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Africa Livro 01
Africa Livro 01
cultura afro-brasileira
Apresentação 7
Gabarito 123
7
Apresentação
O continente africano pode ser considerado o berço da humanidade. Foi na África que sur-
giram os primeiros representantes da espécie Australopithecus, considerados os precursores do
gênero Homo, nossos ancestrais.
De narrativas feitas por filósofos e historiadores europeus do século XIX, em que se sobres-
saía o olhar do colonizador, permeado pelo imperialismo e pelo eurocentrismo, a historiografia
africana passou por mudanças, relacionadas a uma outra forma de conceber a história.
Ao longo de muitas décadas, a história da África que circulava ao redor do mundo era pro-
duzida sob a ótica dos saberes ocidentais, particularmente de viajantes e exploradores europeus
que, em excursões ou expedições pelo continente, elaboravam uma série de narrativas sobre a
existência desses povos e dessas civilizações.
Na atualidade, essa historiografia busca problematizar o modo de viver e ser das populações
africanas que existiram antes da presença de povos estrangeiros – fenícios, macedônicos, romanos,
árabes, portugueses, belgas, ingleses... – ou apesar dela, percebendo a complexidade e a especifici-
dade de reinos, civilizações, povos e costumes das diferentes regiões, tanto da África Mediterrânea
– situada próxima ao Mar Mediterrâneo – quanto da subsaariana – situada ao sul do Deserto do Saara.
No Brasil, a presença africana é marcada pela diversidade que se manifesta tanto na língua quanto
na religião, na cultura, nos hábitos, costumes e na resistência cotidiana e histórica dos afrodescendentes.
Para esclarecer esses diferentes aspectos, esta obra foi subdividida didaticamente em
oito capítulos. Os temas aqui abordados incluem, entre outros: as fontes de pesquisa e os de-
bates teórico-metodológicos da historiografia da África; o estudo sobre a presença humana
no continente africano; a religiosidade africana; a dinâmica escravista no continente africano;
8
Boa leitura!
1
Historiografia sobre a África
1 Ibn Khaldun foi, segundo Fage, um grande historiador africano que viveu entre 1332-1406 no norte da África. Nas-
cido em Túnis, a sua obra retrata a África e as suas relações com os outros povos do Mediterrâneo e do Oriente próximo.
Da compreensão dessas relações, ele induziu uma concepção que faz da história um fenômeno cíclico, contada a
partir da sedentarização e nomadismo constantes de diversas etnias africanas. Marc Bloch, importante historiador
francês, utilizou os escritos de Ibn Khaldun para narrar a história da Europa no início da Idade Média. A esse respei-
to, consultar Fage (2010).
10 História da África e da cultura afro-brasileira
2 A expressão continente solitário é utilizada pelo historiador africano de Burkina Faso, Joseph Ki-Zerbo, para exem-
plificar a solidão a que estiveram relegadas a África e sua história por tantos anos. Segundo o historiador, “na verdade,
as dificuldades específicas da história d a África podem ser constatadas na observação das realidades da geografia
física desse continente. Continente solitário, se é que existe algum, a África parece dar as costas para o resto do Velho
Mundo, ao qual se encontra ligada apenas pelo frágil cordão umbilical do istmo de Suez. No sentido oposto, ela mergulha
integralmente sua massa compacta na direção das águas austrais, rodeada por maciços costeiros, que os rios forçam
através de desfiladeiros ‘heroicos’ que constituem, por sua vez, obstáculos à penetração. A única passagem importante
entre o Saara e os montes abissínios encontra-se obstruída pelos imensos pântanos de Bahr el-Ghazal. Ventos e corren-
tes marítimas extremamente violentos montam guarda do Cabo Branco ao Cabo Verde”. O isolamento físico resultaria no
isolamento historiográfico. Para saber mais a respeito, ver: Ki-Zerbo (2010)
Historiografia sobre a África 11
editada circulava com base no trabalho de historiadores europeus e legitimava esse olhar diante do resto
do mundo. Tal fenômeno foi conceituado como eurocentrismo.
A historiografia da África muito sofreu com esse paradigma, em virtude das imensas extensões
territoriais do continente, da grande diáspora causada pelo processo de escravização de africanos
ou pela condição política outorgada pelo imperialismo do século XIX, que impediu ou dificultou a
escrita e a circulação de materiais historiográficos autóctones. autóctones: originá-
rios da região onde
Além do mais, a vigência do pensamento evolucionista e positivista, que predominou na são encontrados.
Europa do século XIX e a partir da qual se originam as ciências sociais europeias, atribuíam às
civilizações africanas a impossibilidade de possuir história, porque estariam mais ligadas ao mun-
do natural do que cultural. Conforme afirmou o historiador inglês Hugh Trevor-Roper, em uma
famosa entrevista cedida ao canal BBC de Londres, em 1961, não haveria história da África subsaa-
riana, mas somente a História dos europeus no continente, porque, segundo Silva, o restante per-
manecia envolto em “escuridão”, algo ainda desconhecido, e o que assim se manifesta, não costuma
constituir objeto de estudo da História (SILVA, 2005)3.
A afirmativa do historiador inglês tem origem em um pensamento de longa duração, ins-
pirado em Hegel, filósofo alemão do século XIX. Mapeando o continente africano de maneira
superficial e equivocada, Hegel afirmou sobre a inexistência de história entre os povos africanos
em virtude da inexistência de registros escritos sobre as experiências dos povos africanos ao longo
dos tempos. Tomando a possível ausência de fontes escritas como indicador da inexistência de ação
humana de caráter histórico, o pensador alemão concluiu apressadamente que os africanos esta-
vam mais próximos da natureza do que da cultura e, consequentemente, desprovidos de história.
A afirmação de Hegel estava inserida em um contexto ideológico no qual as sociedades
humanas eram vistas mediante uma escala que partia de um estágio mais primitivo para outro
mais civilizado (conforme uma concepção de história linear que ia das sociedades menos desen-
volvidas para as mais desenvolvidas), sendo esse percurso entendido por meio do aprimoramento
técnico-científico alcançado pelo mundo europeu ocidental. Além disso, Hegel vivenciava as pri-
meiras tentativas de forjar um pensamento científico sobre as sociedades humanas, do presente e
do passado, cuja inspiração se dava pela crença na supremacia das vivências europeias.
Destituir os povos africanos de cultura, de sociedade, de política, de arte, de educação e de
história era uma estratégia colonialista que justificava as atrocidades cometidas pelos europeus
junto às populações africanas em nome da civilização e do progresso, na segunda metade do sécu-
lo XIX. A hegemonia desse pensamento político estava tão arraigada que perpassava quase toda a
sociedade civil, encontrando respaldo inclusive nas ideias dos pensadores, literatos, intelectuais4.
3 Essa afirmativa é reiterada diversas vezes e em diversas entrevistas e participações acadêmicas do historiador afri-
canista Alberto da Costa e Silva. Essa passagem foi retirada da entrevista cedida por Alberto Costa e Silva à Revista de
História da Biblioteca Nacional.
4 A respeito da questão de não se ter uma historiografia única acerca da África e sobre as novas temáticas abordadas
por escritores africanos na atualidade, sugerimos as obras da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Nascida em
1977, publicou obras como Hibisco roxo, Meio Sol amarelo e Sejamos todos feministas. Nesta última obra, compartilha sua
experiência como escritora feminista africana e sua percepção acerca das visões atuais sobre gênero e sexualidade. Para
conhecer algumas das suas principais ideias, sugerimos o vídeo de sua apresentação, gravado no TED Talks, intitulado
Todos devemos ser feministas. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_
be_feminists?language=pt-br#t-220432>. Acesso em: 17 abr. 2018.
12 História da África e da cultura afro-brasileira
Revisitar a história das Áfricas, no plural, como requisita Silva (2005), tem proporcionado
compreender o processo histórico das sociedades africanas e, principalmente, da sociedade bra-
sileira. Um país que recebeu mais de cinco milhões de africanos, de diversas etnias, ignorou, por
muito tempo, o processo que não só gerou e nutriu o sistema escravista no Brasil, mas desconsi-
derou as estruturas africanas transportadas para a “nova África”, para a África que veio carregada
nos navios negreiros.
Sem dúvida nenhuma, o tecido que constitui o passado está recheado de furos, que aumen-
taram em virtude do descaso e do longo período em que eles foram relegados ao esquecimento e à
ignorância. Mas esses furos continuam compondo o tecido histórico das nossas vidas, sedentos por
serem notados, explorados e descobertos.
Kk. Bangala
Bengala Bastão de apoio. Bastão torto.
Kb. Kiabengala
Pequeno lagarto.
Calango Comum e m climas temperados Kb. Dikalanga Lagartixa.
a quentes.
Gru p o d e pessoas c o m os m e s -
Cambada (pej.) Kb. Kamba Amigo, camarada.
mos interesses escusos, bando.
Camundongo Rato de pequeno porte. Kb. Kamundongo Observador, o que estuda, esperto.
(Continua)
Historiografia sobre a África 17
Marimbondo Inseto cuja picada é muito dolorida. Kb. Marimbondo Enxame de zangãos.
Vamos agora saber um pouco mais sobre a expansão banto na África, pois foi a partir dela que
se originaram diferentes povos e línguas, alguns dos quais estão presentes no Brasil desde a imigração
forçada promovida pelos traficantes de escravizados no período colonial e imperial.
negoworks/iStockphoto
Legenda:
Fase I
Fase II
Fase III
Num ambiente propício e variado, entre savana e floresta, entre mar e serra, com
abundância de chuvas e de sol, cresceram em número e começaram a expandir-se
e diferenciar-se linguisticamente, ao longo do oceano, por entre manguezais e rio
acima. Atravessaram o mar e foram ter à ilha de Bioko (ou Fernando Pó). Subiram
o Gabão, o Oguê e outros cursos d’água, sempre em busca de paisagens que lhes
eram habituais e onde pudessem exercer a agricultura a que estavam acostumados.
Assim chegaram ao rio Zaire e o foram pontuando, contracorrente, com suas al-
deias. E avançaram pela ramagem dos afluentes. Sempre junto das águas. A seguir,
o espinhaço e a costela dos rios. Sem se afastar do tipo de hábitat que desde há
muito conheciam. Entraram pelo Cuango, pelo Quilu, pelo Cassai. Alguns, nos
planaltos do sul do Congo e de Angola, adaptaram-se à vida de savana: reduziram
a agricultura a uma atividade marginal e se converteram em caçadores. Assim
atingiram a Namíbia, ao sul, e, a leste, os lagos Malavi e Tanganica e o rio Zambeze.
(SILVA, 2006, p. 216)
Ainda segundo o historiador Alberto da Costa e Silva, a expansão banto oriental se deu para
a região dos Grandes Lagos, onde as populações que falavam línguas aparentadas desse tronco
linguístico dedicavam-se, sobretudo, à criação de animais e à forja do ferro:
Quanto ao banto oriental, ele foi desenvolver-se na região dos Grandes Lagos.
Os que o falavam já conheciam possivelmente o cultivo de cereais desde que
deixaram os Camarões e seguiram para leste pela borda setentrional da floresta.
Nos Grandes Lagos, converteram-se à pecuária e passaram a fundir o ferro.
Com milhetes, sorgo, bois e instrumentos de ferro, foram descendo a África. Por
volta do ano 100 da nossa era, já se haviam imposto em partes da Zâmbia e de
Chaba habitadas por bantos ocidentais. E, com os milhetes e o sorgo, o ferro e o
boi, foram ocupando as áreas onde não prosperavam o inhame e o dendê, até as
praias do Atlântico. (SILVA, 2006, p. 216)
As populações bantas da África Oriental falavam formas diferentes do mesmo idioma, mas
não chegaram a estabelecer um Estado unificado. Os árabes, que por lá passavam para estabelecer
comércio, chamavam esses povos de suaílis, cujo significado, em árabe, se aproxima da expressão
planície costeira.
A partir do século IX da nossa era, nota-se uma grande dinamização comercial empreendida
por esses povos costeiros, cujo contato com comerciantes de origem árabe tornou-se mais intenso,
em grande parte devido à manufatura do ferro que se tornou característica de suas cidades.
Também foi por meio de contatos comerciais com outros povos – dessa vez com os indo-
nésios que navegavam pelo oceano em suas canoas, valendo-se de correntes marítimas – que se
difundiu na África Índica o cultivo de bananeiras, de um tipo de inhame asiático, do taro e de
outros tantos vegetais, sementes e raízes de origem indonésia que as populações suaílis passaram a
produzir e comercializar com povos africanos.
Na África Oriental e Índica, a movimentação comercial originou importantes cidades – como
Zeila e Sofala – que acabaram funcionando como entrepostos de uma intensa troca de produtos de
origem africana – locais ou vindos de reinos africanos do interior do continente – árabe e indonésia.
As cidades suaílis tinham perspectivas cosmopolitas e acolhiam bem os visitan-
tes que viessem em paz. Chegavam a eles chefes e emissários em embaixadas de
comércio ou diplomacia vindas de reinos africanos do interior distante. Eruditos
20 História da África e da cultura afro-brasileira
Considerações finais
Como vimos neste capítulo, há muito sobre a história da África na nossa sociedade e na
nossa cultura, mesmo assim, ainda são pouco explorados e difundidos em nossas escolas e univer-
sidades os estudos sobre a história dos inúmeros e complexos reinos e povos da África anterior à
presença predatória europeia dos séculos XV ao XIX.
Essa presença deixou marcas no desenvolvimento econômico, político e social dos povos do
continente africano e na forma de se conceber a história desses povos: essa forma, até meados do século
XX, era ainda muito influenciada pelo olhar eurocêntrico, que concebia os africanos como primitivos
e como pertencentes a uma escala evolutiva socialmente inferior se comparada às nações europeias.
Tais ideias legitimaram o imperialismo europeu sobre a África no século XIX e justificaram a
exploração de suas populações. Mesmo após a independência das nações africanas, após a Segunda
Guerra Mundial, os estudos sobre a África continuaram a ser majoritariamente conduzidos por
historiadores de formação europeia, o que, de certa forma, perpetuava uma visão do colonizador
acerca do colonizado. Foi somente a partir das décadas de 1960 e 1970, quando estudos sobre a
história dos povos africanos começaram a ser conduzidos por historiadores autóctones que a his-
toriografia sobre a África passou a adquirir uma outra conotação metodológica e epistemológica.
Na atualidade, essa historiografia busca problematizar o modo de viver e ser das populações
africanas anteriormente à presença de povos estrangeiros – fenícios, macedônicos, romanos, ára-
bes, portugueses, belgas, ingleses etc. – ou apesar dela, percebendo a complexidade e a especifici-
dade de reinos, civilizações, povos e costumes das diferentes regiões, tanto da África Mediterrânea
– situada ao norte do Deserto do Saara e próxima ao Mar Mediterrâneo – quanto subsaariana –
situada ao sul do Deserto do Saara.
No Brasil, a presença africana é marcada pela diversidade manifestada tanto na língua quan-
to na religião, na cultura, nos hábitos, costumes e na resistência cotidiana e histórica dos afrodes-
cendentes. É sobre essas histórias que continuaremos a estudar no próximo capítulo.
No próximo capítulo abordaremos algumas das primeiras civilizações surgidas no continen-
te africano nesse processo de expansão, entre elas, a cultura iorubá.
das historiografias acerca da América e da Ásia. O fato de esses continentes, no passado, terem
sido colonizados e explorados por nações europeias repercutiu na forma do seu desenvolvimento
econômico, político e social, mas também na forma como se registrou e contou por muito tempo
a sua história, ou seja, na sua historiografia. Ultrapassar o colonialismo é também problematizar e
romper com as formas tradicionais de se abordar a história de populações africanas, americanas e
asiáticas em suas diferentes trajetórias, para além da influência e subjugação europeia.
O fato de a história da África ter sido deploravelmente negligenciada até os anos [19]50 é
apenas um dos sintomas – no domínio dos estudos históricos de um fenômeno mais amplo.
A África não é a única região a possuir uma herança intelectual da época colonial que deve ser
transcendida. No século XIX, os europeus conquistaram e subjugaram a maior parte da Ásia,
enquanto na América tropical o subdesenvolvimento e a dominação exercida pelos povos de
origem europeia sobre as populações afro-americanas e indígenas reproduziram as condições
do colonialismo nas próprias áreas onde as convenções do direito internacional apontavam
um grupo de Estados independentes. No século XIX e no início do século XX, a marca do
regime colonial sobre os conhecimentos históricos falseia as perspectivas em favor de uma
concepção eurocêntrica da história do mundo, elaborada na época da hegemonia europeia.
A partir daí tal concepção é difundida por toda parte graças aos sistemas educacionais ins-
tituídos pelos europeus no mundo colonial. Mesmo nas regiões onde jamais se verificara a
dominação europeia, os conhecimentos europeus, inclusive os aspectos da historiografia euro-
cêntrica, impõem-se por sua modernidade.
Hoje, essa visão eurocêntrica do mundo praticamente desapareceu das melhores obras his-
tóricas recentes; mas ela ainda predomina em numerosos historiadores e no grande público
tanto ocidental quanto não ocidental. [...] Trata-se, por um lado, da transformação da história,
partindo da crônica para chegar a uma ciência social que trate da evolução das sociedades
humanas; por outro, da substituição dos preconceitos nacionais por uma visão mais ampla.
Em favor destas novas tendências, chegaram contribuições de todos os lados: da própria
Europa; de historiadores da nova escola na África, na Ásia e na América Latina; dos europeus
de ultramar – da América do Norte e da Oceania. Seus esforços para ampliar o quadro da
história voltam- se ao mesmo tempo para os povos e regiões até então negligenciados, assim
como para certos aspectos da experiência humana antes ocultos sob concepções tradicionais e
estreitas da história política e militar. Nesse contexto, o simples advento da história africana já
constitui em si uma preciosa contribuição.
Atividades
1. A historiografia que se dedica ao estudo das sociedades colonizadas é unânime em afirmar:
o conhecimento do colonizador ditava as estruturas sobre as quais os saberes eram difundi-
dos, ditando o que interessava para compor o patrimônio cultural e histórico da humanidade
e o que deveria ser descartado. Considerando que em todos os saberes há redes intrínsecas
de poderes, os saberes eurocêntricos sobre os povos estavam indissociavelmente ligados às
22 História da África e da cultura afro-brasileira
3. Mesmo a África tendo sido o berço e a origem dos primeiros seres humanos e o continente
onde se desenvolveu uma das primeiras e mais complexas civilizações humanas – o Egito
– por que a história da África foi, por tanto tempo, negligenciada nos currículos escolares?
4. Em sua opinião, quais são as formas pelas quais se pode ampliar o acesso dos estudantes de
todos os níveis a conteúdos referentes à história dos povos africanos em diferentes épocas?
Referências
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Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/88723/91620>. Acesso em: 16 abr. 2018.
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2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 16 abr. 2018.
CURTIN, P. A. Tendências recentes das pesquisas históricas e contribuição à história em geral. In:
ZERBO-KI, J. (Ed.). História Geral da África: metodologia e pré-história da África. 2. ed., Brasília, Unesco,
2010. p. 37-58. v. 1.
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GIORDANI, M. C. História da África anterior aos descobrimentos. 4. ed, Petrópolis: Vozes, 1985.
______. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
ZERBO-KI, J. (Ed.) História geral da África: metodologia e pré-história da África. 2. ed., Brasília, DF: Unesco,
2010. p. 37-58. v. 1.
______. Introdução à obra História geral da África. In: ZERBO-KI, J. (Ed.) História Geral da África: metodo-
logia e pré-história da África. 2. ed. Brasília, DF: Unesco, 2010. v. 1.
2
A África subsaariana: do século I ao século XIV
Na região correspondente à atual Nigéria desenvolveu-se a cultura Nok, que tem esse nome de-
vido à cidade na qual se originou, onde foram encontrados vestígios do uso de ferro desde o I milênio
a.C. A cultura Nok é considerada a primeira a fundir o ferro na África subsaariana. Até o momento,
não há indícios de terem desenvolvido a metalurgia do cobre e do bronze – metais menos duros e
fáceis de trabalhar do que o ferro.
Essa região era rica em um determinado tipo de minério de ferro, que ficava exposto a céu
aberto e não necessitava ser aquecido a temperaturas muito altas – como os encontrados no Oriente
Médio e na Europa – para ser forjado. Esses povos podem ter desenvolvido a metalurgia do ferro
sozinhos ou aprendido com os berberes, que, por sua vez, podem tê-la assimilado com os fenícios.
A expansão agrícola gerou excedentes e centros de comércio em torno das primeiras cidades
que surgiram na região da Nigéria. Entre elas, merecem destaque os aglomerados urbanos de Nok,
Jenne-Jeno e Ano, atual Mali. Essas cidades comercializavam sal, alimentos e metal (ferro), mas o
que chama a atenção dos arqueólogos são as impressionantes estatuetas de cerâmica. Os teóricos
de arte africana costumam destacar a expressividade desses rostos, manifestada, sobretudo, no
olhar. São semblantes de pessoas que chamam a atenção pela expressividade. Foram encontradas
centenas delas em uma extensão que vai do Rio Níger até o Lago Chade e indicam o que pode ter
sido a extensão da cultura Nok na Antiguidade. Foram datadas, aproximadamente, entre o século
VI a.C. e III da nossa era.
A África subsaariana: do século I ao século XIV 27
2.2 Os iorubás
Aspectos da cultura iorubá, oriunda da África, são traços marcantes da atual cultura brasi-
leira, especialmente nos aspectos relacionados à língua e à religião.
Figura 2 – Escultura em terracota da antiga civilização de Ife (atual Nigéria)
Museu do Louvre/Wikimedia Commons
Há pelo menos 6 mil anos, nas proximidades das confluências entre os rios Níger e Benué, sub-
grupos linguísticos diferenciados desenvolveram-se a partir de um tronco linguístico comum – o níger
congo. Entre eles, destacam-se os iorubás, que habitavam as florestas de Iorubo, desde a Idade da Pedra.
No primeiro milênio de nossa era, os iorubás viviam basicamente da agricultura e da criação
de animais, com destaque para a produção de dendezeiro, alguns tipos de feijões, além de quiabo,
inhame, entre outros vegetais.
De início, a organização social era de base familiar: viviam em vilarejos, surgidos em torno
de um ancestral comum. Os chefes desses pequenos povoados eram provenientes de linhagens cuja
importância social era determinada pelo grau de proximidade com o grande ancestral comum.
Com o tempo, vários vilarejos se associaram em aldeias que, por sua vez, deram origem a minies-
tados, cuja vinculação era a crença em um ancestral comum.
Nesses miniestados, as pessoas consideradas mais importantes de cada família (linhagem) de-
terminavam as funções sociais dos demais membros da sociedade e a distribuição e o uso da terra.
Passaram a existir associações formadas pelos homens considerados de maior prestígio na comunidade
(medidos pela riqueza material). Delas participavam aqueles que tivessem mais inhames em seus celei-
ros ou mais animais em seus cercados. Essas associações passaram a escolher, entre os seus membros,
uma espécie de chefe principal. Entre os iorubás, o escolhido recebia o título de Obá. Às vezes, esse era
o homem mais rico de cada miniestado, riqueza que só tendia a aumentar, porque, como chefe, recebia
tributos e oferendas. Sua casa ficava na parte mais importante da comunidade: o mercado – local onde
eram realizadas as transações comerciais.
Havia intensas trocas entre os iorubás e comerciantes de outras regiões da África. Diante da
intensidade dessas trocas, a região em torno do mercado cresceu e se urbanizou. As antigas aldeias
iorubás se transformaram em uma espécie de cidade-Estado1, cada uma com o seu Obá.
O poder desses chefes aumentou ainda mais: em algumas cidades eram respeitados como
líder religioso, uma espécie de elo entre os deuses e os homens.
Para se proteger das invasões externas que foram frequentes a partir do século VIII da nossa
era, foram construídas cidadelas fortificadas, muralhas e fossos ao redor do povoado.
As estruturas políticas das cidades-Estado foram se transformando. As constantes investidas
de povos invasores – vindos do Norte, sobretudo – obrigaram essas cidades-Estado a se unirem em
uma espécie de confederação.
A necessidade de se unirem para se defender, aliada à chegada de novas tradições políticas
trazidas por guerreiros invasores, deram origem a uma nova estrutura de poder nas cidades ioru-
bás, cuja base passou a ser uma aristocracia de origem guerreira de caráter divino, proveniente da
interação entre costumes políticos locais e estrangeiros.
De acordo com lendas iorubás, esses povos vieram do Vale do Nilo; outras dizem que vieram
de Bagdá (no atual Iraque); outras ainda afirmam que nobres árabes não convertidos à religião
1 Por cidades-Estado entende-se reinos independentes, com estrutura militar, burocrático-administrativa e econô-
mica própria, governados por líderes próprios. Em virtude das invasões estrangeiras essa estrutura foi se modificando e
essas cidades-Estado precisaram se unir numa espécie de confederação.
A África subsaariana: do século I ao século XIV 29
islâmica, professada pelo profeta Maomé no século VII, foram expulsos de suas terras e fundaram
monarquias de caráter divino entre os iorubás2.
O primeiro desses líderes, aquele que instituiu uma nova forma de ordenamento político-
-religioso, foi um rei de origem lendária, chamado Oduduá. Ele se estabeleceu na cidade iorubá
de Ifé, considerada sagrada para os iorubás. Os obás de Ifé tinham uma posição privilegiada pe-
rante os reis das demais cidades: recebiam o título de Oni e eram considerados os descendentes
de Oduduá.
A citação a seguir trata a respeito de uma lenda iorubá, contando a história de Oduduá e da
cidade de Ifé.
Oduduá, filho e príncipe herdeiro de um dos reis de Meca, Lamurudu (ou
Nimrod?), apostatara do islamismo e tentara impor o culto dos ídolos como
religião do estado. A inconformidade dos muçulmanos rebentou numa guerra
civil, durante a qual Lamurudu foi morto e seus filhos e aderentes expulsos da
cidade. Oduduá, perseguido pelos inimigos, veio dar com dois de seus ídolos e
sua gente, em Ilê Ifé, nas florestas do Iorubo, onde fundou um reino.
Outra tradição, recolhida pelo erudito fula Muhammed Bello, sultão de Socotó,
conta que os iorubás descendem dos banis canaãs, da tribo de Nimrod, e que,
expelidos do Iraque, atravessaram o Egito e a Etiópia, até chegarem ao sudoeste
da Nigéria. (SILVA, 2006, p. 479)
Foi provavelmente na cidade de Ifé que se desenvolveu um mito iorubá sobre a origem do
mundo, permeado por uma religiosidade cujas permanências se fazem sentir até os dias atuais nas
reminiscências da cultura afrodescendente no Brasil. Leia o texto3 a seguir e saiba mais a respeito:
O Deus supremo, Olorum, junto com seu filho mais velho, Obatalá, deu
a Oxalá a incumbência de criar o Universo. Só que no meio do cami-
nho, Oxalá sentiu sede. Exu ofereceu-lhe vinho de palmeira. Ele bebeu
demais e adormeceu. Exu então levou o saco da criação, que estava aos
cuidados de Oxalá, e o devolveu a Olorum, que o entregou a Oduduá,
sua filha. Olorum fez descer até os pântanos que ficavam abaixo do céu
uma corrente, na qual colocou um saco com um pouco de terra, uma
galinha e um dendezeiro.
Oduduá despejou a terra do saco da criação na terra e nela colocou o dendezeiro
e a galinha. A galinha começou a ciscar a terra e espalhá-la, ampliando a terra.
Segundo esse mito, assim surgiu Ifé, centro do mundo, ou, literalmente: o que
se alarga. Oxalá se sentiu envergonhado por desapontar seu pai. Olurum, no
entanto, reconfortou Oxalá, dando a ele a incumbência de criar os primeiros
seres humanos da Terra, chamada em iorubano de Ayê. Oxalá teria modelado
os primeiros seres humanos a partir do barro.
Essa explicação se desenvolveu tendo a cidade de Ifé como origem do mundo. Mas entre os
reinos iorubás havia uma outra cidade: Oyo. Enquanto aquela desfrutava o título de ser um centro
religioso, Oyo foi se destacando como um centro comercial, suplantando, nos idos do século XV
da nossa era, o poder de Ifé.
Entre o Oni (rei) de Ifé e os demais obás havia uma relação semelhante à de um pai com seus
filhos. As cidades eram independentes entre si, mas tinham obrigações mútuas com Ifé. Esse tipo
de relação entre as cidades tem origem na própria tradição iorubá. Os iorubás eram ligados por
vínculos de sangue: primeiro pertencia-se a uma família e, por meio dela, ao Estado, considerado
como sua extensão.
Ifé, Oyo e outras cidades iorubás eram
Figura 3 – Escultura em bronze de uma cabeça
centros de intensa atividade comercial. Além iorubá, Ife, Nigéria, século XII.
Wikimedia Commons
do palácio, das residências, da cidadela forti-
ficada e dos templos, nessas cidades havia o
mercado, centro das atividades econômicas.
No mercado de Ifé, por exemplo, comercializa-
vam-se produtos das savanas do Norte, do lito-
ral e das florestas do Sul – inhame, peixe seco,
pimenta, dendê, noz-de-cola, ouro, marfim,
canoas, sal, gomas, madeira, contas de pedras,
vidros coloridos e escravos.
Nas cidades, os agricultores procuravam
proteção diante de invasões externas. Lá tam-
bém perambulavam sacerdotes, soldados e di-
ferentes tipos de artífices: ferreiros, ceramistas,
tecelões e escultores artistas. Aliás, as esculturas
em terracota e bronze de Ifé são conhecidas por
sua beleza e precisão.
Os reinos iorubás mantiveram-se fortes até meados do século XVII, tendo como principal
causa de sua decadência a chegada dos portugueses, que passaram a explorar essas populações,
escravizando seus habitantes para o trabalho em grandes fazendas de cana-de-açúcar estabelecidas
no Brasil, país no qual aportaram suas caravelas em 1500.
Traços essenciais da cultura iorubana resistiram à escravidão, à colonização e à imposição do
catolicismo como religião oficial do Brasil nos tempos em que foi colônia de Portugal. Nas manifesta-
ções religiosas atuais, de origem afro, pode-se perceber aspectos originais da cultura iorubá, embora,
devido ao contato com o cristianismo, esses elementos tenham se modificado até mesmo para pode-
rem sobreviver.
Os africanos eram, muitas vezes, proibidos de fazer seus cultos originais, por isso tinham
de substituir entidades de origem afro por aquelas aceitas pela cultura cristã (que os portugueses
impuseram aos índios e africanos no Brasil).
A África subsaariana: do século I ao século XIV 31
Assim, surgiram religiões brasileiras, de matriz afro, nas quais santos – originariamente
católicos – apresentam características e simbolismo relacionados a entidades iorubás.
O candomblé é uma religião de origem iorubana que existe desde a chegada dos primeiros
africanos provenientes da atual Nigéria. O culto às entidades é realizado em terreiros e por pes-
soas iniciadas. Nesses cultos, os orixás, são invocados e celebrados isto é, entidades que ajudaram
Olorum (o Deus supremo) a criar o Universo. Estão relacionados aos domínios de Olorum sobre
o Universo e às forças da natureza. Na cultura iorubana original, eram muitos os orixás. Mas, na
maioria dos terreiros de candomblé espalhados pelo Brasil, é cultuada apenas uma parte deles.
cavalos, bois, cabras e camelos. Dos excedentes da produção agrícola, desenvolveu-se o comér-
cio e dele originou-se uma vida urbana, centrada em vilas e cidades. Nesses locais, além do
comércio de artigos de origem vegetal e animal, incenso e especiarias, poderiam ser encontra-
das construções residenciais feitas de pedra e manufaturas, nas quais se produziam artefatos
de metal (cobre, bronze e ferro), couro, madeira e tecido.
Aprenderam a navegar pelo Mar Vermelho valendo-se do fenômeno das monções e passaram a
comercializar com povos da Eritreia, de onde se abasteciam de ouro, peles, marfim e outros produtos.
Entre os séculos X e VII a.C., algumas cidades iemenitas organizam-se em reinos, dos quais
merece destaque o de Sabá. Nessa época, estabeleceram-se colônias comerciais do outro lado do Mar
Vermelho, na região da Eritreia e do Tigré, na África. Iemenitas (de origem árabe) e camitas (de ori-
gem africana) acabaram por se fundir em microestados que surgiram no atual território da Etiópia4.
Esses microestados (comunidades economicamente autossuficientes e politicamente inde-
pendentes) evoluíram para a condição de reinos que se caracterizaram como centros comerciais
importantes. Alguns desses reinos se impuseram diante dos demais por sua importância comercial
ou por serem locais sedes de importantes santuários de origem religiosa ou até mesmo por terem
vencido militarmente os pequenos Estados ao redor.
Não se sabe ao certo como, mas o fato é que, entre os reinos surgidos no século VII a.C.,
o reino sediado na cidade de Axum viria a se tornar, desde o século V a.C., o mais imponente da
Eritreia e Tigré e, a partir do século I da nossa era, um dos mais importantes entre os reinos situa-
dos nas proximidades do Mar Vermelho.
O reino de Axum, formado a partir da confluência cultural e econômica de camitas e ieme-
nitas, passou a desenvolver contatos comerciais intensos com outros reinos, entre eles o de Israel,
que experimentou, ao longo do século X, uma fase de prosperidade econômica e estabilidade polí-
tica nos reinados de Davi e Salomão.
Na Bíblia, no chamado Livro dos Reis (BÍBLIA, 1 REIS, 2018, 10), há uma história que conta
sobre a aproximação entre axumitas e judeus. Trata-se do amor entre o rei dos hebreus, chamado
Salomão, e a rainha do reino de Sabá. Menelique, fruto dessa união, viria a se tornar, segundo a
versão bíblica, o primeiro rei de Axum. Alberto Costa e Silva (2006) conta essa versão:
Desejosa de conhecer o rei dos judeus, a rainha [de Sabá] partiu para Jerusalém,
levando enorme carga de riquezas. Receberam-na com pompa e júbilo. E lá se
demorou sete meses, a ver as obras de Salomão e a ouvir-lhe as palavras. [...] Do
amor de Salomão e da rainha de Sabá nasceu um menino, que tomou o nome
de Menelique. Ao se fazer homem, quis conhecer o pai. A rainha mandou-o a
Jerusalém e com ele o pedido de que Salomão o sagrasse rei da Etiópia, a fim de
abexins: dinastia de
romper-se de vez o antigo costume de sobre os abexins só reinarem donzelas, às
reis de Sabá. quais se vedava o casamento. Salomão, que imediatamente reconhecera o filho,
atendeu ao pedido e fez Menelique rei, com o nome de David. E quando [...]
O reino de Axum 6 estabelecia relações comerciais com o Iêmen, pelo porto de Adúlis,
por onde se comercializava marfim, carapaças de tartaruga, chifres de rinoceronte, entre outras
coisas, até meados do século III a.C. Nessa época, os arqueólogos localizaram modificações na
cultura axumita. Na língua, na escrita e no aspecto da cerâmica, percebe-se a influência de in-
vestidas comerciais realizadas pelo Egito que, nessa época, vivia sob o reinado da dinastia dos
Ptolomeus, herdeiros do antigo Império Macedônico e da cultura helenística propagada por
Alexandre Magno.
Diante da aproximação com os egípcios, o comércio entre os mares Vermelho e Mediterrâneo
intensificou-se: entre os produtos comercializados, destacam-se a obsidiana, o chifre de rinoceron-
te, o couro de hipopótamo, a carapaça de tartaruga e o marfim. O uso do ferro e do bronze também
se acentuou a partir desse período.
Essas atividades fizeram crescer os núcleos urbanos, assim como Axum. Este, já no século I
da nossa era, foi um poderoso centro comercial, atuando entre o interior da Etiópia e o Mar
Vermelho e entre o Rio Nilo e o porto de Adúlis, que se tornou o mais importante daquela região,
por onde circulavam vários produtos – musselina, azeite, bronzes, algodão, adagas, vidros, prata –
de regiões como Síria, Itália, Índia e Egito.
Por meio da análise de inscrições em túmulos de reis axumitas, nota-se que, por essa época
(século I d.C.), além do guezê, língua local, difundiu-se também o grego. Axum tornou-se um cen-
tro comercial cosmopolita. Povos como os judeus, provenientes da região da Palestina, começaram
a chegar na região pelo Iêmen e lá se estabeleceram e difundiram sua fé, baseada nos ensinamentos
dos primeiros patriarcas hebreus – especialmente de Moisés – contidos em uma compilação de
livros chamada pelos judeus de Torá. A fé judaica veio se juntar aos costumes religiosos axumitas
que, por essa época, já estavam bastante influenciados pela tradição religiosa iemenita.
No século IV, foi a vez de monges católicos, vindos da Síria e do Egito, chegarem na região
da Núbia e de Axum para difundirem a fé cristã. O rei de Axum na época, Ezana, converteu-se e
tornou Axum um reino cristão.
5 A Arca da Aliança é o local onde estariam guardadas as tábuas da lei contendo os Dez Mandamentos.
6 Para saber mais sobre a história do reino de Axum e sua relação com outras civilizações que lhe foram contempo-
râneas, ver M’Bokolo (2012, p. 73-106) e Mokhtar (2010).
34 História da África e da cultura afro-brasileira
A. Davey/Wikimedia Commons
A igreja foi reconstruída no século XVI, após ter sido atacada durante uma guerra santa entre cristãos e muçulmanos.
Segundo a tradição cristã, em seu interior estava guardada a Arca da Aliança, retirada durante a guerra para ser guar-
dada em outra capela quadrangular cuja localização exata não é conhecida.
A prosperidade econômica de Axum começou a ser abalada por volta do século VIII, quan-
do, em virtude da expansão islâmica, os árabes conquistaram territórios no norte da África, região
da África Mediterrânea, onde atualmente ficam os países da Tunísia, Marrocos e Egito, que, con-
vertidos ao islamismo, isolaram Axum, um reino que permaneceu cristão.
Atualmente, poucos vestígios evocam a grandiosidade dos tempos áureos do reino de Axum.
Há ruínas de aquedutos, cisternas, palácios reais e algumas estelas funerárias. Por volta dos séculos X
e XI, um novo e poderoso reino surgiu na região de Lalibela, no século XII, na qual se desenvolveu
o reino cristão da Etiópia, que até o século XV havia dominado toda a extensão do planalto etíope.
Esse reino, assim como tantos outros, só foram seriamente abalados a partir dos séculos XV
e XVI por meio das incursões marítimas provocadas pela expansão comercial de povos europeus,
entre eles os portugueses, conteúdo que veremos adiante.
Considerações finais
Neste capítulo, estudamos sobre três reinos muito importantes que existiram na África an-
tiga: a cultura Nok – mais antiga –, o reino de Axum, que atingiu seu apogeu entre o século I e o
século IV da nossa era, e a cultura iorubá, a qual se manifestava em cidades-Estado, com economia
dinâmica e política independente controlada por chefes com prerrogativas políticas e religiosas.
A África subsaariana: do século I ao século XIV 35
O objetivo foi mostrar que na África subsaariana, ainda tão pouco conhecida e estudada
pelos historiadores ocidentais, existiram reinos autossuficientes, ricos e grandiosos, altamente
estruturados do ponto de vista econômico e político, complexos do ponto de vista religioso e
cultural. Muitas histórias relacionadas ao imaginário religioso judaico-cristão, por exemplo a his-
tória da rainha de Sabá, podem ser compreendidas em seu conteúdo histórico mediante o conhe-
cimento da trajetória do reino de Axum. A difusão da forja do ferro, que muitos teóricos atribuem
a povos de origem indo-europeia, como os hicsos, difundiu-se na mesma época entre os africanos
da cultura Nok. Da mesma forma, elementos importantes da cultura e religião afro-brasileira,
como o culto aos orixás no Candomblé, podem ser localizados em sua origem se conhecermos
melhor a cultura iorubá, uma das mais ricas da África subsaariana.
Conhecer o passado da África é conhecer o passado da humanidade em seus aspectos mais
representativos e fundamentais. É também conhecer as raízes histórico-culturais do próprio povo
brasileiro, como veremos mais adiante.
Somente três meses após a morte de um rei Iorubá é que o Conselho encarregado de escolher
o novo rei começava a busca, entre os descendentes das famílias reais.
As pessoas que tinham condições de ocupar o trono eram apontadas pelas famílias e começa-
vam as pesquisas para a escolha do novo rei.
Primeiro era consultado um Babalawo, para saber qual a indicação de Ifá (oráculo). No jogo
de búzios, Ifá apontava o nome escolhido e, em seguida, o Conselho dava a decisão final, de
acordo com as investigações sobre sua vida. Quando finalmente o nome era aceito, ninguém
mais podia ir contra a escolha.
Em seguida, a Prefeitura local era informada, para aprovação oficial. Só após todas essas pro-
vidências era marcado o dia em que o escolhido saberia que tinha sido eleito rei, e seria apre-
sentado ao povo.
[...]
Todo o povo da localidade comparecia à reunião para apresentação do rei, incluindo todos
os candidatos a rei, sem saber quem fora o escolhido. O chefe do Conselho fazia um discurso
explicando o motivo da reunião e, em seguida, um guerreiro ou homem influente no local
levantava-se e tirava o chapéu do eleito.
36 História da África e da cultura afro-brasileira
Só nesse momento todos ficavam sabendo quem fora escolhido por Ifá, inclusive o próprio, que
ficava muito surpreso, emocionado e feliz. Em seguida batiam nele com uma folha especial,
òkiká, entregavam-lhe um abebe (espécie de leque), e apresentavam-no ao povo, perguntando
se gostaram da escolha. Todos respondiam: Kábíyèsí, k’ádé pe l’orí ki bàtá pe l’ese (Saudamos o
Rei, que a coroa fique por longo tempo em sua cabeça e os sapatos em seus pés).
Atividades
1. Qual aspecto mais se destaca nas estatuetas de terracota (Figuras 1 e 2) relacionadas à cul-
tura Nok?
2. Como explicar o fato de reinos tão grandiosos como o de Axum não apresentarem conti-
nuidade nos séculos seguintes ao IV da nossa era? Por que, apesar da sua importância, esses
reinos são tão pouco conhecidos pelos historiadores?
3. Considerando o texto sobre Axum e pesquisando mais a respeito, explique: qual é a relação
entre a história desse reino e a história bíblica do Reino de Sabá?
4. Quais são as duas versões mais conhecidas sobre a origem dos primeiros reis iorubás?
Referências
BÍBLIA (Velho Testamento). 1 Reis. Português. Bíblia Online. Tradução de Almeida corrigida e revisada, fiel
ao texto original. Cap. 10. Disponível em: <http://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/1>. Acesso em: 24 abr. 2018.
CRESCENTI, M. Alemães dizem ter encontrado palácio da arca perdida. BBC Brasil, 14 maio 2008.
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/05/080514_arca_mc_mp.shtml>.
Acesso em: 6 dez. 2017.
GIORDANI, M. C. História da África anterior aos descobrimentos. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
IFATOSIN, M. I. C. A. Cultura iorubá: costumes e tradições. Rio de Janeiro: Publicações Dialogarts, 2006.
M’BOKOLO, E. África negra: história e civilizações até o século XVIII. Lisboa: Edições Colibri, 2012. Tomo I.
MOKHTAR, G. (Ed.). História Geral da África: África Antiga. 2. ed. Brasília, DF: Unesco, 2010. v. 2.
PINSKI, J. 100 documentos de história antiga. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1991.
PINGUILLY, Y. Contos e lendas da África. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SILVA, A. C. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
3
O Magreb ou a África Mediterrânea da Antiguidade
1 Ao longo deste capítulo, utilizaremos diversas pesquisas referentes à África. Embora nosso objetivo principal
fosse utilizar pesquisas apenas dos africanos, esse propósito não foi possível em todos os capítulos. Isso porque
há pesquisas significativas de outros pesquisadores sobre os temas discutidos nesta obra e, ainda, porque há certa
escassez de publicação de materiais produzidos pelos próprios africanos a respeito do continente. Sempre que
possível, citamos uma das obras mais significativa sobre a história da África. Trata-se da coleção História geral
da África, organizada pela Unesco. Para uma análise crítica sobre a abordagem dessa coletânea, bem como para o
conhecimento dos propósitos que a coleção teve ao ser produzida, ver Lima (2012) e Barbosa (2012).
38 História da África e da cultura afro-brasileira
de Berberia. Tal acepção foi tomada principalmente pela historiografia contemporânea que aca-
tou a denominação inferida pelos romanos aos povos habitantes daquela região2.
No que se refere aos primórdios da ocupação da região da África Mediterrânea, as pesquisas
do historiador Jehan Desanges (2010) demonstraram que “por volta de 7000 antes da Era Cristã
apareceram homens de estatura bastante alta, de raça mediterrânea, mas não isentos de caracteres
negroides. São os chamados capsienses, denominação derivada do sítio epônimo de Capsa (Gafsa)”
(DESANGES, 2010, p. 452, grifo nosso).
Desanges (2010) chama a atenção ainda para as características da localização da África
Mediterrânea, destacando que, nos tempos mais longínquos da ocupação, a relação entre os primei-
ros agrupamentos humanos era mais fácil através do mar – por meio do atual Estreito de Gibraltar.
Dessa maneira, “essa severa ruptura da antiga unidade africana foi compensada por novas relações
inauguradas precisamente a esta época [III milênio da Era Cristã] nas duas asas do Magreb com
o sul da Península Ibérica, bem como com Sicília, Sardenha, Malta e o sul da Itália” (DESANGES,
2010, p. 454)3.
Esses contatos foram comprovados por escavações em sítios arqueológicos, revelando objetos
de cerâmicas comuns aos dois lados do Mediterrâneo. Essas comprovações chamam a atenção para a
existência de uma grande península no complexo mediterrânico muito antes da fundação de Cartago.
Entre os inúmeros povos supostamente autóctones do norte da África, três grupos, segundo
Kormikiari (2001), destacaram-se nos relatos elaborados por povos estrangeiros (particularmente
gregos, romanos e fenícios). São eles: “os númidas, situados ao longo da Berberia Central e da
Oriental; os mouros, localizados na Berberia Ocidental; e os getulos. Estes últimos [...] ocupavam
a região meridional da Berberia Ocidental e central” (KORMIKIARI, 2001, p. 29)4.
3.1.1 Os númidas
Os númidas, povos seminômades falantes do berbere, estavam divididos entre si em diver-
sos clãs (com destaque para os masesilos e massilos), que habitaram desde a Antiguidade a região
da Numídia (atual Argélia e partes da Tunísia e do Marrocos). Esses povos estabeleceram maiores
trocas culturais e econômicas com os fenícios, fundadores da cidade de Cartago.
Os grupos númidas estavam organizados em pequenos clãs que, por sua vez, eram compos-
tos por diversos grupos familiares menores. Segundo os historiadores, há dificuldade prevalente para
constituir conhecimentos sobre esses povos porque todas as fontes escritas são textos de autores gregos,
2 Os berberes denominavam a si mesmos como imazighen, que significa homens livres (no singular Amazigh) para
todos os falantes do berbere, oriundos de vários estados do norte da África. A palavra berbere, de conotação negativa,
foi incorporada ao português por empréstimo do árabe berber (derivado de ber “homem” co m interferência do latim
barbărus), ou seja, estrangeiro à civilização greco-romana. Para saber mais, ver Guerra (2009).
3 Segundo o autor, “os dolmens da Argélia e da Tunísia são de um tipo também encontrado na Sardenha e na Itália;
a cerâmica de Castellucio – decorada com motivos geométricos em marrom ou preto sobre fundo mais claro –, comum
na Sicília por volta de 1500, anuncia a cerâmica cabila etc. Influências de regiões mais distantes – Chipre ou Ásia Menor
– passaram a transitar por Malta, Pantelaria e pela Sicília a partir do momento em que os navegadores egeus, depois
fenícios, aportaram nessas ilhas” (DESANGES, 2010, p. 454).
4 A historiadora Maria Cristina Nicolau Kormikiari (2001) chama a atenção para o fato de essas denominações terem
mudado muito em virtude dos povos que descreviam sobre esses agrupamentos humanos. “Os gregos por muito tempo
chamaram de Númidas todos os africanos não súditos de Cartago, reservando o nome líbios para os indígenas que ha-
bitavam o território submetido” (KORMIKIARI, 2001, p. 29).
O Magreb ou a África Mediterrânea da Antiguidade 39
como Heródoto, Diodoro da Sicília, Ptolomeu e Políbio; e romanos, como Salústio, Tito-Lívio, Plínio, o
velho, Tácito e Apiano. O único recurso para uma perspectiva não greco-romana dos eventos são fontes
materiais difíceis de serem encontradas e de serem analisadas.
Heródoto forneceu um dos primeiros “relatos etnográficos” mais detalhado dos grupos
que habitavam a parte oriental da Tunísia e da Líbia atuais. Ao dividir os povos habitantes da
Berberia entre pastores-nômades e cultivadores – agroteres –, os escritos atribuídos a Heródoto
definiram os pastores vizinhos do território cartaginês com o termo latino numidae (de onde
provém o númidas). Os relatos versam sobre os combates travados pelas tropas da cidade fenícia
de Cartago contra esses povos.
Sobre a divisão elaborada por Heródoto, que atribuía a um desses grupos norte-africanos
a vida nômade e ao outro a vida sedentária, o historiador Brian H. Warmington (2010) alega ser
equivocada. Para ele,
Embora os gregos e romanos tenham derivado incorretamente o nome
“Númidas” de uma palavra grega que significa “pastorear”, considerando-o
como uma evocação da vida nômade desse povo, parece que não há diferença
fundamental entre os habitantes dessas duas regiões; em ambas predominava
uma cultura pastoril seminômade, embora já existissem áreas de vida sedentária
e de agricultura regular, que continuaram a se desenvolver. (WARMINGTON,
2010, p. 474)
Para o autor, não há diferença fundamental entre pastores, agricultores e os povos daquele
período. Entre eles, predominava uma cultura pastoril seminômade, embora já existissem áreas
de vida sedentária e de agricultura regular, que continuaram a se desenvolver. Havia também um
contato bastante estreito entre a Mauritânia (denominação elaborada pelos romanos para a região
habitada por grupos de mouros) e o sul da Espanha, onde existiam culturas semelhantes.
Númidas foi, portanto, a denominação atribuída aos habitantes da costa situada entre o rei-
no mouro e a província cartaginesa, ou seja, entre a Berberia Ocidental e a Berberia Oriental, e
o reino da Numídia (Numidia) corresponderia, considerando as oscilações das fronteiras, à essa
região na Antiguidade.
A Numídia foi a região mais importante dos númidas, cujo rei mais poderoso foi Massinissa.
Ao que se sabe, o nome desse reino deve ser tomado mais como simples expressão geográfica do
que por uma unidade política, em virtude da existência de diversos outros pequenos reinos inde-
pendentes dentro dessa região, formada devido a poligamia de seus reis. A Numídia foi um dos
territórios que mais negociou com Roma e Itália a partir do século II a.C., havendo notícias de
grandes negociantes italianos em Cirta5.
3.1.2 Os mouros
Outro grupo importante de berberes foram os mouros ou maurúsios. Formavam o grupo
líbico-berberes do litoral. Essa denominação apareceu nos relatos de Plínio, o Velho, e referia-se a
grupos autóctones que habitavam a região da Berberia Ocidental. A partir do século II a.C., o nome
mouro foi utilizado para definir toda a população da costa mediterrânea da África, estendendo-se
por toda a Berberia até o fim dos tempos antigos, terminando por adquirir um sentido particular:
o de berberes não romanizados. Na Idade Média, a mesma palavra serviu para designar todos os
muçulmanos do Ocidente6.
Nesses primeiros tempos de povoação da Berberia Ocidental, o termo mouro correspondia a
diversos grupos. Tal denominação consta em documentos atribuídos a Ptolomeu e Plínio, o Velho.
Segundo Kormikiari (2014), desde o século VI a.C., o mundo grego conhecia os confins ocidentais
do Mediterrâneo (KORMIKIRI, 2014, p. 44). Cláudio Ptolomeu é a fonte mais antiga (140 d.C.) a
fornecer dados concretos e em ampla quantidade sobre as terras do atual Marrocos. A denomina-
ção mouros era atribuída, portanto, de maneira externa (por gregos e romanos) aos habitantes não
fenícios do Magreb.
Foi com base em relatos romanos que se constituíram as primeiras referências aos povos
que habitavam a Berberia Ocidental. Em um catálogo produzido em 297 d.C., há referências aos
povos espalhados pelo Império Romano. A região onde habitavam os mouros foi denominada de
Mauritânia – antiga Maurousia (WARMINGTON, 2010, p. 474; KORMIKIRI, 2014, p. 44).
De acordo com Brian H. Warmington (2010, p. 498),
Admite-se geralmente que o reino da Mauritânia se desenvolveu mais lenta-
mente que a Númidia; mas é possível que essa opinião seja [em] decorrência
de falta de informações. É certo que o maçiço montanhoso do Atlas continuou
tão fechado à influência fenícia como mais tarde à cultura romana, mas a vida
sedentária expandiu-se um pouco nas áreas férteis, como o vale do Muluya e a
região ao longo da Costa Atlântica. Foi nas zonas montanhosas que diversas tri-
bos mouras conservaram sua identidade própria durante a dominação romana,
e mesmo depois.
O olhar estrangeiro dos conquistadores gregos e romanos, podemos concluir, pouco con-
seguiu penetrar nas amplas terras da Mauritânia. As diversas etnias que habitavam essa região,
porém, intentaram manter singularidades e se constituíam em grupos distintos. A denominação
generalizada de “mouros” era uma definição imposta de fora, portanto.
3.1.3 Os getulos
Outro grupo constantemente citado nos documentos elaborados sobre a África Mediterrânea
pelos gregos, fenícios e romanos, era o dos getulos. Enquanto os mouros ocupavam o litoral, os getulos
caracterizavam-se pela ocupação dos planaltos.
A Getúlia fazia divisa com os territórios da Numídia (KORMIKIARI, 2014, p. 29). Segundo
Brian Warmington (2010), os getulos constituíam “os verdadeiros nômades dos limites setentrio-
nais do Saara” (WARMINGTON, 2010, p. 474) e organizavam-se em diferentes grupos autônomos
que circulavam na região meridional da Berberia Ocidental e central, região que ficou conhecida
como Getúlia.
Durante a Antiguidade, a Berberia Ocidental era habitada por três grandes grupos: os
númidas, os mouros e os getulos. Os getulos, da mesma maneira que os númidas e os mouros
correspondiam a uma denominação generalizada que intentava catalogar diversos grupos sin-
gulares, que possuíam em comum o fato de habitarem uma mesma região. Segundo Kormikiari:
“Plínio, o velho, [...] afirma que quando os ‘reis’ mouros pretenderam estender sua autoridade até
os getulos, as terras destes tinham por limite sul as regiões habitadas pelos etíopes, ou seja, para
além do Alto Atlas” (KORMIKIARI, 2001, p. 50).
Para entendermos melhor a estrutura política da Antiguidade na África Mediterrânea, é
preciso esclarecer: os getulos nunca formaram um “Estado”, de acordo com a acepção moderna
da palavra. Gaetulia (Getúlia) era a definição utilizada para especificar o território dos getulos de
uma maneira generalizada. Referia-se, tal como a Mauritânia e a Numídia, a uma denominação
geográfica que reunia um grupo de planícies e outro de montanhas que contornavam o deserto.
Uma das hipóteses para a denominação getulos, que aparece nos documentos estrangeiros
para fazer referência aos povos das regiões especificadas, pode referir-se ao estilo de vida daqueles
povos, que era baseado no nomadismo. Kormikiari (2001) esclarece: em consequência do noma-
dismo e da distância a que estavam do Mar Mediterrâneo, os pesquisadores os definem como “mais
rústicos” se comparados aos outros povos do Magreb7, demonstrando que o contato com o mar
proporcionava o relacionamento com outros povos e culturas, ampliando técnicas, transformando
hábitos e culturas.
Entretanto, sabemos que tais denominações, tentando definir povos bastante distintos entre
si, foram a maneira como os habitantes da África Mediterrânea apareceram nos documentos estran-
geiros, de povos que intentaram conquistar a região. Ao descrever esse território antes das ocupa-
ções, chamamos atenção para o fato de existir uma rica vida cultural, política e econômica dos povos
mais antigos da Berberia, que se relacionaram ou resistiram à ocupação dos territórios nos quais eles
circulavam. Embora os estudos recentes apontem para uma infinidade de povos habitantes daquela
região, os documentos têm demonstrado que essas três localidades (a Numídia, a Mauritânia e a
Getúlia) eram as mais habitadas e tinham diferenças culturais significativas entre si.
De acordo com o historiador Brian Warmington (2010), todas as fontes escritas e registra-
das sobre o encontro da população autóctone da África Mediterrânea e os fenícios foram elabo-
radas pelos maiores inimigos destes últimos – os gregos e os romanos. Por isso, os documentos
constroem uma imagem bastante negativa dos fenícios do Oeste, particularmente os cartagineses.
Segundo Warmington (2010, p. 474), nada restou de literatura desse povo.
Mesmo fundada no século VIII a.C., acredita-se que a cidade de Cartago tinha apenas algu-
mas centenas de colonos até o século VI a.C. Foi a partir desse período que teve início a sua ascen-
são e poderio, adquirindo o controle sobre as outras povoações fenícias do Ocidente e assumindo
a liderança de um império na África do Norte. Acredita-se que inicialmente os cartagineses foram
recrutando exércitos mercenários entre os diversos povos moradores da Berberia. Posteriormente,
eles se tornaram aliados, por meio de tratados. Há registros de tropas formadas por númidas e por
mouros dentro dos exércitos de Cartago e sobre cavalarias mauritanas e númidas (originárias dos
atuais norte da Argélia e do Marrocos) forneceram importantes contingentes aos grandes exércitos
cartagineses (WARMINGTON, 2010, p. 479).
Durante alguns séculos, Cartago expandiu-se e enriqueceu. Nas regiões conquistadas pelos
cartagineses era necessário pagar tributos e fornecer tropas aos exércitos. Dessa maneira, as antigas
estruturas dos povos da África Mediterrânea sofreram significativas transformações sob a influên-
cia do poder dos cartagineses. A riqueza e a potência guerreira de Cartago intimidaram os povos
gregos e romanos da Antiguidade. Ambos tiveram contato com o Império Cartaginês e entraram
em conflitos constantes para exercer o domínio dos territórios conquistados por Cartago, particu-
larmente sob os estratégicos territórios da África Mediterrânea, diante das possibilidades de saída
para o mar e do contato com diferentes populações interioranas e mediterrâneas.
Há registros que mostram como os cartagineses eram extremamente severos com seus
súditos e povos conquistados, submetendo-os à exploração e violência. Com a formação da ci-
dade de Cartago, os mais privilegiados foram os velhos estabelecimentos fenícios e as colônias
fundadas pela própria Cartago, cujos habitantes eram chamados pelos gregos de líbio-fenícios,
isto é, fenícios da África. Os cartagineses eram narrados por fontes gregas e romanas como gran-
des negociantes e Cartago era tida, na época, como a cidade mais rica do mundo mediterrâneo.
Cartago manteve o monopólio do comércio em seu império, afundando toda embarcação
intrusa ou concluindo tratados comerciais com os possíveis concorrentes, como as cidades etruscas
(situadas ao norte da Península Itálica) e Roma. Em princípio, nenhum estrangeiro estava auto-
rizado a comerciar a oeste de Cartago; isso significava que as mercadorias levadas a essa cidade
por navios estrangeiros deveriam sofrer transbordo para navios cartagineses, para então serem
reexportadas. Assim, os produtos da Etrúria, da Campânia, do Egito e de diversas cidades gregas
atingiram um grande número de colônias da África do Norte (WARMINGTON, 2010, p. 484).
O mais importante a ser destacado quanto à presença fenícia na costa norte africana e, prin-
cipalmente, sobre o poder atingido por Cartago refere-se à nova configuração social, política e eco-
nômica que se delineou entre os povos mais antigos da África Mediterrânea e o contato com novas
e diferentes civilizações. Por diversos momentos, os mouros, os númidas e os getulos combateram
O Magreb ou a África Mediterrânea da Antiguidade 43
junto aos exércitos cartagineses contra os romanos, demonstrando que havia trocas mútuas ou
aprisionamentos entre os diversos povos que circulavam na região da Berberia.
Conforme vimos nesta seção, na qual nos apoiamos nos estudos Brian Warmington, com o
fim de Cartago, violentamente destruída pelos romanos na Terceira Guerra Púnica, ocorrida no
ano de 146 a.C., inicia-se um novo período para as populações africanas costeiras do Mediterrâneo.
Trata-se do período no qual os romanos assumem o controle do lugar, exercendo sobre as popula-
ções locais o seu domínio.
8 Para saber mais e ter uma visão mais abrangente sobre esse aspecto, ver Garraffoni (2005).
44 História da África e da cultura afro-brasileira
As resistências à dominação romana por parte dos povos originários foi intensa. Diversas
guerras foram movidas contra o Império Romano e por diversas vezes houve vitória dos númidas
e dos mouros.
Segundo A. Mahjoubi (2010), nos primeiros tempos ocorreram uma longa série de triunfos
celebrados pelos generais romanos contra os mouros, getulos, garamantes e outros. O último quar-
tel do século I antes da Era Cristã mostra que as populações originárias nunca foram totalmente
subjugadas apesar das vitórias romanas (MAHJOUBI, 2010, p. 502).
Uma guerra famosa ocorrida durante esse processo de conquista foi entre o númida
Tacfarinas e os romanos. A guerra durou oito anos, envolveu toda a parte meridional da África do
Norte, desde a Tripolitânia até a Mauritânia e ocorreu no reinado do imperador romano Tibério
(42 a.C. a 37 d.C.). As condições injustas estabelecidas pelo governador da província romana aos
nativos foram o motivo. Segundo Mahjoubi (2010):
O chefe númida recorreu às armas para forçar o imperador todo-poderoso, a
reconhecer o direito de seu povo à terra, pois a conquista romana fora imedia-
tamente seguida do confisco de todas as terras férteis. Os campos dos Númidas
sedentários tinham sido devastados; as áreas tradicionalmente percorridas
pelos nômades eram constantemente reduzidas e limitadas; os veteranos e
outros colonos romanos e italianos instalavam-se por toda parte, a começar
pelas regiões mais ricas do país; companhias coletoras de impostos e membros
da aristocracia romana, senadores e cavaleiros, apropriavam-se de vastos do-
mínios. Enquanto seu país era assim explorado, todos os autóctones nômades
e todos os habitantes sedentários que não viviam nas raras cidades poupadas
pelas guerras sucessivas e pelas expropriações foram reduzidos a uma condi-
ção miserável ou expulsos para as estepes e para o deserto. Portanto, sua única
esperança era a resistência armada, e seu principal objetivo, a recuperação das
terras. (MAHJOUBI, 2010, p. 502)
As operações militares na África Mediterrânea por parte dos romanos continuaram durante
os dois primeiros séculos da Era Cristã. As investidas dos romanos para o sudoeste respondiam ao
alvoroço dos povos originários, que se reuniam e se dispersavam nas faixas costeiras e a nordeste
diante do avanço das tropas romanas. Entre as províncias romanas e as regiões desérticas localiza-
das ao sul, formavam-se comunidades independentes de berberes.
Nas faixas limítrofes, os romanos instalavam comunidades de camponeses que, em troca de
não pagar impostos, encarregavam-se da proteção dos territórios em nome dos romanos.
Pesquisas historiográficas apontam para o fato de que o governo romano sempre manteve rela-
ções com os chefes dos reinos berberes, que, em troca de subsídios e da concessão de uma investidura
imperial com a finalidade de reconhecer seus poderes locais, concordavam em fornecer contingentes
destinados a proteger os limites entre as províncias e as sociedades independentes (MAHJOUBI,
2010, p. 510).
Durante a dominação romana na África Mediterrânea, a presença urbana foi considerável.
Mesmo que diversas dessas cidades tenham existido desde os reinos númidas e, posteriormente, am-
pliadas por meio da presença cartaginesa, o Império Romano – urbano por excelência – aumentou o
número e a extensão das cidades (BUSTAMANTE, 1999, p. 134).
No tocante à religiosidade, os romanos não impediram os povos originários da África
Mediterrânea de praticarem suas crenças. De origem rural, os velhos cultos berberes conservaram
suas formas ancestrais. Entretanto, conforme os contatos culturais entre romanos e berberes acon-
teciam, as influências da religião greco-romana passaram às práticas berberes. Há diversas fontes
materiais apontando tal sincretismo religioso. Nas regiões dos númidas, que já sofriam influência
da cultura dos cartagineses, a nova presença cultural proporcionou o acréscimo ao panteão de
deuses nativos do culto a Netuno e aos velhos deuses de Cartago. Entretanto, a romanização foi a
influência mais forte de transformação da religião africana.
Ali Mahjoubi (2010) chama a atenção: “a língua púnica desapareceu dos ex-votos, os símbo-
los abstratos gravados nas estelas frequentemente foram substituídos por figuras de deuses em ge-
ral derivadas da arte greco-romana, a influência da arquitetura romana se estendeu às construções
religiosas” (MAHJOUBI, 2010, p. 538).
Embora de intensa prevalência, a religião romana não se impôs sobre a religião africana,
conservando viva a sua especificidade, manifestada nos rituais, nas representações figuradas e nos
textos latinos que evocavam em notável constância a lembrança das fórmulas tradicionais.
Curiosamente, conforme Mahjoubi (2010), a partir do século II era possível identificar
na África Mediterrânea um número muito grande de cristãos, em todas as classes e profissões.
Segundo a narrativa de Tertuliano, analisada pelo historiador, por volta do ano de 220 da Era Cristã
foi possível reunir em Cartago um sínodo9 de 71 bispos; outro, realizado em cerca de 240, reuniu
noventa bispos. Isso mostra que as pequenas comunidades cristãs estavam espalhadas por muitas
cidades africanas, antes mesmo da cristianização do Império Romano, no século IV.
9 Assembleia periódica de bispos presidida pelo papa. Reúne-se para tratar a respeito de assuntos ou de problemas
concernentes à Igreja.
46 História da África e da cultura afro-brasileira
A identificação de comunidades cristãs fez com que os imperadores romanos, tolerantes com
a prática das diversas religiões originárias dos povos africanos, perseguissem os cristãos, gerando
diversos episódios de violências intensas. Uma das hipóteses para o fato de o cristianismo ter se
espalhado com relativa facilidade e rapidez tanto nas províncias romanas da região quanto entre a
população africana originária aconteceu em razão da existência de pequenas comunidades judaicas
nos portos, principalmente em Cartago, que influenciaram a proliferação das novas ideias cristãs.
Após a conversão de Roma ao cristianismo, a cristianização da África se intensificou. Um dos
exemplos mais significativos da presença cristã na África do Norte se deu com a história e produção
intelectual religiosa de Santo Agostinho10. O cristianismo africano se propagou, sobretudo, durante o
período entre a conversão de Roma à igreja cristã, no século IV, até o estabelecimento dos árabes na
África do Norte.
10 Aurélio Agostinho nasceu de família abastada na cidade da Numídia, norte da África, em 354 da nossa era. Estudou
em Cartago e formou-se em retórica e eloquência. Na juventude, foi influenciado pela teoria do maniqueísmo. Atuou
como professor por um tempo. Viajou para outras regiões do Império Romano, passando um tempo em Milão. Conheceu
o platonismo, o neoplatonismo e o cristianismo. Converteu-se ao cristianismo por volta de 386 da nossa era e voltou
para Tagasta, no norte da África. Tornou-se sacerdote e, mais tarde, bispo de Hipona, cargo que ocupou até sua morte,
em 430 da nossa era, durante a invasão do norte da África pelos vândalos (tribo germânica). É considerado u m dos prin-
cipais teóricos do cristianismo, realizando o esforço em coadunar os princípios cristãos com a filosofia neoplatônica de
Plotino. É também um dos últimos grandes filósofos da Antiguidade tardia.
O Magreb ou a África Mediterrânea da Antiguidade 47
dominação bizantina sobre os territórios da África Mediterrânea. Entretanto, essa dominação não
aconteceu de maneira pacífica. Os povos originários moveram todas as suas forças contra a domi-
nação bizantina. As agitações persistiram até o século VII da nossa era.
Para o historiador e arqueólogo P. Salama (2010), especialista na história das instituições
antigas do Magreb e professor na Universidade de Argel, é por meio do número de fortificações
bizantinas na África do Norte que podemos “compreender que a ‘estratégia de fortalezas’, barrando
as rotas de invasão, ocupando todas as encruzilhadas e defendendo o território até sua parte cen-
tral, evidenciava um perpétuo estado de alerta [por parte dos bizantinos], pois o inimigo [berbere]
surgia de todos os lados” (SALAMA, 2010, p. 550).
No que se refere aos aspectos religiosos, o historiador ressalta a intensa diversidade cultu-
ral que a África Mediterrânea passou ao longo dessas invasões. Os vândalos eram católicos, mas
professavam uma versão diferente do catolicismo – o arianismo11. Essa influência permaneceu no
território até a conquista bizantina. Os bizantinos professavam o catolicismo ortodoxo grego e
impuseram sua orientação religiosa aos povos que estavam sob o domínio do Império Romano do
Oriente, proibindo o arianismo.
As querelas religiosas representaram um dos pontos mais conflitantes do domínio de
Bizâncio sobre os territórios africanos. Líderes berberes foram perseguidos e duramente reprimi-
dos, em função do sincretismo religioso professado na região. Entretanto, Hussain Mones (2010)
considera: o cristianismo era pouco difundido junto aos berberes. Somente os habitantes da faixa
litorânea – aqueles que foram posteriormente chamados pelos árabes al-afārika – conservaram
essa religião.
Os árabes, quando chegaram à região, relatam que os afārika eram um povo marginal, com-
postos de uma mistura de berberes e cartagineses romanizados, de romanos e gregos. Comparados
aos poderosos grupos berberes do interior do país, eles não formavam senão uma pequena minoria
(MONES, 2010).
Em virtude da grande diversidade cultural existente no norte da África, o domínio dos
bizantinos foi enfraquecendo e diversos casos de insubmissão administrativa (particularmente
motivadas por conflitos religiosos) tornaram-se frequentes. O quadro se arrastou até o fim do
século VII, quando um novo e inesperado invasor adentrou às terras da África Mediterrânea: o
conquistador árabe. Este acabou de vez com o domínio dos bizantinos e deu início a um novo
capítulo na história daquelas populações.
11 O arianismo é uma doutrina cristã criada por Ário (256-336), teólogo que foi presbítero da região da Alexandria no
século III da nossa era. Segundo a teoria, Jesus Cristo era um ser criado por Deus, por isso não era da mesma natureza
que Deus Pai, e sim um ser de natureza intermediária entre Deus e a humanidade.
48 História da África e da cultura afro-brasileira
por guerras constantes –, além de conflitos internos de origem étnica na Síria e na Mesopotâmia
(que tinham tribos árabes), eram motivos para o crescimento do sentimento da unidade política e
espiritual da fé islâmica, proposta por Maomé (HOURANI, 1994, p. 40).
Após a morte do profeta, em 634, a Península Arábica foi unificada. Os primeiros exércitos
islâmicos se organizaram e foram enviados para o exterior na tentativa da organização das bases
por meio das quais a unidade política e cultural do islã deveria se estabelecer. A ordem era tornar
o mundo muçulmano ou pagar tributos aos muçulmanos, cujos líderes militares de tal expansão
eram os califas (que significava representantes), fundadores dos califados.
A chegada dos árabes no território da África Mediterrânea compreende a segunda fase da
conquista. A primeira começou na região do Egito. A chegada e permanência dos árabes nessas
terras se fez como medida estratégica de criação de cidades para o descanso dos exércitos que
seguiam adiante. Uma das primeiras cidades foi construída na região da atual Tunísia. O local era
estratégico para enfrentar as ofensivas dos bizantinos, resistindo à ocupação. Há relatos de que,
nessas primeiras ofensivas, diversas tribos berberes tenham sido devastadas. As sobreviventes exi-
laram-se nas montanhas.
Em 681, aconteceu uma das maiores ofensivas berberes contra os árabes. Os berberes
invadiram uma cidade recém-fundada e a saquearam, fazendo os árabes recuarem. Entretanto,
ao mesmo tempo que combatiam, alguns berberes eram convertidos, fazendo os combates
enfraquecerem por parte dos povos africanos.
A conversão era uma estratégia dos muçulmanos. Muitas vezes, antes dos combates, apresen-
tavam aos inimigos a doutrina do islã e lhes asseguravam que, caso fossem convertidos e aceitassem
aderir à doutrina exposta, o rei e todos do seu clã se tornariam membros plenos da comunidade
muçulmana (MONES, 2010, p. 560).
Mediante estratégia e poder militar, a expansão islâmica chegou aos mares, aumentando
frotas navais, invadindo ilhas e alcançando a Ásia Menor, em uma importante base naval. Por meio
dela, passaram a assediar12 Constantinopla (PIRENNE, 1970, p. 134-135). Ao aliar estratégia e
organização militar, além do avanço para o oeste pelo norte da África, simultaneamente os muçul-
manos se apoderaram de posições marítimas chave no Mediterrâneo.
A ostensiva árabe foi tão eficiente que, ainda no século VII, foi concretizada a ocupação dos
muçulmanos na extensão do território da África Mediterrânea. O ano de 678 foi tomado como o
marco da islamização do Magreb. Na região costeira do Mediterrâneo, o califa Mousa ibn Noçayr
submeteu o Magreb e impôs definitivamente o islamismo aos povos berberes, cuja maioria já estava
convencida a abraçar o islã. Por meio dessa conquista, a África do Norte ficou dividia em três pro-
víncias muçulmanas. A primeira província compreendia o Egito, e a capital era al-Fustat; a segunda
compreendia a região da Tunísia e foi denominada Ifriqiya e, por fim, o Magreb, com a capital Fez.
A presença árabe alterou profundamente as antigas estruturas. Esse povo foi responsável pela
construção de grandes mesquitas, muralhas e pela transformação das capitais das províncias em
importantes centros culturais, de efervescência das ciências, da religião, da poesia e das artes, com
destaque para a confecção de azulejos ricamente decorados.
O ensino público e as universidades foram fomentadas pelos árabes, proporcionando uma
infinidade de descobertas e a formação de importantes bibliotecas nesses redutos. A dinastia dos
aglábidas, que governou a província da Tunísia até o ano de 990, foi responsável pela criação da
marinha e do desenvolvimento de técnicas agrícolas, de irrigação, do florescimento da arquitetura
e das atividades intelectuais. Os aglábidas foram derrotados pela dinastia fatímidas, que rapida-
mente produziu os reis mais ricos do seu tempo.
Desde a dominação muçulmana, as regiões da África Mediterrânea estabeleceram constan-
tes e lucrativas rotas de comércio com o Islã oriental, com a Espanha e com regiões transaarianas.
Trouxeram novas técnicas para a arte do couro, das tinturas e dos perfumes. Ao se expandirem até
o Egito, tomando-o dos turcos ikshididas, os fatímidas unificaram todo o norte da África.
Próximo ao ano 1000, a Europa medieval alterava suas configurações sociais e políticas.
Nessa época, solidificaram-se os ataques contra muçulmanos, particularmente, pela tentativa de
reconquista da terra santa, e o domínio dos árabes sobre os povos berberes também se intensifi-
cou. Com isso, uma série de perseguições contra judeus teve início, além de perseguições intensas
contra cristãos.
Com o domínio árabe dos antigos povoados númidas e mouros, as localizações geográficas
estratégicas permitiram aos árabes adentrar em grande parte do continente africano, deslocando-se
para o Saara em busca de riquezas necessárias e, ainda, visando a expansão do islã. Dessa maneira,
berberes islamizados encarregavam-se de converter outros povos, ampliando cada vez mais a ocupa-
ção muçulmana em terras africanas.
Há registros de que a partir do século IX uma confederação de tribos berberes sob o comando
de Tilutan (836-837) conseguiram impor sua autoridade sobre vários grupos negros e negro-berberes
instalados ao redor de um povoamento que ficava bem no centro da região do Baixo Senegal, o que
demonstrando a entrada do islã no interior do continente africano13.
A efetivação da influência árabe entre os habitantes da África Mediterrânea pode ser com-
provada com base na união entre os berberes (mouros) islamizados, falantes do árabe que se jun-
taram aos árabes invasores para a conquista da Península Ibérica no século VIII. A presença dos
mouros na Península Ibérica foi significativa, e a expulsão definitiva só ocorreu no século XV.
Considerações finais
Neste capítulo, você pôde conhecer melhor sobre alguns dos povos que se desenvolveram na
região conhecida como África Mediterrânea, situada ao norte do Deserto do Saara e banhada pelas
águas do Mar Mediterrâneo.
Esses povos – em que pese o fato de terem sofrido maior influência do Oriente Próximo, como
foi o caso da civilização egípcia –, tiveram um desenvolvimento autônomo e original, organizando
sua economia de forma dinâmica com outras populações da Antiguidade e realizando trocas cultu-
rais e comerciais.
A Berberia, região habitada por povos autóctones e diferenciados, sofreu a presença de povos
estrangeiros, como os fenícios, dos quais floresceu a civilização cartaginesa, que nos séculos III e II a.C
rivalizou com Roma o controle do Norte da África, trazendo a longa história de conflitos entre es-
sas duas civilizações e sérias consequências para as populações locais. Aos romanos, sucederam-se
bizantinos, vândalos e árabes nas invasões e tentativas de conquista da antiga Berberia.
Apesar da cultura e religião islâmica atualmente serem predominantes na região, isso não
inviabiliza a permanência de elementos da cultura, da tradição e da língua berbere.
Dentre as ideias pré-concebidas que circulavam no período colonial e que, muitas vezes,
ainda circulam, encontra-se a seguinte: os berberes, que constituem, como se sabe, desde a
Antiguidade mais recuada, o fundo de população norte-africana, teriam sido marcados por
uma espécie de maldição, por uma dupla incapacidade: aquela de fazer nascer uma verdadeira
civilização e, portanto, de sair da Pré-História; e aquela de se unirem para criar verdadeiros
Estados, estruturas políticas vastas e elaboradas.
Eles permaneceriam desde sempre confinados em organizações tribais dispersas, muitas vezes
nômades, e em uma cultura primitiva. Por conseguinte, seriam predestinados a sofrer as domi-
nações estrangeiras, que lhes imporiam suas civilizações: aquelas dos fenícios, transformados
em púnicos, dos romanos, dos vândalos, dos bizantinos, dos árabes, dos turcos e, enfim, dos
franceses. Essa teoria da inaptidão natural dos berberes para a civilização foi sistematizada
entre as duas guerras mundiais pelo geógrafo Émile Gautier, em seu livro Les siècles obscurs du
Maghreb, no qual abundavam as considerações etnológicas de coloração racista.
E, no entanto, a própria história da Antiguidade se insurgia contra essa visão. Com efeito,
sabemos que vastos reinos mouros e númidas foram criados no curso do século III antes da
Era Cristã. O reino do leste, aquele dos númidas massílios, havia adquirido um grande poder
no tempo da Segunda Guerra Púnica e seu rei, Massinissa, entre 206 e 148 a.C., dominou a
maior parte da África do Norte, onde, aliás, foram criadas cidades brilhantes. Esses reinos
duraram em torno de três séculos, até a anexação ao Império do último deles (a Mauritânia),
O Magreb ou a África Mediterrânea da Antiguidade 51
em 39 d.C. Ora, não se pode constatar nada de semelhante na Gália ou na Espanha. Os povos
gauleses não conseguiram jamais se unir e seus conflitos facilitaram em grande medida a
empreitada de César.
No Magreb, durante a Idade Média muçulmana, os reinos berberes prosperaram: assim, para
citar apenas um deles, aquele dos Ziridas no tempo de Ibn Khaldoun (século XIV). O prisma
deformador da visão colonial acabava, portanto, por negar as próprias evidências. É verdade
que as línguas berberes não foram quase nunca escritas e que os Estados adotaram as culturas
dominantes (púnica, latina, árabe). Mas as línguas célticas ou ibéricas não tiveram uma sorte
melhor e, contrariamente aos dialetos berberes, acabaram por desaparecer (salvo nas Ilhas
Britânicas, no que se refere ao céltico).
Lembremos que Lavisse considerava como selvagens os gauleses antes da romanização.
As populações berberes que conservaram até os nossos dias seus costumes e suas tradições
(como é o caso dos Kabilas) eram vistas, portanto, como primitivas, fixadas por toda a eterni-
dade na barbárie. Um autor, não me recordo qual, chamava-os de “os últimos bárbaros bran-
cos”. Elizabeth Fentress soube mostrar, em um excelente livro publicado em 1996, o vazio des-
sas teorias, por vezes ainda sustentadas em nossos dias.
Atividades
1. Quais são as principais fontes escritas sobre a história dos povos autóctones da Berberia e
quais são as principais implicações epistemológicas disso.
2. A religião foi uma das principais dificuldades impostas aos bizantinos na tentativa de efeti-
var a dominação do norte da África. Explique o porquê.
3. Por que nos confrontos entre berberes e árabes a conversão ao islamismo funcionou como
uma estratégia de conquista?
4. Mesmo tendo existido outras e ricas culturas no norte da África na Antiguidade, além da
civilização egípcia, por que elas são tão pouco estudadas por historiadores ocidentais?
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4
A dinâmica escravista anterior à presença portuguesa
Neste capítulo, continuaremos nossa viagem pela história de alguns povos do continente
africano. Iremos conhecer os reinos africanos do litoral ocidental da África e suas característi-
cas políticas, sociais e econômicas nos séculos anteriores à presença portuguesa, notadamente
entre os anos 1000 e 1400.
O foco principal será o reino do Congo, buscando entender, para além da estrutura po-
lítica e econômica, as especificidades da escravidão nesse reino antes do contato com os euro-
peus. Buscaremos também conhecer os primeiros tempos da aproximação entre esse reino e os
portugueses com vistas a entender os impactos sociais, econômicos e culturais, principalmente
para os africanos.
Naquele momento, estava sendo construída a ideia do “outro”, tratando-se de uma cons-
trução essencialmente europeia. Os europeus e, no caso estudado, os portugueses, vivenciavam
o período da expansão territorial e da tentativa de domínio de outros povos, particularmente, os
que habitavam o “Oriente”. Nesse sentido, o pesquisador Edward Said (1990) chama a atenção
para o fato de a palavra Oriente ou oriental ser utilizada pelos europeus (ocidentais) e fazer sen-
tido apenas para eles. Por isso, “o outro” surge como uma categoria de contraposição à realidade
conhecida: a dos europeus. Portanto, constituía-se, de maneira geral, de povos que desconheciam
o cristianismo e falavam línguas não provenientes do latim1. Foi com a legitimidade de “expandir
o cristianismo” que os europeus investiram sobre o “Oriente”. Assim, ocorreu o embate entre a
realidade ocidental (representada pela Europa) e a oriental (representada pelos reinos descober-
tos na perspectiva dos ocidentais). Os confrontos entre essas realidades geraram uma história
riquíssima que em grande parte ainda está por ser estudada.
Nesse aspecto, a professora Andrea Doré (2007) chamou a atenção para a necessidade
de pensarmos o confronto entre os europeus e os povos africanos, asiáticos, indianos no início
do século XVI. Trata-se de considerar os reinos além da Europa como sociedades autônomas
e dinâmicas que também apresentavam interesses na relação com os europeus, agindo e rea-
gindo à presença europeia. Nesse sentido, Andrea Doré enfatiza que é necessário “superar a
ideia construída a respeito da apatia do Oriente e pensar que os interesses europeus ao longo
do tempo não se aderem simplesmente a um quadro estático” (DORÉ, 2007, p. 124). Ou seja,
trata-se de considerar as sociedades africanas, asiáticas ou indianas como sujeitos ativos dessas
relações, que enfrentaram, a seus modos, o novo universo de relações que se construía.
Logo, julgamos importante diferenciar a escravidão africana preexistente daquela que
foi introduzida no continente no século XV. A escravização existente entre os africanos, vale
1 Sobre a ideia da “construção do Oriente” ou de “invenção do orientalismo”, ou seja, da maneira como essa
categoria apareceu nos escritos ocidentais (particularmente aqueles produzidos pelos europeus) ou de como o
Oriente se tornou um objeto de estudos, de interesse ou de descoberta, ver Said (1990).
54 História da África e da cultura afro-brasileira
ressaltar, não pode ser comparada com a prática escravagista imposta pelos portugueses, consi-
derando o pressuposto que uma escravidão não pode servir para justificar a outra e o fato de as
estruturas escravagistas serem essencialmente diferentes.
A primeira diferença diz respeito ao fato dos interesses que mobilizavam a captura e poste-
rior escravização dos indivíduos das sociedades africanas – antes do início da escravização imposta
pelos portugueses. Nessas sociedades, tais ações não estavam pautadas em valores comerciais, não
se caracterizavam pela busca pelo lucro e eram praticadas apenas dentro do território africano,
entre tribos rivais. O escravizado era o “pecúlio” de guerra daquele que o escravizou e representava
o poder de um grupo sobre o outro. Nesse sentido, o número de escravizados demonstrava poder
de um rei, de um povo. A relação entre o escravizado e seu senhor era direta e pautava-se em uma
antiga prática costumeira. A introdução da escravização praticada pelos portugueses representou
uma diferença radical em relação à escravização praticada anteriormente. Paul Lovejoy foi enfá-
tico ao expor: “o comércio europeu de escravos através do Atlântico marcou uma ruptura radical
na história da África” (LOVEJOY, 1989, p. 365). Essas rupturas referem-se à prática de captura
do escravizado e aos objetivos desse aprisionamento. Os portugueses introduziram na África a
escravidão comercial, o aumento considerável do número de escravizados e uma mudança nas
estruturas políticas e econômicas em sua grande maioria voltou-se para a prática da escravização,
com objetivos econômicos.
A formação do reino do Congo se deu por meio da junção de grupos de etnia banto, espe-
cialmente os bakongo, que se espalhavam em uma grande extensão da África Centro-Ocidental e
se estruturaram em diversas províncias (VAINFAS; SOUZA, 1998).
As origens dos primeiros esboços do que se tornaria o grande reino do Congo são datadas
entre 1350 e 1375 quando um líder de grupos locais, NimiaNzima, expandiu seus domínios por
meio de conquistas e de alianças com outros povos que se localizavam ao Sul do Rio Congo.
As aldeias menores eram subjugadas por meio da supremacia guerreira. Após a conquista,
anexação e subjugação de diversos povos, sucessivas gerações do primeiro líder mantiveram o
poder e executaram a coleta de impostos e de tributos (exercício que gerava diversas rebeliões e
quadros de violência) e usaram como justificativa a conquista efetivada pelos antepassados das
linhagens dos governantes2.
Por meio do poder guerreiro, as linhagens ampliavam as alianças e estratégias políticas pacíficas
ou subjugavam os povos mediante força, ampliando consideravelmente a extensão do reino. Os povos e
territórios anexados ao poder central reconheciam o poder do rei, mas conseguiam manter certa autono-
mia administrativa. Provavelmente, no fim do século XIV, Lukeni lua Nimi, descendente do primeiro rei,
conseguiu estender seus domínios até a região de Mbanza Kongo, para onde foi transferida a capital e fun-
dado um estado chamado Kongo (Congo), no qual se agregavam grupos que compartilhavam do tronco
linguístico banto, principalmente os bakongos (CORREIA, 2012, p. 4).
O reino do Congo foi um dos reinos mais sólidos e estruturados da África. A estrutura que
o amparava era bem-organizada, e o controle era exercido pelo Mani Congo, chamado de rei pelos
primeiros viajantes (principalmente os portugueses) que chegaram à região.
O Mani Congo era cercado por linhagens nobres que efetuavam alianças por meio de rela-
ções comerciais ou matrimoniais com diversos povos da região. Essas alianças, além de fortalecer
o poder central, criavam as bases da estrutura governamental do reino.
Ronaldo Vainfas e Marina de Melo e Souza (1998, p. 96, grifos do original) explicam:
O centro de poder localizava-se na capital, mbanza Kongo, de onde o rei adminis-
trava toda a confederação juntamente com um grupo de nobres que formavam
o conselho real, composto provavelmente por 12 membros, diferentes em gru-
pos com diferentes atribuições: secretários reais, coletores de impostos, oficiais
militares, juízes, empregados pessoais. A centralização político-administrativa,
ao mesmo tempo que conferia estabilidade ao sistema, ensejava intensas e fre-
quentes lutas pelo poder.
outras regiões que, direta ou indiretamente, pagavam tributos ao poder central4. O Reino do Congo
era governado por uma rede de parentes do rei, garantindo amplo controle sobre as províncias,
tanto as mais próximas quanto as mais distantes. Tal estrutura foi fundamental para a constituição
da solidez do reino, característica que causou a admiração dos portugueses, quando chegaram à
região (CORREIA, 2012, p. 40).
Ainda, considerando as pesquisas de Vansina (2010), diversas estruturas sociais e políticas
que formaram o reino do Congo tomaram como base exemplos dos povos que habitavam essa
região desde tempos imemoriais. Na estrutura social comum desses reinos, distinguiam-se três
camadas sociais bem definidas: a nobreza, os aldeãos e os escravizados – bastante distintos entre si.
Tais estruturas formavam a base do reino (VANSINA, 2010, p. 652).
Nas cidades, viviam os nobres; nas aldeias, os povos subjugados pelo poder central. Ambas
dispunham de características comuns entre si, como a dependência da vida rural e de moradias
intercaladas com grandes extensões de campos. A relação entre a aldeia e a cidade estabelecia as
estruturas mais importantes do reino. Por meio delas, as divisões sociais se estabeleciam, como
classes, ocupações, grupos de moradia ou graus de parentesco.
Os nobres normalmente viviam nas cidades, mudando-se para aldeias nas ocasiões que rece-
biam cargos importantes. A alta nobreza constituía-se de parentes do rei. As alianças matrimoniais
poderiam ligar diferentes casas.
A poligamia era a forma de casamento padrão do Congo e proporcionava aos indivíduos per-
tencer a mais de uma casa simultaneamente. Por meio dela, determinados indivíduos conquistavam
prestígio e notoriedade, permitindo ao homem ascender na estrutura social por meio do dote e da
anexação de novas terras, isso porque era a matrilinearidade que determinava o acesso às terras5.
As aldeias constituíam as partes mais populosas do Congo. Estima-se que três quartos do
reino habitava a área rural. Cada aldeia tinha entre 150 a 300 pessoas vivendo do trabalho fami-
liar. O excedente da produção era transferido para os senhores locais, membros da nobreza e com
relação direta com o rei.
A fonte de riqueza das cidades também era a agricultura. Centenas de escravizados cuidavam
das terras dos nobres. Eles forneciam os trabalhos mais importantes do reino, além de participarem
das guerras como soldados. Para Vansina (2010, p. 652), os escravizados diferenciavam-se por seu
estatuto legal, suas atividades e seu estilo de vida. O mesmo vocábulo que significava escravizado
também correspondia a cativo de guerra, indicando assim a procedência dessa categoria social.
A quantidade de escravizados e a organização da produção escravizada foram fatores que
proporcionaram às cidades de Mbanza, Congo e Sonho tornarem-se importantes centros políticos
e econômicos, com altos níveis de luxo.
A escravidão praticada no reino do Congo desde tempos imemoriais era uma das fontes da
riqueza e do poder das classes dominantes. Entretanto, tinha características bastante singulares se
comparada à dimensão que esse processo atingiu após o contato com o estrangeiro, particularmen-
te com os portugueses, a partir do século XV.
Com base nessa análise da escravidão existente nos diversos reinos africanos e a escravi-
zação implementada pelos portugueses, salientamos as profundas diferenças e singularidades.
A escravização que os portugueses passaram a praticar era essencialmente comercial, sem qual-
quer semelhança com as praticadas pelos africanos entre si, conforme veremos na seção a seguir6.
6 Para entendermos a escravidão existente na África é imprescindível a leitura das obras do africanista Alberto da
Costa e Silva (2002; 2003a; 2003b).
58 História da África e da cultura afro-brasileira
exceção. Alberto Costa e Silva (2002) demonstrou as diversas escravidões que existiram na África
antes da chegada dos europeus. Além do reino do Congo, cuja expressão e riqueza se deveram ao
trabalho dos homens escravizados, inúmeras outras sociedades africanas também fizeram cativos.
Normalmente, escravizados do sexo masculino eram prisioneiros de guerra e variavam de acor-
do com a região e com a sociedade. Naquelas mais urbanas, como era o caso do reino do Congo,
existiram mais escravizados do que em sociedades aldeãs, nas quais o cativo se misturava com as
famílias, com os animais domésticos ou com os cultivos.
Havia também a distinção entre os escravizados agrícolas e aqueles de comunidades pasto-
ris. Nestas, o escravizado provavelmente fosse tratado como um membro da família, “a comer na
mesma gamela que o amo” (SILVA 2002, p. 80), com o mesmo cuidado destinado a uma cabra, a
uma ovelha, pois tinha, assim como esses animais, valor de uso e de troca.
Já nas comunidades agrícolas ou urbanizadas era tratado com violência e humilhações que
merecem o inimigo, isto é, nu ou com um trapo amarrado à virilha, alimentando-se de restos lan-
çados no chão, sem conhecer descanso, entre empurrões e bofetadas (SILVA, 2002, p. 80-81).
Silva (2002) aponta também que das lutas entre as aldeias e vilas não surgia mais do que meia
dúzia de cativos, em razão da pequena quantidade de gente da maioria dos grupos africanos, corro-
borando a perspectiva de Paul Lovejoy para quem a escravização na África era, na maioria das vezes,
doméstica, restrita aos pequenos grupos. Nessas estruturas escravistas das sociedades africanas, as
quais Lovejoy (2002) categorizou como incidentais e institucionais (na qual se incluiria a doméstica),
a escravização se restringia a grupos de inimigos que, muitas vezes, localizavam-se muito próximos.
Silva (2002) pondera que poderia ocorrer a captura de indivíduos de mesmas linhagens.
Quebrar o grau de parentesco era uma condição fundamental para a manutenção da escravidão.
Outro aspecto dificultava esse modelo: a manutenção da escravidão precisava ser muito
vigiada, causando mais problemas que vantagens. Essa talvez fosse uma das explicações para os
escravizados serem vendidos ou trocados por outros de terras distantes, para que eles não pudes-
sem fugir e regressar facilmente ao território de origem.
A configuração social desses grupos era muito pequena e, na maioria das vezes, a escra-
vização ocorria como ajuda ao trabalho familiar, podendo acontecer a integração entre cativos
e membros das famílias dos senhores, considerando que os escravizados viviam com os donos e
labutavam ao lado de suas mulheres, filhos e noras (SILVA, 2002, p. 88).
Com um número maior de braços no trabalho, os escravizados proporcionavam um aumen-
to da produção, o que incrementava as riquezas dos donos e aumentava o status e o poder. Diante
dessa singularidade, Paul Lovejoy (2002) defende que, antes da chegada estrangeira, o escravizado
não se constituía como uma classe social na África. Lovejoy definiu escravidão como
forma de exploração. Suas características específicas incluíam a ideia de que os
escravos eram uma propriedade; que eles eram estrangeiros, alienados pela ori-
gem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que
lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força
de trabalho estava à completa disposição de um senhor; que eles não tinham
direito à sua própria sexualidade e, por extensão, às suas próprias capacidades
A dinâmica escravista anterior à presença portuguesa 59
reprodutivas; e que a condição de escravo era herdada, a não ser que fosse tomada
alguma medida para modificar essa situação. (LOVEJOY, 2002, p. 29-30)
Esses vários atributos, segundo o autor, precisam ser examinados muito detalhadamente
para tornar mais claras as distinções entre escravidão e outras relações servis.
Silva (2002) alerta, ainda, para o fato de alguns estudiosos considerarem a inserção dos
escravizados no seio das famílias dos senhores como atenuante da escravidão na África antiga.
Alguns chegaram a afirmar que se o termo escravo fosse usado para explicar esse processo naquelas
sociedades, ele estivesse entre aspas ou fosse exemplificado com base nas características singulares
das condições em que se processavam. Entretanto, Silva (2002), com base nos conceitos lançados
por Paul Lovejoy, chama a atenção para o fato que todo o processo de escravização retira do escra-
vizado (e em todos os períodos da história africana isso aconteceu) a capacidade de decisão.
As marcas da escravidão (físicas ou simbólicas) não se dissolveram nas gerações posterio-
res. A relação moral entre senhor e escravizado sempre retirou a capacidade plena da liberdade.
As escravizações são, portanto, processos violentos de subjugação da liberdade, seja incorporando
o escravizado à vida do seu senhor, seja utilizando-o como objeto econômico.
A tese de Silva (2002) aponta que, mesmo nas sociedades em que o escravizado se incorpora-
va à estrutura da família do dono, a escravidão (e as marcas próprias desse processo) não deixou de
existir. Diversos fatos comprovavam as disparidades existentes entre os livres e os libertos ou entre
os filhos de mães livres e filhos de mães escravizadas.
Na África anterior à presença estrangeira, a escravidão foi tão violenta quanto pode ser um
processo que retira a liberdade de um indivíduo. Para Silva (2002), não podemos dissimular a du-
reza da realidade.
Assim, Silva, na introdução da obra A manilha e o Libambo (2002), considera que, de acordo
com as características da África rural, o escravizado ampliava a propriedade do senhor. Isso acres-
centava poder aos proprietários de escravizados, isso porque esse status era medido pelo número
de dependentes que o senhor possuía. Por exemplo, no reino do Congo, um senhor acusado de
feitiçaria poderia enviar um escravizado para substituí-lo na pena de morte.
Estudos de diferentes pesquisadores 7 apontam de maneira unânime que a escravidão na
África era multifacetada, plural e muito diversa daquilo que se configurou com a presença dos
muçulmanos e dos portugueses.
De acordo com João José Reis (1987, p. 18-19) havia dois tipos de escravidão na África: uma
doméstica ou de linhagem em que prevaleciam as mulheres escravas e seus filhos, que aumentavam o
poder dos senhores por meio dos filhos dependentes; e outra em que prevalecia a captura de homens,
que eram trocados por produtos ou por outros homens. Esse segundo modelo foi, posteriormente,
desviado para o Atlântico e prevaleceu a partir do encontro entre os africanos e os portugueses.
As categorias descritas tanto por Lovejoy (2002) quanto por Reis (2012) são complementares
e servem de chave de leitura para pensarmos sobre a dinâmica escravista da África antes da presença
7 Para saber mais, ver Costa e Silva (2002; 2003a; 2003b), Lovejoy (2002) e Reis (2012).
60 História da África e da cultura afro-brasileira
Dessa forma, a escravidão moderna, praticada em larga escala pelos portugueses, foi uma
junção de pelo menos três mundos escravistas: o islâmico, o africano e o europeu8.
Considerando as transformações nesse processo escravista, Paul Lovejoy (apud CORRÊA,
2012) indica que as primeiras transformações ocorreram por meio do contato entre os africanos
e os muçulmanos. Os escravizados do mundo islâmico eram capturados em guerras santas, que
tinham por objetivo expandir o islã da Arábia através do norte da África e do Golfo Pérsico.
Com base na concepção islâmica, a escravização era justificada pela religião: aqueles que
não eram muçulmanos estavam legalmente passíveis da escravização. A captura de homens deveria
ser seguida da instrução religiosa, o que os induzia a tratá-los relativamente bem.
De igual maneira, a escravização sempre foi presente na Europa. Desde as antigas sociedades
gregas e romanas, passando pela Idade Média, o trabalho escravizado erguia e sustentava diversos
reinos. Os relatos e documentos apresentam diversas e constantes quantidades de cativos no reino
português. A existência da escravidão, portanto, com maneiras e características diferentes em cada
sociedade, forneceu os substratos para uma quarta forma de escravidão, que unia, mesclava e inte-
grava as três formas primárias. Esse tipo de escravidão foi processado na África a partir do século
XV, com a chegada definitiva dos portugueses no território, particularmente na costa atlântica.
Segundo Paul Lovejoy (2002), a influência europeia e islâmica sobre as formas de escravi-
dão tradicionais africanas fez com que a instituição da escravidão se consolidasse como umas das
principais de algumas sociedades africanas. A estrutura existente na África contribuiu para isso.
Os escravizados precisavam ser transferidos para outros grupos sociais, para longe das fronteiras
na qual foram capturados, para que ocorresse o rompimento dos laços de parentesco. A escravidão
atlântica, na qual grupos de africanos eram exportados para longe de suas terras de origem, só foi
possível porque um sistema semelhante já existia dentro da própria África. A respeito dessa afirma-
tiva, Lovejoy (2002) faz uma ressalva: “É incorreto pensar que os africanos escravizassem os seus
irmãos – embora algumas vezes acontecesse. Na verdade, os africanos escravizavam os seus inimigos”
(LOVEJOY, 2002, p. 55, grifo nosso).
Outro aspecto pertinente a esse respeito refere-se ao fato de que, na África (ao contrário de
outras sociedades que adquiriam os escravizados a partir de um comércio externo), os escraviza-
dores e proprietários de escravizados eram as mesmas pessoas, ou seja, a estrutura local permitia a
escravização dos inimigos de guerra, muitas vezes de reinos vizinhos.
A tomada de Ceuta pelos portugueses, em 1415, inaugurou a era da introdução europeia no
continente africano. Em 1435, os portugueses alcançaram o Senegal e, em 1483, o Congo. A partir
de 1441, houve deportações de africanos para Lisboa, marcando o prelúdio da imigração forçada
de africanos, ou seja, do tráfico negreiro que continuaria até a época Moderna.
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das, cuja base do poder estava na capacidade de
submeter grandes contingentes populacionais à
condição de cativos. Essa mão de obra garantia
a geração de excedentes e a manutenção de gru-
pos privilegiados, como sacerdotes, militares e
nobres – grupos indispensáveis à perpetuação
do poder do monarca. Quanto maior fosse a
capacidade de um reino de recrutar escraviza-
dos, maior o seu poder perante os demais. Esse
processo fazia do escravizado o bem mais dese-
jado entre todos11.
Predominava o tipo de escravizado de
cativeiro. E, entre eles, destacavam-se as concu-
binas, que geravam filhos para o clã masculino
(VAINFAS; SOUZA, 1998, p. 88). Junto à escra-
vidão de cativeiro, havia também a escravidão
Em algumas regiões da África existia um tipo de
ampliada: um tipo comercial ligado à produção escravidão anterior à chegada dos portugueses. Era
uma escravidão voltada à produção de excedentes e
agrícola ou à exploração das minas. Esse mo- composta por prisioneiros de guerra ou criminosos
delo escravista estimulou os europeus a desvia- feitos cativos. Mas foram os portugueses que a
transformaram e m um negócio cujo principal obje-
rem-no para o Atlântico. tivo era o lucro.
10 Para ter acesso ao debate acerca do número total de escravizados que chegaram às Américas ao longo do pro-
cesso em que prevaleceu a escravidão, bem como uma análise importantíssima sobre a dinâmica do tráfico negreiro ver
Florentino (1997; 2009).
11 Para saber mais, ver Silva (2002).
A dinâmica escravista anterior à presença portuguesa 63
regionais, com produtos específicos de certas áreas, como sal, metal e tecidos, e um sistema mone-
tário no qual conchas serviam de unidade básica. Os portugueses foram os primeiros a estimular o
comércio de escravizados, o que foi praticado timidamente pelos congoleses até aquele momento
(VAINFAS; SOUZA, 1998, p. 88).
As regiões africanas nas quais o tráfico ocorreu de maneira mais intensa foram na África
Centro-Ocidental (região do Congo/Angola), na Costa dos Escravos (conhecida como Golfo do
Benin), na Costa do Ouro e na Baía de Biafra.
Há um vasto número de documentos, particularmente de caráter religioso, que registra-
ram a presença dos portugueses nos reinos africanos. Os documentos e as análises historiográficas
apontam para o fato de, incontestavelmente, a presença do português alterar profundamente a
função social do escravizado na sociedade africana.
O processo de “mercantilização dos corpos” foi responsável pela transposição cultural de
variados grupos étnicos e culturais das regiões da África para diversos outros lugares do mundo.
Para entendermos o início do tráfico de escravizados na África Centro-Ocidental (no Reino do
Congo e de Angola) é necessário observar a dinâmica das alterações provocadas pela presença
estrangeira nesses reinos. De acordo com Flávia Maria de Carvalho:
No início do século XVI, o Ndongo era um pequeno Estado localizado na frontei-
ra sul do reino do Congo. Nesse período, o território do antigo reino de Angola,
cujo nome deriva de Ngola, título de seus reis, correspondia principalmente a
região entre os rios Kwanza e Lukala ou Bengo. A maior parte de sua população
era formada pelo grupo dos mbundos, falantes dos qimbundu. O dito reino foi
fundado antes da chegada dos portugueses em seus territórios, mas teve sua traje-
tória marcada por esse contato. Os mbundus, povo de origem banto, teriam vindo
das terras altas a leste do reino de Matamba e teriam se estabelecido nas regiões
a leste de Luanda. As terras do Ngola eram cercadas por cinco grandes reinos: o
reino do Congo, o reino de Matamba, o reino de Massinga e o reino de Massongo.
(CARVALHO, 2010, p. 15, grifos do original)
Uma das características do reino de Ndongo era não se estender até o litoral, ou seja, não
possuir uma saída marítima. A expansão de Ndongo em direção ao litoral foi incentivada pelo
comércio português. Ter uma saída marítima passou a ser muito importante. Entretanto, a única
alternativa para atingir tal intento era atravessar o reino do Congo. A tentativa dessa conquista
promoveu uma série de guerras entre o reino do Congo e Ngola. Esses conflitos, incentivados pelo
comércio proposto pelos portugueses, estimulou a captura de homens que seriam escravizados.
Essa foi uma dinâmica comum após a chegada dos portugueses na África: estimular guerras para
capturar cativos.
A estreita relação estabelecida entre os portugueses e com diversos personagens da corte
de Ngola fez com que os negócios negreiros dessem muito certo em um curto espaço de tempo.
De acordo com Carvalho (2010):
Vários personagens da corte do Ngola participam dessa dinâmica: além do
soberano, os sobas (chefes locais), os mafougnes (embaixadores) e os pumbei-
ros (responsáveis pelas negociações e pelo transporte dos escravos dos sertões
aos barracões, locais onde os africanos permaneciam até o momento de seu
embarque). (CARVALHO, 2010, p. 16)
64 História da África e da cultura afro-brasileira
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No Brasil, mais do que ser senhor de terras e de engenho, esses proprietários eram, sobretu-
do, senhores de escravos. Ter muitos cativos tornou-se sinônimo de poder e riqueza. Isso porque a
procura por escravizados foi intensificada ao longo do século XVI. Reis do Congo intensificaram as
guerras com reinos vizinhos e aprisionaram cada vez mais cativos para os traficantes portugueses.
A procura por escravizados de origem africana cresceu entre produtores brasileiros e entre
colonos da América espanhola. Por volta do século XVI, traficantes portugueses deixaram de
procurar a intermediação dos chefes africanos: avançaram ao sul e ao leste do continente africano,
munidos de poderosas armas, em busca de pessoas para aprisionar e traficar, rompendo relações
com o reino do Congo ainda naquele século.
Entre os povos atacados pelos portugueses estavam os Bailundos. Diante do avanço portu-
guês sobre seu território, o povo Bailundo resistiu bravamente, impondo derrotas aos invasores.
Durante um século, resistiram à dominação do território, que só foi totalmente conquistado por
Portugal em 1896.
Considerações finais
Neste capítulo, você conheceu sobre um dos reinos mais complexos e prósperos da África
Ocidental entre os séculos XIV e XVI: o reino do Congo. Aprendeu sobre sua origem, suas caracte-
rísticas, sua complexidade e sua estrutura social, econômica e política.
Descobriu que entre sociedades africanas, assim como várias outras sociedades de diferentes
tempos e espaços, existiu um tipo de escravização de pessoas, anterior à presença portuguesa, relacio-
nada à baixa densidade demográfica de alguns reinos e à geração de excedentes e sua relação com a
intensificação da riqueza desses mesmos reinos, as guerras e capturas de cativos (fator que ampliava o
poder dos reinos vencedores) e as necessidades de subsistência. Pôde perceber que, embora existisse
certo tipo de escravização na África pré-portuguesa, ela não tinha necessariamente um valor comer-
cial nem visava o lucro.
A escravização de seres humanos como um negócio com vistas ao lucro e ao enriquecimento
foi introduzida no reino do Congo por negociantes portugueses, que passaram a estimular guerras
locais entre reinos africanos para se apropriar dos cativos aprisionados e revendê-los para ricos
produtores do Brasil e da América espanhola. As consequências desse processo para a desestabi-
lização política, econômica e social dos reinos africanos ocidentais foram desastrosas, não menos
que as consequências humanas: de modo geral, os portugueses foram responsáveis pela deportação
forçada e violenta de milhões de pessoas da África para América, contribuindo ainda para a degra-
dação social dos povos africanos sem precedentes na história, ao longo de quatro séculos.
a importância social, cultural e econômica dos escravizados para as sociedades rurais africanas.
Entre elas, a mais significativa foi aquela na qual o autor pesquisou sobre a relação do escravizado
com outras riquezas, no intuito de especificar essa categoria na relação com as outras propriedades
dos senhores.
Em quase toda a África, era rico e poderoso quem tinha muitas mulheres e muitos escravos.
Em certas partes, quem possuía grande cópia de gado. E noutras, quem somava aos bois as
mulheres e os escravos. Um rei, um chefe, um homem forte (o big man de tantos relatos) podia
acumular, nos seus paços, moradas e tulhas, milhete, sorgo, inhames, panos finos, plumas,
peles de animais, pontas de lança e enxadas de ferro, fios de cobre, outo em pó, contas de vidro,
conchas raras, mas tinha por bem de capital, aquele que lhe freava nova riqueza, ou o rebanho
bovino ou escravaria.
Onde a criação de gado não predominava como atividade econômica, a poupança mais segura
e remunerada era o escravizado. Envelhecia, é certo, e podia, também é certo, morrer a qual-
quer momento. Mas antes de perder o viço ou falecer, pagava quase sempre o seu valor em
trabalho. Além disso, se mulher dificilmente se finava sem gerar filhos e, homem, podia, de
armas na mão, prear cativos para o seu amo. O escravizado era um investimento: o único
tipo de bem de capital verdadeiramente privado reconhecido pelas leis costumeiras de grande
parte do continente africano. E uma reserva importante para os dias difíceis: quando a seca,
as inundações ou os gafanhotos traziam a fome, era o escravizado o que se trocava por grãos.
Principal forma de riqueza produtiva, o escravizado, no continente africano, correspondia à
terra na Europa. Na África, era o trabalho, e não o solo o fator de produção escasso. Por quase
toda a parte, tinha-se a terra, tradicionalmente, como um bem grupal. Não era tida apenas
como fator de produção e para uso dos contemporâneos; era a guardiã dos mortos, a servidora
dos vivos e a promessa dos vindouros. Pertencia a todos eles, sendo teoricamente alocada a
quem dela precisasse, pela família, linhagem, o clã, a aldeia, a tribo, o rei. Não tinha valor
econômico próprio, mas o do trabalho que nela se punha. Enquanto na Europa a propriedade
da terra era a precondição para que se tornasse produtivo o uso de escravos – e de servos e
de assalariados –, na África passava-se o contrário: só tinha acesso a grandes tratos de solos
quem dispusesse de gente para cultivá-los. Daí a importância de ter-se o controle efetivo sobre
muitas mãos, fossem de mulheres, filhos, parentes, agregados ou escravos. Na Europa – e, tam-
bém, até mesmo por continuidade cultural –, na América, disputava-se a terra. Na África, nem
em áreas de alta densidade demográfica (como o sul de Gana, do Togo, da atual República do
Benim e da Nigéria) se conhecia o mesmo tipo de competição pela gleba, mas, sim, por gente.
A importância do solo dependia de que houvesse quem o pudesse cultivar.
Mas – cuidado! – não era a terra destituída de valor. Tão importante era o seu controle, que os
donos do poder – o rei, o chefe, o cabeça de linhagem – se arrogavam o direito de ceder-lhe
o uso, ainda que em nome da grei, como melhor lhes parecesse ou politicamente conviesse,
aos súditos seguidores, familiares ou estrangeiros. Por outro lado, as aristocracias baseavam
os seus privilégios na ficção de terem sido os primeiros a ocupar a terra e ali erguer os seus
lares, ou de terem conquistado aos que chegaram primeiro. E empregavam o controle sobre o
solo com engenho e astúcia, para manter e ampliar os vínculos de mando. Pois ninguém fazia
verdadeiramente parte de uma comunidade, se dela não obtivesse o uso de um trato de terra.
A dinâmica escravista anterior à presença portuguesa 67
Atividades
1. Quais aspectos permitem identificar o reino do Congo, cuja estabilidade e apogeu aconteceu
entre os séculos XIV e XV, como uma verdadeira civilização?
Referências
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5
A presença de escravizados
africanos no Brasil Colonial e Imperial
Neste capítulo, abordaremos aspectos referentes à diáspora africana, conduzida por tra-
ficantes portugueses, ingleses e brasileiros), que resultou em captura, aprisionamento, deporta-
ção e venda de milhões de africanos para a América portuguesa, espanhola e inglesa.
Focaremos mais especificamente no tráfico atlântico de escravizados com destino à
América portuguesa (Brasil), buscando reconhecer as características centrais desse tráfico,
bem como a dinâmica da condição social do escravizado africano no Brasil Colonial e Imperial.
Na sequência, iremos identificar os principais grupos linguísticos e étnicos africanos
trazidos ao Brasil pela via do tráfico negreiro.
Finalmente, levaremos você a conhecer os aspectos da escravidão africana no Brasil
(sociais, econômicos e ideológicos) e identificar formas da resistência ao trabalho escravo.
1 Para saber mais acerca do expansionismo português ao longo dos séculos XV e XVI, ver Thomaz (1994).
2 Para saber mais, ver Zurara (1989).
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 71
De acordo com o historiador francês Yves Person, os povos africanos costeiros realizavam,
sobretudo, uma agricultura interna, com a extração de sal (cujo destino era a venda para popu-
lações interioranas) e um pequeno comércio de cabotagem. Ou seja, não era comum entre esses Cabotagem: navega-
ção mercantil que se
povos a prática do comércio marítimo. Por outro lado, desenvolviam comércio de longa distância faz na costa ou entre
cabos, com terra à
com populações interioranas, valendo-se, sobretudo, das rotas de acesso abertas pelos árabes isla- vista.
Entre os produtos comercializados pelos povos africanos estava o ouro sudanês, a noz-de-
-cola, a pimenta-malagueta e o marfim. A conquista de territórios africanos propiciou aos portu-
gueses acesso a esses artigos e a concorrência com os comerciantes italianos, os quais dominavam,
até então (século XV), a venda desse tipo de artigo na Europa (PERSON, 2010, p. 338).
Ainda segundo o historiador Yves Person, mesmo com a diversidade de povos que habitavam
o litoral africano, os portugueses não perceberam, nem registraram grandes diferenças no modo de
vida, organização política e econômica entre eles, reforçando em seus relatos somente o que verifi-
cavam de comum entre esses povos, como o fato de se organizarem em aldeias numerosas (de 150
a 300 habitantes e, em alguns casos, chegando até a 3 mil), e que eram normalmente lideradas por
patriarcas, tendo no cultivo do arroz a principal atividade produtiva (PERSON, 2010, p. 338).
Conforme vimos em capítulos anteriores, é relevante destacar que essa diversidade étnica,
linguística, política, econômica e cultural existente entre os diferentes povos que habitavam o con-
tinente africano não foi apontada pelos cronistas portugueses, mas ela existiu, assim como existiam
reinos complexos e estruturados, tal como o do Congo.
O poema se refere aos escravizados como “peças” e menciona 600 delas, ou seja, seiscen-
tas pessoas “barganhadas”, que teriam como destino a escravidão. E foram barganhadas pelo quê?
Aguardente, contas e latão. Seiscentas pessoas de “carne rija” e músculos de ação, ou seja, são compa-
radas aqui à liga do melhor metal (note a coisificação relacionada à escravidão, o escravizado é quase
comparado a uma máquina de trabalhar). E, para confirmar ainda mais a teoria de que esse tipo
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 73
de “barganha” era muito lucrativo: se dos seiscentos indivíduos barganhados a metade morresse na
viagem (no tráfico pelo Oceano Atlântico), ainda assim o negociador lucraria oitocentos por cento!
Perceba: o comércio de pessoas foi um dos mais lucrativos realizados pelos europeus entre
os séculos XV até o XIX. Esse comércio de gente foi a principal característica do chamado tráfico
atlântico. Esse tipo de tráfico ficou assim conhecido por acontecer no Oceano Atlântico Sul entre
negociadores de escravizados africanos locais e colonizadores de origem europeia instalados na
América (Espanhola, Inglesa e Portuguesa), tendo como intermediadores traficantes de escraviza-
dos (portugueses, em um primeiro momento, e depois brasileiros, ingleses e estadunidenses), que
são representados, indiretamente, pelo personagem principal do poema.
A transação econômica envolvendo o tráfico de seres humanos da África para a
América, com vistas à escravidão, concentrava diversas etapas. Elas incluíam desde a nego-
ciação entre traficantes europeus e chefes tribais locais até a captura, deportação em navios
negreiros e comercialização nos portos americanos. Essa atividade durou do século XVI ao
XIX, e teve seu apogeu entre os anos de 1600 e 1800, período no qual, cerca de 11 milhões
de indivíduos, livres, saudáveis e em idade produtiva, foram tirados à força de suas terras e
de suas famílias na África Ocidental e no Centro-Ocidental 3 .
Transportados nos porões dos chamados navios negreiros (também conhecidos como tum-
beiros, devido ao grande número de mortes que ocorriam em seu interior), os africanos escravi-
zados “viajavam” nas piores condições sanitárias, de saúde e de higiene imagináveis, amontoados,
com pouca alimentação e sem roupas (apenas alguns panos), sem lugar separado para fazerem
necessidades fisiológicas, transportados em meio à umidade e à escuridão, sujeitos à coação física
constante e aos açoites. Muitos não resistiam e morriam ainda em alto mar. Historiadores estimam
que, devido a essas condições precárias, por vezes 40% dos africanos transportados como escravi-
zados morriam antes mesmo de chegar às Américas4.
No gráfico a seguir, observe a “evolução” do tráfico negreiro e do desembarque de afri-
canos escravizados nas regiões das Américas entre 1526 e 1850. 1850 é a data em que esse
tráfico foi definitivamente abolido no Brasil, o principal comprador de escravizados africanos.
Gráfico 1 – Desembarques de africanos nas principais regiões das Américas entre 1526 e 1850
América francesa
América espanhola
América britânica e EUA
Brasil
Assim como no poema, o autor chama os escravizados africanos de “peças”, isso porque,
destituídos de sua humanidade pela situação de escravização a que eram submetidos, passam a ser
considerados mercadorias passíveis de serem armazenadas, transportadas, compradas, vendidas e
distribuídas em diferentes funções. Antonil (1982) destaca o trabalho nas roças, no canavial, nas
barcas, serrarias, oficinas e nos serviços domésticos.
76 História da África e da cultura afro-brasileira
Existiam também trabalhadores livres durante o período no qual o Brasil foi colônia de
Portugal (1500-1822) e eles poderiam ser tanto colonos brancos pobres quanto mestiços livres
e negros libertos, homens ou mulheres. Trabalhavam em diferentes ofícios: as mulheres pode-
riam atuar como parteiras e artesãs5 ; os homens, como roceiros nas propriedades dos grandes
senhores, feitores de escravizados, capitães do mato, mestres do açúcar (que conheciam toda
técnica de fabricação do açúcar), soldados, capatazes e comerciantes6 .
Ainda que tenham existido outras maneiras de trabalho (como o livre) e outras formas de
escravidão (como a indígena)7, o trabalho escravo de africanos traficados para esse fim predomi-
nou no Brasil desde os primórdios da colonização portuguesa até a abolição definitiva da escrava-
tura, em 1888. O Brasil foi o último país das Américas a abolir o trabalho escravo8.
5 O cientista político Jorge Caldeira (2017) afirma que o trabalho livre foi amplamente utilizado no Brasil Colônia e
sua importância não pode ser desconsiderada. Para saber mais, ver Caldeira (2017) e Franco (1997).
6 Para saber mais, ver Fragoso (2014).
7 A escravidão de indígenas também existiu e foi intensa entre os anos de 1600 e 1700. Eles eram explorados e
negociados por colonos pobres, especialmente d a Capitania de São Vicente (atual estado de São Paulo), na qual o
projeto açucareiro não progrediu. Exploradores vicentinos, chamados de bandeirantes, embrenhavam-se nas matas
para além do litoral, no sentido do interior do Brasil, e m busca de indígenas que viviam junto às reduções missio-
nárias ma nt id a s e coo rd enada s p o r p adres d a C o m p a n h i a d e Jesus (os c h a m a d o s jesuítas) vindo s d e Portugal
desde 1549 para realizar u m projeto catequizador e civilizador dos nativos. O s bandeirantes capturavam indígenas
e os vendiam co mo escravizados para fazendeiros d o Nordeste, sobretudo e m épocas que o tráfico negreiro estava
e m crise (como durante a invasão holandesa do Nordeste, e m 1630). Os confrontos entre bandeirantes e jesuítas,
tendo como motivação a posse indígena, foram constantes e violentos entre os séculos XVII e XVIII. A abolição da
escravidão indígena foi promulgada pelo governo português em 1755 (para algumas capitanias, co m o Grão-Pará e
Maranhão) e para todo o Brasil, definitivamente, e m 1758.
8 Para saber mais acerca da escravidão no Brasil e sobre estratégias de resistência dos escravizados africanos, ver
Fragoso (2014) e Gorender (1992).
9 Para saber mais, ver <http://www.slavevoyages.org>. Acesso em: 9 maio 2018. No site, há inúmeros dados a res-
peito do tráfico atlântico de escravizados de origem africana.
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 77
Movimentos de contestação interna, provocados pela crise econômica e social que suce-
deu à escassez do ouro, a partir de 1780, associados ao acirramento das medidas de repressão
fiscal e política vindas da metrópole portuguesa e eventos do expansionismo napoleônico na
Europa (entre 1800 e 1815) explicam a crise da dominação política portuguesa sobre o Brasil,
abrindo espaço para a gradual emancipação política.
Esse processo, que se acentuou com a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil em
1808 (fugindo da ameaça de invasão à Portugal pelas tropas francesas comandadas por Napoleão),
atingiu seu apogeu com o retorno da Corte para Portugal, em 1821, e a aliança entre o príncipe
regente português D. Pedro de Alcântara (mais tarde aclamado como D. Pedro I) e elites sediadas
no Rio de Janeiro, que desde o século XVIII ocupava o posto de capital do Brasil.
Durante o longo processo de emancipação política, D. João VI, rei português que aqui esteve
com sua corte, e depois D. Pedro I, rei do Brasil emancipado, assinaram acordos comerciais com a
Inglaterra. Esses acordos bilaterais garantiriam apoio financeiro dos bancos ingleses em troca do
livre acesso dos produtos ingleses aos portos brasileiros e portugueses, pagando menos impostos
que produtos de outros países. O governo britânico também condicionou o cumprimento desses
acordos ao compromisso das autoridades portuguesas e, depois, brasileiras, em abolir o tráfico
negreiro e a escravidão.
Assim, entre 1808 e 1831, foram assinados tratados ingleses e leis brasileiras, como a Lei
Feijó, de 1831, que decretava ilegal o tráfico negreiro, estipulando multas para quem insistisse nes-
sa prática e exigindo a libertação de todo africano escravizado que entrasse em portos brasileiros a
partir da data da promulgação da lei.
A esse respeito, observe o documento a seguir. Trata-se de um texto do governo imperial
do Brasil, da época da regência de D. Pedro I, publicado no Jornal do Comércio, em 2 de outubro
de 1827. Nele, aborda-se a renovação de tratados comerciais com o governo britânico, existentes
desde os tempos em que o Brasil era colônia de Portugal. A sua contrapartida, ou seja, a abolição do
tráfico negreiro deveria acontecer em três anos após a troca de ratificações do mesmo tratado (de
1827). A Lei Feijó, proibindo o tráfico e estipulando multas para quem o realizasse, seria aprovada
quatro anos depois.
o Imperador do Brasil, e sua Magestade o Rei do Reino-Unido da Grã-Bretanha
e Irlanda, reconhecido respectivamente a obrigação, que, pela separação do
Império do Brasil do Reino de Portugal, se lhes devolve de renovar [...] as es-
tipulações dos Tratados para a regulação [...] do Comercio de Escravatura na
Costa da África, que subsistem entre as Coroas da Grã-Bretanha, e Portugal, em
quanto estas estipulações são obrigatórias para com o Brasil e como para se con-
seguir este tão importante objectivo [...] depois de terem trocado os respectivos
Plenos Poderes, que foram achados em boa e devida fórma concordarão, e con-
cluirão os Artigos....
[...] Art. I. Acabados trez annos depois da troca das Ratificações do presente
Tratado, não será licito aos Súbditos do Império do Brasil fazer o Commercio de
Escravos da Costa d’Africa [...] a continuação desse Commercio, feito depois da
dita época por qualquer pessoa súbdita de Sua Magestade Imperial, será consi-
derado, tratado de Pirataria. (JORNAL DO COMMERCIO, 1827, p. 2)
78 História da África e da cultura afro-brasileira
Basta observar novamente o Gráfico 1 para perceber que a Lei Feijó foi escancaradamen-
te descumprida, sendo por isso conhecida popularmente como “lei para inglês ver” – na verda-
de, o número de africanos traficados como escravos atingiu níveis muito elevados entre 1810 e
1830, chegando perto dos 800 mil indivíduos. Esse número se manteve alto até 1850, quando foi
aprovada pela Assembleia Geral (nome pelo qual era conhecido, na época imperial, o Congresso
Nacional) a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia definitivamente o tráfico negreiro para o Brasil.
A partir de 1830, o Brasil começava a viver o ciclo de intensificação do cultivo do café no
oeste fluminense, Vale do Paraíba e, depois, por volta de 1870, no oeste paulista, demandando nos
milhares de hectares de plantação de café ainda mais mão de obra para a lavoura.
A abolição do tráfico negreiro não aboliu, de imediato, a escravidão, que foi proibida pau-
latinamente, sobretudo a partir de 1870, com a ascensão do movimento abolicionista. O Poder
Legislativo, à época do Segundo Reinado (1840-1889) aprovou a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a
Lei do Sexagenário (também conhecida como Lei Saraiva Cotegipe), em 1885.
Essas leis tiveram pouca efetividade: no primeiro caso, porque os filhos nascidos livres eram
criados por suas mães escravizadas (e ficavam sob o poder dos seus senhores) até os 8 anos; após
essa idade, os senhores poderiam escolher se receberiam indenização do governo (sob a forma de
títulos públicos) ou se utilizariam o trabalho do menor até ele completar 21 anos. Observe que o
jovem poderia se desobrigar da obrigação de servir desde que tivesse, ele mesmo ou alguém por
ele, condições de pagar a indenização devida, estipulada em 600$000 réis.
Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data
desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e
tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos...
[...]
A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor
D. Pedro II, faz saber a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral
Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte:
Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta
lei, serão considerados de condição livre.
§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores
de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito
annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá
opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se
dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o
Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei.
A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro
annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declara-
ção do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor
chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo
arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante
prévia indemnização pecuniaria, que por si ou por outrem offereça ao senhor
de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a
preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização.
§ 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas es-
cravas possam ter quando aquellas estiverem prestando serviços. Tal obrigação,
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 79
porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mãis. Se estas fal-
lecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do
Governo. (BRASIL, 1871)
No 28 de setembro, do ano de 1885, outra lei foi proposta pelos senadores João Maurício
Wanderley (o Barão de Cotegipe) e José Antônio Saraiva, ambos do Partido Conservador da então
Assembleia Geral (nome dado ao Congresso Nacional na época imperial). Os senadores apresentaram
uma contraproposta à anterior de lei, que previa a libertação dos escravizados com 60 anos ou mais,
obrigando-os a prestar serviços para seus senhores por ainda mais três anos ou até completar 65 anos.
Na nova versão, foi estipulada uma indenização aos proprietários, fato que favoreceu sua aprovação.
A partir da década de 1880, a pressão efetuada pelo movimento abolicionista e a própria
legislação vigente, permitindo que negros comprassem sua liberdade ou entrassem na justiça por
ela, alegando a Lei Feijó, são fatores que, associados à difusão do ideário branqueador da sociedade
brasileira – defendido por intelectuais, políticos e empresários, que viam na adoção da mão de obra
imigrante europeia a melhor solução para a substituição da mão de obra escrava africana –, fizeram
com que a escravidão entrasse em declínio. Assim, mesmo antes da promulgação da Lei Áurea, de
13 de maio de 1888, várias províncias já tinham abolido a escravidão.
A disseminação de uma ideologia que pregava que o escravizado era incapaz de desempe-
nhar os trabalhos necessários ao crescimento do Brasil como Estado e como Nação, associada à
propagação do ideário eugenista10 e do racismo, originou os elementos que estão na base da desca-
racterização social do elemento negro na sociedade, mesmo após a abolição da escravatura. Isso só
se intensificou durante os primeiros tempos da República, promulgada em 1889, cuja Constituição,
promulgada em 1891, estabelecia, entre outras coisas, o direito ao voto e, por extensão, à cidadania,
para os alfabetizados.
A maioria dos negros, à época, assim como a maioria da população pobre brasileira, era
analfabeta. Além disso, a ausência de políticas afirmativas, de inserção social e econômica dos
negros contribuiu para a continuidade da segregação social, mesmo após a abolição da escrava-
tura. A tese de incapacidade do escravizado africano para desempenhar certas tarefas exigidas
em um contexto de modernização econômica, sucedeu-se à tese de o negro ser incapaz de certas
atividades, fator que intensificou sua marginalização.
10 Teoria científica que apregoava o melhoramento da hereditariedade humana mediante intervenção científica para
evitar a reprodução de tipos humanos considerados degenerados.
80 História da África e da cultura afro-brasileira
Ocidental, Sudão egípcio e na costa norte do Golfo da Guiné, e os bantos, da África equatorial e
tropical, de parte do Golfo da Guiné, do Congo, Angola e Moçambique” (FAUSTO, 2003, p. 51).
Dentro desses dois grandes troncos linguísticos havia diversas etnias diferentes, tais como
os jejes, tapas, hauçás e iorubás – do tronco linguístico sudanês – e os monjolos, bengalas, angolas,
moçambiques, entre outros – do tronco linguístico banto (FAUSTO, 2003, p. 51).
A maioria dos africanos escravizados que foram trazidos à força para o Brasil vieram do
Congo e da Angola. Os angolanos, por sua vez, também faziam parte do tronco linguístico banto.
Por isso, muitas palavras no português brasileiro atualmente têm origem na língua banto como
visto no Capítulo 1.
Em outro trecho do texto do padre André João Antonil ele definiu os africanos escravizados
como “as mãos e os pés dos senhores de engenho” (ANTONIL, 1982, p. 89, grifos nosso), ou seja,
eles realizavam praticamente todos os trabalhos braçais nas propriedades onde eram admitidos.
Mas, além do seu trabalho e da sua língua, os africanos, que vinham malmente cobertos com pa-
nos grosseiros nos insalubres porões dos navios negreiros, trouxeram também elementos de suas
culturas de origem.
No Brasil, esses elementos, misturados com elementos do imaginário religioso católico e
indígena, resultaram em novos parâmetros culturais, os quais fazem da cultura brasileira uma das
mais ricas e diversificadas do planeta. Entre esses elementos destacam-se aspectos da música, dan-
ça, religião e alimentação dos africanos. Um exemplo é o lundu, uma das principais bases rítmicas
do maxixe, depois do samba, do choro e até da bossa nova. O berimbau, o afoxé e o agogô são ape-
nas alguns dos instrumentos musicais que tiveram origem em instrumentos africanos, assim como
a ginga da capoeira, patrimônio da cultura nacional.
Como eram as mulheres africanas escravizadas que cozinhavam nas fazendas, na culinária,
a influência da cultura africana também é vastíssima, por exemplo o uso de ingredientes como a
palmeira do dendezeiro para o óleo do dendê, com o qual se preparam alimentos como o acarajé,
o vatapá e o caruru, até a feijoada.
A diversidade religiosa existente no Brasil tem na influência africana uma de suas principais
causas. Ainda no Brasil Colônia, jejes, nagôs e bantos criaram o candomblé, uma religião brasileira de
matriz afro, pautada no culto a entidades conhecidas como orixás. Ainda de influência africana, mis-
turada a elementos de matriz indígena, do catolicismo português e do espiritismo, nasceu a umbanda,
tendo como uma das principais características a associação entre orixás e santos católicos.
Ainda segundo Mattos (2005), uma das primeiras coisas que acontecia aos escravizados
africanos, assim que chegavam ao Brasil, era o seu batizado pela Igreja católica. Antes mesmo de
começar a trabalhar na fazenda dos seus senhores, recebiam o batismo e, com ele, adentravam, de
uma só vez, ao universo dos cristãos e da sociedade brasileira, embora isso não diminuísse o status
de mercadoria que a eles se atribuía. Os registros de batismo trazem informações sobre o nome dos
escravizados e proprietários, assim como dados sobre origem étnica, de acordo com os critérios
instituídos pelos traficantes e pela Igreja.
Assim, por exemplo, era comum constar nesses registros de batismo termos como “Da
Guiné”, “Da Costa da Mina”, “Africano de nação” para designar os grupos étnicos aos quais per-
tenciam os escravizados. Mas, de modo geral, as principais etnias que desembarcaram nos portos
brasileiros eram: os angolas, os cabindas, os congos, os munjolos, os rebolos, os benguelas, os gan-
guelas, os moçambicanos, os da Costa da Mina, os cassangues e os muumbés.
Na citação anterior de padre André João Antonil (1982), o cronista menciona as localida-
des africanas de onde vinham a maioria dos escravizados. Mattos (2005) afirma que havia certa
preocupação dos proprietários em saber a etnia de origem dos escravizados. Antonil (1982) cha-
ma alguns de “boçais”. Era comum, no período em que vigorou a escravidão de africanos, eles
serem caracterizados ora como boçais, ora como ladinos. Boçais era a designação dada aos africa-
nos recém-chegados à América, ainda não acostumados à cultura local brasileira (sem saber falar
82 História da África e da cultura afro-brasileira
a língua, sem conhecer a religião católica, oficial, sem saber sobre os costumes). Já ladinos (da
expressão latinos) era a designação dada aos africanos que já viviam aqui, já ambientados com a
língua, os costumes e as práticas religiosas aqui existentes, ou seja, aculturados.
Mas o que isso tem a ver com a necessidade de os proprietários saberem a origem dos escra-
vizados que adquiriam? Mattos (2005) constata: diferenciar africanos nascidos no Brasil de africanos
nascidos na África, bem como de acordo com suas etnias, era uma forma de tentar identificar quais
seriam potencialmente “mais rebeldes” (por terem sido trazidos diretamente do continente africano
e ainda não estarem ambientados ao Brasil e à dura rotina da escravidão ou por pertencerem a tribos
consideradas mais guerreiras) e quais seriam potencialmente mais calmos (os já nascidos no Brasil
e já ambientados à rotina da escravidão, mais aculturados). Conforme destaca o autor: “Segundo
o pensamento recorrente naquela época, africanos de determinadas regiões e etnias que, eventual-
mente, atravessavam intensas guerras e conflitos em sua terra de origem, seriam mais propensos às
revoltas, estando predispostos à violência no Novo Mundo” (MATTOS, 2005, p. 5).
Como você pôde perceber, havia entre os proprietários de escravizados no Brasil o temor
de adquirir indivíduos de etnias propensas a revoltas e conflitos. Na verdade, as revoltas, os con-
flitos, as fugas e outras tantas formas de resistência à escravidão foram constantes no Brasil entre
os séculos XVI e XIX, tal qual veremos a seguir.
A violência da escravidão, no entanto, nunca foi aceita passivamente pelos africanos, tanto
pelos nascidos na África quanto pelos já nascidos no Brasil. Antes de serem embarcados nos navios
negreiros pelos traficantes, eram comuns tentativas de fuga, confrontos físicos e tentativas de suicídio.
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 83
A bordo dos navios negreiros, motins e agitações também existiram, sendo o caso mais
famoso o confronto ocorrido no interior do navio Amistad, embarcação espanhola tomada e con-
quistada por africanos em 1839.
Já no Brasil, tentativas de fugas, de suicídio e abortos praticados por escravizadas africanas
que não queriam gerar um indivíduo que já nasceria marcado pela escravidão ou que, muitas vezes,
era fruto de abuso sexual, eram também estratégias de resistência à violência da escravidão, confor-
me relata o próprio André João Antonil:
E se, em cima disto, o castigo for frequente e excessivo; ou se irão embora, fugin-
do para o mato; ou se matarão por si, como costumam, tomando a respiração ou
enforcando-se [...] E se, depois de errarem como fracos, vierem por si mesmos
a pedir perdão ao senhor ou buscarem padrinhos que os acompanhem, em tal
caso é costume no Brasil perdoar-lhes. E bem é que saibam que isto lhes há de
valer, porque, de outra sorte, fugirão por uma vez para algum mocambo no
mato, e se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o
senhor chegue a açoitá-los ou que algum seu parente tome à sua conta a vingan-
ça, ou com feitiço, ou com veneno. [...] algumas escravas procuram de propósito
aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que
elas padecem. (ANTONIL, 1982, p. 35-36)
Em relação às fugas, elas se acentuaram entre o fim do século XVI e na primeira metade do
século XVII, na região dos engenhos de açúcar do Nordeste (entre o Maranhão e a Bahia). Entre
1645 e 1654, os portugueses travaram uma guerra contra a presença de holandeses da Companhia
das Índias Ocidentais, que haviam tomado Pernambuco e lá se instalado com o objetivo de se apro-
priar da produção do açúcar em 1630. Ao longo desse período, muitos escravizados aproveitaram o
caos gerado pela guerra para fugir dos engenhos e se embrenhar na mata, formando comunidades
independentes e autossuficientes, baseadas na propriedade coletiva da terra, na produção agrícola
e em costumes africanos e indígenas. Essas comunidades foram chamadas de quilombos e algumas,
como o de Palmares, situada entre os atuais estados de Alagoas e Pernambuco, na Serra da Barriga,
chegou a contar com milhares de indivíduos.
Assim que a guerra contra os holandeses foi vencida e eles foram expulsos do Brasil, em
1654, a administração portuguesa no Brasil concentrou esforços para liquidar com Palmares, pro-
movendo uma verdadeira caçada aos quilombolas palmarinos, conforme destaca o historiador
Rafael de Bivar Marquese (2006). A guerra contra Palmares se alastrou por mais de duas décadas,
vindo o numeroso quilombo a ser derrotado totalmente em meados de 1690, com a morte do seu
principal líder, Zumbi dos Palmares.
A Guerra dos Palmares foi um dos episódios de resistência escrava mais notá-
veis na história da escravidão do Novo Mundo. Ainda que as estimativas das
fontes coevas e dos historiadores sobre o número total de habitantes divirjam
bastante – de um mínimo de 6 mil a um máximo de 30 mil pessoas –, não há
como negar que as comunidades palmarinas, dada a extensão territorial e a
quantidade de escravos fugitivos que acolheram, tornaram-se o maior qui-
lombo na história da América portuguesa. Suas origens datam do início do
século XVII, mas sua formação como grande núcleo quilombola se deu
apenas no contexto da invasão holandesa de Pernambuco, quando diversos
escravos se aproveitaram das desordens militares e fugiram para o sul da
capitania. As comunidades rebeldes que então se organizaram resistiram a
diversas incursões da Companhia das Índias Ocidentais e, após a expulsão
84 História da África e da cultura afro-brasileira
Ainda de acordo com Marquese (2006), as alforrias foram frequentes nos séculos XVII e
XVIII, porém, se considerarmos os números de milhares de escravizados africanos que todos os
anos davam entrada nos portos brasileiros, como vimos nos dados do Gráfico 1, os números de
alforrias eram menores que os de novos escravizados.
Outra estratégia recorrente na segunda metade do século XIX eram os escravizados que
entravam na justiça alegando a ilegalidade de sua condição escrava em virtude da Lei Feijó, de
1831, a qual decretava ilegal a entrada de escravizados em portos brasileiros desde a data de sua
promulgação, estabelecendo a obrigatoriedade da libertação dos cativos e o pagamento de multa
por indivíduo traficado ilegalmente. Esse tipo de estratégia de luta contra a escravidão se fortale-
ceu por volta de 1870 por meio do acirramento do movimento abolicionista, conforme destaca o
historiador Argemiro Eloy Gurgel:
foi justamente um aspecto secundário da Lei de 1831, garantindo a liberdade
dos escravos que entraram no país após a data de sua promulgação, que motivou
as tentativas de sua revogação por parte dos fazendeiros e seus representantes
no Parlamento, por se sentirem essas classes ameaçadas no seu direito de pro-
priedade. Finalmente, após a extinção definitiva do tráfico, essa preocupação
dos fazendeiros foi confirmada, com o surgimento de um movimento oposicio-
nista que buscava o reconhecimento da vigência da Lei Feijó, para recuperar o
direito de liberdade dos africanos que houvessem ingressados no país após a sua
promulgação. (GURGEL, 2008, p. 1-2)
Nessa mesma época, aumentou grandemente o número de anúncios nos jornais oferecendo
recompensas para quem desse notícia de escravizados fugitivos. Veja a seguir alguns desses anúncios,
publicados em jornais de Curitiba, capital da então jovem província do Paraná, instalada em 1853.
GRATIFICAÇÃO
Á quem der noticia certa de um escravo pertencente a Manoel Joaquim de
Vasconcellos e Souza.
Desapareceu desta capital no mez de fevereiro deste ano.
Signais:
Mulato, um tanto claro, idade 50 annos, cabellos e barba densos e coredios já
bem mesclados, porte mediano, um tanto gordo, olhos castanhos e um tanto
vesgos, uma pequena rendidura no umbigo, muitíssimo rizonho. É crioulo da
P. de S. Paulo, morou muito annos na vilinha da Palmeira P. de S. Pedro do Sul,
donde veio para esta a 5 annos. A noticia recebe-se nesta capital, em casa de [...]
Vasconcellos & Couto, ou em José da Boa Vista, casa do primeiro assignado.
(GAZETA PARANAENSE, 1882, p. 4)
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 85
No anúncio, são detalhados alguns aspectos físicos do escravizado fugitivo que denotam a
violência da escravidão, como a “rendidura no umbigo”, bem como aspectos de sua personalidade
(“um tanto risonho”). Um escravizado fugitivo representava grande prejuízo para os proprietários.
Em tempos de fim de tráfico e crise da escravidão, a quantidade de escravizados nativos ficava rara
ano a ano e o preço que se pagava por escravizados era alto, daí o interesse em gratificar qualquer
notícia referente ao escravo fugido. O nome desse escravizado não é mencionado.
Já no anúncio a seguir, datado de 1884, o nome do escravizado é mencionado, mas sua idade
precisa não é estabelecida. A falta de um dente, apontada como característica do fugitivo, denota
maus-tratos, mas o fato de saber tocar instrumento musical (harmônica) e de saber trabalhar com
arados e trolys denota que era um trabalhador mais especializado, talvez por isso a gratificação por
notícias suas tenha sido fixada em 50 mil réis:
Escravo Fugido
No dia 31 de dezembro próximo passado, evadiu-se o escravo de nome Tiburcio,
tendo os seguintes signaes: 25 a 30 annos, [...], magro, alto, maças do rosto sa-
lientes, falta um dente de cima do lado direito, falla muito bem, tem maneiras
macias, toca harmônica, tem pratica de trabalhar com trolys, carroça e arados.
Há razões para se presumir que foi para S. Paulo. Gratifica-se com 50$000 a
quem o aprehender e entregar em Itaicy ao sr. Francisco José de Araújo e a seu
senhor, Firmino Almeida Leite, em Indaiatuba.
Indaiatuba, 2 de janeiro de 1884. Firmino Almeida Leite. (A PROVÍNCIA DE
SÃO PAULO, 1884, p. 3)
Ambos anúncios datam da década de 1880, auge do movimento abolicionista e poucos anos
antes da promulgação da Lei Áurea, de 1888, a qual aboliu definitivamente a escravidão no Brasil.
A partir do dia 13 de maio daquele ano, com a referida lei, fazendeiros que tinham nos seus escra-
vizados alguns de seus bens mais preciosos, da noite para o dia os perderam. Muitos deixaram de
apoiar o imperador D. Pedro II e passaram a fazer-lhe oposição, sendo a abolição um dos fatores
que acentuou a crise e o fim da monarquia no Brasil.
Essa abolição, no entanto, não veio seguida de políticas públicas de inserção do negro, agora
em sua condição de indivíduo livre na sociedade. Não foi capaz, portanto, de integrar socialmente
os afrodescendentes no mercado de trabalho livre mediante acesso à escolarização, à participação
política e à cidadania. Não foi capaz também de dirimir o estigma da associação entre o negro e o
trabalho degradante, acentuando-se a segregação e o preconceito já existentes contra eles no Brasil
durante a escravidão nos tempos posteriores à abolição, persistindo até a atualidade.
Assim como no passado, atualmente o elemento negro se posiciona, resiste, luta por seus
direitos, por meio de movimentos sociais engajados, como o Movimento Negro, e busca o reco-
nhecimento dos direito de acesso à escolarização formal, via promulgação de leis afirmativas, como
a Lei de Cotas Raciais, ou ainda pelo seu direito à história, com a luta pela aprovação da lei que
tornou obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nos diferentes níveis
de ensino e aprendizagem do currículo da Educação Básica.
86 História da África e da cultura afro-brasileira
Considerações finais
Neste capítulo, abordamos a questão do tráfico atlântico e as especificidades da escravidão
introduzida pelos portugueses na África em relação àquela já existente entre alguns reinos africanos.
Buscamos apontar a relação de complementariedade existente entre um centro produtor de açúcar,
estabelecido por Portugal no Nordeste brasileiro e um centro produtor de escravizados, estabele-
cido pelos mesmos portugueses na África Ocidental e Centro-Ocidental, compondo no chamado
Atlântico Sul duas atividades complementares e geradoras de lucro para a metrópole portuguesa.
Estudamos quais foram os grandes troncos linguísticos pertencentes aos africanos trafi-
cados para o Brasil e quais eram as principais etnias que aqui se instalaram, bem como os rear-
ranjos promovidos por traficantes e pela Igreja católica, tendo em vista o melhor interesse dos
futuros proprietários dos escravizados.
Abordamos a influência que exerceu a língua, os costumes, a culinária e a religião africana
na diversificada cultura brasileira, bem como as terríveis condições de translado e trabalho a que
eram submetidos os escravizados africanos e suas várias e constantes estratégias de resistência,
desde o passado até o presente.
No século XIX, já no período do Estado nacional, esse quadro social escravista interno alta-
mente estável permitiu a expansão inaudita do tráfico negreiro transatlântico – nas letras da
lei, proibido desde 1831 – e do próprio escravismo brasileiro. No período de quarenta anos
compreendido entre a vinda da família real para o Brasil (1808) e o fim definitivo do tráfico,
em 1850, foi introduzido mais de 1,4 milhão de cativos no Império, ou seja, cerca de 40%
de todos os africanos desembarcados como escravos em três séculos da história do Brasil.
Nesse sentido, as mudanças que se operaram no escravismo brasileiro oitocentista, em especial
o incrível arranque da cafeicultura no vale do Paraíba, que rapidamente converteu o Brasil
no maior produtor mundial do artigo, contou com práticas arraigadas de longa duração, que
possibilitavam introduzir enormes massas de estrangeiros escravizados sem colocar em risco
a segurança interna dessa sociedade.
A presença de escravizados africanos no Brasil Colonial e Imperial 87
No século XIX, a maior ameaça ao escravismo brasileiro veio de fora, ou seja, da pressão
antiescravista inglesa. Não por acaso, a resposta ideológica que os senhores e políticos brasilei-
ros deram à ação diplomática e militar inglesa recorreu, entre outros pontos, à própria lógica
de funcionamento sistêmico da escravidão brasileira. Ao fazê-lo, inverteram a visão ideológica
que foi predominante na Colônia. Com efeito, salvo um ou outro caso, as autoridades metro-
politanas sediadas na América portuguesa sempre entenderam que o setor de homens negros e
mulatos livres representava mais risco do que segurança à ordem colonial. Em outras palavras,
a maioria dos dirigentes metropolitanos não tinha consciência do processo institucional do
escravismo brasileiro.
Atividades
1. Explique o que foi o tráfico atlântico e quais foram os efeitos para o continente africano, conside-
rando as populações costeiras da África Ocidental e as populações da África Centro-Ocidental.
Referências
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Letras, 2003.
SILVA, A. C. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2003.
envolvido nas revoluções liberais ocorridas primeiramente na Inglaterra, depois em outros países euro-
peus, e que destituíram o regime absolutista de governo.
Acerca da urbanização e seus efeitos sociais (migração campo-cidade e pauperização) e ambientais
(crescimento acelerado e desordenado das cidades), o historiador Francisco Iglésias explica:
Outro efeito notável é a urbanização. Decorre da indústria, pois esta é em es-
cala comercial, enquanto o antigo artesanato era frequentemente doméstico,
de pequena produção. A nova indústria requer investimentos que só podem
ser feitos por homens ricos ou associações de empresários. Com a fábrica, ve-
rifica-se o êxodo dos campos para as cidades, acentuado com as demarcações.
E estas, antes raras, começam o processo formativo rápido, surgindo núcleos
urbanos em pequeno tempo. Para [se ter] ideia do surto provocado, lembre-se
de que as cidades industriais inglesas, com exceção de Londres, surgem de fato
no século XVIII. Manchester, por exemplo, centro importante, em 1700 era
um povoado e, em 1800, tem 100 mil habitantes. Birmingham, em 1740, tinha
25 mil habitantes, em 1800 terá 70 mil. Liverpool, Bristol e Norwich tinham
mais de 25 mil habitantes. (IGLÉSIAS, 1992, p. 97, grifos do original)
vielas escondidas, muito perto dos palácios dos ricos, mas, em geral, designa-
ram-lhe um lugar à parte, onde, ao abrigo dos olhares das classes mais felizes,
tem de se safar sozinha, melhor ou pior. Estes “bairros de má reputação”, são
organizados, em toda a Inglaterra mais ou menos da mesma maneira, as piores
casas na parte mais feia da cidade; a maior parte das vezes são construções de
dois andares ou de um só, de tijolos, alinhadas em longas filas, se possível com
caves habitadas e quase sempre irregularmente construídas. Estas pequenas ca-
sas de três ou quatro divisões e uma cozinha chamam-se cottages e constituem
vulgarmente em toda a Inglaterra, exceto nalguns bairros de Londres, as habi-
tações da classe operária. Habitualmente, as próprias ruas não são planas nem
pavimentadas; são sujas, cheias de detritos vegetais e animais, sem esgotos nem
canais de escoamento, mas em contrapartida semeadas de charcos estagnados e
malcheirosos. Para além disso o arejamento torna-se difícil, pela má e confusa
construção de todo o bairro, e como aqui vivem muitas pessoas num pequeno
espaço, é fácil imaginar o ar que se respira nestes bairros operários. De resto, as
ruas servem de secadouro, quando há bom tempo; estendem-se cordas duma
casa à casa fronteira, onde se pendura a roupa branca e úmida. (ENGELS, 1975,
p. 59, grifos do original)
Sobre a mesma situação relatada por Engels, que foi contemporâneo dos efeitos sociais e
ambientais da Primeira Revolução Industrial (ou Revolução Industrial Inglesa), escreveu a histo-
riadora brasileira contemporânea Maria Stella Bresciani (1992). No texto de ambos é mencionado
o fato de que até porões de casas eram alugados para servirem de moradia para trabalhadores.
Observe também que nos dois textos é abordada a situação precária das casas e das ruas, nas quais
se misturavam lama, esgoto, restos de vegetais e detritos e toda espécie de sujeira e lixo, consti-
tuindo focos de insalubridade propícios a doenças, que se espalhavam rapidamente nos corpos
cansados e mal nutridos dos trabalhadores:
Dessa maneira, ao lado da Oxford Street, de Regente Street, de Trafalgar Square e
do Strand, uma massa de casas de três a quatro andares, construídas sem planeja-
mento, em ruas estreitas, sinuosas e sujas, abriga parte da população operária. Nas
ruas, a animação é intensa, um mercado de legumes e frutas se espalha, reduzindo
o espaço para as pessoas. O cheiro é nauseante. A cena torna-se mais espantosa
no interior das moradias, nos pátios e nas ruelas transversais [...] Nas casas, até os
porões são usados como lugar de morar e em toda parte acumulam-se detritos e
água suja [...] No centro de Londres, numerosas ruelas de casas miseráveis entre-
cruzam-se com as ruas largas das grandes mansões e os belos parques públicos;
essas ruelas lotadas de casa abrigam crianças doentias e mulheres andrajosas e
semimortas de fome. (BRESCIANI, 1992, p. 25)
Até meados de 1830, a Revolução Industrial e seus efeitos ambientais e sociais foi um proces-
so quase que restrito à Inglaterra, isso porque os fabricantes eram proibidos de exportar tecnologia
e maquinário, medida que visava proteger a exclusividade inglesa no mundo.
Essa situação não duraria muito tempo: a produção de máquinas e equipamentos expandiu-
-se e superou as necessidades locais. Os fabricantes, ávidos por mais lucros, passaram a exportar
para outros países, favorecendo a industrialização de regiões da Europa (como Bélgica, Alemanha,
Itália, Rússia e França), da Ásia (Japão) e da América (Estados Unidos). Esse foi o desdobramento
“natural” do próprio capitalismo industrial: expandir-se para além do seu eixo inicial para continuar
existindo e crescendo, como assinala o historiador britânico Eric Hobsbawm: “Economicamente,
92 História da África e da cultura afro-brasileira
de toda forma evitar. Devido a isso, a emigração passou a ser incentivada por alguns governos, que
forneciam inclusive estímulos financeiros para fomentá-la.
Além de fatores econômicos, há as motivações sociais e de ordem cultural, religiosa e cien-
tífica que impulsionaram o imperialismo europeu sobre a África no fim do século XIX, como
veremos a seguir.
Esses estudiosos afirmavam também que as sociedades africanas, por não possuírem escrita,
não tinham história, por isso cabia aos exploradores europeus levar até elas a “civilização”, como
uma espécie de “fardo”, de obrigação dos povos tidos como “mais evoluídos” em relação aos tidos
como “menos evoluídos”.
Ao dividir os grupos humanos em raças, os teóricos do darwinismo social defendiam a
hipótese de existirem as mais evoluídas e as menos evoluídas, utilizando como critérios aspectos
da cultura europeia.
Diante dessa perspectiva, chegaram a concluir que os europeus – ou “a raça branca” – eram
mais evoluídos, julgando outros povos como menos adiantados em técnica e cultura, por isso menos
evoluídos. Ou seja, os europeus basearam-se nos próprios padrões culturais para julgar populações
completamente diferentes como inferiores, primitivas e atrasadas.
Surgidas no bojo de um ideal “civilizador” – que, na verdade, pretendia “europeizar” o mun-
do –, sociedades geográficas e missões religiosas se multiplicavam e atraíam muitos interessados
em difundir a civilização ocidental entre os povos “menos adiantados”, julgando ser um dever, uma
obrigação europeia, europeizar o mundo (SOCUDO, 2015).
A partir da segunda metade do século XIX, associações geográficas surgiram e se multi-
plicaram por toda a Europa (só na França eram mais de nove mil associados). Financiadas por
chefes políticos, banqueiros e industriais, essas expedições dirigiam-se às mais distantes regiões
da África, Ásia, América e Oceania. Os cientistas exploradores observavam elementos da fauna,
flora e aspectos da vida e cultura das sociedades nativas e faziam relatórios ilustrados, que eram
apresentados às entidades financiadoras na Europa.
Nesses relatórios, ficavam evidentes as riquezas naturais que poderiam ser exploradas e quais
as obras de infraestrutura eram necessárias para a realização da empresa colonial nas terras visi-
tadas. Nessa época, começou a exploração propriamente dita de regiões da África pelos europeus.
Nessa África, em que reis e chefes de nações nativas comerciavam com portugueses, brasilei-
ros, árabes, ingleses, holandeses, franceses entre outros, por isso elementos da cultura estrangeira
já se estabeleciam há séculos, sem, contudo, descaracterizar totalmente aspectos das culturas locais
– algumas milenares, mais antigas e até mais complexas que muitas civilizações ocidentais.
No século XIX, aconteceram guerras constantes entre as várias nações africanas. Isso au-
mentou o número prisioneiros, muitos dos quais eram vendidos aos traficantes portugueses e
brasileiros como escravos. Ocorriam também guerras civis entre grupos rivais que disputavam o
poder político e, em decorrência dessas guerras, reis e nobres africanos eram escravizados por seus
inimigos. Isso significa que, muitas vezes, entre os escravos que chegavam ao Brasil, havia repre-
sentantes da nobreza e da realeza de nações africanas.
Esses conflitos locais podem ser entendidos, de acordo com o estudioso Alberto da Costa e
Silva (1994), como fruto de um sentimento nacionalista que, durante o século XIX, desenvolvia-se
em várias nações africanas. Diferentes grupos étnicos buscavam definir suas fronteiras culturais,
políticas e territoriais e, nesse processo, aqueles que dispunham de contatos com ocidentais e aces-
so a armas de fogo tenderam a subordinar os demais. Nações europeias muitas vezes incentivavam
essas guerras, enfraquecendo o poder local e provocando verdadeiros genocídios entre as popula-
ções africanas, o que facilitava sua colonização.
Durante todo o século XIX, percebe-se um acirramento de sentimentos nacionalistas em
vários países europeus, podendo-se citar o caso da unificação da Itália, da Alemanha e da Grécia
como exemplos desse movimento. Esse fenômeno chegou ao outro lado do Atlântico: nas colônias
americanas, o século XIX é aquele em que várias delas se tornam independentes de Portugal e da
Espanha (entre elas o Brasil). Nesse contexto, nações africanas buscam afirmar-se umas diante das
outras, e as nações europeias competem entre si; assim, manifestou-se o imperialismo.
O início do colonialismo na África iniciou com a conquista da Argélia pela França, em 1830.
Em 1876, na Conferência de Bruxelas, o rei belga Leopoldo II iniciou a conquista e a exploração do
Congo, posse legalizada entre 1884 e 1885, quando aconteceu na Alemanha a Conferência de Berlim,
praticamente dividindo a África entre as nações europeias, como demonstra o quadro a seguir.
Quadro 2 – Divisão da África entre os países europeus
Argélia, Tunísia, África Ocidental Francesa (Guiné, Senegal, Daomé, Níger, Costa do Marfim,
França Alto Volta e Mali), África Equatorial Francesa (Gabão, Congo Brazzaville, Chade, República
Centro Africana), Somália Francesa e Madagascar.
Protetorado Colônia
Considerações finais
Neste capítulo, estudamos sobre o imperialismo ou neocolonialismo do século XIX, origens,
características e diferenças em relação ao colonialismo dos séculos XV e XVI e sua forma de inter-
venção econômica e política, bem como justificativas ideológicas e características sociais.
Vimos que o imperialismo foi um fenômeno correlato à Segunda Revolução Industrial e cau-
sou efeitos (tecnológicos, sociais e financeiros) que se implementou por meio da força das armas e de
preceitos tidos na época (século XIX) como científicos, por exemplo, o darwinismo social.
Estudamos também que, em virtude do imperialismo, o continente africano foi “fatiado” e
sumariamente dividido em zonas de ingerência política e dominação econômica pelas principais
potências imperialistas europeias. Essa divisão desconsiderou conflitos históricos existentes entre
etnias locais, bem como os movimentos nacionalistas que se afirmavam, naquele período, entre
povos africanos, fato que viria a causar – no processo de descolonização, ocorrido já no século XX
e após as duas grandes guerras – inúmeros conflitos e guerras civis.
Curtos pedaços de uma história muito longa, [é] a própria história do sistema econômico e
político mundial que nasceu no século XV, como uma projeção “extraterritorial” do poder
europeu. Seu primeiro passo foi dado por Portugal, ao tomar Ceuta dos muçulmanos, no norte
da África, em 1415. Menos de um século depois, em 1494, os europeus já se consideravam no
direito de repartir o mundo, definindo, na cidadezinha de Tordesilhas, o que foi de fato a pri-
meira “ordem mundial europeia”. Depois vieram os impérios marítimos asiáticos e a coloniza-
ção americana, uma caminhada que nunca mais se interrompeu. Nos 500 anos seguintes, oito
países, com apenas 1,6% do território global (Portugal, Espanha, Holanda, França, Inglaterra,
Bélgica, Alemanha e Itália) foram conquistando ou submetendo praticamente todo o resto do
mundo, através da conquista militar e territorial, ou através do mercado e do poder dos seus
capitais. Movimento expansivo – político e econômico – que acompanha a história do desen-
volvimento capitalista e que se transformou numa dimensão constitutiva do sistema mun-
dial moderno. Uma estrutura hierárquica de dominação global, centrada na Europa e, depois,
na sua ex-colônia norte-americana que assumiu várias formas através dos séculos: colônias,
domínios, províncias de além-mar, mandatos, protetorados etc.
Atividades
1. Exponha os principais fatores relacionados à Segunda Revolução Industrial e sua relação
com o imperialismo.
2. Aponte ao menos duas diferenças entre o colonialismo dos séculos XV e XVI e o neocolo-
nialismo do século XIX.
Referências
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SILVA, A. C. O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX. Revista Estudos Avançados, n. 8, v. 21, p. 21-42,
1994. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/ea/v8n21/03.pdf>. Acesso em: 17 maio 2018.
As duas grandes guerras mundiais (uma iniciada em 1914 e a outra em 1939) marcaram
significativamente o desenrolar dos fatos da segunda metade do século XX no continente africa-
no. Entretanto, antes de adentrarmos na especificidade dos eventos que se sucederam a partir de
mundo, o que estava por trás desse processo eram motivos mais elaborados. Um deles se deu em
virtude da busca por novos mercados consumidores e por matérias-primas; assim, a Inglaterra, a
França e a Alemanha se transformaram em potentes inimigos.
Houve ainda, na Europa, as consequências da grande crise de 1873-1896, provocada como
resultado da própria extensão do sistema capitalista. A substituição da mão de obra humana pelas
máquinas causou desemprego em massa, reduzindo drasticamente o poder de compra, levando o
capitalismo à primeira grande crise. Buscar territórios além das terras europeias tornou-se condi-
ção para a sobrevivência das potências capitalistas.
Dessa maneira, paulatinamente, cada potência considerou o continente africano como um
espaço a ser conquistado. Tal processo estava em íntima relação com o desenvolvimento industrial.
À medida que os estados europeus se industrializavam, lançavam-se sobre os territórios africanos,
alterando drasticamente a história da África.
Entre os anos de 1880 e 1914, o continente africano foi completamente divido entre os princi-
pais países europeus. O continente europeu sempre esteve atento às riquezas da África. Entretanto,
no fim do século XIX e primeira década do XX, passou-se de visitas e explorações esporádicas
(como mapeamentos, descobertas de lagos e de rios) para uma dominação política e econômica
direta, por meio da presença de forças militares sistematizadas.
Reino Unido, França, Itália, Bélgica, Alemanha, Portugal, Espanha e Estados Unidos aden-
traram de maneira sistemática, constante e ininterrupta no território africano desde o fim do sé-
culo XIX, com vistas a explorar matérias-primas preciosas para a produção industrial e consolidar
um mercado consumidor para os produtos industrializados.
Nesse sentido, é bastante elucidativa a maneira como o rei da Bélgica, Leopoldo II (1835-
1909) inaugurou a exploração da África a partir do reino do Congo, ou seja, ele sintetizou as ambi-
ções da Europa sobre a África2. Em uma carta a seus embaixadores, não escondendo as pretensões
exploratórias que o imperialismo via no continente africano, o monarca escreveu: “a África era um
bolo magnífico que renderia inúmeros recursos para a Europa” (PIRES; FOGARTY, 2014, p. 58).
Sempre com a justificativa de que levariam a “civilização” para o continente africano, como
demonstra o informe oficial do governo britânico, expedido no Quênia em 1923: “O governo de
Sua Majestade considera-se exercendo, por conta das populações africanas, uma tutela [...] cujo
objetivo pode ser definido como a proteção e o progresso das raças indígenas” (UZOIGWE, 2010,
p. 355). No célebre estudo La mise en valeur des colonies françaises, Albert, ministro francês das
colônias, escrevia a propósito da França: “O único direito que ela quer conhecer é o direito de o
mais forte proteger o mais fraco” (SARRAUT apud UZOIGWE, 2010, p. 355). A França seguia esse
2 Para saber mais, ver Racismo: uma história, produzido pelo canal BBC de Londres, no ano de 2007. Trata-se de uma
perspicaz abordagem acerca das atrocidades cometidas pelo racismo ao longo dos séculos. C om um amplo material
fotográfico, o documentário retrata desde a Ku Klux Klan, nos Estados Unidos, até a colonização do Congo e as violên-
cias cometidas por Leopoldo II, que decepava as mãos dos congolenses que não atingissem a cota diária da coleta da
borracha. Além de apresentar a construção do racismo pelo viés político-imperialista, o documentário expõe as lutas
por direitos civis dos africanos e afro-americanos, descontruindo o mito da existência de raças e apontando para a luta
constante e ininterrupta dos povos colonizados contra o jugo do saber racialista científico europeu e da política imperia-
lista praticada por esses países.
106 História da África e da cultura afro-brasileira
exemplo, pois garantiria “o crescimento econômico e o desenvolvimento humano [de suas colônias
na África]” (UZOIGWE, 2010, p. 355).
Em nome do progresso e da civilização, os países europeus interviram em diversos aspectos
do continente. Desde a construção de monumentos materiais que tinham como objetivo, conforme
Pires e Forgaty (2014), demonstrar para o resto do mundo e para a própria população africana os
traços mais visíveis da presença europeia na África. Tratava-se uma de exposição da modernização
(PIRES; FORGATY, 2014, p. 59). Esses sistemas de transportes e comunicações funcionavam como
meios logísticos que auxiliavam a conquista e como vias capazes de “permitir a exploração e o es-
coamento de produtos agrícolas (amendoim, algodão, óleo de palma, cacau e café); por outro lado,
eram elementos eficazes de controle ideológico e ferramentas de ‘educação paternalista’” (PIRES;
FORGATY, 2014, p. 60).
Esses aparatos não se instalaram pacificamente, mas por meio de enfrentamentos entre a
população africana e os interventores estrangeiros. Walter Rodney mapeou esses embates entre os
europeus e suas tentativas de construção dos “aparatos modernos” e a resistência africana. Segundo
ele, diante dessas tentativas de destruição de sua independência econômica, os africanos respon-
diam com violência. Ele afirma:
Assim o provam algumas lutas anticoloniais célebres como a Hut Tax War em
Serra Leoa, a revolta dos Bailundu em Angola, as guerras dos Majī Majī na
África Oriental Alemã, a rebelião dos Bambata na África do Sul. (RODNEY,
2010, p. 377)
Muitas vezes, o próprio contexto colonial deu origem a grupos que não existiam antes da
penetração colonial e, consequentemente, a uma nova consciência étnica e a uma nova identidade.
Essas identidades, abafadas durante a colonização, ressurgem com força no fim do regime colonial
e principalmente nos momentos mais fervorosos da independência.
Na Conferência de Berlim, em 1885, o único critério para a divisão do continente entre as
potências europeias foi apenas o cuidado em não invadir áreas ocupadas por outras potências. No
início da Primeira Guerra Mundial, conforme já observamos, 90% das terras africanas estavam
sob domínio da Europa. Após a Segunda Guerra Mundial, quando as colônias da África come-
çaram a conquistar independência, formando os atuais países, a divisão primitiva do continente
resultou em consequências desastrosas para a formação das novas nações.
Se no transcorrer dos anos de 1950 os esforços internos e as influências externas ao conti-
nente africano estavam mobilizadas para o processo de independência, após esse período, as nações
ficaram relegadas à própria sorte. A pesquisadora Beatriz Maria Soares Pontes (2016, p. 5), citando
importantes estudiosos internacionais sobre o tema da pós-independência das nações africanas,
aponta: a tentativa de uma formação nacional na África após a Segunda Guerra Mundial foi um es-
forço específico da comunidade intelectual. Para Pontes (2016), a intelligentsia4 seria a responsável
por forjar as bases nas quais se ancorariam as ideias sobre as diferentes nações africanas.
Nessas diversas sonoridades, que ecoavam de lugares distintos, para a compreensão dos dile-
mas da nação-Estado pós-colonial, é necessário considerar a inter-relação entre o aparelho de Estado
e a sociedade civil, ou seja, o contexto de construção da nação foi um processo forjado por um grupo
específico e estimulado por ideias externas à dinâmica da maior parte do continente. Nesse sentido,
3 O termo colonialismo refere-se ao processo político, econômico e cultural iniciado no século XVI que visava a expan-
são do poder europeu para além de suas fronteiras naturais. Segundo Chagastelles (2008, p. 111), “O desenvolvimento do
capitalismo, a partir da primeira expansão europeia, na fase quinhentista, levou à incorporação progressiva dos demais
continentes ao sistema, de forma subordinada e dependente”. Nesse sentido, o período colonial refere-se ao processo de
dominação, subjugação e exploração realizada por países Europeus com foco no continente americano. Essa subjuga-
ção utiliza-se de poderes políticos, militares e econômicos contra um território que não lhe pertence e contra a vontade
de seus habitantes. O termo colonial e colonialismo provêm do latim colonia e serve para fazer uma analogia ao processo
realizado pelos romanos em sua fase de expansão e anexação de territórios. Já o termo neocolonialismo foi utilizado a
partir do século XIX, no período de expansão da indústria europeia. Segundo N’Krumah (1967, p. 281), o termo representa
“a soma dessas tentativas modernas para perpetuar o colonialismo”, ou seja, trata-se de um novo processo que tinha
como finalidade os mesmos objetivos: subjugar, dominar e explorar regiões e povos contra as suas vontades, valendo-se
da violência, de uma estrutura jurídica legitimada pelos exploradores e, principalmente, de poderes econômicos e milita-
res. Para saber mais, ver Chagastelles (2008) e Nkrumah (1967).
4 O conceito intelligentsia foi utilizado incialmente por Karl Mannheim (apud LIMA, 1999, p. 52) para pensar o papel
dos intelectuais na formação dos Estados-nação alemães e designaria “um grupo social cuja tarefa específica consiste
em dotar uma dada sociedade de uma interpretação de mundo”.
Os processos de independência na África do século XX 109
Gregório Firmino destaca: “a elite ou intelligentsia assumiu um papel proeminente nos assuntos do
Estado pós-colonial” (FIRMINO, 2006, p. 28). Tal afirmativa propõe considerar a importância exer-
cida pelas camadas intelectuais africanas no contexto que se seguiu às independências. Foram esses
agentes que assumiram a função de gerenciar o processo de constituição da nação5.
Assim, o termo nação adquiriu um significado muito importante para analisarmos as con-
sequências da colonização na África, as influências externas e os conflitos que se instauraram
após a independência. Ki-Zerbo (2010) defende: uma das questões mais problemáticas do período
pós-independência se refere aos preceitos que conduziram o movimento da independência, e a
ideia de nação foi uma das mais importantes. Nesse sentido, convém nos determos um pouco em
torno desse conceito, pensando sobre as singularidades das estruturas africanas anteriores à divi-
são arbitrária efetuada pelas potências estrangeiras, o momento da presença dos países europeus
no continente e a libertação colonial e a tentativa da construção das nações atuais.
Antes de tudo, é necessário ter em mente que o processo de libertação foi, na maior parte do
território africano, conduzido por influências externas por líderes imperialistas os quais intenta-
ram produzir uma libertação negociada e pacífica pelas organizações nacionalistas, geralmente in-
fluenciadas por intelectuais que estudaram em instituições estrangeiras e visualizaram a libertação
aos moldes daquilo que ocorrera na formação dos estados europeus.
Grande parte das mobilizações nacionais foi conduzida com os ideais da liberdade das
colônias e da formação das nações africanas. Nação, segundo o historiador Eric Hobsbawm,
é um conceito surgido no século XVIII com a Revolução Francesa. Do ponto de vista etimo-
lógico, nação provém da palavra natio, que significa nascimento e faz apelo à origem comum
(HOBSBAWM, 1998, p. 20). Segundo esse estudioso, podemos apoiar-nos na definição apresen-
tada em alguns dicionários, nomeadamente, “o agregado dos habitantes de uma província, de um
país ou reino” ou “um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo
comum” ou ainda “ o território constituído por esse Estado e pelos seus habitantes individuais,
considerando um todo” (Dicionário da Academia Real Espanhola antes e após 1884 apud SOUSA
JR, 2013). O principal significado de nação é, portanto, o político e está associado à ideia de povo,
à terra comum e ao bem-estar público. Nação significa um “corpo de cidadãos cuja soberania
coletiva constituía um Estado”.
Assim, a perspectiva apresentada pelos intelectuais para o processo tanto de independência
quanto de emancipação política para a África pautava-se em estruturas estrangeiras que descon-
sideravam o caldeirão cultural delimitado nas colônias de poder imperialista. A grande questão
pós-independência era a de como construir uma nação sob estruturas tão diversas quanto aquelas
que estavam reunidas em uma delimitação territorial estabelecida de fora, pelos europeus. Tratava-
se de uma luta na qual se tornava necessária a homogeneização das diferenças em nome de uma
unidade. “A representação de uma África única precisava construir consensos em territórios de-
finidos por limites impostos pelo colonialismo, habitados por populações que, muitas vezes, só
tinham em comum a experiência colonial” (MAGAIA, 2010, p. 27).
5 Para saber mais sobre a importância que as camadas intelectualizadas dos estados africanos tiveram para a con-
solidação das novas nações, ver Pontes (2016), Smith (1983) e Firmino (2006).
110 História da África e da cultura afro-brasileira
Esse desafio parecia intransponível e ocupou grande parte das elites e da intelectualidade
africana no momento posterior à emancipação política. Nesse sentido, o pesquisador demonstra:
ao conceberem ideologias unificantes que negavam as diferenças em nome de uma unidade nacio-
nal, resultou em uma “invenção da África”. De acordo com o autor:
A África foi inventada uma segunda vez pelos próprios africanos, com ideo-
logias como a negritude de Senghor, a ujamaa (palavras Swahili) que traduz a
nação de um socialismo fundado na comunidade aldeã, ideologia de desenvol-
vimento do primeiro presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, a autenticidade de
Mobutu e o humanismo de Kaunda, que tinham em comum uma representação
da natureza do homem e das sociedades africanas extrapolados do seu contexto
histórico e político. (MAGAIA, 2010, p. 29)
Assim, é preciso levar em consideração as manipulações que as identidades podem ter, impli-
cando outras consequências, na divisão da luta e da libertação do território nacional (por exemplo,
Angola, Nigéria, Zaire, África do Sul etc.).
A construção da nação enfrentou e enfrenta problemas cruciais no continente africano, se
comparado com o mesmo processo que levou a Europa à formação dos Estados nacionais. Um dos
maiores desafios para a os governos recém-criados, conforme descreveu Munanga (1993, p. 108),
era o de:
criar uma identidade nacional que se colocasse acima e além das identidades
étnicas existentes e capaz de conter e de canalizar estas últimas no sentido de
favorecer a unidade e a formação de uma “consciência nacional”. A identidade
nacional precisaria ser criada sem a destruição das identidades étnicas e regio-
nais existentes, as quais representavam fontes de diversidade e, portanto, de
riqueza cultural. (MUNANGA, 1993, p. 108)
O maior desafio, conforme complementou o autor, talvez fosse evitar a manipulação política
e ideológica em nome da construção de uma identidade nacional, enquanto o que estava em pauta
era a luta pelo poder político. Essa é ainda uma questão importantíssima de grande parte dos países
da África atual.
Nesse sentido, é preciso pensar: as ideologias que queriam fundar um processo de unificação
nacional ou que pregavam o ideal de nação tornaram-se, a começar da independência dos territó-
rios, instrumentos do poder político. Para Magaia,
as ideologias pretensamente fundadas em tradições africanas genuínas se
transformaram rapidamente em instrumentos de demonização, sob o rótulo
de tribalismo e de qualquer pluralismo cultural que se expressasse através
da reivindicação do reconhecimento da sua própria identidade. (MAGAIA,
2010, p. 30)
como é o caso do Sudão) que, em vez de proporcionar riqueza local, serve de moeda de disputa
entre os interesses internos e externos sobre o continente. A emancipação política não veio seguida
da construção da soberania nacional, deixando os países recém-criados à mercê do poder estran-
geiro, muitas vezes bélica e ideologicamente mais fortes diante do contexto mundial. Nesse sentido,
a tutela dos países imperialistas saiu de cena antes que as próprias nações tivessem a oportunidade
de constituir mecanismos e instituições próprias de defesa e de crescimento nacional.
Em meio a um contexto permeado por guerras civis, fragilidade política e regimes ditato-
riais, a carência, quase absoluta para grande parte da população africana, de cidadania precisa ser
entendida, portanto, na interface entre a realidade própria dos países africanos e as interferências
externas, particularmente do capital internacional6. Reduzir os problemas dos países africanos aos
conflitos entre os diferentes grupos étnicos é ocultar, muitas vezes, o papel de interferência dos
EUA no continente, desde a segunda metade do século XX, por exemplo. Com a justificativa de
conter o avanço soviético, os EUA adentraram na África firmando alianças entre líderes locais e as
multinacionais norte-americanas, produzindo diversas interferências tanto na economia quanto
na política dos novos Estados (AAPENGNUO, 2010).
O professor Muniz Gonçalves Ferreira afirma que: grande parte da fragilidade do continente
africano tem maior relação com as configurações que se estabeleceram durante e após o movimen-
to de libertação nacional – e os acordos políticos e econômicos firmados naquele momento – do
que com a estrutura interna da África. Tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética estiveram
disputando espaços nos novos países.
Os governos norte-americanos procuraram, a princípio, influenciar os estados
africanos, condicionando sua inclusão em programas de ajuda econômica e
militar à concessão de privilégios para a operação de empresas estaduniden-
ses nestes países e ao alinhamento diplomático e militar com Washington.
(FERREIRA, 2005, p. 8)
A URSS esteve presente junto aos governos africanos de orientação mais anticolonialista e
anti-imperialista, de modo a angariarem seus espaços tanto na luta contra o capitalismo quanto
no fortalecimento de influência. A formação de países africanos que contavam com o apoio de
6 Queremos chamar a atenção para o conceito de cidadania, na interface dos debates tecidos ao longo do capítulo.
O termo cidadania surgiu como pauta da segunda geração dos direitos humanos. Segundo Boaventura de Sousa Santos
(2002), os primeiros momentos da luta pelo reconhecimento d e direitos naturais se deram contra o Estado, que reco-
nhecia desigualdades inatas e naturais entre os homens; a segunda geração de luta se deu a partir da constituição do
Estado e do reconhecimento dos direitos sociais, ou seja, direitos garantidos por meio da estrutura do estado para os
seus nacionais. Nesse sentido, a luta pelo direito à saúde, à educação, à liberdade, à dignidade tornaram-se partes das
políticas dos Estados-nações, isto é, a dignidade do homem era uma obrigação do Estado. Co m essas características,
a luta pela dignidade da pessoa fica restrita à obrigação qu e cada Estado-nação teria para c o m os seus nacionais.
A expansão desses direitos veio caracterizar o conceito moderno de cidadania, ou seja, a possibilidade d e viver com
dignidade com base na participação do Estado. Nesse sentido, a relação entre o indivíduo e o estado torna-se cidadã:
o indivíduo, assistido pelo estado, ganha autonomia (por meio da educação, da saúde, da segurança) para exercer uma
vida digna e, em contrapartida, consegue escolher livremente e com consciência os líderes desse mesmo estado. Quanto
mais igualitária seja esta relação, mais cidadania é conferida ao indivíduo, mais democrático é o Estado. Esses conceitos
são essencialmente ocidentais e nascem de uma pauta europeia, que teve início com a ascensão da burguesia e toma
corporação mais definida com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Já existe uma ampla bibliografia que esta-
belece um contraponto a essas ideias, particularmente aquelas que criticam a unilateralidade dessa visão de cidadania.
Um dos debates mais atuais é o do sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2003), que visa relativizar esse conceito do
ponto de vista da multiculturalidade, apresentando caminhos alternativos e étnico-culturais para um pensamento mais
amplo de cidadania. Para saber mais, ver Avritzer (2002) e Santos (2002).
Os processos de independência na África do século XX 113
lideranças comunistas ou capitalistas, acirrou ainda mais as tensões internas do continente dete-
riorando ainda mais “as bases já frágeis da união continental e, em vários países, desorganizou a
economia e dilapidou as riquezas naturais.” (CLAPHAM apud MANUEL, 2012, p. 9).
O que podemos concluir de toda essa análise é que, a partir da década de 1950, com o pro-
cesso de independência, as utopias e os sonhos que giravam em torno da liberdade política e da
emancipação nacional foram relegados em nome da dura realidade. Uma reflexão importantíssima
sobre a condição econômica, política e cultural da África, a partir da segunda década do século
XX foi feita pelo professor e antropólogo africano Kabengele Munanga. Nesse estudo, ele realizou
um balanço sobre os 30 anos de emancipação política de diversos países africanos, e publicou um
artigo, na década de 1990, no qual afirmava que, durante as campanhas anticoloniais e os anos de
luta, a independência soava como uma palavra mágica. Acreditava-se que poder, riqueza, conforto,
vida fácil e de melhor qualidade, outrora reservados aos únicos colonizadores, mudariam automa-
ticamente de mãos (MUNANGA, 1993, p. 103-104).
Ávidos por esses ideais, “talvez não fosse o momento de pensar nas dificuldades de autogo-
vernar-se, mas de dominar os sofisticados mecanismos de relações internacionais (econômicas e
diplomáticas)” (MUNANGA, 1993, p. 101). Kabengele Munanga chamou a atenção para o triste
fato de que, embora a esperança depositada na independência fosse a da concretização da igual-
dade social e racial, isso não ocorreu. O sonho com o futuro promissor tornou-se cada vez mais
utópico, pois as independências mantiveram abismos sociais, políticos e culturais entre negros e
brancos (MUNANGA, 1993, p. 103).
Nesse sentido, o processo de formação de uma nação livre não foi tão simples como faziam
crer as utopias. Um dos primeiros empecilhos era a sórdida herança colonial. As elites políticas
africanas acreditavam ser incapazes de governar, particularmente quando a ordem mundial era
moderna, ocidental e branca por excelência. A esse respeito, Munanga declara:
na cabeça das elites dirigentes provavelmente estivesse a consciência do atraso
que o continente tinha em matéria de desenvolvimento, em relação à Europa.
Essa consciência chegou a ser um complexo contra o qual se deveria lutar. As
armas para essa batalha eram aquelas que o colonizador lhes havia ensinado: a
escola, a industrialização, a ciência e a tecnologia. (MUNANGA, 1993, p. 102)
Esse primeiro passo rumo à emancipação foi muito errado, afirma o professor. Uma partida erra-
da levou os países a perderem-se no caminho. As elites africanas, influenciadas pelo legado imperialista,
intentando adentrar “no concerto das nações modernas”, estabeleceram metas externas e desconside-
raram sua própria realidade, suas tradições, suas singularidades. Assim, para dar conta das metas que
colocariam a África rumo ao desenvolvimento, grande parte das elites procurou investir em escolas,
industrialização, ciências e tecnologia, desconsiderando a agricultura – uma tradição milenar de diver-
sos povos africanos.
Devido a essas escolhas alguns anos após a independência, a produção de alimentos não
acompanhou o crescimento demográfico. Do Senegal ao Chade até a zona da savana mergulhou
na miséria. A falta de investimentos em infraestrutura e a orientação ainda colonialista fez com que
a economia africana fosse orientada e controlada pelo exterior. Ou seja, a ideologia colonizadora
ainda era presente.
114 História da África e da cultura afro-brasileira
tecnológica. Como resultado, houve e expressiva produção de artigos de alta tecnologia. Com isso,
segundo Muniz Gonçalves Ferreira (2005, p. 10), acentuou-se a subalternidade econômica dos
países africanos no comércio mundial, aumentando os abismos que separam as economias mais
precárias daquelas do mundo tecnológico e digital.
Assim, se internamente havia o desafio da formação nacional, externamente era preciso
conjugar com forças muito poderosas, com as quais a maioria dos países não possuía afinidades.
Entretanto, adentrar no mundo moderno pressupunha, obrigatoriamente, mostrar-se tecnológico
e digitalizado.
Essa tentativa de inserção produziu o aumento pelas demandas em pesquisas, em financia-
mentos e consumo dos novos produtos, lançaram a maior parte dos países do continente africano,
ainda muito debilitados pelo recente processo de colonização, em um processo efetivo de exclusão.
“Excluídos do centro dinâmico da economia mundial, pelo monopólio tecnológico dos países cen-
trais, descobrem-se também excluídos dos créditos e financiamentos por pesquisas e desenvolvi-
mento tecnológico e com exorbitantes dívidas a pagar” (FERREIRA, 2005, p. 10).
Essas intensas dificuldades que os países africanos encontram para se equiparar economi-
camente as outras nações são reflexos do processo colonialista, o qual ainda é presente em grande
parte do continente africano, demonstrando que o legado da exploração continua repercutindo
tanto na ideologia da elite política interna quanto na mentalidade do capital financeiro, que ainda
vê a África como “um bolo que pode render muitas fatias”, tal qual pronunciou o rei Leopoldo II
da Bélgica, em 1884.
poder, por meio de uma identificação cultural, falseando uma conjuntura e demonstrando a fragi-
lidade dos estados recém-criados, os quais precisariam de ajudas externas para se manter.
Dessa forma, atribuir meramente os conflitos a causas étnicas e culturais seria esconder
dirigentes políticos e estruturas estatais frágeis ou fragilizadas e, ainda, governos que tinham per-
dido o controle sobre grande parte de sua população e que, na tentativa de manter o controle,
recorriam à opressão, utilizando inclusive recursos provenientes de potências internacionais, fos-
sem elas capitalistas ou socialistas.
Por esses motivos, é impossível assumir a diversidade étnica como causa explicativa dos
conflitos. O professor e africanista Wolfgang Döpcke (2004, p. 18) afirma que essa explicação foi
tomada pelos grupos hegemônicos para justificar causas muito mais sólidas e interesses mais sór-
didos, escondidos por trás dos conflitos e das guerras civis. Conforme já analisamos, a riqueza
cultural de diversas etnias africanas foram apropriadas por ideologias políticas para a manutenção
do poder da elite dirigente. Dessa maneira, as diferentes etnias foram incitadas a desenvolver ódio
umas contra as outras, motivando as guerras patrocinadas pelas multinacionais, produtoras de
armamentos bélicos (DÖPCKE, 2004, p. 16-20).
Diante dessa perspectiva, outra maneira de controlar esses conflitos étnicos foi promovida
pelas próprias elites, que, com a permanência dos conflitos, conseguiriam se consolidar no poder.
O Estado faria a escolha pela “limpeza étnica”, alegando a impossibilidade de formação nacio-
nal por meio de grupos tão heterogêneos, extinguindo ou marginalizando um grupo específico
(particularmente quando opositores), perpetuando no poder determinados grupos e interesses, e
caracterizando as ditaduras.
Essas análises são relevantes para refletirmos os conflitos e as guerras civis no continente,
bem como os índices de pobreza extrema que caracterizam a realidade de grande parte da popu-
lação africana. As causas e a manutenção dos conflitos no continente não podem ser tomadas de
maneira isolada, pois são muito complexas.
Mesmo atualmente, a África experimenta tipos diferentes de guerra, com distintas causas
motivadoras. No passado, houve guerras pela libertação colonial, de separatismo étnico, de uni-
ficação étnica, sobre território e o percurso da fronteira, contra a opressão racial e pelo poder do
Estado. Esses conflitos existem no mundo inteiro, não são exclusividades africanas. Na África,
eles têm causa comum e profunda em virtude de um legado colonialista. Os graves conflitos
armados refletem uma profunda e duradoura crise de governabilidade, na qual o governo nega
sistematicamente para amplos grupos de suas populações a satisfação das necessidades básicas,
tanto materiais (como alimentação, saneamento, segurança) quanto as imateriais (identidade,
participação política, cidadania, autonomia).
A prevalência de uma cultura política de exclusão absoluta conforme demonstrou o profes-
sor DOPCKE:
Consequência, do modelo de estado que se instituiu em grande parte da África.
Um tipo de estado que foi criado na descolonização, por consenso internacio-
nal, mantido como entidade “juridicamente soberana” pelo sistema internacio-
nal e, sendo assim, dispensado da necessidade de buscar legitimidade interna
para sua sobrevivência. (DOPCKE, 2004, p. 19)
Os processos de independência na África do século XX 117
Nesse sentido, de acordo com Dopcke (2004), a paz no continente africano estava irremedia-
velmente atrelada a um amplo e profundo processo de transformação social, pela via da ampliação
da construção da cidadania e da participação política dos indivíduos.
As bases dos conflitos estão instaladas no modelo colonial e no legado deixado por esse
sistema no continente africano. Somada a essa herança, a conjuntura política, histórica e cultural
que emergiu após a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, o fortalecimento da Guerra Fria
sobrecarregavam os países recém-formados em uma série de impasses, que, acalorados com as
conjunturas internas das nações, resultaram e resultam em guerras constantes.
Para finalizarmos, precisamos reiterar que o conflito intenso e frequente o qual o continente
africano presencia tem origens em diversas vertentes. Embora o processo de formação dos estados
nacionais tenha acontecido de maneira externa e à revelia da realidade étnica, social e cultural do
continente, esse aspecto não corresponde à causa única das atrocidades cometidas naqueles terri-
tórios. A busca pelo poder, pela manutenção do poder ou pela manutenção de privilégios produziu
e produz a exclusão da grande maioria da população africana do acesso aos elementos básicos para
a garantia da dignidade da pessoa humana. O incentivo às guerras é uma forma de as industrias
armamentistas manterem o mercado em intenso movimento. As grandes potências capitalistas
lucram com a exploração da miséria e com a manutenção dos conflitos internos, impedindo que
diversos países tenham condições de se tornarem potenciais concorrentes.
Considerações finais
A maioria dos países da África tropical acedeu à independência entre 1957 e 1968. Salva
exceção, essa independência não foi adquirida pelas armas, mas pelas campanhas organizadas, fei-
tas de manifestações de rua, de greves gerais e boicotes e, de ideologias nacionalistas. Tudo acom-
panhado por delicadas negociações políticas. O processo de independência dos países da África
levou, ao todo, trinta e três anos para se efetivar – desde a independência de Gana em 1957 até a
da Namíbia em 1990.
Ao processo de independência seguiu-se, portanto, uma multiplicidade de conflitos inter-
nos, chegando a sangrentas guerras civis. O legado deixado pela colonização europeia aos países
africanos teve influência decisiva na dinâmica dos conflitos. Como vimos nos itens anteriores do
capítulo, os países africanos não foram formados a partir de processos históricos de estruturação
de Estados-nação, não houve acordos integracionais de divisão de poder entre diferentes interes-
ses, mas, conforme analisou Lunardon:
O domínio europeu instaurou fronteiras artificiais e, muitas vezes, designou
as benesses econômicas e políticas do poder a um grupo, em detrimento de
outros. Quando as potências colonizadoras saíram do continente estas fron-
teiras não foram revistas. Os Estados tornaram-se independentes através de
disputas tanto internas quanto com a metrópole colonial, ou, então, mantendo
o sistema de discriminação de uma elite beneficiada em relação a outros grupos.
(LUNARDON, 2010, p.11)
118 História da África e da cultura afro-brasileira
A mídia internacional, muitas vezes noticia as rivalidades étnicas como a principal causa
desses conflitos e oculta os interesses econômicos externos neles envolvidos, os quais, muitas
vezes, beneficiam-se, como nos tempos do imperialismo, da desestruturação social e econômica
das nações africanas.
de facto, quase de direito, para muitas populações africanas, o paraíso travestiu-se em fomes,
pandemias, desemprego, tantas vezes mesmo numa arma constantemente apontada à cabeça.
Na verdade, muito rapidamente, golpes de estado e movimentos golpistas sucederam-se ao
optimismo fundacional das declarações de libertação e independência.
Atividades
1. O que foi o imperialismo ou neocolonialismo do século XIX? Em que contexto ele aconteceu?
4. Por que se pode afirmar que, além das causas internas alegadas pela mídia internacional
(como questões étnicas e tribais), fatores externos, contemporâneos, estão entre os princi-
pais provocadores das guerras civis e da desestabilização política e econômica das nações
africanas?
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8
Cultura afro-brasileira:
elementos constitutivos e vivências
século XIX. Mas nomeamos desta maneira um espaço de conquista, que demandou lutas constan-
tes e contínuas.
A construção do “lugar do negro” na sociedade brasileira ficou, portanto, particularmente
intensa com os debates que surgiram em torno da abolição da escravatura. Naquele contexto, os
políticos, intelectuais e juristas perguntavam-se sobre como deveria ser a inclusão dos negros no
debate e sobre qual era o lugar que os negros livres deveriam ocupar na formação da nação. Procurando
manter os privilégios da elite branca, esses debates foram intensos, principalmente quando afronta-
dos com a resistência do povo negro em legitimar seus espaços na sociedade que se formava.
Se o “lugar do negro” era questionado na esfera pública (na política, no novo código crimi-
nal de 1890 ou no estereótipo da imagem do brasileiro), ele se impunha com todas as forças no
semblante da população brasileira. O Brasil era um país negro, miscigenado de corpo e de alma.
Entretanto, tal constatação foi maquiada, escondida e camuflada por parte da elite governante, que
almejava, a todo custo, forjar a nação brasileira nos padrões dos países europeus. Esse momento da
nossa história é extremamente importante para entendermos as resistências da cultura negra dian-
te da hegemonia cultural e política que intentava “branquear o Brasil”, tanto na cor da pele quanto
nas manifestações culturais.
4 A respeito do conceito de raça, conforme o utilizamos ao longo deste capítulo, e de acordo com o entendimento que
vigorou por um longo período no pensamento social brasileiro, torna-se pertinente esclarecer que se refere a uma clas-
sificação social, historicamente construída, que permeia as relações entre os indivíduos e a estrutura social. Conforme
as definições de Edward Telles (2003, p. 38), o conceito de raça tornou-se uma maneira de classificar e tratar o outro de
acordo com as ideias socialmente aceitas, ou seja, “o uso do termo raça fortalece distinções sociais que não possuem
qualquer valor biológico, mas a raça continua a ser imensamente importante nas interações sociológicas e, portanto,
deve ser levada em conta nas análises sociológicas [e históricas]”.
126 História da África e da cultura afro-brasileira
5 Segundo Kwame Appiah (1997, p. 33), durante o século XIX, o conceito de raça foi apropriado pela ciência. Muitas
doutrinas diferentes competiram pelo termo racismo. Entretanto, o termo que nos interessa neste momento é o de racialis-
mo, definido pelo autor como a doutrina segundo a qual existem características hereditárias possuídas por membros da
nossa espécie que nos permitem dividi-los em um pequeno conjunto de raças, de tal modo que todos os membros dessas
raças compartilham entre si certos traços e tendências que eles não têm em comum com membros de outras raças.
6 Para saber mais, ver Santos (2017).
Cultura afro-brasileira: elementos constitutivos e vivências 127
relacionadas ao princípio que, para construir uma nação equiparada às europeias era necessária a
prevalência da raça branca, ariana.
Essas ideias estiveram diretamente associadas ao imperialismo europeu, ou seja, para a
Europa era conveniente disseminar e legitimar a inferioridade de outros povos. A partir da infe-
riorizarão das outras civilizações (particularmente as africanas ou as de clima tropical) eles encon-
travam argumentos para adentrar nessas sociedades com a justificativa de “salvá-las” do atraso e
da selvageria.
Esse aspecto é fundamental para entendermos como as teorias racialistas (também conhe-
cidas por deterministas) encontraram um ambiente propício na intelectualidade brasileira. Havia
a pretensão entre a elite intelectual e dirigente de o Brasil se igualar às nações europeias e, ainda,
a vantagem que os europeus desfrutavam em comprovar, por meio da ciência de grande aceitação
no contexto da época. Assim, a melhor raça, a mais apta à civilização era aquela que fosse ou se
parecesse com o europeu, particularmente o branco.
As doutrinas racialistas, também chamadas de deterministas, afirmavam: os homens se
diferenciavam em grandes grupos chamados de raças, os quais tinham certa unidade física que
lhes conferiria determinadas características psicológicas e culturais. E a distância entre essas raças
seria tão grande que, para alguns racialistas, configurariam espécies diferentes de seres humanos
(SANTOS, 2017, p. 155)7.
A questão racial emergiu com força determinante com a publicação de obras que fizeram
muito sucesso com os cientistas europeus. Dois autores contribuíram para o alastramento dessas
teorias – Arthur de Gobineau (1816-1882) e Louis Agassiz (1807-1873). Segundo a análise do fran-
cês Gobineau, realizada em cerca de um ano de observação da realidade brasileira, enquanto esteve
em nosso país como diplomata, o Brasil apresentava uma natureza tão suntuosa que pouca chance
dava à ação humana, ou seja, não haveria lugar para o homem em meio a uma natureza tão magnâ-
nima. Para o diplomata, além das florestas quase inóspitas, havia também a “natureza de seu povo”.
A mistura de raças teria produzido no Brasil um povo degenerado, incapaz de formar uma civilização.
Outra importante obra que circulou sobejamente entre a intelectualidade brasileira do perío-
do foi a do viajante suíço Louis Agassiz. Ele passou pelo Brasil no fim do século XIX com a função
oficial de observar, desenhar e coletar diferentes espécimes da flora e da fauna brasileira. Paralelo
às observações botânicas, Agassiz analisou a sociedade brasileira e ficou assustado com a mistura
racial do brasileiro. Segundo ele, tais misturas, atreladas ao clima tropical haviam “deteriorado” a
sociedade brasileira e instigou a qualquer um que duvidasse dos males provocados pela miscigena-
ção que visitasse o Brasil para observar a teoria na prática8. Para este viajante, a mistura das raças
provocara no Brasil a incapacidade da construção de um povo saudável e capaz.
De acordo com esses dois diagnósticos, apontamos: esses aspectos sobre a realidade brasilei-
ra feitos por estrangeiros europeus no fim do século XX são extremamente importantes para pen-
sarmos o Brasil multicultural e a presença do povo negro. A construção da nação brasileira esteve
9 Estas ideias foram defendidas por Afrânio Peixoto, médico, professor, político e literário brasileiro do início do
século XX, ferrenho defensor do branqueamento da população brasileira. Para saber mais, ver Santos (2017).
Cultura afro-brasileira: elementos constitutivos e vivências 129
solução para os traços fisiológicos. Negar a manifestação da cultura negra era a solução, segundo
aquela elite política, para o branqueamento moral. Perseguições, condenações, criminalizações de
tudo o que representasse a matriz cultural africana se tornou a ordem do dia e passou a ser tratado
como caso de polícia.
Essa constatação revela as ideias ainda prevalentes para o senso comum sobre a existência de
diferentes raças. Nesse sentido, é preciso observar que o conceito de raça precisa ser analisado pelo
viés político. Conforme expõe o professor Antônio Sérgio Alfredo Guimarães:
É precioso teorizar as “raças” como o que elas são, ou seja, construtos sociais,
formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, mas eficaz, social-
mente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios. Se as raças
não existem num sentido estritamente realista de ciência, ou seja, se não são
um fato do mundo físico, são, contudo, plenamente existentes no mundo social,
produtos de modos de classificar e de identificar que orientam as ações dos seres
humanos. (GUIMARÃES, 1999, p.153)
Tratam-se, portanto, de construções conceituais que serviram (e por vezes ainda servem)
para perpetuar privilégios, para demarcar espaços, legitimando diversas e diferentes atrocidades
cometidas contra a liberdade, a dignidade e a humanidade.
população para que a nação brasileira se efetivasse e se equiparasse às nações modernas e civiliza-
das. A elite política investiu na imigração a fim de angariar europeus com o objetivo de aumentar
o “sangue branco”, proporcionando maiores possibilidades de miscigenações e efetivando o pro-
pósito de, em menos de cem anos, ou em no máximo três gerações, a população brasileira estar
inteiramente branca.
Esse segundo grupo também defendia a colonização portuguesa como vantagem ao Brasil,
pois os lusitanos seriam muito mais acessíveis, amenos e tolerantes que os anglo-saxões. Tornar
positiva a colonização praticada por Portugal aconteceu na medida em que a elite política e inte-
lectual pretendia legitimar o branqueamento da raça e o processo histórico da escravização come-
tida pelos colonizadores.
A defesa da escravização caracterizada por relações afetivas e, por vezes, amenas, ou de os
portugueses serem bastante tolerantes com as etnias diferentes, foi a base na qual se propagaram
as teorias que defendiam a miscigenação do povo brasileiro, com vistas à “melhoria da população”.
Com base nisso, iniciou-se este pensamento: no Brasil, as raças mesclaram-se, misturaram-se sem
empecilhos, por isso seriam a comprovação da não segregação de raças na sociedade brasileira, isto
é, aceitas, inseridas, adaptadas e misturadas de maneira democrática.
Essa perspectiva foi racionalizada teoricamente por Gilberto Freyre, na obra Casa-grande e
senzala, publicada originalmente em 1933. O intelectual e teórico social pernambucano propunha
resposta às teses que defendiam o branqueamento da população. Pautado nos estudos mais recen-
tes de pesquisadores e antropólogos norte-americanos, Freyre (2005) defendia a ideia de que era
necessário reconhecer que o Brasil não era – e possivelmente nunca seria – uma nação com popu-
lação branca, conforme queriam os defensores da tese do branqueamento. Em vez de ser a “Europa
dos trópicos”, o Brasil estaria destinado a ser “um novo mundo nos trópicos”, alegava o intelectual
(FREYRE, 2005).
De acordo com a análise de Andrews (1997, p. 98), Freyre propôs que a nação brasileira
precisaria reconhecer suas singularidades e assumir as diferenças diante do Velho Mundo, reco-
nhecendo que o Brasil era um experimento único no qual europeus, índios e africanos tinham se
juntado para criar uma sociedade multirracial e multicultural.
Andrews (1997) sustenta: Freyre horrorizou-se com eventos violentos de segregação racial,
incluindo um linchamento que presenciara quando estudou nos EUA, na década de 1910. Além
das diversas influências intelectuais que Freyre teve para desenvolver sua teoria, Andrews (1997)
assinala: o fato de ter presenciado violências e brutalidades de origem étnica-racial nos estados
norte-americanos do Sul afetou o intelectual, buscando refúgio em suas memórias de infância –
quando fora um menino da casa-grande – para construir a tese de que no Brasil casos semelhantes
de violência nunca existiram.
No auge de suas defesas, o intelectual chegou a propor: o Brasil teria presenciado, no que
se refere ao convívio entre diferentes etnias, “uma das uniões mais harmoniosas da cultura com a
natureza e de uma cultura com a outra que as terras deste Hemisfério [Sul] já conheceu” (FREYRE,
2005, p. 438). Essa união seria
Cultura afro-brasileira: elementos constitutivos e vivências 131
Como resultado dessas misturas, Freyre afirmou na versão norte-americana da obra Sobrados
e mucambos, publicada em 1963, em Nova York, que “o Brasil está se tornando mais e mais uma
democracia racial, caracterizada por uma combinação quase singular de diversidade e unidade”
(FREYRE apud ANDREWS, 1997, p. 98).
As sínteses elaboradas por Freyre não apresentavam ideias inéditas ou originais, mas canali-
zavam uma representação popularizada das relações entre negros e brancos no país (DOMINGUES,
2005). Era a perspectiva que a classe dominante queria ver transformada em ideologia racial ofi-
cial. Portanto, baseado nesse ponto de vista: “Freyre não fundou o mito da democracia racial, mas
o consolidou, elevando ao plano considerado científico um imaginário das relações raciais, forte-
mente arraigado no pensamento nacional” (DOMINGUES, 2005, p. 118).
A tese de uma relação harmoniosa entre as distintas etnias que formaram o Brasil e de que
tanto o negro quanto o indígena teriam sido completamente assimilados pela sociedade brasileira
vigorou por um longo período no pensamento social brasileiro. Gilberto Freyre sintetizou uma
explicação sociológica da formação da sociedade brasileira e formulou uma teoria que agradou às
demandas da classe dirigente.
Alterar o foco da raça para a cultura e defender que no Brasil as misturas étnicas acontece-
ram de maneira harmoniosa, equilibrada, pacífica e igualitária representavam a consolidação da
imagem do Brasil como um “novo mundo” de fato e, principalmente, apresentavam à elite dirigente
da nação, em grande parte herdeiras da casa-grande, como uma classe tolerante, amigável e frater-
na. Ou seja, contribuía para forjar uma ideia sobre a composição da população brasileira e passar
uma imagem otimista dos senhores de escravos, que por meio dessas prerrogativas passavam a ser
vistos como “bondosos, generosos e paternais”.
O mito da democracia racial brasileira contribuiu, segundo a perspectiva crítica da teoria,
para camuflar a violência da escravidão praticada pelos senhores de engenho; silenciar os precon-
ceitos; disfarçar o abismo social, que separava o negro do branco no Brasil; impedir a luta pela
cidadania plena; dificultar os debates sobre o Brasil nunca vivenciar a igualdade étnica ou racial; e,
por fim, denunciar que o preconceito e a segregação racial brasileiras são camufladas, dissimuladas
e igualmente violentas.
As críticas à tese da democracia racial surgiram desde o momento da sua consolidação por
parte daqueles de que se esperavam maiores aplausos: os afro-brasileiros. Embora alguns inte-
lectuais afro-brasileiros tenham aderido à defesa da tese da democracia racial, particularmente
quando comparavam a realidade brasileira à realidade norte-americana do fim do século XIX e
início do XX, parte significativa de escritores e intelectuais negros debatiam as incongruências da
democracia racial desde a sua propagação, como pode ser comprovado por meio de escritos como
o escritor mulato Tito Lívio de Castro10.
Outro exemplo pode ser encontrado nas obras do advogado, escritor e ativista trabalhista
mulato Evaristo de Morais11. O que esses dois intelectuais negros produziam em comum era o
ataque às estruturas raciais norte-americanas, entretanto, diferente da hegemonia da classe inte-
lectual do período, eles ponderavam a efusão com que se propagavam as ideias de que no Brasil
não haveria tais comportamentos.
Diversos escritores afro-brasileiros admitiam as transgressões dos Estados Unidos, mas adver-
tiam que isso não significava necessariamente que o Brasil fosse racialmente igualitário (ANDREWS,
1997, p. 99). O que os afro-brasileiros sentiam na pele – e por isso podiam se posicionar com mais
propriedade – era o extremo oposto daquilo que a elite política se vangloriava em publicar, de que
no Brasil não haveria “a linha da cor”, de que todos tinham acesso igualitário a tudo.
O pesquisador George Reid Andrews (1997) pondera: não é preciso ser um atento observa-
dor da realidade brasileira para constatar que, já no início do século XX, a ideia da democracia racial
era uma falácia. Segundo esse mesmo estudioso, a própria imprensa afro-brasileira denunciava a
inviabilidade da democracia racial na prática.
A discriminação que os não brancos sofriam em busca de empregos, educação
e outras oportunidades de progredir. Ela [a imprensa afro-brasileira] notava
também uma das contradições internas menos óbvias da ideologia: embora
afirmando a igualdade de todas as raças, a democracia racial expressava simul-
taneamente, nítida preferência por mulatos racialmente mistos com relação a
pessoas de ascendência inteiramente africana. (ANDREWS, 1997, p. 100)
Se era possível camuflar a discriminação de cor, estava cada vez mais difícil ignorar a discrimi-
nação social – pilar a partir do qual se constituíram as relações privilegiadas no Brasil. Nesse sentido,
os negros representavam a gigantesca camada social mais pobre. A consolidação desse abismo que
separava os negros dos brancos pode ser identificada desde os primeiros momentos da formação da
população brasileira, quando escravizados nada possuíam, por uma questão óbvia. A abolição da
escravatura não veio acompanhada de nenhuma política de reparação àqueles que foram arrancados
de suas terras e que prestaram enormes serviços à nação. Pelo contrário, os indenizados pela “perda
de patrimônio” foram os senhores proprietários dos escravizados.
Assim, as primeiras críticas à tese da democracia racial foram elaboradas por alguns negros
já nos anos de 1930 e 1940. Entretanto, os debates produzidos por eles se propagavam por meio de
obras literárias ou da imprensa diária, ou seja, estavam fora dos discursos intelectuais e acadêmicos.
Na academia, Gilberto Freyre dominava de maneira quase hegemônica. Os primeiros questiona-
mentos à teoria da democracia racial só se propagaram nos espaços universitários quando institui-
ções internacionais começaram a exercer pressão sobre o Brasil, conforme identificou o pesquisador
Andrews (1997, p. 100). O primeiro evento que proporcionou o questionamento da teoria foi a ação
promovida pela então recém-criada Unesco (Organização Educacional Científica e Cultural das
Nações Unidas), no início de 1950. Como parte de sua missão institucional, a Unesco adotara, desde
os horrores promovidos pelo Holocausto, a ação de combater exaustivamente o racismo.
Conforme relata Andrews (1998), a teoria da democracia racial brasileira parecia oferecer
uma alternativa promissora para a efetivação da missão. Dessa maneira, a Unesco disponibilizou
equipes para realizar pesquisas em diversas cidades brasileiras no intuito de compreender como a
tal igualdade racial acontecia na prática. Entretanto, os resultados obtidos não foram os esperados:
“Todas as equipes constataram elevados níveis de desigualdade entre as populações branca e não
branca, além de fortes evidências de atitudes e estereótipos racistas” (ANDREWS, 1998, p. 101).
Esses e outros eventos semelhantes marcaram, segundo o pesquisador, o reconhecimento
de graves falhas na suposta democracia racial do Brasil e abriram caminho para as críticas contun-
dentes à teoria dentro da academia. O que as novas pesquisas demonstraram era a prevalência de
preconceitos, desigualdades e discriminação racial na realidade brasileira. Os números coletados
nos censos comprovaram: “os negros e mulatos apresentavam nítida desvantagem com relação aos
brancos; e mesmo nos casos em que os afro-brasileiros tinham níveis competitivos de instrução e
experiência profissional para o mercado de trabalho, eram preteridos, em favor de brancos com o
mesmo preparo” (ANDREWS, 1998, p. 203). Mesmo sendo constatadas como “mito”, as consequên-
cias da teoria da democracia racial brasileira foram intensas e permanentes para a população negra.
Pautados na ideia de não haver preconceito de cor e de raça no Brasil, prevaleceu a ideia de
que cada um triunfaria por meio de suas capacidades pessoais. Nenhum pressuposto legal – como
o que ocorria nos EUA ou na África do Sul – impediria o negro brasileiro de conquistar seus espa-
ços sociais no mundo público ou no mercado profissional. Essas ideologias, fortemente prevalentes
na mentalidade brasileira, atribuíam unicamente ao indivíduo as suas chances de mérito ou de
fracasso. Para Andrews:
Se os negros fracassaram em sua ascensão na sociedade brasileira, evidente-
mente isso foi por sua própria culpa, pois essa sociedade não reprimiu nem
obstruiu de modo algum o seu progresso. A realidade continuada da pobreza e
marginalização dos negros não era vista como uma refutação da ideia de demo-
cracia racial, mas sim como uma confirmação da preguiça, ignorância, estupi-
dez, incapacidade etc., o que impedia os negros de aproveitar as oportunidades
a eles oferecidas pela sociedade brasileira. (ANDREWS, 1998, p. 210)
A perversidade dessa ideologia se espalhava por diversos espaços. Pautados na ideia de que
o país vivia uma igualdade racial, o poder público se eximia das responsabilidades provenientes
do processo histórico da escravização; os parlamentares se sentiam desobrigados de atuar legis-
lativamente para combater o preconceito ou para propor políticas públicas de acesso igualitário
à cidadania; os movimentos sociais ficavam silenciados ou impedidos de colocar o problema da
discriminação em pauta, visto que, ao negar o preconceito racial, contribuía-se para desarticular a
luta política antirracista, pois não se combate o que não existe; e, ainda, liberava a sociedade civil
da responsabilidade de denunciar o preconceito, de exigir a equidade e de apontar a hegemonia
social dos brancos, os abismos sociais existentes entre negos e brancos e de identificar os privilégios
presentes na cor da pele.
A existência da desigualdade foi atribuída a uma herança arcaica da escravização, que teria
acomodado o negro a ser controlado, governado, submisso. A hegemonia da cultura branca foi
vista como uma consequência “natural” de valorização daquilo que “era melhor”. A prevalência
134 História da África e da cultura afro-brasileira
do estereótipo da beleza ser sempre branca nunca foi questionada como um preconceito de cor
e de raça. O fato de grande parte da população negra não conseguir chegar aos bancos escolares,
particularmente os universitários, foi atribuído a uma suposta má vontade por parte dos indiví-
duos e não como consequência do preconceito dissimulado, da falta de políticas de promoção da
igualdade ou da inexistência da atuação do poder público em promover condições de igualdade.
Conforme Petrônio Domingues (2005):
Do ponto de vista do discurso da ideologia racial no pós-abolição (a saber,
o da democracia racial), as oportunidades eram dadas igualitariamente para
negros e brancos. Mas como os negros não as aproveitavam, concluía-se que
eram incompetentes, incapazes e/ou inferiores. Portanto, uma das dimensões
psicológicas do mito da democracia racial foi ter reforçado o “complexo de
superioridade” no branco e, em contrapartida, desenvolvido no negro o “com-
plexo de inferioridade”, isto é, fez o negro sentir-se responsável pelos seus
próprios infortúnios. Assim, a classe dominante transferiu ao negro a culpa
por todas as mazelas que o afetavam. (DOMINGUES, 2005, p. 126)
Enquanto nos EUA o processo era cruel e sangrento, no Brasil haveria a harmonia racial. A esse
respeito, mencionamos parte de um artigo publicado no jornal O Clarim da Alvorada, publicação que
fazia parte da imprensa negra paulistana, organizado por José Correia Leite e Jayme de Aguiar, o jornal
foi publicado entre 1924 e 1932.
Ao longo de sua publicação, o jornal foi apresentado em diversos formatos. Uma mudança
drástica na linha editorial transformou O Clarim da Alvorada em um elemento fundamental na cons-
trução de uma consciência política e social no meio negro. A redação ficava na Rua Major Diogo,
na região do Bixiga, em São Paulo. Mas pouca gente precisava ir até lá para pegar seu exemplar.
O forte de distribuição do Clarim e de todos os outros jornais eram os tradicionais bailes negros.
Leite e Aguiar consideravam essas agremiações dançantes como papel fundamental na “con-
dução dos jovens negros que vêm crescendo sem acompanhar a evolução grandiosa do Brasil de
hoje, pois era lá que eles se reuniam com frequência” (GONÇALVES, 2015).
No artigo cujo trecho é transcrito a seguir, não foi atribuída autoria, o que leva a concluir,
segundo Petrônio Domingues (2005), que tenha sido escrito por José Correia Leite ou por Jayme
de Aguiar, os editores do jornal. O trecho do jornal, transcrito no artigo de Petrônio Domingues
(2005), denunciava:
Enquanto o negro norte americano desbotôa o peito e se atira contra o branco
n’uma luta exterminante, barbara e sanguinária, arrastado pelo ódio mor-
tal; enquanto corre pelas sargetas os jactos estenuantes de sangues irmãos,
o negro brasileiro estende a mão da fraternidade aos seus irmãos brancos e
fortallecem o cunho de amisade que os ligam porque apesar de tudo, do nosso
esforço educativo, não nutrimos ódio contra quem, em épocas longínquas,
dominou pelo poderio e venceu pela chibata. Em abro teu peito de negro e
beijo teu coração escarlate. A mão do branco não se mancha em apertar a mão
do negro. No Brasil não há preconceitos. (O CLARIM DA ALVORADA apud
DOMINGUES, 2005, p. 122)
Com base na descrição do Jornal afro-brasileiro e, principalmente com o teor do artigo, des-
crito acima, evidenciamos o fato de que a suposta “democracia racial” perpassava o discurso da elite
dirigente e atingia um âmbito significativo de constituição dos espaços da sociedade negra, como era
a imprensa. Acreditar que a ausência de uma legislação segregacionista era sinônimo de ausência de
preconceito foi recorrente na sociedade da época, e influenciou diversos espaços sociais.
Embora o termo movimento negro tenha ganhado amplo destaque nas últimas décadas e este-
ja aparecendo constantemente na grande mídia como protagonista de diversos momentos de ações
mobilizadoras contra o preconceito racial, na luta pela igualdade efetiva de direitos e pela propaga-
ção do orgulho da cor negra e da cultura afro-brasileira, a organização sistematizada dos negros pelo
combate às desigualdades raciais na sociedade se constituiu paralelamente ao processo de inserção
do negro livre na sociedade capitalista, ou seja, a mobilização por meio do movimento organizado
ocorreu ao longo do processo histórico brasileiro, e não representa um movimento localizado ape-
nas nas últimas décadas, como a mídia propõe.
Segundo o pesquisador Petrônio Domingues (2005), é possível identificar três momentos
singulares da organização do povo negro no Brasil republicano. A primeira fase está situada entre
1889 até 1937, a segunda de 1945 até 1964 e a terceira de 1978 até a atualidade. O autor argumenta
que essas fases não são estanques ou lineares, mas marcadas por contradições, avanços e estagna-
ções de diversas ordens e precisam ser analisadas mais detalhadamente e paralelamente aos proces-
sos políticos mais abrangentes, envolvendo toda a sociedade civil.
Nesse sentido, adotaremos essa divisão para acompanharmos as pautas de luta e de orga-
nização da população negra a partir do contexto social, político e cultural do Brasil e, principal-
mente, para demonstrar que a luta pelo combate ao preconceito e pela igualdade de fato foi uma
constante para esse grupo, que não recebeu – como pressupunha – o mito da democracia racial e
os direitos propostos pela constituição, conforme apregoava a democracia republicana brasileira.
Adotaremos, portanto, essa divisão e os trilhos indicados pelos três momentos distintos da história
política brasileira para compreendermos com mais detalhes as reivindicações da população negra,
a inserção dessas demandas nas pautas políticas, as resistências que enfrentaram e as lutas diante
das pretensões da elite em se apresentar como branca, ocidentalizada moderna e capitalista.
Nesse sentido, é preciso considerarmos que desde antes da lei que pôs fim à escravização no
Brasil, libertos, ex-escravos e seus descendentes passaram a instituir e organizar movimentos com o
objetivo de fazer uma mobilização racial negra, utilizando-se da criação de grêmios, clubes, irman-
dades ou associações. Petrônio Domingues (2007, p. 105) afirma que “nessa etapa, o movimento
negro organizado era desprovido de caráter explicitamente político, com um programa definido e
projeto ideológico mais amplo” e esses espaços de posicionamentos apresentavam e divulgavam as
primeiras lutas coletivas, pautadas no sentimento de um grupo que pretendia combater e denun-
ciar as teorias racialistas e a marginalização relegada à maior parte da população negra. Surgiram
então espaços coletivos com o objetivo de garantir tanto a assistência social quanto a disseminação
de cultura para a população negra, demonstrando o poder de articulação e de mobilização social
que a força coletiva poderia angariar.
Além das associações, agremiações e afins, outro espaço de presença negra coletiva se efetivava
por meio da divulgação de jornais, era a chamada imprensa negra. João Baptista Borges Pereira (2011,
p. 280) ressalta que uma das preocupações dessa imprensa, particularmente na década de 1910 até
1930, era desarticular estereótipos sociais sobre a população negra. O combate aos preconceitos pro-
pagados pela sociedade e as “falsas ideias” acerca do negro era uma das linhas editoriais dos jornais.
Cultura afro-brasileira: elementos constitutivos e vivências 137
Entretanto, para desconstruir os estereótipos que atribuíam aos negros a imagem de vaga-
bundos, malandros, acomodados, alcoólatras, depravados, a imprensa negra se valia de um re-
curso que posteriormente foi bastante criticado: o da acomodação dos negros aos estereótipos
hegemônicos. Segundo Pereira: “essa imprensa manifestava grande preocupação pedagógica, ao
tentar ensinar aos negros como viver entre brancos, como dominar suas maneiras de trajar, suas
etiquetas, como se portar civilizadamente à mesa de refeição” (PEREIRA, 2011, p. 281). Ou seja, a
desconstrução dos estereótipos não era causada pelo enfrentamento da sociedade que produzira os
rótulos, mas na proposta de adaptar-se ao mundo hegemônico.
No decorrer da década de 1920, a cultura negra foi alvo de atenção por parte dos integrantes
da Semana de Arte Moderna, os chamados modernistas. A partir desse movimento houve uma
exaltação da negritude brasileira. Entretanto, os atores sociais que tiveram destaque no movimento
não eram negros. Sem essa presença, Pereira analisa (2011, p. 282): foi a exaltação daquilo que se
entendia por cultura negra, apropriada como sinônimo de popular e de folclórico.
Segundo João Baptista Borges Pereira:
O negro como ator social ressurge na transição da década de 1930 (século XX)
na figura da Frente Negra Brasileira, idealizada e liderada por Arlindo Veiga dos
Santos, professor da Faculdade de Filosofia São Bento e jornalista do Correio
Paulistano. (PEREIRA, 2011, p. 282, grifos do original)
Entretanto, Pereira (2011, p. 283) destaca que embora a principal proposta da Frente Negra
Brasileira (FNB) fosse a luta por conquistas de espaços do negro na sociedade, a pauta da luta se
processava dentro de um ideário conservador, formulada sob os auspícios da ascensão dos regimes
nazifascistas europeus e “pregava o retorno do país ao regime monárquico, ao mesmo tempo que
criticava o projeto imigrantista que havia beneficiado os estrangeiros” (PEREIRA, 2011, p. 283).
Embora marcada por uma ideologia conservadora, conforme comenta Luiz Carlos Barcelos
(1996, p. 196), no elogio da sociedade brasileira quanto à integração racial, em comparação com
a situação dos Estados Unidos, os méritos alcançados pela FNB foram significativos, chegando a
representar uma das primeiras organizações com reivindicações e pautas políticas mais delibera-
das, voltadas ao grupo. A entidade chegou a ter delegações em diversos estados brasileiros, arregi-
mentando um número significativo de pessoas e de instituições. A FNB mantinha escolas, grupos
musicais, teatrais, times de futebol, departamento jurídico, além de oferecer serviços médicos e
odontológicos, cursos de formação política, de artes e ofícios e publicava um periódico intitulado
A Voz da Raça, cujo subtítulo era “Deus, Pátria, Raça e Família”, o que demonstra tanto o aspecto
conservador dos seus líderes quanto as influências do contexto político para o movimento12.
A FNB, como grupo organizado, conseguiu representatividade significativa, foi recebida
pelo presidente Getúlio Vargas e teve algumas reivindicações atendidas. Entretanto, Domingues
(2007, p. 106) relata que no fim da década de 1930, a FNB tentou transformar-se em um partido
12 Já foram feitas diversas pesquisas sobre a atuação da Frente Negra Brasileira nos distintos estados da nação. Para
saber mais sobre a atuação da FNB no estado de Pernambuco, ver Silva (1994). Para saber mais sobre a atuação da FNB
na Bahia, ver Bacelar (1996). Para saber mais sobre a Frente Negra Pelotense (FNP), ver Loner (1999).
138 História da África e da cultura afro-brasileira
político, com o objetivo de “angariar votos da população de cor” e foi desfeita, perseguida e des-
mantelada pelo governo getulista.
Após o esfacelamento da Frente Negra Brasileira surgiu uma nova proposta que intentava
redefinir a identidade do grupo. Tratava-se do Teatro Experimental do Negro (TEN), liderado por
Abdias do Nascimento. A proposta inicial era encenar peças de repertório clássico do teatro uni-
versal utilizando apenas atores negros. Esses propósitos, entretanto, ampliaram-se e o TEN passou
a publicar um jornal, a oferecer cursos de alfabetização, de corte e costura e fundou o Instituto
Nacional do Negro, o Museu do Negro e organizou o primeiro Congresso do Negro Brasileiro,
transformando-se em um dos movimentos mais marcantes da ressignificação da identidade do
negro no Brasil.
No âmbito artístico, o TEN mobilizou a opinião pública ao realizar um concurso de artes
plásticas que teve como tema Cristo negro, justamente na ocasião do 36º Congresso Eucarístico
Internacional, realizado no Rio de Janeiro em 1955. No âmbito político, o movimento defendia
os direitos civis dos negros na qualidade de direitos humanos e propugnava a apresentação de leis
antidiscriminatórias, até então inexistentes13.
De acordo com Barcelos (1996), houve severas críticas ao TEN pelo seu caráter “elitis-
ta”. De maneira geral, o movimento foi, de fato, bastante criticado por “desconsiderar a grande
comunidade negra, que vivia nas fazendas de açúcar, nas favelas, nos alagados e nos pardieiros das
grandes cidades” (BARCELOS, 1996, p. 196). No entanto, a atuação do TEN aumentou o tom de
crítica às relações raciais no Brasil e militou pela proposta de criminalizar a discriminação racial.
Regina Pahim Pinto (1993) revela: foi o TEN que utilizou a palavra afro-brasileiro para designar o
negro e incentivou a valorização, ainda incipiente, das religiões afro-brasileiras e o reconhecimen-
to das escolas de samba como promotoras de cultura. Esses elementos foram fundamentais para a
fase seguinte das mobilizações.
A instauração do regime militar no Brasil desestruturou as ações coletivas do TEN, particu-
larmente quando os dirigentes partiram para o exílio14. Esse movimento sofreu com o regime dita-
torial, assim como todas as associações e mobilizações coletivas. Nesse sentido, houve um relativo
silenciamento e criminalização dos movimentos sociais desse contexto. Segundo Domingues, “os
militares acusavam os militantes negros de criar um problema que supostamente não existia, o ra-
cismo no Brasil” (DOMINGUES, 2007, p. 11). Assim, as mobilizações coletivas só ressurgiram em
1970, quando houve um arrefecimento do regime militar. Esses novos movimentos de mobilização
por parte da população negra representaram a terceira fase do movimento, chegando a caracterizar
as demandas atuais.
Diversos fatores de ordem internacional mobilizaram a organização dos grupos negros bra-
sileiros. O primeiro elemento propulsor foi, de acordo com Barcelos (1996), o fenômeno black soul,
que se manifestou nos EUA. Atrelado a essa manifestação cultural, houve um recrudescimento na
13 A primeira lei antidiscriminatória d o país, batizada de Afonso Arinos, só foi aprovada no Congresso Nacional em
1951, após o escândalo de racismo que envolveu a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham, impedida de se
hospedar em um hotel em São Paulo. Para saber mais sobre essa lei, ver Nascimento (1982).
14 Para saber mais sobre esse importante e interessante movimento, ver Nascimento (2004).
Cultura afro-brasileira: elementos constitutivos e vivências 139
luta pelos direitos civis naquele país, bem como os processos de descolonização dos países africa-
nos, que mobilizaram a criação de diversas organizações de luta pela igualdade de direitos e pela
criminalização dos preconceitos raciais.
Nesse sentido, no âmbito internacional, a década de 1970 foi de intensa mobilização que
repercutiu na esfera nacional, ampliando a criação de instituições, grupos e associações pautadas
nos debates raciais.
Foi, portanto, ao longo da década de 1970 que diversos grupos, movimentos, centros de
pesquisas e organizações foram criados, marcando um novo enfoque das relações raciais no Brasil.
Entre essas criações, o mais nítido projeto de mobilização racial contemporânea se materializou
com a criação, em 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU).
João Baptista Borges Pereira (2011, p. 282) descreve:
Na noite do dia 7 de julho de 1978, um grupo de jovens negros protestou na
escadaria do Teatro Municipal de São Paulo contra dois atos discriminatórios:
o primeiro referia-se à proibição de adolescentes negros de praticarem natação
em um clube da cidade; o segundo era endereçado ao regime militar que domi-
nava ditatorialmente o país e fora responsável pela prisão e morte de um ope-
rário negro. Nascia, assim, o Movimento Negro Unificado (MNU) que, dentro
de um referencial ideológico marxista, propunha reverter a situação do grupo
na sociedade brasileira a partir de uma reconstrução da identidade do negro.
Havia uma relação intrínseca entre a luta dos negros e a luta contra o capitalismo. “Na con-
cepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se beneficiava do racismo”
(DOMINGUES, 2007, p. 112).
Em virtude dessa vertente ideológica, o primeiro dos grandes diferenciais do MNU foi a
integração das variáveis raça e classe na prática política da organização; o segundo foi a tentativa
de articular as diversas organizações e grupos, atuando naquele momento, ou seja, unificando
todos os movimentos negros. Barcelos (1996, p. 200) aponta: logo nos primeiros encontros dos
militantes ocorreram alterações ideológicas no movimento, fazendo com que o grupo ficasse in-
dependente da direção da esquerda15.
As pautas de lutas travadas a partir do MNU delinearam a atuação dos grupos negros
engajados e militantes e fizeram com que a grande imprensa percebesse a existência organizada de
um movimento negro no Brasil. Na agenda de luta do MNU constava, segundo Pereira (2011) e
Domingues (2005), a luta pela desmistificação da suposta democracia racial brasileira; a redefini-
ção estética da imagem do negro; a eliminação de rótulos pelos quais em diferentes regiões do país
se nominavam o negro, defendendo a utilização do termo abrangente negro para denominar todos
os descendentes de africanos escravizados no país, unificando a luta e a identidade e utilizando-o
como motivo de orgulho; positivar e valorizar os moradores quilombolas; estimular a criação da
semana da consciência negra; utilizar Zumbi dos Palmares como símbolo da luta do povo negro;
esmaecer do imaginário popular a data de 13 de maio como o dia em que a liberdade foi “conce-
dida” aos negros e apontar para as lutas que levaram a essa conquista; exaltar a cultura chamada
negra (religião, música, nomes, culinária, trajes, palavras, danças e arte).
Por fim, o movimento de enfoque à educação como um dos mais poderosos recursos para
reverter os sinais da discriminação racial. Nesse sentido, o movimento mobilizou-se para incenti-
var a construção e divulgação de uma história do negro vista por ele mesmo, desconstruindo visões
preconceituosas, atrasadas e etnocêntricas da cultura e da história na sociedade.
Foi proposta utilização de uma literatura africana, em contraponto à hegemonia dos estudos
de origem europeia e pela luta por cotas raciais junto às universidades públicas para a inserção do
negro na esfera universitária, considerando-a como uma estratégia temporária de busca pela igual-
dade e equiparação entre negros e brancos.
Por fim, cumpre observar ainda duas questões muito importantes sobre a mobilização da po-
pulação negra em busca da denúncia dos preconceitos dissimulados e dos silenciamentos a que foram
submetidos ao longo da história do Brasil. O primeiro refere-se à dinâmica própria dos movimentos,
que variaram de acordo com o contexto histórico e com as possibilidades políticas e jurídicas que
a sociedade apresentava para a mobilização e articulação da população. O segundo diz respeito ao
combate cada vez maior, travado pelo Movimento Negro, para a existência da mestiçagem.
Em relação ao primeiro aspecto, precisamos observar os movimentos do ponto de vista histó-
rico, evitando anacronismos. É impossível cobrar do movimento elementos e pautas de lutas que se
caracterizam como demandas atuais. Observá-los com base no contexto histórico pressupõe o enten-
dimento do que foi possível realizar naquele contexto histórico e político específico.
Em relação ao segundo aspecto, a utilização do termo e da ideia de mestiçagem foi um ele-
mento que desarticulou a luta coletiva do povo negro, porque distribuía os negros em inúmeras
subdivisões, desagregando a luta unificada. O preconceito dissimulado existente no Brasil, que em
grande parte foi fruto da prevalência da tese da democracia racial, produziu como contraponto a
dificuldade do indivíduo negro se assumir como negro, gerando inúmeras denominações inter-
mediárias, particularmente porque no Brasil a questão da cor se sobrepôs ao debate sobre a raça,
enquanto identidade étnica16.
A mestiçagem foi vista pelo movimento negro como uma “armadilha ideológica alienadora”
(DOMINGUES, 2007, p. 116). Para ele, ela realizou um papel negativo porque diluiu a identidade
16 Uma referência importantíssima a esse respeito é a obra Nem Preto, Nem Branco, muito pelo contrário, da antropó-
loga, historiadora e professora Lilia Moritz Schwarcz. Em um dos textos a autora apresenta dados de um censo de 1976,
no qual as pessoas deveriam declarar sua “cor”. De acordo com esses dados, os brasileiros atribuíram-se 136 cores
diferentes, reveladoras de uma verdadeira aquarela brasileira ou, mais perigosamente, da dificuldade de se identificar
como negros. Para saber mais, ver Schwarcz (2012).
Cultura afro-brasileira: elementos constitutivos e vivências 141
do negro no Brasil. A existência do mestiço era sempre um entrave para a mobilização daquele
segmento da população. O mestiço era visto como uma das fases do branqueamento do brasileiro,
resultando no etnocídio do negro.
Considerações finais
Neste capítulo, abordamos a questão da presença e da influência afro na composição étni-
ca, social e cultural da sociedade brasileira, destacando o quanto essa presença é prevalecente e o
quanto o seu reconhecimento e afirmação têm sido frutos de luta, de resistência e de reivindica-
ções de políticas afirmativas por parte dos negros desde o fim do século XIX, passando essa luta
por diferentes momentos e pautas, até chegar aos movimentos negros da atualidade. Destacamos
também o quanto ideologias racialistas, difundidas no Brasil por uma intelectualidade vinculada
aos conceitos do darwinismo social e do eugenismo europeu, bem como de teorias como a da
degeneração, contribuíram para reforçar a segregação social do negro valendo-se de justificativas
ditas biológicas. Por outro lado, e em uma outra direção, os intelectuais defensores de uma suposta
democracia racial contribuíram, mesmo que de modo diferente, para a desestabilização do enfren-
tamento do problema do racismo no Brasil.
Quem sabe esteja na hora de “levar a sério” o mito, o que implica evitar associá-lo à noção de
ideologia – de falsa ideologia – ou compreendê-lo apenas como um mascaramento intencio-
nal da realidade. Em vez de insistir nas “mentiras” que o mito da democracia racial contém,
naquilo que esconde, pensemos um pouco no que ele afirma, nas recorrências que parecem
não fruto do acaso, mas resultado de um excesso de significação: afinal, mesmo desvendando
suas falácias o mito permanece oportuno. Apesar de destruída a suposta imagem da tolerância
portuguesa e de seu desejo de miscigenação, uma certa mistura cultural distintiva permanece
digna de ser destacada, como motivo de identidade. [...]
Na verdade, descontruindo o conceito biológico de raça, verificadas as suas implicações, a pro-
blemática se mantém, como se existisse um certo bloqueio na sua explicitação. Se a resposta
142 História da África e da cultura afro-brasileira
não se reduz à afirmação de uma harmonia, talvez seja melhor pensar não no que o mito
esconde, mas no que afirma: de que maneira diz respeito à realidade [...]. A oportunidade
do mito se mantém, para além de sua desconstrução racional, o que faz com que no Brasil,
mesmo aceitando-se o preconceito, a ideia de harmonia racial se imponha aos dados e à pró-
pria consciência da discriminação.
“Somos racistas, mas nosso racismo é melhor porque mais brando que os outros”, eis uma das
novas versões de um mito que não para de crescer entre nós. Difícil de flagrar, a discriminação
no Brasil combina inclusão com exclusão social. Na música, nos esportes, no corpo, na lei,
somos um país que inclui e não divide, a partir de critérios raciais. No entanto, se formos aos
dados de lazer, trabalho, nascimento, a realidade é outra. Basta entrar nos clubes privados, nos
teatros da elite, nos restaurantes luxuosos para perceber a coloração mais branca da população
nacional local. Não há estrangeiro que não note, a despeito do efeito de naturalização que
sofrem os locais.
É possível dizer que algumas coisas mudaram. Não é mais tão fácil sustentar publicamente a
igualdade de oportunidades em vista da grande quantidade de dados que comprovam o con-
trário. Talvez hoje em dia seja até mais fácil criticar o mito da democracia racial do que enfren-
tar a sua manutenção. O fato é que mudamos de patamar e não mudamos: o lugar comum
parece ser delatar o racismo (que precisa ser de fato delatado), mas o ato se extingue por si só.
Atividades
1. Explique a relação entre as teorias científicas propagadas pelas instituições europeias do
século XIX e a marginalização do negro na sociedade brasileira.
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Gabarito
2. Banzo (tristeza), catana (facão usado no corte da cana) e fubá (farinha feita a base de
milho) são termos relacionados ao cotidiano de escravidão vivenciado pelos africanos
no Brasil. O banzo era a tristeza que acometia africanos recém-chegados da África, os
quais viajavam em porões insalubres dos navios negreiros e eram desembarcados com
violência em terras desconhecidas para trabalhar à força. A catana era o instrumento de
trabalho forçado nas lavouras de cana, destino da maioria dos escravizados africanos
que eram trazidos para o Brasil entre os séculos XVI e XIX. Fubá era a base da alimenta-
ção dada aos escravizados africanos.
3. Porque não havia interesse político do poder público e das autoridades competentes,
relacionadas à elaboração dos planos curriculares nacionais e à seleção dos conteúdos
escolares, na disseminação de estudos sobre a história dos povos africanos por falta de
conhecimento acerca do assunto. A historiografia africana, até meados dos anos de 1970,
ainda era restrita a certos temas e escrita por autores europeus. Foi só a partir dos anos
de 1980 e 1990 no Brasil, com o fortalecimento do movimento negro, que a demanda por
conteúdos de história dos povos africanos nos currículos escolares cresceu e se transfor-
146 História da África e da cultura afro-brasileira
mou em projetos de lei, como a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que instituiu a obri-
gatoriedade temática da História e Cultura Afro-Brasileira e a Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de
2003, a qual versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas e
ressalta a importância da cultura e da história afro na formação da sociedade brasileira.
disputadas quase sempre por grupos étnicos rivais –, alimentadas por armas produzidas em
países considerados desenvolvidos. Nesse contexto, a África é considerada um continente
envolto em guerra, pobreza e doença. Isso existe, mas não em todo o continente. Além disso,
não foi sempre assim. Ao analisar aspectos da história da África subsaariana, anterior ao
contato com os europeus, é importante percebermos a origem histórica de alguns processos
que atualmente ocorrem no continente africano.
3. Segundo essa tradição, a Arca da Aliança é o local onde estariam guardadas as tábuas da lei
contendo os Dez Mandamentos. Segundo lendas, nobres da corte de Menelique – filho do
rei Salomão com a rainha de Sabá e soberano de Axum – teriam levado da corte de Salo-
mão a arca da Aliança contendo as tábuas da lei e guardado em um local seguro no reino
de Axum, na atual Etiópia. Para saber mais sobre o suposto relacionamento amoroso entre
a rainha de Sabá e o rei Salomão, bem como sobre a origem do rei de Axum, supostamente
fruto desse relacionamento, leia o capítulo 10 do livro 1 de Reis, presente na Bíblia (antigo
testamento) (BÍBLIA, 1 REIS, 2018, 10). A Bíblia é considerada um livro sagrado para as
convicções religiosas de origem cristã e judaica. No entanto, é também um importante e
acessível documento histórico. O livro 1 de Reis contém muitos textos interessantes e rico
em detalhes não somente sobre a história do reino judeu dessa época, mas de outros reinos
com os quais fazia contato, entre eles, o de Sabá.
4. A primeira versão aponta: Oduduá era um príncipe herdeiro da cidade de Meca, na Arábia,
que renegou a religião islâmica e tentou impor o culto dos deuses nos quais acreditava como
religião do Estado. Em razão disso, foi perseguido e teve de fugir junto com suas crenças e
seus seguidores para as florestas do Iorubo, na África, onde erigiu um reino. Outra tradição
afirma que os iorubás descendem de canaãs da tribo de Nimrod e teriam sido expulsos do
Iraque e, após atravessarem o Egito e a Etiópia, chegaram à região sudoeste da Nigéria.
4. Devido à pouca quantidade de fontes escritas a respeito da história desses povos. Grande
parte das fontes são de ordem arqueológica. As maiores referências escritas a eles aparecem
nos relatos daqueles que os tentaram conquistar e subjugar.
4. Os traficantes portugueses passaram a negociar com chefes locais africanos, como o rei do
Congo, convencendo-os a realizar guerras com o objetivo exclusivo de aprisionar escravi-
zados para serem comercializados com os traficantes, que, por sua vez, os vendem para
grandes senhores do Brasil e da América Espanhola. Esse tipo de escravização, realizada
como um comércio de pessoas e que tinha por finalidade o lucro, foi introduzida pelos por-
tugueses, sendo desconhecida pelos africanos. Suas consequências foram a desestabilização
social, política e econômica de reinos africanos, como o reino do Congo, a intensificação de
conflitos locais, a deportação forçada de milhões de africanos para as Américas e o impedi-
mento do desenvolvimento pleno de reinos africanos em seu pleno esplendor.
Gabarito 149
2. Entre os critérios utilizados para essa reorganização étnica dos escravizados africanos
no Brasil, havia os portos de origem, de onde tinham sido traficados, assim como saber
se os escravizados haviam nascido na África ou já eram nascidos no Brasil e a qual etnia
provável pertenciam. Essas eram formas de averiguar se os indivíduos adquiridos provi-
nham de tribos mais guerreiras ou mais pacíficas. Também se costumava considerar os
escravizados como ladinos (nascidos no Brasil e mais tranquilos) e “boçais” (nascidos
na África e não aculturados).
3. Palavras de origem na língua banto incorporadas ao português falado no Brasil, como den-
go, farofa, moleque e dendê; certas práticas culinárias, como a utilização do óleo de dendê
no preparo de alimentos, como o caruru, o vatapá e o acarajé; a influência do culto aos orixás
em que se desenvolveu o candomblé, entre outras coisas.
4. Tentativas de fuga durante a captura, ainda na África; motins e revoltas nos navios negrei-
ros; tentativas de suicídio e abortos forçados; fugas dos engenhos e reorganização social no
interior das matas, formando quilombos, como o de Palmares; compra da liberdade
(alforria) mediante pagamento; conquista da liberdade na justiça, por meio da alegação da
ilegalidade da condição de escravizado diante da brecha aberta pela Lei Feijó, entre outras.
para outros países europeus, também para os Estados Unidos e o Japão. Essas potências em
ascensão também vivenciariam seu processo de revolução industrial, a partir do início do
século XIX. Em virtude da crescente industrialização dos países europeus e do acirramento
da concorrência entre eles, houve a “corrida” para a África e a Ásia, em busca de mercados
consumidores, território para instalação de fábricas, mão de obra barata e fontes de maté-
ria-prima e energia.
É nesse contexto econômico, de necessidade de expansão do capitalismo europeu e de explo-
ração de regiões não industrializadas do planeta para a manutenção dessa expansão, que se
deu o imperialismo ou neocolonialismo sobre a África na segunda metade do século XIX.
discursos fundamentados por teorias como essa, missões religiosas e expedições científicas
“prepararam” o caminho para a exploração econômica da África, mapeando as riquezas
nativas, as possibilidades de sua utilização e justificando essa intervenção como uma missão
civilizatória das nações mais avançadas sobre as mais atrasadas.
2. A miscigenação era condenada pelas teorias racialistas do século XIX, porque, com base
em princípios evolucionistas de Charles Darwin, acreditava-se que “miscigenar” era
sempre empobrecer as qualidades das raças que se expressariam integralmente na “raça
pura”. Nesse sentido, por meio dessas teorias, o miscigenado era sempre um “degenera-
do”. Entretanto, a intelectualidade brasileira se deparou com a questão de que no Brasil
todos eram, de alguma maneira, miscigenados. A solução encontrada por parte daquela
intelectualidade foi a de positivar o processo de miscigenação e atribuir a ela uma so-
lução para a questão negra no Brasil: o branqueamento. Segundo essa perspectiva, se
o negro miscigenasse com o branco, a prevalência do “sangue branco” sobre o “sangue
negro” proporcionaria filhos cada vez mais brancos. A miscigenação foi utilizada como
uma alternativa para solucionar as teses que apontavam que um país de população negra
estaria condenado ao fracasso. O branqueamento científico foi uma bandeira de defesa
de grande parte da intelectualidade brasileira do início do século XX no Brasil e solu-
cionava, a uma só vez, dois problemas enfrentados pela recente República brasileira:
a positivação da miscigenação e o branqueamento da população.
3. A população negra sempre se manifestou de maneira intensa diante dos preconceitos raciais
no Brasil. Diversas e diferentes formas de organizações surgiram desde antes de ser oficia-
lizada a abolição, como resistências, por meio dos chamados quilombos, até formação de
grupos negros que compravam a liberdade de outros negros. Entretanto, com o fim do pro-
cesso escravista, a população negra sentiu-se podada da liberdade de fato porque outras cor-
rentes passaram a lhes amarrar. As teorias racialistas tinham por objetivo legitimar o lugar
do negro como o da submissão, o da inferioridade. As primeiras estratégias para conquistar
a cidadania plena foram organizações de auxílio mútuo e o enfrentamento a essas teorias
por meio de irmandades, associações, da manifestação cultural, da imprensa e da literatura.
Nesse contexto, posicionar-se contra as ideias hegemônicas era extremamente difícil, visto
que não havia nenhuma lei condenando o preconceito racial, em virtude de a elite dirigente
Gabarito 153
negar a existência de preconceitos de raça no Brasil. Portanto, encontrar espaços para a cir-
culação de ideias e, principalmente, organizar-se enquanto grupo ou movimento social era
um desafio diário e constante, que a população negra enfrentou (e ainda enfrenta).
Código Logístico
57308
9 788538 764106