Você está na página 1de 2

Auto da Barca do Inferno

Cena: Fidalgo

1. Símbolos cénicos e seu significado:


O Fidalgo surge com um manto com cauda, acompanhado por um pajem, que
transporta uma cadeira de espaldar.
Estes elementos representam o seu estatuto social de fidalgo, sendo o manto a
representação da sua vaidade pela condição social que tem; o pajem representa todos
aqueles que o serviram e sobre os quais exercia a tirania; a cadeira representa, por um
lado, os bens materiais e o poder, por outro, uma prática religiosa superficial.

2. Movimentação cénica
O Fidalgo chega ao cais e dirige-se à barca do Diabo, mas recusa-se a entrar.
Dirige-se, então à Barca do Anjo, mas não lhe é permitido embarcar. Regressa, por
fim, à barca do Diabo.

3. Alteração do estado de espírito do Fidalgo


No início da cena, no diálogo com o Diabo, o Fidalgo está muito descontraído e
seguro do seu destino. Quando se dirige à barca do Anjo, começa por revelar
preocupação e, ao mesmo tempo, irritação, pois chama e ninguém lhe responde. Na
conversa com o Anjo, tenta recuperar a sua segurança, mas percebe que não lhe é
permitido entrar na barca do paraíso. Mostra-se, então, desanimado e um pouco
arrependido por ter confiado no seu estatuto. Perto do final da cena, mostra alguma
humildade perante o Diabo ao pedir-lhe que o deixe regressar à vida. Finalmente,
mostra-se resignado com o seu destino final.
O Fidalgo vai alterando o seu estado de espírito de acordo com a evolução do
seu julgamento, à medida que vai tomando consciência do fim que o espera.

4. O Diabo começa por tratar o Fidalgo por senhor “Cá vindes vós”, mas mudou de
atitude porque o Fidalgo estava a julgar-se superior e disse-lhe que estava enganado
em relação ao seu destino. O Diabo perde os bons modos e começa a tuteá-lo (tratar
por tu): “Em que esperas ter guarida?”.

5. Argumentos de acusação e de defesa

Argumentos de acusação
Diabo Anjo
 “E também cá zombais”  Não se embarca tirania/neste batel
 “E tu viveste a teu prazer” divinal”
 “Mandai meter a cadeira/que assi
passou vosso pai”  “Pera vossa fantesia/mui estreita é esta
 “Do que vós vos contentastes” barca”

Argumentos de defesa

 “Que leixo na outra vida/quem reze  “pois parti tão sem aviso”
sempre por mi”  “Sou fidalgo de solar”
 Pera senhor de tal marca/ non há i
mais cortesia?”
 O Fidalgo é acusado de ter vivido a seu prazer, de ser presunçoso, vaidoso e tirana
para com o povo.

 Os argumentos utilizados ajudam a caracterizar a personagem. Ao argumentar que


deixou em terra quem reze por ele, o Fidalgo mostra que viveu confiante no seu
estatuto social e habituado a que os outros fizessem tudo por ele. Nem lhe ocorreu
que as orações seriam insuficientes para o salvar.

 Gil Vicente pretende, com isto, criticar a prática errada da religião, levada a cabo
por aqueles que acreditavam que as orações, as missas e outras práticas
superficiais eram mais importantes que as obras e a fé.

6. O Fidalgo pede ao Diabo que o deixe voltar à terra para ver a amante e a mulher.
Quando o Fidalgo lhe pede que o deixe regressar à terra para ver a amante, o Diabo ri-
se dele, chama-lhe tolo e diz-lhe que ela lhe mentia nas cartas que lhe escrevia e que,
logo que ele morreu, ela se divertiu com outro de menor condição social. Em relação à
mulher, o Diabo diz-lhe que ela não o quer ver, que foi agradecer a quem a livrou do
marido, que o choro dela, na hora da morte do Fidalgo, era de alegria e os lamentos
tinham sido ensinados pela mãe, eram ensaiados e falsos. Deste modo, Gil Vicente
alarga a crítica às mulheres em geral, mostrando como o fingimento era
transmitido de mãe para filha. As mulheres são apresentadas negativamente
como falsas, hipócritas e infiéis.

7. O pajem não entra na barca infernal porque é um símbolo caracterizador do Fidalgo,


não é uma personagem, mas um mero figurante. Além disso, não participou nos crimes
cometidos pelo Fidalgo, mas foi uma vítima da sua tirania e opressão.

8. Linguagem do Fidalgo

O Fidalgo utiliza uma linguagem corrente, à excepção dos versos 70 a 74 onde a


linguagem é popular.

9. Caracterização do Fidalgo

D. Anrique é um fidalgo de solar, vaidoso e presunçoso. A forma como se


apresenta em cena e a maneira como se dirige ao Diabo e, particularmente, ao Anjo,
evidenciam o gosto pelo luxo e pela ostentação, a altivez e a arrogância da
personagem. É tirano e explorador do povo e vive uma falsa religiosidade.
A nível familiar e sentimental, é um marido adúltero, infiel, mas,
simultaneamente ingénuo.
O Fidalgo é uma personagem-tipo, na medida em que representa a nobreza e os
seus vícios de tirania, presunção, arrogância e ostentação. É exatamente por isso que,
tal como aconteceu com o seu pai, é condenado ao inferno.

Você também pode gostar