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Lucía Eilbaum
Simoni Lahud Guedes
Aula 6 • Sociedades com Direito Antropologia do Direito
Meta Introdução
Apresentar uma visão clássica sobre o Direito e os fenômenos jurídicos Nesta sexta aula, apresentamos a obra Crime e costume na sociedade Bronisław
na área da Antropologia do Direito, através da obra do antropólogo Bro- selvagem, do antropólogo Bronislaw Malinowski. Selecionamos Malinowski
nislaw Malinowski, Crime e costume na sociedade selvagem. essa obra como representante de uma visão clássica na Antropologia Nasceu em 1884 na
Cracóvia, Polônia, e
do Direito. Como veremos, Malinowski se contrapõe à visão da escola morreu nos Estados
anterior – o evolucionismo – e propõe uma visão inovadora para sua Unidos, em 1942. Antes
Objetivos época, mas também abre uma visão original para pensarmos o Direito
de se dedicar ao estudo
da Antropologia, teve
formação em Ciências
e os fenômenos jurídicos hoje, no diálogo entre a Antropologia e outras
Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: Exatas. Em 1910, começa
áreas, em especial o Direito, como visto na Aula 5. a estudar Antropologia
1. definir a função do Direito nas sociedades chamadas primitivas; na London School of
Economics, na Inglaterra.
A perspectiva proposta pelo antropólogo Malinowski nesta obra é im- É considerado um
2. identificar a existência de diversas regras que regulam a vida em so- portante para pensar a relação que os cidadãos constroem com a lei e as dos fundadores da
ciedade e a função que elas cumprem; normas sociais em uma dada sociedade. No Brasil, é comum jornalistas,
Antropologia Social,
como vimos na Aula 3.
3. identificar os mecanismos de manutenção da ordem social em uma legisladores, juristas, juízes, políticos, professores, intelectuais e pessoas Sua principal contribuição
foi o desenvolvimento
dada sociedade. em geral se preocuparem com o não cumprimento das leis por parte de um novo método de
investigação de campo,
de boa parte da sociedade. Por que as leis não são respeitadas? Por que cuja origem remonta à
as pessoas burlam a lei? As respostas costumam ser variadas. “Falta de sua intensa experiência
de pesquisa na Austrália,
educação”, “ignorância”, “querem se dar bem”, a lei é “ridícula”, “ultrapas- inicialmente com o
povo mailu (1915) e,
sada”, “desconhecida”, são algumas delas. Muitas delas condensadas na posteriormente, com
popular frase “há leis que pegam e leis que não pegam”, querendo dizer os nativos das Ilhas
Trobriand (1915-16,
que o cumprimento, ou não, da lei dependeria do fato de o seu conte- 1917-18). A primeira
údo ser compatível, ou não, com as condutas e os valores de uma dada expedição de Malinowski
às Ilhas Trobriand foi em
sociedade. 1915, onde permanece até
1916, impedido de voltar
A proposta de Malinowski no livro que abordaremos nesta aula será de para Inglaterra devido
ao início da Primeira
grande interesse para tratar de questões semelhantes às mencionadas Guerra Mundial. Mais
no parágrafo anterior. Aliás, a pergunta de partida do antropólogo em tarde, em outubro de
1917, retorna uma vez
Crime e costume na sociedade selvagem é por que os nativos das Ilhas mais às Ilhas Trobriand
para, então, escrever sua
Trobriand, local de sua pesquisa, cumprem as leis, nos casos em que isso primeira monografia:
acontece. Essa pergunta nasce de um confronto com as teorias vigentes Os argonautas do
Pacífico Ocidental, em
na época, as quais Malinowski irá discutir. Tenerife, já ameaçado
pela tuberculose. Só
retornou à Inglaterra em
1921. Crime e costume
na sociedade selvagem
também é produto de seu
trabalho de campo nas
Ilhas Trobriand, publicado
em 1926.
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mais importantes do conjunto. Segundo o próprio Malinowski, as bons (o “bom selvagem”, em autores como Jean Jacques Rousseau) ou
ilhas mantêm uma densa população dedicada, principalmente, à malvados (a “guerra de todos contra todos”, em autores como Thomas
agricultura e à pesca, mas também especialista em várias artes e Hobbes). Nessa perspectiva, a Antropologia pouco ou nada se importava
ofícios e ativa no comércio e troca de bens. com o estudo do Direito nas sociedades primitivas, pois parecia carecer
de campo ou objeto de estudo.
Essa visão sobre a “carência” de normas, segundo Malinowski, foi
substituída pela ideia de que, na vida primitiva, pelo contrário, haveria
uma “hipertrofia” de regras e leis. Nessa linha de pensamento, o nativo
dessas sociedades é transformado em um “modelo de cidadão cumpri-
dor da lei” (2003, p. 22). Assim, Malinowski se refere, de forma crítica,
a esse pressuposto:
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Antes de passar a analisar os pontos mencionados na crítica de Ma- segurança pública no país”, ressaltou o presidente da comissão,
linowski, é importante ressaltar que, para ele, o maior obstáculo e erro Eunício Oliveira.
no estudo do Direito primitivo que tem sustentado a perspectiva por ele Fonte: Jornal O Povo, 17/12/2013.
criticada é o fato de esses antropólogos buscarem, nas sociedades primi-
tivas, uma organização definida de funcionamento da lei, administração
e imposição do cumprimento da lei, tal como a conhecemos na nossa
própria sociedade. Diz Malinowski:
Atende ao Objetivo 1
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O Direito positivo de uma estreita organização nas suas equipes de trabalho, assim como
de uma divisão fixa de funções sociais.
Na sua proposta de análise do Direito nas Ilhas Trobriand, Malino-
Dentro de cada canoa, há um homem, que é o proprietário, e a tri-
wski toma a distinção própria do Direito ocidental entre lei civil e lei
pulação, que, por regras, pertence ao mesmo subclã. Assim, estão liga-
criminal. Isso porque sua intenção é discutir a afirmação de que, nesse
dos uns aos outros por um sistema de obrigações mútuas. Cada homem
tipo de sociedade, só existiria Direito criminal, ou seja, o Direito ape-
deve ocupar seu lugar e cumprir uma tarefa determinada. Do mesmo
nas se faria presente quando ocorresse uma reação à quebra da lei. Ao
modo, cada participante recebe sua parte correspondente ao serviço
contrário, ele vai demonstrar que a vida diária, em vários aspectos, está
prestado. Assim, diz Malinowski:
regulada pela lei civil.
Malinowski chama de lei civil as disposições positivas, elásticas e fle-
Vemos nessa atividade um sistema rígido de obrigações mútuas
xíveis, em diversos domínios sociais, e de lei criminal as disposições ne-
no qual estão lado ao lado um senso do dever e o reconheci-
gativas que protegem a vida, a propriedade e a pessoalidade. As primei-
mento da necessidade de cooperação, além da compreensão do
ras, por serem mandados positivos, estão submetidas a diferentes tipos interesse próprio, dos privilégios e benefícios (2003, p. 34).
de sanções, e as segundas, ao castigo, uma vez que não seja respeitada a
proibição (negativa) de certas condutas.
Por sua vez, quando os pescadores chegam às praias, esperam por
Na primeira parte de seu livro, Malinowski se dedica à lei civil. Ele
eles os habitantes de comunidades da terra. Observa-se, nesses encon-
busca demonstrar, como mencionamos, que essa lei está presente em
tros, um novo e semelhante sistema de serviços e obrigações mútuas
diversos aspectos da vida diária dos melanésios e, ainda mais, regula a
baseado em um convênio já estabelecido entre os povoados: a troca de
vida social da comunidade.
hortaliças por peixe.
Após essa análise, que veremos a seguir, Malinowski propõe uma
O aspecto curioso desse “convênio” é que, além da troca econômica,
definição do Direito como um sistema de arranjos que faz com que as
envolve uma dimensão cerimonial, já que o intercâmbio deve seguir um
pessoas cumpram suas obrigações sociais. Ainda mais, define o Direito
complexo ritual e uma dimensão jurídica, uma vez que nenhum dos
como um sistema de transações que é cumprido devido:
dois pode negar a troca. Qual é o motivo que respalda essas obrigações?
Cada comunidade, explica Malinowski, precisa dos alimentos da outra.
1) à existência de serviços mútuos, desenvolvidos em forma pú- Ser negligente com o outro é prejudicial para a própria comunidade.
blica e cerimonial; 2) à ambição e vaidade dos melanésios, que Ou seja, o sistema, conclui o antropólogo, é baseado na reciprocidade,
esperam recompensas posteriores em relação aos serviços doa- não só de alimentos, mas de outros serviços, formando um “verdadeiro
dos (2003, p. 46).
sistema de prestações mútuas” (2003, p. 37).
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um longo período e levar junto a mandíbula do marido pelo mesmo É claro que há também, observa Malinowski, tropeços constantes
período de tempo. Oportunamente, receberá, por essa exibição pública nas transações, que há grande descontentamento, recriminações e recla-
da dor, retribuições importantes por parte dos parentes do marido. A mações e raramente há homens que estejam completamente satisfeitos
reciprocidade rege novamente as relações. com seus parceiros. Contudo, no geral, cada qual continua o consórcio
e tenta dar conta de sua parte, seja por inteligente egoísmo, seja por
obediência a suas ambições de prestígio e riqueza ou a seus sentimentos
No matrimônio sociais.
O casamento não só estabelece um vínculo entre marido e mulher Retomando a crítica inicial de Malinowski, o que pode se ver é que a
mas também uma relação de mutualidade entre as duas famílias, en- imagem da obediência automática não corresponde às observações empí-
volvendo, especialmente, o irmão da esposa. Ele se faz responsável pela ricas da vida diária dos nativos. E também que não existe uma submissão
sua irmã, e a família dele deve provê-los de alimentos e cuidado. Ele reverencial e sagrada, pois as regras de que tratamos são “essencialmente
deve mostrar, publicamente, seu trabalho e demonstrar generosidade e elásticas e adaptáveis deixando uma lassitude considerável dentro da qual
competência. Por sua parte, o marido deve recompensar com presentes seu cumprimento pode se considerar satisfatório” (2003, p. 45).
periódicos cada contribuição, e os filhos do casal deverão trabalhar e
Ora, adverte Malinowski:
contribuir com seu tio. Conclui Malinowski:
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Atende ao Objetivo 2
Resposta Comentada
O crescimento vertical se socializou dentro do contexto da pró-
pria favela apoiado no “direito de laje”. Tal “direito” é aceito na Para Malinowski, a lei civil pode ser definida como um sistema de pres-
comunidade, e se atualiza de diversas formas. (...) A adminis- tações e contraprestações, quer dizer, como direitos de uns e obrigações
tração das demandas resultantes de tipos de moradia é feita pela
de outros. No “direito à laje”, verifica-se um Direito não institucionali-
Associação de Moradores, onde ocorre o registro de seus nomes,
endereços e das “propriedades” que possuem. Na medida em que
zado pelo Estado, mas sim pelos moradores e suas instituições locais.
as aquisições imobiliárias são registradas, constituem “proprie- O funcionamento está regulado por normas próprias que estabelecem
dades” de seus “donos”. No modelo estatal, quando o registro ofi- concessões e títulos entre as partes envolvidas e interessadas.
cial da escritura de compra e venda é levado ao Registro Geral de
Imóveis (RGI), configura a aquisição do direito de propriedade e
sua consequente transferência. De maneira análoga, em Rio das
Pedras existe uma espécie de “cartório” que faz o registro dos
contratos de compra e venda de terrenos de superfície e de lajes.
Essa modalidade de registro de aquisição de propriedade é com-
pletamente legitimada na comunidade. Certa vez perguntei a um A lei criminal
morador, que estava ansioso para registrar a aquisição de uma
laje na Associação de Moradores, por que ele estava tão inquieto A segunda parte do livro de Malinowski é dedicada aos aspectos da
para ser atendido. A resposta foi rápida e concludente: “– Só é vida tribal que são regulados pela lei criminal, ou seja, como vimos, pe-
dono quem registra”.
los mandados negativos que proíbem e castigam certas condutas.
Fonte: Corrêa, 2008.
Em primeiro lugar, Malinowski chama a atenção para o fato de a
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ciência, de modo geral, ter se preocupado com aquilo que é extraordiná- formado de que Kima’i, um jovem de uns 16 anos, tinha caído de um
rio, sensacional, e, consequentemente, ter apontado menos aquilo que é coqueiro e morrido. No povoado, estavam acontecendo os atos mor-
normal e corrente. Isso, diz Malinowski, tem levado os antropólogos a tuários. Malinowski percebeu um estado de hostilidade raro entre os
exagerar a importância e a predominância do Direito criminal nas so- habitantes do povoado onde o jovem tinha morrido e aqueles do local
ciedades selvagens em detrimento da lei civil. Por isso, dedica a primeira do enterro. Interessou-se logo pelo caso.
parte de seu livro a demonstrar a vigência e atualidade desta. Ao mesmo
Ficou sabendo, então, que o jovem tinha se suicidado. Ele teria que-
tempo, o Direito criminal também costuma, segundo nosso autor, ser Exogamia
brantado as regras da exogamia, e sua companheira de crime era sua
estudado nos seus usos singulares e sensacionais, em casos de crimes
prima materna, filha de uma irmã de sua mãe. Mas isso era sabido ha- Regime social em que
horríveis de vingança tribal, de bruxaria criminal, incestos, violação de os matrimônios se
via muito tempo. Embora fosse geralmente reprovado, nada se fazia a efetuam com membros
tabus e assassinatos (2003, p. 89). de tribo estranha, ou
respeito. Nada, até que um pretendente desprezado pela jovem, consi- dentro da mesma tribo,
Não é uma afirmação que surpreenda ou que possamos achar única derando-se pessoalmente agravado, tomou a iniciativa. Então, em uma com os de outra família
ou de outro clã (Novo
nas sociedades ditas primitivas. Nos dias de hoje, em particular na área noite, esse jovem insultou, com os xingamentos mais graves da comuni- Dicionário Aurélio).
da segurança pública, é possível ver como a mídia, por exemplo, atrai a dade, seu rival em público e o acusou de incesto diante da coletividade.
atenção a partir de casos extraordinários, raros, que, por algum motivo, Para Kima’i, só havia um jeito de fugir da vergonha pública. Na manhã
parecem “fora da ordem”. Também muitas resoluções ou decisões polí- seguinte, vestiu suas roupas de gala, subiu no coqueiro e se dirigiu à
ticas são tomadas pelos responsáveis de certas áreas quando acontecem comunidade explicando as razões que o moviam a um ato tão desespe-
fatos que extrapolam a rotina e alcançam o Estado público. Esses dois rado. Acusou, de forma velada, o jovem e, a partir daquele momento, os
aspectos – extraordinário e publicitário – serão abordados nesta parte membros de seu clã teriam o dever de vingá-lo. Pulou do coqueiro e se
da aula, a fim de entendermos como funciona o Direito quando alguma matou. Seguiu-se uma luta dos parentes do Kima’i contra o outro jovem,
norma é violada. que ficou ferido.
Ainda, para Malinowski, entender as situações nas quais as regras A história de Kima’i revela vários aspectos do funcionamento do Di-
são quebradas é também muito importante, pois, se apenas fosse mos- reito na vida das Ilhas, ou em outras palavras, do Direito na prática.
trado o sistema em equilíbrio, estaria se apresentando um aspecto muito
parcial do Direito nas Ilhas. Pois, como o antropólogo chama atenção, o 1. Em primeiro lugar, havia um crime manifesto: a quebra da regra da
nativo das Trobriand tem uma atitude de respeito ao dever e à lei muito exogamia, uma das regras centrais do direito matriarcal, que considera
parecida com a do “homem civilizado”: compreende que tem de cum- todas as mulheres do clã como irmãs e, consequentemente, proibidas
prir suas obrigações e cuidar de seus interesses até o extremo de não só para casamento. É uma das regras, em teoria, cuja violação gera um
esticar a lei como também, às vezes, quebrantá-la. grande horror, uma forte reação pública e a crença na existência de cas-
Por outra parte, Malinowski ressalta que, nas Ihas Trobriand, as re- tigos sobrenaturais. Esse, diz Malinowski, “é o ideal da lei nativa” (2003,
lações sociais estão governadas por vários princípios legais. O principal p. 96) e, portanto, conta com forte adesão moral no discurso nativo. No
é o do direito matriarcal, que impõe que a criança está corporal e mo- entanto, continua nosso autor, “quando se trata de aplicar a moralidade e
ralmente ligada à sua mãe e aos parentes de sua mãe e, portanto, seus os ideais à vida real, as coisas tomam um aspecto diferente” (2003, p. 96).
direitos e deveres também. Mas, junto com esse direito, coexistem, mais
ou menos, harmonicamente, outros sistemas legais. Comecemos a ver 2. Em segundo lugar, no caso descrito, a opinião pública não se mos-
essa perspectiva a partir de uma história trabalhada por Malinowski. trava ultrajada pelo conhecimento do crime nem pelos insultos que a
parte interessada lançou publicamente contra o culpado. Intrigado com
essa não reação, Malinowski descobriu que os casos de violação da regra
O jovem Kima’i: entre o escândalo e a tragédia da exogamia referentes às relações sexuais não eram raros e que a opi-
nião pública se mostrava indiferente. Se o assunto é levado com decoro
Em um dia de sua estada entre os trobriandeses, Malinowski foi in-
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e ninguém em particular se sente ofendido, a opinião pública murmu- que, dependendo das circunstâncias, poderá fazer valer mais um do que
rará, mas não pedirá castigo. o outro.
Atende ao Objetivo 3
4. Em quarto lugar, na pesquisa suscitada a partir do caso, Malinowski
descobriu que existe um sistema estabelecido e regulado de evasão das Leia o seguinte trecho relatado pelo antropólogo brasileiro Roberto Da-
normas. No caso da exogamia, isso ocorre por meio de um sistema de Matta como um drama em três atos:
magia que consiste em feitiços, encantamentos e ritos eficazes para se
desfazer dos maus resultados do incesto.
1º Ato: uma pessoa que não é vista por ninguém, ignorada em
Estas conclusões demonstravam claramente que, em uma comuni- razão de sua aparência e modo de apresentação, chega a um local
dade onde a quebra das lei se dá, não só ocasionalmente, mas de forma para ser atendida por um servidor público que é uma autoridade
sistemática por métodos bem estabelecidos, não se pode esperar uma e dela está imbuído. A autoridade não sabe quem é a pessoa que
obediência espontânea à lei, ou uma adesão automática à tradição, “já chegou e nem quer saber. (...)
que a mesma tradição ensina ao homem como evadir alguns de seus 2º Ato: O funcionário custa a atender à solicitação. Diz que não
mandados mais severos” (2003, p. 98). pode ser assim e ainda complica mais as coisas indicando as con-
fusões do solicitante e as penalidades legais a que poderá estar
sujeito. Cria-se, então, um impasse. (...) A lei e o fato de ele ser o
A lei e a ordem seu representante cegam-no completamente para razões huma-
nitárias ou pessoais. Nessa situação, o solicitante não é nada. É
apenas um indivíduo qualquer, que, como um número, um caso
Após sua análise do Direito, ou melhor, do sistema de normas que
complicado, um estorvo ou um requerimento, solicita algo. (...)
regulam a vida tribal nas Ilhas Trobriand, Malinowski consegue respon-
der à sua pergunta inicial sobre como a ordem social é mantida nessa 3o Ato: Diante do impasse – pois o funcionário diz que não pode
e o cidadão deseja resolver seu caso –, há a solução que denuncia
sociedade e por que as pessoas obedecem à lei. Para ele, a lei e a or-
e ajuda a ver o mapa de navegação social. Nos países igualitários,
dem estão longe de serem uma coisa externa à vida social, imposta por não há muita discussão: ou se pode fazer ou não se pode. No
forças naturais ou sobrenaturais. Elas, pelo contrário, são resultado de Brasil, porém, entre o “pode” e o “não pode”, encontramos um
uma luta constante não só das paixões humanas, dos desejos e interesses “jeito”. (...) (DAMATTA, 2001, p. 100).
dos indivíduos contra o direito mas também de uns princípios jurídicos
contra outros.
Roberto DaMatta refere-se no artigo citado à instituição do “jeitinho
No entanto, reforça nosso autor, essa luta não é totalmente livre. Ela brasileiro” como uma forma de “conciliar todos os interesses, criando
está sujeita a condições específicas e só pode acontecer dentro de cer- uma relação aceitável entre o solicitante, o funcionário-autoridade e a
tos limites e com a condição de permanecer sem publicidade. Ou seja, lei universal” (2001, p. 100). Analise o trecho, considerando as catego-
como demonstrado no caso do Kima’i, logo que seja declarado um desa- rias trabalhadas por Malinowski ao tratar da lei criminal.
fio aberto, a precedência da lei estrita sobre um uso legitimado ou sobre
um princípio jurídico alternativo é estabelecida. Chegamos assim a um
ponto central desta aula que é a distinção entre os usos legalizados ou
legitimados das normas e a letra da lei. E, ainda, identificamos tanto a
possibilidade de uma luta entre ambos, como também de um diálogo,
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