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“Do outro lado do muro”: relato de

experiência sobre os processos da


edição de um texto
“Do outro lado do muro”: relato de
experiência sobre os processos da
edição de um texto

Ana Maria dos Santos Latgé

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como
requisito para a obtenção do título de bacharel em
Comunicação Social com Habilitação em Editoração, sob
orientação da Profa. Dra. Terezinha Fátima Tagé.

Junho de 2010.
Agradecimentos

Agradeço a todos os amigos, colegas e conhecidos que participaram


direta ou indiretamente desse "tempo de conclusão de curso", me
incentivando (e suportando) durante esses meses de pesquisa e execução.
Particularmente, agradeço à minha orientadora Terezinha, pelas
conversas esclarecedoras; à Maria Paula Roncaglia, por tão gentilmente
ter me permitido utilizar seu livro; à minha mãe e aos meus irmãos, pela
motivação carinhosa, e às Carlas, ao Rafa, ao Zé e à Josi, que me
apontaram rumos e encontraram tempo para responderem aos meus
muitos pedidos de ajuda. Acima de todos, agradeço ao Bruno Yukio, pela
paciência, constância e disposição. Sem sua leitura informal esse trabalho
com certeza teria outro fim.

2
Sumário

INTRODUÇÃO 5
I. CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA 11
1.1 Escolha da obra para o trabalho de conclusão de curso 12
1.2 Com-Arte 15
1.3 Escolha da obra como projeto da Com-Arte 17
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE EDIÇÃO E PREPARAÇÃO 23
2.1 Sobre as atividades de edição de texto dentro da editoração 24
2.2 Edição de texto em três etapas: edição de texto, preparação e revisão 32
2.2.1 Edição de texto: o que é 33
2.2.1.1 Intervenção estrutural 34
2.2.1.2 Intervenção linguística 45
2.2.1.3 Sobre legibilidade e outras questões além das intervenções estrutural
e linguística 47
2.2.2 Preparação de texto: o que é 50
3. EDIÇÃO E A PREPARAÇÃO EM DO OUTRO LADO DO MURO 56
3.1 Leitura de reconhecimento – primeiro contato com a obra 58
3.2 Leituras de edição e preparação – aspectos gerais 62
3.2.1 Edição 63
3.2.1.1 Intervenção estrutural 63
3.2.1.2 Intervenção linguística (edição) 68
3.3 Utilização das ferramentas: demonstração em análise de capítulo 74
3.3.1 Ferramentas utilizadas 75
3.3.1.1 Lista de cuidados editoriais na edição e preparação 80
3.3.2 Capítulo-demonstração: apresentação visual das intervenções em Do outro lado
do muro 82
3.3.2.1 Legenda para análise de intervenção 83
3.3.2.2 Marcações no capítulo 85
FONTES DE PESQUISA 94
ANEXOS 97

3
Resumo

Esse trabalho apresenta o relato de uma experiência sobre edição e


preparação de texto, discutindo questões referentes ao meio - como os
limites entre as duas práticas e o processo cognitivo que as envolvem -
e sugerindo um roteiro de ação a partir do modelo analisado. O livro
em foco é Do outro lado do muro, de Maria Paula Roncaglia, realizado
como prática editorial na disciplina Laboratório de Produção Editorial
Gráfica, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP,
sob orientação do Prof. Dr. Plinio Martins Filho, tendo sido lançado no
mercado em 2008 pela Editora-Laboratório Com-Arte.

Palavras-chave
Edição de texto, preparação de texto, cognição, público leitor.

Abstract
This paper presents a report of an experience of editing and preparation
of a text and discusses issues concerning this field of work, such as the
boundaries between these two practices and the cognitive processes that
involve them, suggesting a guide for action inspired in the practice on
the object studied. For this analyses, the book chosen is Do outro lado do
muro, by Maria Paula Roncaglia, a book published in 2008 by laboratory-
publishing house Com-Arte and conceived as an editorial practice for
gradutation discipline Produção Editorial Gráfica (Editorial Graphic-
Prodution Laboratory), teached in Journalism and Publishing
Department at ECA/USP, under the guidance of Prof. Dr. Plinio
Martins Filho.

Keywords
Text editing, text preparation, cognition, reading public, publishing.

4
INTRODUÇÃO



5
INTRODUÇÃO

No cenário nacional, a editoração não é um ramo muito pesquisado


e a preparação, uma de suas subdivisões, acaba sofrendo também dessa
carência de estudos específicos.
Uma das consequências dessa lacuna é que no mercado de trabalho
a preparação de texto adquire o aspecto de um ato intuitivo, e mesmo a
graduação não é suficiente para questionar essa impressão, já que nas
disciplinas voltadas para o assunto (Edição de texto I e II) também se
privilegia o aprendizado prático.
Ainda que em grande medida a prática realmente crie a perícia, a
falta de estudos sobre a área nos permite perguntar se não há na preparação
algumas etapas comuns que possam servir de guia a quem está começando
no campo, e, mais além, nos permitam discutir o que determina as
interferências do preparador durante o cuidado de um texto. Ao longo da
minha vivência como aluna do curso de Editoração da Universidade de São
Paulo e, depois, como profissional do mercado, essa questão sempre me
acompanhou: o uso exclui a teoria?
Quando escolhi o tema para o trabalho de conclusão de curso,
trazia em mente essa indagação (a problemática de um processo
puramente intuitivo e empírico requeria averiguação), que me motivou a
pensar em um estudo de caso. A opção do estudo de caso me parecia
favorável, pois me permitiria verificar interferências editoriais em um

6
material pronto (fase final da execução do livro), identificando a presença
(ou ausência) de uma linha de ação. Restava escolher o objeto desta
análise, e, para isso, delimitei o campo: seria um livro infantojuvenil.
A opção por um infantojuvenil foi determinada por quatro
condições: a primeira, ser literatura, o que implica na presença de
linguagem própria e estilo pessoal de autor (sempre uma questão a ser
considerada no processo de edição); a segunda, trazer elementos do
romance de um modo mais conciso; a terceira, utilizar elementos de
oralidade (interessantes de serem analisados); e, finalmente, a quarta, por
gosto pessoal (afinal, gostar de algo é um impulso a mais em qualquer
ação). Com o gênero definido, o passo seguinte foi a seleção da obra, e a
escolha recaiu sobre o texto Do outro lado do muro, de Maria Paula
Roncaglia.
Do outro lado do muro é produto da disciplina Laboratório de
Produção Editorial Gráfica que, dentro do curso de Editoração, objetiva
fazer o aluno vivenciar a produção de uma mídia, desde sua seleção à sua
divulgação. Lançado em 2008 pela Editora laboratório Com-Arte, o livro
foi minha primeira experiência com o processo editorial e,
principalmente, com a edição, já que, no projeto, meu foco era o trabalho
com o texto em sua fase inicial.
É importante ressaltar esse foco porque editoração é uma área que
abrange muitas práticas e é comum que o aluno se direcione para aquela
que mais lhe interessa. Assim, fazer este livro foi um primeiro passo em

7
muitos sentidos: para mim, no aprendizado do trato com o texto, na
definição de minha carreira, e também para a autora, Maria Paula, já que
o livro marca sua estreia editorial.
Usar este livro como base para esta pesquisa não foi uma decisão
arbitrária. Ele foi escolhido pela minha intimidade com o material, o que
me permitiria usar a experiência pessoal para determinar as dificuldades e
soluções encontradas por um iniciante no exercício da edição e da
preparação de um texto. Passados alguns anos desde o contato com a obra,
ela me parecia o objeto ideal de pesquisa: é uma primeira edição sem
diretrizes (por ser resultado de um laboratório experimental) e sem
experiência profissional por parte do editor, passível de uma
desconstrução sobre acertos, erros e a presença (ou não) da intuição e
como essa se manifesta.
Usando como método de ação a análise e a comparação das
diferentes fases do texto durante as etapas de preparação e edição, seria
possível reconhecer processos teorizáveis (tais como leituras de edição e
padronizações, entre outros). Mas cada ponto de análise levantava dúvidas
não previstas: qual o limite entre uma edição e uma preparação? Como a
edição afeta o original? Como esta é vista pelo autor?
Em uma pequena entrevista feita com a autora Maria Paula1 sobre
o assunto, ela menciona a edição como quem descreve um trabalho de

1
Presente nos anexos deste trabalho.

8
ourives: é função deste destacar as ideias transmitidas no original e realçar
o estilo do autor, lapidando o texto para mostrá-lo em suas melhores
facetas. Como autora também iniciante, sabia que o livro deveria ser
modificado, corrigido e adaptado, definido e adequado em relação ao
público-alvo. E, de fato, durante a execução do livro, escolher um
público-alvo foi algo que ocorreu (consequência das leituras), e a
objetividade que a autora aponta foi cumprida. Nessa ação de destrinchar
etapas, contudo, esse êxito levanta ainda outra questão – em que se apoiou
essa escolha de público-alvo? Afinal, como se classifica um livro?
Obter respostas não é algo simples nem conclusivo. Nesta pesquisa
não há respostas definitivas. As dúvidas levantadas ao longo dela (algumas
já apontadas) foram resolvidas, mas deve-se ter em conta que as soluções
apresentadas são algumas dentre muitas possíveis.
A divisão estrutural do conteúdo está feita em três grandes blocos:
o primeiro capítulo direciona-se para a escolha da obra, enquanto o
segundo aponta distinções entre edição e preparação e como essas
aconteceram no livro-base. Aí também são abordadas características do
processo cognitivo e sua presença no trato do texto. O modo como esse
conhecimento recolhido se manifesta na edição do livro-base é
apresentado no último capítulo, por meio de exemplos. Há a discussão do
direcionamento e das decisões editoriais (como a definição de público-
alvo) e são descritas fases que compõem as muitas leituras do editor. Ao
ser possível identificar, descrever e listar conceitos aplicáveis em um livro

9
editado de forma intuitiva, disponibilizamos as ferramentas necessárias
para validar o estabelecimento de um roteiro teórico de ações para aqueles
que estão começando.
Este trabalho, portanto, é uma introdução à edição de texto sob
três prismas: sua área de atuação, seus problemas intrínsecos e alguns
possíveis caminhos a seguir. É uma contribuição para um primeiro contato
com a função, e um indicativo de que é possível e necessário se pensar e
discutir este campo.

10
I. CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA



11
1. Considerações sobre a obra

1.1 Escolha da obra para o trabalho de conclusão de


curso

Nos campos da edição de texto2 há poucas obras de consulta ou


referência. Em artigo para o Intercom3 no qual discorre sobre os jovens
profissionais do setor e suas funções, Ana Elisa Ribeiro pergunta onde eles
encontrariam informações sobre o tratamento do texto. Sem muitas
fontes de pesquisa, o aprendizado recairia sobre graduações e
especializações, mas

Os cursos de Comunicação Social parecem ser compostos,


em sua maioria, de disciplinas que discutem a comunicação
de um ponto de vista bastante generalista, além de
promoverem a prática da redação mais do que a reflexão
sobre o texto e o processamento da escrita. Já os cursos de
Letras parecem enfatizar uma formação doutrinadora,
teorizadora, reflexiva, mas pouco prática e empreendedora
dos papéis do profissional que lida diretamente com o texto,
em esferas como a prestação de serviços. (RIBEIRO, 2007,
p.64)

2
Já de início é importante deixar claro que nesse trabalho adotaremos o termo “edição de texto” tanto para
todo o processo de intervenção que atinge o texto como para uma das etapas do mesmo.

3
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

4
Artigo integral pode ser encontrado nos anexos.

12
Para quem está começando na área o trabalho, aprendido com o
uso, parece ser resultado de intuição e prática, mascarando alguns
processos cognitivos. A ideia é reforçada por Cristina Yamazaki em sua
dissertação de mestrado:

Identificar se um texto está bem ou mal redigido não


implica saber explicar porque se chegou a tal parecer. Por
isso, pode-se pensar que é meramente intuitiva essa
avaliação, resultado apenas do humor ou da disposição da
pessoa, quem sabe até da simpatia em relação ao assunto ou
ao autor. (YAMAZAKI, 2009, p.73)

Contudo, Yamazaki questiona essa posição ainda no mesmo trecho:

[...] Esses fatores estão, sim, envolvidos em qualquer


avaliação, que não há como ser isenta de todo elemento
subjetivo. No entanto, um profissional que trabalhe
avaliando, corrigindo e editando textos não pode se
fundamentar sobre opiniões e “achismos”. Ainda que pense
fazer as intervenções com base em avaliações apenas
subjetivas, o profissional lança mão de sua experiência para
trocar uma palavra de lugar, substituir uma expressão,
enfim, fazer quaisquer emendas no texto. E essa experiência
camufla o uso de estratégias cognitivas e metacognitivas de
leitura — em geral inconscientemente. [...] Além de
apontar o que deve ser alterado, um bom profissional
editorial deveria justificar suas escolhas, o que exigiria
estratégias em nível metacognitivo. [...] Para esclarecer
essas estratégias, ressalte-se que a leitura não é um processo
meramente automático realizado pelo leitor, mas sim um
processo estratégico”. (YAMAZAKI, 2009, p.73-74, 75)

Segundo Yamazaki, portanto, a leitura é estratégica e alguns de

13
seus passos ou processos podem ser conhecidos. Assim, o profissional de
texto, que utiliza a leitura como ferramenta básica (é um leitor, portanto),
deveria ser capaz de atribuir esses processos às diversas etapas de suas
atividades. O que justifica uma interferência em um texto e de que
maneira ela acontece pode ser determinado em outras esferas além da
gramatical. Para um iniciante, obter esse tipo de informação pouparia o
trabalho de aprender unicamente com a prática, desmistificando a ideia de
automatismo que ela traz.
Assim nasceu esse projeto: para juntar esforços àqueles que buscam
diminuir a carência de materiais de pesquisa em editoração (especialmente
em edição), e para reforçar a ideia de motivação por trás de escolhas
editoriais, a autora deste trabalho se propôs a explicitar e analisar algumas
etapas da edição de um texto ao longo de um livro específico, abrindo
espaço também para a discussão das intervenções que caracterizam o
exercício do editor de texto.
Era necessário escolher o livro que servisse ao escrutínio. Como o
objetivo da pesquisa é sugerir procedimentos simples àqueles que
começam na trajetória editorial, a escolha recaiu sobre o primeiro livro
editado pela autora. O material, fruto de uma disciplina no curso de
graduação em editoração da USP, teve um resultado satisfatório, e, sendo
primeira obra, favorece a revisão de seu conteúdo e das interferências
editoriais que o permeiam. Passado algum tempo do lançamento, a autora
desse trabalho tem hoje melhores recursos para questionar suas escolhas,

14
e essas reflexões, seja confirmando ou refutando certas ações, servirão
como guia para aqueles que dão seus primeiros passos no trato do texto.

1.2 Com-Arte

Do outro lado do muro, lançado pela editora laboratório Com-Arte


em 2008, é o livro cuja análise orientará esse trabalho. Antes de começar
esse estudo, porém, é necessário que se fale um pouco da editora que o
lançou e como ela funciona.
A Com-Arte, na realidade “Laboratório de Produção Editorial
Gráfica”, é uma disciplina de três semestres do curso de Editoração do
departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e
Artes (ECA), na Universidade de São Paulo (USP).
Constituída como disciplina em 1992, seu objetivo, como consta
na grade curricular oferecida no site da universidade, é

Proporcionar ao aluno oportunidade de exercitar funções


do campo profissional de editoração necessárias à realização
de projetos de edição de publicações diversas programadas
pela editora laboratorial COM-ARTE (ECA-USP).
(Informação retirada do site da Universidade de São Paulo5)

<http://sistemas2.usp.br/jupiterweb/obterDisciplina?sgldis=CJE0397&codcur=27011&codha
b=302>.

15
Assim, para completar o currículo, o aluno seria levado a conceber
e executar um projeto editorial em todas as suas etapas, desde a seleção
de original6 (normalmente recomendado pelo professor da disciplina,
dado que há na editora alguns materiais inéditos) e veículo (normalmente
livros ou revistas) até seu lançamento. Quais são essas etapas, o programa
da matéria diz:

Realização de projeto gráfico de obra.


Realização de diagramação e arte-final de obra, conforme
projeto gráfico.
Realização de projeto editorial de obra.
Cálculo de custos.
Execução de projeto editorial, como editor, redator,
preparador de originais e revisor de provas.
Edição de iconografia: encomenda, seleção e aprovação de
fotos e ilustrações.
Condução de relacionamento com autores.
Coordenação de fluxo de trabalho e montagem de
cronograma.
Pesquisa iconográfica e textual.
Contato com fornecedores editoriais e gráficas. (Idem.)

O conhecimento desse programa nos permite inferir o alto grau de


autonomia que permeia a disciplina, cujo enfoque na liberdade de escolhas
editoriais tem como fim estimular a tomada de decisões pelo aluno
(forjando a experiência de um mercado de trabalho do qual esse aluno fará

6
Em editoração, original é “texto manuscrito, datilografado ou impresso, destinado à
composição tipográfica” e também “qualquer texto ou imagem destinados à edição por
mídia impressa ou eletrônica” (HOUAISS)

16
parte futuramente). É fácil compreender, portanto, que não existam
diretrizes para a execução de qualquer dessas atividades, explicando o
caráter experimental pelo qual a editora Com-Arte é conhecida.
A edição do texto, foco desse estudo, não foge a essa falta de guias:
não há na Com- Arte manual de redação e estilo, edição ou de qualquer
tipo de padronização. Entre os livros que a disciplina sugere como
referência para edição estão as fontes mais usuais (A Construção do Livro, de
Emanuel Araújo, e Elementos de bibliologia, de Antônio Houaiss), voltadas
mais para a técnica e truques de edição gramatical e gráfica, esquecendo
da necessidade de uma orientação para a edição de conteúdo.
É importante reforçar esses pontos para esclarecer que a obra Do
outro lado do muro não segue, deste modo, outra linha editorial que não
aquela determinada durante o processo de edição pela autora deste
trabalho e outras duas alunas do curso de editoração.

1.3 Escolha da obra como projeto da Com-Arte

Como visto anteriormente, a escolha do material a ser publicado


pela Com-Arte é feita pelos próprios alunos. Tendo decidido a equipe que
faria a publicação, o grupo passou a se preocupar com qual seria o tipo
desta.
Reunidas (a autora, Grazielle Gomes da Veiga e Vanessa Sayuri
Sawada) com o objetivo de escolher uma obra cuja aprovação partisse da

17
equipe e não de indicação dos professores, a primeira decisão foi delimitar
o tipo de publicação que gostaríamos de fazer. Para testar possibilidades
gráficas e de edição, resumimos nossa busca a textos em prosa (cujas
edição e diagramação são bem diversas das de um texto poético),
preferindo (por afinidade do grupo) romances curtos e contos.
No segundo passo, levantamos a questão de onde procurar autores.
Sendo estudantes sem tempo hábil para buscas pessoais, a alternativa que
encontramos foi a da internet, em primeiro plano, e, em segundo, a de
cartazes espalhados pela própria universidade. Criamos um e-mail e um
cadastro no Orkut, site de relacionamento que tem por base comunidades
de assuntos diversos nas quais se reúnem pessoas de gostos afins. Com esse
cadastro, utilizamos os espaços de discussão literária para lançar nosso
convite. Não pedíamos a obra toda logo no primeiro contato, mas um
pequeno resumo e, se possível, os primeiros capítulos.
Em algumas semanas já tínhamos algumas respostas para começar
a triagem. Resolvemos que o material seria dividido entre nós três para a
leitura, e que cada uma de nós teria poder suficiente para excluir ou
aprovar a obra para uma segunda avaliação, que, então, seria feita pela
submissão da escolha aos outros componentes do grupo. O único critério
pré-eliminatório era o formato. Todo o restante seria derivado do crivo
pessoal e, na segunda fase, da discussão em grupo. Essa etapa de escolha
foi a mais longa do processo, tomando-nos cerca de um semestre e meio
da disciplina. Por fim, optamos pelo livro de literatura infantojuvenil

18
escrito por Maria Paula Roncaglia, então aluna dos últimos anos de letras
da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na própria USP.
Do outro lado do muro foi escolhido pela faixa etária em que o livro
se inclui editorialmente7 e pelo seu bom acabamento. Já na primeira
leitura percebíamos que a história estava completa (com começo, meio e
fim), trazia um assunto conhecido mas trabalhado de maneira pouco
visitada no mercado, tinha uma linguagem adequada ao público e um bom
tamanho (em volume de páginas). Além disso, trabalhar com um
infantojuvenil permitia alguns aspectos gráficos pouco comuns a livros
voltados para um público adulto, como a presença de ilustrações em
grande quantidade e a opção por cores poucos usuais, entre outros.
Definida a obra, passamos aos passos seguintes. Trabalhando
paralelamente à edição e à arte, enquanto se fazia as leituras e as alterações
que determinariam o texto final (aquele a ser lançado), fazíamos também
o projeto visual. Como as intervenções textuais são o conteúdo desse
trabalho e serão abordadas mais adiante, tratemos brevemente do aspecto
visual da obra. Não é possível pensar em um texto sem considerar seu

7
Editorialmente, o livro é considerado infantojuvenil, isto é, destinado a crianças e jovens.
A classificação editorial de um livro visa a objetivação da venda - o público possível.
Quando nos referirmos a “infantojuvenil” neste trabalho estaremos usando esse critério,
o de um livro com sintaxe e semântica próximas do universo infantil e juvenil, uma leitura
acessível a partir de certo grau de educação esperado de uma determinada faixa etária.
Esse, contudo, é um uso prático, não refletindo a séria restrição que um livro sofre ao ser
classificado (seja qual for a medida para essa classificação). Para um leitor não há limites de
idade para uma obra, mas para as editoras, de modo geral, há, e como este é um projeto
editorial, usaremos as definições impostas por essas, ainda que não reflitam crenças
pessoais. No capítulo 3 voltaremos a esse tópico.

19
suporte físico. Como diz o pesquisador inglês D. F. McKenzie, citado por
Cerello (2007, p.9):

[...] as formas dos suportes de escrita – sejam livros, jornais,


cartas etc. – têm efeitos sobre seu sentido, uma vez que
todos os elementos não verbais de uma publicação atuam
sobre a leitura e a compreensão. [...]. Simultâneos ao texto,
encontramos vários elementos materiais aos quais o leitor
também dá sentido, de modo que o discurso nunca é
independente do suporte de escrita. (MCKENZIE apud
CERELLO, 2007, p.9)

No que podemos inferir, como Cristina Yamazaki, que

Decorre dessa ideia que os códigos bibliográficos8 podem


ser tão autorais quanto os linguísticos. E que o editor crítico
não poderia, dessa forma, ignorar elementos também
constituintes do sentido. (YAMAZAKI, 2009, p.38)

Pensando em um livro atrativo para crianças e adolescentes,


tomamos certos cuidados com seu acabamento: há ilustrações para as
aberturas de capítulos, e a própria divisão do texto nesses capítulos é
adequada, permitindo interrupções e retomadas na leitura sem prejuízo

8
Alguns desses elementos são descritos por Yamazaki em citação à pesquisa de Moreira
(M. Moreira, 2001)

[...] os dispositivos próprios ao livro impresso (frontispício, divisão em capítulos,


sumário, índices, dedicatória, agradecimentos, prefácio, apresentação, posfácio,
glossário, notas de rodapé, entre outros), o material do suporte (tipo de papel e
encadernação, por exemplo), projeto gráfico ou apresentação visual (formato do
livro, fonte, corpo, entrelinha, comprimento das linhas de texto, iconografia,
projeto de capa etc.). (YAMAZAKI, 2009, p.38)

20
para a continuidade da história. O formato da obra é reduzido, de
13 x 20,5 cm, facilitando o manuseamento (além do transporte). O papel
escolhido para o miolo foi o pólen, que, por ser amarelado, não cansa a
vista do leitor. Sua gramatura foi alta (80 g/m2) para aguentar as
ilustrações, não deixando que a penetração da tinta no papel atrapalhasse
a leitura do texto no verso da folha. A fonte é serifada e grande (gentium),
auxiliando o percurso da leitura. Por fim, a cor da capa é um alaranjado
forte, casando com a imagem de vibração e força que se associa ao público
jovem, e também com a história (a cor tem um tom neutro, propício para
a capa de um livro que trata, em segundo plano, da disputa dos sexos
durante a infância e pré-adolescência). Analisados mais profundamente,
esses tópicos todos dão material suficiente para outra pesquisa. Nesta,
porém, como mencionado, abordaremos apenas a edição. Ainda assim,
ressalta-se aqui, novamente, a importância do suporte físico de um
original, visto o quanto ele influencia a leitura.

Estes [os leitores], com efeito, não se confrontam nunca


com textos abstratos ideais, separados de toda
materialidade: manejam objetos cujas organizações
comandam sua leitura, sua apreensão e compreensão
partindo do texto lido. Contra uma definição puramente
semântica do texto, é preciso considerar que as formas
produzem sentido, e que um texto estável na sua
literalidade investe-se de uma significação e de um estatuto
inéditos quando mudam os dispositivos do objeto
tipográfico que o propõem à leitura. (CHARTIER, 1991,
p.178)

21
Na frase de Chartier, incluímo-nos entre os leitores, nossas leituras
sofrendo todas as influências do suporte que as sustenta. Há uma grande
diferença entre aquele original, lido em meados de 2007 em um arquivo
de texto, desse que hoje está impresso, e não há dúvidas que o aspecto
visual colabora com o texto, colocando em evidência acertos e encobrindo
erros. Para tratar dessas diversas leituras e intervenções, tratemos da
edição de texto e como ela foi vista na execução desse livro.

22
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE EDIÇÃO
E PREPARAÇÃO



23
2. Considerações sobre edição e preparação

2.1 Sobre as atividades de edição de texto dentro


da editoração

Como área, editoração é um campo vasto e não bem delimitado.


No exterior procura-se criar algumas distinções, ocorrendo no inglês, por
exemplo, a diferença entre “editor” (quem edita) e “publisher” (quem
publica). No português, a indefinição é maior, já que "editor" serve para
as duas definições, sendo aquele “que edita; que tem como função publicar
textos, estampas, partituras, discos etc.; que prepara, de acordo com as
normas editoriais, um texto ou uma seleção de textos para figurar numa
publicação” (Dicionário HOUAISS). São funções múltiplas, com
atividades relacionadas a texto, arte gráfica, concepção digital, marketing
e direito (autoral, principalmente) — e essa ainda é uma lista breve e
superficial das práticas possíveis no setor. Em A construção do livro, obra de
Emanuel Araújo que serve de referência para quem edita ou estuda o
objeto livro, o autor, citando Paulo Amélio do Nascimento Silva, resume
bem a abrangência da profissão:

[...] resulta englobar a editoração um complexo de campos


de trabalho distintos, que vão desde a direção editorial até
as atividades de distribuição e vendas, além de relacionar-
se, a ponto de tê-los como pressupostos essenciais, com dois

24
outros ramos da bibliologia, a saber, a bibliotecnia e a
ecdótica. Assim compreendida, a editoração, pode-se
afirmar, confunde-se com a própria atividade editorial, ou,
para sermos mais precisos, com a atividade a que se dedica uma
empresa editora, desde que, é óbvio, estruturada a sério. Em
sentido restrito, editoração significa, ou o termo tem sido
usado para significar, o conjunto de técnicas (de produção
em si ou rigorosamente editoriais) usadas na produção de
livros9. Entre as técnicas de produção, citem-se a tipologia,
a revisão, a paginação, a diagramação etc., enquanto as
técnicas editoriais podem ser exemplificadas, entre outras,
pela técnica da linguagem de ficção, a da linguagem técnico-
científica, a promoção e a distribuição.10 (SILVA apud
ARAÚJO, 2000, p.51)

Não é nosso intento tentar definir o que é editoração, mas explicar


que essa indefinição e falta de contornos que a atinge como um todo,
atinge também cada um de seus ramos. Se nos focarmos unicamente no
tratamento do texto, há, sim, uma macro-divisão possível: a parte do
cuidado com conteúdo do texto e a parte do cuidado gráfico que esse
sofre. Mas mesmo aí, se nos aprofundamos mais, vemos que as micro-
áreas que formam cada uma dessas seções apresentam-se amorfas e
maleáveis, expandindo-se umas nas outras. Um profissional de arte, por
exemplo, pode ser principalmente diagramador, mas nem por isso deixará
de estar envolvido com as ilustrações e mesmo com o texto, mesmo que

9 A restrição da editoração ao ato de produzir livros é a visão do autor citado, não


correspondendo à visão da autora deste trabalho.

10 A editoração na universidade brasileira”, em Revista de cultura Vozes, 65 (1971), p.46.

25
o contato com esse seja superficial. Em texto, essa indistinção é ainda
maior, e embora se crie subdivisões para as etapas da edição de texto,
todas têm pontos comuns e, na prática, muitas vezes se mesclam.
Em seu artigo já mencionado, Ana Elisa Ribeiro retrata bem essa
situação ao falar do editor de jornal:

No jornalismo, o editor tem tarefa bem mais ampla do que


na publicação de livros, salvo casos em que o editor das
obras seja o executor delas em todas as etapas (algo que se
tornou especialmente possível depois do computador).
(RIBEIRO, 2007, p.11)

Mas tal cenário de indistinção e acúmulo de funções também


chegou aos livros, como ela mesma reconhece em um dos parágrafos de
sua conclusão:

A diferenciação entre o copidesque [editor de texto] e o


revisor de provas pode ser difícil de praticar, mas parece ser
parte de uma prática antiga na coordenação das tarefas dos
produtores de livros e outros objetos de ler. É importante
que o especialista em tratamento de textos saiba intervir
adequadamente, de acordo com a demanda, e possa se
enquadrar em tipos distintos de prestação de serviços, a
despeito de certas fusões atuais das tarefas, causadas principalmente
por mudanças tecnológicas. (RIBEIRO, 2007, p.13. Grifo
nosso).

Em Editor de Texto: Quem é e o que Faz11, artigo de Yamazaki para o

11
Artigo integral pode ser encontrado nos anexos.

26
Intercom, a autora menciona que

Essa confusão de denominações e a falta de definição para


cada tarefa decerto colaboram para aviltar o trabalho do
editor de texto. Esse problema da variedade de designações
para nomear os profissionais do texto e para definir suas
funções pode ser considerado universal, segundo Althéa
Kotze e Marlene Verhoef12, pesquisadoras da prática do
editor de texto. No Brasil, cremos que ainda há um
agravante: a tendência de uma única pessoa acumular
funções que deveriam corresponder a diferentes
profissionais do texto. Tendência estimulada pelas editoras,
que assim podem diminuir o orçamento destinado à edição
de texto. (YAMAZAKI, 2007, p.3)

Em sua dissertação de mestrado sobre o tema, a mesma autora


volta a refletir sobre a questão, citando as pesquisadoras mencionadas:

Na verdade, a pesquisa empírica indica que tanto editores


como editores de texto ainda não estão seguros quanto à
designação da tarefa efetuada por uma pessoa que deve
transformar um original em texto final. As informações
sobre o problema referem-se não apenas à confusão acerca
do papel profissional e do status do editor de texto, mas
talvez bem mais especificamente à natureza complexa e
indefinida da tarefa de edição de texto.13 (KOTZE e
VERHOEF apud YAMAZAKI, 2009, p.85)

12
Professoras na Potchefstroom University for Christian Higher Education (África do Sul).
13
Althéa Kotze e Marlene Verhoef. The text editor as a ghost-writer: crutinizing the
theory and the profession. Antwerp Papers in Linguistics: Text Editing - From a Talent to a
Scientific Discipline. Antuérpia (Bélgica) / Potchefstroom (África do Sul): University of
Antwerp / Potchefstroom University, 2003. p.38.

27
Sem convenção de parâmetros para o trabalho com o texto, cada
autor acaba formando sua própria distinção, que pode se aproximar ou
não de outras. Para Emanuel Araújo, por exemplo, o editor de texto é
principalmente o encarregado do preparo e da revisão literária do original,
aquele que aplica normas. Não é de estranhar, portanto, que em seu livro
o editor de texto se confunda com o preparador14, agindo, esse
profissional híbrido, sob a bandeira da preparação:

O editor, no caso como editor-de-texto, i.e., como


preparador de originais ele próprio, ou como diretor
literário, como supervisor dessa preparação, tem de levar
em conta, de imediato, que o autor forneceu um texto
correto dos pontos de vista informativo e gramatical, mas
dificilmente haverá a priori, nesse mesmo texto, unidade
perfeita quanto ao uso sistemático de pontuação, de sinais
diacríticos, de maiúsculas, de reduções (abreviaturas, siglas)
e assim por diante. (ARAÚJO, 2000, p.55-56)

Segundo o autor, há dois principais tipos de intervenção no texto:


o da normatização (feita pelo editor de texto/preparador) e o da correção
de provas (papel do revisor).
Enquanto o último teria por responsabilidade verificar eventuais
faltas15 (desde tipográficas a conceituais) na prova impressa, o primeiro

14
Neste trabalho, a preparação será considerada algo distinto da edição de texto, em
oposição ao que ocorre em A construção do livro. As distinções entre edição de texto
como etapa e preparação serão abordadas no próximo tópico.
15
“Falta” não está sendo vista como o errar em relação à norma (por exemplo,
contradizer a gramática padrão), mas sim

28
assumiria a tarefa de identificar e corrigir esse mesmo tipo de problema
no original. Com exceção de alguns casos16, a função das interferências
(sendo as correções mencionadas acima um tipo destas) é deixar o texto o
mais claro e pertinente possível, tomando pertinência como adequação do
texto ao seu objetivo (público-alvo, linguagem, mercado etc.). Araújo
leva esses aspectos em consideração ao definir seu editor de
texto/preparador. Sobre a questão da pertinência, diz que

Ao receber um original o editor deve, antes de mais nada,


submeter todo o seu texto ao trabalho prévio de
normalização literária, isto é, submetê-lo a uma revisão de
tal ordem que empreste ao conjunto uma espécie de
coerência integral17. (ARAÚJO, 2000, p.59)

E sobre a clareza, após ensinar que “bem falar ou bem escrever é


como o semear ‘uma arte sem arte’”, aproveita para citar Orthon Garcia
(que apresenta também outras “virtudes” necessárias ao texto) e endossar
a ideia deste:

Estamos convencidos — e conosco uma plêiade de nomes


ilustres — de que a correção gramatical não é tudo —
mesmo porque, no tempo e no espaço, seu conceito é muito
relativo — e de que a elegância oca, a afetação retórica, a
16
“Essa ideia é válida no caso de uma prática bem-intencionada, ou seja, quando o autor visa
transmitir uma informação sem ruídos, porém a intenção comunicativa não se refletiu na redação do
texto. Entretanto, nem todos os textos, mesmo não literários, têm o propósito de serem claros e
acessíveis – por exemplo para definir e delimitar um tipo de leitor. Isso também não implica que o
texto esteja mal escrito ou com problemas, a avaliação pode estar condicionada a fatores tão
diversos como estilo ou intenção. ” (YAMAZAKI, 2009, p.96)
17
O termo “coerência integral” relaciona-se à ideia de pertinência que foi abordada
anteriormente.

29
exuberância léxica, o fraseado bonito, em suma, todos os
requintes estilísticos hedonistas e sibaríticos com mais
frequência falseiam a expressão das ideias do que
contribuem para a sua fidedignidade. É principalmente por
isso que neste livro insistimos em considerar como virtudes
primordiais da frase a clareza e a precisão das ideias (e não se
pode ser claro sem se ser medianamente correto), a coerência
(sem coerência não há legitimamente clareza) e a ênfase
(uma das condições da clareza, que envolve ainda a
elegância sem afetação, o vigor, a expressividade e outros
atributos secundários do estilo)18. (GARCIA apud
ARAÚJO, 2000, p.61)

Em nome da clareza, portanto, o profissional de Araújo seria capaz


de agir para além da padronização gramatical, atuando também na
padronização de estilo, na melhoria da inteligibilidade do texto, na
adequação de vocabulário, na correção e padronização ortográfica e nas
padronizações editoriais (de acordo com manuais de estilos, dos centros

18
Orthon Garcia. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1977. p.viii. 6.ed.rev.

30
de normalização19 ou de escolhas próprias do editor20).21 Ainda assim, é
sobretudo um normalizador, e nesse ponto diferimos.

Embora ainda seja um dos teóricos de maior influência no cenário


nacional22, e por isso tenha sido abordado, Araújo define o trabalho do
editor de texto unicamente como padronizador, o que implica em certas
restrições à função (não há, por exemplo, intervenções estruturais, que

19
“A instituição que agrupa a maioria dos órgãos nacionais de normalização é a
International Standard Organization (I.S.O.), da UNESCO, fundada em 1946 e que tem
sede em Genebra. O Brasil é país-membro da I.S.O. através da Associação Brasileira de
Normas Técnicas (A.B.N.T.). ” (ARAÚJO, 2000, p.56)
20
Esses critérios foram retirados do livro em questão:

[...] jamais se chegou a um consenso que fixasse em critérios genéricos o ideal


normalizador. Daí, não por acaso, distinguirem-se dois tipos de padronização literária, em
muitos pontos excludentes entre si: o da editora (normalização empírica), que os ingleses
denominam ‘manual de estilo’, e o dos chamados centros de normalização (normalização
teórica). Entre ambos os polos, contudo, o editor-de-texto fatalmente escolherá um
tertius, o que significa a própria opção em cada caso, para cada original.

Não existe, na verdade, qualquer padrão normativo absoluto para nada. O preparador de
originais, de fato, sempre oscilará entre as dificuldades - e inevitáveis adaptações caso por
caso - de padronização para traduções, organização bibliográfica ou de índicas etc., até a
aceitação, pura e simples, de certos critérios impostos pela criação literária (em particular
a poesia), em que a única tarefa normalizadora, aliás muito difícil em alguns autores,
consiste basicamente em infundir coerência gráfica ao texto impresso. (ARAÚJO, 2000,
p.56)

Atualizando Araújo, a autora deste trabalho acrescentaria que “manual de estilo”


(primeiro parágrafo da citação anterior) já foi incorporado na nossa língua, tanto que
aparece como exemplo do verbete “manual” no dicionário Houaiss: “Obra de formato
pequeno que contém noções ou diretrizes relativas a uma disciplina, técnica, programa
escolar etc. / Ex.: <m. de redação e estilo> <m. de química>” (HOUAISS. Grifo da autora)
21
Essas são algumas das atuações possíveis ao editor, segundo o livro de Emanuel Araújo.
Na obra, estão mais detalhadas, aparecendo em subdivisões temáticas.
22
Seu livro, lançado em 1986, ainda é referência em cursos e editoras. Consta inclusive na
bibliografia da Com-Arte.

31
serão vistas posteriormente). Unir atividades relativamente distintas no
trabalho de edição de texto sob os critérios da preparação faz com que
algumas possibilidades de prática do editor fiquem fora de classificação,
algumas práticas que foram mesmo utilizadas no preparo do livro que
serve de base a esse trabalho.
Em função dessa divergência, para sistematização do processo de
intervenção no texto usaremos como base os critérios que Yamazaki
estabelece em sua dissertação. Deste modo, para esse trabalho adotaremos
três eixos centrais na edição de um texto: a edição de texto, a preparação
e a revisão, todos na visão proposta pela autora mencionada.

2.2 Edição de texto em três etapas: edição de


texto, preparação e revisão

Como já foi apontado, antes da obra de um autor ser considerada


finalizada e pronta para a publicação, há uma série de procedimentos
relacionados aos acabamentos visual e textual do original.
Para o tratamento do texto (edição de texto), Cristina Yamazaki
estuda o uso cotidiano, pois “não haveria utilidade numa proposta que
fosse apenas teórica e não pudesse ser aplicada empiricamente, já que se
trata de atividades profissionais” (YAMAZAKI, 2009, p.93). Dele ela
retira delimitações e distinções para três áreas de atuação: a edição do

32
texto (enquanto etapa), a preparação e a revisão, sendo que “em todas elas
um profissional lê um texto redigido por outra pessoa e faz algumas
intervenções”. (Ibidem, p.92). Resumidamente, poderíamos dizer que a
Edição de texto tem por objetivo deixar claro ao leitor como é a
construção estrutural e temática do livro, orientando a leitura e, conforme
o critério da publicação, facilitando-a; a Preparação uniformiza
(ortotipograficamente, editorialmente, gramaticalmente e
estilisticamente) o texto editado, deixando-o pronto para a edição gráfica,
e a Revisão, cujo nome vem de “Revisão de prova”, faz o mesmo tipo de
busca que as outras duas etapas, mas numa cópia impressa do material já
diagramado (a “prova”).
Para a análise que propomos, utilizaremos apenas os conceitos de
edição e de preparação, que detalharemos um pouco mais.

2.2.1 Edição de texto: o que é

O editor de texto busca favorecer a comunicação entre obra e


leitor, tornando-a acessível. Assim, seu compromisso é com “a precisão,
o rigor, a legibilidade e a compreensibilidade” (HOUAISS apud
YAMAZAKI, 2009, p.95), o que faz com que a correção de erros ocorra
principalmente na medida em que esses dificultam a clareza.

33
Usando o trabalho de Cloutier23 como fonte, Yamazaki separa a
intervenção do editor em dois tipos, estrutural e linguística.

2.2.1.1 Intervenção estrutural

É a etapa em que se enfatiza principalmente a organização do


conteúdo informativo, sem se deter muito no aspecto linguístico.
Portanto, atenta-se principalmente com relação à macroestrutura (textual
e visual24), ainda que a microestrutura também seja contemplada, já que,
segundo Yamazaki, os princípios que guiam as relações no nível frasal e
interfrasal são basicamente os mesmos que atuam no nível
macroestrutural. (YAMAZAKI, 2009, p.105- 106).
Consequentemente, preocupa-se com a sequência da informação,
deixando-a o mais claro possível — retirando, inserindo ou modificando
(em conteúdo ou localização) alguns trechos em função dessa clareza —,

23
Francine Cloutier. Des modifications guidées par la recherche de La pertinence dans
toutes les dimensions textuelles. In: Jocelyne Bisaillon (org.). La révision professionnelle:
processus, stratégies et pratiques. Quebec: Éditions Nota Bene, 2007.
24
“Além da dimensão verbal abordada pela psicolinguística nas pesquisas sobre os processos
cognitivos da leitura, há uma dimensão não verbal envolvida na intervenção estrutural de um
original. Gráficos, tabelas, boxes, quadros, ilustrações, fotos - esses elementos gráficos também
ajudam a compor a macroestrutura de um texto e devem ser considerados na edição. Muitas vezes,
eles constituem instrumentos tão fundamentais quanto os textos indicadores para a construção de
um percurso de leitura e para o desenvolvimento coerente do tema. ” (YAMAZAKI, 2009, p.106)

Segundo Yamazaki, “textos indicadores” refere-se à denominação que Richaudeau (1986)


usa para designar “textos funcionais” - títulos de capítulo, intertítulos, legendas etc., cuja
função aparece abordada no parágrafo seguinte.

34
e preocupa-se com títulos de capítulos, intertítulos, legendas etc., todos
aqueles que podem orientar a leitura e resgatar ideias que já tenham sido
apresentadas ao leitor previamente ou que ele traga consigo. Ingedore
Villaça Koch, em seu livro sobre construção de sentidos no texto,
comenta que

Por vezes a (re)ativação de referentes, a partir de “pistas”


expressas no texto, se dá via inferenciação. Pode-se inferir,
por exemplo, o todo a partir de uma ou de algumas partes;
um conjunto a partir de um ou mais subconjuntos; enfim,
conhecimentos que fazem parte de um mesmo “frame” ou
“script”, a partir de um ou vários de seus elementos
explícitos na superfície textual. (KOCH, 2001, p.33)

Embora use “dicas” para se referir a estruturas linguísticas, nada


impede que a referência seja expandida para o arranjo estrutural do texto.
Afinal, essa é justamente a função dos “textos indicadores”.
Sobre como essa inferência ocorreria, a autora menciona que

Relações entre informação textualmente expressa e


conhecimentos prévios e /ou partilhados podem ser
estabelecidas por recurso à intertextualidade, à situação
comunicativa e a todo o contexto sociocultural. (KOCH,
2001, p.24)

Esse resgate, que ocorre durante a leitura, é inconsciente:

Com base em elementos formais, o leitor ativa seus


conhecimentos prévios e procura em sua memória de longo
prazo informações relevantes (linguísticas, textuais e
enciclopédicas) que lhe permitem fazer inferências para

35
relacionar diferentes partes do texto num todo coerente. As
inferências são fundamentais para que se compreenda um
texto, pois ajudam o leitor a estabelecer ligações entre as
diversas partes do que está lendo e permitem a constituição
de um significado. (YAMAZAKI, 2009, p.102-103)

Trata-se, então, de um processo cognitivo de apreensão da leitura,


ao qual o editor deve estar atento a fim de encontrar a forma mais eficiente
de apresentar um texto. Desta maneira, conhecer passos básicos sobre a
aquisição da informação é uma ferramenta valiosa no processo de edição,
principalmente para fundamentar algumas decisões.
Em Do outro lado do muro, algumas situações servem como exemplo
desse resgate de conteúdo, seja de contextos narrativos acontecidos
anteriormente e cuja retomada é necessária, seja de contextos sociais, que
serão reconhecidos pelo leitor a partir de sua vivência:

Depois do almoço, como era sexta-feira, dia de brincadeira


especial, e como tínhamos tempo antes da última partida de
futebol do campeonato do bairro, fomos até a sua casa, pegamos
os dois pedaços de corda que sempre nos acompanhavam
nessas horas e fomos apanhar seriguela no pé, coisa que
adorávamos fazer. De cima da árvore conseguíamos ver as
vacas que pastavam. (ARQUIVO EDITADO, c.1. Grifo
nosso.)

Na passagem, o trecho marcado em itálico foi uma sugestão do


editor pela necessidade de uma demarcação temporal, já que as cenas
acontecem no mesmo momento narrativo: o capítulo um, que trata das
dores de Dani, é simultâneo ao evento tratado no capítulo onze e está

36
diretamente relacionado aos capítulos dez e doze, sobre os jogos de
futebol — um deles mencionados no grifo. O original, sem essa marca,
não estava tão claro, de modo que os capítulos vinculados perdiam o elo,
deixando o leitor confuso quanto à ligação entre eles.
Para reforçar o elo, no capítulo onze foi sugerida outra inserção:

Naquele dia, em que o tio Sérgio veio procurar a mamãe para


conversar, eu estava escondido na sala, tentando ouvir a
conversa deles. Era muito difícil porque eles falavam baixo
e a chuva lá fora não me deixava escutar nada. Depois de um
tempo, o tio Sérgio saiu e a minha mãe foi até a cozinha. Eu
fui atrás dela, seguindo como um zumbi, mas sem entender
o porquê de estar fazendo aquilo. (ARQUIVO EDITADO,
c.11. Grifo nosso.)

No âmbito sociocultural, as referências são retiradas do cotidiano,


mencionando elementos do nosso conhecimento social comum (por
exemplo, apelido de time de futebol) e comportamentos-padrão
(principalmente nas passagens com a mãe de Duda, suas falas bastante
características, quase caricatas):

Eu entrei. Marcão estava no quarto arrumando as suas coisas


enquanto resmungava e esbravejava
— Às vezes a minha mãe me irrita — Ela fez você arrumar
o quarto? Eu odeio quando é dia de arrumar o quarto! —
Deitei na cama dele, deixando a minha bola do Timão cair
no chão. (ARQUIVO EDITADO, c.3. Grifo nosso.)

Na cena, Timão é referente a Corinthians, nome pelo qual os


torcedores designam o time paulistano. Estando o original em caixa baixa,

37
a maiúscula foi sugerida na edição, depois de se conversar com a autora
sobre a existência ou não de uma insinuação nesse sentido.
Como elemento de humor, algumas das intertextualidades nem são
explicadas, seu sucesso dependendo exclusivamente do conhecimento
prévio do leitor, que só assim identificaria a inocência dos personagens em
certas passagens, como esta do cortiço:

No caminho para a porta, mamãe me parou:


— Filho, é feio ficar gritando assim. Por que você não toca
a campainha da casa do seu amigo, em vez de ficar gritando
o nome dele do quintal?
— Dá muito trabalho, mãe!
— Que dê! É falta de educação ficar gritando assim. Nós
não moramos num cortiço.
Eu não tinha ideia do que um cortiço fosse, mas deveria ser
um lugar legal pacas para se morar. Lá as pessoas gritavam
quando quisessem, ouviam televisão em volume muito alto
e espiavam a vida dos outros.
Pelo menos é o que parecia, já que todas as vezes que eu
fazia alguma dessas coisas em casa, mamãe vinha com a
história de não morarmos em um cortiço. Bem que eu
queria morar em um. (ARQUIVO EDITADO, c.7)

Koch, que trabalha o tema, parte do pressuposto de que “o sentido


não está no texto, mas se constrói a partir dele” (KOCH, 2001, p.25), e
que a progressão textual se opera a partir da introdução de informação
nova em um contexto de informação já dada (e absorvida). Logo, as
relações de sentido se estabeleceriam entre segmentos textuais de
tamanhos diversos; entre segmentos textuais e conhecimentos prévios, e

38
entre segmentos textuais e conhecimentos e /ou práticas
socioculturalmente partilhados. (KOCH, 2001, p.24).
A partir dos estudos de Heinemann & Viehwegger25, ela menciona
três grandes sistemas de conhecimento, o linguístico, o enciclopédico e o
interacional, sendo os dois primeiros mencionados por Yamazaki.
Segundo essa classificação,

O conhecimento linguístico compreende o conhecimento


gramatical e o lexical. Ele é o responsável, por exemplo,
pela organização do material linguístico na superfície
textual, pelo uso dos meios coesivos que a língua nos põe à
disposição para efetuar a remissão ou a sequenciação
textual, pela seleção lexical adequada ao tema e/ou aos
modelos cognitivos ativados.
O conhecimento enciclopédico ou conhecimento de mundo
é aquele que se encontra armazenado na memória de cada
indivíduo, quer se trate de conhecimento do tipo
declarativo (proposições a respeito dos fatos do mundo),
quer do tipo episódico (os “modelos cognitivos”
socioculturalmente determinados e adquiridos através da
experiência). É com base em tais modelos, por exemplo,
que se levantam hipóteses, a partir de uma manchete; que
se criam expectativas sobre o(s) campo(s) lexical(ais) a
ser(em) explorado(s) no texto; que se produzem as
inferências que permitem suprir as lacunas ou
incompletudes encontradas na superfície textual.
O conhecimento sócio-interacional é o conhecimento sobre
as ações verbais, isto é, sobre as formas de inter-ação através
da linguagem. Engloba os conhecimentos do tipo
ilocucional, comunicacional, metacomunicativo e
superestrutural. (KOCH, 2001, p.26-27)
25
W. Heinemann & D. Viehweger. Textlinguistik – Eine Einführung. Tübingen: Niemeyer,
1991.

39
Sobre os tipos de conhecimento que o conhecimento sócio-
interacional abrange, a autora continua:

É o conhecimento ilocucional26 que permite reconhecer os


objetivos ou propósitos que um falante, em dada situação de
interação, pretende atingir. Trata-se de conhecimentos
sobre tipos de objetivos (ou tipos de atos de fala), que
costumam ser verbalizados por meio de enunciações
características, embora seja também frequente a sua
realização por vias indiretas, o que exige dos interlocutores
o conhecimento necessário para a captação do objetivo
ilocucional.
O conhecimento comunicacional é aquele que diz respeito,
por exemplo, a normas comunicativas gerais [...]; à
quantidade de informação necessária numa situação
concreta para que o parceiro seja capaz de reconstruir o
objetivo do produtor do texto; à seleção da variante
linguística adequada a cada situação de interação e à
adequação dos tipos de texto às situações comunicativas.
[...]
O conhecimento metacomunicativo permite ao produtor
do texto evitar perturbações previsíveis na comunicação ou
sanar [...] conflitos efetivamente ocorridos, por meio da
introdução no texto, de sinais de articulação ou apoios
textuais, e pela realização de atividades específicas de
formulação ou construção textual. [...]
O conhecimento superestrutural, isto é, sobre estruturas ou
modelos textuais globais, permite reconhecer textos como
exemplares de determinado gênero ou tipo; envolve,

26
No Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa: Caminho, 2003), de Mira Mateus, temos que
“cada tipo de ato ilocutório tem implicado um objetivo ilocutório que, de certo modo,
regula e integra a força da ilocução”. Assim, o estudo (e decorrente classificação) de atos
ilocutórios e, aí, o conhecimento da ilocução, surgem para distinguir a intenção do
enunciado em cada ato linguístico realizado pelo falante/locutor.

40
também, conhecimentos sobre as macrocategorias ou
unidades globais que distinguem os vários tipos de textos,
sobre sua ordenação ou sequenciação, bem como sobre a
conexão entre objetivos, bases proposicionais e estruturas
textuais globais. (KOCH, 2001, p.27-28)

No livro Do outro lado do muro, os conhecimentos ilocucional e


comunicacional estão ligados, ambos bastante vinculados à escolha do
falante. No livro, o personagem narrador é Duda, e ele narra de um tempo
futuro não conhecido (o livro são suas memórias). A voz empregada,
contudo, é a voz da sua infância, aquela que lhe vem dessas recordações.
Assim, o uso da informalidade e a simplicidade nas estruturas e enunciados
foram o ponto marcante. Muitas vezes o sujeito que conjuga o verbo está
oculto, mesmo no começo das sentenças, e as relações interfrasais são
marcadas pela predominância da oralidade, ainda que em detrimento do
“gramaticalmente correto”. Visando a clareza, a linguagem direta traz no
enunciado sua própria motivação. Não há, na maioria das vezes,
significados ocultos nas enunciações do narrador, sendo essas
predominantemente descritivas e assertivas. O trecho abaixo serve bem a
esta averiguação:

Papai estava certo. Em dois dias, a nova família se mudou


para a casa ao lado da nossa. Eu estava jogando bola no
quintal, treinando a minha cobrança de falta, quando o
caminhão de mudança chegou. Eu peguei os tijolos que
serviam de gol e montei uma escadinha, para poder ver
melhor. Queria saber de tudo o que estava acontecendo,
mas não queria que pensassem que eu fosse um enxerido.

41
Por isso me abaixei e deixei o mínimo possível do meu rosto
à mostra.
Eram sofás, caixas e outras mobílias sendo trazidas por
homens enormes. Um dia eu também seria capaz de
carregar um sofá sozinho, pensei. Depois de muito leva-e-
traz, o caminhão foi embora e seu Joaquim, que
acompanhara a operação de perto, voltou a trancar a casa.
— Oi, Duda! Eu já vi você. Você está espiando? — Seu
Joaquim falava com um ar muito divertido.
— Não, eu não estava espiando. Eu sei que espiar é feio! Eu
estava admirando o trabalho dos transportadores.
(ARQUIVO EDITADO, c.2)

Em relação ao saber comunicacional, há também as interferências


por falta ou excesso de informação, que dificultam a assimilação do
conteúdo. Alguns trechos foram modificados em decorrência disso:

— Você está louco? Eu tenho apenas 10 anos, não quero


morrer ainda. Apesar de a minha mãe gritar muito e a minha
irmã ser uma idiota cheia de frufrus, eu não posso deixar que eles
sofram as consequências disso.
— Não exagera, Marcão! Não é assim tão grave, vai?
— Duda, eu sinto muito. Mas fui eu quem foi falar com a
turma da rua de cima, daquela vez que vocês brigaram e nós
tentamos cancelar o jogo.
— Tudo bem. — Marcão estava falando da única vez que eu e
Dani brigamos e brigamos feio, mas como nós ainda precisávamos
de um bom atacante para o time, passei por cima do meu orgulho e
do meu olho roxo e fui pedir desculpas e fazer as pazes. — Mas o
que nós vamos fazer? (ARQUIVO ORIGINAL, c. 1. Grifo
nosso.)

No original, o primeiro trecho em itálico é comprido, quebrando


a fluência do diálogo. O vocabulário também não se adéqua ao do

42
personagem e, de modo geral, ao de um menino da faixa etária dele.
Assim, foi suprimido na versão final.
Na segunda marcação em itálico, o caso é de falta de clareza
(conhecimento metacomunicativo) e, portanto, foi adaptado:

— Você está louco? Eu tenho apenas 10 anos, não quero


morrer ainda.
— Não exagera, Marcão! Não é assim tão grave, vai!
— Duda, eu sinto muito. Mas fui eu quem foi falar com a
turma da rua de cima, daquela vez que vocês dois brigaram
e nós tentamos cancelar o jogo.
— Tudo bem. — Marcão estava falando da única vez em
que eu e Dani brigamos, e brigamos feio, e que terminou
comigo tendo que passar por cima do orgulho e do meu olho
roxo para pedir desculpas e fazer as pazes, já que
precisávamos desesperadamente de um bom atacante para o
time.
— Mas o que nós vamos fazer? (ARQUIVO EDITADO,
c.1)

Abaixo, o exemplo é outro: o excesso de descrição pode dificultar


a assimilação do conteúdo. Nesse caso, de novo, temos o conhecimento
comunicacional: saber a “quantidade de informação necessária numa
situação concreta para que o parceiro seja capaz de reconstruir o objetivo
do produtor do texto”:

[...] O antigo galinheiro não era muito grande. Tinha ainda


algumas cadeiras quebradas e outras quinquilharias.
A única exigência da avó do Juca foi que nós não
mexêssemos nas coisas que ela guardava lá. Por isso,
havíamos empurrado para o canto as cadeiras que não
podíamos mais aproveitar e algumas latas de tinta velha e

43
outras coisas.
Nós conseguimos aproveitar uma mesa oval com seis
lugares. Arrumamos cinco cadeiras que pintamos com um
resto de tinta azul de uma lata velha. Por cima da bagunça
da avó do Juca, nós jogamos a antiga piscina de plástico do
Juca com desenhos de peixinhos. (ARQUIVO ORIGINAL,
c.7.)

O antigo galinheiro não era muito grande. Tinha ainda


algumas cadeiras quebradas e outras quinquilharias. A única
exigência da avó do Juca foi que nós não mexêssemos nas
coisas que ela guardava lá. Por isso, o que não dava para usar
nós empurramos para um canto e cobrimos com a antiga
piscina de plástico do Juca, que tinha desenhos de peixinhos.
No fim, só salvamos uma mesa oval de seis lugares e cinco
cadeiras que pintamos com o resto da tinta azul de uma das
latas velhas que estavam lá. (ARQUIVO EDITADO, c.7)

Enquanto o conhecimento linguístico parece estar relacionado à


intervenção estrutural apenas na medida em que é necessário para a
compreensão de qualquer informação (e títulos, intertítulos e afins se
encaixam na descrição), o conhecimento enciclopédico está bastante
vinculado à ela, por ser necessário às inferências que esse tipo de
intervenção busca criar. Também o conhecimento metacomunicativo e o
superestrutural parecem ter uma certa interação com a intervenção
estrutural, o primeiro em busca de elucidar e diminuir conflitos (já
gerados ou previsíveis), o segundo quanto à própria organização de
estruturas. Embora Koch fale de “ordenação ou sequenciação, bem como
sobre a conexão entre objetivos, bases proposicionais e estruturas textuais

44
globais” visando o texto, a métrica proposta serve também para o não-
textual, como projeto gráfico e hierarquia da informação (conteúdo e
visual). Novamente, trata-se de campos da intervenção estrutural.
Os outros tipos de conhecimento também servem como orientação
para uma edição baseada em outras fontes que não a intuição. Eles,
contudo, fazem parte da próxima etapa de intervenção, a linguística.

2.2.1.2 Intervenção linguística

Segundo Yamazaki, a abordagem em nível linguístico ocorre


sobretudo em relação a léxico, sintaxe, ortografia, pontuação,
morfologia, semântica e estilo (além de possíveis impropriedades que
prejudiquem a compreensão do texto), visando “garantir a legibilidade do
texto a seus leitores, assim como atentar para a coerência linguística em
âmbitos como léxico e estilo” (YAMAZAKI, 2009, p.108).
Nessa etapa corrige-se também “vícios de linguagem”, não “erros”,
que possam comprometer o texto. Coloca-se a distinção na designação
pois, vale lembrar, alguns desvios da gramática normativa nem sempre são
erros, em alguns casos podendo mesmo enriquecer a leitura:

Cabe ao editor de texto avaliar a cada trabalho —


considerando o leitor, o tipo e o objetivo da publicação,
entre outros elementos extralinguísticos — se vai usar
variedades não padrão condenadas pelas gramáticas
normativas. (YAMAZAKI, 2009, p.111)

45
Já para a ortografia, pontuação, morfologia e sintaxe, é costume se
guiar pelo que é canônico, salvo exceções explícitas (por exemplo, caso
do Guimarães Rosa, que além do vocabulário, inovava também na
acentuação das palavras). Para a sintaxe, especificamente, a sugestão de
seguir a norma (que dita uma ordem natural aos elementos formais do
texto) é ainda maior, já que “estruturas que não sigam essa ordem
tradicional, ou que apresentam intercalações longas interrompendo a
oração principal, provavelmente exigirão grande esforço cognitivo do
leitor” (YAMAZAKI, 2009, p.111).
Também nessa etapa são necessários conhecimentos
comunicacional e metacomunicativo, mencionados no tópico anterior. A
ideia de adequar uma informação e prever e/ou corrigir um possível
empecilho comunicacional, proposta por Koch, parece rondar o trabalho
do editor, que acaba tomando contato e confirmando esses preceitos pela
prática. Isso explicaria, ao menos em parte, a noção que vigora de um
trabalho intuitivo. Retirar, mesmo que parcialmente, essa noção da
intuição e transferi-la para um conhecimento (mesmo superficial) do
processo cognitivo pode ser proveitoso, na medida em que, segundo
Koch, as estratégias cognitivas constituem-se também em “estratégias de
uso do conhecimento”, levando sempre em consideração que

[...] esse uso, em cada situação, depende dos objetivos do


usuário, da quantidade de conhecimento disponível a partir
do texto e do contexto, bem como de suas crenças, opiniões

46
e atitudes, o que torna possível, no momento da
compreensão, reconstruir não somente o sentido
intencionado pelo produtor do texto, mas também outros
sentidos, não previstos ou mesmo não desejados pelo
produtor. [...]
As estratégias de ordem cognitiva têm, assim, a função de
permitir ou facilitar o processamento textual, quer em
termos de produção, quer em termos de compreensão.
(KOCH, 2001, p.30-31)

Embora Koch fale dos processamento e compreensão do texto


como receptor/leitor, o quadro descrito se encaixa perfeitamente ao
papel do editor. Afinal, como mencionado anteriormente, a parte básica
do nosso trabalho é a leitura atenta, olhando o texto com os olhos do leitor
externo, verificando se e como a informação nos é transmitida, e, se
necessário, aperfeiçoando essa trajetória de modo que ela siga o mais
completa possível até os próximos leitores.

2.2.1.3 Sobre legibilidade e outras questões além das


intervenções estrutural e linguística

Antes de fazer qualquer intervenção é necessário que o editor


reflita sobre o leitor e sobre a publicação, determinando não só o nível de
leitura de seu público-alvo, mas conhecendo a apresentação final de seu
produto, de modo que todo seu trabalho seja efetivo.

As inserções têm, em geral, a função de facilitar a


compreensão dos interlocutores, criando coordenadas para

47
o estabelecimento de uma estrutura referencial, de modo
que o material inserido não é supérfluo, isto é, não é
eliminável sem prejuízo para a compreensão. Através da
inserção, introduzem-se explicações ou justificativas,
apresentam-se ilustrações ou exemplificações, fazem-se
comentários metaformulativos que têm, muitas vezes, a
função de melhor organizar o mundo textual. (KOCH,
2001, p.32)

Não há como sugerir uma linguagem rebuscada para um público


infantil sem alfabetização plena, por exemplo, do mesmo modo que não
se pode inserir grandes enxertos em um livro de poucas páginas e
conteúdo já pré-definido. Como diz Yamazaki,

Mesmo a intervenção linguística, que eventualmente


poderia ser efetuada sem o conhecimento da situação
comunicativa, também está bastante vinculada a elementos
extralinguísticos. Por texto uma variedade não padrão e
avaliar a coerência do registro linguístico são opções que o
editor só poderia fazer após avaliar o leitor, a natureza da
obra, a função e o objetivo do texto. (YAMAZAKI, 2009,
p.116)

Em Do outro lado do muro, como já mencionamos, predomina a


oralidade e a fluência do texto, visto seu público-alvo e seu narrador.
Como menciona Yamazaki, essas são escolhas editoriais feitas depois de
análise. Encontradas respostas para essas questões, toda intervenção passa
para seu segundo critério, a legibilidade.
Não há como avaliar com clareza a legibilidade de um texto. Como
ela depende da própria produção do texto e do processo de leitura, é um

48
conceito variável. Há estudos, como os de Richaudeau27, que pensam os
processos cognitivos tanto da produção e recepção de um discurso quanto
da compreensão e memorização do leitor, abordando tanto a legibilidade
linguística quanto a tipográfica (YAMAZAKI, 2009, p.112-113), mas
mesmo esses não chegaram a uma definição plena sobre o que é um texto
legível.
Ainda assim,

Ao pôr a legibilidade como centro de uma das etapas


envolvidas na edição de texto, ressalta-se a importância de
considerar o leitor (em suas competências textuais e suas
condições sociais, por exemplo) durante esse processo de
intervenção no texto. O texto a ser editado não deveria ser
isolado de suas condições de produção e recepção, pois a
legibilidade não existe independente do leitor [...].
(YAMAZAKI, 2009, p.113)

Sobre o leitor, aliás, é importante lembrar que embora as decisões


sejam tomadas em função dele, foco do trabalho editorial, não é possível
acertar sempre. A leitura, etapa final da interação editor-leitor, é
individual e circunstancial.
Como diz Maria Helena Martins em O que é leitura,

A despeito de todas as tentativas de uma visão sistemática e


metódica, se nos perguntarmos o que é, o que significa a
27
François Richaudeau é um editor, pesquisador e autor francês com vários estudos sobre
a legibilidade. Na pesquisa de Yamazaki, a autora utiliza como referência para o conceito
de legibilidade as definições que aparecem em Conception et prodution des manuels scolaires:
guide pratique, livro de Richaudeau feito a partir de iniciativa da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

49
leitura para nós mesmos, certamente cada um chegará a
uma resposta diferenciada. Isso porque se trata, antes de
mais nada, de uma experiência individual, cujos limites não
estão demarcados pelo tempo em que nos detemos nos
sinais ou pelo espaço ocupado por eles. Acentue-se que, por
sinais, entende-se aqui qualquer tipo de expressão formal
ou simbólica, configurada pelas mais diversas linguagens.
(MARTINS, 1997, p.32)

Logo, citando as conclusões de Yamazaki a respeito das ideias de


Kleiman28,

[...] mesmo um leitor muito proficiente pode não


compreender um texto se estiver cansado, desinteressado,
sem motivação ou se não tiver um objetivo definido que o
estimule a se esforçar no processo. (YAMAZAKI, 2009,
p.116)

2.2.2 Preparação de texto: o que é

Encarregada de “uniformizar a apresentação e a organização do


texto editado, por meio de uma normatização ortotipográfica, editorial,
gramatical e estilística” (YAMAZAKI, 2009, p.117), a preparação de
texto ocorre após a edição e antes da entrega do material para as etapas de
diagramação e outros cuidados gráficos.
Normalmente, não se distingue as etapas de edição e preparação.

28
Yamazaki escreve a partir das ideias de Ângela Kleiman sobre cognição na leitura, que
podem ser encontradas em Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura (Campinas: Pontes,
2004).

50
Entretanto, citando Yamazaki,

A complexidade de relações a serem estabelecidas clara e


formalmente no texto não pode ficar sob responsabilidade
de apenas um profissional, o preparador de textos —
conforme se constata hoje em dia na prática profissional em
editoras de livros. É imprescindível haver um processo
específico de intervenção textual que se dedique ao trabalho
nessa dimensão tocada pelas competências textuais
enciclopédicas envolvidas na leitura. (YAMAZAKI, 2009,
p.143)

Como aqui seguimos os critérios de Yamazaki, e como a autora em


questão faz a distinção, é importante deixar claras as divisões entre os dois
tipos de intervenção.
Na fase de edição de texto, como vimos, são propostos dois
critérios de intervenção no texto, o estrutural e o linguístico. Ambos
dizem respeito a melhorias da e na informação, em conteúdo e
apresentação, adaptando os processos da escrita à situação
comunicacional.
A preparação, por sua vez, e como mencionamos antes, se
preocuparia principalmente em padronizar as diversas faces desse texto
editado. Essa padronização é importante para que as alterações e
indicações gerais (as de ordem tipográficas, principalmente) sejam claras
àqueles que vão cuidar de dar a forma final ao livro.
Para descrever os tipos de cuidados da preparação, Yamazaki a

51
separa em quatro vertentes: normatizações ortotipográfica29, gramatical,
editorial e estilística.

Normalização ortotipográfica: é aquela que atenta para os


signos tipográficos, adequando-os às normas30. Alguns exemplos de
normatização desta seriam as escolhas:
 de forma de uso: caixa-alta, caixa-baixa e caixa-alta-e-baixa;
versal e versalete; de realces gráficos: itálico, negrito e
sublinhado; siglas, abreviaturas e símbolos; numerais; da
grafia de nomes próprios
 do tipo e modo a ser usado: aspas; travessões; parênteses

Normatização gramatical: adéqua o texto ao padrão


gramatical. Esta etapa ocorre porque, sendo levado a fazer uma leitura
integral do texto durante a preparação, o preparador pode eventualmente
deparar-se com alguma inadequação que tenha passado despercebida ao

29 “Ortotipografia” é um neologismo adotado no setor editorial francês e no espanhol,


por ser bastante adequado para descrever uma das etapas de atuação sobre o texto.
Yamazaki a utiliza pela mesma razão, e referencia sua escolha citando Lacroux, autor
francês de um dicionário - Orthotypographie - sobre o tema:

[...] é um novo neologismo. Sua formação, muito diferente daquela de orthotypographia


(singularidade latina forjada há quatro séculos: ortho + typographia = tipografia correta)
nada deve à prefixação. Trata-se de uma palavra-valise sutil: ortho[graphe] + typographie.
Ela é perfeita para designar o exército das prescrições ao mesmo tempo ortográficas e
tipográficas [...] (LACROUX apud YAMAZAKI, 2009, p.118)
30
Lembrando que algumas normas, como a questão das aspas ou a dos realces, variam de
país para país ou mesmo de editora para editora.

52
editor, devendo corrigi-la.

Normatização editorial: corresponde à organização dos


elementos
 pré-textuais: segundo Araújo, seriam: falsa folha de rosto,
folha de rosto, dedicatória, epígrafe, sumário, lista de
ilustrações, lista de abreviaturas e siglas, prefácio,
agradecimentos, introdução (ARAÚJO, 2000, p.431);
 textuais:

Na parte textual, é preciso seguir a normatização da coleção


ou da editora para organizar os elementos e aplicar um
padrão ortotipográfico que oriente a estrutura do livro. Por
exemplo: os capítulos abrem sempre em página ímpar? O
título das partes fica em página ímpar avulsa? Onde devem
ser posicionadas as notas, no rodapé, no fim do capítulo ou
no fim do volume? (YAMAZAKI, 2009, p.123)

 pós-textuais: novamente nos guiando por Araújo, temos


posfácio, apêndice(s), glossário, bibliografia, índice,
colofão, errata.

A normalização editorial também cuida da checagem de


informações e padrões, como dados e informações que aparecem no
texto; a grafia dos nomes e das expressões em línguas estrangeiras; as
remissões (se as indicações entre texto e imagem, por exemplo, estão

53
corretas); a coerência de tabelas, gráficos e imagens; dados numéricos e
eventuais cálculos apresentados etc. (YAMAZAKI, 2009, p.124)
Normalização estilística: O preparador deve notar
impropriedades, como a inadequação da linguagem em relação ao público-
alvo ou ao contexto narrativo.

Variáveis históricas, geográficas, socioculturais, sociais e


etárias, além de características situacionais da linguagem,
[...] todos esses aspectos também devem ser avaliados no
texto em sua relação com o leitor, considerando-se,
portanto, elementos extralinguísticos. (YAMAZAKI, 2009,
p.129)

Sobre a questão do estilo, podemos apontar o preparador também


como um dos “guardiões” da clareza:

Ainda que o pensamento do autor se encontre bem expresso


do ponto de vista gramatical, é muito frequente o uso de
certas formas de construção de frase e do período [...] que
leva inevitavelmente à perda de inteligibilidade.
Exemplo disso (entre uma infinidade) são o emprego
inadequado de alguns pronomes, a articulação defeituosa da
frase, o vocabulário impreciso etc.
Vale notar que não se trata, aqui, de incorreção gramatical,
mas apenas de abusos contra a clareza a que o preparador de
originais tem de estar atento. (ARAÚJO, 2000, p.68)

Analisando as diferentes atuações do preparador, fica claro que


alguns requisitos da preparação são o bom conhecimento da língua, um
bom conhecimento enciclopédico e de leitura, e, principalmente, um
bom nível de atenção.

54
Saber antecipadamente alguns dos pontos a serem focados durante
a preparação e edição assegura uma maior eficácia nessas etapas. Pensando
em um primeiro trabalho de editor, analisemos como essas práticas
ocorreram no livro que nos serve de base para esse trabalho.

55
3. EDIÇÃO E A PREPARAÇÃO EM
DO OUTRO LADO DO MURO



56
3. A edição e a preparação em Do outro lado do muro

Ao longo de todo o processo de sua feitura, o livro Do outro lado do


muro passou por sete leituras visando correção de texto, três delas relativas
à preparação e edição, três relativas à vista de provas e uma, a primeira de
todas, sendo a leitura de seleção31.
É necessário diferenciar a primeira leitura das outras, já que o foco
desta não foi atenção ao texto como objeto, mas à história em si: fluência,
enredo e a própria captura, enquanto leitor, pela trama. Para se escolher
uma obra dentre outras é preciso alguns critérios. No caso dessa obra, sem
diretrizes editoriais definidas, escolheu-se a afinidade com o texto e as
possibilidades de prática editorial (em texto e arte) que ele nos
possibilitava, como já foi mencionado anteriormente.
Para análise, utilizaremos a experiências das três leituras de edição
e preparação, fases efetuadas pela autora deste trabalho. Durante o
tratamento do texto não houve separação quanto a execução de cada
etapa, ocorrendo as duas simultaneamente. Entretanto cada processo de
intervenção fez (e faz) parte de um processo distinto. Assim,
diferenciaremos as funções de cada etapa, conforme a distinção que
propusemos no capítulo anterior.

31
No tópico 3.3 deste trabalho, sobre ferramentas utilizadas, apresentaremos as leituras e
seus processos em forma de lista.

57
3.1 Leitura de reconhecimento – primeiro contato
com a obra

Editorialmente, Do outro lado do muro é uma história infantojuvenil.


Definir um livro como infantojuvenil é dizer que sua linguagem se
aproxima da linguagem dessa faixa etária, e que seu conteúdo é acessível
aos que estão nela. Para se determinar essa acessibilidade, pensa-se no
domínio de língua esperado de crianças e jovens dessa idade, conforme o
que teriam desenvolvido a partir dos conteúdos programáticos escolares.
Claro, essa é uma classificação e, portanto, é uma restrição.
Em artigo para revista eletrônica32, a autora Paula Mastroberti
define bem a discussão incluída nessa definição:

Sempre que me é oferecida uma oportunidade de falar sobre


literatura infantojuvenil, procuro aproveitá-la no sentido de
fazer algumas provocações. Pois bem: neste momento, vou
ocupar-me justamente dessa denominação — literatura
infantojuvenil —, atribuída à categoria de textos de ficção
produzidos e publicados para consumo de jovens e crianças.
Ela me incomoda, não pelo material que designa, mas por
seu precipitado endereçamento a um sujeito compreendido
dentro de uma dada faixa etária, ou seja, pela definição do
gênero a partir de estágios receptivos, e não por qualidades
e características intrínsecas a sua estrutura — como se fosse
possível, ou mesmo necessário, localizar dentro do texto
um leitor em suas diversas gradações emocionais e
intelectivas.

32
Artigo integral pode ser encontrado nos anexos.

58
Ora, como assegurar-se de tal leitor, simplesmente
diagnosticando sua idade cronológica, sem referir-se aos
aspectos psico-afetivos e ao contexto histórico e
sociocultural, dos quais tampouco se desprende o próprio
conceito de infância e de adolescência? Ao estabelecerem-
se fronteiras quanto à recepção de uma obra literária, acaba-
se por impor limites à própria linguagem que a constitui e
ao acesso livre à literatura como um todo. Tal imposição,
de ordem cultural ou econômica, pode ser a causa de
inúmeros equívocos, tanto na escritura dos gêneros que se
costuma designar como infantil e juvenil, quanto aos
métodos de intro/condução à leitura. (MASTROBERTI,
2008)

E finaliza sua exposição com essa conclusão:

Estamos, portanto, em meio a uma grande confusão aqui


radicalizada propositadamente. Assim como é impossível e
desnecessário muitas vezes determinar o gênero de uma
dada obra, também, da mesma forma, é impossível e
desnecessário o estabelecimento de fronteiras entre os
gêneros, sobretudo se levarmos em consideração apenas o
seu destinatário. Podemos prever onde a literatura como
um todo começa: no domínio básico da leitura e da escrita.
Porém, a temática e a estrutura do texto não devem limitar-
se a meros adjuvantes na busca desse domínio, porque, à
medida que crescemos, conservamos em nós uma infância
sentimental e memorial que persevera, em sincronia com
nossa maturidade, e que exige, tanto quanto a criança
cronológica, um texto que lhe sirva de referência para o
resto das experiências de leitura ao longo da vida. Ou seja,
é preciso, tanto quanto uma formação intelectual e
cognitiva, uma formação sensível, dedicadas ao ser humano
pensado como integral, e não apenas reduzido a uma certa

59
etapa de sua existência.
Posso pensar, contudo, em uma definição, é claro, mas ela
não será ingênua: a literatura infantil, como disse acima,
nasceu do casamento da invenção da infância com um
interesse pedagógico e econômico manifesto num mercado
que produz e vende livros e, por consequência, literatura.
Ela é gerada por vontade de um sistema que inclui a criança
como consumidora. Logo, tudo o que disserem para você,
numa livraria ou numa resenha, ou num catálogo editorial,
acabará valendo como definição do gênero. Porque
literatura infantojuvenil é isso: um rótulo. Possui uma
embalagem classificatória que determina seu destino. Seus
objetos — os livros que a materializam — são pensados
para preencher certo espaço nas prateleiras que exibem os
mais diversos produtos literários, entre eles, o livro
infantojuvenil. (Ibidem)

Como Paula, muitos (teóricos e “curiosos”) apontam o mercado


como a única regra para essa determinação, que não existiria (ou não
deveria existir) fora dele. A editora, por possuir uma parcela comercial
(alvo de outra discussão, sobre cultura versus consumo, que não cabe no
contexto desse trabalho), faz parte desse mercado e precisa dessas
definições. Como escolher um livro e vendê-lo senão o direcionando a um
grupo específico (ainda que esse direcionamento se dê sobre critérios
especulativos)?
Assim, para este, um trabalho editorial, assume-se a classificação
do livro-base. Do outro lado do muro não é infantojuvenil apenas na forma,
mas também na trama — o enredo aborda justamente essa fase da vida em
que não se é nem criança nem jovem.

60
Na história, Duda é um menino que faz parte de um grupo bastante
unido de amigos. Ameaçados de perder o campeonato de futebol do
bairro, rezam por um milagre — que é atendido na figura de Dani, o
melhor jogador que os meninos já viram. O problema é que Dani é uma
menina, e todos os personagens estão naquela idade em que meninos e
meninas são inimigos. Passando pelas etapas de aceitação e colaboração (a
necessidade de Dani como jogador que faz aceitar Dani como
companheira), o cerne do livro na realidade é a amizade e o
amadurecimento, quando não são mais as diferenças físicas que
determinam a afinidade com alguém.
Ter um foco editorial é importante para saber como interferir no
texto (linguagem, referências etc.) e ter conhecimento da trama é
fundamental para a edição, pois só com ele se tem noção do limite dessas
intervenções. A presença de um personagem de caráter dúbio no centro
da narrativa, por exemplo, exige atenção no que se corrige, já que Dani
não se revela como menina até o capítulo 9 (de 13), e a surpresa do leitor
é simultânea à surpresa (em presente histórico) de Duda.
Desta maneira, cuidar para que nenhuma pista seja dada, por
exemplo, é um fator que se percebe necessário já na primeira leitura, e
servirá como orientador para todas as outras leituras de intervenção.
Do outro lado do muro é uma reminiscência de Duda, que escreve de
um momento futuro a que não temos acesso (não sabemos que idade tem
no momento atual, quanto tempo se passou desde os eventos acontecidos

61
no livro, como evoluiu sua relação com os outros personagens daquela
época até o “hoje” etc.).
Dentro da história, temos dois grandes flashbacks, que servem
também como exemplo para ilustrar o que se pode recolher logo do
contato com a obra (na primeira leitura).
O primeiro flashback começa no segundo capítulo e interrompe a
ação do primeiro capítulo, que só será retomada no capítulo onze, quando
a trama retoma a linearidade temporal. Nesse primeiro flashback, Duda
explica como conheceram Dani e como se deram os laços de amizade entre
eles. Dentro desse parêntese temporal, uma nova interrupção: o segundo
flashback, que vai do capítulo quatro ao seis, e explica os laços de amizade,
anteriores a Dani, entre Duda e os outros meninos da turma.
Para que nenhuma das passagens se misture com as outras, há
necessidade do uso de conectivos para retomada de um contexto prévio,
outro cuidado editorial a ser tomado durante as leituras de edição e
preparação.

3.2 Leituras de edição e preparação – aspectos


gerais

Abordando os principais pontos da edição e da preparação do livro,


separaremos cada uma dessas etapas. Uma visão mais detalhada do
processo, contudo, está no tópico seguinte, com a análise de um capítulo

62
do livro-base, e nos anexos, onde está reproduzida a obra e todas as
intervenções feitas nessa.

3.2.1 Edição

Para considerações, a etapa de edição do livro Do outro lado do muro


pode ser dividida em dois macro-grupos de análise, Intervenção estrutural e
Intervenção linguística.

3.2.1.1 Intervenção estrutural


Sobre a intervenção estrutural na macroestrutura, é preciso um
esclarecimento. Quando o original chegou, ele já estava estruturado no
formato que viria a ser o final, e que pode ser visto no sumário do volume
publicado:

63
Sendo feito principalmente de textos curtos, cada um desses
capítulos já estava bem dividido quando chegou às nossas mãos. As
exceções são os capítulos 7, 10, 11 e 12, cujos conteúdos são
relativamente expandidos e mudam ocasionalmente de cena ou de
momento narrativo (os outros capítulos estão, de maneira geral,
centrados em um único acontecimento, um único momento de ação).
Nesses, optamos por deixar a configuração enviada pela autora,
que emprega *** para dividir as passagens, como no exemplo abaixo:

64
Essa escolha foi feita principalmente por dois fatores: primeiro, a
unidade das passagens, que fazem parte de uma mesma temática de
capítulo; e, segundo, a inexperiência, que não nos fez arriscar em
sugestões sobre novos agrupamentos.
Alguns trechos ou capítulos inteiros teriam ganhado uma dinâmica
melhor com uma divisão.
É o caso do capítulo 10. Sob o título de “A decisão e a final” ele
apresenta cinco passagens:
A – Do conselho dos membros do clubinho para decidir a
volta de Dani (após o sexo desta ter sido descoberto) ao
arrependimento de Duda.

65
B – O pedido de desculpas de Duda para Dani e o
reatamento da amizade de ambos.
C – O relato da situação, que Duda faz para a sua mãe.
D – O jogo.
E – O pós-jogo e consequências (com anunciação do
clímax).

Pensando no título do capítulo, é justificado a presença de todas


essas situações narrativas numa mesma divisão. Não é possível, por
exemplo, dissociar-se a sequência “pré, momento e pós” jogo das histórias
paralelas (o conflito “Dani versus meninos”, depois “Dani versus Duda”, e,
finalmente, a resolução “Dani e meninos”), e se o título é “A decisão e a
final” é natural que as tramas estejam juntas. Mas conseguimos uma divisão
diferente se focamos só o drama íntimo (lembrando que o futebol é o fio
condutor, mas não o objeto central do enredo). Poderíamos separar o
momento que vai da confusão ao arrependimento daquele que ocorre na
sequência, o do pedido de desculpas. Teríamos, assim, a resolução do
problema “menina versus amiga” em dois capítulos interligados, o último
trazendo a solução que o jogo representa e introduzindo o fim da trama.
Tal divisão é uma mostra de quebras não essenciais que tornariam
a leitura mais limpa e fluída. “Não essenciais” porque a falta desses
subtítulos não afeta a efetividade da compreensão. A estrutura original de
capítulos e separações ocasionais por marcas gráficas é suficiente para a boa

66
orientação do leitor em seu percurso de leitura.
Nossa única inclusão na macroestrutura foram alguns espaços, criados
para aumentar o distanciamento das ações ou a distinção entre as cenas:

[...]
Dani entendia muito bem o que eu e os caras sentíamos em
relação às meninas. Ele era um dos nossos, naturalmente.
Eu sabia que não podia levar um estranho para as nossas
reuniões sem consultar o resto da turma antes, mas eu
achava que o Dani não era um estranho. Ele tinha sido
enviado por Deus até nós. Nós havíamos pedido por ele e o
nosso pedido havia sido atendido. Ele não era um estranho,
era o salvador do nosso time.
Meia hora depois, eu e Dani fomos encontrar os caras no
clubinho.
Eu entrei primeiro e pedi para o Dani ficar esperando do
lado de fora.
Já estavam todos lá. O antigo galinheiro não era muito
grande. [...]. (ARQUIVO ORIGINAL, c.7)
[...]

Dani entendia muito bem o que eu e os caras sentíamos em


relação às meninas. Ele era um dos nossos, naturalmente.
Eu sabia que não podia levar um estranho para as nossas
reuniões sem consultar o resto da turma antes, mas eu não
achava que o Dani era um estranho: ele tinha sido enviado
por Deus até nós. Nós havíamos pedido por ele e o nosso
pedido havia sido atendido. Ele não era um estranho, era o
salvador do nosso time.
Meia hora depois, eu e Dani fomos encontrar os caras no
clubinho.
Eu entrei primeiro e pedi para o Dani ficar esperando do
lado de fora. Já estavam todos lá. [...] (ARQUIVO
EDITADO, c.7)

67
Sobre intervenção microestrutural, há inversões de termos para
clareza ou retomada de cenas, na história, para guiar o leitor pelos
flashbacks que aparecem. Esses casos, contudo, fazem parte também da
intervenção linguística e serão abordados nessa.
Essa congruência entre as intervenções só vem mostrar como todas
as formas do texto se entrelaçam, podendo ser vistas de mais de uma
maneira.

3.2.1.2 Intervenção linguística (edição)

Alguns pontos foram levantados já na leitura introdutória, como


mencionamos. Conhecida a obra, determinamos o público a que ela se
destinaria e como seria seu acabamento físico (formato, cores, ideia do
tipo de ilustração etc.).
Foi com o público e o enredo em mente que começamos a edição.
O primeiro ponto que levantamos, também referido
anteriormente, foi a questão Dani. Manter uma menina como menino por
66 páginas exige que se pense desde o artigo que antecede o nome até o
proceder do personagem. Como fazer o Duda do futuro, que conta a
história, lembrar de Dani como um menino, como o “seu amigo”? E como
fazer Dani se apresentar sem parecer feminina e sem denunciar
antecipadamente seu papel na trama? Embora sejam questões
principalmente de autoria, o editor deve estar atento a elas, para os

68
momentos em que escapam ao autor.
No primeiro capítulo, por exemplo, temos a seguinte passagem:

Aquilo não era comum. Dani era forte como um touro.


Ninguém comia mais siriguelas do que Dani, ninguém
jogava bola melhor, ninguém da rua era tão forte. Dani estar
tão doente a ponto de não jogar bola? Aquilo devia ser sério!
Mal sabia eu que, depois daquele dia, nada mais seria como
antes. (ARQUIVO ORIGINAL, c.1)

Para evitar o uso excessivo de “Dani” (e esse parágrafo ilustra


muitos outros, já que a presença do personagem é constante), seria
necessário o uso de pronomes e expressões pronominais como substitutos.
E para usá-los, entrou-se em acordo com a autora optando- se primeiro
pelo uso de preposição sem gênero (“de Dani” no lugar de “da/do Dani”)
e, em segundo plano, pelo masculino no texto. Essa foi uma escolha
baseada tanto na progressão narrativa (que enfatiza o elemento surpresa)
quanto por uma adequação à situação exposta: Dani tendo sido aceita
como menino, permaneceria também como menino na memória afetiva
dos colegas.
Editado, esse parágrafo ficou assim:

Aquilo não era comum. Dani era forte como um touro.


Ninguém comia mais seriguelas, nem jogava bola melhor e
ninguém da rua era tão forte. Agora, o meu amigo estar tão
doente a ponto de não jogar bola? Aquilo devia ser sério!
Mal sabia eu que, depois deste dia, nada mais seria como
antes. (ARQUIVO EDITADO, c.1. Grifo nosso.)

69
O segundo ponto também imediatamente perceptível eram os dois
flashbacks que permeavam a narrativa, fazendo-a confusa em
determinadas partes. Separadas por grandes espaços de texto, alguns
trechos de início e fim de algumas cenas precisariam ser resgatados para
que as indas e vindas do roteiro ficassem claras, como mencionamos e
exemplificamos anteriormente.
Algumas passagens, então, sofreram acréscimos de informação. No
exemplo acima, o segundo grifo se refere à substituição de “daquele” por
“deste”, assinalando a passagem temporal mais claramente.
Além dos flashbacks, há pequenas retomadas: o dia da cólica de
Dani é o dia da brincadeira dela e Duda na árvore de seriguela; o dia que
Duda descobre a mudança iminente é o dia em que ajuda Marcão e vai
com ele para o jogo de futebol; o dia seguinte a esse é o dia em que Duda
fala da mudança aos outros colegas, e também o mesmo em que o menino
conhece o novo vizinho. A mudança próxima de datas exige uma descrição
detalhada do momento da cena (incluindo precisão nos tempos verbais),
para que não se crie um limbo temporal.
No primeiro caso, a questão é definir a especificidade dos
acontecimentos deste dia:

[...] Melhor do que comer seriguela madura que, mesmo


doce, faz salivar que parece até caxumba. Muito melhor do
que pontaria certeira de laço e o sucesso de conseguir laçar
uma vaca.
Não era a primeira vez que fazíamos isso, mas neste dia, depois
de fugirmos do pasto de seu José, Dani não se sentiu bem:

70
— Duda, tô com dor de barriga! Acho que comi seriguela
verde.
[...]
E choveu. O que estava longe de ser um milagre. Era
janeiro, chuvas eram frequentes. Eu estava com o telefone
na mão para avisar Dani de que o jogo seria remarcado,
dando tempo para sua recuperação, quando a campainha tocou.
Como mamãe estava passando roupas, eu fui atender. Era o
tio Sérgio e ele estava com cara de preocupado.
— Oi, Duda! A sua mãe está aí? (ARQUIVO EDITADO,
c.1. Grifos indicam trechos inseridos na edição; sentiu
substituiu a locução verbal estava sentindo, presente no
arquivo original.)

Nos outros casos, o caso de confusão ocorre principalmente pelos


acontecimentos e suas sequências (“Ajudar Marcão” (acontecimento 1) /
“Ir para o jogo” (acontecimento 2)) estarem em capítulos separados.
Assim, o resgate é uma espécie de lembrete ao leitor:

Pegamos as nossas bicicletas e fomos para o campinho, que


ficava a três quadras da casa dele e quatro da minha.

4. A Turma

Quando eu e o Marcão chegamos, todos já estavam aflitos de


tanto esperar. (ARQUIVO EDITADO, c.3 — 4. Grifos
indicam trechos inseridos na edição.)

No caso “dia anterior” / “dia seguinte ao jogo” (no qual ocorrem a


“conversa sobre a mudança” e o “encontro com novo vizinho”) a situação
é ainda mais delicada, já que a sequência “dia anterior” / “dia seguinte” está

71
separada por dois capítulos:

6. Preces Ouvidas

No dia seguinte à conversa que eu tive com o seu Joaquim,


nós nos encontramos novamente no campinho para treinar. No
dia anterior tinha sido a terceira partida com a turma da rua de
cima e nós havíamos perdido de novo. Aquele era um treino para
discutirmos o que faríamos dali em diante.
Eu e o Marcão chegamos atrasados de novo. Eu fui me juntar
aos caras, e o Marcão sentou-se na grama, fingindo alongar
um e outro músculo. (ARQUIVO EDITADO, c.6. Grifos
indicam trechos inseridos na edição.)

No quesito estilo, as mudanças e sugestões foram frequentes, mas


de menor alcance. Reforçávamos e padronizávamos a oralidade,
alterando, ocasionalmente, trechos com construções pouco próximas da
fluência ou da linguagem que predomina no todo do livro:

— Duda, será que Deus me ouviu rezando à noite? —


Marcão estava surpreso.
— Deus ouve tudo! — Eu falei balançando a cabeça com os
olhos bem abertos, parecendo dominar assuntos dessa área,
mas o que eu estava realmente fazendo era reproduzir o que
mamãe costumava me dizer. (ARQUIVO ORIGINAL, c.6)

— Duda, será que Deus me ouviu rezando à noite? —


Marcão estava surpreso.
— Deus ouve tudo! — falei balançando a cabeça com os
olhos bem abertos, parecendo ter certeza do que dizia.
Exatamente como mamãe costumava fazer quando falava
desse tipo de assunto. (ARQUIVO EDITADO, c.6)

Algumas indicações também foram feitas quanto a passagens cuja

72
narrativa pudesse ser mais desenvolvida ou melhor adequada. No último
capítulo há um bom exemplo:

— Chega! Deixa eu falar! Isa, o gol nem é tão boa casa de


brincadeira assim. A árvore de laranja daria uma ótima
casinha. As folhas poderiam ser o telhado e nós teríamos
comidinha de verdade. Seria uma casa com dois andares!
(ARQUIVO ORIGINAL, c.12)

— Chega! Deixa eu falar! Isa, a quadra nem é o melhor


lugar para tomar sol e para ficarmos conversando. A árvore
de laranja daria uma ótima sombra e, para quem preferir o
sol, do lado tem os banquinhos. Dá até pra deitar neles e
tomar sol de costas. E pra quem preferir escrever na
agenda, os banquinhos podem servir de apoio. (ARQUIVO
EDITADO, c.12)

Por pesquisa de faixa etária dos personagens, a autora chegou à


conclusão que a ideia original era defasada, em atitude comportamental,
do que se vê nos dias de hoje.
Por fim, o último aspecto a se considerar é a questão de sintaxe e
semântica. Não há passagens que acusem o mau uso dessas. Ao contrário,
o texto e sua leitura são bem equilibrados, mas algumas intervenções
foram feitas visando aumentar a clareza. A semântica, aqui, não fica como
a busca do sentido, mas sim como a retomada de ações e esclarecimento
do vínculo entre as passagens, tanto as macroestruturais quanto as micro.

O tio Sérgio saiu. E mamãe falou:


— Coitado! É difícil criar dois filhos sozinho! Falei que
vocês iriam se entender sozinhos, ele não precisaria deixar
Dani de castigo. (ARQUIVO ORIGINAL, c.10)

73
O tio Sérgio assentiu com a cabeça e saiu. Mamãe suspirou:
— Coitado! É difícil criar dois filhos sozinho! Falei que
vocês iriam se entender sozinhos, que ele não precisava
deixar Dani de castigo. (ARQUIVO EDITADO, c.10.
Grifos indicam alteração.)

É preciso reforçar, contudo, que o livro já estava bem definido em


seu original. Essas intervenções da edição são reforços e facilitadores.

3.3 Utilização das ferramentas: demonstração em


análise de capítulo

A etapa de preparação não tem agrupamentos maiores, sendo


marcada por normatizações como as mencionadas anteriormente:
ortotipográficas, gramaticais, de estilo e editoriais.
As normatizações ortotipográficas se deram quanto a padronização
de caixas-altas e caixas-baixas nos diálogos diretos; o uso de dois pontos
após os verbos dicendi, no lugar do ponto final que aparece no original da
obra, e a substituição do hífen pelo travessão, a inclusão de tabulação e
outras marcações gráficas como estas.
As normatizações gramaticais, por sua vez, ficaram quase restritas
a correções que algumas frases sofreram depois da mudança, durante a
edição, da forma verbal. Quando a gramática auxiliava o esclarecimento,
e quando não criava um estranhamento em relação ao estilo, era mantido

74
o uso padrão.
A normatização editorial, a menos frequente, ficou responsável por
padronizar o masculino antes de “Dani” e a escolha da grafia de algumas
palavras, como “seriguela” (no original, tínhamos “siriguela”. Como ambas
as formas estão corretas, a decisão por uma palavra em detrimento da
outra foi puramente editorial).
Por fim, a normatização de estilo, que envolveu a homogeneização,
entre as passagens, da linguagem dos personagens (substituição de
palavras, mudança na estrutura frasal etc.) e a inclusão de ganchos para a
retomada narrativa. Essa fase da preparação está bastante mesclada à
edição de estilo, não sendo possível dissociar claramente uma da outra
durante o processo geral de edição deste livro.
Sendo o foco deste trabalho a análise da utilização de ferramentas
durante a edição e a preparação de um texto, abaixo fazemos uma
descrição das ferramentas utilizadas e, usando a íntegra de um capítulo
para avaliação, demonstramos como elas foram aplicadas.

3.3.1 Ferramentas utilizadas

Neste livro, as ferramentas utilizadas constituem basicamente todo


o processo de edição e preparação feito. Descrevendo as etapas do cuidado
com o texto no caso de Do outro lado do muro, fica claro uma sequência
específica de ações que pode ser utilizada no trabalho com outros livros.

75
Primeiro, como mencionamos, fizemos a leitura de contato e
levantamos a sequência do roteiro e os aspectos não totalmente resolvidos
nesse (a questão Dani e os flashbacks). A partir daí, definimos as questões
editoriais sobre as referências a Dani que aparecem no livro e marcamos
os pontos de recapitulação de conteúdo.
É importante, portanto, criar uma sinopse dos capítulos, para saber
como eles se articulam e se essas articulações estão funcionando bem. Esse
resumo deixa claro que pontos precisarão de atenção e intervenção. No
nosso livro-base, complementamos essa etapa destacando as passagens que
precisariam de mudanças. Essa marcação facilitou o trabalho, já que
deixava evidente, durante as outras análises, aspectos não concluídos no
texto — e que poderiam ser adaptados ou mesmo excluídos nas outras
intervenções.
Nas leituras seguintes, seguindo os preceitos já vistos de
legibilidade e construção de sentido, grifamos as sentenças que não
estivessem: 1) suficientemente claras (quanto a legibilidade); 2) adequadas
ao modo de expressão e ação de cada personagem; 3) adequadas ao
público-alvo, e/ou 4) coerentes quanto a narrativa, enredo ou passagens
específicas do livro. Nesse momento, apontamos também frases ou
palavras desnecessárias, controversas ou de duplo-sentido, bem como
mudanças estruturais de parágrafos (criação de alguns, unificação de
outros). Como decisão editorial, e seguindo o estilo da autora, optamos
pelo discurso direto (majoritariamente) e, também na maior parte das

76
vezes, por frases de sentido único, que facilitariam a compreensão por
parte do leitor. Deste modo, no livro, mesmo as ironias são apontadas
como tais.
Como é possível perceber, as indicações acima correspondem à
fase da edição, não da preparação, de acordo com os conceitos levantados
anteriormente. Como pode ser também apontado, a fase da edição se
firma principalmente na leitura constante de um texto, buscando a melhor
maneira de o expor, verificando o que, nele, pode ser melhorado para
uma melhor compreensão do conteúdo, mas sempre de modo a não
ultrapassar a barreira do estilo próprio da autoria.
O próximo passo era sugerir as alterações dos trechos destacados.
Usa-se a palavra "sugestão" porque todas as alterações passavam pelo crivo
da autora, sendo as maiores feitas mesmo por ela, não pela editora. Nesse
último caso, podemos citar as alterações de dinâmica ou roteiro: junção
ou criação de parágrafos; alterações na história (o final do livro, por
exemplo, foi ligeiramente modificado devido à sugestão editorial.
Pedimos que a autora excluísse os dois parágrafos do original e incluísse
um novo diálogo. Com isso mantinha-se a intenção original, mas
trabalhada de outra maneira). Essa etapa é a de maior contato com o autor.
Por fim, começamos a etapa de preparação. Novamente, grifamos
os trechos de dúvida e definimos as padronizações.
Essas padronizações foram poucas, já que nosso intuito era mexer
o menos possível no original. Padronizamos palavras de grafia dupla,

77
escolhendo só uma opção (caso de seriguela); padronizamos o uso do
travessão, que no original era hífen. Depois, definimos que as frases que
anunciavam o falante, no diálogo, iniciariam com caixa-baixa após o
travessão, enquanto que seriam iniciadas em caixa-alta as frases após o
travessão que trouxessem informações novas. Houve padronização quanto
a frases que anunciam o discurso: na maioria das vezes, foram separadas
deles por dois-pontos. Na construção gráfica do texto, demos preferência
ao uso de parênteses e travessão na separação de algumas frases
intercaladas, no lugar das usuais vírgulas. Desse modo, colocávamos em
evidência a quebra de alguns períodos, facilitando a interpretação e
contribuindo para a fluência narrativa.
Nos verbos, para casar com a oralidade, substituímos os pretéritos
mais-que-perfeito pelos tempos compostos. Quanto aos pronomes,
aqueles de uso íntimo (como tio/tia) ficaram em caixa-baixa, enquanto os
de tratamento (Dono/Dona e, no livro — por correlação de função —,
Seu/Sua) ganharam caixa-alta.
Devido ao caráter oral do livro, alguns cuidados passaram
despercebidos, como a padronização quanto ao uso de “para” / “pra”. É
um erro de decisão editorial, embora não incorra realmente em um erro
gramatical, já que, neste caso, ambas as formas são permitidas, devido à
coloquialidade do texto. A opção por uma só forma dá uma ideia de
unidade ao texto e é importante. Nesse caso, sugerimos aqui o uso do
“para”, seguindo o critério estabelecido (e já mencionado) de optar pela

78
norma padrão quando esta não implicava em perda da linguagem da obra.
Aliás, sobre os erros, é preciso destacar que eles ocorrem. Segundo
Araújo,

São diversas as fontes do erro, mas todas possuem um


denominador comum: o ato da cópia, que basicamente
implica três movimentos sucessivos, quais sejam, leitura,
memorização e reprodução escrita (manual ou mecânica).
Em algum desses momentos podem ocorrer simples erros
literais ou erros psicolinguísticos. (ARAÚJO, 2000, p.391)

As diversas leituras pelas quais o texto passa são feitas na intenção


de diminuí-los ao máximo, mas, citando Houaiss, “[...] não se conhecem
ainda livros sem erro tipográfico, mesmo com várias revisões”
(HOUAISS, 1981, p.54).
Para que haja erros o menos possível, seguir uma orientação de
etapas durante a edição e a preparação pode ajudar o editor. De maneira
que colocamos, em forma de lista, as intervenções que mencionamos
neste trabalho e outras possíveis. Quando seguidos, esses critérios
serviram bem a esta primeira edição de Do outro lado do muro, e,
provavelmente, servirão a outros livros.

79
3.3.1.1 Lista de cuidados editoriais na edição e preparação

Copilando o tópico anterior, poderíamos fazer a seguinte sinopse


em forma de lista:

Edição

 1a leitura
- Fazer (mentalmente, em tópicos escritos etc.) um resumo da
trama, verificando as passagens que ligam os principais eventos
que ocorrem nesta e as características dos personagens — seu
modo de falar, de agir etc.
- Verificar pontos do enredo (p.ex., construção de
personagens) que precisem de definição editorial.
- Perceber aspectos marcantes do estilo, como uso de oralidade
de discurso indireto ou direto, uso de frases de mensagem
assertiva ou indireta etc.
- Marcar pontos que, dentro da narrativa, não estejam
totalmente claros para o leitor (cenas que precisam estar bem
demarcadas e não estão etc.).

 2ª leitura
- Marcar frases truncadas, sentenças confusas ou incoerentes etc.

80
- Definir alterações em parágrafos e agrupamentos narrativos
(como potencializar as passagens do texto, p.ex.).
- Marcar passagens cuja linguagem não esteja de acordo com a
proposta na maior parte (ou na concepção) do livro.
- Verificar excessos/escassez de informação nas
frases/passagens.

 3ª leitura
- Apontar soluções para os problemas levantados.
- Discutir essas soluções com o autor.
- Efetuar as intervenções estabelecidas.

Preparação

 4ª leitura
- Adequar sinais gráficos e pontuação, de acordo com os
critérios editoriais estabelecidos.
- Definir como serão apresentados os pronomes, verbos (se for
necessária simplificação, por exemplo) etc.
- Definir uso de maiúsculas e minúsculas para palavras que
sejam aceitas em formas variadas.
- Padronizar grafia de palavras e sentenças específicas.
- Verificar adequação, gramatical e semântica, das frases que

81
tenham sofrido mudança.
- Verificar e padronizar uso de itálicos e/ou negritos para:
- títulos
- marcações de falas
- palavras de um determinado grupo (gírias,
estrangeirismos etc.)
- ênfase narrativa
- Padronizar o uso da gramática normativa.
- Padronizar uso de numerais (por extenso/na forma algébrica)
- Verificar coerência de datas, tipos de linguagem etc. dentro
da narrativa.

 5ª e 6ª leitura
- Checar a execução das intervenções mencionadas.

Os itens listados, bem como as leituras mencionadas, referem-se


ao que foi feito em Do outro lado do muro. Eles são pontos básicos da edição
e da preparação, mas a lista pode ser diminuída ou aumentada com muitos
outros itens: a quantidade de leituras e de intervenções (bem como o tipo
dessas) varia de acordo com o material trabalhado, levando sempre em
consideração o propósito da obra.

3.3.2 Capítulo-demonstração: apresentação visual das

82
intervenções em Do outro lado do muro

Como exposição visual dessas primeiras etapas de tratamento do


texto, apresentamos a seguir um capítulo do livro em que estão marcadas
as alterações feitas do original para a versão final. Nele é possível verificar
a execução, ao longo da edição e da preparação34, de cada uma dessas
medidas apresentadas.

3.3.2.1 Legenda para análise de intervenção

Como o propósito desse trabalho é apurar as intervenções feitas


durante a preparação e edição, examinar o porquê de terem sido feitas e
sua efetividade, criamos uma legenda de cores para as marcações que serão
apresentadas no capítulo-exemplo. Essa legenda foi feita a partir do que
foi mencionado nos tópicos anteriores sobre a preparação e a edição no
livro Do outro lado do muro:

83
Intervenção em edição:

• Estrutural33
• Linguística

Intervenção em preparação34:

Comentários

33
Inversões de trechos, inversões frasais, inserções de palavras / sentenças e alterações na
paragrafação estão indicados com as marcas de edição do Word (processador de texto
desenvolvido pela Microsoft).
34
Conforme mencionamos, as duas formas de intervenção assinaladas foram efetuadas
simultaneamente e não podem ser separadas. Assim sendo, levam a mesma legenda de
cor.

84
No documento do Word, abaixo, foram acrescentados também
alguns comentários para elucidação, nesta etapa do trabalho, de algumas
das decisões editoriais tomadas.

3.3.2.2 Marcações no capítulo

Reproduzir aqui o texto integral, para efeito de demonstração,


ficaria muito extenso. E como as intervenções que ocorreram em cada
capítulo espelham o todo do processo, nesse tópico optamos por trabalhar
uma amostra menor. Destarte, o texto baixo é o capítulo nove do livro,
escolhido por apresentar todos os tipos de intervenções. Com a legenda,
é possível acompanhar todas as interferências editoriais e como elas foram
agrupadas.

85
86
87
88
89
90
91
92
93
FONTES DE PESQUISA



94
Fontes de pesquisa

_____. (1981). Preparação de originais I. In: Aluísio Magalhães; Antônio Houaiss;


Benedicto Silva et al. Editoração hoje. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas.
Adriana Gabriel Cerello. O livro nos textos jesuíticos do século XVI. Dissertação (Mestrado
em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, 2007.
Ana Elisa Ribeiro. Em busca do texto perfeito: (in)distinções entre as atividades do
editor de texto e do revisor de provas na produção de livros. In: XII Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação da Região Sudeste, 2007, Juiz de Fora.
Antônio Joaquim Severino. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2007.
Cristina Yamazaki. Edição de texto na produção editorial de livros: distinções e definições.
Dissertação (Pós-graduação em Ciências da Comunicação, na área de Concentração
Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade
de São Paulo, 2009.
Cristina Yamazaki. Editor de texto: quem é e o que faz. In: XXX Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação, 2007, Santos.
Dicionário Houaiss Eletrônico. v.1.0. Editora Objetiva Ltda, junho/2009.
Emanuel Araújo. A construção do livro. 4.tiragem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000.
Ingedore Villaça Koch. O texto e a construção dos sentidos. 5.ed. São Paulo: Contexto,
2001.
Maria Helena Martins. O que é leitura. 3.reimpr. São Paulo: Brasiliense, 1997. Col.
primeiros passos.
Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Pesquisa em comunicação. 7.ed. São Paulo: Loyola,
2003.
Maria Paula Roncaglia. Do outro lado do muro. São Paulo: COM-ARTE, 2008.
Mira Mateus. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho, 2003.
Paula Mastroberti. Literatura infantojuvenil: gênero, estilo ou etiqueta? In: Dobras da
Leitura. ano VIII. n.52. fev. 2008. Disponível em:
<http://www.dobrasdaleitura.com/revisao/estiloetiqueta.html>. Acesso em: 10
nov. 2009.

95
Roger Chartier. O mundo como representação. Estudos avançados, v.11, n.5, 1991,
p.178.
Sistema Júpiter (USP), com informações da disciplina Laboratório de Produção Editorial
Gráfica I (grade disciplinar). Disponível em:
<http://sistemas2.usp.br/jupiterweb/obterDisciplina?sgldis=CJ
E0397&codcur=27011&codhab=302>. Acesso em: 10 nov. 2009.

96
ANEXOS



97
Entrevista com a autora
Pequena entrevista sobre a edição
e como esta foi recebida pela autora.

1 – Antes do contato com a Com-Arte, o que você conhecia do


processo editorial pelo qual um livro passa?
Não, antes de ter mandado o meu livro para ser avaliado pela Com-
Arte, eu não tinha qualquer ideia sobre como seria um processo editorial.
Sabia que era demorado, mas não tinha conhecimento de todas as fases por
que o livro deveria passar até a edição final.

2 – Quando terminou o original, você via a obra como “acabada”,


sem necessidade de ajustes? Se sim, essa visão foi modificada
depois da experiência com a edição e a preparação?
Não, sabia que o livro deveria ser modificado, corrigido e
adaptado. Ainda mais porque era o meu primeiro livro e estava um tanto
insegura quanto ao público-alvo para qual o livro era destinado. Sabia que
muitas coisas deveriam ser mudadas e adaptadas para o livro ficar
adequado e interessante para um determinado público, mas acho que não
fazia ideia de como este processo é trabalhoso e completo, o quanto deve
ser analisado e levado em consideração.
3 – Como você sentiu as leituras e interferências da edição e
preparação? Invasivas? Auxiliadoras?
Acho que todas as interferências e leituras realizadas na edição e
preparação do original foram feitas de forma bastante respeitosa, muito
coerente e foram todas bastante pertinentes, de forma a melhorar a
qualidade do livro e destacar as ideias que eu quis transmitir nele. Em
nenhum momento pareceu-me que a versão editada e preparada fugia da
ideia original, que eu buscava no livro. Muito pelo contrário, os processos
editoriais “lapidaram” o original, melhorando-o, dando-lhe mais clareza,
realçando o meu estilo próprio.

4 – Como autora, como você vê a edição de texto?


Fiquei muito satisfeita com a edição final. Talvez o único problema
tenha sido a minha ansiedade diante da espera pela finalização de todo o
processo, mas em vista do fato de a Com- Arte ser uma editora
experimental, até que este não foi tão demorado assim!

5 – Como você vê a relação entre autor e editor?


Acho que tivemos uma relação muito franca e bastante respeitosa.
Em nenhum momento me senti invadida ou ignorada nos meus
comentários quanto a como eu gostaria que o livro fosse editado. Sempre
que eu tive alguma sugestão, fui ouvida e, se houvesse contra-argumentos,
estes eram muito construtivos e feitos de forma bastante respeitosa e com
muito tato.

6 - Considerando as diversas etapas e processos, como foi, para


você, a experiência toda da publicação?
Todo o processo de publicação foi como o nascimento de um filho.
Foi bastante demorado, para mim, uma autora estreante, que queria ver
o livro pronto o mais rápido o possível, mas uma espera bastante
recompensadora, pois o resultado final ficou excepcional. Foi uma das
melhores e mais gratificantes experiências da minha vida, graças ao
trabalho excelente e bastante profissional de todo o time de editoração da
Com-Arte que realizou o processo.
Literatura infantojuvenil: gênero, estilo ou
etiqueta?
Paula Mastroberti *

Sempre que me é oferecida uma oportunidade de falar sobre


literatura infantojuvenil, procuro aproveitá-la no sentido de fazer algumas
provocações. Pois bem: neste momento, vou ocupar-me justamente dessa
denominação — literatura infantojuvenil —, atribuída à categoria de textos
de ficção produzidos e publicados para consumo de jovens e crianças. Ela
me incomoda, não pelo material que designa, mas por seu precipitado
endereçamento a um sujeito compreendido dentro de uma dada faixa
etária, ou seja, pela definição do gênero a partir de estágios receptivos, e
não por qualidades e características intrínsecas a sua estrutura — como se
fosse possível, ou mesmo necessário, localizar dentro do texto um leitor
em suas diversas gradações emocionais e intelectivas.
Ora, como assegurar-se de tal leitor, simplesmente diagnosticando
sua idade cronológica, sem referir-se aos aspectos psico-afetivos e ao
contexto histórico e sociocultural, dos quais tampouco se desprende o
próprio conceito de infância e de adolescência?39 Ao estabelecerem-se

39
Sobre o reconhecimento e o sentimento de infância, sugiro a leitura de História social da
criança e da família, do historiador Philippe Áries. Também Guillermo e Silvia Obiols, em
Adolescência, posmodernidad y escuela secundaria, propõem uma reflexão sobre as
delimitações da criança, do adolescente e do adulto.
fronteiras quanto à recepção de uma obra literária, acaba-se por impor
limites à própria linguagem que a constitui e ao acesso livre à literatura
como um todo. Tal imposição, de ordem cultural ou econômica, pode ser
a causa de inúmeros equívocos, tanto na escritura dos gêneros que se
costuma designar como infantil e juvenil, quanto aos métodos de
intro/condução à leitura.
É fato que o interesse pelo estabelecimento do gênero nasceu
juntamente com a revisão do papel da criança na sociedade, considerada,
a partir do século XVII, dependente do afeto e proteção familiar,
demandando formação proporcionada pela escola. Esse reconhecimento
da infância como uma etapa merecedora de uma atenção especial seria o
catalisador de toda uma produção específica voltada para o consumo de
artefatos culturais, incluindo o livro infantil, originariamente material
pedagógico40. Como, porém, caracterizá-lo?
Falo, pois, do livro infantil: trata-se de um objeto feito, em grande
parte das vezes, de papel41; nisso ele não se diferencia dos outros livros.

40
A preocupação crescente com a qualidade e características da produção cultural voltada
para o público adolescente e infantil pode ser exemplificada com duas publicações: A
produção cultural para a criança e A criança e produção cultural, organizadas,
respectivamente, pelas professoras Regina Zilberman e Sissa Jacoby. A evolução do papel
da criança na sociedade e na família, a institucionalização da educação infantil, são assuntos
tratados por Ariès em obra citada; no Brasil, temos em A literatura infantil na escola, de
Zilberman, uma síntese da relação entre literatura infantil, escola e a criança em
sociedade.
41
Sem esquecer os livros-brinquedos feitos de plástico e outros materiais, que
mereceriam por si mesmos uma reflexão à parte.
Normalmente, agregam-se ao texto impresso42 belas figuras,
preferencialmente coloridas, às quais chamamos ilustrações, dentro de um
projeto gráfico mais informal e lúdico. Seria então essa a diferença mais
marcante? É claro que não. Sabemos que há inúmeros textos adultos
ilustrados — belissimamente ilustrados, aliás — por artistas famosos,
como Salvador Dali (que ilustrou Dom Quixote); Gustave Doré (que além
da obra de Cervantes, ilustrou, entre outras, a Divina comédia e As mil e
uma noites); Delacroix (que ilustrou Flores do mal de Baudelaire e também
a obra de Goethe mais conhecida, Fausto). Eu poderia ainda citar, dentro
do fetiche indubitável dos leitores adultos pelo objeto literário ilustrado
ou híbrido, as edições recentes da Cosac Naify em prosa e poesia, tão
lúdicas quanto as infantis, sem contar graphic novels como Sin City (Frank
Miller) ou os contos gráficos de Lourenço Mutarelli, que não se destinam
de modo algum ao leitor-criança. Resta ainda falar sobre o dualismo
receptivo previsto por certos autores-ilustradores, que se esmeram em
transformar edições consideradas infantis em verdadeiras obras de arte,
como Lampião e Lancelote, de Fernando Vilela (Cosac Naify, 2006) que, no
último ano, recebeu dez diferentes distinções43, além da inclusão na Lista

42
Quando ele existe, pois temos que considerar as narrativas de imagem, o que por sua
vez mereceria outro momento de reflexão.
43
Fernando Vilela recebeu, por Lampião e Lancelote, Menção Honrosa, na categoria New
Horizons, do Bologna Ragazzi Award 2007 (Feira de Bolonha, Itália); prêmios de Melhor
Livro de Poesia, Melhor Projeto Editorial, Melhor Ilustração e Escritor Revelação,
concedidos pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil que também conferiu o selo
“Altamente Recomendável”; primeiro lugar em duas categorias do 49° Prêmio Jabuti,
Melhor Ilustração e Melhor Livro Infantil, além de segundo lugar para Melhor Capa,
de Honra do IBBY.
Mas, então, o que diferenciaria o livro infantojuvenil seria,
certamente, o estilo.
Portanto, quando lemos o seguinte poema

Chove torto no vão das águas


Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças, fugindo das águas
Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando —
no silêncio líquido
Com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.
(BARROS, 1989: 53)

ou este

Nem a corte, em beldades fértil, nem o campo, nem a


cidade, nem os reinos arredores, todos percorridos com
minúcia, não puderam fornecer mulher assim; somente a
infanta era mais bela e possuía certos encantos de que a
falecida não dispunha. O próprio rei a observou e, abrasado
de amor extremo, loucamente imaginou que por essa razão
devia desposá-la. Ele chegou a encontrar um casuísta que
julgou que a questão era plausível. Mas a jovem princesa,
triste por ouvir falar de um tal amor, lamentava-se e chorava

realizada por Luciana Facchini. A obra integra ainda o catálogo White Ravens 2007,
fazendo parte do acervo da Biblioteca de Munique, juntamente com outras produções
brasileiras que conquistaram reconhecimento internacional.
noite e dia. (PERRAULT, 2005: 201)

podemos, claramente, a partir desses exemplos, distinguir um destinatário


infantil. Podemos?
Percebe-se que a narrativa infantil lida com certas temáticas, entre
elas, a fantasia. Contudo, seria bom considerar Os meninos da Rua Paulo, de
Frederic Mólnar, ou as obras Tchau e Seis vezes Lucas, de Lygia Bojunga, ou
ainda Meninos do mangue, de Roger Mello, como obras obrigatórias no
acervo de uma biblioteca infantojuvenil, todas dentro de uma temática
bastante realista. Por outro lado, dentro do gênero da fantasia, incluímos
os contos de Andersen e Oscar Wilde, cujo conteúdo simbólico não se
mostra tão ingênuo quanto parece. E como abordar, por exemplo, os
contos-metáforas sobre a condição feminina escritos por Marina
Colasanti? Podemos classificar Uma ideia toda azul como uma reunião de
contos-de- fadas? E o que dizer das obras de Ítalo Calvino?
Não, o que caracteriza o gênero infantojuvenil não é exatamente
sua temática: quem sabe, a tipologia de personagens. Isso quer dizer que
ele deve incluir uma criança como protagonista da história, ou bichos,
como nas fábulas. O que dizer então das Alices, de Lewis Carroll? E da
Revolução dos bichos, de George Orwell? E as personagens infantis de
Dickens; e as reminiscências de Marcel Pagnol, em A glória de meu pai? E
Moby Dick, de Herman Melville, ou Chamado selvagem, de Jack London?
Não, não será por esta via que definiremos o gênero.
Então é a narrativa que deve ser simples, linear. Mas as mais
taludinhas já se acostumaram com as idas e vindas de A nova onda do
imperador, filme dos estúdios Disney que começa praticamente pelo fim, e
retorna ao passado em ritmo semelhante ao jogo eletrônico, sofrendo
interferências de diálogos rápidos e irônicos que requerem atenção, pois
cada elemento da trama está interligado às peripécias mais inusitadas. As
mesmas crianças já se habituaram também ao padrão japonês dos animês,
cheios de reminiscências, não- ditos, angústias existenciais (penso aqui em
Cavaleiros do Zodíaco; Oban Star Racers; O castelo animado). Esse tipo de
narrativa está presente, por exemplo, em O segredo das fadas, de Emily
Rhodda, série que muitos leitores da faixa dos 8 aos 12 anos apreciam.
Nada os impedem de se interessar por uma narrativa que vai e volta ao
passado, penetra na psique das personagens, além de abrir brechas para
dimensões de espaço diferentes; tudo o que precisam é de uma capacidade
aeróbica de leitura (detalhe: a série O segredo das fadas, tal como a série Harry
Potter, não tem ilustrações).
Vimos alguns aspectos relativos ao discurso, a partir dos quais
tentei delimitar o gênero; poderia tentar uma classificação a partir de
características morfo-gramaticais: ou seja, para crianças a linguagem deve
ser mais simples, quase coloquial. Num tom que elas entendam, dentro
de certos limites vocabulares. Já vimos, nos exemplos citados
anteriormente, o quanto isso se mostra complicado na prática — pois,
afinal, que linguagem é essa, simples e coloquial, que tom é esse que a
criança fala, que lhe seria tão próprio a ponto de fundar um gênero? A
criança pequena fala por metáforas. Se a sintaxe não é das mais complexas
— e eu preferiria reconsiderar até mesmo isso —, a semântica é das mais
ricas. Uma palavra, mesmo estranha, alienígena, pode significar muita
coisa para um leitor em formação — aliás, não estaríamos nós em
permanente formação verbal? Ou já decoramos todas as palavras do
dicionário? Temos pleno domínio de todos os discursos? Nós, adultos,
dominamos plenamente a nossa língua? Sabemos escrever tão bem quanto
lemos? Essas são perguntas que me faço e que me põem a pensar se a
questão da classificação de um texto literário dentro de uma determinada
faixa etária não teria mais a ver com experiências de leitura independentes
da idade, como já disse.
Dentro do discurso literário dirigido ao público infantil, há que se
falar, por fim, numa possível assimetria entre narrador e leitor ao qual ele
se dirige44.
Mas mesmo aqui sobram dúvidas: quando é que não há um
narrador assimétrico no texto literário? Se realmente provocativa, uma
obra deve surpreender o leitor, enredá-lo na teia de significados, subjugá-
lo às entranhas cujo sentido jamais será possível decifrar plenamente — aí
reside o diferencial da obra de arte: na sua inesgotabilidade. Porque
exigiríamos simetria da voz narrativa do texto infantil? Se os textos

44
Conforme aponta Zilberman em A literatura infantil na escola.
literários, infantis ou não, não fossem assimétricos, então seus leitores não
depreenderiam nada de novo, mas enxergariam, ali, cristalizado, apenas
um reflexo deles mesmos. E então toda obra de arte literária não passaria
de pura autoajuda, confirmando apenas aquilo que o leitor já sabe.
O conceito de assimetria, no caso da literatura infantojuvenil,
parece associar-se geralmente à palavra subestimação, ou seja, a uma
superioridade do autor em relação à capacidade cognitiva ou estética do
leitor. Se for este o caso, então conclamo as crianças que se amotinem e
voltem imediatamente ao computador ou a televisão, o que será no
mínimo bem mais divertido. Porque o prazer da leitura — aquilo que
queremos despertar no jovem principiante nos usos da palavra — é
perceber-se tão inteligente quanto quem escreveu a história, apesar do
jogo de detetive onde o autor procura despistar os significados até o
desfecho. Trata-se de um jogo onde ambos saem ganhando: o autor
porque, se for bom de verdade, vai se esforçar para surpreender o leitor
até o final, mesmo sabendo de antemão que a vitória sobre o que escreve
não lhe pertence exclusivamente45; o leitor, porque sempre descobrirá um
sentido particular e inesperado — e, justamente por encontrar algo que
desconhecia, espelha a sua eficiência na do autor.
Somos, além disso, todos assimétricos em relação ao outro, em
alguma coisa, em alguma habilidade, ou experiência. E, sendo eu uma

45
Conforme Calvino: “espero que o leitor descubra em meus livros algo que eu não
sabia”. (CALVINO, 1999: 189)
adulta que escreve também para crianças, serei tanto mais criança quanto
mais dominar, de forma madura, a linguagem da qual disponho ao me
dirigir a elas. Como qualquer autora, sou eu quem determina caminhos
por onde a minha escritura deve prosseguir; isso me tornará sempre
assimétrica em relação ao leitor, qualquer que seja a sua idade ou
circunstância.
Estamos, portanto, em meio a uma grande confusão aqui
radicalizada propositadamente. Assim como é impossível e desnecessário
muitas vezes determinar o gênero de uma dada obra, também, da mesma
forma, é impossível e desnecessário o estabelecimento de fronteiras entre
os gêneros, sobretudo se levarmos em consideração apenas o seu
destinatário. Podemos prever onde a literatura como um todo começa: no
domínio básico da leitura e da escrita. Porém, a temática e a estrutura do
texto não devem limitar-se a meros adjuvantes na busca desse domínio,
porque, à medida que crescemos, conservamos em nós uma infância
sentimental e memorial que persevera, em sincronia com nossa
maturidade, e que exige, tanto quanto a criança cronológica, um texto
que lhe sirva de referência para o resto das experiências de leitura ao longo
da vida. Ou seja, é preciso, tanto quanto uma formação intelectual e
cognitiva, uma formação sensível, dedicadas ao ser humano pensado como
integral, e não apenas reduzido a uma certa etapa de sua existência.
Posso pensar, contudo, em uma definição, é claro, mas ela não será
ingênua: a literatura infantil, como disse acima, nasceu do casamento da
invenção da infância com um interesse pedagógico e econômico manifesto
num mercado que produz e vende livros e, por consequência, literatura.
Ela é gerada por vontade de um sistema que inclui a criança como
consumidora. Logo, tudo o que disserem para você, numa livraria ou
numa resenha, ou num catálogo editorial, acabará valendo como definição
do gênero. Porque literatura infantojuvenil é isso: um rótulo. Possui uma
embalagem classificatória que determina seu destino. Seus objetos — os
livros que a materializam — são pensados para preencher certo espaço nas
prateleiras que exibem os mais diversos produtos literários, entre eles, o
livro infantojuvenil.
Há que se perguntar, então, se ao invés de nos precipitarmos em
definir tal produção como um gênero, não seria mais prudente avaliar se
ela não se realiza dentro de um sentido discriminatório cultural, buscando
o apartamento entre o ser jovem e ser adulto, como se fossem espécies
diferentes. Fica a pergunta: não haverá um ponto de encontro entre nós,
onde nos comuniquemos na mesma língua? Por que tanto esforço em
evitar uma integração entre adultos e jovens? Seria o autor dito
infantojuvenil o único privilegiado, capaz de participar e integrar em si e
através da linguagem dois tempos — o da infância e o da maturidade —,
simultaneamente?
Embora eu me sinta feliz por esse privilégio, penso que, nas
livrarias e bibliotecas, adultos, jovens e crianças deveriam é misturar-se
mais entre as prateleiras, trocando ideias, orientando ou sugerindo
leituras entre si. Para além da capa, para além do mero consumo ou
indicação pedagógica, o livro deveria oferecer-se, como a borboleta
branca esvoaçante de Mallarmé: livre e misteriosa, pronta a ser capturada
por qualquer tipo de leitor.

* Paula Mastroberti
www.mastroberti.art.br
Escritora e artista plástica, escreveu estas provocações em agosto de 2007, para
a Jornada de Literatura de Passo Fundo.

Leituras de apoio e referências


AGUIAR, Vera Teixeira de Aguiar. A Literatura Infantil no Compasso da Sociedade
Brasileira. In: Gratidão de ser: homenagem a Ilvo Clemente. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1994.
ARIÈS, Philippe. A história social da criança e da família. Rio de janeiro: LTC, 1981.
BARROS, Manoel de. O guardador de águas. São Paulo: Art, 1989.
BORDINI, Maria da Glória e AGUIAR, Vera Teixeira de. A criança e a produção cultural:
do brinquedo à literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003.
OBIOLS, Guillermo e OBIOLS Silvia Di Segnide.
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XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste – Juiz de Fora – MG

Em busca do texto perfeito: (in)distinções entre as atividades do editor de texto e


do revisor de provas na produção de livros1
Ana Elisa Ribeiro2

Centro Federal de Educação Tecnológica, CEFET MG - professora


Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG – aluna, doutoranda
IEC PUC Minas – assessora do curso de especialização

Resumo

Para estudantes de Letras e Comunicação Social, as tarefas de copidesque e revisão são


pouco distintas. Por meio de revisão bibliográfica e da análise de questionários,
propomos a reflexão sobre atividades do profissional do texto, além de explicitarmos
diferenciações entre tarefas, práticas e segmentação da profissão.

Palavras-chave

revisão de texto; preparação de originais; copidesque; tratamento editorial; legibilidade.

1 Introdução
O terceiro capítulo da Lei n. 10.753, de 30 de outubro de 2003, define o editor
como “pessoa física ou jurídica que adquire o direito de reprodução de livros, dando a
eles tratamento adequado à leitura”. Trata-se do inciso II da chamada Lei do Livro ou
aquela que “Institui a política nacional do livro”. Desde 2003, portanto, o Brasil reforça
e estimula a produção editorial, muito embora a referida lei pareça focalizar o impresso,
especialmente o livro, mais do que outras formas de produção editorial.
O inciso I do mesmo parágrafo dessa lei define o autor como “a pessoa física
criadora de livros”. Na contramão de vários pesquisadores, entre eles os eminentes
Michel de Certeau e Roger Chartier, o autor, como descrito pela lei, tem já em sua
intenção a produção do livro, objeto de leitura considerado por alguns, inclusive
Marshall McLuhan, a primeira mídia de massas da história ocidental.
Dois aspectos desses incisos parecem particularmente dignos de nota: são as
expressões “criadora de livros” aplicada ao autor e “dando a eles [os livros] tratamento

1
Trabalho apresentado ao GT de Produção Editorial, do XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Sudeste.
2
Professora do CEFET MG, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de
Letras da UFMG. Atua como assessora pedagógica do curso de especialização em Revisão de Textos da PUC Minas.
Foi editora assistente de várias editoras de livros em Belo Horizonte. Em 2007, ministra a disciplina Oficina de
Textos: Edição, na graduação em Letras da UFMG. Ministrou várias disciplinas relacionadas à formação para o
mercado editorial em cursos da PUC, da UFMG e cursos livres. É colunista do Digestivo Cultural
(www.digestivocultural.com). Contato: anadigital@gmail.com.

1
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adequado à leitura”, referindo-se à tarefa do editor (embora não se especifique que essa
“transformação” seja feita pelas mãos dele mesmo).
Neste trabalho, propomos uma reflexão sobre as tarefas dos profissionais que
tornam os textos publicáveis “adequados à leitura”, tratam, cuidam de e normalizam
obras escritas. A criação de produtos editoriais, seja em que plataforma for, é atividade
antiga e tem hoje importância fundamental no mundo. As profissões relacionadas à
produção de objetos de ler, embora tenham se desconfigurado e reconfigurado ao longo
dos séculos, a depender de inovações tecnológicas e transformações de processos,
sempre foram essenciais para a produção de artefatos culturais importantes. A formação
de profissionais competentes para lidar com textos é da alçada de cursos de Letras e
Comunicação Social, muito embora essas formações apresentem aspectos e currículos
bastante diferenciados; já a formação do profissional que lida com livros demanda
equipes multidisciplinares que contam com, além dos já mencionados egressos de
Letras e Comunicação, designers, arquitetos especializados e outros.
No que podem se tocar, os profissionais (especialmente os de Letras e os de
Comunicação Social) deveriam ter formação generalista no que tange as habilidades
para ler e redigir textos. As especializações de cada um deles costumam ser dadas por
habilitações diferenciadas ou em pós-graduações lato sensu. Ainda assim, formam-se
sem compreender exatamente as funções e as tarefas delegadas pelas casas editoras de
livros aos profissionais que atuam em diferentes etapas do processo de produção de
obras.

1.1 Cenário belo-horizontino


Minas Gerais tem história editorial carente de registro. Muito embora seja
possível encontrar boas obras a respeito da história conturbada e fragmentária dos
jornais e das revistas mineiros, é ainda menos fácil deparar com livros e acervos
organizados que tratem de registrar e contar a história da produção de livros em Minas,
assim como da existência de editoras.
O cenário atual, no entanto, aponta para uma situação que talvez enseje o início
da organização de um tal acervo. Ao menos o início da pesquisa na área. Em parte por
causa da desestabilização que a informática trouxe à “galáxia de Gutenberg” ou à
“ordem do livro”, emergem iniciativas que parecem direcionadas à produção de
conhecimento sobre o universo editorial em Minas Gerais e mesmo para a formação
profissional de editores, revisores e outros personagens da cena editorial.

2
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A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sustenta um bacharelado em


Letras desde 1999, muito embora a linha formativa especializada em edição ainda esteja
por ser implementada. Desde 2006, a PUC Minas vem implantando um bacharelado
com o intuito, também, de formar profissionais fora da licenciatura, mais
especificamente voltados para o mercado editorial. Também na PUC, o Instituto de
Educação Continuada (IEC) oferece, desde 2005, um curso de pós-graduação lato sensu
em Revisão de Textos, ao qual têm acorrido egressos de Letras e Comunicação Social,
além de uns poucos arquitetos e historiadores. Trata-se de um cenário bastante diverso
do que se podia encontrar no final da década de 1990, quando ainda era nebuloso o
motivo pelo qual a UFMG abria um bacharelado em Letras.
A formação em Comunicação Social (e suas habilitações) tem foco em
atividades publicitárias e jornalísticas, passando ao largo da produção de livros, exceto
para as habilitações, ainda poucas e maldefinidas, em produção editorial. A formação
em Letras parece socorrer-se da opção de formar revisores, uma vez que as licenciaturas
vêm encontrando problemas para sobreviver em vários centros universitários. A década
corrente já conta alguns exemplos de cursos bastante tradicionais fechados por falta de
alunos.
A movimentação um tanto eufórica em torno da produção para plataformas
digitais parece ter servido, também, para desacomodar a produção impressa, fazer
mudanças tecnológicas nos processos de edição e reprodução, o que atinge o
profissional do mercado e o estudante em formação. A essas mudanças as universidades
parecem atender oferecendo cursos com orientações diferentes daquelas tradicionais
(muito embora as profissões relacionadas à produção de livros sejam muito antigas).
Embora haja forte demanda por esse tipo de formação continuada, os alunos se
mostram pouco esclarecidos a respeito de tarefas e atividades ligadas ao mundo
editorial. Em uma turma de 21 alunos de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, todos entre o 4o e o último períodos, a aplicação de um breve questionário
mostrou que os aspirantes a vagas no mercado editorial desconhecem as operações e a
existência do editor de textos, confundem as atuações deste e as do editor (publisher) e
relacionam o revisor a uma espécie de “inspetor da língua”. O mesmo questionário,
aplicado a uma turma de pós-graduação (37 alunos), ofereceu resultado muito
semelhante. A diferença revelou-se no fato de os egressos de cursos de Comunicação
Social terem mais noção dos processos de produção de jornais, embora os aplicassem
também, equivocadamente, à produção de livros.

3
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Com base em vários manuais de revisão ou de estilo gráfico, discutimos as


diferenças apontadas por especialistas na prática de revisores, preparadores e editores de
texto (também chamados de copidesques3), em espaços como editoras ou outras casas
de produção editorial. Pensamos ser absolutamente necessário investigar quais
competências esse profissional precisa desenvolver, ao longo de sua formação
universitária, para compreender sua atuação real e sua inserção no mundo da produção
editorial, seja ela gráfica ou digital.
A partir das distinções e das definições do campo, também será possível cobrir
lacunas de formação, adequar currículos e reorientar práticas que não estejam
cumprindo as demandas para as quais são solicitadas. As diferenciações que o mercado
faz precisam ser conhecidas do profissional em formação, para que ele saiba distinguir
suas intervenções e os serviços que presta. De maneira tangencial, ainda é possível
verificar e ponderar sobre o conceito de revisão, assim como o conceito que se tem do
quê e de como seja ou deva ser a atuação do profissional do texto, a eliminação de
posturas exageradamente rígidas ou competitivas, além de melhores noções de “cultura
geral”, processos de leitura e escrita, operações de edição, notações profissionais,
história da edição, conhecimentos da língua em seus vários registros e dialetos, além de
habilidades interpessoais pouco expostas em manuais e guias.
É de suma importância discutir o que vem a ser o “tratamento adequado à
leitura” na produção de uma obra, de um livro, de um objeto de ler? Em que medida
esse tratamento está relacionado ao tipo de suporte do objeto legível? Que aspectos
desse tratamento tocam que profissionais?
Aqui, propomos a separação entre, pelo menos, duas fases do que seria esse
tratamento: o cuidado com o texto e o cuidado com o aspecto gráfico (ou digital).
Inclui-se, portanto, nesse tratamento, o trabalho com a língua e o texto (considerado não
apenas o verbal), assim como os profissionais formados (na teoria e na prática) para
tratar esse aspecto importante do objeto de ler.
Focalizaremos muito mais ainda o tratamento do texto, o aspecto textual do livro
(ou de outro objeto), a legibilidade tal como entendida pelos lingüistas, e deixaremos a
legibilidade dos designers para outro momento.

3
Do inglês copy desk. Trata-se de profissional que reescreve, edita o texto original, sempre em negociação com editor
e autor. No jornalismo, a profissão está próxima da extinção, já que os jornalistas de hoje fundem várias funções. Na
produção de livros, ainda é bastante comum que o texto original passe pelas mãos de um copidesque antes de ser
visualmente programado, diagramado e revisto.

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2 Escrita, edição, revisão


Enquanto a legibilidade, para os designers, está relacionada aos aspectos da
programação visual de fontes e páginas, os lingüistas tratam a facilitação da leitura do
ponto de vista da organização dos conteúdos de um texto. LUPTON (2006) afirma que
“embora muitos livros vinculem o propósito da tipografia à melhoria da legibilidade da
palavra escrita, uma das funções mais refinadas do design é de fato ajudar os leitores a
não precisar ler”. Nesse sentido, o planejamento visual e a criação de fontes (digitais ou
tipográficas) teria como finalidade criar certa transparência e facilitar as ações do leitor
ao percorrer o texto. Já os lingüistas, como FULGÊNCIO e LIBERATO (2004) ou
COSCARELLI (1999), empreendem a tarefa de “definir as dificuldades de leitura de
um texto” e propôr formas de organizá-lo, planejá-lo e compô-lo que o tornem mais
inteligível.
Considerando que o autor tenha escrito textos avaliados como publicáveis,
passaremos a tratar das operações que ocorrem no âmbito da casa editorial para
tornarem o texto aprovado em mídia, livro, objeto de ler. Entre essas operações,
certamente as primeiras são as que tangem o texto. Não nos deteremos, no entanto, nos
controversos conceitos de autor ou autoria4, apenas no tratamento do texto, pressupondo
que ele já tenha sido entregue aos cuidados da casa editora.
Um bom texto, dentro dos critérios da legibilidade (da lingüística, ou seja, a
clareza, a compreensibilidade) e daqueles que dizem respeito ao “mercado”, deve ser
passível de tratamento pelas mãos dos profissionais do texto, tais como editores,
preparadores, copidesques e revisores. Todos eles, de preferência, têm seu perfil
profissional moldado em cursos que dão ênfase ao trabalho com a língua e as
linguagens, tais como Jornalismo, Publicidade e Letras. Ainda que esses cursos
concorram para a formação de egressos com perfis e competências bastante diversos,
são eles que oferecem a possibilidade de formar um profissional apto a compreender e a
empreender o tratamento de linguagens com vistas à publicação.
Certamente, a língua portuguesa-padrão, representada especialmente nas
gramáticas prescritivas, é um dos objetos de estudo desses profissionais e, mais do que
isso, ferramenta com que trabalham e que consultam freqüentemente. Onde vão eles
buscar informação sobre o tratamento do texto?

4
Como discutidos, há décadas, por Michel Foucault, Roland Barthes e uma série de autores contemporâneos também.

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Os cursos de Comunicação Social parecem ser compostos, em sua maioria, de


disciplinas que discutem a comunicação de um ponto de vista bastante generalista, além
de promoverem a prática da redação mais do que a reflexão sobre o texto e o
processamento da escrita. Já os cursos de Letras parecem enfatizar uma formação
doutrinadora, teorizadora, reflexiva, mas pouco prática e empreendedora dos papéis do
profissional que lida diretamente com o texto, em esferas como a prestação de serviços.
De qualquer forma, os dois profissionais podem se esgueirar pela produção
editorial, em plataformas impressas ou digitais, desde que o editor tenha consciência de
que o “tratamento adequado à leitura” passa, obrigatoriamente, pelos egressos de
Comunicação ou Letras, e não apenas pelas mãos do designer gráfico. Não basta que um
texto se torne livro em relação ao formato ou à beleza. É necessário que ele seja tratado
também em relação à sua harmonia lingüística, ao gênero, aos efeitos comunicativos, à
correção do texto que será lido.

3 Profissionais do texto
Para PINTO (1993), o profissional que desempenha as “atividades relativas à
adequação do texto que dizem respeito à organização, normalização e revisão dos
originais são chamadas de preparação”. Mais adiante, o autor adverte que chamará
“genericamente” de preparador esse profissional.
Cabe ao preparador conhecer, segundo PINTO (1993), além das condições da
obra inteira, a ortografia da língua, a pontuação, aspectos do vocabulário e dos vícios de
linguagem mais comuns. Também cabe a ele dominar questões discursivas e de gênero,
além de fatos sintáticos e ao menos os rudimentos da produção editorial com que possa
contribuir nas etapas de seu trabalho.
O revisor, na obra de PINTO (1993), parece algo diferente do preparador. Esse
profissional trata da verificação do texto, da revisão de provas, etapa adiantada do
processo de edição, em que a obra já sofreu tratamento gráfico ou programação visual.
A incumbência do profissional da revisão é “o cotejo da prova com o original sem
compromisso com o conteúdo do texto e limitado apenas aos erros tipográficos”.
Citando Jannet, PINTO (1993) esclarece ainda as tarefas do revisor, entre elas
“descobrir quaisquer erros que tenham sido cometidos na composição e dar instruções
para sua correção”. Mais adiante, afirma Jannet que “De preferência, qualquer livro
deverá ser lido antes em sua inteireza pelo revisor” e assim descreve a tarefa (ressalve-
se a obsolescência das tecnologias citadas na obra) :

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O leitor é então chamado a ler alto, do manuscrito ou do original


datilográfico do autor, enquanto o revisor acompanha as palavras da prova,
comparando-as com as da leitura, vigiando os erros tanto da composição quanto
do leitor, e também do autor, evitando as letras de fontes estranhas que se
possam ter infiltrado no texto composto, observando [...] o que quer que seja
que possa comprometer a boa reputação da casa [...] Quaisquer erros que forem
encontrados são indicados por signos especiais. (Jannet apud PINTO, 1993, p.
126-127).

Há, aí, algum comentário a fazer sobre as considerações de Jannet. É notável que
a tarefa descrita para o preparador seja tanto mais ampla do que a do revisor, que se
limita a comparar a prova e o original, como que a conferir se não há infidelidades. Para
isso, recorre-se a metáforas como a da vigilância, que torna o revisor um inspetor que
trabalha a favor do autor e até mesmo da salvaguarda da “reputação da casa”, a editora
ou o jornal. As letras “estranhas” se infiltram no texto, como se andassem sozinhas e
quisessem escapar dos olhos perscrutadores do profissional “caça erros”. E se estes
forem encontrados, quaisquer que sejam, devem ser marcados com “signos especiais”, a
notação de revisão, para que se destaquem e possam ser corrigidos.
Tarefa normativista, controladora, a descrição do revisor por Jannet, citado por
PINTO (1993), parece desenhar um profissional bem menos flexível do que ele, de fato,
precisa ser. Assuma-se que, para comparar provas, de fato, não seria necessária qualquer
formação mais especializada. Na fusão de tarefas dos dias atuais, até em razão de os
suportes e de a divisão do trabalho editorial não serem mais os mesmos, o preparador,
de modo genérico, tem muito mais pertinência do que o revisor de provas descrito nesta
seção.
Para PINTO (1993), há duas categorias de “erros”: os de composição e os do
próprio revisor. Aqueles são os saltos, os piolhos, os pastéis, os gatos e as gralhas. Estes
são o desconhecimento da língua, as imprecisões de correção e a falta de padronização.
Na composição, saltos são omissões de letras, palavras ou frases, por exemplo;
piolhos são sinais ou letras duplicados, ou ainda qualquer pequeno erro tipográfico;
pastéis são inversões indevidas; gatos são trocas indevidas; e gralhas são caracteres que
sobram no texto.
Os erros do revisor são todos relacionados às falhas que ele impõe ao texto. O
desconhecimento da língua parece o mais grave deles e é descrito como “quando
precisar recorrer ao dicionário”. Neste ponto, é de suma importância mencionar o
conceito normativista e padronizador de língua e o descarte de qualquer possibilidade

7
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fora da gramática tradicional. Apenas um dialeto (o padrão) pode aqui ser considerado
língua, além de ser difícil considerar a revisão de um texto literário uma questão de
norma pura.
Com relação à procura do dicionário, preferimos considerar que seja positivo
que um revisor os tenha e os consulte, a despeito do que PINTO (1993) propõe. O
“erro” do revisor é tratado como “cochilo”, o que torna a tarefa de revisar algo para se
fazer atenta e detalhadamente.
As imprecisões de correção são intervenções do revisor feitas sem que ele
consulte fontes adequadas, especialmente em relação a conteúdos que ele não domina.
Já os desvios de padronização são a falta de um olhar preciso sobre a obra como um
todo para torná-la harmônica e coerente, inclusive em relação a formatações e alterações
de detalhes.
Para PINTO (1993), as tarefas do revisor são claramente mais detalhistas e
discretas do que as do preparador, este, sim, o profissional a quem se permite a
intervenção no texto sem tratamento gráfico, quase em contato com as mãos do autor.
Também para SAATKAMP (1996), preparador e revisor são profissionais que
trabalham em fases distintas da edição. Ao preparador cabe tratar o texto antes que ele
traga problemas aos processos de planejamento visual e à diagramação. O revisor, agora
chamado de revisor de provas, tem uma “tarefa árdua, que exige dos profissionais dupla
atenção: para o sentido do texto e para sua correção ortográfica”.
Agora, ao menos, distingue-se o trabalho de leitura de um revisor do de um robô.
Para SAATKAMP (1996), o revisor precisa ler, entender, compreender o conteúdo e,
assim, corrigir problemas. A correção ortográfica, no entanto, continua sendo uma das
esferas mais amplas de sua atuação.
Para o autor, a editora deve solicitar a um leitor habilitado a leitura prévia do
original. É este profissional que deve fazer a “correção dos enganos mais evidentes –
erros de concordância e digitação, de pontuação, texto truncado”. Sobra para o revisor
de provas a tarefa, mais uma vez, de comparar original e prova, passar uma espécie de
leitura de “pente fino”, cuidar para que o texto seja perfeito quando da publicação.
ANTUNES (1997) chama de “anomalias” os eventuais erros no texto, ainda
antes do tratamento gráfico. Para o autor, trata-se de um “trabalho de máxima
importância”, já que “sua feitura destina-se a uma boa compreensão e ganho de tempo
dos compositores”. Aqui, sim, a boa compreensão mencionada parece se referir ao
leitor, e a tarefa do revisor se assemelha à de um cuidador. Mais uma vez, faz-se a

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distinção entre este profissional de intervenções mais amplas e o revisor de provas, cujo
trabalho é o de “verificar, depois de composto o texto, se o mesmo se encontra em
conformidade com o original. A sua utilidade pode sintetizar-se na harmonização de
textos em termos lingüísticos e de técnica tipográfica, sendo a sua melhoria por vezes
feita pelo revisor”. Adiante, as dicas de gramática normativa que se apresentam em
todos os manuais deste tipo.
Entre os autores consultados, MALTA (2000) é o único que oferece um manual
quase todo para tratar apenas do ofício de revisor, cujas tarefas ele define como sendo as
de
• Revisar os originais aprovados para edição pelas editoras;
• Revisar (se tiver conhecimento de outros idiomas) as traduções,
cotejando-as com os livros originais);
• Revisar as segundas provas, tomando como base as primeiras e,
quando necessário, reportando-se aos originais (inclusive, ainda se preciso, ao
livro);
• Revisar (menos comum, mas ocorre) terceiras provas, tendo como
base as segundas;
• Examinar (a palavra “revisar” não caberia bem aqui) as
heliográficas (não é muito comum, mas se o revisor for funcionário de uma
editora, acabará fazendo esse trabalho);
• Revisar (incomum, mas acontece) filmes que deram ou darão
origem a heliográficas; e , finalmente,
• Reler livros já publicados, em função de modificações que o autor
quer fazer para uma nova edição, ou quando se desconfia que a edição
publicada contém erros. (MALTA, 2000, p. 16).

Essa, segundo o autor, é uma descrição “moderna” das atribuições do revisor,


especialmente daquele que trabalha para editoras. Trata-se da revisão de originais e
provas, mais uma vez tarefa distinta da do editor de texto ou preparador. Nesta
descrição de atividades, ainda, reforça-se a idéia do revisor como o perito das provas,
agora incluindo as heliográficas, da interminável busca pela perfeição e da intervenção
zero nos aspectos que se relacionam à seleção de originais ou às determinações de como
deve ser o texto original.
Tal é a tarefa do copidesque, “trabalho mais difícil e exigente do que o de
revisão”. Copidescar significa “reescrever, retrabalhar um original”. Bem ao contrário
do que reza a lei, é aqui que o tratamento adequado à melhor legibilidade começa. Não
pelas mãos do autor, que não faz exatamente livros, mas pelas mãos do profissional de
edição, que, juntamente com o autor e o editor, cuida da forma e do conteúdo daquele
que será, adiante, o original (e ainda mais adiante, o livro).
Ao copidesque cabem várias operações no texto entregue à editora.

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É cada vez mais comum as editoras aprovarem a edição de um texto


nacional rico de idéias, necessário no mercado editorial, mas mal escrito, com
repetições, ausências (de colocações mais claras, de parágrafos de ligação entre
as partes de um capítulo, etc.), uso inadequado de adjetivos em relação a
substantivos (e vice-versa), pobreza nas conjunções adversativas (está abusivo o
uso de “entretanto” – parece que muitos autores, tanto de ficção como de textos
didáticos e outros, nunca viram, ou leram, “mas”, “porém”, “todavia”,
“contudo”, “no entanto”). Acima de tudo uma redação lógica, fluente,
entendível deve caracterizar qualquer texto, e este é o trabalho do copidesque.
(MALTA, 2000, p. 16-17)

Se o texto não é o melhor possível, é o momento de o copidesque entrar em ação


e intervir, de maneira incisiva, para que o original seja legível. Ao revisor cabe tarefa
bem mais discreta e adiantada, qual seja, a de comparar original e prova. Para MALTA
(2000), “o revisor deve conhecer seus limites”. Ainda “ortografação e preparação são
sinônimos usados por algumas editoras para aquilo que denominamos revisão de
originais”. Para tornar ainda mais clara a diferença da tarefa de cada um, “Geralmente, o
revisor só de provas é menos qualificado (...) do que o preparador de originais, do qual
se exige (...) boa cultura geral e conhecimento de mais de um idioma”. Essa menor
qualificação parece ser causa (ou conseqüência?) de certa desvalorização tanto da
profissão quanto do preço do serviço.
Para MALTA (2000), a formação do bom revisor passa por uma série de
experiências: “ótimo conhecimento de português”, “mergulhos sérios” em gramáticas
normativas, leitura de jornais e revistas, para manter-se informado, atualização sobre
mudanças em gramáticas e outros manuais, atenção, senso crítico, mas “nada de se
meter a autor, reescrevendo furiosamente laudas e mais laudas só para mostrar ao editor
que o revisor é competente”.
Neste ponto, o da autoria negada, é de se lembrar a citação do apólogo de Apeles
e o sapateiro, contado pelo escritor português José Saramago, na obra História do cerco
de Lisboa:
... o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo
verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre
a anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe
disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que
lhe olhem por cima do muro do quintal. (SARAMAGO, 1989, p. 14).

Para MALTA (2000), as fontes de consulta são o melhor apoio do profissional


de texto, especialmente aquele que pode intervir mais nos originais. A boa capacidade

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de duvidar é também fundamental, sem reprovação de conseqüentes consultas a


dicionários, gramáticas e manuais de língua e normalização. Para o autor, não basta,
enfim, ser um gramático enrustido ou um mero conferidor de linhas para ser
copidesque. É necessário ter formação. O autor critica as faculdades de Comunicação e
Letras por não oferecerem aos alunos “cultura geral” suficiente para dar conta da leitura
ampla de um texto original. Para isso ele sugere a leitura de jornais, revistas e livros.
Dúvidas e controvérsias podem afetar o revisor. E é bom que ele se sinta afetado
por elas. Faz parte do trabalho duvidar e investigar. Oferecer não apenas a solução mais
fácil, mas também a reflexão.
No jornalismo, o editor tem tarefa bem mais ampla do que na publicação de
livros, salvo casos em que o editor das obras seja o executor delas em todas as etapas
(algo que se tornou especialmente possível depois do computador).
Segundo o Manual da Redação do jornal Folha de S.Paulo, ao editor cabe fazer
a “exposição hierárquica e contextualizada das notícias e a distribuição espacial correta
e interessante das reportagens”. Cabe a esse profissional e a seus assistentes “zelar para
que as diretrizes estabelecidas na pauta sejam seguidas”, situação bastante diferente da
submissão de obras já escritas à casa editorial.
O contato do editor de jornais é, prioritariamente, com o jornalista, profissional
que compõe sua equipe de trabalho. A relação entre ambos parece essencialmente
diversa daquela fundada entre autor e editor quando da produção de livros, mormente
quando livros de arte e literários. Parece não caber ao jornalista a defesa absoluta e
autoral de sua matéria, como pode acontecer a escritores.
O editor de jornais pode, quando cabível, preencher lacunas de texto, dar novos
enfoques, corrigir e dinamizar frases e parágrafos, esclarecer e desenvolver explicações,
dar títulos ou alterá-los, redefinir tamanhos de texto em função dos espaços fixados pela
diagramação, lidar com o projeto gráfico (único) do jornal e até modificar a edição na
última hora, se for o caso. Embora a revisão final de textos não seja abordada no
Manual da Folha, fica implícita como uma das funções, entre tantas, do editor. Ao
editor de livros parece caber muito mais a função de regente de todos esses processos,
que, no jornalismo, são levados a cabo por apenas um profissional.

4 Pesquisa/ação
Na experiência de sala de aula com alunos de graduação e pós-graduação, é fácil
entrever as confusões entre conceitos e funções de profissionais do texto. Embora haja

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forte demanda por esse tipo de formação continuada, os alunos se mostram pouco
esclarecidos a respeito de tarefas e atividades ligadas ao mundo editorial.
Aplicamos um breve questionário5 com perguntas sobre tarefas de revisor, editor
e copidesque, aos alunos do curso de Letras da UFMG e aos da pós-graduação do IEC
PUC Minas, em março de 2007. Em uma turma de 21 alunos de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, todos entre o 4o e o último períodos, a análise das respostas
mostrou que os aspirantes a vagas no mercado editorial desconhecem as operações e a
existência do editor de textos, confundem as atuações deste e as do editor (publisher) e
relacionam o revisor a uma espécie de “inspetor da língua”. Também fica evidente o
desconhecimento da produção editorial (de livros, jornais, revistas ou objetos digitais)
como um processo em que os profissionais se articulam, muitas vezes em seqüências
preestabelecidas, para evitar retrabalho. Para grande parte dos alunos da UFMG, o
revisor seria um dos primeiros profissionais do processo de edição. O editor, quando
entendido como coordenador de etapas e tarefas, viria por último, além de ser citado
como o responsável pela programação visual, pela diagramação e por outras etapas da
edição que, de fato, não lhe dizem respeito, exceto porque são coordenadas por ele.
O mesmo questionário, aplicado a uma turma de pós-graduação (37 alunos),
ofereceu resultado muito semelhante. A diferença revelou-se no fato de os egressos de
cursos de Comunicação Social terem mais noção dos processos de produção de jornais,
embora os aplicassem também, equivocadamente, à produção de livros. Para jornalistas
e publicitários, a função do editor de livros teria as mesmas características das do editor
de jornais: reescrever textos, modificar estrutura de obras, pesquisar temas, fazer
programação visual, cortar textos em função de espaços. Na maioria dos casos, os
alunos de Comunicação desconhecem a função gerencial do editor de livros, assim
como atribuem a ele uma série de funções que seriam, na realidade, de uma equipe
multidisciplinar por ele orquestrada.
Dado o cenário mineiro de poucas editoras, poucas vagas fixas de trabalho no
setor, certa atuação de profissionais autônomos sem formação específica, reserva de
mercado de algumas profissões, maior oferta de empregos em jornais e existência mais
perene desses veículos, é fácil observar as razões pelas quais o processo de produção de
periódicos seja melhor apreendido e compreendido pelos estudantes. Ainda assim, a

5
O questionário compunha-se de apenas 3 perguntas: 1. Qual é a tarefa do revisor?; 2. Qual é a tarefa do editor?; 3.
Qual é a tarefa do copidesque?. Apenas 2 alunos de Letras se arriscaram a apontar o que faz o copidesque. Também
foram eles que diferenciaram o editor do editor de textos. Nenhum aluno especificou a atuação do revisor de provas
em relação ao preparador de textos.

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quase inexistência de jornalismo de revistas na capital mineira torna os jornais


impressos quase a única experiência da maioria dos pós-graduandos.

5 Considerações finais
Conforme pôde ser apresentado, as tarefas do profissional do texto podem variar
em relação à profundidade da intervenção que é solicitado a fazer nos textos indicados
para publicação ou produção. O original não existe apenas pelas mãos do autor, mas
deve ser tratado pelo preparador, nome genérico dado àquele que se especializa no
tratamento da linguagem de uma futura obra.
Embora os manuais consultados, os poucos que circulam em língua portuguesa
atualmente, entendam a profissão tal como um policiamento lingüístico, é possível
adotar posturas mais flexíveis (sem prejuízo do cumprimento das tarefas de copidesque
e revisão). BRITTO (2003), exemplo, admite a importância da profissão para o
funcionamento da produção editorial, embora trabalhe na perspectiva da
sociolingüística, que considera, fortemente, a existência de aspectos muito mais
complexos e variados na língua do que a existência pura e simples de uma gramática
normativa ou de um dialeto ideal.
A diferenciação entre o copidesque e o revisor de provas pode ser difícil de
praticar, mas parece ser parte de uma prática antiga na coordenação das tarefas dos
produtores de livros e outros objetos de ler. É importante que o especialista em
tratamento de textos saiba intervir adequadamente, de acordo com a demanda, e possa
se enquadrar em tipos distintos de prestação de serviços, a despeito de certas fusões
atuais das tarefas, causadas principalmente por mudanças tecnológicas.
Hoje é possível se editar sozinho uma obra, desde a contratação do texto, ao
tratamento do original e à produção gráfica. É o que têm feito artistas novatos e poetas,
de maneira competente, sem vínculo com empresas e selos editoriais.
A importância do revisor e do copidesque se aloja na necessidade de conferir
legibilidade (ou inteligibilidade) aos textos, uma leitura perspicaz e especializada em
obra que não deveria circular sem certos ajustamentos. Embora se saiba que nem todas
as casas editoriais contratam esses serviços, é plenamente reconhecível um produto
bem-tratado e um outro que tenha negligenciado as fases de produção de obras desde as
equipes editoriais de antes de Gutenberg. Basta percorrer uma livraria e fazer
observações empíricas.

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O graduado que deseja se formar para trabalhar nestas etapas da produção pode e
deve se inteirar dos processos qualificados e dos conhecimentos que precisa construir,
tanto conceituais quanto procedimentais, para que se torne indispensável na cadeia da
produção de objetos de ler. Dado nosso cenário atual em relação às tecnologias para
escrita e publicação, talvez a formação generalista, a partir da qual o profissional possa
atuar em todas as etapas e saiba, quando necessário, atuar em apenas uma delas, seja o
mais importante a promover e a fazer, tanto nos cursos de Letras quanto nos de
Comunicação Social, áreas cujas fronteiras deveriam ser menos importantes do que suas
atuações colaborativas.

6 Referências bibliográficas

ANTUNES, Álvaro F. Manual de estilo gráfico. Para escritores, jornalistas, publicistas,


editores, tradutores, revisores, paginadores e gráficos. Portugal: CETOP, 1970.
BRIGGS, Asa e BURKE, Peter. Uma história social das mídias. São Paulo: Zahar, 2004.
BRITTO, Luiz Percival L. Contra o consenso. Cultura escrita, educação e participação.
Campinas: Mercado de Letras, 2003.
CARPENTER, Edmund; McLUHAN, Marshall (Orgs.). Revolução na comunicação. Trad.
Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. v.1. Petrópolis: Vozes, 1999.
COSCARELLI, Carla Viana. Leitura em ambiente multimídia e produção de inferências. Belo
Horizonte, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 1999. (Tese de
doutorado).
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 2004.
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: UNESP, 2004.
FULGÊNCIO, Lúcia e LIBERATO, Yara. Como facilitar a leitura. São Paulo: Contexto, 2004.
LUPTON, Ellen. Pensar com tipos. Trad. André Storlarski. São Paulo: Cosac&Naify, 2006.
MALTA, Luiz Roberto. Manual do revisor. São Paulo: WVC, 2000.
MANUAL da Redação: Folha de S.Paulo. 4 ed. São Paulo: Publifolha, 2001.
PINTO, Ildete Oliveira. O livro: Manual de preparação e revisão. São Paulo: Ática, 1993.
SAATKAMP, Henry. Preparação & revisão de originais. Porto Alegre: Age, 1996.
SARAMAGO, José. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SCORTECCI, João e PERFETTI, Maria Esther Mendes. Guia do profissional do livro 2005.
Informações importantes para quem quer publicar um livro. São Paulo: Scortecci, 2005.
SQUARISI, Dad. Manual de redação e estilo. Associados. Brasília: Fundação Assis
Chateaubriand, 2005.

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Editor de Texto: Quem é e o que Faz1


Cristina Yamazaki2
Universidade de São Paulo

Resumo
Há muitos nomes para denominar os profissionais do livro que “mexem” no texto
alheio, e nem sempre se chega a um consenso. Com base nas principais obras da
bibliografia brasileira sobre editoração, foi apresentada a concepção corrente de editor
de texto e as tarefas envolvidas no seu trabalho, expondo a dificuldade de definir quem
é esse profissional e o que ele faz. Por fim, buscou-se a proposta de uma abordagem
conciliadora, que considerou também os elementos envolvidos na prática profissional.

Palavras-chave
Editoração; editor; editor de texto; preparação de originais; revisão de texto.

Introdução
Entre o texto digitado no computador e a brochura com capa, na estante ou na gôndola
da livraria, há um longo percurso invisível aos leitores e muitas vezes até aos autores.
Além do processo industrial óbvio de transformar bits em matéria — uma matéria
atraente e vendável —, existe um processo sutil, que se insinua nos detalhes de cada
letra e palavra do texto.
Como explicou Antônio Houaiss em um simpósio sobre editoração promovido
pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em 1970, esse processo é necessário porque
em 90% dos casos, os autores não apresentam os originais nas condições
desejadas para a editoração. [...] Mesmo quando lingüisticamente o texto
esteja em situação ideal, um preparo prévio, rápido que seja, tem de ser feito:
a normalização da editora. Entretanto, em 90% dos casos, o texto entregue
pelo autor não corresponde àqueles requisitos mínimos exigidos para que
possa ser submetido imediatamente à fase compositora e impressora, porque
apresenta uma série de defeitos orgânicos. (HOUAISS, 1981, p. 51)

Embora Houaiss tenha exposto essas idéias há mais de três décadas e a produção
editorial tenha se modificado bastante ao longo desse período, sua afirmação permanece
válida. Os originais entregues pelos autores continuam exigindo um trabalho prévio
antes de serem publicados como livros. E não apresentam apenas defeitos orgânicos,
mas também problemas lingüísticos — nem repetiríamos a porcentagem citada, que já é
alta, mas ousaria dizer que em 100% dos casos.
Por isso, numa editora de livros, todos os originais passam obrigatoriamente pela edição
de texto, que em geral (e idealmente) é composta das seguintes etapas3 :

1
Trabalho apresentado no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação — NP Produção Editorial.
2
Mestranda do Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (ECA-USP). Trabalha como editora de texto freelancer.

1
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• Preparação de texto
• Revisões de texto ou de provas, dividida em:
Primeira prova: uma prova impressa é lida por um revisor
Segunda prova: outra prova impressa é lida por outro revisor
Terceira prova: não há leitura. Um terceiro revisor checa se as emendas pedidas pelo
revisor da segunda prova foram incorporadas ao texto.

Portanto, há no mínimo quatro


etapas de cuidado com o texto
e quatro pessoas diferentes
lidando com o mesmo texto. E,
conforme a dificuldade do ori-
ginal4 , outras etapas ainda po-
dem ser incluídas. No caso de
um texto traduzido, por exem-
plo, pode haver: revisão da tra-
dução, cotejo da tradução, revi-
são técnica e copidesque. Isso

Emendas feitas num original. (De Pensar com tipos, de Ellen Lupton)
sem contar as etapas habituais:
preparação e revisões. E se o
texto for de autor nacional, também pode envolver revisão técnica, copidesque, pesquisa
de dados e checagem de dados, entre outras.
Não é fácil explicar o que cada etapa implica, porque mais uma vez há muitas
variáveis. Ao encomendar uma preparação de texto, cada editora tem a sua concepção
do que o trabalho envolve. É comum que em cada empresa o editor exerça uma função e
que cada uma espere do preparador de originais um tipo de trabalho. Para algumas, a
preparação pode exigir o cotejo do texto traduzido com o original, por exemplo. Para
outras, isso não é necessário, ao preparador cabe checar (ou “bater”) o início e o fim dos
parágrafos para ver se houve algum salto de tradução, mas não comparar os textos

3
As etapas podem variar conforme a editora, o livro, o autor, o prazo de publicação, o orçamento ou outros fatores
prementes.
4
Nas editoras de livros, chama-se original o texto que o autor entrega para publicação e que será o texto-base a ser
editado. Até meados da década de 90, o autor levava à empresa o maço de folhas manuscrito ou datilografado, hoje
há raríssimos casos em que a editora recebe o material dessa forma. Depois de mais de vinte anos de presença do
computador doméstico nas residências brasileiras, tornam-se casos curiosos os que ainda escrevem seus textos à mão
ou traduzem livros à mão. A escritora de livros infantis Tatiana Belinky continua criando suas obras no papel e
entrega à editora os originais manuscritos, conforme entrevista ao suplemente Estadinho (O Estado de S. Paulo, 21
abr. 2007, p. 5). O escritor e tradutor Modesto Carone traduziu e continua traduzindo as obras de Franz Kafka no
papel pautado.
O mais comum, porém, é o autor enviar o arquivo do texto (redigido em um editor, geralmente o Microsoft
Word) por e-mail. Quando entrega algum produto material, trata-se apenas do dispositivo que guarda o arquivo e que

2
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palavra a palavra. Há editoras que esperam que o preparador apresente o arquivo do


texto formatado conforme sua padronização interna: com versaletes no lugar de letras
em caixa-alta, com títulos e intertítulos seguindo a formatação da diagramação final,
com a indicação das páginas pré-textuais conforme serão publicadas na obra final. Mas
outras editoras não exigem esse trabalho do preparador, que nesses casos se preocupa
estritamente com o texto.
Essa confusão de denominações e a falta de definição para cada tarefa decerto
colaboram para aviltar o trabalho do editor de texto. Esse problema da variedade de
designações para nomear os profissionais do texto e para definir suas funções pode ser
considerado universal, segundo Althéa Kotze e Marlene Verhoef, pesquisadoras da
prática do editor de texto5 . No Brasil, cremos que ainda há um agravante: a tendência de
uma única pessoa acumular funções que deveriam corresponder a diferentes
profissionais do texto. Tendência estimulada pelas editoras, que assim podem diminuir
o orçamento destinado à edição de texto.
O editor Marcos Gomes (1988) denunciou as condições de trabalho no mercado
editorial brasileiro na década de 80, no artigo “Radiografia do mercado de trabalho em
editoração”. Ele expôs vários exemplos (bem documentados) da exploração dos
prestadores de serviços na indústria editorial, chamados de “bóias-frias das editoras”.

A falta do vínculo empregatício traz insegurança às pessoas e as sujeita ao


aviltamento do preço de seu trabalho. É muito comum que, nesse esquema,
um profissional seja pago como revisor ou preparador de originais quando na
verdade a tarefa que lhe é exigida é de copidesque, de adaptação e mesmo de
redação. Os profissionais da área sabem que cada uma dessas tarefas exige
tempo e habilidade diferentes e por isso tinham preços diferentes no
mercado. Hoje existe uma perniciosa tendência a nivelar essas tarefas, por
baixo quanto ao preço e por cima quanto às exigências de qualidade. (p. 26)

Diante dessa controvérsia, percebe-se a necessidade de definir nomes e funções para


quem trabalha com edição de textos.

Método
Como o propósito deste artigo foi buscar definir quem é o editor de texto brasileiro e o
que ele faz, foi imprescindível usar como referência os estudos publicados no país. No
entanto, a bibliografia sobre editoração não é vasta, em especial se considerarmos

muda conforme as inovações tecnológicas de armazenamento de dados: do começo ao fim da década de 90, usamos o
disquete flexível, depois o disquete rígido e agora o CD e o pen-drive e outros dispositivos portáteis.
5
Ambas são professoras da Potchefstroom University for Christian Higher Education, na África do Sul.

3
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apenas a produção brasileira voltada para as questões específicas do texto. Os principais


autores que se debruçaram sobre a edição de livros e se detiveram na edição de textos,
tentando defini-la e explicá-la, foram Antônio Houaiss e Emanuel Araújo. O primeiro
publicou em 1966 uma obra metódica — e bastante didática — com as normas para
fazer um livro, Elementos de bibliologia. O segundo é autor da chamada “bíblia da
editoração”, A construção do livro: Princípios da técnica de editoração, de 1986,
dividida em duas partes: uma sobre preparação de originais e normalização do texto e
outra sobre a produção industrial dos livros.
Com base nessas
duas obras e em alguns
outros estudos sobre
editoração, buscamos
subsídios para definir quem
é o editor de texto nas
editoras de livros no Brasil.
Foi fundamental para essa
proposta nossa experiência
profissional pessoal como
editora de livros e editora
de texto freelancer6 .

O imbróglio dos nomes


e funções
Emanuel Araújo (2006), na
apresentação breve que faz
ao abrir a primeira parte de
Emendas feitas no arquivo do original, com marcas de revisão.
(De Pensar com tipos, de Ellen Lupton) A construção do livro, já
começa seu texto declarando: “Aparentemente simples, o trabalho prévio com o original
é, todavia, quase sempre bastante complexo [...]” (p. 33). E, ao tentar apresentar em
seguida por que essa etapa de preparação de originais pode ser mais complicada do que
parece, começa a listar o que está envolvido na tarefa de normalizar um texto, mas nem
ousa dar uma lista completa, pois pára depois de alguns itens com a salvação do etc.

6
A autora trabalhou cinco anos como editora-assistente na Companhia das Letras. Atualmente é editora freelancer e
presta serviços para Companhia das Letras, Cosac Naify e Ática, entre outras empresas.

4
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[...] da multiplicidade com que se apresentam, por exemplo, critérios


ortográficos díspares, sistemas de notas, de bibliografia, de índices, de
citações etc., o editor deverá imprimir ao original uma normalização
harmônica desses e entre esses sistemas, compatível com a natureza mesma
do texto. (p. 33)

Araújo usa o termo editor para denominar o profissional que gera um obra segundo
padrões literários e estético-gráficos, para divulgação comercial. Seu conceito de editor
restringe-se à concepção da palavra editor em língua inglesa, que tem o sentido de
“pessoa encarregada de organizar, i.e., selecionar, normalizar, revisar e supervisar, para
publicação, os originais de uma obra e, às vezes, prefaciar e anotar os textos de um ou
mais autores” (2006, p. 35). Em inglês, existe uma distinção entre editor e publisher,
que não há em português, pelo menos no aspecto semântico. Dar à luz uma obra, parir
uma publicação, apresentando um texto claro e coerente, normatizado conforme os
critérios estabelecidos pela editora, é responsabilidade do editor. Já o publisher fica
encarregado de tornar a obra acessível, divulgar o livro, cabendo a ele lançar, distribuir
e eventualmente vender o produto. A um cabe editar, ao outro, publicar. Em português,
ambas as atividades são realizadas pelo que corriqueiramente se chama editor.
Emanuel Araújo adota a concepção de editor que deriva do latim (editor, editoris)
e que foi mantida pelo inglês. Além disso, vincula ao editor o preparador de originais,
ao expor um histórico da edição de livros:
O editor, naquela acepção, entendido como preparador de originais,
caracteriza-se historicamente, no Ocidente, desde o século III a. C., como
responsável pela edição de um texto a ser divulgado (transcrito) pelos
copistas. (2006, p. 36)

Já o editor na abordagem de Antônio Houaiss é o publisher, aquele que publica, ou seja,


divulga a obra e a torna disponível para venda. Para ele, o termo se restringe “ao seu
sentido usual de pessoa sob cuja responsabilidade, geralmente comercial, corre o
lançamento, distribuição e venda em grosso do livro” (1967, p. 3).
Aníbal Bragança (2005) ressalta que “essa diferença de perspectiva entre Houaiss
e Araújo faz com que as duas mais importantes obras sobre o tema, em nosso idioma,
acentuem diversamente os dois aspectos do conteúdo semântico do conceito de editor”
(p. 221). Entretanto, embora haja essa distinção de concepções do editor, ambos adotam
o termo “editor de texto” quando tratam do trabalho realizado no texto antes da
produção de um livro. A partir daqui se nota um entrelaçamento de conceitos, pois tanto
Houaiss como Araújo, além de usar a expressão “editor de texto”, incluem nessa

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acepção o preparador de originais e também o autor da obra. Parece-nos que Araújo


(2006) chega a usar indiscriminadamente qualquer um dos termos ao longo de A
construção do livro:
O editor, no caso como editor-de-texto7 , i.e., como preparador de originais
ele próprio, ou como diretor literário, como supervisor dessa preparação [...]
(pp. 55-56)

Houaiss mantém a distinção entre editor e publisher, mas para se referir a eles usa, em
português, os termos “editor de texto” e “editor”, respectivamente. A confusão é tanta
nas nomenclaturas e definições que talvez não seja demais retomar e ressaltar: “editor”
para um é o publisher (Houaiss) e para outro é o editor (Araújo). Ou seja, para o
primeiro o editor é o editor de texto e para o segundo, é o editor...
Para complicar um pouco mais nossa tentativa de explicação, Houaiss inclui a
noção de editor de texto no conceito de autor:
O conceito de autor [...] deve ser tomado em sentido amplo, abarcando
também o de diretor-do-texto ou editor-de-texto. Com estas duas expressões,
designar-se-ão neste livro os conceitos expressos em inglês por chief editor e
editor, opostos a publisher. (HOUAISS, 1967, p. 3)

É interessante notar a ampliação na concepção de autoria e sobretudo o reconhecimento


do editor de texto como autor da obra em que trabalha, em especial quando se lembra
que sua atuação costuma ser invisível aos leitores e por vezes até aos autores.
Consideramos que Houaiss, apesar de usar “editor-de-texto” ou “diretor-de-texto”
nos dois volumes de Elementos de bibliologia, na comunicação “Preparação de
originais” acaba apresentando o preparador de originais como revisor e também editor
de texto e editor8 . “Admitamos a hipótese de sermos um profissional cujo nome, através
dos tempos, tem sido nobremente de revisor”, explica (HOUAISS, 1981, p. 67). E nesse
trecho inicial do parágrafo já fica evidente a dificuldade de definir quem é esse
profissional do texto, que ora é revisor, ora é editor ou editor de texto, ora é preparador.
Ao afirmar que o editor de texto era o antigo revisor, Houaiss considera que, ao longo
da história do livro, revisor era aquele que acompanhava o processo de preparação de
originais, responsabilizando-se também pelas condições formais dos textos até a
impressão da obra. O revisor não se detinha, como hoje, “apenas” na correção das
provas (para identificar e eliminar erros no texto impresso) e no zelo pela disposição

7
Em Elementos de bibliologia, Houaiss usa hífens na palavra composta “editor-de-text o”. Porem no Dicionário
Houaiss da língua portuguesa a expressão não aparece com hífens. Ver as locuções no verbete “editor”.
8
Essa concepção é reafirmada na locução “editor de texto” apresentada no dicionário dirigido por Antônio Houaiss:
“indivíduo responsável pela preparação, organização e revisão dos originais de uma obra para publicação; revisor,
copy editor”.

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gráfica, pela composição das páginas. O revisor abarcava, portanto, o conceito de editor
no sentido primitivo da palavra, segundo Houaiss.

Afinal, quem é o editor de texto?


Conforme o esquema de comunicação proposto por Jakobson, pode-se considerar que o
editor de texto atua como um facilitador e mediador de dois esquemas que em geral
usam o mesmo código lingüístico — diferentemente do tradutor, que também atua nos
dois esquemas de comunicação, mas com dois códigos diferentes. O editor é de início o
receptor da mensagem original; não o receptor visado pelo texto, mas um membro da
audiência. E, depois de trabalhar no texto, se torna o emissor da mensagem.
Esse profissional age como um facilitador na tensão entre o significado
intencional e o significado recebido e tem que reduzir essa tensão ao máximo para que o
significado possa ser transmitido da forma mais eficaz possível. Portanto, pode-se dizer
que o editor busca criar condições mais favoráveis para o esquema comunicativo. Sem a
interferência do editor de texto, a compreensão da mensagem pode ficar comprometida.
O compromisso do editor de texto com a precisão, o rigor, a legibilidade e a
compreensibilidade9 está na essência da ação de editar um texto. Os editores de texto
não surgiram, portanto, com o propósito de corrigir erros num texto, mas com o
princípio de divulgar uma obra clara, tornando-a acessível a um público vasto.
Considero, por isso, que a busca de legibilidade textual e visual é intrínseca a essa
disciplina que Houaiss considera gloriosa. Para ele, quem prepara um texto segue uma
disciplina milenar, que se iniciou no século III a.C., com os alexandrinos. Os textos
antigos só teriam perdurado graças a essa atividade, à qual se dedicaram também os
primeiros grandes tipógrafos nos séculos XV, XVI e XVII, todos eles também
preparadores ou editores de texto10 .
A supressão dos erros, a busca por um texto sem lapsos de nenhum tipo, também
faz parte da atividade de edição, mas na medida em que o erro pode prejudicar a
legibilidade textual ou visual. Acreditamos que essa idéia é fundamental para avaliar e

9
Os quais Antônio Houaiss imputa à correlação do original com a obra impressa (1967, p. 3).
10
O impressor, que surgiu com a invenção dos tipos móveis por Gutenberg, em meados do século XV, era mais do
que simples tipógrafo ou impressor, afirma Emanuel Araújo. Aqueles pioneiros da tipografia “eram também editores,
responsáveis pela normalização do texto e pelo conjunto da obra que imprimiam” (2006, p. 46). O autor cita os
eruditos renascentistas como exemplos de editores ou preparadores de originais: Erasmo de Roterdam (1466-1536),
que preparou uma edição bilíngüe (grego e latim) do Novo Testamento em 1516; o cretense Marcus Musurus (c.
1470-1517), principal editor da casa comercial de Aldo Manuzio, em Veneza; o belga Josse Bade (1462-1535),
preparador de originais na tipografia de Johann Trechsel; o francês Etienne Dolet (1509-1546), que foi editor de texto
do alemão Sebastian Greyff e depois se firmou como impressor.

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propor uma concepção de edição de texto, pois muda o foco, que deixa de ser a
obsessão pelo erro para se assumir como obsessão pela legibilidade.

O que é editar textos: alguns apontamentos


Ao receber um original, o editor de texto procura conhecer o texto que tem em mãos,
tendo em mente o tipo de obra que será impressa. São fundamentais para o trabalho com
o texto aspectos aparentemente externos a ele, como o público leitor (que pode ser
infantil, juvenil ou adulto, de uma classe social específica, com determinado interesse
no texto) e as características físicas da obra (formato do volume, presença de
iconografia, quantidade de cores de impressão, entre outros elementos).
Assim, pensando no volume que vai ser publicado, o editor de texto faz um
reconhecimento de campo. Depois, avalia o material e parte para as intervenções. Nem
sempre é possível ler todo o original antes de começar o trabalho, principalmente devido
ao prazo, que costuma ser apertado, por isso em geral os profissionais analisam trechos
ou o início do texto para ter alguma noção do que enfrentarão. Podem-se distinguir,
portanto, três etapas no trabalho de edição de texto: leitura, avaliação e interferência.
Como é raro ser possível realizar essas fases em separado, o profissional é
impelido a desenvolver estratégias cognitivas e metacognitivas para poder trabalhar
todas as etapas de uma vez11 . Por isso, durante o ato de ler, ao mesmo tempo que
registra com os olhos as sentenças à sua frente, na folha do papel ou na tela do
computador, o editor de texto avalia se o original está bem ou mal escrito e
eventualmente já consegue identificar alguns problemas gerais do texto.
Como qualificar se o texto está bem escrito? Como definir o que deve ser
alterado? Lembremos que o fundamento da atuação do editor de texto não é corrigir
erros, mas sim oferecer um texto claro e acessível. Um texto pode estar correto do ponto
de vista gramatical, porém isso de forma alguma descarta o trabalho de edição de texto.
Por isso, para responder às perguntas acima citamos Othon M. Garcia (1978), que abre a
obra Comunicação em prosa moderna, com uma “Explicação necessária”:

Estamos convencidos — e conosco uma plêiade de nomes ilustres — de que


correção gramatical não é tudo — mesmo porque, no tempo e no espaço, seu
conceito é muito relativo — e de que a elegância oca, a afetação retórica, a
exuberância léxica, o fraseado bonito, em suma, todos os requintes

11
Há alguns apontamentos sobre essas estratégias em “Estratégias cognitivas e metacognitivas na edição de texto:
Uma proposta de diálogo entre estudos sobre leitura e legibilidade e a experiência dos editores”, texto apresentado
pela autora desta comunicação no II Congresso Virtual de Edição de Textos, Lisboa, 2007. Disponível em
<http://www.fl.ul.pt/dep_romanicas/auditorio/II_Congresso_Virtual.htm>.

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estilísticos hedonistas e sibaríticos com mais freqüência falseiam a expressão


de idéias dos que contribuem para a sua fidedignidade. É principalmente por
isso que neste livro insistimos em considerar como virtudes primordiais da
frase a clareza e a precisão das idéias (e não se pode ser claro sem ser
medianamente preciso), a coerência (sem coerência não há legitimamente
clareza) e a ênfase (uma das condições da clareza, que envolve ainda a
elegância sem afetação, o vigor, a expressividade e outros atributos
secundários do estilo). (p. IX)

Como afirma Emanuel Araújo, discutir se uma composição ou um texto são bons
implica adentrar no debate espinhoso sobre o estilo. Espinhoso porque não se define um
estilo bom e um estilo mau, tampouco um correto e outro errado. Trata-se de uma
expressão individual, que deve ser respeitada, embora não reverenciada nem acatada
indiscriminadamente. Araújo chega a afirmar que “o trabalho sobre o original não pode
alterar muito esse comportamento básico do autor a que se chama estilo”. Chama a
atenção o advérbio muito, porque ele abre um espaço — que pode ser grande — para o
editor alterar o estilo do autor com liberdade. Embora o limite de ação seja exíguo,
afirma, “essa liberdade existe e deve ser usada”. Antes, porém, é preciso avaliar os
elementos intrínsecos da forma como o texto se apresenta, ou seja, a estrutura das
orações, a concatenação, o ritmo, a fluência, o efeito, a correção. E deve-se considerar a
finalidade do texto, pois a “margem de atuação do editor, no sentido mais amplo, é
proporcional à finalidade intrínseca do texto, de qualquer texto: a comunicação escrita,
a mensagem visual de cada frase, de cada linha, de cada página”. É com base nesse
reconhecimento do estilo e da finalidade do texto que o editor de texto parte para a
tarefa de “veicular esse tipo de comunicação da maneira mais clara possível para o
leitor” (ARAÚJO, 2006, p. 61).
Como a atuação do editor de texto não se restringe a alterações gramaticais, ele
deve ter em mente um espectro mais amplo de interferência, que pode até atingir o estilo
do autor, conforme apontou Emanuel Araújo. “O preparador de originais [...] não pode
prender o texto numa camisa-de-força dos critérios gramaticais excessivamente rígidos,
sob pena de desautorizar grande parte dele, dando-o como ‘impublicável’” (ARAÚJO,
2006, p. 70).
O material-base do editor de texto é composto basicamente de obras de referência
como dicionários de vários tipos (monolíngües e bilíngües, técnicos, de regência, de
expressões idiomáticas, de dificuldades da língua, de citações etc.), algumas gramáticas,
o Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Volp), os manuais de estilo das
empresas jornalísticas (Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e Abril) e também alguns

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sites da internet, hoje fonte essencial de pesquisa. Porém esses materiais se restringem a
recomendações e regras do que é gramaticalmente certo e errado. Além de regras
ultrapassadas e não usuais no dia-a-dia, há tantos pontos de discórdia e tantas lacunas
entre os gramáticos e os comandos paragramaticais 12 , que é comum o editor de texto
ficar desorientado. Ele não tem onde procurar fundamentação para questões ignoradas
pelas gramáticas, tampouco encontra explicações para compreender as razões por trás
das recomendações. Todo o seu aprendizado é prático.
Como tomar a decisão mais sábia? Na prática, os profissionais acabam por seguir
a intuição e o tão famoso “bom senso”, muitas vezes adotando uma escolha com base
em critérios pessoais, baseados na experiência pessoal. Se os gramáticos e filólogos não
oferece respostas, onde os editores devem buscar respostas? Como fundamentar suas
decisões?
Além de reconhecer as variedades lingüísticas, os profissionais de texto precisam
desconstruir o preconceito que envolve o idioma. É importante que os editores tenham
conheçam o espectro de usos lingüísticos possíveis, assim como o espectro dos estigmas
que acompanham esses usos, para que decida, de modo consciente, o que adotar. É
essencial compreender a pluralidade lingüística, para então eleger suas próprias normas
e aplicar suas opções.
“De posse do conhecimento dos muitos usos possíveis das estruturas da língua, é
que o indivíduo poderá se posicionar diante da norma padrão, criticá-la, aceitá-la ou
recusá-la e lutar por sua transformação”, afirma Marcos Bagno (2001, p. 293). O
lingüista propõe uma mudança de atitude dos professores de língua portuguesa em
relação ao seu próprio objeto de trabalho: a norma-padrão. Consideramos importante
sugerir a mesma mudança entre os profissionais que trabalham com edição de textos.
Não se trata de uma proposta reducionista de negar as normas gramaticais. É
fundamental conhecer profundamente as regras gramaticais da variedade-padrão para
questioná-las e decidir o que usar, de forma consciente. Apenas assim quem edita textos
se despirá de ingenuidade em relação a seu instrumento de trabalho, a língua
portuguesa, e contribuirá para, talvez, acabar com os mitos que compõem o preconceito
lingüístico.

12
Expressão usada pelo sociolingüista Marcos Bagno para designar a pluralidade de exp ressões que envolvem a
mídia, um dos quatro elementos que alimentam o ciclo vicioso do preconceito lingüístico. O autor inspirou-se numa
tira do cartunista Quino, na qual a personagem Mafalda se sente reprimida pelos “comandos paramaternais”.

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A importância do bom senso


Para evitar repetições desnecessárias e viciosas, por exemplo, o editor de texto pode
escolher outro termo que não altere o sentido dado pelo autor. Mas nem sempre é com
um sinônimo que se melhora esse defeito do texto, muitas vezes pode-se usar um
pronome, omitir alguns termos ou reescrever o trecho em vez de simplesmente procurar
no dicionário um vocábulo para substituição. E devemos lembrar os casos em que a
repetição é necessária, ou por ser enfática e servir como recurso de estilo ou para ajudar
a tornar o sentido mais claro. É preciso, portanto, ficar atento e não cortar
automaticamente todas as repetições apresentadas pelo texto, mesmo que a repetição se
manifeste quase sempre por mera falta de atenção do autor. Isso ocorre, segundo
Araújo, porque a língua portuguesa não favorece a repetição retórica, e também porque
ela é, por natureza, descomedida em palavras, segundo o filólogo M. Rodrigues Lapa
(citado por ARAÚJO, p. 72).
Araújo cita um exemplo em que a repetição exaustiva é expressiva e não pode de
forma alguma ser eliminada: “Os vivos [são] pó, os mortos pó; os vivos pó levantado,
os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e
por isso sem vaidade”. Trata-se de um excerto do “Sermão da Quarta-Feira de Cinzas”,
do padre Antônio Vieira.
Ainda para tentar diminuir as repetições excessivas (e não expressivas), o editor
de texto deve atentar para a riqueza vocabular do autor, a maneira como emprega as
repetições (propositalmente ou não), estrangeirismos (galicismos, anglicismos,
italianismos), neologismos, gíria, modismos etc. Em muitos desses pontos, não existe
uma norma a ser adotada. Há quem tenda a condenar irrestritamente os estrangeirismos,
tendência talvez mais rara hoje; há quem os admita. Entre estes, também há mais de
uma posição: podem-se aceitar os estrangeirismos dicionarizados pelo Houaiss, pelo
Aurélio ou pelo Michaelis, em muitos casos na forma aportuguesada; pode-se também
aceitar o estrangeirismo mas manter a grafia usada pelo autor, que eventualmente
adotou o inglês, o francês ou o italiano por não haver na época a forma aportuguesada.
É o caso de autores brasileiros que escreveram num período em que os verbetes
estrangeiros ainda não haviam se incorporado nem ao repertório cotidiano, nem aos
dicionários. Erico Verissimo, em todas as suas obras, usa muitas palavras estrangeiras
que hoje são habituais no vocabulário dos brasileiros, dos mais populares à elite, dos
analfabetos aos letrados, como whisky, cocktail, goal, chauffer e bâton. Na recente
reedição da obra completa de Verissimo, publicada pela Companhia das Letras, optou-

11
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se por aportuguesar todas as palavras estrangeiras dicionarizadas13 . Já na edição das


crônicas de Manuel Bandeira, que está sendo realizada pela Cosac Naify, Júlio
Castañon, organizador da obra, decidiu manter todos os estrangeirismos, e sempre
realçados com itálico, mesmos os homógrafos, como bar, por exemplo 14 .
Citamos dois exemplos da literatura brasileira, de autores mortos. Mas editoras de
livros lidam com obras ficcionais e não-ficcionais. Segundo Antônio Houaiss, há
basicamente com dois tipos de mensagens: as que tem como vocação a univocidade e as
que apresentam multivocidade. Cerca de 80% dos casos tendem para o pólo da
univocidade, assegura, portanto “o pensamento que está por baixo das palavras é o que
importa” (1981, p. 52). Como o fundamental é transmitir a mensagem do autor, o editor
pode intervir para que a comunicação seja feita de forma clara e inequívoca, mudando a
sintaxe da frase, alterando a pontuação de um texto, reescrevendo algum trecho quando
julgar que o leitor talvez não compreenda o que o autor quis transmitir. Considerando
que “o revestimento das palavras passa a ser um mero vetor, um mero condutor desse
pensamento profundo [que está por baixo das palavras do autor]” (p. 52), o editor tem
liberdade para mexer no texto quando puder tornar a mensagem mais clara e eficiente.
Essas intervenções devem sempre buscar manter a substância da mensagem original
(não mudar nem incluir novas informações) e ao mesmo tempo respeitar o estilo do
autor. Embora Houaiss afirme que, na condição de usuários da normalização da língua,
os autores costumam autorizar essas alterações, desde que não haja subversão na sintaxe
profunda, nem sempre essa relação é tranqüila 15 .
Os textos literários oferecem as maiores dificuldades para o trabalho do editor de
texto. Aqui, o texto já não pode submeter-se apenas ao conteúdo. Não se trata de avaliar
a eficácia da obra literária, que pode ser completamente obscura para uns e ao mesmo
tempo transparente para outros. As fissuras da linguagem são intencionais e não se deve
priorizar meramente nem a substância da mensagem nem a obediência às regras
gramaticais.
Em alguns casos, o ‘corte’ advém da ignorância ou desatenção do autor,
mas, por outro lado, no contexto, também pode significar um simples

13
A decisão foi tomada durante a edição de texto dos primeiros volumes, tendo em vista que os livros são destinados
a um público amplo, que inclui leitores adolescentes, e que não se trata de uma edição crítica.
14
O primeiro volume de crônicas a ser publicado pela Cosac Naify estava em produção quando este texto foi redigido
e o título não havia sido definido. A previsão de lançamento é junho de 2007.
15
O trabalho do editor de texto exige um diálogo constante com o autor, porque toda alteração feita no original pelo
primeiro passa a ser incorporada à autoria do segundo. E, para evitar desentendimentos futuros com o autor, é comum
a editora se prevenir enviando ao autor uma prova com as alterações feitas pelo preparador de texto, pelos revisores
de provas, pelo editor e editor-assistente. Enfim, uma prova que contenha as intervenções — às vezes as mais
substanciais, às vezes todas — dos profissionais envolvidos na edição de texto.

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esnobismo ou, em outro extremo, uma visão de mundo, um dado


importantíssimo a ser mantido, ou até uma criação (= recriação) da
linguagem. (ARAÚJO, 2006, p. 56)

Contudo, nem sempre é fácil identificar se as fraturas gramaticais decorrem de


ignorância do autor e devem ser corrigidas ou se, pelo contrário, indicam domínio tal do
sistema da língua que foram manipuladas conscientemente, com fins estéticos e
poéticos. Araújo afirma que os filólogos também debateram essa questão controversa,
que no entanto não foi resolvida por inteiro e voltou a se apresentar aos editores de
texto.
Na mais recente reedição do volume de contos Estas histórias, de Guimarães Rosa
(2001, p. 7), o editor da obra16 confirma essa dificuldade de saber o que é erro e o que é
recriação da linguagem: a “originalidade do texto [de Guimarães Rosa] levou seus
editores, algumas e já registradas vezes, a erros involuntários”.
Além disso, a maioria dos textos não se encontra puramente no plano da
univocidade ou multivocidade, esses dois planos costumam se combinar num mesmo
texto:
os livros editados puramente no plano da univocidade devem representar
uma pequena quantidade, assim como os livros editados puramente no pólo
da multivocidade também. A grande massa tende para cá ou para lá, em
graus bastante variados. (Houaiss, 1981, p. 53)

Ao editor de texto, cabe identificar quando o texto se aproxima de um plano e de outro.


Se avaliar que predominam as fissuras de linguagem, Houaiss diz que ele deve se
perguntar: até onde devo respeitar as fraturas que são de multivocidade? Até onde posso
decidir quando devo mudar as fraturas que não estão no plano da multivocidade?
Houaiss conta a experiência de trabalhar num livro de Guimarães Rosa e explicita
a dificuldade e as particularidades de editar um autor que tem liberdade ilimitada para
conforme Araújo (2006, p. 61), “fraturar o bom comportamento da gramática”.

Eu vi o que foi a proeza de editar Guimarães Rosa: desde Sagarana, e daí


para diante cada vez mais obsessivamente, os textos eram respeitados
passivamente pelo impressor tal como estavam. O revisor timidamente
perguntava a ele, às vezes, se esse Z era assim mesmo (porque ele trocava S
por Z) ou se esse J por G deveria permanecer. Geralmente, ele dava um
sorrisinho e dizia: “Pode corrigir”.
No plano estritamente ortográfico dessas celebérrimas heterografias
homofônicas — isto é, o mesmo som escrito com letras diferentes — em
geral Guimarães Rosa concordava com as correções, porque não era um bom

16
Não há assinatura e não foi possível identificá-lo.

13
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ortógrafo. Mas, de repente, arrepiava-se com uma palavra que, pela norma,
não devia ter acento nenhum, mas a ele parecia que sim. Achava que aquele
acento estava com uma função não apenas indicativa do timbre que a vogal
devia ter. Achava até que o circunflexo, o acento agudo ou o acento grave
entravam no ritmo visual da linha do próprio texto. Para ele foi uma grande
revelação o dia em que lhe disse: você está com muitas preocupações
grafemáticas. Gostou da palavra, sentiu que era exatamente isso: tinha uma
vivência grafêmica das palavras.
É obvio, então, que preparar um texto de Guimarães Rosa seria um
trabalho tão infernalmente difícil que a única solução era ele mesmo ser o
árbitro final na medida em que o preparador tinha que perguntar-lhe, a cada
vez, se aquela ateração podia ou não ser feita. Estou falando, entretanto, de
um escritor que tinha tal consciência do plano da sintaxe superficial, visível,
que, evidentemente, essas ocorrências eram relativamente pequenas.
(HOUAISS, 1981, pp. 53-54)

Destaco a palavra árbitro, usada no depoimento. Quem arbitra, o autor ou o editor de


texto? Ao dizer que no caso-limite de Guimarães Rosa a única solução era ele mesmo
ser o árbitro, o filólogo revelou uma fissura: há casos em que o editor de texto assume
essa função. De fato, Emanuel Araújo afirma que, embora não se espere que o
preparador de originais seja gramático ou filólogo, “é imprescindível que tenha o
conhecimento necessário, como queria Erasmo 17 , para optar ou decidir em casos
duvidosos” (p. 59). Com a experiência (e não com a intuição, apenas), o editor de texto
pode perceber a melhor solução em cada caso.

Além do texto
O trabalho do editor de texto também envolve o suporte material do texto, que é
fundamental para a sua intervenção no texto e não constitui objeto do filólogo, por
exemplo. É por isso que Araújo considera que a editoração, como disciplina autônoma,
dilatou o horizonte da filologia, “numa inversão de papéis acentuada sobretudo no
século XX” (2006, p. 53). A forma material como o texto é publicado influencia a
clareza, a legibilidade do texto, e por isso também é objeto de trabalho do editor.
Por isso, o editor de texto tem que considerar o produto final em suas formas
materiais e também levar em conta fatores que não se restringem ao texto, como a
iconografia, as necessidades do leitor ou as limitações e possibilidades gráficas da obra.
Faz parte da tarefa do editor de texto avaliar se o original precisa de um índice
remissivo no fim, se a inclusão de ilustrações pode ajudar a esclarecer algum trecho, se

17
Para Erasmo de Roterdam, o editor de texto devia conhecer várias disciplinas: história, numismática, botânica,
geografia, astronomia etc., “de modo a julgar, em questões duvidosas, sobre a propriedade da escolha de termos e

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um texto de apresentação seria interessante para o volume. A concepção da obra não


está sob responsabilidade apenas do autor da obra ou editor da empresa, mas também do
editor de texto.

Considerações finais
Editor, preparador, editor de texto e revisor — há séculos os conceitos se interpenetram
e se complementam, o que dificulta a definição de quem é o editor de texto e do que ele faz.
Tomando como base as abordagens apresentadas sobretudo por Antônio Houaiss e
Emanuel Araújo e a experiência empírica dos editores de texto, consideramos que se
pode dizer que o editor de texto se aproxima do editor (no sentido latino original,
mantido no inglês) e também pode ser o preparador de originais e o revisor de texto e
provas. O que não invalida, de forma alguma, a necessidade desses outros profissionais
na edição e produção de um livro18 .
Ele é o mediador dos dois esquemas comunicativos envolvidos na edição de um
livro e é o profissional responsável pelo texto a ser publicado. Ou seja, é aquele que
trabalha e burila o original no início do processo editorial e estabelece o texto que será
produzido em forma de livro. Mesmo que o original passe por outra pessoa antes, um
preparador freelancer, por exemplo, o editor de texto continua responsável pelo
material, na medida em que deve avaliar as intervenções realizadas pelo profissional
contratado e decidir se as alterações serão mantidas e o que eventualmente pode
melhorar o original. Também é ele quem estabelece o diálogo com o autor, caso este
seja nacional e vivo.
Ao mesmo tempo, o editor de texto pode ser também revisor e preparador (e
eventualmente também outros profissionais que mexem no texto alheio), porque, em
alguns casos, assume a responsabilidade pela coordenação das etapas pelas quais um
original passa até ser impresso. Consideramos aqui as fases estritamente relacionadas ao
texto (preparação e revisões), sem incluir a coordenação da produção gráfica
(diagramação e arte).

idéias que não desvirtuassem a harmonia da forma e do conteúdo”. As dúvidas que afligem os preparadores de
originais vêm, portanto, desde o Renascimento, diz Emanuel Araújo em A construção do livro, p. 48.
18
Ainda que pudesse ser desejável (para os editores, do ponto de vista econômico) não haver provas de revisão, elas
são imprescindíveis para garantir a qualidade textual da obra. Nenhum livro tem condições de sair com menos de três
revisões e é quase um milagre que seja apresentável com duas revisões, chega a afirmar Houaiss (1981, p. 54). E,
mesmo com todas a preparação de texto e as revisões, é inevitável haver erros na obra final, os quais podem ser
notados só quando o livro já foi para a estante de muitos leitores. São os sacis que zombam do editor de texto,
escondendo-se durante a feitura do livro e pulando com a língua para fora depois de se imortalizarem na página
impressa — como descrevia Monteiro Lobato.

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Essa imprecisão e dificuldade em apresentar um conceito reflete a falta de


definição de quem é esse profissional no próprio mercado de trabalho. Não é fácil tentar
oferecer uma concepção de editor de texto, por isso cremos que o fundamental é ter
claro que ele é um obsessivo não pelos erros (como se pode imaginar à primeira vista),
mas pelo texto claro, legível, acessível.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Emanuel. (2006). A construção do livro: Princípios da técnica de editoração. 4.


reimpr. Rio de Janeiro/ Brasília: Nova Fronteira/ Instituto Nacional do Livro.

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Informações da disciplina Laboratório de Produção
Editorial Gráfica I
Página retirada do site da Universidade de São Paulo.

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