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O DOMÍNIO DAS PAIXÕES TRISTES

Eunice Ostrensky (DCP-USP)

Em Le temps des passions tristes (2019), o sociólogo francês François Dubet designa
por paixões tristes o ódio, o ressentimento e a indignação, paixões que levam ao desejo de
denunciar e humilhar (os muito pobres, os periféricos, os estrangeiros e os refugiados, os
intelectuais, as mulheres, os africanos, os homossexuais, os cientistas, os fora de padrões
físicos etc.). Ele atribui o aguçamento das vocalizações dessas paixões à amplificação das
desigualdades, ou à percepção das múltiplas desigualdades, que são vivenciadas como
experiências singulares, como algo que põe em xeque o próprio valor, uma manifestação de
desprezo e humilhação. A tese de Dubet (2019, p. 59) é a de que essas paixões (ou
sentimentos) são produzidas pela transformação do regime de desigualdades e, mais ainda,
elas caracterizam a individualização das desigualdades.

Dubet atua como sociólogo, investigando o sofrimento social e um certo esgotamento


das lutas coletivas. Seus estudos sobre classes sociais, conflitos no interior das classes sociais
e interseccionalidade trazem elementos relevantes para a compreensão das paixões tristes e
por que elas são traduzidas como individualizadas, em vez de tomarem corpo em
reivindicações por justiça social. Uma preocupação análoga, de tentar compreender a
dimensão passional da política, porém, não se encontra, salvo engano, entre praticantes da
ciência política e mesmo da teoria política. Estes relegam às paixões um papel marginal,
quando não inexistente, na explicação e conceituação de fenômenos políticos, privilegiando
a racionalidade dos atores e o papel das instituições na racionalização das paixões e
interesses. Entre as razões dessa escolha epistemológica e metodológica, estão a busca pela
objetividade e a tentativa de excluir de ideais de normatividade elementos identificados
como fatores de instabilidade. Para o mainstream da ciência política, se é preciso construir
teorias logicamente coerentes e preditivas da ação humana, a dimensão passional da política
deve ser deixada de lado como não política, confinando-se à subjetividade e à irracionalidade,
que ora são abarcadas pela biologia, ora pela psicologia. A perspectiva racionalista, porém,
impede-nos de reconhecer a natureza do conflito, os motivos da ação e a centralidade dos
símbolos na construção dos fundamentos do poder. Ao colocar as paixões em evidência, não
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pretendo defender uma abordagem irracionalista da política, o que seria, de certo modo,
reiterar a dicotomia (gasta) entre razão e paixões. Ao examinarmos as interações entre as
emoções e aspectos relevantes da vida política, notamos que ações passionais não se
dissociam, necessariamente, de atos racionais.

Neste texto, gostaria de explorar dois efeitos aparentemente contrários da


mobilização das paixões tristes, recorrendo a uma análise política desse fenômeno. O
primeiro é a desintegração política e social provocada por imagens e símbolos de terror e
violência; o segundo, o aglutinamento produzido pela construção de imagens ameaçadoras
de agentes externos, invocando-se uma reação coletiva contra o que é visto como inimigo. O
pressuposto deste texto é que diferentes formas de sociedade são conformadas e, por sua
vez, conformam diferentes condições para um conjunto particular de paixões ou emoções.
Não estou querendo dizer com isso que os agentes ou atores políticos dispostos a suscitar
emoções intensas e violentas são os principais responsáveis por produzir mudanças políticas
e sociais, em detrimento de constrangimentos estruturais mais amplos. O que argumento é a
necessidade de examinar o papel causal desempenhado pelas paixões em esforços
deliberados de reiterar ou atacar convenções existentes, criar laços de comunidade e
pertencimento, mobilizar ou desmobilizar grupos de acordo com critérios de identidade,
diferença, superioridade e inferioridade, produzir participação na vida política ou a retirada
desta. As paixões tristes, como as alegres, são social e culturalmente construídas. Examiná-
las requer tirar o foco dos indivíduos e tentar abarcar suas relações, já que a lógica do
comportamento coletivo parece ser distinta da lógica do comportamento individual.

Por meio da discussão de passagens retiradas d’O Príncipe (1513), de Nicolau


Maquiavel, e Massa e poder (1960), de Elias Canetti, pretendo examinar como discursos e
imagens atuam sobre certas paixões do ouvinte-público, levando-os a agir. Que as emoções
movem e dirigem nossas ações é algo bastante sabido. Lembremo-nos de Hamlet que, diante
do fantasma do pai, de início se apavora e descrê, mas, num segundo momento, dá se conta
do ódio contra os que causaram a morte do pai e age para vingá-lo. O conhecimento de como
suscitar ou apaziguar paixões coloca em questão o problema do controle das paixões, de si e
de outros, e do poder que se alcança por meio desse conhecimento. Como espero mostrar
com esses dois casos tão distintos, falar em afetos ou paixões políticas tristes implica
examinar alguns dispositivos utilizados, de um lado, para produzir obediência, submissão e
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dispersão, mas, de outro lado, instigar movimentos de formação de grupos investidos do


poder temporário de destruição, seja de pessoas, seja de normas convencionais de convívio.

Ao que parece, foi Baruch Espinosa, no Livro III da Ethica, quem primeiro classificou as
paixões ou afetos originários em desejo, alegria e tristeza. Medo, ódio, inveja, ambição e
remorso são consideradas paixões tristes, segundo Espinosa, porque são as mais intensas e
violentas, mas também as que mais enfraquecem a capacidade de viver do corpo e da alma
(CHAUÍ 1990, p. 55). Nos nossos tempos ambíguos, em que da democracia como estado social
surgem discursos e práticas autoritárias (PENSKY 2018), duas outras paixões poderiam se
enquadrar entre as tristes: o ressentimento, paixão reativa, que nasce do sofrimento da
impotência gerada pela perda da supremacia ou pela falta de reconhecimento (TENHOUTEN
2018 ) 1, e a indiferença, se bem que esta, na verdade, poderia ser mais bem descrita como
apatia ou ausência de paixão. Chamá-las de tristes, neste texto, supõe fazer uma avaliação
moral sobre suas consequências e até mesmo sobre os meios utilizados para suscitá-las: são
tristes porque implicam o desejo de subordinar outros a um mando arbitrário e caprichoso,
de aniquilar quem incomoda ou parece desafiar valores tidos como certos; uma indiferença
quanto ao que nos cerca; um desejo, enfim, relacionado à agressão, supressão, eliminação e
morte.
O verbo grego pathein significa, originalmente, sofrer ou tolerar algo e pathos designa
o acontecimento que, nas histórias, era essencial para a religião popular e as tragédias: o
sofrimento catastrófico experimentado por um homem ou deus, muito mais excessivo do que
o sofredor mereceria (GOULD 2014, p. xiii). Exemplos célebres de personagens que sofrem
um pathos são Édipo e Cristo. Assistir ao pathos provoca nos espectadores piedade ou
compaixão, que, por sua vez, tem efeito catártico e purgativo (GOULD 2014). Tanto Cícero
como Quintiliano (VI, 2, 20) associam pathos às paixões violentas ou veementes (ira, medo,
ódio, desgosto, piedade) que o orador é capaz de suscitar nos ouvintes, alterando suas
disposições internas. Há um elemento de passividade (termo também derivado de pathos)
dos ouvintes e do público em face dos discursos nas assembleias e tribunais, bem como das

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Sobre o ressentimento como paixão democrática, ver BRAHAMI 2012.
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imagens e sons dos teatros, os ouvintes são passivos. Entretanto, seria precipitado concluir
que essa qualidade seja a única que os define. Quando se trata de acessar as paixões dos
ouvintes, o orador precisa antes investigar suas disposições e tentar compreender o que para
eles é aceitável ou repulsivo (CICERO II, XLIV, 186-187). Mais ainda, as paixões ou afetos
postos em movimento produzem um efeito, porque é a partir destes que os ouvintes decidem
a respeito de alguma questão em debate ou agem. Por último e não menos importante, o
público quer sentir, quer ter as emoções suscitadas pela intensidade, porque isso é fonte de
prazer.
Podemos avançar agora numa outra direção. Meu argumento é o de que muitas das
emoções que experimentamos ao ouvirmos discursos ou vermos imagens divulgadas em
público, e nosso comportamento que se segue dessa experiência, são produzidos
coletivamente. Em primeiro lugar, isso significa dizer, como Searle (2010, p. 145), que o
comportamento coletivo não é apenas distinto do comportamento individual, como
tampouco é resultado da soma dos comportamentos individuais (o todo é maior do que as
partes). Não conseguimos fornecer uma explicação para fenômenos políticos e sociais sem
entender as dinâmicas emocionais geradas no espaço público. É verdade que as emoções
coletivas também podem implicar respostas geradas por personalidades individuais, mas não
é possível considerar esses processos separadamente (GOODWIN JASPER & POLETTA 2001,
pp. 5-10). Ao contrário, emoções, como princípios morais e conceitos, são aspectos da
cultura; ao encontrarem sua expressão e tradução em comportamentos, adquirem um
estatuto compartilhado. Mais à frente, quando tratar de algumas passagens de Massa e
Poder, de Elias Canetti, espero deixar esse ponto mais claro.

Com base nisso, podemos falar, em segundo lugar, em regimes emocionais


específicos.2 As paixões tristes, no sentido alargado, predominam em sociedades
caracterizadas pela dispersão dos indivíduos, sua desconfiança e inimizade em relação uns
aos outros, seu encontro adventício apenas para confirmar a destruição de antigos laços de
união e da sociabilidade num sentido mais amplo. Esse regime emocional, porém, depende

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Como lembram Pernau e Jordheim (2015, p.8), “O foco sobre o conhecimento e a inovação técnica é sempre
considerada em sua conexão com um regime emocional específico – a dedicação ao progresso e a racionalidade
pressupõe o controle das emoções espontâneas, mas também conduz a um modo racional e equilibrado de
sentir e agir, não mais guiado por superstições e impulsividade”.
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da experiência histórica: condições particulares e eventos contingentes afetam o tipo de ação


que é motivada por um regime de emoções. A mobilização das paixões tristes, como não
poderia ser diferente, reflete transformações históricas e as produz.

Para ilustrar melhor meu argumento, passo agora ao exame de uma cena muito
conhecida por teóricas do pensamento político moderno: a descrição aparentemente fria que
Maquiavel faz da execução de Remirro de Orco no capítulo 7 d’O Príncipe. A violência da cena,
seu caráter teatral e sua eficácia política levaram muitos intérpretes a considerar que
Maquiavel recomendaria cursos de ação similares a príncipes que quisessem alcançar e
manter o principado. Trata-se, de fato, de um dos exemplos mais eloquentes sobre
estratégias empregadas por governantes para conquistar poder e dominação. Aqui, a cena
me interessa por ajudar a pensar sobre a importância das imagens de terror para mobilizar
os afetos dos súditos e dispô-los a um certo tipo de comportamento. É preciso então, de
saída, prestar atenção ao caráter teatral da narrativa, em particular a seus elementos trágicos.
Também devemos examinar a ação do perpretador/ autor/orador – César Bórgia – e os
efeitos produzidos pela cena de terror nos espectadores/público.

A narrativa começa com a descrição do estado de desordem na Romanha logo depois


da conquista de Bórgia. Nesse prólogo, Maquiavel enfatiza a condição de extrema corrupção
em que se encontrava a região, com violência empregada em múltiplos níveis e anarquia:
senhores locais criminosos espoliavam e assassinavam os súditos, ação disseminada e imitada
pelos inferiores, num efeito cascata que destruía qualquer aparência de civilidade. As
punições aos súditos, como consequência, soavam aleatórias e desproporcionais. As paixões
que predominam na região são o ódio, que induz às conspirações, a desconfiança e o medo –
paixões não muito distintas das que imperam no famoso estado de natureza desenhado por
Hobbes no capítulo 13 do Leviatã. É para impedir esse estado de coisas que Bórgia julga
necessário introduzir não apenas um “bom governo”, compreendido aqui não como um
governo justo, mas como governo eficaz, isto é, governo monárquico baseado na obediência
e submissão. Não parece haver outra maneira de fundar o principado novo sobre uma
sociedade corrompida, senão pela violência. Para pôr fim à violência descontrolada, emprega-
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se a violência controlada e a isso se dá o nome de governo pacífico (MACHIAVELLI, 2014, 6,


p. 48).

Ocorre que Bórgia decide não se apresentar aos habitantes da Romanha como o
homem que imporá a ordem, escolhendo em seu lugar Remirro de Orco (MACHIAVELLI, 2014,
7, p. 48). Remirro se desincumbe tão bem da tarefa, que em pouco tempo torna a Romanha
pacífica e unida, “com enorme reputação” (MACHIAVELLI, 2014, 7, p. 48). Nesse primeiro
momento, a reputação tem um sentido positivo e a sobreposição entre Bórgia e Remirro não
nos permite saber quem conquistou o povo: Bórgia ou Remirro? A dúvida parece atordoar
também Bórgia, que suspeita do poder de seu símile sobre seu povo. No segundo momento,
a pacificação da Romanha passa a se fundar no medo, não no amor. Bórgia está de tal modo
identificado a seu lugar-tenente que as crueldades empreendidas por este são atribuídas
àquele: “Depois, o Duque julgou não ser necessária tão excessiva autoridade, porque ele
temia que se tornasse odiosa” (MACHIAVELLI, 2014, 7, p. 48). Bórgia receia adquirir uma
reputação negativa, parecendo-se com o tirano que ele de fato é. O possível ódio criado pela
excessiva força indica que a região não estava tão pacificada como parecia à primeira vista –
portanto, os fundamentos de Bórgia estavam longe de ser sólidos. De outro ângulo, é possível
que a reputação de pacificador adquirida por Orco se dê a custas de Bórgia, que não morava
na Romanha. Não seria surpreendente, ainda, se Orco estivesse conspirando com alguns
habitantes da Romanha contra Bórgia. Diante dessas circunstâncias, Bórgia leva a
representação teatral ao limite.

Primeiro, ele constitui um tribunal, composto por advogados das diferentes cidades e
presidido por um homem reconhecidamente probo. Torna-se evidente o desejo de o Duque
representar seu governo como amparado nas leis e nas convenções de justiça, por oposição
ao governo pessoal e cruel de Orco. Com essa medida, ele busca se desvencilhar de seu lugar-
tenente, esperando não mais suscitar ódio nos súditos, mas amor: “... para purgar esse
sentimento daquelas pessoas e conquistar a todos, ele queria mostrar que, se alguma
crueldade havia sido cometida, não cabia a ele, mas à natureza dura de seu ministro”
(MACHIAVELLI, 2014, 7, p. 49). A segunda medida parece não apenas independente, como
ainda contrária a essa. Eis que, quando esperávamos um Duque amável, oposto a seu lugar-
tenente, assistimos a um espetáculo de terror, no qual se rompe a aparência de legalidade.
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Dispondo-se a praticar um ato de extrema violência sob a aura de piedade e justiça, o Bórgia
d’O Príncipe decide repentinamente se livrar de Remirro:

“Aproveitando-se de uma ocasião, numa certa manhã ele fez que Remirro fosse
colocado em duas peças na praça de Cesena, com um bloco de madeira e um
cutelo ensanguentado a seu lado. A ferocidade desse espetáculo deixou o povo
ao mesmo tempo satisfeito e estupefato (sattisfati e stupidi- MACHIAVELLI, 2014,
7, pp. 49-50).

Na tragédia aristotélica, “peripécia” é a mudança de uma situação para seu inverso,


contrariando e surpreendendo as expectativas da plateia. Aqui, como parece óbvio, a
peripécia acontece quando Bórgia passa do regime de legalidade para o regime do terror.
Outro elemento importante de um enredo complexo é a cena do sofrimento ou pathos,
definida como “ação destrutiva ou dolorosa, como a morte no palco, a agonia corpórea,
ferimentos etc.” O objetivo da peripécia e do pathos é contribuir para suscitar medo ou
piedade, que constituem as finalidades mesmas da tragédia (ARISTOTELES 1995, 1452a-
1452b). A piedade é o sentimento suscitado quando vemos alguém sofrer mais do que
merece; o medo é o sentimento provocado quando nos damos conta de que a situação do
sofredor não é diferente da nossa. Nos dois casos, a plateia é levada a se identificar com o
herói trágico. Por isso, Aristóteles recomenda que não se encene o pathos de um homem
extremamente virtuoso: a injustiça do enredo inspiraria ódio, não piedade. Do mesmo modo,
não há nada de trágico no enredo em que um homem mau passa da felicidade à miséria, já
que seu infortúnio se deve a sua própria depravação, não a um erro de julgamento. Assistir a
sua queda satisfaz nosso senso moral, sem suscitar medo ou piedade (ARISTOTELES 1995,
1452a-1453b). Os heróis trágicos são aqueles que cometem um grande erro e produzem ações
inesperadas, não por perversidade, mas por fraqueza. Representações vívidas de ações que
suscitam piedade ou medo permitem, segundo o Estagirita, purgar essas emoções dolorosas
e perturbadoras, isto é, provocar uma catarse (ARISTOTELES 1995, 1449b27-28) que nos
restitua algum equilíbrio. A fim de produzir mais intensamente esse efeito, a ação trágica
costuma transcorrer dentro da família: o perpetrador ou perpetradora da violência tem uma
relação de sangue com a vítima (ARISTOTELES 1995, 1453a; GOULD 2014, p. 51).
Se nos voltarmos agora para o episódio da execução de Remirro, veremos que
Maquiavel em parte endossa e em parte subverte alguns dos elementos básicos da tragédia
aristotélica. Que a cena é um espetáculo, o próprio Maquiavel o diz – um espetáculo de
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terror. Remirro se caracteriza como vilão, o que impede a identificação do espectador com
seu desfecho, enquanto Bórgia não é um vilão e tampouco um herói trágico. Ao contrário,
Maquiavel enfatiza que, ao ver o corpo decapitado, o público-povo ficou “satisfeito e
estupefato”, sentimentos distintos da piedade, mas não do medo. Remirro e Bórgia, a vítima
e o perpetrador, não são irmãos, embora tenham uma forte relação de semelhança, rompida
quando se torna claro o antagonismo entre os dois. Interpretando os desejos do povo, Bórgia
oferece a este o que o ele queria: a sensação de justiça, ou melhor, justiçamento. Depois do
espetáculo, o ódio que começava a nascer é purgado e o público pode voltar a seus afazeres,
suas propriedades e mulheres. A gratidão pela eliminação do flagelo, associado eficazmente
por Bórgia a Remirro, leva o povo a amar o príncipe (MACHIAVELLI, 2014, 12, p. 119).
O que torna o efeito do espetáculo mais duradouro, entretanto, não é a sensação de
ordem restabelecida. Por serem os homens “ingratos, volúveis, simuladores e
dissimuladores” (MACHIAVELLI, 2014, 17, p. 118), o amor é um vínculo politicamente frágil.
A paixão com que o príncipe pode contar é o medo. O espetáculo público se reveste, aqui, de
um caráter religioso, assumindo a forma de um ritual de sacrifício, que inspira estupefação e
assombro, paixões paralisantes diante de algo ou alguém grandioso, terrível e misterioso3. O
Duque, de fato, transmite a impressão de poder extraordinário, capaz de fazer e desfazer as
pessoas, torná-las seus instrumentos, tudo isso manipulando apenas imagens (o cadáver
partido em dois, o cutelo e o cepo ensanguentados), não palavras. O corpo decapitado de
Remirro adquire um duplo significado. Ele é tanto o bode expiatório que carrega consigo os
impulsos violentos do público – evidentes pelo contentamento com o qual se assiste ao
espetáculo (REBHORN 1988, p. 121), como a projeção do corpo de cada pessoa do público,
que se sabe igualmente sujeita à ferocidade do Duque. Se no teatro o público experimenta
um sentimento de vulnerabilidade num ambiente seguro, na praça, a céu aberto, o pacto
ficcional está ameaçado. O efeito dessa “performance retórica” (REBHORN 1988, p. 86) é a
reverência e sujeição do povo. A tragédia borgiana visa a reforçar uma dominação
monárquica, baseada no temor religioso, e aposta na dispersão dos súditos para impedi-los
de se unirem como cidadãos livres.

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Sobre a paixão do terror, veja-se Ginzburg 2008.
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O episódio da execução e exposição na praça central do corpo despedaçado de


Remirro de Orco exemplifica o que os governantes estão prontos a fazer a fim de satisfazer
seu desejo de dominação, quando quase nada os impede ou constrange. O mesmo episódio
nos revela, também, algo sobre as ações e reações dos espectadores antes, diante e depois
da cena. Já sugeri acima que o espetáculo terrível possui um poder de atração e por isso não
é à toa que Maquiavel destaca a satisfação dos habitantes da Romanha ao verem o corpo
flagelado do intendente de Borgia. De modo muito significativo, o público não é inteiramente
passivo diante dele. Ao contrário, a teatralização da violência parece pressupor que há, da
parte do público, um desejo de tomar parte dela, não ser mero espectador, ainda que sua
participação se limite a um breve espaço de tempo. É importante assinalar a brevidade dessa
experiência, dessa ação coletiva motivada pelo terror, porque ela contrasta com emoções
cultivadas longamente (como, por exemplo, a civilidade, a confiança e a justiça, que têm por
trás de si um empenho de se responsabilizar pelo interesse comum (PERNAU & JORDHEIM
2015, p. 2). O que é duradouro, porém, é seu efeito: ao constituir um imaginário subordinado
ao medo e às fantasias de violência, conduz os espectadores, agora dissolvidos em indivíduos,
ao isolamento, ao rompimento dos laços com outros, laços até mesmo discursivos, que
exprimem a sociabilidade4.
Meu próximo exemplo privilegia o movimento de aglutinação que é provocado pelo
desejo de se identificar a um grupo ou a um corpo coletivo, bem como o movimento
antagônico de se separar dolorosamente desse grupo após a realização de uma ação
conjunta. Quem os examina é Elias Canetti, em Massa e Poder, livro nascido da determinação
de tentar compreender “como da massa surge o poder, e como este retroage sobre ela”
(CANETTI 2010, p. 124). O interesse de Canetti sobre a atração que as multidões exercem
sobre indivíduos surge ainda na sua juventude, quando presencia uma manifestação de
operários contra o assassinato de Walther Rathenau em 1922: “Senti uma forte convicção
que emanava deles e se tornava cada vez mais forte. Eu teria gostado de ser um deles; eu não
era operário, mas seus gritos pareciam me convocar como se eu o fosse” (CANETTI 2010, p.
83). Naquele momento, o que chama a atenção do escritor, ao perscrutar a si mesmo, é a

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Uma das consequências do estado de desconfiança e medo, marcas do estado de natureza descrito
por Hobbes no capítulo 13 do Leviatã, é a ausência de uma linguagem comum.
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intensidade do desejo de se encontrar entre a multidão - que Canetti só pode comparar a


uma força gravitacional -, o desejo de ser igual aos que já se encontram na multidão. Dois
anos mais tarde, andando pelas ruas de Viena, Canetti é subitamente atravessado pela forte
ideia de que “há um impulso da massa antagônico ao impulso individual” (CANETTI 2010, p.
126). O que é esse impulso ou tendência o autor ainda ignora. Somente décadas mais tarde
ele dará a isso o nome de emoções.
A principal motivação de Canetti para investigar as emoções que levam o indivíduo a
querer se inserir em diferentes movimentos coletivos se deve, claro, à ascensão e progressão
do nazismo na Europa após a Primeira Guerra Mundial. Mas há também uma motivação,
digamos, intelectual: Canetti não se satisfaz com a explicação da psicanálise, então corrente
em seu meio, de que “a compulsão coletiva” derivaria de projeções individuais dos conflitos
relacionados ao Complexo de Édipo. Para Canetti, essa explicação é intolerável. Os que
haviam tomado parte do morticínio, sob ordens, mas com satisfação, seriam os primeiros a
defender a explicação da psicanálise, porque com base nela “eles se tornavam inofensivos”
(CANETTI 2010, p. 124). A teoria freudiana das massas, concorda Adorno, substitui uma teoria
social pela psicologia individual (CANETTI 1996, p. 135).
Para Canetti, a sensação de segurança e proteção produzida pela massa nunca é
alcançada pelo indivíduo isolado (CANETTI 1962, p. 16). Ele deixa claro, de saída, que a massa
é um todo, mas não é um ser com vida e vontade próprias. Os indivíduos que a compõem
sentem suas dores e prazeres, mas o que predomina, na massa, é o desejo de estar com
outros, de formar uma unidade. A identidade pública, que muitas vezes é contingente, se
sobrepõe à identidade privada, porém não a anula. O que define afinal a massa são as
emoções compartilhadas na massa e por causa dela. A intensidade desses sentimentos torna
a incorporação na massa prazerosa, independentemente dos objetivos e dos efeitos do
movimento.
A massa não existiria, de fato, se não houvesse um momento em que todos os
indivíduos pertencentes a ela se livram de suas diferenças e se tornam iguais. Hierarquias
sociais, distinções de gosto e costume, o apego à origem, desaparecem nessa integração:

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Como mostram Goodwin, Jasper e Poletta (2001, p. 4), uma outra tradição de estudos das emoções nos
movimentos sociais aposta, desde o século XIX, na tese de que diante das massas os indivíduos adquiririam
comportamentos inteiramente distintos dos que adotam nas suas vidas privadas, pela manipulação e
instigação de demagogos.
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“No interior da massa, há igualdade. Isso é absoluto e indisputável, jamais


questionado pela própria massa. É de fundamental importância e se pode mesmo
definir a massa como estado de absoluta igualdade. Uma cabeça é uma cabeça,
um braço é um braço, e diferenças entre cabeças e braços individuais são
irrelevantes. É pela igualdade que as pessoas se transformam numa massa e elas
tendem a negligenciar tudo o que se desvie disso” (CANETTI 1960, p. 29).

Trata-se de uma situação ilusória, já que esses indivíduos não se tornaram realmente
iguais, nem serão iguais para sempre (CANETTI 1960, p. 18). Como na massa desaparece o
medo do isolamento, que é fruto da percepção da diferença, a movimentação desse corpo
não deixa de ser uma performance de força, tanto mais quando agentes externos permitem
manter a massa coesa por mais tempo. Esses agentes podem ser, por exemplo, indivíduos
ou grupos nomeados como inimigos – inimigos justamente porque ameaçam a existência da
massa e por quem a massa, sentindo-se perseguida, manifesta seu ódio. Nesse caso, o
movimento da massa se orienta para a destruição de seu alvo e, uma vez alcançado esse
objetivo, ela própria pode se desintegrar. Nem todas as massas, porém, alimentam o desejo
de destruição dos inimigos. Espetáculos públicos, como teatros, partidas de futebol e
execuções públicas são exemplos de movimentos coletivos “estagnados”, nos termos de
Canetti, porque se caracterizam pela passividade diante do que se expõe a seus olhos
(CANETTI 1960, p. 36). Tão longo termina o espetáculo, a massa se dissolve.
Outro tipo de agente externo são os líderes. Aqui, como vimos, a divergência de
Canetti com a explicação freudiana é completa. Com base na obra de Le Bon (lida por Hitler
e Mussolini), cuja tese principal é a de que cada membro da massa se liga ao líder por laços
libidinais, Freud estabelece que o líder constitui um objeto de amor inatingível (ROBERTSON,
209). Para Canetti, em contrapartida, o papel do líder se entende nos termos de uma teoria
do comando, segundo a qual todo comando tem como pano de fundo uma ameaça de morte.
Quando o comando é emitido, quem o recebe tende a obedecê-lo, por temor do que o outro
possa lhe fazer caso desobedeça. Mas a obediência não extingue o comando. Canetti utiliza
uma metáfora, a do ferrão, para indicar que a pessoa atingida pelo comando permanece
indefinidamente subordinada, a não ser que ela mesma emita um comando ou que a fonte
original do comando desapareça. As execuções públicas indicam que em todo comando
reside um aviso: ou o carrasco cumpre a ordem, ou ele mesmo será executado. Se cumprir a
ordem de matar, o executor se livra da morte: “ele não é nada além de um instrumento, mas,
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ainda assim, ele sobrevive a suas vítimas (...) Ele encontra uma esposa, tem filhos e leva uma
vida familiar normal” (CANETTI, p. 332). Toda execução, portanto, é dirigida aos que não são
executados, como lembra Adorno (p. 14). O líder é aquele que manipula essa ameaça a todo
o tempo, reencenando, por meio de variados executores, distintos cenários de destruição
(entre os quais, podemos dizer, está a destruição do meio-ambiente).
Somada à teoria das massas, a teoria do comando permite a Canetti explicar como
pessoas comuns podem cometer atrocidades e não se sentir responsáveis. Quando a fonte
do comando se esgota, não é incomum que os executores não se reconheçam como
perpetradores de qualquer crueldade:
“Eles dizem: ‘eu nunca fiz isso’, e nem sempre é absolutamente claro nas suas
cabeças que eles estão mentindo. Quando confrontados a testemunhas e
começam a vacilar, eles ainda dizem ‘Eu não sou assim. Eu nunca faria isso’. Eles
procuram em si traços do ato e não os encontram. É espantoso como eles não
parecem atingidos por isso. A vida que levam depois, de fato, é outra vida, de
modo algum tingida por suas ações anteriores. Eles não se arrependem e não
sentem culpa” (CANETTI, p. 332).

Ao se livrar do comando, os executores tentam se livrar também da responsabilidade


de se reconhecer como agentes da violência, atribuindo sua ação à obediência e ao desejo de
não contrariar quem emite o comando. Que eles não assumam a responsabilidade por seus
atos não implica, porém, que não devam ser responsabilizado pela sociedade. Quanto ao
líder, cujos comandos tácitos ou explícitos impõem a destruição (da massa), Canetti recorre
agora a sua teoria das massas para explicá-lo: é um indivíduo com uma elevada autoestima,
que se imagina maior do que os demais e mais distante das massas, embora cercado por elas.
Nos seus delírios de grandeza, ele se convence de que todos os outros são animais que
precisam ser dominados e até escravizados; os que a ele se opõem, em especial, constituem
uma massa de vermes que precisa ser destruída: “O déspota, que reduz os homens a animais
e apenas consegue governá-los considerando-os como pertencentes a espécies inferiores,
reduz a vermes todos os que nem mesmo se qualificam para ser governados, e termina os
destruindo aos milhares”(CANETTI, p. 364). O déspota representa o ápice do isolamento do
indivíduo. Somente a massa, na sua ambivalência, pode fazer frente a ele (ROBERTSON 2004,
p. 212).
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Tanto Canetti como Maquiavel, em que pesem todas as distâncias que os separam,
contemplam também paixões, emoções e sentimentos doces, suaves e até alegres, os quais
se manifestam coletiva e publicamente. No caso de Maquiavel, as energias da república
brotam do sentimento de comunidade que une os cidadãos e dos diferentes mecanismos
institucionais e extrainstitucionais que permitem a um cidadão não temer o outro. Já no caso
de Canetti, as pessoas e as massas são elásticas o suficiente para se transformar e dotar a si
mesma de um outro sentido. É aqui que reside o aspecto retórico de sua obra: ao apresentar
imagens até mesmo chocantes da civilização, inclusive em seus momentos de aparente
serenidade, Canetti visa a produzir uma mudança em seus leitores. Se a manifestação pública
do poder das massas e dos líderes serve tanto à docilidade e à domesticação, sua descrição
na obra visa a confrontar os leitores e seus valores. A obra deve ser capaz de persuadir os
leitores a mudar seu comportamento. O mesmo vale para Maquiavel: a denúncia das paixões
tristes mobilizadas pelos que almejam a dominação extrema visa a alertar aos leitores para
não se deixarem iludir pelo teatro de terror e saírem do estado de paralisia a que foram
induzidos.

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