou aqui — ele apertou suas mãos contra o peito forrado por uma
camisa de linho marrom, insistente. — E estou bem — uma careta, então. —
Bom, por enquanto.
Ela se afastou com um empurrão incrédulo e horrorizado.
—Como assim, por enquanto?
Os olhos cor de chocolate escorregaram até um frasco escuro no topo
da lareira de mármore, cuja luz do fogo ali aceso fazia as cicatrizes se
destacarem na pele morena do lupino.
—O mal-estar vai e vem. Minha perna está curada, mas o veneno se
infiltrou na minha corrente sanguínea, e preciso tomar aquilo a cada vez que
o incômodo recomeçar... Ou a coisa vai voltar a me infectar de pouco a
pouco.
O coração de Mykaela se tornou algo frio, sem peso, sufocante.
—Mas você disse... Disse que estava bem, disse... — passar ar pelos
próprios alvéolos de repente se tornou insuportável. — Disse que não...
—Kaelie, olhe para mim e preste atenção — palmas ásperas
envolveram seu rosto suavemente, e o olhar vazio dela encontrou as íris
castanhas quentes do lupino. — Estou te contando para que saiba de todos os
fatos. As bruxas curandeiras me deram mais do que suficiente do tônico para
me manter saudável até o veneno sair do meu corpo, o que deve acontecer em
pouco mais de uma semana. Isso é tudo. Eu estou bem, Kaelie.
Ela inspirou e expirou devagar, as pálpebras tremulando com um
desespero que aquiescia à medida que as palavras eram assimiladas. O
coração dele não hesitara, as batidas foram firmes em cada palavra. O tônico
o salvaria, fora desenvolvido para combater o veneno. Não podia ser mentira,
até porque as curandeiras da alfa-mor eram algumas das mais habilidosas do
continente, mas... Mas...
—Você está bem — repetiu, mais para si mesma do que qualquer
outra coisa. — Está bem.
—Estou bem — Imanur confirmou, os olhos cintilando para ela.
A guardiã se permitiu abraçá-lo com força, só por alguns instantes.
Sentir o calor dos braços dele ao seu redor, ouvir os batimentos estáveis no
peito forte, deixar a presença de Hassam acalmar a tremedeira incessante em
seu interior.
Mykaela quase abrira um buraco no assoalho do quarto depois de
ficar andando de um lado para o outro após mais de três horas sem ouvir uma
simples palavra sobre o estado dele. Sua cabeça ficara cogitando os mais
horríveis cenários, nos quais o veneno avançava e o matava, ou o fazia
definhar devagar, ou lhe causava uma dor febril e inimaginável.
Mas Hassam estava ali. Estava ao seu lado, estava fora de perigo e
estava bem. Bem.
—O que preciso fazer para que passe a noite aqui comigo? — ele
murmurou contra seu cabelo, e a voz rouca e provocante fez uma descrença
cínica contorcer o rosto da garota.
—Sério, Imanur? — ela repreendeu, erguendo a cabeça com uma
expressão brava. — Você está com um veneno potencialmente mortal
correndo nas veias e isso é a primeira coisa que te vem à cabeça?
Ele deu de ombros, irreverente.
—É a coisa que normalmente te faz ficar.
O estômago da Platina se revirou com uma sensação agridoce,
inesperada. A vontade de ralhar com ele se amenizou e extinguiu diante do
semblante cautelosamente esperançoso no rosto do lupino.
—É claro que vou ficar — ela bufou. — Nem que seja para garantir
que essa coisa não vai se agravar e te matar enquanto dorme. Por que acha
que vim pela sacada?
Qualquer um poderia passar no corredor e vê-la — mesmo que fosse
silenciosa. Os quartos tinham feitiços antirruído, por outro lado; era um
evento cheio de integrantes da alta hierarquia licantropa que não queriam
suas conversas e segredos sendo escutados pelos aposentos vizinhos, afinal.
O quarto de Hassam era aquele depois do dela e do de Safira e Howl, e as
sacadas eram bem próximas umas das outras. Tudo que tivera de fazer fora
ser cuidadosa e rápida ao atravessar a parte do casal alfa e chegar até ali.
Um sorriso lento e satisfeito se abriu no rosto de Imanur, que
entrelaçou os dedos aos seus e a puxou na direção da mesa posta (que
Mykaela não havia notado) ao lado da lareira, cheia até as laterais de comida
ainda fumegante. Era hora do jantar, e os criados deviam tê-lo servido antes
dela invadir, já que havia um prato pela metade à frente de um dos assentos.
Ele começou a encher um segundo prato de carne defumada, legumes
assados e batatas rústicas com molho branco e toucinho aos montes.
—Está vendo essas coisas aqui, Imanur? — ela ergueu as mãos e
sacudiu os dedos de forma sarcástica. — Elas me permitem servir minha
própria comida. Não sou uma inválida.
Hassam piscou, armando feições teatralmente confusas.
—Ah, desculpe. Você pensou que esse prato era para você?
A guardiã revirou os olhos.
—Se não era, tudo bem — ela pegou o prato pela metade por baixo do
braço dele. — Me satisfaço com esse.
—“Consigo servir minha própria comida” — zombou o lupino,
afinando a voz de um jeito jocoso e nada parecido com o dela de falar. —
“Não sou uma inválida.”
—Ah, cale a boca.
—Você pediu por essa.
Eles comeram trocando provocações não muito diferentes, e aquilo
mais do que qualquer outra coisa a tranquilizou a respeito do bem-estar de
Hassam. Se ele estava são o bastante para encher sua paciência, com certeza
estava bem o bastante para todo o resto, então Mykaela já estava rindo e o
chutando por baixo da mesa a cada comentário engraçadinho no final da
refeição.
Quando estavam terminando o vinho, no entanto, o pulso dele
estremeceu ao encher a taça dela pela terceira vez, e um pouco do líquido
escarlate pingou no forro de mesa branco. O lupino pousou a garrafa com um
expirar instável, e suas pálpebras se fecharam com força por um momento.
Ela correu na direção do frasco sobre a lareira, a angústia travando
seu peito e tensionando seus músculos ao retornar até Imanur em milésimos
de segundo.
—Obrigado — murmurou, a face preenchida por gratidão, antes de
jogar a cabeça para trás e tomar metade do tônico que Mykaela lhe entregara
de uma vez.
A mão dela procurou a dele e apertou seus dedos de modo
reconfortante, e Hassam a puxou para perto até encostar a testa em sua
barriga, as coxas de Mykaela abrigadas entre as pernas dele, seus dedos se
entremeando ao cabelo escuro de forma natural.
—Eu estava pensando — ela soltou de súbito, a voz distraída
enquanto seu toque distribuía carícias inconscientes pelos fios rebeldes de
Imanur. — Não podemos mais vir nessas viagens juntos.
A postura dele ficou tensa, as mãos comprimindo a parte de trás dos
seus joelhos diante do comentário.
—Posso saber o porquê?
—Porque é a coisa mais estúpida a se fazer, agora que aprendemos a
lição. Se aquele ataque tivesse ocorrido ontem no baile, enquanto estávamos
naquela sala... Safira, Howl, Kiara ou Calan poderiam ter terminado feridos,
ou pior — esclareceu, mordendo o lábio. — E hoje... Hoje eu protegi Reiters
porque você só se colocou em perigo segundos depois. Se aquelas situações
de risco tivessem sido simultâneas, contudo... Eu não sei quem escolheria.
Não sei quem protegeria, não sei quem conseguiria proteger. Não é
inteligente nos enfiarmos num combate juntos quando nossa lealdade e
responsabilidade principal é com outros. Sei que isso afetaria meu raciocínio,
minha capacidade de julgamento. Talvez eu esteja me excedendo ao supor
que afetaria você, mas...
—Afetaria — ele soltou um suspiro, erguendo a mira para ela e
aquiescendo com um meneio de cabeça. — Temo que esteja certa. Pelo
menos é um motivo razoável.
A Platina ergueu uma sobrancelha.
—O que quer dizer com isso?
—Nada — o lupino se ergueu da cadeira e envolveu a cintura dela
com os braços. — Não está cansada?
Ela deixou a indiscrição passar com um revirar de olhos enquanto
enlaçava os ombros largos de modo preguiçoso.
—Mentalmente esgotada, mas não necessariamente cansada.
—Questão de semântica.
—Você, por outro lado, está quase usando meu ombro como
travesseiro — apontou. — Vá deitar esse traseiro naquele colchão enquanto
pego alguma camisola no meu quarto.
Ele enterrou o nariz em seu pescoço e o toque carinhoso a fez
amolecer, como gelo se tornando água sob o sol.
—Posso te dar uma camisa.
Mykaela contabilizou todo o esforço necessário para pular três
sacadas duas vezes e buscar um simples pedaço de tecido comparado àquela
pífia solução, e deu de ombros ao assentir para Hassam. Ele a ajudou a
desatar os nós do corpete de couro, os lábios roçando por cada trecho de pele
que o lupino revelava, e não havia nada de mal-intencionado ou ao menos
provocante no gesto. Era só uma intimidade afetuosa, e ela gostou tanto da
simplicidade crua do momento que o deixou tirar suas botas e distribuir
beijos demorados por sua perna e panturrilha.
A garota tinha se decidido por não deixar Hassam avançar demais
naquelas carícias, não naquela noite, não depois de ele ter passado por tanto,
mas... Uma carícia levou à outra, e não fora exatamente ao que ela esperava.
Ah, com certeza não.
Eles passaram mais tempo se beijando do que qualquer outra coisa.
Os lábios da guardiã formigavam, avermelhados e sensíveis, quando o toque
de Imanur finalmente desceu até sua umidade pulsante, quando ele a sentou
sobre a mesa, se encaixou entre suas pernas e a tocou com aquela reverência
magistral.
E era diferente, apesar de ser o mesmo prazer, a mesma sensação
abrasadora. Não era afoito e bruto e suado, e isso quase a deixou insegura por
um momento. Mykaela não tinha certeza se conseguia ser doce e calma e
lenta, mas já devia saber que Hassam teria consciência disso. Aquilo também
não era doce, ou calmo, ou lento.
Era apenas intenso, sem pressa, genuíno.
As coxas dela se fecharam ao redor dos quadris dele e Imanur a
ergueu no colo, a boca ainda colada na sua enquanto os levava para a cama
de dossel com lençóis creme. Ele a pousou no colchão com um cuidado que
fez o peito de Mykaela se apertar, e mais beijos exploratórios e toques
pacientes se seguiram por minutos inteiros.
Ela nunca tinha feito aquilo. Não conhecia aquela parte do prazer,
mas não a achava em nada ruim. Nada mesmo.
Hassam se introduziu nela devagar, os quadris dançando contra os
seus em uma coreografia na qual eles já sabiam todos os passos, mas que
agora estava sendo executada num ritmo inteiramente diferente. Mykaela o
comprimiu contra si, querendo sentir toda parte dele a cada arremetida
lânguida, a cintura se movendo em júbilo para encontrar cada impulso
poderoso da grossura do lupino.
A Platina não lutaria mais. Notara aquilo no instante em que aquela
lança quase perfurara o peito dele. Não estava preparada para perder o que
quer que fosse aquilo antes que tivesse a chance de apreciar as melhores
partes, do que significavam para ela.
Estava cansada de negar isso a si mesma, negar que sua alma cantava
e se enchia de vida perto dele, que passara a ansiar pela proximidade e pelo
afeto. Que a maneira como seu corpo reagia ao de Hassam era só o início de
uma miríade inteira de sensações complexas, insanas e irrevogavelmente
entregues.
Mykaela era sua própria dona. Ela pertencia a si mesma e somente a
si mesma.
Mas não podia mais evitar o fato de que seu coração... Seu coração,
ela tinha entregado a ele, de boa e estupefata vontade.
Era mais, era muito mais, percebeu a garota, enquanto sentia o corpo
se desfazer em tremores que arrastaram Hassam junto numa onda de êxtase, e
plenitude, e euforia e...
E algo mais.

—Não. Não, não, não...


—Deusa acima, você ainda não passa de uma galinha chorona. Aqui,
pegue-a! — Vaska praticamente largou a coisinha barulhenta e rosada em
seus braços, e Mykaela não teve escolha a não ser segurar Temise Reiters.
Seus músculos estavam tão tensos que chegava a doer, e ela tinha a
impressão de que a bebê sabia disso. Pelo volume dos berros, aquilo não
estava gostando nada de ser carregada pelos dois pedaços de madeira
figurativos que seus antebraços haviam se tornado.
A minúscula futura alfa era muito mole, muito frágil, muito
horrivelmente indefesa. Como alguém no mundo aguentava ter uma
responsabilidade daquelas nas mãos?
A Platina tinha ido visitar Safira uma semana e meia após o parto,
mas talvez devesse ter esperado que aquilo crescesse mais um pouco. Talvez
alguns meses. Talvez um ou dois anos.
Afinal, ninguém lhe avisou que Mykaela teria de carregá-la.
—Vaska, tire minha filha do colo dela antes que Skies a arremesse
pela janela — Safira murmurou, sentada na poltrona perto do berço da
menininha com uma expressão entretida.
A Lunar cintilava. Seu cabelo estava desgrenhado, havia olheiras sob
seus olhos e sua postura não denotava nada além de cansaço, mas o brilho em
suas íris e a saúde rosada de felicidade em suas bochechas simplesmente não
podiam ser ignoradas.
—Eu não faria isso — rosnou a garota, indignada.
—Estava pensando em fazer, não estava?
—Não!
A Ônix bufou e a Diana riu, erguendo os braços na direção da criança
de modo ansioso.
—Estou só brincando com você, Skies — admitiu, sorrindo quando
Mykaela entregou o embrulho chorão a ela com um nítido desespero aliviado.
— Sei que não a machucaria depois de todo o trabalho que teve para protegê-
la.
Porém, no instante em que se assentou no calor do abraço de Safira,
aquilo parou de chorar imediatamente.
—Isso me odeia — resmungou a guardiã.
—Minha filha não te odeia, apesar de você a ter segurado como se ela
fosse um pedaço de carvão em brasa — a Lunar desfez o nó da alça da
camisola com uma desenvoltura impressionante. — Ela apenas está com
fome.
—Como sabe? — o tom de Vaska foi verdadeiramente interessado.
Safira não tirava os olhos amorosos do pequeno embrulho, os dedos
suavemente contornando os fios de cabelo escuro, acariciando as bochechas
redondas da herdeira da alcateia enquanto a amamentava.
—O choro é mais agudo, mais sem fôlego — respondeu ela a Feuer,
sem nem piscar.
A capitã da guarda lançou um sorriso carinhoso para a cena,
cutucando Mykaela com o cotovelo e murmurando para Reiters;
—Se Skies não tem mais nenhum pobre e adorável bebê para
traumatizar com suas renomadas habilidades maternais, então acho que
podemos ir.
Safira retrucou algo inteligível, concentrada demais na própria filha
para se dignar a lhes dar crédito, e as duas deixaram o quarto com semblantes
similares de diversão. Quando estavam descendo as escadas, no entanto,
toparam com Nye, que tinha vindo passar um tempo com a neta recém-
nascida na alcateia.
A Platina engoliu em seco diante do escrutínio abrupto da loba anciã.
A avó de Howl era uma das licantropas mais velhas na matilha, mas
não parecia ter nem um dia acima dos cinquenta e poucos. Cruzando os
braços sobre o peito magro coberto por um vestido cor de lavanda, a ex capitã
da guarda parou no primeiro degrau ergueu o queixo para Mykaela.
—Eu soube do que fez em Leyan, menina — disse, mais suavemente
do que a garota teria esperado de alguém como Nye Reiters. — Bom
trabalho.
Todo o ar que ela nem percebeu estar prendendo se extinguiu dos seus
pulmões.
Mykaela conteve o sorriso com dificuldade e meneou a cabeça
respeitosamente.
—Obrigada, minha senhora.
Quando ela e Vaska já estavam fora da cabana e o sorriso que a
Platina vinha reprimindo por fim rasgou suas bochechas, a Ônix desdenhou:
—Sabe, também salvei a vida de Safira uma vez e não ganhei elogio
nenhum — ela armou uma careta. — Na verdade, Lother pareceu foi irritado
com o fato.
—É diferente — revirou os olhos ao rebater. — Nye não gostava de
mim. Nunca gostou. Mas eu... Eu sempre a admirei. Ela salvou minha vida
também, quando eu era criança.
Isso pareceu pegar a capitã da guarda de surpresa.
—Sério?
—Foi no ataque de Khonse, dezoito anos atrás. Duvido que Nye se
lembre, mas ela foi uma das minhas motivações para ingressar a guarda.
Porém, depois disso, quando a garota foi prometida ao neto da velha
loba e Nye percebeu que Mykaela não passava de uma cadela fria e
grosseirona, a fêmea fez questão de deixar claro que não aprovava em nada
aquela união. Os eventos que se seguiram apenas acentuaram a inimizade
dela, e essa faca tinha cortado fundo na Platina.
Recuperar o respeito dela significava mais, muito mais do que
Mykaela conseguia vocalizar em palavras.
—Adorável, mas brincadeiras à parte — Feuer lhe cutucou outra vez
com o cotovelo, sorrindo malandra. — Will contou sobre a coisa toda. Disse
que Drania Diaspur até insinuou que gostaria da sua presença nas Pravka-
Argentae. Você mereceu aquele elogio, Skies.
—Você também teria merecido um, Feuer — Mykaela grunhiu, a
contragosto, enquanto andavam na direção da vila. — Se não tivesse salvado
aquela mamãe ganso babona quase dois anos atrás primeiro, nada disso
estaria acontecendo.
—Ah, olhe para nós duas e toda essa baboseira sentimental — ela
jogou os braços para cima com uma expressão falsamente enfezada. —
Precisaremos agendar um arranca-rabo no ringue semana que vem para não
perder o costume.
Mykaela sorriu, perversa.
—Está marcado.
As duas caminharam pela Ildrea e seguiram direto para uma taberna-
restaurante no centro da via principal. Feuer a tinha convidado para almoçar
com Meistens e alguns dos outros guardiões de folga, e a Platina tinha
hesitado só um pouco antes de concordar, mas não se arrependia. Descobrira
que era fácil interagir com seus antigos — e novos — colegas da guarda
quando não rosnava para qualquer pergunta pessoal que faziam, ou quando
não respondia uma sentença comum com algo mal-educado e arrogante.
Além do mais, lembrou, à medida que as duas licantropas gingavam
entre as mesas do lugar limpo e bem arejado para chegar até os outros
guardiões, Mykaela se distraía da falta que sentia de Imanur ao passar mais
tempo com outros lobos.
Ela ficara quase três semanas sem vê-lo, não uma, graças ao maldito
veneno. Os lupinos tinham se preocupado com Hassam, Mykaela ouvira de
Vaska (que ouvira de Tenna), e o mantiveram sob vigia restrita até que
melhorasse, o que a deixara louca por cada migalha de notícias que
conseguia. Depois disso eles haviam se encontrado apenas quatro vezes —
quatro memoráveis, deliciosas e insuficientes vezes — antes que o lupino
precisasse acompanhar um comboio de colheita de cereais até Arye para uma
reposição de estoque na própria matilha.
Isso fora quinze dias antes, e saudade dele ardia como a merda de
uma dor física.
Não era só do sexo que ela sentia falta (disso também, com toda a
certeza), mas apenas da presença dele. Da sua risada grave e gostosa, da
habilidade que ele tinha em ler suas expressões e dizer o que ela precisava
ouvir, em acalmar cada músculo em seu corpo e de tensioná-los ao extremo
ao mesmo tempo. Até a ausência das provocações irritantes lhe incomodava.
Quando se lembrava de que ele ainda levaria três dias inteiros para
retornar, toda a solicitude da Platina sumia, e suas colegas de chalé estavam
chamando seus acessos de mau-humor de “a volta dos remanescentes da
vaca que não se foram”.
Othella e Eora estavam sempre pegando no seu pé e lhe enchendo a
paciência até a alma, mas pelo menos Mykaela agora já não tinha receio
nenhum de chamá-las de amigas.
Assim como não tinha mais receio de chamar de amigos os guardiões
à sua frente.
—Meu deus, Meistens, viemos almoçar, não te esperar ditar uma
bíblia de trás para frente — reclamou Vaska, soltando um suspiro exasperado
para a lista interminável de coisas que Will pedia do pequeno menu. —
Helga, traga o especial do dia para todos nós, por gentileza?
A servente idosa deu a Feuer um sorriso brincalhão.
—É para já, meu bem.
—Ei! Eu não tinha terminado — ciciou o Esmeralda, quando Helga se
afastou diante do pedido da capitã da guarda.
—O que é o especial do dia? — indagou Mykaela, com a testa
franzida.
O especial do dia, descobriu, eram aspargos temperados numa sopa
salgada com creme de milho. A garota não conseguiu nem olhar na direção
do próprio prato sem ficar verde.
Era verdade que não comia aspargos nem se lhe pagassem, mas seu
estômago estava ruim desde que comera algo estragado no café da manhã,
dois dias antes. Ela nem suportara sentir o cheiro do perfume doce forte de
Eora sem achar que poderia desmaiar com a náusea.
O rosto de Will se encheu de deleite quando ela empurrou o prato e
sacudiu a cabeça negativamente na direção da sopa.
—Se você não quer, tem quem queira — disse ele, de boca cheia, ao
se inclinar sobre a Platina e agarrar o prato para... Para...
Para arregalar os olhos e quase cuspir todo o conteúdo da sopa em
cima dela, aparentemente.
Mykaela saltou do assento com uma expressão homicida de revolta
enquanto a mesa ao redor explodia em gargalhadas, as presas expostas e o
rosto afogueado.
—Que diabos, Meistens?!
—Deusa e estrelas, me desculpe! — ele engasgou com o pouco que
conseguira manter na boca, os olhos arregalados colados nela enquanto o
imbecil tossia no guardanapo. — Me desculpe! Eu não... Não quis... Puta
merda.
—Puta merda mesmo! O que deu em você?!
—Eu... E-Eu preciso falar com você. De verdade. E-Em
particular.
—O quê?!
—Agora.
—Will, está se sentindo bem? — Vaska indagou, um sorriso confuso
pendurado no canto da boca.
—Você não está fazendo droga nenhuma de sentido, garoto!
—Eu sei! Eu sei, mas eu juro que é urgente — ele se levantou num
pulo ainda mais afoito que o dela, abandonando a comida e o grupo curioso
de guardiões à frente deles ao gesticular de maneira veemente para a saída. —
Venha, venha logo — e apressou, incisivo, quando percebeu que Mykaela e
suas feições atônitas não haviam saído do lugar. — Ande, mulher, é sério!
A Platina agarrou um guardanapo com violência ao bufar alto e
caminhar atrás dele, resistindo à vontade de chutar a bunda do Esmeralda ao
mesmo tempo em que tentava limpar os pedaços nojentos de aspargos da
roupa. Deusa, lá estava de novo a vontade de vomitar.
Talvez ela devolvesse o favor a Will e despejasse todo o conteúdo em
seu estômago em cima dele. Seria apropriado.
Eles andaram muito, até atingir o limiar da floresta, o que
eficientemente distraiu a garota das suas tendências vingativas e lhe deixou
desconfiada o suficiente para exigir, antes que acabassem no meio da
Tundrav:
—Diga logo, Meistens!
—Diana acima, tudo bem! Acho que já estamos longe o bastante.
Mas, uh... — ele ergueu a mão, indicando que ela devia parar onde estava, a
no mínimo cinco metros de distância. — Fique aí. Mais para trás. Isso, aí está
bom.
—Minha paciência está acabando, garoto. Juro que se isso for uma
brincadeira estúpida sua...
—Vocêestágrávida — o Esmeralda cuspiu.
A voz morreu na garganta de Mykaela.
Uma quietude ecoante se instalou em sua consciência.
As palavras tinham saído atropeladas, em pânico, misturadas e unidas
para se tornar algo quase incompreensível, mas ela tinha entendido cada
sílaba. Tinha entendido perfeitamente.
Uma bola de gás fria e trepidante se formou na boca do seu estômago.
—Não.
Foi tudo que deixou seus lábios.
Os ombros de Will murcharam com a negativa, com a noção de que
ela tinha compreendido — e de que o horror contido em seus olhos era a
confirmação de que aquele fato tinha algum fundamento.
Mas não tinha, não era possível, Imanur tomava contraceptivos, ele...
—O cheiro é bem discernível para mim agora, Skies — Meistens
revelou, baixinho, como se também não quisesse ter que acreditar naquilo. —
Logo será para os outros, também.
—Não.
—Mykaela...
—Eu disse que NÃO, porra! — ela vociferou, os punhos cerrados e os
ombros trêmulos. — Seu olfato não é absoluto. Não há como ter certeza, não
há como...
—Negue o quanto quiser! — Will retrucou, abrindo os braços como
se dissesse “estou me livrando desse fardo”. — Não desconte no mensageiro
porque não vai mudar a verdade! Eu só quis te avisar, tudo bem?
A guardiã caiu de joelhos e vomitou na grama.
O pouco que tinha comido no café se prostrou à sua frente enquanto
ela tossia e soluçava e se contorcia em espasmos.
Três letras. Uma sílaba, uma simples palavra, era tudo que sua mente
conseguia formular.
Não.
Não, não, não.
Will tentou segurar seu cabelo em algum momento, contudo a Platina
apenas grunhiu e o empurrou:
—Se afaste de mim — a falta de ar fazia sua visão se encher de
pontos pretos. — Eu não quero nada de você. Não quero porra nenhuma, está
me ouvindo? Nem a maldita da sua ajuda, nem seus avisos, nem confissões
idiotas ou revelações impossíveis de...
—Quem é o pai, Mykaela?
E a voz dele soara tão suave — tão gentil e paciente mesmo quando
ela estava sendo uma desgraçada imbecil, que sua boca formou as palavras
num sussurro mortificado, cheio de desalento e angústia:
—Hassam.
Silêncio.
Então Will soltou um cântico inteiro de impropérios.
—Eu sabia que não estava imaginando o cheiro dele em você. O jeito
como gritou quando ele foi atacado, em Folkov... — o Esmeralda murmurou
consigo mesmo, então franziu a testa para ela. — Mas isso significa que gosta
dele, não gosta?
Ela gostava. Gostava muito mesmo.
E esse era justamente o problema.
—Mas Meistens, não... Não é possível — ela estava choramingando.
Não dava a merda da mínima. — Imanur toma um chá anticoncepcional. Ele
me garantiu, e-ele...
—Eu não sei, Mykaela — o rapaz soltou uma expiração baixa, para
então piscar. — Espere, aquele veneno, da flecha do ataque. Ele tinha ação
contínua, não tinha? Hassam precisou tomar um tônico para conter os efeitos.
Talvez... Talvez o remédio tenha anulado, hã... Anulado o efeito do
contraceptivo.
Não.
Não, eles tinham se deitado uma vez. Só uma mísera vez, enquanto
Hassam estava tomando o antídoto. Ela ainda pensara em não ir adiante, mas
a convicção simplesmente escorregara por entre seus dedos quando Mykaela
se tocara do que sentia por ele, do que ele sentia por ela. Como pudera ser tão
relapsa, tão estúpida?
Não, não, não, que merda, que porra imunda e inacreditável, que
desgraça absolutamente cruel e absurda...
Pela cara de Meistens, ela tinha xingado tudo aquilo em voz alta.
—Sabe, não precisa ficar tão brava. É um bebê, não é o fim do mundo
— ele tentou consolá-la, desajeitado. — Quero dizer, tenho certeza que
Imanur assumirá a criança. E você disse que gosta dele, certo? Eu ficaria
honrado se Yundra me desse um filho, honestamente. Não é para tan...
Mykaela explodiu.
—E eu te perguntei alguma PORRA DE COISA, Meistens?! Por acaso
pedi a ridícula da sua opinião? — rugiu, as lágrimas escapando por entre seus
olhos queimando com a raiva e o desespero. — Você é você, seu grande tolo
imbecil! Um bebê arruinaria minha vida, nesse momento. Eu não me sinto
honrada, me sinto em pânico. Acha que eu quero abdicar do auge da minha
vitalidade e saúde para cuidar de uma coisa que só vai me dar trabalho? Que
vai precisar de mim o tempo inteiro por pelo menos três anos ou mais? Que
vai tomar minhas horas, minha energia, minha disposição, minha renda?
A Platina não era pobre. Estava longe disso, na verdade — seus bens
tinham sido devolvidos quando fora readmitida na guarda, mas... Ela não
poderia criar um filho no chalé que dividia com Othella e Eora. Seria
obrigada a adquirir uma casa própria, e isso comeria metade das suas
economias, ou mais. Bebês eram custosos. Ela também teria que comprar
roupas de gestante para si mesma, e móveis para a porcaria da criança, e
depois pagar educação e alimento e ela nem sabia mais o quê, porque nunca
quisera um filho e nunca se importara em aprender esse tipo de coisa.
Mykaela queria chorar. Ela queria se encolher no chão e chorar, então
foi o que fez. Abraçando os joelhos contra o peito e desejando fingir que tudo
não passara de uma alucinação, a guardiã sentiu seus pensamentos correrem
num turbilhão de pavor e ansiedade. Era mentira. Meistens e seu nariz idiota
estavam alucinando.
O que Hassam sequer diria? Como ela contaria algo desse nível a ele?
Só podia ser a porra de uma ilusão de muito mal gosto.
Mas ela viera se sentindo mal, nauseada, sensível a aromas fortes.
Comendo com dificuldade porque as refeições vinham lhe deixando enjoada.
E Will não era o tipo de macho que brincaria com uma informação dessas. Se
ele tinha dito que em breve os outros também notariam, então estava falando
sério.
E Hassam... Hassam voltaria em três dias.
Ela ergueu a cabeça, a respiração errática e o corpo trêmulo.
Mykaela tinha pouco tempo.

Ela teve tolas esperanças de que o chalé estaria vazio quando voltasse,
mas Eora estava lendo um livro sobre a bancada da cozinha, os pés
pendurados na borda enquanto mastigava uma maçã e sorria para Mykaela.
—Ei — a Granada inclinou a cabeça para o pacote em suas mãos. —
O que tem aí?
—Não é da sua conta.
A Platina deu a volta pela sala e contornou o sofá, tudo para que as
ervas passassem longe do faro da outra licantropa presente, mas algo em sua
postura tensa devia ter denunciando o mais absoluto nervosismo enrijecendo
seus ossos.
O baque que lhe informou que Eora tinha descido da bancada a fez
acelerar — mas seus movimentos afoitos apenas fizeram a projeto de Feuer
disparar na sua direção; perto o bastante para sentir o cheiro das ervas na
sacola.
As mesmas que a Granada arrancou das suas mãos num puxão brusco
antes que ela pudesse impedir.
—Devolva essa merda, Feuer!
Ela demorara dois tortuosos dias inteiros para achar, tivera de
procurar uma bruxa no coven que...
—O que no abismo você está fazendo passeando com acônito por aí,
Skies? — riu a menina, desdenhosa. — Quer envenenar nosso almoço com
ruína-de-lobo e finalmente se livrar das nossas carcaças? Vai matar algum
licantropo infeliz por aí?
Uma respiração fraca e dolorida deixou os lábios da Platina.
—Só um muito pequeno.
As sobrancelhas da Granada se uniram, descrentes.
—Está querendo dizer que vai matar uma crian...
Os olhos dourados desceram até a barriga de Mykaela à medida que
sua voz perdia força. Pararam, estáticos.
Então se arregalaram, estupefatos.
—Eu sabia — balbuciou Eora, apertando o pacote de acônito contra o
peito de forma mortificada. — Sabia. Você disse que não era Imanur, mas
durante a viagem... Durante a viagem eu até tentei provocá-la e me aproximar
dele para te fazer admitir que gostava do miserável... E você vem passando
mal. Vem amaldiçoando meu perfume a cada vez que sente o cheiro dele — o
rosto da licantropa ficou pálido. — Ele não sabe, não é?
—Não — a garota baixou o tom de voz para algo frio e ameaçador,
tomando o pacote de acônito dela de volta num gesto ríspido. — E as coisas
permanecerão assim. Só você e Meistens tem conhecimento desse
contratempo.
—Contratempo? — ecoou, horrorizada. — É um bebê, deusa acima,
você não...
—Essa informação não vai deixar essa sala, está me ouvindo?!
—Mykaela...
—Esse segredo não é seu para contar a mais ninguém, Eora — cuspiu
a Platina, cheia de rancor e, no fundo, medo. — Se trair minha confiança, vou
fazer do resto da sua vida um longo e doloroso inferno.
A Granada engoliu em seco, o semblante tomado pela revolta e a
angústia.
—Você se arrependerá.
Dando as costas a ela e bufando ao subir as escadas com passos duros,
Mykaela afastou a dor no peito por ter cortado um talho tão fundo no
relacionamento com a colega de chalé.
—Deixe que eu me resolva quanto a isso.
Quando Safira e Vaska irromperam esbaforidas pelo quarto nem uma
hora depois, Mykaela soube que Eora não tinha deixado que ela se
resolvesse.
Uma parte dela esperava que sua companheira de cabana levasse seus
sentimentos em consideração depois de todo aquele tempo cultivando uma
amizade hesitante, mas obviamente se enganara.
—Diga que não fez isso — a capitã da guarda implorou, as íris
douradas queimando. — Diga que não fez.
Recostada sobre a cabeceira da cama, com o olhar perdido no vazio e
o peito sendo revirado por algo pontudo e afiado, ela mal conseguiu forças
para responder:
—Não tenho que dar explicações a nenhuma de vocês duas.
Safira ergueu o queixo de modo implacável.
—Eu sou sua Diana e ordeno que me dê explicações, Skies. Tomou o
acônito? Você abortou seu bebê?
O comando direto fez a consciência da guardiã espasmar e se
contorcer, e suas pernas se encolheram no colchão.
—Não — arquejou, baixinho.
As duas soltaram suspiros aliviados em uníssono, ombros tombando e
mãos sendo levadas aos peitos como se elas fossem aquelas carregando um
feto, não Mykaela.
—Não ainda — terminou.
Vaska arreganhou os dentes, furiosa.
—O inferno com esse “ainda”. Como pode ser tão insana? Você não é
uma curandeira, não sabe o quanto de acônito usar, nem devia estar usando
acônito. O bebê pode sobreviver e ter deformações. Você pode ter sequelas,
ou pior.
—A bruxa que me vendeu a ruína-de-lobo me deu algumas
instruções. Eu aguento.
Ela sempre aguentaria.
—Instruções dadas ou não, essa bruxa ainda não acha recomendável
usar acônito, muito menos para um aborto, Mykaela — insistiu Safira.
A Platina franziu a testa.
—Como você...
—Como acha que chegamos aqui tão rápido? — bufou Feuer. — A
bruxa contou sobre sua pequena ida ao mercado mágico a Dalila, e Dalila nos
contou de imediato.
Então não tinha sido Eora. A Granada não tinha sido aquela a lhe
delatar, mas a vendedora bruxa.
A Lunar lhe tirou dos próprios devaneios divididos entre a emoção e a
raiva ao respirar fundo, lhe dirigindo um tom consideravelmente mais calmo:
—Mykaela, por que você faria uma coisa dessas?
—Porque não quero um filho.
Era simples assim, e também era compreensível por poucos.
Ela não tinha o necessário para criar alguém naquele mundo, e
também não queria ter. Não queria a responsabilidade, não queria o trabalho
ou os gastos ou o tempo que a tarefa exigia. Costumava ser tão paranoica
com contraceptivos exatamente por causa disso. Sabia que não tivera uma
culpa direta, nem Hassam, graças àquele maldito tônico que provavelmente
anulara o efeito do chá anticoncepcional, mas... Mas ela ainda seria a mais
prejudicada. Ela ainda teria de carregar uma vida no ventre por nove meses,
de amamentar e dar mais atenção e ser encarregada de criá-la e educá-la.
Mykaela entendia como outras fêmeas podiam ansiar e gostar do laboro, mas
não ela.
Não ela.
—Mykaela, e Hassam? — pressionou Safira. — Não acha que ele
tem alguma decisão nisso, também? Você o ama e vai esconder algo assim
dele?
Ela não queria pensar nisso. Ele nem chegaria a saber, ele...
—O... O que disse? — titubeou, atônita.
Você o ama e vai esconder isso dele?
—Negar é inútil — a Filha da Lua cruzou os braços. — Eu te vi
atravessando minha sacada para checá-lo quando Imanur se feriu, vi a
expressão no seu rosto quando notou que ele tinha se colocado em perigo
para nos salvar, em Folkov.
—E-Eu...
—Os olhos do sujeito realmente te seguem para toda parte —
comentou Vaska, com uma careta. — Eu notei o interesse da parte dele, mas
não tinha notado o da sua até Tenna mencionar que o comportamento...
suspeito... De vocês na arena podia ter se tornado algo mais, porque Hassam
ficava pedindo notícias suas a ela enquanto estava debilitado, restrito na
matilha lupina.
O coração dela se apertou e diminui de tamanho no peito. A garota
queria Hassam ali consigo, apenas os braços dele ao seu redor, apenas o calor
que tanto aprendera a valorizar.
Você o ama e vai esconder isso dele?
Se não fosse aquela bruxa estúpida e enxerida, ninguém nunca teria
descoberto nada, mas agora com Safira e Vaska cientes...
—Não podem dizer nada a ele — seus ombros enrijeceram com o
pavor. — Não podem.
—Você tem que dizer tudo a ele! — Feuer jogou as mãos para cima,
exasperada de um jeito que dizia a Mykaela que ela queria era estar lhe
socando. — Não pode simplesmente ignorar a influência dele nessa questão!
Reiters estava concordando com a cabeça:
—Skies, ele te ajudou tanto! Você é uma pessoa completamente
diferente perto de Hassam. Conseguiu mudar por ele, você...
—Eu não mudei por ele, Safira — rosnou, ofendida. — Eu mudei por
mim mesma, mudei pela minha alcateia. Não nego o papel de Imanur nessa
empreitada, mas não se engane quando digo que sei quem quero ser e como
quero agir, no momento. Antes eu estava limitada, confusa e mentalmente
instável. Nunca neguei isso. Mas então fiquei livre... De tudo. Finalmente
livre. E agora essa criança vai me limitar por inteiro outra vez! Será que você
pode tirar o nariz da sua perspectiva de família perfeita com Howl e entender
o que estou dizendo?! Eu tenho o direito de não querer um filho, inferno!
—Não fale assim com ela, Skies! — urrou Vaska.
Safira engoliu em seco, as pálpebras tremulando, e Mykaela tentou
controlar o ritmo do fôlego descompassado antes que a capitã da guarda
avançasse nela. Reiters não era a culpada da situação, mas... Abismo
flamejante, a guardiã não conseguia lembrar de nenhum dos motivos para não
descontar seu desespero em tudo e todos que visse pela frente.
—Tudo bem — disse a Diana, por fim, num sopro curto de ar. —
Tudo bem, você tem razão. Esse direito é seu... Mas também é de Hassam,
Mykaela. Não o ponha de fora disso. Deixe seu posicionamento claro, mas
não o exclua dessa decisão. Você pode se arrepender amargamente disso,
mais tarde.
—Ele não me deve nada, Reiters. E eu não tenho nenhuma obrigação
perante ele.
—O abismo que não tem — ralhou a Ônix. — Uma criança não é
concebida sozinha. Ele não só tem responsabilidades, deveres sobre a
situação, como também tem o direito de opinar nela. Converse com ele,
Skies. Ao menos tente. Hassam é um macho bom e honrado, ele...
—Não preciso que me lembrem de nada disso. Eu conheço Hassam.
Eu o amo.
—E ainda assim acha que Imanur te perdoará quando souber que
tentou tomar essa decisão sem ele?
Mykaela não respondeu.
Ela sabia a resposta daquela pergunta.
Todas elas sabiam.

O cheiro do chá fazia seu estômago se revirar.


Mesmo a minúscula medida de acônito causara ardência em seus
olhos e queimação em sua pele diante do vapor exalando da água com ervas
que ela fervera no fogão a lenha da cabana.
O bule jazia vazio à sua frente, o pouco que restara do chá
abominável esfriando na xícara delicada de porcelana verde.
Podia ter tomado a pior decisão da sua vida, mas agora não tinha mais
volta.
Suas entranhas ainda estavam se contorcendo incansavelmente. Um
gosto amargo e dolorido tinha se espalhado por sua língua com a noção de
que Hassam estava vindo atrás dela, de que aqueles sentimentos alucinados e
repletos de agonia enchendo seu peito vinham dele. A sensação era estranha,
intensa e um pouco invasiva, mas, como Safira dissera; negar seria inútil.
Abraçando o próprio corpo com o olhar perdido à sua frente, poucos
minutos se passaram antes que Mykaela ouvisse o estrondo da porta da frente
se abrindo.
—Mykaela — ela girou para encarar o dono da voz grave que
conhecia tão bem, puro horror e mágoa turvando os olhos castanhos de
Hassam quando a mira dele estancou na xícara vazia. — Mykaela, não. Não,
você... Você...
Ela comprimiu os lábios, tremendo com a saudade e a ânsia, agora
que a enorme figura dele enchia a batente e lhe lembrava de toda a falta que o
lupino lhe fizera com a intensidade de um tapa.
—Me deixe...
—Como pôde? — ele balbuciou, o sofrimento em seu rosto
golpeando seu peito feito uma lâmina serrilhada. — Como... Mykaela, eu...
E-Eu teria suportado muito por você. Teria transposto qualquer obstáculo,
teria... Teria esperado e te respeitado acima de qualquer coisa. Mas não isso
— sussurrou. — Não isso.
Ela sabia. Sabia em seu coração, sabia com o coração dele, que cada
palavra era verdadeira.
E ele continuava a chamando de Mykaela. Mykaela, num tom gélido e
ferido, não Kaelie, com a afeição doce que costumava usar.
—Sabe o quanto me doeu o fato de que você não queria ser vista
comigo? — os punhos de Imanur se fecharam com força, o timbre oscilando.
— O fato de que parecia ter vergonha do que tínhamos? Eu esperei, não foi?
Aguardei até que percebesse o que realmente queria, eu respeitei a porcaria
da sua decisão.
—Não era isso — ela balançou a cabeça, os olhos arregalados,
agoniada com a ciência de que era assim que ele se sentia. — Eu nunca tive
vergonha, nunca...
—Achei que tinha me aceitado naquela noite. Achei que a
preocupação nos seus olhos era genuína.
—Era! Hassam, você sabe que era.
—Então me diga que porra é aquilo! — ele vociferou, colérico,
apontando para o bule ainda cheirando a acônito. — Diga que sua
preocupação foi a mesma coisa que te levou a matar meu filho antes mesmo
dele nascer.
Meu filho.
As palavras fizeram algo nela vir à tona, uma raiva contida e uma
mágoa rancorosa que quase lhe deixaram de joelhos. Que merda, que cacete,
que caralho insuportável.
Pior decisão da sua vida, com toda a certeza. Mas não tinha mais
volta.
—Hassam, me deixe explicar. Eu não queria um filho. Eu não
conseguia me forçar a aceitar que...
—Em algum momento eu dei a entender que não honraria uma
criança nossa com amor, com respeito, Mykaela? Dei a entender que não
estaria ao seu lado, caso a possibilidade ocorresse?
A Platina latiu, sem conseguir se conter:
—A possibilidade nunca deveria ter ocorrido, Imanur.
—Mas ocorreu — rebateu ele, áspero, sem emoção. — E eu tive de
ouvir dela por Tenna. Tive de ouvir da minha prima que a mulher que eu
amava estava planejando abortar o bebê que eu nem sabia que ela estava
carregando. Sabe o caralho de merda descomunal que foi escutar isso assim
que voltei de viagem, Mykaela? E pouco tempo depois, essa... Essa coisa me
ligando a você. Me deixando ciente dos seus sentimentos, da sua localização
mesmo quando estávamos a quilômetros de distância — esfregou o rosto, as
mãos instáveis e os olhos marejados. — Achei que significava esperança.
Achei que significava que não tinha feito aquilo sem falar comigo, sem olhar
na droga dos meus olhos e deixar suas intenções claras, para que pudéssemos
debater a respeito como adultos, cacete.
Ela merecia. Merecia todo aquele linchamento por sequer ter
cogitado, por sopesar a opção de nunca o deixar saber daquela atrocidade.
Merecia as palavras duras depois de tê-lo feito se sentir esnobado por meses
inteiros, depois de relutar por tanto tempo àquele laço de pares.
Merecia por ter deixado a cadela egoísta voltar à tona, mesmo que só
por alguns cruciais momentos.
A guardiã o observou por segundos inteiros, desde o cabelo
desgrenhado escuro às roupas sujas de poeira da viagem; da pele morena
brilhando com o suor do provável esforço de correr até ali às íris chocolate
cheias de dor, dor, dor.
Assim como o peito dela.
—Por quê? — foi tudo que ele conseguiu murmurar, os braços caindo
soltos ao lado do grande corpo, uma derrota torturada exposta naquele rosto
recortado por cicatrizes. — Por que, Mykaela?
Ela puxou uma respiração afiada, as pálpebras fechadas com força.
—Joguei o chá fora.
Silêncio.
Longo, enlouquecedor e ressonante silêncio.
A Platina abriu os olhos com uma expiração trêmula e observou as
feições de Imanur passarem de modo veloz entre a assimilação, a descrença,
o cinismo, e então uma esperança cautelosa, angustiantemente incrédula.
—O que disse?
—Não tomei o acônito. Joguei o conteúdo do chá na pia — sussurrou,
em desalento, encarando o chão e a própria vergonha sufocante. — Não
abortei seu filho.
Os batimentos de Hassam estancaram no peito, então deram pelo
menos duas cambalhotas.
—Não brinque comigo, Mykaela, não...
—Não estou mentindo — ela virou o rosto, escondendo as próprias
lágrimas. — Acesse o laço... A coisa te ligando a mim. Não é mentira.
Ela praticamente conseguiu escutá-lo engolindo em seco.
—Então por que... Por que me deixou dizer todas aquelas coisas, por
que ficou...
—Porque eu ia fazer — confessou, baixinho. — Mereço sua raiva
porque ia tomar a ruína-de-lobo. Ia fazer isso esperando que você nunca
soubesse, sem... Sem dizer nada. Não quero ser mãe, nunca quis — soluçou.
— Mas então percebi que alguém te contaria. Safira, ou Vaska, ou Will...
Tenna... E eu te perderia. Você nunca me perdoaria.
Os passos dele se aproximaram devagar, mas Mykaela foi recuando,
as feições ainda cruas com cada grama de embaraço e apreensão em seu
interior.
—E eu aguentaria tudo, Hassam. Tudo. Perder minha tia, meu irmão,
essa criança — as costas dela bateram numa parede, e a Platina por fim
ergueu os olhos em brasa para encarar a expressão perplexa de Imanur com o
queixo erguido, ainda que seu maxilar tremesse. — Mas não aguentaria
perder você. Não você, não por causa disso, não pela minha mesquinhez.
O pomo de adão na garganta dele se moveu com esforço, as íris
castanhas densas com uma suavidade paciente.
—Me desculpe por cogitar fazer isso, eu... — a garota pausou a
admissão por alguns segundos sôfregos antes que começasse a soluçar alto.
— E-Eu tive medo. Mas soube que enfrentaria essa decisão, que abdicaria
desse receio se você estivesse comigo no final. Foi quando o laço se
concretizou, quando... Quando eu aceitei que precisava desesperadamente
mais de você do que do meu orgulho tolo.
E ele já lhe havia aceitado há tempos. Tudo que Mykaela precisara
fazer fora abraçar aquela verdade, e o laço se encaixara como duas peças de
quebra-cabeça, mesmo com ele distante, mesmo com a vergonha no coração
dela.
Os olhos de Hassam cintilavam.
—Kaelie...
Ele extinguiu os passos finais entre eles e a abraçou, então, os dois
caindo de joelhos e estremecendo com as emoções avassaladoras nos braços
um do outro. A garota se desfez e se remontou naquele abraço, naquele calor
e na familiaridade do par que agora era dela para amar e proteger, honrar e
respeitar.
Seu par, seu par, seu par.
—Diga alguma coisa — ela fungou, o rosto ainda enterrado na camisa
dele.
O lupino inspirou ao apertá-la contra si, uma risada sufocada
deixando seu peito e a fazendo sacudir de leve.
—É um pouco tarde para confessar que te amo? — indagou, sem
fôlego.
Foi a vez do riso engasgado deixar os lábios dela.
—Não — respirou, deixando o alívio e o puro êxtase que aquela frase
lhe causara varrerem sua angústia como o mar empurrando a areia no litoral.
— Não é mesmo. Eu ouvi da primeira vez. E... E tenho a impressão de que é
mútuo.
Ele a comprimiu mais em seu abraço.
—Sinto muito pelo que disse, eu... Não quis dizer daquela maneira —
o queixo de Imanur estava tenso sobre o topo do seu cabelo. — Estava louco
com a raiva e a mágoa, não estava pensando direito.
—Eu mereci cada palavra.
—Não mereceu. Não mereceu, eu devia ter pedido mais explicações
antes de supor coisas e te acusar....
—Hassam — ela cortou, dando tapinhas de consolo no ombro dele e
erguendo os olhos inchados de choro com sarcasmo. — A vagabunda
prepotente às vezes vai agir como uma vagabunda prepotente. Agora você
infelizmente vai ter que me tolerar.
A risada dele fez um lugar no âmago dela se iluminar e aquecer, mas
a sensação logo esmaeceu com a sentença seguinte do lupino:
—O que você quer fazer com essa criança, Mykaela?
A guardiã congelou no lugar e se afastou lentamente do calor dele,
piscando em confusão quando sua mira encontrou a de Imanur.
—Como assim?
As feições dele se encheram de agonia novamente, ainda que as mãos
calejadas acariciassem seus antebraços de modo tranquilizador.
—Eu estava com raiva porque você ia seguir em frente com aquilo
sem me contar, sem conversar comigo ou me dar a chance de dizer algo a
respeito — um fôlego fraco. — Mas você não fez isso, e podemos conversar
agora.
As sobrancelhas dela foram parar na raiz do seu cabelo.
—Hassam...
—Eu gostaria muito de criar esse bebê. Seria minha honra e a alegria
da minha vida, principalmente porque você seria a mãe dele, porque eu faria
tudo por vocês dois — a voz grave de repente soou embargada. — Mas eu
entendo que você terá funções que eu nem poderia chegar perto de ser capaz
de cumprir, com essa criança. Seu papel envolveria mais do que honra ou
alegria ou cuidado. Eu entendo que se... Se você não quiser, eu... E-Eu...
A mão de Mykaela se entrelaçou à dele, os olhos dourados da guardiã
se enchendo de lágrimas.
—Você faria isso... Por mim? Concordaria com o aborto?
A palavra com A fez um tremor atravessar o corpo de Hassam por
inteiro.
—A escolha é nossa, Kaelie. Nossa — repetiu, apertando seus dedos
com veemência. — Isso me destruiria, admito. Pensar que não terei a chance
de conhecer um filho nosso, isso... Seria um inferno pelo resto da minha
existência. Mas eu respeitaria. Não tenho controle sobre seu corpo ou sobre o
que deveria fazer com ele, então sim. Faria... Faria isso pela sua felicidade.
Sacrificaria uma parte de si mesmo por ela, assim como ela sacrificara
outra por ele, ao não seguir em frente com o aborto. Hassam entendia cada
fração da sua alma. Hassam sangraria por ela o tanto que Mykaela sangraria
por ele, ou até mais. Hassam era aquele por quem tinha valido a pena esperar,
por quem tinha valido a pena sofrer.
Uma fração quebrada da sua consciência concluíra que amor era algo
que tomava e te esgotava e te cobrava mais do que se poderia ceder. Amor,
na sua experiência, não durava, não para ela. Mas aquele amor com Imanur
até lhe cobrava, sim, mas retornava o dobro em volta. Era mais do que pedira,
mais do que sonhara, muito mais do que aguentaria perder.
A garota levou as mãos entrelaçadas de ambos até a superfície ainda
lisa da sua barriga.
—A mera possibilidade me assusta — deixou escapar, num sussurro
quase inaudível. — Sou péssima com crianças.
—Sou ótimo com elas.
—Não tenho ideia de como educar uma coisa dessas.
—Um bebê, Kaelie — ele corrigiu, delicadamente, olhando com
reverência para onde a palma dele estava alojada. — Pode dizer a palavra. E
aprenderíamos a educá-lo juntos.
—Juro que se deixar todo o maldito do trabalho para mim porque sou
fêmea... — ela ameaçou, os lábios tremendo.
Um sorriso enorme se abriu no rosto de Hassam, pura luz e alívio e
gratidão.
—Você arrancaria minhas bolas e me faria engoli-las — ele se
abaixou para beijar seu abdômen com carinho, para logo em seguida beijar
sua boca. — Tenho plena consciência disso, Kaelie.
Ela engoliu em seco, fechando os olhos e deixando aquela verdade se
assentar nela com uma expiração instável, a testa colada na dele.
—Tudo bem.
—Tudo bem? — o júbilo na voz de Imanur a fez assentir com a
cabeça mesmo ao abrir os olhos e sentir os lábios dele roçarem nos dela
afetuosamente outra vez.
—Juntos.
Ele concordou, os olhos brilhando.
—Juntos.

—TIRE! TIRE, TIRE, TIRE!


—Mykaela, você tem que empurrar! — Yundra tentou lembrá-la não
pela primeira vez, abaixada entre suas pernas com um olhar transtornado.
A garota berrou com a dor inominável rasgando-a em duas, fazendo
gotas de suor grudento e gelado escorrerem pela sua pele febril. A bruxa
curandeira estava tentando amenizar a agonia com suas habilidades já há
cinco horas, mas Mykaela se sentia sendo mutilada de todo modo, menos ou
mais sofrimento inenarrável sendo indiscernível em meio à nuvem de tortura.
Hassam, sentado atrás dela na cama ensanguentada e apoiando suas
costas da mesma maneira com a qual fizera naquelas últimas cinco horrendas
horas, apertou suas mãos de volta — ela vinha esmagando os dedos dele a
cada contração terrível — e murmurou em seu ouvido:
—Você pode fazer isso, Kaelie. Só mais um pouco.
—A porra da culpa é toda SUA! — ela vociferou, se contorcendo com
o esforço físico e a falta de ar. — Você colocou essa coisa em mim! Você
devia estar aqui sendo dilacerado de dentro para fora!
—Eu sei, meu amor — ele beijou sua testa suada com uma careta
angustiada. — Pode me bater o quanto quiser mais tarde, mas até lá você
precisa empurrar.
—Se acha que não consigo chutar sua bunda enquanto dou à merda da
luz, Imanur, você claramente subestima minhas habilidades — a garota
rosnou.
—Deusa acima, Skies, se concentre! — Vaska esbravejou, tensa e
ansiosa no canto do aposento enquanto substituía toalhas sujas de vermelho e
ajudava Yundra como podia. — Ponha a criança para fora!
—Venha aqui e faça você, cacete, se acha que é tão fácil!
—Espectro nos ajude — a Hylian murmurou baixinho, antes de
erguer a cabeça e chiar para a guardiã. — Você pode ficar aqui nos
ameaçando durante mais algumas horas, Platina, ou pode empurrar e acabar
com esse tormento.
Mykaela pensou em xingá-la, mas realmente não queria ofender a
mulher que supostamente estava contendo sua dor, que estava trazendo
aquela porcaria de criança ao mundo.
Ela se esforçou para lembrar das vantagens, das distantes, porém
valiosas vantagens da saída daquela coisa: ela poderia voltar a se transformar.
Poderia recuperar a forma física. Poderia enxergar seus pés novamente.
Poderia controlar os próprios hormônios outra vez. Poderia voltar para a
própria alcateia para voltar a servir como guardiã. Poderia até se deitar com
Hassam depois de semanas inteiras — mas uma parte dela estava
terminantemente traumatizada com isso, também.
Se tivesse de passar por sequer outra gravidez e outro parto, Mykaela
pessoalmente abdicaria da parte favorita dela em Imanur e a cortaria fora sem
dó nem piedade.
Porque puta merda, castrá-lo não doeria nem a metade da agonia que
a assolava naquele momento.
—Saia, seu pequeno merda! — ela gritou ao fazer força e se sentir
estirar. — SAIA!
—Kaelie, pelo amor dos...
—CALE A BOCA!
—Estou vendo a cabeça! — Yundra sorriu, aliviada.
E pensar que um ano antes ela tinha se aliviado por não ser aquela a
parir os filhos de Howl.
Hassam tinha sete centímetros de altura, dez de largura e pelo menos
trinta quilos a mais do que o alfa da alcateia. A deusa simplesmente devia
gostar de brincar de fazê-la pagar a própria língua pela eternidade.
—Mais um pouco, Mykaela! Só mais um pouco!
A garota berrou a plenos pulmões, as pálpebras apertadas e mãos
quase quebrando os dedos de Hassam ao empurrar, e empurrar, e empurrar.
Eu aguento, eu aguento, eu aguento
Com um último grito rouco e esgotado, as forças delas se esvaíram
por fim quando um choro agudo se uniu à exclamação de vitória de Yundra.
A dor inenarrável cessou de súbito como que por um milagre, e Mykaela se
deixou cair para trás com um gemido.
Era um som fino, irritante, acuado, aquele choro.
Arfando e certa de que nunca mais conseguiria mover as pernas, a
guardiã precisou se deitar contra Imanur para suportar o próprio peso. O foco
dela vagou perdido por todos os lugares do quarto confortável da casa que ela
e seu par haviam construído juntos, já que Ruby e Safira tinham conseguido
unir as matilhas depois de quase dois anos de interação próxima, e agora os
lupinos haviam se juntado aos licantropos no território nos arredores das
montanhas Ashyn. Ela felizmente não precisara escolher entre seu lar e o
macho que amava, não como precisara escolher entre seu futuro planejado e
aquilo.
Seu olhar finalmente se prendeu na bruxa curandeira e no embrulho
— o embrulho dela, dessa vez — que ela cuidadosamente ajeitava nos
braços. Vaska tinha os olhos marejados, o sorriso coberto pela mão ao
observar a cena.
—É um menino — Yundra trouxe aquilo até eles, embalando a coisa
chorona devagar ao sorrir.
—Ah, cale a boca — a Platina resfolegou. — Quem devia estar
chorando sou eu.
Hassam riu baixinho ao estender os braços para a bruxa e tomar o tal
embrulho nos braços.
—Senhoras e senhores, o troféu de mãe da alcateia vai pa... — então
um arfar baixo interrompeu a frase em seus lábios, fazendo a garota se
esforçar para erguer o olhar.
—O que é, o que...
Ele estava à sua frente, então.
Era minúsculo, considerando todo o trabalho que dera para sair.
Rosado, todo sujo e tinha só um pequeno tufo de cabelos escuros no topo da
cabeça pequena. Mas os olhos... Os olhos eram bicolores.
Um dourado, o outro castanho.
Como os híbridos de Ellayi, quando duas espécies igualmente
dominantes geneticamente se uniam num ser novo e único.
Mykaela sorriu um pouco, apesar do cansaço. Só um pouco.
—Olá, pequeno merdinha.
—Diga que não vão dar esse nome a ele — Feuer armou uma careta.
Hassam revirou os olhos, envolvendo Mykaela com um braço e aquilo
com o outro.
—Seria Mhytila, caso fosse uma menina — informou, sem tirar a
mira extasiada da figura barulhenta. — E, caso menino...
—Alexandhreo — Mykaela completou, com outro revirar de olhos.
Vaska piscou, projetando o lábio inferior em relutância.
—É... Exótico. Acho.
—É horrível. Um nome horrível para uma coisinha horrível é
apropriado.
—Sabe, o nome é em homenagem ao meu pai — pestanejou Hassam.
—Seu pai também não teve que te parir, então eu diria que seu
argumento não será levado em consideração.
Nunca mais, deusa e estrelas. Nunca. Mais.
Ela preferia ser esquecida no fosso por uma semana outra vez a passar
por aquela merda toda de novo.
—Ele é lindo, Kaelie. Obrigado por isso — a voz carinhosa de Imanur
a tirou dos devaneios quando ele beijou sua têmpora e aproximou o embrulho
para que ela o visse melhor. — Nosso Alexandhreo.
Hassam estava agradecendo por ela ter aceitado carregar aquele fardo
pelos dois, por ter aceitado criar uma família com ele. Mas uma parte de
Mykaela também tinha seu fragmento de gratidão pela oportunidade... Por
talvez ter a chance de criar seu filho de um modo diferente do qual os machos
da sua família haviam sido criados. Criá-lo para não cometer os erros que ela
mesma cometera. Sua redenção final, talvez.
Expirando devagar ao erguer os braços instáveis para segurá-lo,
Mykaela pensou que ele resmungaria, ou que ela o deixaria cair com a
fraqueza em seus membros, mas... Mas o bebê apenas se encaixou ali, ainda
se mexendo inquieto apesar de ter parado com o choro.
—Bom menino — ela murmurou, baixinho. — Mais um pouco
daquilo e eu te teria feito calar a boca com meios não tão passivos.
—Kaelie.
—Deusa ajude essa criança — grunhiu a Ônix.
—Tudo bem, ele é bonitinho — os olhos dela passearam pela pele
alguns tons mais escuros que a sua, os pequenos lábios carnudos e as
bochechas cheias com algo similar a um orgulho satisfeito. — Um pouco.
Metade licantropo, metade lupino.
Metade ela, metade o macho que amava.
Havia uma certa poesia em unir as melhores partes de dois indivíduos
em algo novo, ainda melhor. Mykaela com certeza esperava que uma parte do
temperamento de ambos tivesse respingado no bebê, mas... Um pouco de
mau-humor era inevitável para qualquer um, de vez em quando.
Seu filho.
Dela e de Hassam, o homem que havia passado de um dos seus piores
inimigos para seu melhor amigo. Que havia aguentado cada passo daquela
jornada com ela, que a entendia e a tornava melhor a cada dia mesmo com
seus acessos de falta de tato ocasionais. Que havia tornado aquele pequeno
contratempo possível.
Que agora só não era mais importante que seu próprio embrulho,
emitindo ruídos e soluços baixos em seu colo.
—Bem-vindo ao mundo, Alexandhreo — sussurrou, deixando a
pequena mão agarrar seu dedo com um sorriso de canto. — Ele é trágico,
opressivo, injusto e violento. Mas você teve a quem puxar, garoto. Então...
Você aguenta.
GLOSSÁRIO
Ágata: posto na guarda, atualmente ocupado por Meandrus Veiffer.
Acônito: também conhecido como ruína-de-lobo, é um veneno
extremamente agressivo para licantropos e lupinos no geral, podendo muitas
vezes ser fatal dependendo da quantidade utilizada.
Alfa: soberano de uma alcateia, normalmente representado pelo
indivíduo mais dominante.
Âmbar: posto na guarda, atualmente ocupado por Sinbad Elli,
costumava pertencer a Zyhe Il-Rashid.
Ametista: posto na guarda, atualmente ocupado por Dane Rowanell.
Artem: lua nova, uma das versões de Diana; a Guardiã.
Arye: província nordeste do território de Ultha; na mesma se localiza
a capital portuária, a vila de Safira e a floresta Tundrav, onde as criaturas
mágicas do reino vivem isoladas do restante dos humanos. (ver mapa)
Beta: segundo em comando numa alcateia, imediato do alfa.
Beniveses: habitantes de Benívea, o reino ao extremo sul de Ellayi.
Capital: Sunastra.
Bruxas: mulheres que nascem com a quantidade de sheitka elevada, o
que as permite usar magia levando em consideração seu nível de energia pré-
estabelecido.
Carcaças: macho lupino, ceifeiro especialmente violento,
responsável pela maioria das mortes no conselho licantropo, também
conhecido como Hassam Imanur.
Citrino: posto na guarda, atualmente ocupado por Tersa Aman-
Althaya, costumava pertencer a Agib Ahmed.
Colkan: reino em Ellayi, localizado na parte norte do continente.
Capital: Esprit.
Cristal: posto na guarda, atualmente ocupado por Minerva Okoye,
costumava pertencer a Ferjun Ottrem, e antes a Kiara Vowen, irmã de Lother
Vowen.
Diamante: posto na guarda, atualmente ocupado por Farah Osmani,
costumava pertencer a Howl Vowen.
Diana: versão completa da deusa lunar licantropa; uma das deusas
aprendizes originais, irmã de Parttin, Merayah e Riverandya. Divindade
matriarca dos licantropos e lupinos.
Ellayi: continente longínquo, território das criaturas místicas a oeste
de Ultha, lar das mais diversas espécies mágicas.
Esmeralda: posto na guarda, atualmente ocupado por Willhem
Meistens.
Felions: raça halfion felina, que tem como divindades superiores
Parttin e Fenrid.
Fenrie: lua minguante, uma das versões de Diana; a Criadora.
Floresta Tundrav: área coberta majoritariamente por matas de
pinheiros e ciprestes que vai do meio da província de Arye até a parte norte
acima das montanhas Ashyn.
Grã-Bruxa: soberana de um coven bruxo, aquela com mais acúmulo
de poder.
Granada: posto na guarda, atualmente ocupado por Eora Feuer,
costumava pertencer a Torph Denalyi.
Guarda: grupo de soldados encarregados da proteção de uma alcateia
licantropa, cujas designações são joias da terra.
Hierarquia: sistema de obediência e posição social numa alcateia,
definida a partir do mais para o menos dominante.
Hylian: bruxa curandeira.
Jade: posto na guarda, atualmente ocupado por Ieth Avery.
Khonse: eclipse lunar, uma das versões de Diana; a Carcereira.
Laço de pares: conexão mútua e única estabelecida entre dois
halfions, que envolve uma ligação emocional crua.
Lápis-Lazúli: posto na guarda, atualmente ocupado por Zaltana San-
Shankar, costumava pertencer a Gean Estharlo, e antes disso a Temise
Vowen.
Leyan: reino halfion na parte norte de Ellayi, onde as facções vivem
em relativa paz. Capital: Folkov.
Licantropos: raça halfion que se transforma em lobos, tem Diana
como divindade superior. Descendentes de Hila.
Lunar: Filhas da Lua ou Protegidas de Diana, são as licantropas que
a deusa abençoa com dons distintos caso as julgue dignas.
Lupinos: raça halfion que se transforma em lobisomens durante o
período de Diana do ciclo, consideradas bestas irracionais. Descendentes de
Keenu.
Lyrian: bruxa cantora.
Mago: descendente masculino de uma longa linhagem de bruxas cujo
poder não foi liberado numa descendente feminina; não possuem sheitka pré-
estabelecido; extremamente raros.
Merayah: uma das deusas aprendizes originais, irmã de Parttin,
Riverandya e Diana. Divindade matriarca dos drakions e lizions.
Neelie: reino em Ellayi. Capital: Neelana.
Obsidiana: posto na guarda, atualmente ocupado por Allura Korieva,
costumava pertencer a Rayhana San-Shankar, e antes disso ao traidor Eiko
Skies.
Oldravon: rio que divide Arye do restante do reino, ocupando
território também em Intudia, Tirnac e Suvilla.
Ômega: lobo desgarrado; teve a alcateia morta, foi expulso ou então
decidiu abandonar a matilha.
Ônix: posto na guarda, atualmente ocupado por Vaska Feuer, capitã
da guarda da alcateia, costumava pertencer a Vikram Feuer.
Opala: posto na guarda, atualmente ocupado por Matteo Hillivar,
costumava pertencer a Jian Vanhelza.
Parttin: uma das deusas aprendizes originais, irmã de Merayah,
Riverandya e Diana. Divindade matriarca dos allions e felions.
Perdição: fêmea líder lupina, ceifeira, obcecada por vingança pela
família Vowen, também conhecida como Tenna Desymer.
Pérola: posto na guarda, atualmente ocupado por Tyrian Aman-
Althaya.
Petrion: capital monarca e província principal do reino de Ultha,
localizada no litoral oeste do território. Sede de poder do rei Artheron II.
Platina: posto na guarda, atualmente ocupado por Mykaela Skies.
Pravka-Argentae: Presas Prateadas na língua antiga, caracteriza a
guarda de elite composta exclusivamente por fêmeas da Alfa-mor licantropa
de Leyan.
Psi: híbrido de lupino e licantropo.
Quartzo: posto na guarda, atualmente ocupado por Othella Benikov,
costumava pertencer a Milo Bonnak.
Riverandya: ninfa elemental da água, uma das deusas aprendizes
originais, irmã de Parttin, Merayah e Diana. Divindade matriarca das sereias
e sirenas.
Rivshekylah: maior reino em Ellayi, lar dos manipuladores das casas
elementais. Tem como divindades superiores as quatro ninfas elementais.
Capitais: Monttearli, Solarie, Atalanta e Briseida.
Rubi: posto na guarda, atualmente ocupado por Peter San-Shankar.
Sacerdotisa: serva de Diana na alcateia, canal entre a deusa e suas
crias, responsável por manter a memória da divindade em vigor.
Selenia: lua crescente, uma das versões de Diana; a Anciã.
Seelünvaratja: Moedora de Ossos, antiga espata de Eiko Skies, e
antes disso, do pai, Kadam Skies.
Shia: Termo de respeito unido ao fim do sobrenome que significa
“senhorita” na língua antiga de Leyan.
Sha: Termo de respeito unido ao fim do sobrenome que significa
“senhora” na língua antiga de Leyan.
Sielan: bruxa do fogo.
Sombras: fêmea lupina, também conhecida como a falecida Noen
Desymer, ceifeira.
Topázio: posto na guarda, atualmente ocupado por Aleith Cassionder,
costumava pertencer à Nye Reiters.
Turmalina: posto na guarda, atualmente ocupado por Cassius
Merard.
Turquesa: posto na guarda, atualmente ocupado por Yleah Terand,
costumava pertencer a Lian Terand.
Ultha: reino ilha entre o continente humano e Ellayi, povoado e
governado majoritariamente por humanos. Capital: Petrion.
Vuk’ropesch: veneno letal composto por acônito, enxofre, beladona,
estramônio e magia. Se não for tratado apropriadamente com urgência, mata
a vítima em minutos de forma dolorosa.
AGRADECIMENTOS
Acho que, em primeiro lugar, eu deveria agradecer às almas bondosas
no instagram que votaram para que a Myka fosse a primeira a ganhar um
conto/novelette. Eu estava tão ansiosa para mostrar a história e o crescimento
dela que esse spin-off foi um presente tanto para mim quanto para vocês.
Obrigada por abrirem esse cabaré comigo, hahahahaha <3
Em segundo lugar, agradeço às leitoras e leitores de Safira de Prata,
que são o motivo de eu ter chegado a escrever um conto a partir dessa
primeira história em primeiro lugar. Obrigada, sempre, por realizarem meu
sonho.
Em terceiro, parte I, Mamacita: obrigada pelo apoio, pelas correções,
pelas dicas, pelos comentários, por ficar sem dormir para me ajudar a revisar
os capítulos e pela amizade. Te amo, você arrasa.
Em terceiro, parte II, Ermes: obrigada por tudo, mas principalmente
por me fazer rir loucamente com as observações sanitárias a respeito das
cenas apimentadas dessa novelette. Ainda acho que a Anvisa tinha que te
contratar. Te amo, você arrasa.
Em quarto, obrigada mãe e pai. O apoio individual e único de vocês
me permitiu ir mais longe do que eu sequer poderia sonhar em ir. Obrigada
por tornarem tudo isso possível (e, por gentileza, PULEM AS PARTES DO
CABARÉ).
Obrigada Vanessa, por ainda ser maravilhosa e me ajudar sempre que
pode, e obrigada Gabi, por se obcecar tanto com o Dhreo e por me fazer
destrinchar a origem dele. Não se preocupe, você ainda vai ver mais um
bocado do seu marido literário em um dos próximos contos, em específico.
E obrigada novamente, leitora ou leitor que chegou até aqui.
Amo que vocês me aguentam até a bendita da última página.

Com amor, Laura.


SOBRE A AUTORA
Laura Reggiani nasceu no interior de Minas Gerais, mas atualmente
vive na capital do estado, onde está estudando para se graduar em Letras na
UFMG. Antes disso, no entanto, ela morou fora do país por um ano e
adquiriu uma compulsão preocupante por viajar e colecionar ímãs de
geladeira turísticos.
Quando não está fazendo isso, você pode encontrá-la mimando sua
cachorra e seus gatos, revendo episódios de Doctor Who, tomando café com
açúcar demais, lendo alguma ficção ou inventando tramas literárias e palavras
difíceis a partir dos seus sonhos bizarros. Laura morre de medo de aranhas e
de cair de escadas. Ela não é uma bruxa do fogo nem se transforma em uma
loba, mas fala quatro idiomas e é bastante multitarefas. Safira de Prata e
Diamante Dourado compõem sua primeira duologia completa publicada, e
Mykaela é um spin-off da mesma. Você pode descobrir mais sobre ela (ou
enviar uma mensagem bacana) aqui:

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