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Revista da Abordagem Gestáltica

Instituto de Treinamento e Pesquisa em


Gestalt-Terapia de Goiânia – ITGT

Revista da Abordagem Gestáltica

Volume XVIII - N. 2

2012
Goiânia – Goiás
www.itgt.com.br
Ficha Catalográfica

Revista da Aborda-gem Gestáltica/ Instituto de


Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia –
Vol. 18, n. 2 (2012) – Goiânia: ITGT, 2012.

131p.: il.: 30 cm

Inclui normas de publicação

ISSN: 1809-6867

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de


Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.
CDD 616.891 43

Citação:
REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 18, n. 1, 2012. xxxp

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Revista da Abordagem Gestáltica

Volume XVIII - N. 2 – Jul/Dez, 2012

Expediente

Editor
Adriano Furtado Holanda
(Universidade Federal do Paraná)

Editores Associados
Celana Cardoso Andrade
(Universidade Federal de Goiás)
Danilo Suassuna Martins Costa
(Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo
(Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiás)

Conselho Editorial
Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)
Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)
Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)
Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)
Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Suporte Técnico
Josiane Almeida
Marcos Janzen
Norma Susana Romero Martinovich
Capa
Franco Jr.

Diagramação e Arte Final


Franco Jr.

Bibliotecário
Arnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

Financiamento
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)

Encaminhamento de Manuscritos
A remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência
de seguimento que se fizer necessária, deve ser endereçada a:

Editor
Revista da Abordagem Gestáltica
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia (ITGT)
Rua 1.128, nº 165 - St. Marista - Goiânia-GO - CEP: 74.175-130
Fone/Fax: (62) 3941-9798
E-mail: revista@itgt.com.br

Normas de Apresentação de Manuscritos


Todas as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de
apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, modalidades de textos, etc.,
podem ser encontradas no site http://pepsic.bvs-psi.org.br

Fontes de Indexação
- Clase
- Latindex
- Lilacs
- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)
- ScopuS

As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão


e adequação das referências bibliográficas são de exclusiva responsabilidade
dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.
A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que
citada a fonte.
Sumário

Editorial.................................................................................................................................................... ix

ARTIGOS

-- Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda........................................................................... 131


Ana Gabriela Rebelo dos Santos (Universidade Federal Fluminense) & Roberto Novaes de Sá (Universidade Federal
Fluminense)

-- Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas


Iniciantes................................................................................................................................................... 136
Jéssica Paula Silva Mendes (Universidade Paranaense/Unipar); Sionara Karina Alves de Brito Gressler (Universidade
Paranaense/Unipar) & Sylvia Mara Pires de Freitas (Universidade Estadual de Maringá/Universidade Paranaense)

-- Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica......................................................................... 144


Marta Helena de Freitas (Universidade Católica de Brasília); Rita de Cássia Araújo (Universidade Católica de
Brasília); Filipe Starling Loureiro Franca (Universidade Católica de Brasília); Ondina Pena Pereira (Universidade
Católica de Brasília) & Francisco Martins (Universidade Católica de Brasília)

-- A Força da Palavra em Nicolau de Cusa................................................................................................. 155


Sonia Lyra (Instituto Icthys de Psicologia e Religião, Paraná)

-- Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade................................................................................................... 161


Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie), Júlia Yoriko Hayakawa (Universidade
Presbitariana Mackenzie), Suzan Emie Kuda (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisa Harumi Musha
(Universidade Presbitariana Mackenzie), Tauane Cristina do Nascimento (Universidade Presbitariana Mackenzie),
Bruna Bezerra Oliveira (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisabete Hara Garcia Rocha (Universidade
Presbitariana Mackenzie), Daiany Aparecida Alves dos Santos (Universidade Presbitariana Mackenzie), Karen Ueki,
(Universidade Presbitariana Mackenzie), Lucas Palhari Vasconcelos (Universidade Presbitariana Mackenzie)

-- Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada


na Pessoa................................................................................................................................................... 168
Ana Maria Monte Coelho Frota (Universidade Federal do Ceará)

-- “Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia..................................... 179


João Vitor Moreira Maia (Universidade Federal do Ceará), José Célio Freire (Universidade Federal do Ceará) &
Mariana Alves de Oliveira (Universidade Federal do Ceará)

-- Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo...................................................................................... 188


Lauane Baroncelli (University College Cork)

-- A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial..................... 197


Gustavo Alvarenga Oliveira Santos (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)

-- Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos


Campos de Concentração......................................................................................................................... 206
Sumário

Thiago Antonio Avellar de Aquino (Universidade Federal da Paraíba)

vii Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012


Sumário

-- A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a


Partir de Gaston Bachelard..................................................................................................................... 216
Rafael Auler de Almeida Prado (Universidade Católica de Pernambuco); Marcus Tulio Caldas (Universidade Católica
de Pernambuco); Karl Heinz Efken (Universidade Católica de Pernambuco) & Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
(Universidade Católica de Pernambuco)

-- As Psicopatologias como Distúrbios das Funções do Self: Uma Construção Teórica na


Abordagem Gestáltica.............................................................................................................................. 224
Carlene Maria Dias Tenório (Centro Universitário de Brasília/UniCEUB)

TEXTOS CLÁSSICOS

-- Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940).................................................................. 235


Marvin Farber (University of Buffalo, New York)

DISSERTAÇÕES E TESES

-- Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010)...... 249


Nayara Queiroz Mota de Sousa (Mestrado em Direito, Universidade Católica de Pernambuco)

-- “A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl:


uma apresentação (2011).......................................................................................................................... 251
Erico de Lima Azevedo (Mestrado em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)

NORMAS

-- Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica............................................................... 255


Sumário

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012 viii


Editorial

A Fenomenologia cada vez mais toma corpo no cenário ao apoio do PePSIC; e de um veículo aberto e multidisci-
nacional e internacional, seja no tradicional contexto fi- plinar (com a participação de variadas áreas de estudo e
losófico, seja em suas múltiplas aplicações. Recentemente pesquisa). Ganhamos recentemente o reconhecimento da
fomos brindados com novos estudos sobre seu pensamen- parte dos pesquisadores em História da Psicologia, por
to, bem como a publicação – e algumas traduções, par- nosso esforço em trazer ao público brasileiro traduções
ticularmente para o inglês e o francês – de textos inédi- de textos clássicos e fundamentais da Fenomenologia,
tos de Husserl, onde temas complexos, como “intersub- como pode ser atestado no Blog da Rede Iberoamericana
jetividade” ou “temporalidade” foram sendo desvelados. de Pesquisadores em História da Psicologia.
Igualmente os desdobramentos e revisões que o pensa- Nossa meta para o ano que se aproxima é agora a
mento fenomenológico foi conhecendo ao longo dos anos consolidação da “fenomenologia” como nosso caminho
desenvolvem-se a passos largos. Assim, questões exis- “natural”. E nada mais metafórico do que encerrar o ano
tenciais ou mesmo reflexões no terreno das filosofias da com a tradução de um brilhante texto de Marvin Farber,
existência vem ganhando corpo igualmente. de 1940, sobre os “fundamentos” da filosofia husserliana.
A Revista da Abordagem Gestáltica, que desde o ano Ao todo, apresentamos ao leitor, um total de doze tra-
de 2006 se propôs a ser um veículo de divulgação desse balhos, nos quais se reflete essa diversidade e multiplici-
conjunto de saberes – múltiplos, diversificados, abertos dade, e onde se afirma o “lugar” da Fenomenologia como
e profundos – vem se consolidando no cumprimento da interlocução, com o pensamento psicológico – com textos
sua missão, e vem cada vez mais se especializando no de Gestalt Terapia, de Abordagem Centrada na Pessoa, de
amplo espectro das reflexões fenomenológicas, associa- fenomenologia-existencial e sobre Viktor Frankl – e com
das às ciências humanas, sociais e da saúde. outros campos do saber filosófico, social e psiquiátrico.
Ao encerrarmos o ano de 2012 com este número, esta- Boa leitura a todos
mos não somente consolidando nossa posição de uma re-
vista de qualidade – graças ao reconhecimento do Qualis- Adriano Furtado Holanda
Capes – como também de acesso livre e gratuito, graças - Editor -

Editorial

ix Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): ix, jul-dez, 2012


Nominata 2011-2012

Listamos abaixo todos aqueles que contribuíram com a revista, na qualidade de pareceristas, entre os
anos de 2011 e 2012. Agradecemos a colaboração e esperamos contar novamente com sua participação.

Adão José Peixoto (Universidade Federal de Goiás)


Adelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Ângela Schillings (Universidade Federal de Santa Catarina)
Beatriz Helena Paranhos Cardella (Instituto de Gestalt Terapia de São Paulo)
Carlos Augusto Serbena (Universidade Federal do Paraná)
Carlos Diógenes Cortes Tourinho (Universidade Federal Fluminense)
Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)
Cibele Mariano Vaz (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)
Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)
Danilo Suassuna (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)
Elza Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Ênio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de São Paulo)
Gizele Elias Parreira (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Gustavo Gauer (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paraná)
Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Brasília)
Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)
Josiane Almeida (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)
Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie)
Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)
Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de São Paulo)
Lúcia Cecília da Silva (Universidade Estadual de Maringá)
Márcio Luiz Fernandes (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Marcos Aurélio Fernandes (Universidade Católica de Brasília)
Marisete Malaguth Mendonça (Universidade Católica de Goiás)
Marta Carmo (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Roberto Novaes de Sá (Universidade Federal Fluminense)
Sandra Albernaz (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goiânia)
Selma Ciornai (Instituto de Gestalt de São Paulo)
Sérgio Lízias (Universidade Federal de Goiás - Campus Catalão)
Sylvia Mara Pires de Freiras (Universidade Estadual de Maringá)
Thiago Gomes de Castro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)
William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
A rtigos ...........................
Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda

ARTE E MUNDO: DIÁLOGOS ENTRE HEIDEGGER E CASTANEDA1

Art and World: Dialogues Between Heidegger and Castaneda

Arte y Mundo: Diálogos entre Heidegger y Castaneda

A na Gabriela R ebelo dos Santos


Roberto Novaes de Sá

Resumo: Propomos pensar possibilidades de experiência de mundo a partir da articulação entre obra de arte, na concepção do
filósofo Martin Heidegger em “A Origem da Obra de Arte”, e parar o mundo, idéia exposta pelo antropólogo Carlos Castaneda.
Segundo Heidegger, ser obra de arte é instalar um mundo, deixar em aberto o aberto do mundo: abertura de sentido. Para o fi-
lósofo, o homem é o ente cujo ser está sempre em jogo na sua existência. “Parar o mundo” é um ensinamento do índio Don Juan
a Castaneda. Ele precisa parar o mundo, desmoronar seu conceito de mundo para conseguir ver o mundo desprendido do con-
senso social. Os autores discorrem sobre realidades plásticas, mundos que existem a partir de experiências, formas de Ec-xistir
e transitar entre mundos se mantendo na abertura do ser. Não objetivamos equivaler idéias, buscamos abrir um espaço para
pensar acerca da existência do homem. Como recurso metodológico, destacamos passagens da obra de Castaneda e buscamos
caminhos junto às idéias de Heidegger que nos auxiliem a elaborar um horizonte de diálogo.
Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; Castaneda; Realidade; Arte.

Abstract: We propose to consider possibilities of world experience from the relationship between work of art, an idea developed
by the philosopher Martin Heidegger in “The Origin of the Work of Art” and stop the world, an idea expounded by the anthro-
pologist Carlos Castaneda. According to Heidegger, being a work of art is to install a world, leave open the opening of the world:
opening of sense. For the philosopher, man is the being whose being is always at stake in its existence. “Stop the world,” is what
speaks the Indian Don Juan to Castaneda. He needs to stop the world, collapsing his concept of world in order to see the world
detached from social consensus. The authors discuss plastic realities, worlds that are based on experiences, forms of Existence
and sometimes appearing to move between worlds and keeping the opening of Being. We do not aim to equate ideas, we open
a space to think about the existence of man. As a methodological resource, we discusses highlighted passages of Castaneda’s
work and seek ways to the ideas of Heidegger which help us to elaborate a common horizon of dialog.
Keywords: Phenomenology; Heidegger; Castaneda; Reality; Art.

Resumen: Nos proponemos estudiar las posibilidades de experiencia de mundo. Partindo de la relación entre obra de arte, una
idea desarrollada por el filósofo Martin Heidegger en “El origen de la obra de arte” y detener el mundo, una idea expuesta por el
antropólogo Carlos Castaneda. Según Heidegger, ser obra es la instalación de un mundo, mantener abierto el abierto del mun-
do: el sentido abierto. Para el filósofo, el hombre es el ser cuyo ser está siempre en juego en su existencia. “Detener el mundo,”
es lo que propone el indio Don Juan a Castaneda. Él tiene que detener el mundo, deshaciendo su concepto del mundo para que
pueda ver el mundo separado del consenso social. Los autores hablan de realidades plásticas, de mundos que se basan en las
experiéncias, de formas del Existir y permaneciendo en la apertura del ser. La intención no es lo apunte a igualar las ideas, pero
abrimos un espacio para pensar en la existencia del hombre. Como método, utilizamos fragmentos de la obra de Castaneda jun-
to de las ideas de Heidegger.
Palabras-clave: Fenomenología; Heidegger; Castaneda; Realidad; Arte.

Introdução A princípio, Castaneda pede que o índio lhe ensine sobre


as plantas, principalmente sobre o peiote, e de alguma
No verão de 1960, o até então estudante de antropo- forma – que não sabe bem explicar –, se sente intrigado
logia Carlos Castaneda parte em viagem para o sudoeste e atraído por Don Juan. Esse primeiro encontro é descri-
dos Estados Unidos em busca de maiores informações to pelo autor como perturbador.
sobre as plantas medicinais utilizadas pelos índios do Depois disso, ainda sob o sentimento de inquietação,
local. E é no estado do Arizona que acontece o primeiro Castaneda descobre onde mora Don Juan e passa então a
encontro com o índio yaqui Don Juan Matus. O primeiro visitá-lo constantemente. Mas, nas longas horas que pas-
de muitos encontros que aconteceriam por mais 13 anos. savam juntos, durante um ano, não falaram sobre plantas.
Os acontecimentos estavam dirigidos para longe de seu
Artigo

1
A presente pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
propósito original. Passado esse tempo, Don Juan diz a
em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, pela primeira
autora (Bolsista Capes), sob orientação do segundo autor. Castaneda ter certos conhecimentos que lhe foram pas-

131 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012


Ana G. R. Santos & Roberto N. Sá

sados por seu benfeitor; conhecimentos relacionados ao – Não há como dizer, precisamente, o que é um aliado,
que ele chama de “caminho do guerreiro”. Por uma série assim como não há meio de dizer exatamente o que
de circunstâncias, que não se encerram no desejo de ne- é uma árvore.
nhum dos dois, Castaneda fora escolhido como aprendiz – Uma árvore é um organismo vivo – disse eu.
de Don Juan e, juntos, trilharam um caminho que abalou – Isso não me diz muito – retrucou ele. Também posso
definitivamente o mundo daquele. dizer que o aliado é uma força, uma tensão. Mas isso
Os primeiros cinco anos de aprendizado são re- não acrescenta muita coisa a respeito de um aliado.
latados no seu livro mais famoso – A Erva do Diabo Assim como no caso de uma árvore, o único meio de
(Castaneda, 1968) –, que foi sua dissertação de mestrado saber o que é um aliado é experimentando-o (p. 78).
pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Nele,
o autor descreve principalmente suas experiências com Essas e outras passagens nos fazem recordar os cami-
plantas alucinógenas, o que foi bastante importante no nhos da fenomenologia, particularmente aqueles trilha-
seu percurso. Cabe aqui lembrar que a visão dos feiticei- dos por Martin Heidegger. Propomos que, como o filósofo
ros sobre as plantas não se esgota em sua descrição bo- nos diz em A Questão da Técnica (Heidegger, 1953/1997),
tânica e a experiência de encontro com cada uma delas atentemos para o caminho sem permanecermos presos a
deve ser vista como um fenômeno, de modo que a coisa proposições e títulos particulares, e, assim, possamos re-
com a qual lidamos, nesse caso a planta, nunca é uma fletir a partir de uma livre relação de pensamento. Como
coisa ideal e sim a coisa de que fazemos experiência. diz Don Juan, em A Erva do Diabo (Castaneda, 1968), te-
Dessa forma, é possível manter um olhar de abertura à nhamos em vista que um caminho é apenas um caminho.
experiência vivida e ao seu horizonte próprio de sentido. Quando Heidegger nos fala de mundo, ele não está
Os feiticeiros podem se utilizar das plantas como falando de um objeto que está ante nós e que pode ser
aliados, mas não é necessário que se use. Em passagem sensorialmente percebido; não se trata de um espaço pré-
de Porta para o infinito (Castaneda, 1974), podemos ver o -existente a nós onde as coisas também já ali se encon-
momento em que Don Juan diz a Castaneda que no caso tram dadas e onde somos simplesmente inseridos como
dele foi preciso fazer uso das plantas, porque ele era um bonecos numa caixa. Homem e mundo não pré-existem
homem muito duro e essas experiências foram necessá- um ao outro, homem e mundo co-emergem na expe-
rias para sacudir seu mundo. Além dessas experiências riência. Mundo para Heidegger é abertura de sentido.
que incluíam o uso de determinadas plantas, o autor nos Em A Origem da Obra de Arte, lemos:
fala, ao longo de seus doze livros, de inumeráveis acon-
tecimentos de outros tipos. Aquilo que a princípio lhe Mundo nunca é um objeto, que está ante nós e que
parecia mais improvável, foi o que mais lhe atormentou: pode ser intuído. O mundo é o sempre inobjetal a
tudo que ele tomava como o mundo real estava abala- que estamos submetidos enquanto os caminhos do
do. Diz Castaneda (1972/2006): “O ponto crucial de meu nascimento e da morte, da benção e da maldição
dilema naquele momento era minha falta de vontade de nos mantiverem lançados no Ser (Heidegger, 1950/
aceitar o fato de que Dom Juan era bem capaz de demolir 2007, p. 35).
todas as minhas concepções prévias de mundo...” (p. 39).
Em fins de 1965, Castaneda se retira do aprendiza- Segundo Heidegger, o sentido está sempre em jogo na
do e decide não mais ver Don Juan. Porém, em 1968, já existência. Em seu relacionar-se com as coisas enquan-
com seu primeiro livro em mãos, ele vai visitar o índio to coisas o homem habita o mundo, desvelando sentido.
e a relação mestre-aprendiz é restabelecida. Ao que vem Em nosso modo de ser cotidiano mais comum, tomamos
a se passar a partir de então, Castaneda chama de seu o mundo como algo simplesmente dado, e a nós mesmos
segundo ciclo de aprendizado. É nesse segundo ciclo como sujeitos empíricos, cuja existência fosse ontologi-
que encontramos aquilo a que vamos dar maior relevân- camente separada do mundo. Quando Castaneda diz co-
cia no nosso trabalho: a difícil tarefa de parar o mundo. nhecer o mundo, ele se refere àquilo que sempre, desde
É preciso que Castaneda consiga “parar o mundo”. Mas o que ele nasceu, as pessoas vem lhe dizendo que é mun-
que seria “parar o mundo”? Essa pergunta é feita muitas do. É importante destacar aquilo que Don Juan nos fala
e muitas vezes a seu mestre, que por sua vez, evita pala- ao longo de toda a obra de Castaneda e que parece ecoar
vras e propõe de diversas formas que ele tenha – como o que a fenomenologia sinaliza como fundamental: a di-
Castaneda fala – uma “experiência mais direta do mun- mensão de abertura da experiência, abertura constituti-
do”. “Referia-me ao conhecimento acadêmico que trans- va de sentido, porque é na própria relação de sentido que
cende a experiência, enquanto ele falava do conhecimen- as coisas vêm a ser. Parar o mundo significa desmoronar
to direto do mundo”, diz Castaneda (1971/2009, p. 10). todo o conceito prévio que se tem de mundo e, assim, o
Em outra passagem, quando perguntado sobre o guerreiro vê o mundo desprendido do que se convencio-
que seria exatamente um ente a que chamam “aliado”, na previamente como mundo. O ver aqui difere do olhar,
Artigo

em Porta para o Infinito (Castaneda, 1974), Don Juan diz respeito a uma apreensão que não se limita aos olhos,
responde: tampouco se determina por um suposto mundo verdadei-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012 132


Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda

ro. Quando se “vê”, tudo se torna igual e ao mesmo tempo homem: a meditação sobre o sentido das coisas, da exis-
tudo é novo. Tudo se torna igual no sentido do valor, nada tência e do mundo. Para que essa possibilidade seja pre-
é (em si mesmo) mais importante que nada, e ao mesmo servada em meio ao nivelamento calculante promovido
tempo tudo é novo por percebermos as coisas despren- pela técnica moderna, Heidegger (1966) propõe o exer-
didas dos preconceitos cotidianos. cício de uma disposição do espírito denominada como
Pensar o mundo como verdadeiro ou falso não faz serenidade (Gelassenheit). Inspirado no místico alemão
mais sentido, pois isso implicaria tomarmos como cri- Mestre Eckhart, o filósofo entende essa disposição como
tério um mundo simplesmente dado. Ao longo de seu uma equanimidade da alma, uma atitude de suspensão
aprendizado, Castaneda insiste diversas vezes que Don e desapego da vontade. A “serenidade” faz parte do pen-
Juan lhe fale o que é ver e o que se vê quando se vê. A isso samento que medita. Ao contrário do pensamento calcu-
Don Juan responde: lante, que reduz tudo à condição de disponibilidade, o
pensamento meditante nos solicita uma atenção livre de
– Você tem de aprender a ver para saber disso. Não qualquer violência subjetiva, isto é, de qualquer identifi-
posso lhe dizer. cação a um aspecto exclusivo das coisas, preservando em
– É um segredo que não posso saber? sua abertura compreensiva a diferença irredutível entre
– Não. Acontece que não posso descrevê-lo. as realidades que se apresentam e a dinâmica de realiza-
– Por quê? ção dessas realidades. Em nossas leituras de Castaneda,
– Não faria sentido pra você. não pudemos evitar a evocação do “deixar-ser” da “sere-
– Experimente Don Juan. Talvez faça sentido para nidade” heideggeriana quando nos deparamos com a es-
mim. tranha proposta do “não-fazer” de Don Juan.
– Não. Tem de fazê-lo por si. Uma vez que aprenda, Antes de parar o mundo, um dos ensinamentos funda-
poderá ver cada coisa no mundo de maneira diferente mentais que Don Juan apresenta a Castaneda em Viagem
(Castaneda, 1971/2009, p. 48). a Ixtlan é o “não-fazer”. Segundo ele o guerreiro precisa
não fazer a fim de experimentar outras possibilidades de
Além deste privilégio dado à experiência como modo ser de uma coisa ao relacionar-se com ela. Destacamos, a
de ser irredutível ao conhecimento representacional, é seguir, um trecho da referida obra:
pertinente observarmos, ainda, outra ressonância em
nossas leituras de Heidegger e Castaneda referente a essa – Aquela pedra ali é uma pedra por causa de fazer
dimensão existencial do conhecimento: trata-se das no- – disse ele.
ções de fazer e não-fazer, apresentadas por Don Juan a ...não havia entendido o que ele queria dizer.
Castaneda. Quando perguntamos, cotidianamente, o que – Aquilo é fazer! – exclamou.
é algo, estamos questionando, na maioria, para que serve – Como?
a coisa em questão, qual sua função ou utilidade. – Isso também é fazer.
Em sua analítica da existência, Heidegger aponta que – De que é que está falando, Don Juan?
o nosso modo predominante de ser é o estar absorvido – Fazer é o que torna aquela pedra uma pedra e um
na ocupação com as coisas. Essa “ocupação” não é para arbusto um arbusto. Fazer é o que torna você, você
ele a mera lida objetiva com coisas previamente dadas, e eu, eu.
mas uma relação intencional, no sentido fenomenológi- (...)
co, de constituição de sentido. Ocupar-se com as coisas – Tome aquela pedra por exemplo. Olhar para ela é
é participar de modo irrefletido da dinâmica de reali- fazer, mas vê-la é não fazer.
zação de um mundo. Nos deixamos absorver tão firme- Tive de confessar que as palavras dele não estavam
mente a essa lida ocupacional que deixamos escapar o fazendo sentido para mim.
aberto do mundo. Em uma conferência muito posterior a – Ah, fazem, sim! – exclamou. – Mas você está conven-
Ser e Tempo, intitulada A Questão da Técnica, Heidegger cido do contrário porque isso é você fazendo. É assim
(1953/1997) trata mais especificamente do modo moderno que você age em relação a mim e ao mundo...
e contemporâneo de acontecimento histórico do mundo. – O mundo é o mundo porque você conhece o fazer
Na “era da técnica”, como é denominada, por ele, a época necessário para torná-lo mundo – disse ele. – Se você
atual, o homem toma todos os entes como recursos para não soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente
os seus afazeres, como se toda a realidade se reduzisse a (Castaneda, 1972/2006, p. 237).
mera reserva de energia disponível para sua exploração
e consumo (Novaes de Sá & Rodrigues, 2007). A experi- A fim de não-fazer, Castaneda precisava conseguir
ência do pensamento se reduz, por sua vez, às operações parar seu diálogo interno, pois só de olhar uma pedra já
calculantes que visam à previsão e ao controle dos entes. estamos fazendo-a pedra pelo nosso pensamento. O nosso
Heidegger diz que o mundo atual é pobre de pensamento, diálogo interno, a todo instante sustenta um mundo que
Artigo

querendo significar com isso que a presente era da téc- nos é mais familiar. A questão que trazemos é: que mundo
nica põe sob ameaça a possibilidade mais essencial do temos nós, ao longo dos últimos tempos, feito? Don Juan

133 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012


Ana G. R. Santos & Roberto N. Sá

nos fala que todos nós fomos ensinados a concordar sobre que ele surge para o seu repousar-em-si-mesmo. Mas é
o fazer e que não temos idéia de como esse fazer é pode- quando os sapatos estão no quadro que os vemos como
roso, mas felizmente, o não-fazer é igualmente poderoso. possibilidade disso tudo. A obra coloca à luz o ser das
Quando tentamos co-responder à leitura desses pen- coisas e a possibilidade de abertura e transcendência no
sadores, buscamos abrir um espaço para pensar em no- relacionar-se com elas. É na relação da camponesa com
vos modos de estar no mundo. Modos que privilegiem os sapatos que o ser sapato acontece. E esse é o sapato
as possibilidades de experiência do mundo enquanto dos longos caminhos pelo campo, do cansaço do traba-
mundo. Pensar já é em si uma prática, pois pensamento lho, das horas de frio... É o sapato do qual se tem experi-
é uma forma de desvelar mundo. O termo desvelamento ência, são esses sapatos que Vincent abre em suas telas.
(Unverborgenheit), utilizado por Heidegger para tradu- Quando Castaneda para o mundo pela primeira vez,
zir a palavra grega aletheia, indica que a verdade não é ele conversa com um coiote que está andando pelo cam-
a correspondência adequada a uma realidade em si, mas po. Ademais, fala de uma série de experiências que diz
a própria dinâmica de acontecimento/aparecimento das não poder descrever com palavras. Ao contar o ocorrido
realidades. ao índio Don Juan, este lhe diz que o coiote não falara da
A obra de arte, na concepção de Heidegger, tem uma mesma maneira como os homens falam e que Castaneda
articulação essencial com essas idéias, na medida em que não conseguiu reconhecer isso, mas seu corpo havia com-
ser obra é instalar um mundo, e para instalar mundo é preendido pela primeira vez.
preciso deixar em aberto o aberto do mundo. A obra co-
loca à luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura – Seu corpo compreendeu pela primeira vez. Mas você
e transcendência no relacionar-se com elas. Na referi- não conseguiu reconhecer que não era um coiote,
da conferência do filósofo – A Origem da Obra de Arte para começar, e que certamente não estava falando
(Heidegger, 1950/2007) –, ele toma como exemplo algumas da maneira que você ou eu falamos.
telas do pintor holandês Vincent Van Gogh, onde ele pin- – Mas o coiote falou mesmo, Don Juan!
ta sapatos de camponeses. Pares de sapatos camponeses, – Agora olhe quem está falando como um idiota.
o que há de especial para se ver aí? Todos nós sabemos Depois de todos esses anos de aprendizado, já devia
de que matéria é feito um sapato, e também conhecemos saber. Ontem você parou o mundo e podia até ter visto.
a serventia do apetrecho sapato. Um ser mágico lhe disse uma coisa e seu corpo foi ca-
Na lida cotidiana da camponesa com seus sapatos o paz de entender, porque o mundo tinha desmoronado.
que vem ao encontro de modo mais imediato e irrefletido – O mundo estava como hoje, Don Juan.
é o caráter instrumental do apetrecho sapato. Seria ilu- – Não estava, não. Hoje os coiotes não lhe dizem nada,
são pensar que foi a nossa descrição, enquanto atividade e você não consegue ver as linhas do mundo. Ontem
subjetiva, que tudo figurou assim para depois projetar no fez tudo isso simplesmente porque alguma coisa tinha
quadro. Essa seria mais uma forma de pensar homem e parado dentro de você.
mundo separados e independentes, com isso acabaríamos – O que foi que parou em mim?
fazendo uma gênese psicológica para a criação artística. – O que parou em você ontem foi aquilo que as pes-
A seguir, vemos um trecho de Heidegger (1950/2007): soas têm dito que é o mundo. Entenda, as pessoas
nos dizem, desde o momento em que nascemos, que
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, o mundo é assim e assado, naturalmente não temos
fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do tra- outra escolha senão ver o mundo do jeito que as pes-
balhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está soas nos dizem que é (Castaneda, 1972/2006, p. 314).
retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos
que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, Parar o mundo e ser obra de arte, falando dessas no-
sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a ções, os dois autores discorrem sobre realidades plásti-
umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua- cas, sobre mundos que existem a partir de experiências,
-se a solidão do caminho do campo, pela noite que sobre formas de ec-xistir e transitar entre mundos, man-
cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado tendo-se na abertura do ente. Quando Van Gogh pinta os
da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece sapatos, ele os traz à presença, e aqui entendemos pre-
e a sua inexplicável recusa na desolada improdutivi- sença como proximidade, a intensidade própria de sua
dade do campo no inverno. Por este apetrecho passa experiência. A arte não consiste em mera representação
o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa de um mundo; da mesma forma quando o guerreiro vê,
alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia ele faz uma experiência livre de suas idéias prévias de
do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da um mundo simplesmente dado. “Parar o mundo”, em
morte (p. 25). Castaneda, e “ser obra de arte”, em Heidegger, podem
ser relecionados pelo fato de apontarem para uma aber-
Artigo

Este apetrecho sapato está abrigado no mundo da tura de possibilidades de sentido para além do mundo
camponesa e é a partir mesmo desta abrigada pertença que tomamos como dado.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012 134


Arte e Mundo: Diálogos entre Heidegger e Castañeda

Em Viagem a Ixtlan, após passar por uma determi- Não devemos concluir desse esboço de um diálogo
nada experiência, Castaneda se inquieta e diz não con- insólito, que o mundo que convencionamos em socie-
seguir entender o que tinha se passado. Don Juan diz dade não é importante. O que se põe em questão nesses
a ele: “Insiste em explicar tudo como se o mundo intei- pensamentos é a cristalização da experiência cotidiana
ro fosse composto de coisas que podem ser explicadas. de mundo como verdade absoluta, e, também, a crista-
(...) Já lhe ocorreu que há poucas coisas nesse mundo lização dos nossos modos de ser medianos como únicas
que podem ser explicadas do seu jeito?” (Castaneda, possibilidades de estar no mundo. O nosso modo de ser
1972/2006, p. 160). mais comum é tão próprio ao nosso existir, quanto o fato
Quando Castaneda explica o mundo, ele simples- de que ele não esgota nossas possibilidades existenciais
mente reafirma sua representação prévia do mundo e enquanto ser-no-mundo. Mais do que fazer experiências
assim o esgota enquanto abertura de possibilidades. exóticas de mundos, o que buscamos lembrar, através da
Em vários momentos de sua trajetória de aprendizado, ressonância entre esses pensamentos tão distintos, seja
Castaneda se vê dividido entre dois mundos, o mundo através da arte ou por outros caminhos, é a “brecha”, a
cotidiano dos homens e o mundo dos feiticeiros: qual “abertura” que nos permite transitar entre mundos.
mundo seguir?
Certa vez ao ingerir uma das plantas de poder – botões
de peiote – ele pergunta qual o caminho certo a seguir, Referências
qual o mundo certo. O espírito do peiote, Mescalito, o
conduz em experiências distintas. A princípio, Castaneda Castaneda, C. (1968). A Erva do Diabo. Rio de Janeiro: Record.
tem visões e sensações agradáveis, que lhe trazem feli-
Castaneda, C. (1974). Porta para o infinito. Rio de Janeiro: Record.
cidade, mas logo depois ruídos começam a entrar nesse
mundo pleno de felicidade e a experiência começa a se Castaneda, C. (2006). Viagem a Ixtlan. Rio de Janeiro: Nova Era
transformar de forma desagradável. Castaneda se vê em (Original publicado em 1972).
uma situação de luta e todo o conforto desaparece. Diante
Castaneda, C. (2009). Uma estranha realidade. Rio de Janeiro:
disso, ele não consegue interpretar sozinho o que foi que Nova Era (Original publicado em 1971).
Mescalito veio lhe dizer; confuso pede ajuda de Don Juan
que lhe diz que a lição de Mescalito foi lindamente clara. Heidegger, M. (1997). A Questão da técnica. Cadernos de
Ele disse que Castaneda acredita existirem dois mundos Tradução, número 2. São Paulo: DF/USP (Original publi-
para ele, dois caminhos, enquanto na verdade só existe cado em 1953).
um: o mundo dos homens. Heidegger, M. (2007). A Origem da Obra de Arte. São Paulo:
O único mundo possível para um homem é o mundo Edições 70 (Original publicado em 1950).
dos homens, porque somos homens e isso não podemos
resolver largar. Na primeira experiência, onde tudo é fe- Heidegger, M. (1966) “Sérénité”. Em Questions III, p. 159-181.
Paris: Gallimard.
licidade não há diferença entre as coisas porque não há
ninguém que indague pela diferença. Por isso Mescalito Sá, R. N., de & Rodrigues, J. T. (2007). A questão do sujeito e
sacode Castaneda e o tira novamente de uma posição do intimismo em uma perspectiva fenomenológico her-
confortável, para lhe mostrar como o homem pensa e menêutica. Em A. M. L. C. de Feijoo & R. N. de Sá (Orgs).
luta. Trata-se de um horizonte de mistério fundamental Interpretações fenomenológico-existenciais para o sofri-
mento psíquico na atualidade [pp. 35-54]. Rio de Janeiro:
do ser homem: horizonte de abertura da própria exis-
GdN /IFEN.
tência. Don Juan diz que presumir que se vive em dois
mundos é vaidade, pois se sendo homem, se vive o mun-
do dos homens.
Ana Gabriela Rebelo dos Santos - Graduada em Psicologia pela Uni-
Aproximemos este pensamento com o que desenvol- versidade Federal Fluminense, Mestre em Psicologia pelo Programa
ve Heidegger sobre o modo de ser do homem, o “ser-aí”. de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense
O homem é o único ente cujo ser está sempre em jogo em / Bolsista REUNI (UFF) e Arteterapeuta integrante da equipe da Clí-
nica Pomar no Rio de Janeiro. Email: anagabrielarebelo@gmail.com
sua existência. Para a fenomenologia, não há uma essên-
cia a priori à própria experiência do existir. O homem é Roberto Novaes de Sá - Professor Associado da Universidade Federal
ser-no-mundo. Don Juan diz que é preciso, de certa for- Fluminense, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFF. Endereço Institucional: Universidade Federal Fluminense,
ma, entender que, essencialmente, não somos nada para, Centro de Estudos Gerais, Departamento de Psicologia. Campus
assim, podermos ser tudo. Nenhum mundo é o mundo Gragoatá, bl. O, sala 218 (São Domingos). CEP 24210-350, Niterói (RJ).
certo ou verdadeiro. Mais adiante, em Viagem a Ixtlan, Email: roberto_novaes@terra.com.br
Don Juan fala a Castaneda que após ver o mundo dos feiti-
ceiros ele deverá perceber que a grande arte do guerreiro
é saber transitar entre os mundos, sabendo que nenhum Recebido em 01.06.2011
Artigo

é mais verdadeiro que o outro, mas que todos são possi- Aceito em 21.07.2012
bilidades de experiência.

135 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012


Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

Ser psicoterapeuta: reflexões existenciais sobre


vivências de ESTAGIÁRIOS-terapeutas iniciantes1

Be Psychotherapist: Existential Reflections on Experiences of Trainees-Therapists Beginners

Ser un Psicoterapeuta: Reflexiones Existenciales cerca de Vivéncias de Alumnos-Terapeutas


Principiantes

Jéssica Paula Silva Mendes


Sionara K arina A lves de Brito Gressler
Sylvia M ara Pires de Freitas

Resumo: Esta produção apresenta uma análise reflexiva, com base no existencialismo sartreano, sobre a idealização do estagiá-
rio-terapeuta iniciante sobre o Ser Terapeuta. Tal reflexão teve como ponto de partida algumas vivências das autoras, bem como
a observação das dos demais estagiários que se encontravam diante do início da prática da psicoterapia individual para adultos
e terceira idade, desenvolvida por meio da disciplina de Estágio Específico I, da ênfase de Psicologia e Processos Clínicos, do
4º ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense, Campus Umuarama/PR, no ano de 2010. Partindo dessas vivências,
propomos desconstruir o lugar de soberania onde muitas vezes é colocado o psicoterapeuta, lugar esse construído por ideolo-
gias que criaram o papel do profissional responsável pela cura, valorizando-o sobremaneira ao ponto de enfatizar verdades que
desconsideram a interdependência da relação terapeuta-cliente, proporcionando sentidos que levam o estagiário-terapeuta ini-
ciante a criar expectativas frente suas atuações, as quais, ao abarcar toda a responsabilidade pela “cura” do Outro, nega-o como
artífice de sua existência. Diante disso, consideramos que projetos idealizados não abarcam frustrações, impossibilitando o re-
conhecimento dos limites do próprio projeto de Ser terapeuta.
Palavras-chave: Terapeuta iniciante; Ser psicoterapeuta; Idealização; Fenomenologia-existencial.

Abstract: This production presents a reflective analysis, based on Sartrean existentialism, on the idealization of the trainee-
therapist Being a beginner on the therapist. This reflection has as its starting point a few experiences of the authors and the ob-
servation of other trainees who were before the start of the practice of individual psychotherapy for adults and seniors, devel-
oped through the discipline of Stage-Specific I, the emphasis of Psychology Clinical and Processes, 4th year of Psychology at the
University of Parana, Campus Umuarama / PR, in 2010. Based on these experiences, we deconstruct the place where sovereignty
is often placed on the psychotherapist, this place built by ideologies that have created the role of the professional responsible for
healing, valuing it greatly to the point of value truths that ignore the interdependence of the therapist- client, providing direc-
tions that lead the trainee-therapist beginner to create expectations facing his performances, which, embracing all responsibil-
ity for the “cure” the Other, it denies its existence as a journeyman. Therefore, we believe that projects do not cover idealized
frustrations, making it impossible to recognize the limits of the project itself being a therapist.
Keywords: Beginning therapist; Being a psychotherapist; Idealization; Existential phenomenology.

Resumen: Esta producción presenta un análisis reflexivo, basado sobre el existencialismo sartreano, en la idealización del
aprendiz-terapeuta ser un principiante en el terapeuta. Esta reflexión tiene como punto de partida algunas experiencias de los
autores y la observación de los alumnos que estaban antes del inicio de la práctica de la psicoterapia individual para adultos y
personas de edad avanzada, desarrollada a través de la disciplina de la Etapa I-específicas, el énfasis de la Psicología Clínica y
Procesos, 4 º año de Psicología en la Universidad de Paraná, Campus Umuarama / PR, en 2010. Con base en estas experiencias,
deconstruir el lugar donde la soberanía es a menudo puesto en el psicoterapeuta, este lugar construido por las ideologías que
han creado el papel del profesional responsable de la curación, lo que valora en gran medida hasta el punto de toma el valor
de las verdades que hacen caso omiso de la interdependencia del terapeuta- cliente, proporcionando indicaciones que llevan al
alumno principiante-terapeuta para crear las expectativas frente a sus actuaciones, que, abrazando toda responsabilidad por la
“cura” el otro, niega su existencia como un jornalero. Por lo tanto, creemos que los proyectos no cubren frustraciones idealiza-
do, lo que hace imposible reconocer los límites del propio proyecto de ser un terapeuta.
Palabras-clave: Terapeuta principiante; Ser un psicoterapeuta; La idealización; La fenomenología existencial.
Artigo

1
Comunicação oral apresentada no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenológicos do Paraná, rea-
lizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012 136


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes

Introdução A concepção da Psicologia voltada à prática enquan-


to Clínica vem, ao longo do tempo, se adequando às de-
Ao pensar em psicoterapia, a idéia que instiga pri- mandas emergentes com exigências contemporâneas cada
meiramente é a de um tratamento cuja função principal vez mais peculiares, onde problemas das mais variadas
é a cura. Tal concepção de livrar o paciente de determi- ordens se apresentam. Tal atuação que se difundiu no
nados sintomas passa pelo senso comum, configurando- meio acadêmico e social como a mais nobre, revelou a
-se inclusive como expectativa do próprio estudante de figura do psicólogo que atua dentro de um contexto te-
Psicologia frente à prática psicoterápica (Camon, 1999). rapêutico tradicional.
Para Zaro, Barach, Nedelman e Dreiblatt (1980), as Historicamente, a Psicologia Clínica dispõe de um
expectativas do estudante, quando inicia os atendimen- sujeito idealizado, que surge para atender a uma deman-
tos psicoterapêuticos, influenciam a maneira como com- da de exaltação da subjetividade, característica do indi-
preendem as vivências de seus clientes e suas próprias. vidualismo moderno. Há uma inversão na relação teoria
Discutir sobre essas expectativas nos remete, necessaria- e prática, que se deve, segundo Portela (2008), à tentati-
mente, a contextualizar algumas condições que levam a va de encaixar os fenômenos em um conceito teórico que
escolha de Ser terapeuta. Sobre esse assunto, Zaro et al. acaba por engessar a historicidade e facticidade desses
(1980) mencionam que, apesar de cada pessoa possuir eventos. Nesse sentido é que este autor cita o apego aos
seus próprios motivos, de acordo com seus projetos, geral- modelos científicos como fator limitante da compreen-
mente os estudantes de Psicologia tendem a compartilhar são dos fenômenos, uma vez visto o método como forma
de alguns deles tais como a preocupação com o bem-estar de um (falso) controle para sua ocorrência.
das pessoas e o desejo em ajudá-las. Associada a isto está Para Pretto, Langaro e Santos (2009), a abordagem
a busca pelo reconhecimento de ser um terapeuta capaz Existencialista tem abarcado essa demanda da contem-
de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. poraneidade por meio de seus vários instrumentos em
Chegamos, portanto, ao possível motivo para toda uma metodologia fundamentada historicamente, de for-
ansiedade e angústia do estagiário-terapeuta iniciante, ma concreta e atualizada, e segundo as relações que são
que são vivenciadas antes mesmo do primeiro atendi- estabelecidas. Busca-se então uma clínica ampliada, não
mento, ao imaginar sua atuação baseada no projeto de limitada, desenvolvida nos mais diversos contextos nos
terapeuta ideal. quais a Psicologia se insere, seja na saúde pública, no
Durante a formação do psicoterapeuta, ele geralmen- meio organizacional, educação ou qualquer outra área,
te é também habilitado para realizar o psicodiagnóstico com uma prática pautada na visão global desse cliente.
a partir do conhecimento de teorias que fundamentarão Não nos debruçaremos na caracterização desses va-
sua prática. Entretanto, podemos dizer que aquilo o que riados contextos por acreditarmos que as expectativas do
ele leva para a prática, antes de qualquer coisa, é a si pró- estagiário-terapeuta iniciante se assemelham indepen-
prio como pessoa. Sua relação com o cliente também será dente do local onde atue. Nosso foco se mantém então, em
construída de acordo com seu projeto de ser, podendo, levantarmos sucintamente algumas dessas expectativas,
a princípio e pela falta de prática do método que deverá destacando aspectos que nos parecem fundamentais sob
embasar sua prática, analisar os sentimentos e compor- a perspectiva existencialista. Antes, porém, faz-se mister
tamentos dos clientes com referência em suas próprias definirmos alguns conceitos básicos que fundamentam
experiências, expectativas e valores morais. a Fenomenologia husserliana, na qual Sartre apoiou-se
Sobre a psicoterapia enquanto vivência de diferentes no conceito de consciência intencional, para assim tam-
sensações experimentadas pelo estagiário-terapeuta ini- bém podermos compreender em que Sartre transcende
ciante, não se pode deixar de falar em como a supervisão, Husserl em suas reflexões. Posteriormente, a partir dessa
tanto do acadêmico em atividades curriculares, quanto breve contextualização, partiremos para a análise com-
dos recém formados, torna-se um recurso que viabiliza preensiva a temática que nos propomos.
o conhecimento básico e a experiência mínima para atu-
ação enquanto prática clínica (Boris, 2008).
É sobre as principais expectativas e sentimentos di- 1. A Fenomenologia Husserliana
versos que acometem o estudante de Psicologia frente às
atividades práticas em psicoterapia, ou seja, as possíveis Fenomenologia nada mais é que um método que sur-
vivências diante seu projeto em Ser terapeuta, que nos de- ge dentre os movimentos do pensamento do século XX.
bruçaremos reflexivamente neste artigo. Sob os conceitos Na concepção husserliana, essa definição restaura um “re-
da filosofia de Jean-Paul Sartre, um dos principais filó- torno às coisas mesmas” (Galeffi, 2000, p. 19), provocando
sofos existencialista da modernidade, é que fundamen- assim importantes mudanças no fazer filosófico deste sé-
taremos nosso olhar, uma vez que, a respectiva aborda- culo. Husserl se empenhou em diferenciar a consciência
gem difunde a idéia de uma educação progressista, que do eu empírico. Para Husserl (1906/1990, p. 32) “o eu no seu
Artigo

coloca o estudante no centro de todo o processo, exórdio sentido habitual é um objeto empírico”, ou seja, ele não pos-
de toda discussão apresentada nesta produção científica. sui outra unidade senão aquela que lhe é dada pela própria

137 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012


Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

consciência. Contudo, esta concepção do eu sofrerá uma parte de uma totalidade, sendo o próprio todo, ele não é
mudança radical a partir do momento em que Husserl enca- o todo à medida que se coloca contraditório a ele. Para
minha a fenomenologia na direção de uma filosofia trans- Perdigão (1995), é o mundo que lhe dá o Ser ao afirmá-lo
cendental. Uma vez que perceber o objeto é intencioná-lo, não só como sujeito, mas enquanto totalidade acabada.
o ego transcendental passa a ser visto como a origem de O Outro o objetiva, tornando-o um Em-si, coisa entre as
toda significação e a fenomenologia vem a partir daí, expli- coisas. Entretanto, o homem particulariza-se no âmbito
car esta constituição do ego transcendental (Santos, 2008). de tal contradição. Enquanto tese, o homem se contrapõe
Considerando o Eu transcendental, a individualidade ao mundo que é antítese, e é a existência desse não-ser
da consciência e esta, por sua vez caracterizada enquanto em andamento entre a totalização constituinte e o todo
intencional e vazia, Husserl enfatiza esse Eu como res- constituído que estabelece a existência dialética de um
ponsável por todo conhecimento, constituindo e dando nada ativo e, ao mesmo tempo passivo (Sartre, 1960/2002).
sentido ao mundo. Assim, a fenomenologia se desenvol- Inerente à construção do mundo pelo homem está a
ve com o objetivo principal de descrição de vivências, a constituição deste último enquanto produto desse mun-
partir das quais se constituem objetos intencionais da do feito por ele. Necessário se faz, neste caso, estabele-
consciência (Brandão, 2009). Nesse sentido, para Husserl, cer relações com outros homens para se tornar homem,
o Eu Transcendental unifica as vivências. É ele que vai já que se constitui enquanto tal pela mediação de uma
ao mundo, capta e conhece a coisa (objeto). realidade que ele próprio estabelece.
A busca de Husserl então se fundamenta naquilo que Assim, a cada escolha que transcende as contradi-
podemos chamar de uma consciência absoluta, revelada ções inerentes a existência humana, constitui o enfoque
pela redução fenomenológica. Seu caráter epistemológico daquilo que Sartre denominou de histórico-dialético. O
é o que define o significado de mundo para cada indiví- sujeito deve ser compreendido a partir de sua história
duo, evidenciando o conteúdo concreto de vida de forma individual e, ainda, dos contextos social, cultural, eco-
autêntica. Posta a ação do mundo suspensa, se permite a nômico e político ao qual está inserido.
consciência tornar-se plenamente consciente de si mes- Com foco nesta concepção histórico-dialética de
ma (Giles, 1989). Sartre (1960/2002), sua contribuição para a Psicologia diz
respeito ao estudo de um homem em situação, e princi-
palmente, dos fenômenos que permeiam as relações no
2. O Existencialismo Sartreano decorrer de sua existência. Toda essa investigação pro-
posta pela filosofia sartreana visa alcançar a compreen-
Diferente de Husserl, Sartre (1937/1994) compreende são dos diversos aspectos da existência em todo seu mo-
que o Eu não pode ser visto como estrutura constituinte vimento e constituição do projeto de Ser.
da consciência. Desta maneira, a definição de uma consci- Desse modo, a fenomenologia-existencial nos fornece
ência vazia seria aniquilada, contradizendo e comprome- métodos para a prática clínica: do método fenomenológi-
tendo assim a teoria husserliana (Santos, 2008). Assim, o co, a partir da epoqué, abstraímos a base para uma atitude
Eu não pode estar presente na consciência irrefletida uma compreensiva e pelo método progressivo-regressivo pode-
vez que o “Eu penso” só surge por meio do ato reflexivo. mos entender o projeto de Ser a partir das escolhas reali-
Ou seja, é a reflexão que constitui este objeto transcen- zadas pelos clientes, que se dão num movimento dialético
dente chamado Eu, que a partir deste momento passa a temporal. E é por este mesmo movimento que a Psicologia
existir no mundo como um Em-si. Sartre postula então um clínica foi e continua sendo construída historicamente.
Ego transcendido e não transcendental, haja vista ser este
conhecido e não o que conhece (Bocca & Freitas, 2011).
Apoiados no conceito de projeto da filosofia sartreana, 3. A Psicologia Clínica e o Sujeito Objetivado
encontramos a caracterização do homem enquanto expres-
são de sua liberdade. Nesse sentido, o Existencialismo ba- Falar em atuação clínica nos remete inevitavelmen-
seia-se em uma análise compreensiva da existência a par- te a uma discussão, mesmo que breve, do movimento da
tir do entendimento de uma liberdade de escolha situada, Psicologia enquanto construção de um saber científico,
não obstante, sem obrigatoriamente garantia de obtenção, cuja prática foi moldada ao longo do tempo e influencia-
em que o homem opta por esse ou aquele projeto de acor- da pelas questões sociais e antropológicas que conferem
do com sua valorização, que se respalda também em uma ao homem em suas variadas formas de ser, o objeto de
moral vigente de seu contexto. Sob essa óptica o homem estudo do fazer psicológico.
passa a ser um existente separado de todos, uma vez que Para concretizar-se enquanto ciência, a Psicologia,
consciente, se apresenta como algo distinto de si. Ao passo no que diz respeito à prática clínica, é um campo mar-
que “transporta em mim os projetos do Outro e no Outro cado pela busca de um saber inquestionável. Propunha a
os meus próprios projetos” (Sartre, 1960/2002, p. 212). confiabilidade de um método que fosse capaz de prever
Artigo

Vê-se então a contradição fundamental entre ho- e controlar os fenômenos responsáveis pela construção
mem x mundo. Ao mesmo tempo em que o homem faz de um homem subjetivado. Seguindo o percurso de uma

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012 138


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes

subjetividade marginalizada pelo processo científico, à O isolamento dos sujeitos que se condenam a sofrer
medida que se opõe a objetividade proposta pela ciência, a contra-finalidade aliena seus projetos livres e favorece
ao terapeuta foi concedida a capacidade de transformar a o estabelecimento de relações de domínio, devendo rea-
natureza de seu cliente, cujos fenômenos característicos lizar projetos que não lhe são próprios, e sim determina-
foram reduzidos apenas a um objeto de estudo. dos por outros (Perdigão, 1995). Assim, o homem também
Nesse sentido é que Neubern (2001) aponta o grande escolhe e produz seus próprios condicionamentos, logo
dilema da Psicologia Clínica, pois à medida que se de- a maneira de alienar-se.
senvolvem novas formas de atuação, ainda assim, esbar- Romagnoli (2006) define as relações contemporâneas
ramos na limitação epistemológica que tende a excluir como intrínsecas, qualitativas e afetivas, por se desenvol-
a subjetividade. verem nesse cenário globalizado de uma sociedade pre-
Provavelmente o maior resultado dessa discrepância tensiosamente autoritária que envolve aquilo que a autora
para as relações terapêuticas está relacionado à dificul- definiu como corpo social, por meio dos mais diversos
dade de aceitação das mais variadas formas possíveis de mecanismos de dominação. A alienação faz com que as
compreensão de mundo, reduzindo as experiências a con- imposições dessa sociedade dominante sejam, ao mesmo
ceitos universalizados, logo generalizantes. tempo, também desejadas pela subjetividade, produzindo
Pode-se dizer que o conhecimento foi associado a assim formas de vidas padronizadas.
uma hierarquia, uma relação de poder, onde as pers- Para Luczinski e Ancona-Lopez (2010), na prática clí-
pectivas do terapeuta, de maneira sutil, foram impostas, nica, a busca do psicólogo é pela compreensão do homem
substituindo ou influenciando assim as peculiaridades no mundo, assim como uma forma de acompanhar esse
do cliente. Concomitante a isto, a Psicologia foi tomando homem em suas necessidades de acordo com os objeti-
como função oferecer explicações confiáveis, principal- vos terapêuticos. Entretanto, é certo que o homem pode
mente dos sujeitos que estavam à margem do conceito apresentar crescimentos e mudanças no que diz respeito
de normalidade. O foco no patológico veio reafirmar a ao desenvolvimento pessoal, a partir das mais diversas
condição desse homem enquanto dependente e submis- experiências vividas, sem que para isso seja necessária
so do processo terapêutico, uma vez que a Psicologia lhe qualquer intervenção psicológica.
foi apresentada como uma, senão a única, capaz de pro- Nesse aspecto é que a prática da Psicologia Clínica
mover soluções eficazes. imersa no contexto social, não visa uma política de aten-
A avaliação das múltiplas e complexas dimensões ção às camadas sociais mais favorecidas. Diz respeito
de um processo histórico é de fundamental importância a uma proposta para uma “clínica de qualquer lugar”,
no sentido de estabelecer a prática de um conhecimento segundo Romagnoli (2006, p. 53). O objetivo primeiro,
vinculado, inclusive, às resistências impostas por ele en- neste caso, seria a aniquilação de produções em massa,
quanto obstáculo epistemológico (Neubern, 2001). vinculada a uma apreensão da singularidade do cliente
não submisso a um modelo de estudo. Isso vale também
Uma vez que partimos da dispersão dos organismos para o próprio terapeuta que não se atenha ao pensamento
humanos, vamos considerar indivíduos inteiramente narcísico de detentor do poder de modelar seus clientes.
separados (pelas instituições, por sua condição social, Tendo em vista a fundamental importância do mundo
pelos acasos de sua vida) e tentaremos descobrir nessa enquanto produto e produtor de subjetividades objetiva-
separação – isto é, em uma relação que tende para das, cabe ressaltar o processo de sociabilidade, como se dá
a exterioridade absoluta – seu vínculo histórico e e o nível de influência que este exerce sobre a constituição
concreto de interioridade (Sartre, 1960/2002, p. 213). do homem. Em meio a esse processo encontra-se também a
construção do Ser terapeuta, que tende ir ao encontro das
Por estarmos inseridos em uma estrutura social que expectativas da sociedade e as perspectivas dos estudan-
fora organizada pela práxis de outros que nos precederam tes que se dedicam a esta atuação profissional, como por
historicamente, torna a práxis individual uma reorganiza- exemplo, a conciliação indubitável entre naturalidade e
ção de um setor de materialidade inerte, cuja função é aten- critério, as quais serão foco de nossa reflexão mais adiante.
der as exigências de outro setor material, e não mais uma
livre organização do campo prático. Matéria, em um senti-
do mais amplo, seria não-consciência (Sartre, 1960/2002). 4. A Sociabilidade e o Social
Entretanto, segundo Perdigão (1995), não somente as
práxis de nossos antecedentes, mas também as nossas Iniciaremos uma discussão a respeito da sociabili-
enquanto liberdade produzem o fenômeno da contra-fi- dade a partir da conceituação de Qualidade de Vida. Ao
nalidade da matéria. Para este autor, o homem intervém pensar Qualidade de Vida há uma tendência a associar
na matéria influindo nela seu próprio projeto, disperso, tal conceito à saúde. Segundo definição da Organização
resultando em um fenômeno alheio que foge ao contro- Mundial da Saúde (OMS), saúde não diz respeito somente
Artigo

le, e a matéria pode responder contrariamente aos efei- à ausência da doença, e sim a presença de um bem estar
tos que se buscava. físico, mental e social (Fleck, 2000).

139 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012


Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

Em um artigo apresentado por Campos e Rodrigues O único fundamento concreto da dialética histórica é
Neto (2008), que trata de uma narrativa reflexiva sobre a estrutura dialética da ação individual. E, na medida
Qualidade de Vida, os autores trazem um tópico intitu- em que podemos abstrair, por um instante, essa ação
lado “Instrumentos de Medida de Qualidade de Vida” (p. do meio social onde, de fato, está submersa, surpreen-
235), onde descrevem construtos capazes de mensurar e demos nela um desenvolvimento completo da inteligi-
comparar os diversos níveis que caracterizam e determi- bilidade dialética como lógica da totalização prática
nam o bem-estar social. e da temporalização real (Sartre, 1960/2002, p. 328).
O tema é abordado como se o fenômeno do bem-estar
fosse padronizado e a tal ponto generalizado que permiti- Portanto, a prática clínica nada mais é que um olhar
ria uma avaliação cabal de toda e qualquer subjetividade. desse homem na sociabilidade (relações), limitado por
Nesse aspecto, ressaltamos a importante influência exer- aquilo que é instituído por essas mesmas relações, ou
cida pela ascensão do capitalismo no que diz respeito ao seja, o social será o produto dessas relações, como, por
entendimento de bem-estar contemporâneo. Os padrões exemplo, as normas, as leis, as teorias e as políticas. Sendo
de beleza, padrões comportamentais, status social são produto, o social é a antítese do individuo e seu projeto de
alguns dos predicativos que diariamente são impostos Ser também será construído a partir desta relação, como
pela mídia, por exemplo, e sobre os quais se fundamen- interioriza esse social e como age sobre ele.
ta a condição de se ter ou não bem-estar. Podemos ob- Por ser falta e por estar inserida no mundo, a relação
servar também que para se atingir tais projetos impostos com as coisas e com os outros se dá num movimento re-
como necessários ao bem-estar, há a necessidade de se cíproco, que remete o homem ao reconhecimento de si
consumir produtos para esses fins. A valorização do ho- próprio enquanto meio, tal como vê o outro, que se move
mem, então, diz respeito à capacidade de consumo que em direção a um fim. Essa relação é, ao mesmo tempo,
ele apresenta, e não daquilo que o constitui enquanto Ser. mediadora e mediada pela materialidade. Um conjunto de
Nesse contexto e no senso comum, o psicólogo se in- homens e de coisas, segundo Bettoni e Andrade (2001), em
sere como alguém capaz de modificar os comportamen- meio a qual a práxis da individualidade atua para deter-
tos vistos como “não saudáveis”, proporcionando assim minado fim a sobrevir sobre a realidade. A somatória das
o bem-estar ao seu cliente. Mais que isso, quiçá, por al- ações de vários sujeitos constitui um grupo que, mais tar-
de, irá demarcar e, de certa forma, exercer controle sobre a
gumas pessoas, considerado como o único capaz de tal
individualidade expressa em prol dos objetivos coletivos.
mudança, pelo fato de possuir conhecimento relativo ao
Podemos dizer que enquanto a realidade coletiva se
homem enquanto processo e suas diferentes formas de
apresenta ao homem como algo imposto, esta é consti-
compreensão do mundo.
tuída também a partir de sua individualidade. Sob esta
Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná
lógica da dialética homem-mundo configura-se uma tota-
(CRP 08) contemplou a edição n. 57 da revista Contato
lização-em-curso. Cabe então à consciência desvelar todo
com a temática Qualidade de Vida, enfocando as contri-
esse movimento dialético e retirá-lo da inércia, fazendo
buições da Psicologia para se alcançar esse bem-estar tão
com que seja possível refletir sobre a trajetória das coisas
almejado pelo homem. Uma das reportagens foi direciona-
(Bettoni & Andrade, 2001).
da à profissionais envolvidos com a prática da Psicologia
em um contexto ambiental, que denunciaram os resulta-
dos danosos das ações do homem sobre a natureza, que 5. Ser Terapeuta Ideal
afetam sobremaneira sua qualidade de vida. Diante o que
é construído por esta relação dialética homem-mundo, No eixo da Fenomenologia-existencial, a construção
por meio da qual o homem sente a contra-finalidade da do projeto de Ser terapeuta é também produto dessa dia-
matéria, ou seja, o homem se vê controlado por sua cria- lética ontológica. Inicialmente, ao pensar nos objetivos da
ção, cabe aqui uma análise. educação como sendo o de fundamentar uma identidade
A expressão ‘Em-si’ na teoria sartreana se refere ao ao homem, a formação acadêmica em Psicologia, assim
Ser, ou seja, tudo aquilo que é, estanque, fechado. Dito como em qualquer outra área do conhecimento, traria
de outra forma: encontra-se fora da pessoa, não mantém em seu bojo uma atitude de má-fé ao tentar impor um
relação nem consigo nem com outro Ser, é o universo das Ser psicólogo ao Não-ser, como resposta frente ao nada.
coisas materiais. Em contrapartida o ‘Para-si’ é o pleno Segundo Danelon (2004), é como instituir uma essên-
vazio, o nada. É a consciência (Para-si) que faz reconhe- cia antes da existência, a qual se constituirá mais tarde
cermo-nos como Ser (Em-si) (Perdigão, 1995). como realidade interior do sujeito, servindo de referencial
A relação dialética ‘Para-si’ e ‘Em-si’ nada mais é que para que este elabore e concretize seus projetos, contra-
a relação entre a consciência e o mundo. Já disse Sartre pondo-se assim a premissa básica do Existencialismo de
(1943/1997, p. 131) que “o homem é um para-si-em-si”, uma que a existência precede a essência.
vez que ontologicamente o homem é o nada, o vazio que O Ser ontológico do homem, ao pensar, pensa sem-
Artigo

será preenchido por algo, tornando-se momentaneamen- pre em algo que, a partir daí, torna-se objeto captado por
te um ‘Em-si’ na relação com o mundo (Para-si-Em-si). sua intencionalidade. Pensar em Ser psicoterapeuta im-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012 140


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes

plicaria então, em projetar um Ser terapeuta, primeira- como suas limitações, que é levado a repensar a autoi-
mente idealizado. magem, relações dentro do grupo e, paralelamente, seu
Já impregnados com conceitos do senso comum sobre crescimento pessoal (Távora, 2002).
o papel do terapeuta, o estudante inicia a graduação po- A prática idealizada da psicoterapia estaria vinculada
dendo ter alguns desses conceitos reforçados por paradig- a conciliação de uma metodologia científica aplicada em
mas de uma formação que limitam a prática desse profis- um contexto previsível, agindo de forma inquestionável
sional somente ao contexto do consultório e que designam sobre a motilidade que caracteriza a vida humana. Como
à figura do terapeuta características utópicas, como, por se o estagiário-terapeuta iniciante fosse detentor de uma
exemplo, a onipotência de detentor do poder de curar o receita que livrasse o cliente de todo seu sofrimento, levan-
outro. E é nesse aspecto que a educação pode assumir um do-o a crer que a “cura” seria algo ofertado pelo primeiro,
caráter perverso ao propor um Ser para o homem que se ao invés de considerar o processo terapêutico como uma
projeta a partir do que foi instituído. Compromete-se as- caminhada para a conscientização e apropriação do pro-
sim, o princípio de intencionalidade também, que desse jeto de Ser do e pelo cliente, que pode ser mantido ou não.
momento em diante impossibilita a abertura da consciên- Estagiários-terapeutas iniciantes tendem a antever seu
cia para o mundo, já que será parte de uma subjetivida- encontro inicial com os clientes vivendo sentimentos am-
de que lhe foi instituída anteriormente (Danelon, 2004). bivalentes. Aplicar na prática os conceitos teóricos-meto-
A formação, porém, tem o poder de caracterizar o su- dológicos aprendidos configura-se como uma das maiores
jeito. Concretizá-lo como um Ser-em-si, que poderia ser preocupações enquanto atuação. O anseio por intervir
definido como subjetividade individual, não fosse o fato no momento que considera ser o certo, e de maneira que
da consciência apresentar-se objetivada de conceitos que também acha ser a pertinente, acaba por vezes compro-
foram pré-determinados (Danelon, 2004). metendo a vivência daquilo que o cliente fala, no exato
A possibilidade de livrar o cliente do sofrimento e momento em que ele traz. O terapeuta fica preso a um
ser reconhecido como um bom profissional tende a inci- modelo ideal de atuação e perde a singularidade do pro-
tar o terapeuta, pois esta possibilidade de ser lhe confe- cesso, em seu âmbito vivencial da relação com o cliente.
re poder. Ideologicamente fixado em conceitos, como os E por falar de singularidade e de relação, dois outros
padrões de saúde mental, qualidade de vida, bem-estar, aspectos podem também ser compreendidos de maneira
e condições sociais, por exemplo, disseminados na so- errônea pelo estagiário-terapeuta iniciante: (1) a questão
ciedade capitalista, o terapeuta iniciante pode se deter a da individualidade do indivíduo ser compreendida de
uma pretensão de enquadrar o cliente em conceitos pré- maneira descontextualizada do social e (2) a não conside-
-estabelecidos, de modo que se sinta capaz de mudá-lo e ração da relação dialética no próprio setting terapêutico.
reinseri-lo tal como o meio exige. Sendo aspectos que se imbricam, a individualidade,
Diante o exposto, fica evidente uma intensa preocupa- tanto do cliente quanto do terapeuta, não está dissociada
ção do estagiário-terapeuta iniciante, com o desempenho dos seus respectivos contextos coletivos. As vivências de
nos primeiros atendimentos psicoterapêuticos. Certo ní- ambos vêm carregadas do que é instituído por um contexto
vel de ansiedade demonstra as incertezas do futuro com maior por meio de suas relações extra setting. Sendo as-
o cliente e da habilidade para estar realmente com ele. sim, a maneira como superam as contradições das relações
Sabido que o que se fizer pode causar um impacto no fora do setting influenciará a relação que travarão dentro
outro, é possível aceitar tais ansiedades como normais, deste, bem como transcenderão todas as demais. Logo, ne-
embora uma ansiedade demasiada talvez acabe com toda nhuma delas pode deixar de ser apreendida e trabalhada.
confiança que tenha em si próprio. Outro aspecto importante a ser pontuado refere-se às
O estagiário-terapeuta iniciante se encontra imer- atitudes de silêncio do cliente que, por vezes, são signi-
so em um mar de dúvidas em relação ao que deverá ser ficadas pelos estagiários-terapeutas iniciantes como uma
dito e de que forma, e, apreensivo pelas coisas que acre- barreira à intervenção psicoterápica. O silêncio do cliente
dita não poder dizer, pode conformar-se com o silêncio é vivenciado pelo estagiário-terapeuta iniciante com um
em alguns momentos ou mesmo quebra-lo inadequada- tempo interminável e não é incomum que este se sinta
mente para livrar-se da angústia diante do vazio que se ameaçado a ponto de buscar algo contraproducente com o
instaura na relação, que pensa poder se entendido pelo fim de quebrá-lo, livrando-se assim da angústia diante do
outro como uma impotência de sua parte. Nesse aspecto, vazio. Por remetê-los ao vazio, o silêncio passa a ser asso-
a supervisão funciona como moderador dessa ansiedade ciado a uma impotência do estagiário-terapeuta iniciante
e angústia por meio da orientação dada por profissional que se sente na obrigatoriedade de interrompê-lo, dizendo
que tenha experiência. coisas, por vezes desnecessárias, ou lançando mão de um
A supervisão se dá com o uso de vivências, discus- inquérito com o único intuito de totalizar a lacuna que se
sões, dramatização dos casos atendidos, estudo de mate- estabelece no momento em que o cliente se cala, como já
rial teórico e outras atividades com o objetivo de ajudar dissemos anteriormente. Entretanto, assim como qualquer
e avaliar o desenvolvimento do estagiário-terapeuta ini- outro comportamento, o silêncio, quando trabalhado em
Artigo

ciante na sua prática. Isso se torna possível por meio da terapia, contribui para que o cliente obtenha consciência
reflexão, neste instigada, sobre suas habilidades, assim de si, servindo inclusive como recurso de intervenção

141 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012


Jéssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

para o próprio psicoterapeuta, uma vez que pode assina- dor também precisa se expor-se na relação; o estagiário-
lar ao cliente a maneira como escolhe lidar com o vazio. -terapeuta iniciante, com a sua escolha pela abordagem
No entanto, é mister identificar a intenção do clien- e pelo tipo de prática, aprendendo na orientação pode
te por meio de sua atitude de silenciar-se, haja vista que transpor a experiência para com o seu cliente, mas deve
o silêncio produtivo tem caráter reflexivo (Erthal, 1994). arriscar-se em ambas as relações; e, finalmente, o cliente
Contudo, este tipo de silêncio é menos mobilizador de com a decisão de fazer terapia pode engajar-se com sua
angústia no estagiário-terapeuta iniciante, pelo fato de o proposta, e assim apropriar-se de seu Projeto de Ser e com
cliente, em sua atitude reflexiva, estar voltado para si e possíveis transcendências ao seu modo de Ser. Tais en-
não para o terapeuta. Diferente do silêncio estéril, que tem gajamentos provocarão mudanças nas relações de todos.
seu significado na evitação de algum assunto em especí-
fico que tenha incomodado o cliente e/ou a dificuldade
de tomar a iniciativa de falar, neste, o cliente demonstra Considerações Finais
com o comportamento de silenciar-se, outras atitudes ge-
ralmente não-verbais, que informam ao estagiário-tera- Aquele que almeja ser psicoterapeuta geralmente se
peuta iniciante que este é quem deve quebrar o silêncio. enquadra em características tais como: o interesse pelas
Neste caso, suportar o silêncio passa a ser uma vivência pessoas, a estabilidade emocional, a capacidade de inspi-
um tanto ameaçadora, haja vista que, não responder ao rar confiança nos outros, e principalmente, tolerância às
apelo do cliente é intervir com uma negativa, e como se mais diversas formas e estilos de vida e crenças.
esta não fosse também uma intervenção. Na contemporaneidade, exige-se ainda que esse tera-
Quase sempre as intervenções iniciais ocorrem de ma- peuta-iniciante desenvolva a condição de compreender e
neira intranquila para o estagiário-terapeuta iniciante. Há aceitar o seu Eu tanto quanto os outros. Assim, quando
uma tendência a sentir-se intimidado e receoso, como se vão à prática os estudantes de Psicologia são submetidos
algo que pudesse dizer tivesse o poder de destruir o clien- à prova da sua capacidade de integração e aplicação de
te de modo que ele nem retorne na sessão seguinte. Nesse tudo aquilo que aprenderam durante a formação acadê-
sentido, evita-se falar sobre o que supõe ser desagradável mica. Mesmo estando cientes da influência que os do-
para o cliente. Diante tal compreensão equivocada, a atu- centes exercem enquanto modelo de terapeuta, ignora-se
ação fica restrita a uma prática amena, amigável, porém, a singularidade do potencial individual ao tentar imitá-
a real intenção é a de manter o controle da liberdade do -los. Os recursos podem e devem ser usados, mas buscan-
cliente. Esta tentativa de controle remete à expectativa do sempre caminhos que sejam peculiares a cada olhar.
do estagiário-terapeuta iniciante em estar de acordo com Ao longo dessa discussão, onde alguns paradigmas
as expectativas que supõe que o cliente tenha. Em outras foram abordados e discutidos, ressaltamos que a forma-
palavras, a atuação fica vinculada à uma tentativa de não ção científico-metodológica não é suficiente para garan-
frustrar o cliente para não frustrar a si próprio. Alienado tir uma prática psicoterápica com êxito. A busca, não de
em sua liberdade, e em busca de retoma-la, o estagiário- ser um produto acabado, mas de permanecer aberto no
-terapeuta iniciante tende a abster-se de uma possível con- sentido de vir-a-ser um profissional cada vez mais pre-
frontação com o cliente, tentando também transformar a parado, é, entre outras, uma das qualidades mais impor-
liberdade deste último em algo alienável ao seu contro- tantes para a experiência de tornar-se psicoterapeuta.
le. Enfim, reverte o lugar de quem deve estar impotente. Esta experiência implica correr riscos, manifestar a co-
Outro contexto relacional em que o estagiário-tera- ragem e a vontade de abandonar a segurança do conhecido
peuta iniciante pode mostrar o seu ideal de Ser terapeu- para mergulhar no desconhecido, de onde possa emergir
ta é na relação com seu orientador. Assim como receia muitas possibilidades de Ser. Tais funções destinadas ao
que sua atuação não seja reconhecida pelo cliente pelo ser terapeuta ocultam, por sua vez, a condição humana,
modelo idealizado, o olhar do orientador também poderá pois se precaver à manutenção das expectativas de um pa-
ser percebido como uma ameaça ao seu projeto. Em am- pel estereotipado superpõe o indivíduo enquanto pessoa.
bas as relações que trava – com o cliente e com o orien- Quando possível, deve-se questionar os conhecimen-
tador – o estagiário-terapeuta iniciante tenderá controlar tos adquiridos, uma vez que a vida acadêmica é cons-
a liberdade da consciência alheia. Contudo, na segunda truída por pessoas e estas não detêm saberes absolutos.
relação, caberá ao orientador a ajudá-lo a conscientizar- Teorias, métodos, instrumentos e recursos estão no mun-
-se de seu projeto. do, logo passíveis de serem transcendidos. Seja qual foi
Nesta trama dialética das relações, para obter sucesso o grau de embasamento teórico acadêmico e prático, o
com a psicoterapia fenomenológico-existencial e com a estagiário-terapeuta iniciante não deve sobrecarregar-se
orientação, todos – orientador, estagiário e cliente – devem da necessidade de ser perfeito. Os erros serão cometidos
se comprometer com suas escolhas: o orientador, com a tanto por principiantes quanto pelos mais experientes,
de ensinar ao estagiário-terapeuta iniciante a desenvolver afinal, o cliente não é frágil a ponto de fadar vossas vi-
habilidades e competências para a aplicação da teoria e das aos nossos erros.
Artigo

do método em questão, bem como encorajá-lo a desistir Projetos idealizados não toleram frustrações, logo
de idealizações e assim a arriscar-se, com isso o orienta- não abarcam limites, sendo assim, não colocar limites ao

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012 142


Ser Psicoterapeuta: Reflexões Existenciais sobre Vivências de Estagiários-Terapeutas Iniciantes

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Fenomenologia. São Paulo: EPU. Existencial pelo Núcleo de Psicoterapia Vivencial (NPV/RJ). Docente e
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Estudos de Psicologia (Campinas), 27 (1), 75-82. Universidade Paranaense, Campus sede Umuarama, Paraná - Colegiado
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Artigo

o reconhecimento da subjetividade na Psicologia Clínica.


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143 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 136-143, jul-dez, 2012


Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins

OS SENTIDOS DO SENTIDO: UMA LEITURA FENOMENOLÓGICA

Los Sentidos del Sentido: Una Lectura Fenomenologica

The Meanings of Meaning: A Phenomenological Reading

M arta Helena de Freitas


R ita de Cássia A raújo
Filipe Starling Loureiro Franca
Ondina Pena Pereira
Francisco M artins

Resumo: Neste artigo, procedemos a uma leitura fenomenológica da noção de sentido e suas múltiplas significações. Partindo
de uma primeira visada às definições apresentadas ao termo nos verbetes dos dicionários comuns, tal multiplicidade de signi-
ficações é discutida à luz do conceito husserliano de “intencionalidade” e compreendida a partir da proposta merleau-pontyana
de “reabilitação do sensível”. Retomamos, então, o termo sentido desde suas acepções físicas e sensoriais até aquelas de cunho
idealizado, relacional e teleológico, considerando-as como um conjunto expresso num único termo e que aponta para uma vida
consciente baseada no campo da experiência corporal pré-predicativa desdobrando-se em experiência reflexiva, intersubjetiva
e transcendental. Desta forma, o vocábulo sentido mostra-se como uma espécie de multiplicidade unificada e, por isso, consi-
derado como que paradigmático: pura “mostração” do processo perceptivo, diante do qual se tem a contradição-continuidade
da imanência (o dado imediatamente) e da transcendência (o que vai além do imediatamente dado). Discutimos as implicações
desse entendimento para uma psicologia que se queira eficaz no seu processo de compreender a experiência humana funda-
mental em sua inserção no mundo da vida.
Palavras-chave: Sentido; Fenomenologia; Intencionalidade; Husserl; Merleau-Ponty.

Abstract: In this article we carried out a phenomenological reading of the notion of meaning and its multiple meanings. Starting
from an initial target to the definitions provided in the dictionaries term, such a multiplicity of meanings is discussed in light
of the Husserlian concept of “intentionality” and understood from the Merleau-Ponty propose about “rehabilitation of the sen-
sible.” Getting back the term direction from its physical and sensory meanings to those of idealized nature, relational and teleo-
logical, considering them as a whole expressed in a single term and points to a conscious life based in the field of body experi-
ence prepredicative unfolding in reflective experience, intersubjective and transcendental. Thus, the word order shows up as a
kind of multiplicity unified and, therefore, considered that paradigm: pure “showing” the perceptual process, before which one
has the contradiction-continuity of immanence (the immediately data) and transcendence (what goes beyond the immediately
given). We discuss the implications of this understanding to a psychology that is effective in the process of understanding the
fundamental human experience inserted in the living world.
Keywords: Meaning; Phenomenology; Intentionality; Husserl; Merleau-Ponty.

Resumen: En este texto, llevamos a cabo una lectura fenomenológica del concepto sentido y sus múltiples significados. Partiendo
de un primero enfoque sobre las definiciones del término en los artículos de los diccionarios comunes, la multiplicidad de signi-
ficados es examinada a la luz de la noción intencionalidad en Husserl y comprendida desde la propuesta de “rehabilitación de
lo sensible” de Merleau-Ponty. Tomamos entonces el sentido del término desde sus significados sensoriales y físicos a los de na-
turaleza idealizada, teleológico y relacional, considerándolos como un conjunto que se expresa en un solo término y que apunta
a una vida consciente fundada en el terreno de la experiencia pre-predicativa del cuerpo, con desdoblamientos en los terrenos
reflexivo, intersubjetivo y trascendental. De esta manera, el sentido de la palabra se muestra como una especie de multiplicidad
unificado y por lo tanto, lo consideramos paradigmático: es una demonstración del proceso perceptual, en lo cual tenemos la
contradicción-continuidad de la inmanencia (lo inmediatamente dado) y la trascendencia (que va más allá de lo que se da de
modo inmediato). Analizaremos las implicaciones de este entendimiento para una psicología que quisiera ser eficaz en su pro-
ceso de comprensión de la experiencia humana fundamental insertada en el mundo de la vida.
Palabras-clave: Dirección; Fenomenología; Intencionalidad; Husserl; Merleau-Ponty.

“De tudo o que vivo, enquanto o vivo, “Porque o único sentido oculto das cousas
tenho diante de mim o sentido, é elas não terem sentido oculto.”
sem o que não o viveria.” Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro.
Artigo

Merleau-Ponty, A Fenomenologia da Percepção


(1945/1999, p. 41)

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012 144


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica

Introdução dos do termo sentido, pode relacionar até muito mais de


vinte itens. O dicionário eletrônico Priberan da Língua
É no mínimo curioso como certas palavras nos soam Portuguesa (2010), por exemplo, apresenta 14 significa-
como feixes de nomes, tal a multiplicidade de sentidos a dos para o termo “sentido”, no singular, número que se
que nos remetem. É este o caso do próprio vocábulo senti- eleva para 18, quando o termo é empregado no plural –
do. Qualquer bom dicionário o confirma. Mas, é no mun- “sentidos”, e para 28 (!) quando se refere à conjugação
do da vida que o sentimos, cotidianamente. Falamos então do verbo “sentir”. Considerando-se nosso intuito de rea-
dos órgãos do sentido, do sentido de um rio, do sentido lizar aqui uma espécie de “exegese” fenomenológica do
desperto, do sentido tessitura, do sentido de uma pala- termo, reproduziremos integralmente os três verbetes,
vra, frase ou texto, do olhar sentido, do amor sentido, da conforme a seguir:
dor sentida, do coração sentido (ou ressentido), do sexto
sentido, da fé sentida, do sentido da vida, do verbo sen- “Sentido: adj. 1. Ressentido; melindrado; magoado.
tir... E um novelo de sentidos se desfia. 2. Sensível; susceptível; que se ofende facilmente.
Talvez sejam exatamente os sentidos intrínsecos à 3. Contristado; pesaroso; triste. 4. Lamentoso; plan-
polissemia do termo “sentido” que o façam tão caro e es- gente. s. m. 5. Faculdade que têm o homem e os ani-
pecial à psicologia, sobretudo quando esta toma como mais de receber as impressões dos objectos exterio-
seu objeto a experiência humana em sua plena vitalida- res. 6. Razão, bom senso. 7. Intento, mira, pensamento.
de. Se tal vitalidade já foi muitas vezes evitada, negada 8. Atenção, cuidado. 9. Memória, cabeça. 10. Lado de
e marginalizada na história desta mesma ciência, em uma coisa, direcção. 11. Significação. 12. Acepção.
nome de um certo tipo de rigor conceitual e metodoló- 13. Espírito, pensamento. 14. Modo, aspecto, ponto
gico que preferiu empregar vocábulos menos sujeitos a de vista, maneira de considerar ou de distinguir.
tantas ambiguidades, ela tem sido frequentemente resga- Sentidos: s. m. pl. 15. Conjunto das faculdades para
tada ultimamente, e de várias maneiras. De fato, talvez a percepção dos objectos exteriores. 16. Conjunto
o termo sentido nunca tenha estado tão em voga na psi- das faculdades intelectuais. = RACIOCÍNIO 17. Vo-
cologia, como em suas versões contemporâneas. Fala-se luptuosidade, prazer, sensualidade, concupiscência.
em “sentido do sintoma”, “resgate de sentido”, “busca de interj. 18. Expressão usada para pedir concentração ou
sentido”, “construção de sentido”, “núcleos de sentido”, cuidado em relação a algo. = ATENÇÃO, CUIDADO
“representações do sentido”, “sistema de sentidos”, “von- com os cinco sentidos: com todo o cuidado, como é
tade de sentido”, “necessidade de sentido”, “encontro (ou devido. sentido proibido: sentido contrário ao sentido
reencontro) de sentido”, “versão de sentido”, “fenomeno- normal de uma faixa de rodagem. = CONTRAMÃO.
logia do sentido”, para falar dos mais frequentes. Sexto sentido: intuição.
Neste ensaio, porém, não pretendemos simplesmente Sentir - Conjugar (latim sentio, -ire, perceber pelos
apresentar mais uma abordagem acerca do termo sentido. sentidos, perceber, pensar) v. tr. 1. Perceber por um dos
Ao contrário, em vez de apresentar mais uma concepção sentidos; ter como sensação. 2. Perceber o que se passa
concorrente a tantas outras, nosso intuito é o de discutir em si; ter como sentimento. = EXPERIMENTAR.
justamente essa multiplicidade natural do termo e suas 3. Ser sensível a; ser impressionado por. 4. Estar con-
respectivas vinculações à riqueza da experiência fun- vencido ou persuadido de. = ACHAR, CONSIDERAR,
damental em causa. Evidentemente que seria tarefa her- JULGAR, PENSAR. 5. Ter determinada opinião ou
cúlea e, sobretudo, pretensiosa, propormos uma aborda- maneira de pensar sobre (algo ou alguém). = ACHAR,
gem integradora de todas as demais já desenvolvidas em CONSIDERAR, JULGAR, REPUTAR. 6. Conhecer,
torno da concepção de sentido. Entretanto, podemos, ao notar, reconhecer. 7. Supor com certos fundamentos.
menos, dirigir um olhar mais integrador sobre a própria = CONJECTURAR =, PREVER. 8. Aperceber-se de,
experiência humana, tal como nos ensina, por exemplo, dar fé ou notícia de. = PERCEBER. 9. Ter a consciência
a fenomenologia de Husserl (1859-1938) e de Merleau- de. = PERCEBER. 10. Compreender, certificar-se de.
Ponty (1908-1961). Esse, então, o propósito do qual bus- 11. Adivinhar, pressagiar, pressentir. 12. Conhecer por
camos nos aproximar aqui: um exercício de apreensão certos indícios. = PRESSENTIR 13. Ouvir indistinta-
fenomenológica dos sentidos do sentido e suas implica- mente. = ENTREOUVI. 14. Experimentar mudança
ções para uma psicologia que se queira efetiva na abor- ou alteração física ou moral por causa de. = RES-
dagem ao mundo da vida. SENTIR. 15. Sofrer as consequências de. 16. Sentir
tristeza ou constrangimento em relação a; afligir-se
por. = LAMENTAR. 17. Ressentir-se, melindrar-se
1. Do Dicionário à Noção Fenomenológica de Inten- ou ofender-se com (algo). 18. [Belas-artes] Ter o
cionalidade da Consciência sentimento estético. 19. [Belas-artes] Saber traduzir
por meio da arte. v. intr. 20. Ter a faculdade de sentir.
Artigo

Um dicionário comum da Língua Portuguesa que 21. Ter sensibilidade; ter alma sensível. 22. Sofrer. v. pron.
apresenta, de modo exaustivo, a variedade de significa- 23. Experimentar um sentimento ou uma sensação.

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24. Ter a consciência de algum fenómeno ou do que que remete, simultaneamente, a concepções da física, da
se passa no interior de si mesmo. = RECONHECER- fisiologia, do psiquismo e da cultura – confirma a já tão
-SE. 25. Apreciar o seu estado físico ou moral. = denunciada falsa dicotomia estabelecida pelo pensamen-
CRER-SE, IMAGINAR-SE, JULGAR-SE, REPUTAR- to moderno através das distinções entre cogito e cogita-
-SE. 26. Tomar algo como ofensa. = MELINDRAR-SE, tum, entre mundo exterior e mundo interior, entre obje-
OFENDER-SE, RESSENTIR-SE s. m. 27. Sentimento, tividade e subjetividade, entre natureza e sensibilidade.
sensibilidade. 28. Maneira de pensar ou de ver. = Por outro lado, curiosamente, podemos verificar tam-
OPINIÃO, ENTENDER, PARECER”. bém que, em geral, os sentidos do termo sentido estão in-
trinsicamente relacionados à própria noção fenomenoló-
Essa variedade ainda não esgota todos os significa- gica de intencionalidade. Senão, vejamos. Esta noção está
dos possíveis do termo sentido, o que pode ser verificado presente no conhecimento desde o neoplatonismo árabe,
quando se compara com outro verbete correspondente ao passando por Santo Tomás e Ockhman, no mundo medie-
mesmo termo em outro dicionário, como por exemplo o val, tendo sido recuperada modernamente por Brentano
Dicionário On Line Michaelis – Moderno Dicionário da (1838-1917), e posteriormente retomada por Husserl (1859-
Língua Portuguesa (1998/2009), que convidamos o leitor 1938), justamente por reconhecerem que só tem sentido
a buscar, pois sua reprodução, como de tantos outros, to- falar de consciência enquanto consciência de algo, ou
maria muito espaço nos limites deste ensaio. seja: a intencionalidade representa justamente o direcio-
O que é interessante observar de saída é que, dentre namento da consciência em relação ao objeto, e vice-versa,
as diferentes acepções do termo, existem aquelas que re- o modo como tal objeto se apresenta à consciência. Como
metem às funções biológicas, como os órgãos dos senti- tal, a intencionalidade remonta a um contíguo mental em
dos, por exemplo, mas também muitas outras – a maio- movimento ininterrupto em direção ao mundo. Por esse
ria, inclusive – que nos remetem às chamadas “funções motivo, não faz sentido pensá-la como instância de con-
psíquicas”, classicamente descritas pela psicologia em teúdos mentais fechados e estagnados. Deste modo, toda
seus diferentes níveis. Assim, podemos identificar, den- vez que se tenta descrever as propriedades restritas ao
tre os vários significados relacionados no verbete, des- objeto a que ela se dirige, às suas próprias propriedades
de aqueles que remetem às chamadas “funções básicas”, enquanto instância, estamos diante de um estado vivido
mais diretamente vinculadas ao corpo – como a sensa- com certa duração, portanto como uma espécie de registro
ção e a percepção, passando pelas relacionadas às cha- temporal de determinado ponto onde o seu movimento,
madas “funções intermediárias” – humor, afeto e sensi- constantemente pendular, se situa naquela ocasião. Nesta
bilidade, culminando nas que se associam às chamadas sua contínua relação com o objeto, a consciência se rea-
“funções superiores” – memória, consciência, sentimen- liza em intuições originárias, ou seja, ao modo como os
to, linguagem, pensamento e juízo. Por outro lado, se a fenômenos lhe aparecem. Assim, embora os fenômenos
maioria dos significados elencados nos verbetes podem possuam uma multiplicidade de aspectos, eles aparecem
ser relacionados a estes diferentes níveis do psiquismo, à consciência como uma unidade idêntica a ela mesma,
os quais, no seu conjunto, podemos chamar de “subjetivi- pois esta mesma consciência “tem a capacidade de ligar
dade”, notemos também que alguns deles remetem a algo os aspectos ou estados vividos a outros por meio da sín-
que a ultrapassa, seja por fazer referência à física (sen- tese” (Silva, 2009, p. 45). Poderíamos dizer, então, que
tido enquanto lado de uma coisa, ou enquanto rumo ou as diferentes noções de sentido são o testemunho desse
direção de uma linha, força ou movimento) ou à cultura movimento, evidenciando que, no mundo da vida, o fe-
(sentido enquanto voz de comando e respectiva posição nômeno só existe em ato: suas propriedades não são res-
da tropa no contexto militar). tritas ao objeto em si mesmo, mas só existem em função
Ora, se as definições dos dicionários comuns buscam daquele que o observa e, nessa visada, lhe atribui sentido.
relacionar justamente os diferentes significados dos ter- Considerando-se o exposto, qualquer tentativa de en-
mos conforme o seu emprego cotidiano, num dado con- contrar uma possível “essência” (Wesenshau) da noção
texto linguístico e cultural, podemos compreender essa de sentido só pode ser alcançada a partir e de dentro do
multiplicidade de aspectos relacionados ao termo senti- próprio mundo da vida (Lebenswelt). Conforme nos ensi-
do como ilustrando justamente aquilo que ocorre com a na Merleau-Ponty (1951/1973, p. 50), “é no curso de uma
nossa consciência no mundo da vida (Lebenswelt). Sendo história sedimentada que se dá uma “gênese de sentido”
assim, o termo sentido, no contexto das línguas latinas, (Sinngenesis). No intuito de aprofundarmos essa compre-
parece-nos paradigmático por evidenciar aquilo que ensão de uma espécie de fio ontológico que ata a diversi-
Husserl (1931/2001, p. 48), inspirado em Brentano (1838- dade na unidade – o sentido dos sentidos – procuraremos
1917), chamou de “intencionalidade” da consciência: explorar em mais detalhes, no próximo subitem deste
“particularidade intrínseca e geral que a consciência tem ensaio, as suas diversas nuanças, desde sua concepção
de ser consciência de qualquer coisa, de trazer, na sua enquanto corporeidade, passando pela noção de sensi-
Artigo

qualidade de cogito, o seu cogitatum em si próprio” (grifo bilidade e mentalidade, até sua concepção propriamente
nosso). Essa multiplicidade intrínseca ao termo sentido – teleológica. E, para tanto, caminharemos nas trilhas da

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Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica

reabilitação do sensível, proposta por Merleau-Ponty, em Da mesma forma, todos os seres humanos têm os órgãos
especial em sua Fenomenologia da Percepção (Merleau- dos sentidos similares, mas o modo como suas capacida-
Ponty, 1945/1999). des são usadas e desenvolvidas tornam-se únicas. Cada
um de nós sentimos e percebemos o mundo de uma ma-
neira peculiar, pois isso envolve a própria história, a pró-
2. Da Corporeidade à Transcendência pria cultura e as crenças que advêm da nossa experiência
subjetiva e intersubjetiva.
Se considerarmos a noção de sentido segundo sua Por outro lado, é através do registro dos atos dos cin-
acepção meramente fisiológica, em referência aos órgãos co sentidos que podemos dizer que temos um corpo. Para
receptores que nos trazem impressões sobre os objetos Husserl (1935/2008, p. 42), “homens e bichos não são
externos, estes são “considerados responsáveis pelos di- simples corpos”, mas o corpo é por excelência o meio de
ferentes tipos de sensação que percebemos” (Japiassu & acesso ao mundo e de toda a experiência vivencial pos-
Marcondes, 1996, p. 245). Desta perspectiva, o conceito sível. Ou, para falarmos nos termos de Merleau-Ponty
de sentido relaciona-se, então, à função sensorial do cor- (1945/1999), o corpo “dissolve-se” neste mundo: ele é re-
po humano e é considerado porta aos estímulos do mun- conhecido como fundamento último de todos os proces-
do externo: a sensação é considerada aqui a base para a sos de vivência. E assim, quando, em fenomenologia, nos
percepção e para o conhecimento. Sentido, aqui, seria en- referimos a corpo, não queremos fazer referência apenas à
tão o fenômeno psicológico causado pela estimulação do matéria (Körper), mas ao corpo animado (Leib). Deste
nosso organismo. Segundo esta mesma acepção de sen- modo, não é preciso refletir sobre os limites do próprio
tido, as sensações podem ser classificadas em externas corpo, a todo o momento, mas se tem consciência dele.
ou sensoriais (as que provêm dos órgãos dos sentidos) e O corpo sintetiza a ambiguidade (imanência/transcen-
internas ou orgânicas (que provêm do interior do nosso dência) do ser no mundo. Na visão de Merleau-Ponty
organismo e são conhecidas como sinestesia). Esta última, (1945/1999, p. 207-208), a imanência e a transcen-
então, remete à consciência corporal das próprias funções dência são dois elementos estruturais de qualquer
orgânicas, ou consciência de corporeidade. ato perceptivo: “eu não estou diante de meu corpo, es-
A fenomenologia de Merleau-Ponty veio demons- tou em meu corpo, ou antes, sou meu corpo”.
trar, entretanto, que a delimitação entre sentido ex- Ora, a concepção de uma corporeidade nos remete à
terno e sentido interno é grosseira. Como afirma o noção de sentido também enquanto faculdade para a per-
filósofo (Merleau-Ponty, 1945/1999), embora seja possí- cepção dos objetos exteriores e interiores. No modelo da
vel identificar funcionalmente cada órgão do sentido de psicologia clássica, considera-se que a passagem do sen-
modo isolado, é impossível reduzir o corpo em partes in- tido-sensação para o sentido-percepção é realizada pela
dependentes e de modo desconectado. Deste modo, capacidade intelectual do sujeito do conhecimento que
“os sentidos traduzem-se uns nos outros sem precisar de organiza e dá sentido às sensações. Mais uma vez, a fe-
um intérprete”, como diz Sokolowski (2010, p. 137): nomenologia leva à superação da dicotomia na concepção
do mundo sensível: não se pode estabelecer diferenças
Os vários sentidos efetivam identidades através da entre sensação e percepção, pois nunca temos sensações
sinestesia, do reconhecimento de um único objeto em partes ou de modo pontual, sendo impossível identi-
dado pelos vários sentidos distribuídos em toda parte ficarmos sensações separadas de sua qualidade que, só
de nosso corpo próprio. Essas variedades de partes depois, a mente uniria e organizaria como percepção de
sensíveis, noéticas e noemáticas, servem como uma um objeto único. Na verdade, nós sentimos e percebemos
multiplicidade através da qual objetos vêm a ser iden- formas como totalidades estruturadas e dotadas de sig-
tificados de mais e mais perspectivas: a árvore é vista, nificação e sentido (Chauí, 2003).
ouvida (no vento), tocada, cheirada; caminhamos em Para a fenomenologia, então, a percepção constitui-se
volta e subimos nela; podamos seus ramos e rompe- uma fusão de sujeito-mundo, uma vivência verdadeira de
mos pedaços de casca morta; e em tudo isso uma e a uma experiência simultaneamente imediata e anterior a
mesma árvore é registrada em sua identidade e suas uma reflexão, num hipotético e espontâneo acordo sujei-
muitas características. to e mundo. A percepção é sempre a percepção de algo, e
nesse ato tem-se não só o sujeito, mas também um objeto
Assim, em relação ao sentido enquanto sensação, para ele. Assim, o sentido definido como capacidade per-
observa-se que ninguém diz que “sente” quando usa os ceptiva é uma função cerebral que confere significado a
sentidos fisiológicos. Em vez disso, há uma apropria- estímulos sensoriais a partir da experiência de vida ou
ção das qualidades aos seres mais amplos e complexos da memória. E é, também, simultaneamente, atividade
do que a sensação isolada de sua qualidade como parte sensível, emotiva e cognitiva que organiza e interpreta
integrante. E então, ao invés de dizermos que sentimos as impressões sensoriais, de modo intrínseco à própria
Artigo

o frio, vemos o verde e engolimos o doce, dizemos que conexão cerebral de todas elas para formar a percepção,
a água está fria, a mata é verde e que a fruta está doce. utilizando-se da sinestesia, associação espontânea entre

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sensações de natureza diferente, mas que se mostram in- tenham uma relação contratual na qual o cérebro con-
timamente ligadas, variando segundo o sujeito da percep- corda em acreditar no que os olhos veem, mas, por sua
ção. Deste modo, para Merleau-Ponty (1945/1999, p. 68), vez, o olho concorda em ver aquilo que o cérebro quer.”
“nenhuma análise da percepção poder ignorar a percep- (Gilbert, 2006, p. 154) Da mesma forma, o sentido, en-
ção como fenômeno original, sob pena de ignorar-se a si quanto pensamento, não se realiza separado do
mesma enquanto análise”. Afinal, ela é a configuração e sentido-sentimento: “o sujeito pensante está ele próprio
a organização de todos esses elementos que a mente in- numa espécie de ignorância de seus pensamentos en-
tegrou nas experiências passadas, ligando e unificando- quanto não os formulou ainda para si, ou mesmo não os
-as, escolhendo-as por meio dos fatores de significação disse ou escreveu.” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 241).
da linguagem e da cultura de cada um. E não se pode separar o sujeito pensante do sujeito “sen-
Nas definições de dicionários da Língua Portuguesa, tinte”. O sujeito “sentinte” está também numa espécie de
o termo sentido é também empregado para se referir ao ignorância ou inoperância de seus sentimentos, enquan-
“sentir em ato” (feeling), ou ainda ao sentimento (feeling to não os expressar. A expressão poderá ser pela fala e
of), como uma reação afetiva ao que já ocorreu e como esta será uma fala primária quando falar o próprio senti-
significado substantivado experimentado em relação a di- mento. Deste modo, ao sentido de felicidade que alguém
versos fenômenos na vida, objetos, pessoas ou situações experimenta ao ouvir uma música, considera-se como
intelectuais ou morais. Aqui o termo é geralmente em- uma sensação, mas ao estado agradável e de prazer que
pregado para referir-se ao sentimento que se viveu. Em permanece nesta sensação é o que se torna sentimento.
psicologia, é também considerado um estado afetivo ge- A sensação que obtemos ao ouvir a música é passiva, pois
ral, frequentemente relacionado por oposição ao conheci- não passa por um processo ativo de apreensão. Já o sen-
mento (Durozol, 1996) e como resultante de percepções timento depende da essência da música e da observação
sensoriais ou representações mentais. Segundo ou- da pessoa. A percepção do sentimento é um processo ati-
tra acepção, também comum em psicologia, sentido- vo e empírico de compreensão objetiva. Nas palavras de
-sentimento constitui-se numa espécie de emoção Merleau-Ponty (1945/1999, p. 178): “Os sentidos, e em ge-
mais delicada e de maior duração, representando ral, o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto
formas afetivas mais estáveis, e distinguindo-se da que sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade,
emoção propriamente dita por ser revestido de um emite, para além de si mesmo, significações capazes de
número maior de elementos intelectuais (Sousa, fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos
2006). Como veremos a seguir, de novo a fenome- e de experiências.”
nologia vem mostrar ser artificial esta dicotomia. Assim, para o filósofo, o corpo é forma de expres-
Para Merleau-Ponty, os sentimentos constituem uma são, pleno de intencionalidade e poder de significação.
linguagem, pois as formas de expressão dos sentimentos Cada movimento, cada gesto produzido é também pleno
não são naturalmente dadas. As manifestações dos sen- de sentidos, e o sentido dos gestos não é apenas dado,
timentos são variadas e mas passam necessariamente mas sobretudo, compreendido: “O corpo próprio está no
pelo corpo. O próprio corpo é também o próprio ponto mundo assim como o coração no organismo; ele mantém
de vista sobre o mundo, o mediador entre a consciência o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e
e o mundo (Merleau-Ponty, 1945/1999). Portanto, todo alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”
ato físico terá um sentido interior. Todo sentimento terá (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 273). O caminho proposto
sua contrapartida física e vice-versa: o homem conside- é partir do corpo como mediador à via do sentido, que é
rado concretamente não é apenas um psiquismo unido a também o caminho da pessoa, do afeto, do pensamento,
um organismo, mas uma constante oscilação da existên- da linguagem e da comunicação.
cia que ora é corporal e ora se dirige aos atos pessoais. A linguagem e a comunicação remetem-nos à acepção
Enfim, o corpo próprio não pode ser observado como a de sentido enquanto significado (meaning), termo tam-
um objeto, pois meu corpo existe comigo (Merleau-Ponty, bém polissêmico, conforme se constata nos dicionários
1945/1999). Sendo assim, o corpo próprio é, simultanea- e no mundo da vida. Assim, ele pode referir-se a uma
mente, o sujeito da sensação, da percepção, do sentimen- categoria linguística ou a uma interpretação específica,
to e do pensamento. neste caso como significação, com uma intenção ou um
E aqui, então, nos deparamos com outra acepção de fim determinado. É empregado também para se referir à
sentido comum nos dicionários: o sentido enquanto espí- expressividade de uma palavra, sua aceitação, sua inten-
rito, juízo e pensamento. Para Merleau-Ponty (1945/1999, ção, sua significação, seu conteúdo semântico ou lexical.
p. 241), sentido-pensamento não se dá de modo dissocia- Refere-se, ainda, tanto ao objetivo subjacente ou destinado
do de sentido-percepção: “A visão é um pensamento pela ação, pela fala ou outro modo de expressão, enfim, ao
sujeito a um certo campo e é isso que chamamos conteúdo válido, como também à interpretação interna,
de um sentido” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 292). simbólica ou real, o valor ou a mensagem do significado
Artigo

Dito de outro modo, este pensamento está para esta de algo, como por exemplo, de um sonho. Por último, o
visão e “no final das contas, o cérebro e o olho talvez significado pode ser ainda a definição, a explicação,

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Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica

a elucidação, a denotação discutindo sobre o signi- uma frase é seu propósito ou sua intenção, o que supõe
ficado exato da palavra, sua finalidade, seu objetivo ainda um ponto de partida e um ponto de chegada, uma
final, a ideia, o projeto, o objeto, a intenção (Collins visada, um ponto de vista.” Para o filósofo, a fala surge
Thesaurus, 2003/2008). No campo específico da lexico- como gesto do corpo que estabelece uma relação de sen-
logia e da linguística, entretanto, entende-se por sentido, tido com o mundo, e “procurando descrever o fenômeno
enquanto significado, “cada um dos significados de uma da fala e o ato expresso de significação poderemos ultra-
palavra ou locução; acepção” (Dicionário Houaiss). Aqui passar definitivamente a dicotomia clássica entre sujeito
falamos do sentido como parte de um signo linguístico, e objeto” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 237).
como um significado bem definido, denotativo, ao modo Nessa compreensão de corporeidade, então, vê-se que
de um conceito, já definido previamente, dicionarizado. a noção de sentido se desloca para além da própria subje-
Se as definições anteriores parecem remeter a uma tividade, para incluir também a noção de espacialidade
desvinculação entre sentido enquanto sensorialidade/per- e temporalidade. E, por consequência, da intersubjetivi-
cepção e sentido linguístico, dando a impressão de que dade. Ser corpo, então, é estar ligado ao mundo; e o cor-
a linguagem nos distancia do corpo próprio, ressalte-se po não está no espaço primeiramente: “ele é no espaço”
que a fenomenologia compreende-a como sendo ainda (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 205). Sendo assim, a per-
uma extensão dele. Para Husserl (1901/2000), a intencio- cepção, em seus diferentes níveis, nos leva ao movimen-
nalidade linguística categorial simplesmente humaniza to em direção intencional ao mundo segundo as normas
a percepção, a recordação, a imaginação e as eleva a um vitais do organismo, manifestando a atitude de se orien-
nível mais racional, no qual o objeto é desdobrado dian- tar em direção ao mundo. Pelo movimento nos comuni-
te de nós. Como tal, ela está relacionada ao chamado ato camos e nos relacionamos com tudo o que está ao nosso
perceptivo categorial, ou ideal, um nível terciário do pro- redor. Desde a mais tenra infância, é por meio da ativida-
cesso contínuo de percepção, que se nos revela como uma de motora que a criança se desenvolve e por adaptações
fusão de atos parciais num único ato. Como esclarecem contínuas vai adquirindo informações mais complexas,
Castro, Castro e Castro (2009, p. 96) diversificadas e progressivamente mais elaboradas. A ca-
pacidade de nos movimentar permite respostas apropria-
(...) no ato perceptivo categorial desdobramos o objeto das ao ambiente, o que implica que a nossa orientação de
diante de nós, destacamos as partes, estabelecemos atenção se concentra mais nas ações que fazemos do que
relações entre estas partes destacadas, sejam relações nos movimentos propriamente ditos.
de uma com a outra, sejam relações das partes com o O exposto acima nos remete a outro conjunto de sig-
todo, e por meio dessa percepção, dessa nova manei- nificados mormente dado ao termo sentido, qual seja, o
ra de apreensão, os membros ligados e relacionados de direção. Mas, a palavra direção também é polissêmica.
ganham o caráter de “partes” ou, respectivamente, Assim, numa primeira visada, ela pode se referir ao mo-
de “todos”. vimento físico – para frente, para trás, para o lado, para
cima, para baixo, o qual se relaciona às direções bá-
Deste modo, a intencionalidade categorial é um tipo sicas de espaço: norte, sul, leste e oeste. O sentido
de identificação predicativa que vem suplementar e com- como direção é uma linha que conduz a um lugar
pletar a que foi alcançada na experiência pré-predicativa. ou ponto. É o itinerário, a rota, o caminho – uma
Ela nos eleva a um nível humano de construção da ver- linha estabelecida de viagens ou acesso: a direção
dade que envolve a linguagem e o raciocínio. O seu con- ou o caminho, a relação espacial, ao longo da qual
texto é, portanto, tão amplo e extenso como a gramática algo se move ou ao longo do qual se situa a tendên-
da linguagem humana. As categorias servem como prin- cia, as linhas gerais de orientação.
cípio para a classificação onde os assuntos são integrados Por outro lado, no seu sentido ideativo, dire-
numa estrutura que constitui o universo de conhecimen- ção pode ser também um curso geral, no tempo,
to. Os objetos categoriais são modos nos quais as coisas ao longo do qual algo tem uma tendência a desen-
se apresentam. Aqui se evidencia a linguagem como um volver. Refere-se, portanto, a uma inclinação, uma
instrumento usado para a concepção do mundo, mas sua tendência, uma disposição, uma atitude da mente.
função de projetar esse mundo não se exaure no que pode Este sentido é também o que mostra se a pessoa tem um
ser alcançado a partir de um exame dos significados de plano de vida traçado, se ela está pensando no seu futu-
palavras lexicais. De fato, o processo de significação ex- ro e o construindo no presente. Simultaneamente, di-
trapola o significado denotativo das palavras, incluindo reção é algo que fornece direcionamento ou conse-
a intencionalidade de quem está atribuindo significação. lho a respeito de uma decisão ou curso de ação de
Podemos pensar aqui em termos do significado que uma aconselhamento, orientação, conselhos, mapas de
experiência tem para uma determinada pessoa. Por ser estradas, um plano detalhado ou uma explicação
intencional, a consciência humana sempre “faz o mundo para orientá-lo no estabelecimento de normas ou
Artigo

aparecer como significação” (Zilles, 2002, p. 30). Como determinar um curso de ação (Collins Thesaurus,
explica Merleau-Ponty (1945/1999, p. 576), “o sentido de 2003/2008).

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Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins

Todos esses sentidos do termo “direção” possi- pela retomada de minhas experiências passadas em
bilitam o direcionamento de um ato, tal como na noção minhas experiências presentes, da experiência do
de intencionalidade: “A intencionalidade da consciên- outro na minha.
cia é tal que alcança o mundo exterior todo o tempo, até
quando tem por alvo coisas que não estão diante dela” Podemos então compreender que as significações do
(Sokolowski, 2010, p. 107). Assim, a intencionalidade termo sentido – variando desde suas acepções físicas e
do ato perceptivo, em seus diversos níveis, do orgâni- sensoriais até aquelas de cunho idealizado e relacional –
co ao ideativo, expressa-se através do corpo fenomenal apontam para uma vida consciente baseada no cam-
e configura-se no meio existencial. É dessa forma que po da experiência corporal pré-predicativa e que se
Merleau-Ponty (1945/1999) argumenta que espacialida- desdobra em experiência reflexiva e intersubjetiva.
de e esquema corporal convergem para o princípio on- Deste modo, em toda percepção, tem-se também a
tológico do ser-no-mundo. E mais, o corpo como ser contradição entre a imanência e a transcendência,
físico está presente, mas sem desconsiderar sua que, na visão de Merleau-Ponty (1945/1999), são dois
capacidade de transcendência. O corpo fenomenal é elementos estruturais de qualquer ato perceptivo,
compreendido como o lugar existencial do ser-no-mun- de modo que, sempre, objeto percebido é também
do; seu ethos. Na fenomenologia, corporalidade é a rela- conhecido ao sujeito que o percebe (imanência).
ção indissolúvel do corpo com o tempo, com o espaço Por outro lado, toda percepção de algo tem uma
e com o outro: a corporalidade não é apenas sinônima não-percepção de alguma coisa que está para além
de um “eu”, é também sinônimo de maneiras de viver do dado imediato, e que a transcende. Em outras
o tempo e o espaço. palavras, toda vez que se tem consciência de algo,
O corpo é uma potência que nasce em conjunto com abre-se a possibilidade de não conhecer outros as-
um meio e se sincroniza com ele. Por isto também o tem- pectos relacionados ao objeto percebido. Deste modo,
po só existe como passado, presente e futuro na medi- quando estudamos um fenômeno temos apenas uma per-
da em que se relaciona com o ser. Para Merleau-Ponty, cepção parcial porque a experiência acompanha uma mis-
portanto, o tempo não é apenas uma linha, mas antes, tura de presença e ausência. “A percepção, então, envolve
uma rede de intencionalidades. No âmbito desta rede, a camadas de sínteses, camadas de múltiplas presentações,
consciência se volta para o mundo num modo de rela- que são de dois tipos, atual e potencial” (Sokolowski, 2010,
ção que não envolve uma compreensão racional a priori, p. 28). E a identidade de um objeto transcende suas múl-
mas um movimento próprio de si mesma em direção ao tiplas manifestações porque vai além delas.
mundo, desde uma perspectiva pré-reflexiva. E é desta Assim, o sentido como transcendência, na feno-
maneira que se pode compreender a noção de sentido menologia, é aquilo que ultrapassa a própria ativi-
também como intuição (Anschaunng), considerada em dade e alcance da consciência. As noções de noese
fenomenologia fonte de autoridade para o conhecimen- e noema podem nos auxiliar aqui. Enquanto noese
to (Martins & Bicudo, 1989). De fato, a fenomenologia é termo empregado para se referir à própria atividade da
de Husserl busca “uma intuição originária”, nos moldes consciência (sujeito intencionado), noema é usado em re-
em que a descreve Dartigues (1973, p. 21): “se é verdade ferência ao objeto (intuído) constituído por essa ativida-
que os fenômenos se dão a nós por intermédio dos sen- de, entendendo que há um mesmo campo de análise no
tidos, eles se dão sempre como dotados de um sentido qual a consciência aparece como se projetando para fora
ou de uma “essência”. Eis por que, para além dos dados de si em direção a seu objeto e o objeto como fazendo re-
dos sentidos, a intuição será uma intuição da essência ferência aos atos da consciência (Dartigues, 1973). A no-
ou do sentido.” ese e o noema ocorrem simultaneamente, em contínuo
Deste modo, infere-se que a intuição da essência se movimento, porque não há objeto em si, verdade em si,
distingue da percepção do fato. Ela é a própria visão do mas sempre em perspectivas e com sentido na esfera de
sentido ideal que se atribui ao fato materialmente dado e, compreensão do sujeito. A transcendência seria, então, o
ao mesmo tempo, o que se permite identificá-lo. Merleau- contínuo “pôr a descoberto” os diversos níveis que cons-
Ponty (1945/1999, p. 18) afirma que “porque estamos no tituem o mundo da vida na busca de sentido.
mundo, estamos condenados ao sentido” e, assim, leva-nos Pode-se dizer, enfim, que a fenomenologia é um
a compreender o sentido também em termos de empatia, método de transcendência em seu contínuo e pro-
que se realiza na experiência intersubjetiva: gressivo desvelamento do ser, do mundo e do ser-
-no-mundo. É um constante conhecer-se e este co-
O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o nhecimento passa pelo corpo, pois este não pode
sentido que transparece na intersecção de minhas ser entendido como um simples organismo. Ele é
experiências, e na intersecção de minhas experiências também cultura, transcendendo o aspecto físico e,
com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 257),
Artigo

outras; ele é, portanto inseparável da subjetividade “o uso que um homem fará de seu corpo é transcen-
e da intersubjetividade que formam sua unidade dente com respeito a este corpo como ser simples-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012 150


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica

mente biológico”. Então se o corpo não é somente apaga o fogo, é água que afoga, é água que rega a planta,
biológico, os comportamentos derivados dele tam- é água purificadora, é água benta... Nenhum destes mo-
bém não o podem ser. Para ele o corpo sintetiza a am- dos de ser água é menos verdadeiro que outro, embora se
biguidade (imanência/transcendência) do ser no mundo. saiba que, na ausência da água que mata a sede, a pessoa
Ele não é, diretamente, a única forma de expressão, pois é morre. Daí a proposta husserliana de retorno às coisas
também um ser de linguagem, como expressão que modi- mesmas, tal como elas aparecem no mundo da vida, para
fica e transcende o fenômeno dado na percepção, ou seja, as pessoas de carne e osso. O mundo da vida apresenta
transcende a si mesma, pois seu movimento vai sempre no essa riqueza de possibilidades e a fenomenologia busca
sentido de ir além das relações entre um mundo e outro. estar alerta para captá-la em todas as suas facetas, e mais
A atitude fenomenológica e a redução fenomeno- ainda: entende que a ciência só tem valor se ela estiver
lógica são frequentemente denominadas transcen- reconhecidamente comprometida com o mundo da vida.
dentais, tal como Husserl define o transcendental Este, sim, é o que lhe oferece a fundamentação axiológica;
e Sokolowski a descreve (2010, p. 67): é dele, por ele e para ele que a ciência foi desenvolvida.
Nas palavras de Merleau-Ponty (1945/1999, p. 3): “Todo o
A palavra significa ir além, baseada na sua raiz latina, universo da ciência é construído sobre o mundo vivido,
transcendere, elevar-se sobre ou ir além, de trans e e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apre-
scando. A consciência, mesmo na atitude natural, é ciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos
transcendental porque ela vai além de si mesma, até as primeiramente despertar essa experiência do mundo da
identidades e coisas que lhe são dadas. O ego pode ser qual ela é expressão segunda.”
chamado transcendental à medida que é envolvido, Desta perspectiva, então, qualquer formulação teóri-
em cognição, no alcance das coisas. O ego transcen- co-conceitual acerca de um objeto ou termo deve voltar-
dental é o ego ou o si mesmo como o agente da verdade. -se inicialmente para os homens enquanto pessoas, para
A redução transcendental é o giro em direção ao ego suas vidas e realizações existenciais. E como o esclare-
como o agente da verdade, e a atitude transcendental cera Husserl (1935/2008, p. 12), vida aqui não é tomada
é a instância que assumimos quando exercermos esse apenas no seu aspecto fisiológico, mas sim “vida ativa em
ego e suas intencionalidades temáticas. vista de fins, realizadora de formações espirituais – no
sentido mais lato, vida criadora de cultura na unidade
Vê-se, assim, que a transcendência está também re- de uma historicidade”. Tal perspectiva implica em supe-
lacionada ao sujeito. Para Bicudo (1999, p. 20), a trans- rar, pois, a dicotomia entre naturante e naturado, entre
cendência, na fenomenologia, é “uma percepção retros- verdade objetiva e verdade subjetiva, entre o ser real das
pectiva do vivido, de modo que haja evidência dos fatos coisas e o seu parecer.
geradores do noema.” Já Zilles (2001, p. 515) diz que “a Ora, através do olhar fenomenológico, parece-nos que
subjetividade realiza-se na medida em que se transcen- o termo sentido e sua multiplicidade de significações é
de a si mesma por opção da liberdade.” Este sujeito não uma ilustração de que a realidade não é única, estável ou
é apenas psicológico, um ser que vive no mundo, universal, como o quer o princípio da não-contradição.
mas um ser transcendente, aquele que vê o mun- Ao contrário, a realidade do mundo da vida é múltipla,
do como um conjunto de unidades de sentidos. variante e relativa, dependendo do olhar que lancemos
Poderíamos dizer, então, que a transcendência é o sobre ela. E isso se dá não por uma falha conceitual ou
sentido do sentido. metodológica, mas pela própria natureza do mundo da
E é este mesmo sujeito que, em vendo – e vivendo – o vida, que inclui tanto o ser como o parecer ser de qual-
mundo como um conjunto de unidades de sentido, for- quer coisa em que nele se apresente. Ou seja, a realidade
mula, a partir de sua experiência no mundo, os múltiplos no mundo da vida se dá não apenas a partir do que dela
significados de um mesmo termo, os quais identificamos, se mostra, mas também do que dela própria se transcende.
sob a forma de verbete, na composição dos dicionários Esse modo de compreensão poderia ser apontado
comuns. Podemos compreender, então, suas múltiplas como metafísico, no sentido mais tradicional do termo.
significações como um conjunto de modalidades expres- Mas, tal como o poeta homônimo de Fernando Pessoa,
sivas que se configuram, no mundo da vida, da imanên- Alberto Caeiro, nos mostra que há metafísica bastan-
cia à transcendência, como que condensadas num único te em não pensar em nada, a fenomenologia criada por
e mesmo termo: sentido. Husserl vem mostrar que justamente a perspectiva posi-
tivista, que exige objetividade em lugar da expressivida-
de, é que se caracterizaria como verdadeira metafísica.
3. Das Modalidades Expressivas ao Mundo da Vida Afinal, ela entende que podemos superar a suposta ilu-
são dos sentidos a partir de determinados procedimen-
No mundo da vida, água não é apenas H2O. Ela é tos metodológicos. Ora, ao fazer isso, ela se funda sobre
Artigo

muito mais: é agua que mata a sede, é agua refrescante, um paradoxo: seria um determinado olhar, metodologi-
é água solvente, é água da maré baixa ou alta, é água que camente controlado, que nos levaria à verdade das coisas

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Marta H. Freitas; Rita C. Araújo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins

mesmas. Ou seja, sem se dar conta, a perspectiva posi- surável. A palavra sentido se mostra como um símbolo
tivista parte do princípio de que a objetividade não es- que contém múltiplos elementos, os quais, por sua vez,
taria no objeto em si, mas no olhar que ela mesma lança remetem a tantos outros elementos simbólicos, ilustran-
para o objeto; a objetividade estaria no procedimento e do o modo como Amatuzzi (1996, p. 20), ao fundamentar
não na realidade; seria o olhar do cientista que atribui- teoricamente o uso da versão de sentido, define símbolo:
ria a objetividade à mesma. Ao qualificar o sentido, nas aquilo “que em si mesmo “reúne”, põe junto uma série
suas mais variadas expressões, a fenomenologia assume de coisas que antes estavam separadas, e o faz intencio-
que a essência estaria na própria aparência das coisas, nalmente”. Há, implícita nesta multiplicidade unificada
compreendendo que faz parte das coisas parecerem di- por meio de um mesmo símbolo, uma qualificação do
ferentes sob diferentes olhares. Ou seja, é da natureza do movimento perceptivo-intuitivo, nos moldes em que o
real mostrar-se e ocultar-se continuamente: as coisas se descreve Merleau-Ponty (1945/1999, p. 63):
mostram sob um determinado olhar, mas elas também
se escondem a esse mesmo olhar. (...) perceber no sentido pleno da palavra, que se
Do mesmo modo, se cada significado do termo sen- opõe a imaginar, não é julgar, é aprender com sen-
tido parece esconder o outro, ele também o mostra, não tido imanente ao sensível antes de qualquer juízo.
apenas pela sonoridade ou grafia de uma mesma palavra O fenômeno da percepção verdadeira oferece, portan-
(sentido), mas pela dimensão de corporeidade e transcen- to, uma significação inerente aos signos, e do qual o
dência que se estendem desde sua concepção enquanto juízo é apenas a expressão facultativa.
sensorialidade, passando pelos campos da sensibilidade –
afeto e sentimento, da intersubjetividade – empatia e bom Pensemos no beijo por exemplo. O beijo envolve o sen-
senso, da racionalidade – pensamento, conceito e juízo, tido do tato, do paladar, do olfato, mas também envolve
mas realizando-se sempre no campo da espacialidade e sentimento e um significado, que pode ser de paixão ou
da temporalidade – direção, destino – e culminando no de indiferença. Envolve também uma noção de direção,
campo da teleologia – propósito, finalidade. podendo apontar para um desfecho da relação (um beijo
frio, por exemplo) ou para um aprofundamento da mesma
(um beijo apaixonado). E pode, ainda, conter elementos da
4. O Sentido dos Sentidos: entre o Buquê e o Jardim ordem do ideal – romântico, sagrado ou religioso – quan-
do se realiza também na metáfora do beijar o sapo, no ato
Para compreendermos a noção de sentido em uma de beijar a mão dos avós, ou no ritual de beijar o santo.
perspectiva fenomenológica, podemos fazer uma ana- Esses sentidos não são vividos pelas pessoas de maneira
logia com o buquê de flores, tal como na semiologia de isolada, mas apreendidos como um todo. Portanto, um
Roland Barthes (1966/2008). Sabemos que o buquê é com- conceito que se quer fiel e completo ao sentido deste ver-
posto por várias flores individuais, mas o buquê é mais bo – beijar – há que se referir a todas essas significações
que isso. Podemos dizer, acompanhando a Psicologia da de modo intrinsecamente articulado.
Gestalt, que o todo é maior que a soma de suas partes. Ao tentarmos descrever o buquê de sentidos, pode-
O mesmo vale para a questão do sentido. O sentido total mos falar dos diferentes aspectos separadamente, mas
da experiência engloba todas as modalidades de sentido apenas para fins didáticos, como fazem os dicionários
apontadas no verbete de um dicionário, mas de modo in- em cada item dos seus verbetes. Mas no mundo da vida
tegrado e interconectado. Assim, o que o corpo sente não eles são experimentados sempre como um todo integra-
é separado do significado e da sensação, isto é, a experi- do. Não existe sensação pura quando se trata de experi-
ência corporal só pode ser entendida como uma realida- ência humana. O sentido enquanto percepção fisiológica
de subjetiva onde o corpo, a percepção dele e os signifi- não existe separado do todo. Toda sensação é já imedia-
cados a que remetem se unem numa experiência única tamente interpretação, significação. Um calafrio não é
que vai além dos limites do corpo em si. só uma experiência fisiológica – contração involuntária
Se a ciência objetivista teve como consequência um de músculos somáticos – mas pode ser significado como
empobrecimento da rica realidade do mundo da vida, a medo ou quem sabe como a passagem de um espírito por
fenomenologia, ao resgatar a noção de sentido, vem propor perto, como assim o interpretam alguns. Esta última for-
a compreensão da realidade humana na sua proposta de ma de interpretar o calafrio não é menos verdade para
retorno às coisas mesmas, de forma complexa, dinâmica, a fenomenologia do que aquela primeira, pois ela tam-
com múltiplas possibilidades de significação. Diríamos bém emerge na interação dos humanos com as coisas.
que o termo sentido é paradigmático em mostrar suas vá- O mundo, na perspectiva fenomenológica, é uma trama
rias nuanças e, ao mesmo tempo, em superar a fragmen- de significação. O mundo é também o conjunto de signi-
tação da realidade. De alguma forma, a própria lingua- ficados que atribuímos a ele. Nós somos os agentes cria-
gem humana, através da polissemia do vocábulo sentido, dores da realidade e toda realidade só existe em função
Artigo

conseguiu apreender a polivalência e multiplicidade do de uma consciência que a apreende como tal. Qualquer
mundo perceptivo que não é o mundo meramente men- ponto de vista é apenas a vista de um ponto. Qualificar

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012 152


Os Sentidos do Sentido: Uma Leitura Fenomenológica

o sentido dos sentidos, portanto, marca uma diferença fatiar a rosa inteira, mas nunca vamos encontrar toda a
epistemológica, assim explicitada por Merleau-Ponty beleza dela nas suas partes. E mesmo que as rosas não
(1945/1999, p. 13-14): falem, sua poesia só é apreendida no todo, como bem sa-
bem os poetas.
(...) não é preciso perguntar-se se nós percebemos Com isso, no entanto, não estamos afirmando que o
verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao método analítico não sirva para nada e que deva, simples-
contrário: o mundo é aquilo que nós percebemos. (...) mente, ser substituído. Propomos apenas a superação do
O mundo não é não aquilo que eu penso, mas aquilo equívoco de acreditarmos na soberania de sua perspec-
que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico tiva. Estamos, portanto, chamando a atenção para a im-
indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é portância de se olhar também para o todo, pois é assim
inesgotável. que a realidade se apresenta em nossas vidas. A fragmen-
tação da realidade obstrui a apreensão da multiplicidade
Justamente por ser fugidio, o termo é paradigmático na unidade e respectiva amplidão do sentido das coisas,
do quanto é relevante ater-se à sintaxe enquanto tecido posto que este só pode ser apreendido num movimento
conectivo dos juízes: todo significado é definido por re- de síntese, integrativo.
lação. Um chapéu sobre a cabeça de um camponês é um Se olharmos para o verbete-buquê – os sentidos do
simples utilitário de proteção contra o sol; sobre a cabe- sentido – apenas de modo analítico, estamos nos alienan-
ça de uma dama de cerimônia, é um adorno; na fronte do do mundo da vida, justamente o jardim provedor de
de um cardeal, é um símbolo de poder; na mão esten- todas as flores que o constituem. E ao fazemos isso, es-
dida de um mendigo, significa um pedido de auxílio. tamos condenando toda uma civilização ao padecimento
Do mesmo modo, um cachimbo na poltrona do escritó- das duras consequências de uma perspectiva meramente
rio indica circunspecção e tranquilidade; no volante de tecnicista, alienada do próprio solo que a fertiliza. É ver-
um veículo, extravagância; no interior de um quadro de dade que, ao nos voltarmos para o jardim – o sentido dos
hospital, desrespeito e insensibilidade. (Fiorin & Platão, sentidos, certamente que não encontramos aí apenas as
1998). Ou seja, no mundo da vida, do mesmo modo como flores. Nele há ainda, dentre outras tantas coisas, os ins-
no mundo mágico da ficção, o contexto – dimensão de trumentos do jardineiro, assim como também o estrume
espaço e de tempo – interfere no significado das ações que fertiliza o solo. Devemos reconhecer, no entanto, tal
dos personagens. Deste modo, sem o princípio metódico como nos recomenda o poético Wittgenstein (1980/1996)
da evidência no próprio mundo da vida, “a linguagem nos seus manuscritos, o que aí os distingue não é mera-
comum é fugidia, equívoca, muito pouco exigente quan- mente o seu valor, mas – sobretudo – suas funções no jar-
to à adequação dos termos”. É justamente por isso que, dim. Acreditamos que distinguir e reconhecer tais fun-
nas situações onde seus meios de expressão são empre- ções se torna absolutamente imprescindível tanto para a
gados “será preciso conferir às significações um novo ciência quanto para a prática psicológica que se queiram
fundamento, orientá-los de modo original sobre esses realmente efetivas no mundo da vida.
significados fundamentados em nova forma” (Husserl,
1931/2001, p. 31): a descrição da estrutura total da ex-
periência vivida e seus respectivos significados para os Referências
seres que a vivenciam.
Se cada item de um verbete de um dicionário comum, Amatuzzi, M. M. (1996). O uso da versão de sentido na forma-
ao remeter às diversas significações possíveis para o ter- ção e pesquisa em Psicologia. In R. M. L. L. Carvalho (org.),
Repensando a formação do psicólogo: da informação à des-
mo sentido, nos falam de rosas individuais, neste ensaio
coberta (pp. 12-24). Coletâneas da ANPEPP, 1 (9).
o que buscamos alcançar foi o buquê. A fenomenologia
nos ajudou neste processo justamente por contrapor-se a Barthes, R. (2008). Introdução a Análise Estrutural da Narrati-
um determinado modo de fazer ciência psicológica que va. In R. Barthes e cols. Análise Estrutural da Narrativa
privilegia os métodos meramente analíticos, de decom- (pp. 18-58). (M. Pinto, Trad.). Petrópolis: Vozes. (Publicação
posição da realidade em partes, como se as partes fossem original em 1966).
mais importantes que o todo, ou como se apenas fosse Bicudo, M.A.V. & Cappelletti, I. F. (org.) (1999). Fenomenologia:
possível compreender o todo a partir da soma das par- uma visão abrangente da educação. São Paulo: Olho d’Água.
tes. Ora, quando enviamos ou recebemos um buquê, se o
exame de cada rosa reduz-se à percepção da mesma como Castro, R. C.; Castro, M. C. & Castro, J. C. (2009). A comunica-
ção linguística de uma perspectiva da Fenomenologia de
pedúnculo, receptáculo, sépalas, estames, carpelos, an-
E. Husserl. Contingentia, 4(1): 93-107.
tera, gineceu, etc, tal como faria o biólogo ao fragmentar
a flor em infinitas partes, o sentido do buquê, como um Chauí, M. (2003). Convite à filosofia. São Paulo: Ática.
todo, desaparece. Cadê a poesia que estava alí? Ora, no
Artigo

Collins Thesaurus (2003-2008). Meaning. Princeton University,


mundo da vida, as rosas são vividas como beleza, como
USA. [Citado 02 outubro 2010]. Disponível na World Wide
romance, como amor, enfim, como significação. Podemos Web: http://www.thefreedictionary.com/meaning

153 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012


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Louvain (Bélgica), Professor Titular da Universidade de Brasília,
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Psiquiatra, Psicanalista, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-
Paulo: Martins Fontes. (Original de 1945). -Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de
Brasília (UCB). Email: fmartins@unb.br
Michaelis (1998/2009) – Moderno Dicionário da Língua Portu-
guesa. [Citado 22 abril 2012]. São Paulo: Melhoramen-
tos. Disponível na World Wide Web: http://michelis.uol.
com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues Recebido em 25.04.2012
-portugues&palavra=sentido. Aceito em 26.09.2012
Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012 154


A Força da Palavra em Nicolau de Cusa

A FORÇA DA PALAVRA EM NICOLAU DE CUSA

Power of the Word and According to Nicholas of Cusa

La Fuerza de la Palabra en Nicolás De Cusa

Sonia Lyra

Resumo: A partir do momento em que se transpõe a dialética dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força da palavra
devidamente potencializada o que vai poder mover o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de cada palavra.
A força das palavras aparece, como uma contracção da força da mente, que se ‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no
mais fundo delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só podem ser entendidas nesse jogo dinâmico que se es-
tabelece entre as coisas do mundo externo e seu referente interno, isto é, a mente. O discernimento é passado inicialmente,
como propõe Nicolau de Cusa, por imagens sensíveis, continuando a proposta de Jesus, que falou inicialmente por figuras,
mas disse também que chegaria a hora em que já não falaria por figuras, mas claramente, pois as palavras que de Deus re-
cebeu, ele as deu aos homens cumprindo-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat verbum), no qual subjaz o
poder criador da palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria do conhecimento se reconheçam as limitações da palavra
e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no conhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade, ultrapassa tudo.
Palavras-chave: Nicolau de Cusa; Força da palavra; Dialética; Verbo.

Resumen: A partir del momento en que se transpone la dialéctica de los símbolos rumbo a la experiência mística, es la fuerza
de la palabra debidamente potencializada, lo que hará hacer estremecer al oyente, una vez que hay una fuerza oculta detrás
de cada palabra. La fuerza de las palabras aparece como una contracción de la fueza mental, que se ‘explica’ en las múltiples
palabras que son en lo más fondo de las mismas, núcleos energéticos discursivos y que solo pueden ser compreendidas en ese
juego dinámico, que se estabelece entre las cosas del mundo externo y su referente interno, esto es, la mente. El discernimiento
es pasado inicialmente como lo propone Nicolás de Cusa, por imágenes sensibles, dándole continuidad a la propuesta de Jesús;
que habla inicialmente por figuras, pero también disse que llegaría la hora en que no hablaría mas por médio de figuras, pero
claramente, pues las palabras que de Dios recibió, él se las dio a los hombres cumpliendo la profecia: En el pincipio era el verbo
(In principio erat verbum) en el cual subyace el poder crador de la palabra. La propuesta del Cusano es que en esta teoria de con-
ocimiento sean reconocidas las de limitaciones de la palabra y del discurso, inscribiéndose en su propia dialéctica, en el cono-
cimiento intelectual de la Trinidad, lo cual en la unidad lo ultra passa todo.
Palabras-clave: Nicolás de Cusa; Fuerza de la palabra; Dialéctica; Verbo.

Abstract: From the moment in which the dialectics of symbols is transposed, toward the mystical experience, it is the power
of the word duly potentialized that will move the listener, once there is a hidden force behind each word. The power of the
words appears as a contraction of the strength of the mind that “explains” itself in multiple words that are, in their deeper sel-
ves, discoursive energetic cores and that can only be understood in this dynamic game that is established between the things
of the external world and its internal referent, that is, the mind. Discernment is passed initially, as Nicholas of Cusa proposed,
by sensitive images, continuing Jesus’ proposal that spoke at the beginning through images, however He also said that the time
would come when He would no longer speak through images, but clearly, for the words He received from God He[[he gave them
to men, thus fulfilling the prophecy: in the beginning was the Word (In principio erat verbum), in which lies the creative power
of the word. Nicholas of Cusa’s proposal is that in this theory of knowledge the limitations of the word and of the discourse are
acknowledged, registering its dialectics in the intellectual knowledge of Trinity which, in the unity, exceeds all.
Keywords: Nicholas of Cusa; Power of the Word; Dialectics; the Word.

Introdução “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra pro-


ferida pela boca de Deus.” Essa frase precisa ser enten-
Um jornalista perguntou a Madre Tereza de Calcutá: dida também no modo desse diálogo, assim como está
“Quando você reza, o que você diz a Deus?” E ela respon- exposto por Madre Tereza para que nela se possa intuir
deu: “Não falo, escuto.” O jornalista então perguntou: a força da palavra.
“O que Deus diz a você?” Madre Tereza respondeu: “Ele Sem a força da paixão presente na palavra, esta é ape-
não fala. Ele escuta. E se você não pode compreender isso, nas conceito, mas um conceito daquilo que já se conhe-
não posso lhe explicar.” A epígrafe de meu livro: Nicolau ce, ou assim se pensa conhecer, como esquematização
Artigo

de Cusa: Visão de Deus e Teoria do Conhecimento (Lyra, lógico-categorial ou conjectural que desemboca na assim
2012) aponta para essa “estranha” linguagem. Ela diz: chamada ciência positiva.

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Sonia Lyra

Jesus Cristo é o logos que, segundo ele mesmo, é “o pão mana que dista infinitamente de plenitude de sentido da
da vida” (Jo 6,35), o pão que, quem comer “viverá eterna- infinitude divina” (André, 2006, p. 9).
mente” (Jo 6,51). Este pão não é como aquele que os pais Independente da possibilidade de morrer, devido à sua
comeram e pereceram, mas o pão da palavra. O mesmo natureza mortal, pode o homem chegar à experiência da
Cristo ainda disse: “Por que não reconheceis minha lin- vida do espírito imortal em virtude do Verbo Encarnado
guagem? É porque não podeis escutar minha palavra” no homem Jesus Cristo, “in virtute verbi dei” (André, 2006,
(Jo 8,43), e completa dizendo que “quem é de Deus ouve p. 10). Nele a humanidade é o nexo de ligação entre a na-
as palavras de Deus” (Jo 8,47). Destas passagens, segue- tureza inferior e a superior, isto é, da temporal e da eter-
-se o porquê da vinda da palavra, pois disse ainda Jesus: na, e que se experimenta, em semelhança, pela fé e pelo
“para um discernimento é que vim a este mundo” (Jo 9,39). amor. É quando a sabedoria encarnada revela, com o seu
O discernimento é passado inicialmente, como propõe exemplo, o caminho para a vida, pelo qual ainda que se
Nicolau de Cusa por imagens sensíveis. Continuando a morra se experimenta a ressurreição da vida, “que é tudo
proposta de Jesus: “Disse-vos essas coisas por figuras. o que se busca” (Vescovini, 1998, p. 132).
Chega a hora em que já não vos falarei em figuras, mas Tudo o que se busca, filosoficamente, é considerar a
claramente vos falarei do Pai” (Jo 16,25). É quando Jesus força da palavra quase como se o nome fosse a represen-
diz aos discípulos que a vida eterna está em que conhe- tação precisa da coisa. Mas, se os nomes foram impostos
çam “o único Deus verdadeiro” (Jo 17,3), pois as palavras às coisas segundo a razão concebida pelo homem, então
que de Deus recebeu ele as deu aos homens cumprindo- os nomes não são precisos, pois uma coisa pode ser de-
-se a profecia: no princípio era o Verbo (In principio erat nominada com outros nomes talvez mais precisos. É por
verbum) (André, 2006, p. 8), no qual subjaz o poder cria- isso que os desacordos não estão na razão que dá subs-
dor da palavra. A proposta do Cusano é que nesta teoria tância às coisas, mas nos vocábulos que são atribuídos
do conhecimento se reconheçam as limitações da pala- diferentemente às diversas razões das coisas. É em vir-
vra e do discurso, inscrevendo-se a sua dialética no co- tude da virtus ou força da palavra, cujo conceito coinci-
nhecimento intelectual da trindade, o qual, na unidade, de com sapientia, que se transfere o verbo divino para
ultrapassa tudo. os verbos humanos, sendo estes então “explicationes
O Verbo divino, ao se plurificar nas suas expressões, da sapientia na sua unidade mais profunda e absoluta”
que são o mundo das criaturas, em seus sinais e pala- (André, 2006, p. 10).
vras sensíveis, é confirmado por Nicolau de Cusa quan- Nicolau de Cusa desenvolve essa “dinâmica expres-
do ele afirma: siva e manifestativa das palavras” (André, 2006, p. 13)
em várias de suas obras, entre elas no De pace fidei;
De acordo com esta comparação, o nosso princípio De principio; De mente e Compendium. O Cusano, da
unitrino, pela sua bondade, criou o mundo sensível mesma forma que Agostinho, afirma que a palavra que
como matéria e uma espécie de voz, na qual fez soa exteriormente
resplandecer de modo vário o verbo mental, a fim
de que todas as coisas sensíveis sejam o discurso é um sinal da palavra que brilha no interior, à qual
de várias elocuções do Deus Pai, explicadas através melhor convém o nome de verbo. Na verdade, a palavra
do Verbo, seu Filho, tendo como fim o espírito dos que os lábios pronunciam é a voz do verbo e chama-
universos, para que a doutrina do sumo magistério -se também verbo porque aquele a assume para que
transborde, através dos sinais sensíveis, para as apareça exteriormente (André, 2006, p. 12).
mentes humanas e as transforme perfeitamente num
magistério semelhante, de modo a que todo o mundo Como falar é manifestar, o Cardeal quer traduzir em
sensível esteja em função do intelectual, o homem teoria a palavra interior que, por si mesma, já é uma tra-
seja o fim das criaturas sensíveis e Deus glorioso seja dução no “nome preciso e indizível” (André, 2006, p. 13),
o princípio, o meio e o fim de toda a sua actividade do qual a linguagem humana é a explicatio.
(André, 2006, p. 9). Da mesma forma, Platão diz que “a verdade é anterior
aos vocábulos, aos discursos, ou seja, às definições dos
Segundo André (2006), no De filiatione Dei, o Cardeal vocábulos e às imagens sensíveis, e ele traz como exem-
aponta o uno como o pai ou o gerador do Verbo, queren- plo, o desenho do círculo, do seu nome, da sua definição
do dizer com isto que “tudo aquilo que é dito em qual- verbal e do seu conceito” (Vescovini, 1998, p. 133), ain-
quer palavra, significado em qualquer sinal e assim su- da que Dionísio Areopagita recomende que se dê “mais
cessivamente” (André, 2006, p. 9), exprime em forma de atenção à intenção que à força da palavra” (Vescovini,
palavra humana o verbo divino, sendo que na sua força 1998, p. 134). De qualquer modo, para Nicolau de Cusa,
se fundamentam a força da palavra do homem e, simul- tudo que pode ser dito é o verbo, é a manifestação de
taneamente, os seus limites. “A sua força, porque ela é a um verbo único, que se constitui na arte da fala, “uma
Artigo

expressão do verbo divino, os seus limites, porque é sem- arte infinita, não no seu resultado, mas no seu processo
pre uma expressão contraída e limitada pela finitude hu- e no seu dinamismo” (André, 2006, p. 13), quando então

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012 156


A Força da Palavra em Nicolau de Cusa

a sua limitação a transforma na busca pela palavra infi- ‘hora’ – para então ajustar-se, ‘adequar-se’ com ele, isto
nita, que, oculta no silêncio de sua plenitude, é a fonte é, com as coisas” (Fogel, 2003, p. 53). Vê-se então que
de todas as palavras. No entanto, no segundo capítulo do ser simpático é ajustar-se, supondo-se que verdade seja
De docta ignorantia, o Cusano chama a atenção num es- mesmo a adequação, a correspondência, a consonância
clarecimento preliminar para o fato de que, aquele que com as coisas.
quer atingir o sentido do que está para ser dito deve ele- No entanto, segundo Vescovini, na obra La Caccia
var o intelecto “para lá da força das palavras, mais do della sapienza (1998), o Cusano afirma que ninguém es-
que insistir nas propriedades dos vocábulos que não po- teve mais atento a essa questão do que Aristóteles, para
dem adaptar-se convenientemente a tão elevados misté- quem “aquele que forjou todos os nomes sabia perfeita-
rios intelectuais” (Cusa, 2003). Os exemplos dados, ele os mente ter expresso isto que sabe nos seus nomes e, como
utilizará como guias para a elevação do plano das coisas desenvolver esta ciência, fosse encontrar a perfeição do
sensíveis para o intelectual. saber” (Vescovini, 1998, p. 134). Mas, apesar de tudo isto,
O uso das matemáticas, por exemplo, tem como fina- chega o momento em que o buscador da sabedoria pre-
lidade confrontar as etapas metodológicas necessárias, cisa negar todos os nomes que o homem impôs a Deus.
partindo de uma lógica conjectural, edificada, segundo Negar os nomes é diferente de interpretá-los. A interpre-
André, “sobre o princípio de não-contradição” (André, tação requer alguns princípios; assim como fez Nicolau
2001, p. 321); seguindo para uma dialética coincidencial, de Cusa em De genesi, ao partir da idéia de que todos os
edificada “sobre o princípio da coincidência dos opos- que falaram da Gênese fizeram-no de modos diversos.
tos” (André, 2001, p. 321) e finalmente desembocando Usando o tema da Gênese como base a interpretação apon-
numa dialógica transsumptiva, edificada “sobre a cons- ta inicialmente para “a necessidade de contextualizar o
ciência da distância, mas também sobre a natureza dia- discurso bíblico na capacidade humana de compreensão
lógica do movimento pelo qual nos sentimos chamados a e de apreensão” (Vescovini, 1998, p. 322); em seguida
transpor essa distância” (André, 2001, p. 321), reflexão aponta para “a transformação do movimento interpreta-
esta que conduz para a experiência do infinito em que tivo num movimento de assimilação ao idem, ou seja, de
já não há figuras. confluência para o idem indizível, por um processo de re-
Uma vez que se pode considerar a questão sobre a lativização das formas contraídas da expressão humana”
nomeação de Deus ou de se saber o que Deus é e como é (Vescovini, 1998, p. 322), e finalmente entendendo que
possível experimentá-lo como o centro ou o princípio da “a percepção de que as interpretações dos sábios e Padres
coincidência, como o lugar a partir do qual se pode com- da Igreja não são senão modos diversos de apreensão do
preender toda a filosofia de Nicolau de Cusa, pode-se tam- idem absoluto” (Vescovini, 1998, p. 322), que cada qual
bém deduzir que essa teoria do conhecimento proposta procura representar de modo assimilativo.
pelo Cusano surge na introdução do De docta ignorantia É desse modo que a interpretação dos textos bíblicos,
como “uma hermenêutica dos nomes divinos, profunda- filosóficos, teológicos ou místicos, funciona igualmente
mente influenciada pela obra do Pseudo-Dionísio, como para todos, segundo esses princípios. Mesmo as expres-
já foi referido, e que só terminará com a última obra, o sões religiosas, ainda que permeadas “pela força da sabe-
De ápice theoriae” (Cusa, 2003, p. XXI). doria inefável” (Vescovini, 1998, p. 325), não sejam senão
No ápice da teoria, experiência (afeto, humor) e méto- conjecturas. Presente já no De intellectu et intelligibili de
do (compreensão da realidade), próprios da dinâmica de Alberto Magno1, está a afirmação de que “o intelecto é o
realização da realidade, co-incidem numa transsumptio ponto para o qual tendem todas as filosofias” (Vescovini,
cusana, que, para Fogel (2003), “se constitui num pôr-se 1998, p. 134). É onde, para o teólogo Alberto, se articulam
no mesmo tônus, no mesmo “tom”, ou seja, na mesma ex- a natureza do pensar com a natureza da graça, apontan-
periência, na mesma origem; trata-se assim de um sinto- do para uma visão beatífica do intelecto divino que é a
nizar-se, de um sincronizar-se com a “coisa” – assim se partir de onde falam todos os filósofos, isto é, de uma te-
é co-originário e co-partícipe” (Fogel, 2003, p. 49). O co- ofania – manifestação ou revelação de Deus.
nhecimento torna-se então simpatia, paixão. É a experi- Na medida em que, para Alberto, as figuras do fi-
ência do logos, o sentido e a força da palavra nela contida lósofo e do profeta tendem a se sobrepor, esse homem
e por ela perpassada. pode se elevar pelo pensamento ao “intelectus divinus”
É o momento em que a força da palavra se torna co- (Vescovini, 1998, p. 308). Citando Avicena, Hermes e
nhecimento, em que o problema do conhecimento e da Homero, Alberto continua dizendo ousadamente que o fi-
palavra é o mesmo que o problema do real. “É nessa lósofo é nexus dei et mundi, tendo uma função na liturgia
hora, nesse contexto de intensidade máxima do pensa- cósmica. Instrumento de uma espécie de palingenesia2,
mento, nessa hora de radical concretização da essência 1
Cf. A. Combes, Jean Gerson commentateur dionysien. Texte inédit.
do homem, que é preciso ouvir aquela afirmação: viver, Démonstration de son authenticité. Appendices historiques, Paris,
existir, ser homem, no modo mais radical ou essencial Vrin, 1940. [1973].
Artigo

possível, é conhecer” (Fogel, 2003, p. 52). É transpor-se 2


Renascimento, regeneração. Fil. Rel. O mesmo que metempsicose.
Fil. Entre os estoicos, retorno periódico e incessante dos mesmos
para este ou aquele humor “o necessário da ocasião, da
fenômenos; eterno retorno. Aulete Digital.

157 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012


Sonia Lyra

o filósofo aparece em Scotus Erigena e Mestre Eckhart conhecido, só é apreendido onde cessam as persuasões e
numa imensa lista de citações, operando como que uma começa a fé” (Cusa, 2003, p. 173). Uma vez que o conhe-
fusão da “abstractio filosófica e da ablatio místico-teoló- cimento intelectual é dirigido pela fé, visto ser uma ex-
gica” (Vescovini, 1998, p. 312). Naturalmente surgem crí- plicatio da fé, onde a fé não for sã, aí também não é pos-
ticos, como Gerson, que preferem a visão de Agostinho, sível um conhecimento intelectual verdadeiro, conduzin-
Dionísio e São Boaventura, que, a seus olhos, por não do nesse caso à debilidade dos princípios e fundamentos.
serem filósofos, têm mais direito de falar da ablatio por Esta fé é o próprio Jesus Cristo, uma vez que como diz São
serem cristãos. O conteúdo de toda essa busca filosófico- João, é a própria encarnação do Verbo, a douta ignorância.
-teológica e mística é definido por al-Farabi como “a união E o Cusano finaliza dizendo que, “quando nos esforça-
do filósofo com o intelecto absoluto [séparés]” (Vescovini, mos por olhar com os olhos intelectuais, caímos na escu-
1998, p. 329), em outras palavras, como uma via que se ridão, sabendo que dentro dessa escuridão está o monte
adquire, objeto de um trabalho que se supõe seja progres- no qual só é permitido habitar àqueles que são dotados
sivo. Mestre Eckhart denominou esse homem da busca de de intelecto” (Cusa, 2003, p. 173). São estes os capazes de
“homem nobre”, “homem pobre” ou “homem desapegado” compreender incompreensivelmente que “toda palavra
(Vescovini, 1998, p. 330). Discípulo de Alberto, Eckhart corporal é sinal do verbo mental” (Cusa, 2003, p. 174) e
“continuou em teologia a obra compilada por seu mestre que todas as coisas criadas são, da mesma forma, “sinais
na filosofia” (Vescovini, 1998, p. 333). do Verbo de Deus” (Cusa, 2003, p. 174).
O modelo do homem desprendido (l´home détaché) Esse conhecimento se manifesta gradualmente atra-
é Jesus Cristo, que na exegese de Lucas (19,12) aparece vés da fé, pela qual se ascende a Cristo, isto é, Cristo é a
como um homem de nobre origem que parte para uma causa de todo verbo mental corruptível, pois ele é a ra-
região distante a fim de ser investido da realeza e então zão, o verbo incorruptível. Cristo é a própria razão en-
voltar. Essa metáfora aponta para a necessidade de supe- carnada de todas as razões, porque “o verbo se fez carne”
ração, de “ultrapassamento do saber em direção ao Verbo” (Cusa, 2003, p. 175).
(Vescovini, 1998, p. 336), quando então o modelo da vida
bem-aventurada é cristológico. Encontrar esse fundo sem
imagens, onde a ética e a filosofia estão para lá de todos 1. A Definição que Tudo Define
os nomes de Deus, é a verdadeira pobreza, é quando fi-
losofar e contemplar De acordo com Nicolau de Cusa, todo conceito huma-
no é “conceito de algo uno” (Cusa, 2008, p. 197), isto é,
consiste em “reentrar” em seu próprio fundo e, es- toda definição que tudo define é não outro que o definido.
tando lá, “agir” “sem porque”, “nem por Deus, nem É a definição que, acima de tudo, nos faz saber. Em ou-
por sua própria felicidade, nem por quem esteja fora tras palavras, “a razão é a definição” (Cusa, 2008, p. 29).
de si, mas unicamente em consideração disto que é O Cusano diz que, talvez, seja Dionísio quem mais se
em si seu ser próprio e sua própria vida (Vescovini, aproximou desse entendimento, quando, ao chegar ao
1998, p. 341). fim da Teologia Mística, afirma que “o criador nem é algo
que possa ter nome nem é algo outro” (Cusa, 2008, p. 35).
No fundo, afirma De Libera, “Eckhart não diz nada Sendo Deus princípio de todos os nomes assim como das
além do que disse Orígenes: toda a filosofia já está coisas, e ainda que o próprio princípio possa receber mui-
na Escritura” (Vescovini, 1998, p. 350), especialmen- tos nomes, nenhum nome lhe pode ser adequado. Não se
te no Novo Testamento, mais especialmente ainda, no podendo constatar que nenhum outro vocábulo dirige me-
Evangelho segundo São João. lhor a visão humana até o primeiro princípio, é denomi-
A partir do momento em que se transpõe a dialética nado, por isso, “li no-otro” (Cusa, 2008, p. 37). É quando
dos símbolos, rumo à experiência mística, é a força da pa- se pode ver que “Deus é não-outro que Deus e que algo
lavra devidamente potencializada o que vai poder mover é não-outro que algo, e que nada é não-outro que nada,
o ouvinte, uma vez que há uma força oculta por detrás de e que não-ente é não outro que não-ente” (Cusa, 2008, p.
cada palavra. A força das palavras aparece, diz André: 39). É quando se vê então que não-outro é a definição que
“Assim como uma contracção da força da mente, que se antecede toda definição, sendo, pois, o significado de li
‘explica’ nas múltiplas palavras que são, no mais fundo o que mais se aproxima do inominável nome de Deus.
delas próprias, núcleos energéticos discursivos e que só Experimenta-se assim que o olhar sensível, sem a
podem ser entendidas nesse jogo dinâmico” (André, 2006, luz, nada pode ver, e que a cor não é senão a determina-
p. 18), que se estabelece entre as coisas do mundo exter- ção ou a definição da luz sensível, sendo então que “a
no e seu referente interno, isto é, a mente. luz sensível é o princípio do ser e do conhecer o visível
É assim que em seu desdobramento, o Verbo, Jesus sensível” (Cusa, 2008, p. 43); da mesma forma, o som é
Cristo, “não sendo cognoscível neste mundo onde, no âm- o princípio do ser e do conhecer o audível. Suprimido o
Artigo

bito da razão, da opinião, da doutrina, somos conduzidos, não-outro, segundo o Cardeal, nada resta da realidade
através de símbolos, pelas coisas desconhecidas ao des- nem do conhecimento.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012 158


A Força da Palavra em Nicolau de Cusa

Tal conhecimento somente pode ser entendido por Tratando-se, porém, do fato de que não se pode ex-
meio de si mesmo, não podendo ser expresso de outra plicar nada sem a palavra e só podendo fazê-lo através
maneira. Não pode ser afirmação nem negação, e só pode do termo “ser”, deve-se assim proceder para que os que
ser percebido pela coincidência dos opostos, sendo vis- ouvem compreendam. Convém, diz o Cusano, que aque-
to “antes de todo acréscimo e de toda supressão” (Cusa, le que especula opere
2008, p. 53), isto é, o não-outro de modo nenhum pode como o que vê a neve através de um vidro vermelho, o
ser alterado ou mudado pelo que quer que seja. qual vê a neve e atribui a aparência do vermelho não à
Nessa teoria do conhecimento, que, por assim di- neve, mas ao vidro; da mesma maneira opera a mente;
zer, desemboca no conceito de não-outro, o não-outro, por meio da forma vê a não-forma (Cusa, 2008, p. 93).
ele mesmo,
O não-outro é, então, tanto princípio do ser, “atra-
é a razão mais adequada e o discernimento e a medida vés do qual a alma tem o ser, como princípio do conhe-
de tudo o que é, para que seja; e o que não é para que cer, pelo qual conhece e, como princípio do desejar, pelo
não seja; e o que pode ser para que possa ser; e o que qual não somente tem o querer, senão que, especulando
é assim para que assim seja; e o que é movido, para seu princípio unitrino naqueles princípios, ascende à sua
que se mova; e o que está em pé, para que permaneça glória” (Cusa, 2008, p. 95). Pode-se ver então que toda
em pé; e o que vive, para que viva; e o que entende, criatura é manifestação do mesmo criador, que se defi-
para que entenda; e do mesmo modo, tudo (Cusa, ne a si mesmo, ou
2008, p. 59).
da luz que é Deus, que se manifesta a si mesma; como
É, pois, necessário que o não-outro defina a si mes- se fosse a exibição da mente que se define a si mesma;
mo como, da mesma forma, conceituando e nomeando que para os presentes se faz pela elocução viva e para
tudo aquilo que pode ser nomeado. Antes do conceito os distantes por meio da mensagem ou da escrita
está portanto o não-outro, o que significa que o conceito (Cusa, 2008, p. 233).
é “não-outro que conceito” (Cusa, 2008, p. 197). Em con-
sequência disso, o não-outro é denominado de conceito Dialogar é a metáfora mais precisa para designar o
absoluto, o qual pode somente ser visto com a mente, ain- projeto filosófico de Nicolau de Cusa. Os nomes impostos
da que não possa ser conceituado. O não-outro, não con- pela razão são sempre passíveis de um excedente, de um
ceituável, no entanto, ao definir-se a si mesmo, se mostra mais e de um menos, ou seja, de proporção e de compa-
trino. Denominar a trindade como “unidade”, “igualdade” ração e, consequentemente, partem das oposições relati-
e “nexo” é um modo de aceder ao uno, pois são esses os vas entre os contrários.
termos nos quais “reluz o não-outro” (Cusa, 2008, p. 65) A preferência de Nicolau de Cusa pela teologia ne-
de modo mais claro. Tratando-se de definições, os termos gativa ocorre para que possa negar a adequação de todo
“isto”, “isso” e “o mesmo”, segundo o Cusano, “imitam de nome criatural para com Deus e com isso evitar a ido-
modo mais brilhante e mais preciso o não-outro” (Cusa, latria, empurrando, por assim dizer, o intelecto no sen-
2008, p. 66, 67), embora sejam termos menos usados. tido de situá-lo para além da afirmação e da negação,
É quando, ao definir-se a si mesmo, o primeiro princí- tentando captar formulações “que expressem a capta-
pio, significado por meio do não-outro, “nesse movimento ção de Deus como coincidência dos opostos” (Cusa, 2008,
definido a partir do não-outro, se origina do não-outro e p. 251). O Cusano propõe ainda, através da negação e pelo
também a partir do não-outro e é originado o não-outro, conceito de não-outro, a negação da disjunção compara-
no não-outro termina a definição” (Cusa, 2008, p. 67). tiva, bem como a negação da própria conjunção. Nega
Qualquer apreensão somente poderá ser intuída para não só que o primeiro princípio seja ou não seja, como
além da capacidade humana, através da contemplação, se poderia fazer por meio da linguagem intelectual da
pois de outro modo não seria possível dizê-la. coincidência, mas chega ao ponto de negar essa mesma
Sendo, portanto, outro que o não-outro, Deus “é em linguagem que afirma que o primeiro princípio é e não
tudo, ainda que nada de tudo” (Cusa, 2008, p. 71), o que é. Isso faz com que eleve o intelecto, que é a raiz da ra-
significa um cessar de tudo que é e que não é, caso ces- zão, e dos termos intelectuais que são a raiz dos racio-
se o não-outro. A proposta de Nicolau de Cusa é que se nais, para a busca do primeiro princípio que é anterior à
veja no inominável não a privação do nome, mas, antes, coincidência dos opostos.
o “antes de todo nome” (Cusa, 2008, p. 73). É este o modo Conclui que, nessa teoria do conhecimento, os nomes
como o desconhecido reluz no conhecido cognoscitiva- intelectuais onde os contrários coincidem, são menos
mente, do mesmo modo que a claridade do sol reluz sen- inadequados, uma vez que uma linguagem divinal que
sivelmente e que com a visão da mente se alcança por supere tanto a razão quanto o intelecto pode ser apenas
sobre ou fora de toda compreensão. reconhecível, não, porém, praticável.
Artigo

159 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012


Sonia Lyra

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André, J. M. (2006). Nicolau de Cusa e a força da palavra. Revista
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Sonia Regina Lyra é Psicóloga - Analista Junguiana, Mestre em Fi-
Cusa, N. de (2003). A douta ignorância. (J. M. André, Trad.). losofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Doutora em
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publi- Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
cado em 1440). e Pós-Doutoranda em Humanidades e Saúde pela Universidade Federal
de São Paulo. É Diretora do Ichthys – Instituto de Psicologia e Religião
Cusa, N. de. (2008). Acerca de lo no otro, o de la definición que (www.ichthysinstituto.com.br). Email: sonia@ichthysinstituto.com.br
todo define. Introducción, J. M. Machetta y K. Reinhardt,
p. 197 (J. M. Machetta, Trad.). Buenos Aires: Editorial Biblos.
(Edición bilíngüe)
Recebido em 17.05.11
Aceito em 25.03.12
Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 155-160, jul-dez, 2012 160


Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade

TÉDIO E TRABALHO NA PÓS-MODERNIDADE

Boredom and work in the post-modernity

Apatia existencial y trabajo en la pos modernidad

K arina Okajima Fukumitsu


Júlia Yoriko Hayakawa, Suzan Emie Kuda, Elisa Harumi Musha, Tauane Cristina do Nascimento, Bruna Bezerra Oliveira,
Elisabete H ara Garcia Rocha, Daiany A parecida A lves dos Santos, K aren Ueki, Lucas Palhari Vasconcelos

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar as relações entre tédio existencial, tempo e trabalho na pós-moderni-
dade. O trabalho considera duas perspectivas: a primeira, o caráter que impede o trabalhador de se apropriar do tempo tornan-
do-se entediado; a segunda, a dimensão facilitadora para o serviço que faz sentido ao trabalhador. Na sociedade pós-moderna,
percebe-se um esvaziamento de significados devido à demanda de produção técnica que, associada ao tédio, resulta na perda
de sentido para o trabalhador. Nesse contexto, o homem que busca preencher seu tempo por meio das inúmeras ocupações não
se permite entrar em contato com seu projeto existencial. Entretanto, a vantagem da constatação do tédio existencial favorece a
autenticidade e permite possibilidades de ressignificações para a compreensão do tempo vivido.
Palavras-chave: Tédio existencial; Trabalho; Tempo.

Abstract: This present article there is how objective show the established relation between the existential boredom, time and
work in the post-modernity. The work is seen from two perspectives: the first is about a one negative character; and the second,
a positive dimension. In the post-modernity society, there is one emptying of your positive mean that associate with boredom
can result in lose sense. In this context, the man to fill search your time through everyday occupations and as soon as the work
to show like central factor in your life, can create to mount up activities that don´t permit enter in contact with your existential
project. However, the existential boredom can open to way to new possibilities of the meet with future reframes.
Keywords: Existential boredom; Work; Time.

Resumen: El siguiente artículo tiene como objetivo presentar las relaciones entre la existencia y el burrimiento, tiempo y tra-
bajo en la pos modernidad. El trabajo considera dos perspectivas: la primera, el carácter que impide al trabajador de apropiar-
se del tiempo volviéndose tedioso; la segunda, la dimensión facilitadora para el servicio que da sentido al trabajador. En la so-
ciedad post-moderna, se percibe una carencia de significados debido a la demanda de producción técnica que, asociada a la
monotonía, resulta en la perdida del sentido para el trabajador. En este contexto el hombre que busca satisfacer su tiempo por
medio de las innumerables ocupaciones no se permite entrar en contacto con su proyecto esencial. Entretanto, la ventaja de
la constancia de apatía existencial favorece a la autenticidad y permite posibilidades de re significación para la comprensión
del tiempo vivido.
Palabras-clave: Apatía existencial; Trabajo; Tiempo.

Introdução do a concepção fenomenológico-existencial que além de


ser uma visão preocupada com as questões existenciais,
A ação e ocupação humana estão intrinsicamente rela- está também comprometida com o modo de o ser huma-
cionadas ao tempo. Apesar de o trabalho ser reconhecido no apoderar-se de sua existência.
como uma atividade central, que ocupa quase totalmen- O mundo moderno é demarcado por dois tempos: o
te o tempo e espaço do cotidiano humano, torna-se cres- cronológico e o vivencial. Sendo assim, o trabalho é apre-
cente o número de trabalhadores que não reconhecem o sentado no estudo como uma ocupação do ser humano
ambiente profissional como um espaço de realização e associada ao tempo.
possibilidades. Chauí (1995, p. 241) nos ensina que:
No contexto pós-moderno, as informações sobre bens
de consumo podem provocar no homem a falsa percep- Somos seres temporais – nascemos e temos consciên-
ção de que ele é o que produz, tornando-o refém de um cia da morte. Somos seres intersubjetivos – vivemos na
status quo e de uma exigência para produzir cada vez companhia dos outros. Somos seres culturais – cria-
mais. Assim, o dilema entre ser, ter e parecer se instala. mos a linguagem, o trabalho, a sociedade, a religião,
Artigo

O presente artigo tem o objetivo de estabelecer rela- a política, a ética, as artes e as técnicas, a filosofia e
ções entre tédio e trabalho na pós-modernidade, segun- as ciências.

161 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012


Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;
Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos

Reflete, portanto, sobre o tempo quando vivenciado te temporal. Para o autor, o tempo apresenta um excesso
pelo esvaziamento de significados e, concomitantemente, de imagens dinâmicas e artificiais que aparecem cons-
sobre a voracidade que impele o ser a buscar novidades tantemente e se relacionam a eventos do mundo exterior
para evitar a constatação do vazio existencial. e/ou da vida íntima do ser. Sendo assim, a vida segue
Considera-se também nesse estudo o tédio e a falta de um curso violento, levando a uma sucessão de imagens e
sentido no trabalho, e a fuga do tédio por meio do traba- acontecimentos que não oferecem nenhum apoio à neces-
lho, contemplando a compreensão das pessoas que tra- sidade de refletir, tornando-a um turbilhão de episódios.
balham demasiadamente, os workaholics.
O tempo permite tanto compreender o existente hu-
mano em seu ser, quanto qualquer modo de ser possí- 2. O Ser-no-Mundo na Pós-Modernidade
vel e, por esse motivo, nas duas modalidades de tempo
supracitadas, o tédio emerge e pode ser compreendido É o homem que precisa se adequar ao lugar e ao tem-
como uma das manifestações da angústia do indivíduo po? Ou deve-se pensar o contrário: é o lugar e o tempo
moderno que projeta sua inautenticidade provocada pelo que precisam ser adequados ao homem? Para elucidar
esquecimento do ser. tais questões, pode-se compreender o tempo e o espa-
ço por meio da mitologia grega em torno dos mitos de
Kronos e Kairós.
1. O Homem e o Tempo na Pós-Modernidade Kronos, de acordo com a mitologia, era um dos deuses
que receava a realização da profecia de que seria destro-
O homem é possibilidade de ser e se relaciona com nado por um de seus filhos, motivo pelo qual os devora-
o tempo não apenas objetiva e mensuravelmente, mas o va. Zeus, um desses filhos, foi poupado da morte e escon-
experiencia de maneira singular e própria. Logo, o tem- dido por sua mãe, retornando para reivindicar o trono e
po não é, mas se temporaliza, porque produz a si mesmo exigindo que Kronos libertasse seus irmãos Ades, Hera,
de diferentes modos: temporalidade originária, tempo do Possêidon, Héstia e Deméter. Zeus expulsou então Kronos
mundo e tempo comum (Reis, 2005). do Olimpo e se tornou imortal, poder concedido também
O tempo comum tem origem na databilidade do tempo aos irmãos, enquanto seu pai foi jogado ao limbo. Kairós,
cronológico (kronos), o que resulta uma série de instantes segundo a lenda, demarca o tempo vivido.
idênticos e não relacionados entre si. Em geral, o ser hu- A sociedade contemporânea, igualmente, pauta-se no
mano não se relaciona com o tempo de outro jeito a não tempo cronológico, ou seja, em Kronos, sendo este o útil,
ser aquele mensurável que remete ao tempo do relógio, ao o sequencial, que se contrapõe ao tempo vivenciado e
aqui e agora, ao ontem e ao amanhã (Josgrilberg, 2007). representado por Kairós. Nesse sentido, o trabalho pode
Em contrapartida, apresentar o tempo somente como uma se embasar nas concepções de Kronos e não permitem
somatória de eventos do presente reduz outras possibi- que o indivíduo se aproprie de seu projeto existencial.
lidades de compreensões. Desse modo, Kirchner (2007, Em contrapartida, o apropriar-se do tempo relaciona-se
p. 187) questiona: “Será que, quanto mais o tempo é ex- à concepção pertencente ao tempo vivenciado, isto é,
clusivamente mensurado e cronometrado, menos experi- Kairós, que possibilita a reflexão sobre a ação e se apro-
ências as pessoas fazem com o tempo junto à ocupação xima do vazio fértil.
do mundo e como tempo da temporalidade da presença?” Vazio e solidão fazem parte da condição de singulari-
O autor se baseia na consideração de que responder zação. Ao contrário, o anonimato é o esforço da evitação
a tal questão seria um equívoco e ainda reflete sobre o do contato com a angústia. É pela manutenção do ano-
fato de que mensurar e cronometrar o tempo só se tor- nimato que o ser humano encontra lugar para devolver
na viável pela possibilidade de a contagem já ser sempre a aparência de que tudo está bem e que nada precisa ser
acessível ao próprio ser. alterado. É pela constatação da angústia e vivência de
Josgrilberg (2007) aponta também para a interpretação acolhimento do vazio existencial que o homem desperta
ontológica de Heidegger sobre a experiência do tempo que de sua condição de ser-no-mundo. Nesse sentido, a dife-
constitui o próprio Dasein, o existente humano. Na mes- rença entre estar-no-mundo dos homens e ser-no-mundo
ma direção, Bilibio (2005, p. 78) tenta “(...) compreender é apontada, pois estar-no-mundo dos homens significa
a experiência do tempo de modo fenomenológico a par- seguir determinismos e a justificativa causal de que o
tir da própria existência humana e de sua finitude (...)”. homem é produto do meio, restando-lhe apenas o quie-
De acordo com Minkowski (2011), tanto a ideia de tismo e o anonimato. Em contrapartida, o ser-no-mundo
tempo mensurável quanto a noção de desorientação no significa habitar, atuar sobre e no mundo de modo que
tempo não esgotariam o fenômeno do tempo vivido e, possa interferir, modificar, inventar, criar e sobretudo,
dessa forma, é possível desorientar-se no tempo em al- engajar-se e exercitar sua transcendência. E assim como
guns momentos. A monotonia gerada por essa desorien- Sartre (2010) ensina “O quietismo é a atitude daqueles que
Artigo

tação leva ao tédio que, por sua vez, gera sofrimento nas dizem: ‘Os outros podem fazer aquilo que eu nao posso’
pessoas que lutam contra esse fenômeno essencialmen- (...) só existe realidade na ação.’” (pp. 41-42)

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012 162


Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade

Porém, a possibilidade de despertar do anonimato re- Nesse caso, Costa (2010) aponta que a ocupação ocorre
vela a possibilidade de refletir sobre a ampliação das pos- por uma aproximação de acordo com o Dasein, que ne-
sibilidades existenciais, quer dizer, para ser visto é neces- cessita de um sentido para sua vida, e a maneira como
sário ser preciso no tempo e no espaço. Para ser visto, o absorve ou não o tempo orienta também a forma de exis-
ser humano precisa se ver e se reconhecer, sem depender tir no mundo. O autor ainda acrescenta que:
do reconhecimento externo do que faz, de quem é e do lu-
gar a que pertence. No entanto, há de se considerar, nesse O homem contemporâneo é dominado pelo processo
momento, os casos de pessoas que trabalham apenas pela técnico, no sentido de enxergar nele o único meio
necessidade financeira e que trocariam prontamente de de sobrevivência e consequentemente de se adequar
atividade profissional se recebessem mais. Por isso faz-se no mundo moderno, se diluindo em meio aos outros
importante a reflexão do tédio existencial no contexto do entes, se deixando arrastar pela vida inautêntica em
trabalho, pois “não somos mais capazes de nos situar no meio aos objetos que manipula (p. 155).
mundo porque nossa própria relação com ele [mundo] foi
praticamente perdida” (Svendsen, 2006, p. 20). O trabalho não é um fim em si mesmo, mas unica-
mente um meio para alcançar outra finalidade (Ribeiro
& Leda, 2004). É no contexto em que o sentido é deposi-
3. A Satisfação é Encontrada no Ser, Ter ou no Pa- tado nos objetos e não na finalidade da vida que pode-
recer? mos compreender a perda de significação que Giovanetti
(2002, p. 99) descreve como “(...) a ausência de rumo que
O homem busca a satisfação das necessidades e a ex- dê significado ao ato”. Portanto, para o mesmo autor,
pressão das próprias emoções. E, por muitas vezes, acre- o sentido é expresso na direção que se imprime ao vi-
dita que, se for considerado bem-sucedido profissional- ver algo e, colocar sentido nas coisas é, então, falsear o
mente ou se ganhar muito dinheiro, garantirá seu lugar problema. De acordo com Ribeiro e Leda (2004, p. 77):
de pertencimento. Adota então, várias estratégias para “Ao longo dos tempos, identificam-se duas visões contra-
manter o status quo, tornando-se aprisionado pela ideia ditórias do trabalho que convivem nos mesmos espaços,
de que para ser visto e reconhecido, precisa dedicar seu e, por vezes, um mesmo indivíduo revela sentimentos am-
tempo somente ao trabalho. Ou quando sua competên- bíguos em relação a sua vida profissional.”
cia é testada e a insegurança se instala, o olhar do outro Por muito tempo o significado de trabalho foi asso-
é perseguido como um pedido de aprovação, e o ser hu- ciado ao fardo e sacrifício, e sua concepção como fonte
mano sente necessidade de ser visto e confirmado não de identidade e autorrealização humana foi constituída
por quem é, mas pelo que conquistou. Dessa maneira, o a partir do Renascimento. Então, “constata-se (...) que o
ter e o parecer se tornam mais importantes do que o ser. trabalho apresenta duas perspectivas distintas. A primei-
Sabe-se que tudo depende do grau e, em caso de pes- ra referente a um caráter negativo; e a segunda a uma di-
soas que trabalham demasiadamente, o excesso causa a mensão positiva” (Ribeiro & Leda, 2004, p. 77).
falta, pois ao mergulhar em seu trabalho, o workaholic não No entanto, na pós-modernidade, percebe-se a reti-
precisa se submeter ao olhar profundo do próprio vazio rada do valor positivo do trabalho e vive-se um momen-
existencial e, em contrapartida, dar-se-á um luto de sig- to histórico de esvaziamento de seu significado, ou, nas
nificados do tempo e do espaço que ocupa. O tédio será palavras de Ribeiro e Leda (2004, p. 80): “há um descon-
mantido. O vazio perdurará e a solidão se manifestará, forto que, conforme as circunstâncias a serem vividas,
independentemente do que fizer ou produzir. vai desencadeando adoecimento psíquico e somático nos
Nesse ponto, o ocupar-se pode ser vivido própria ou indivíduos”.
impropriamente, mas “(...) tanto em um quanto o outro
há a possibilidade de autenticidade” (Seibt, 2008, p. 501).
Assim, a inautenticidade surge quando o ser não se apo- 4. O Esvaziamento do Significado e o Tédio
dera de seu projeto existencial, quando procura nos en-
tes o significado de sua existência, quando não se cons- O esvaziamento do significado de trabalho associa-se
cientiza da finitude e quando enfatiza o ter e o parecer. diretamente ao tédio, pois abrange tanto a perda de defi-
O eu é dito pelo impessoal, que foge de si, e se percebe nições pessoais quanto o esgotamento de sentido na vida
por meio de suas ocupações, ou seja, o ser se dilui nas e na relação com o mundo. Albom (1998, p. 48) aponta a
ocupações diárias e desvela seu jeito inautêntico de ser, lição de seu professor Morrie:
manifestando-se em três constituições fundamentais:
a facticidade, a existencialidade e a ruína, que diz res- Tanta gente anda de um lado para outro levando vi-
peito a se lançar na cotidianidade e no anonimato, isto das sem sentido. Parecem semi-adormecidas, mesmo
é, “(...) ele [Dasein] vegeta na banalidade das ocupações quando ocupadas em coisas que julgam importantes.
Artigo

corriqueiras, desviando-se de si mesmo e do projeto on- Isso acontece porque estão correndo atrás do objetivo
tológico” (Costa, 2010, p. 156). errado. Só podemos dar sentido à vida dedicando-

163 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012


Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;
Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos

-nos a nossos semelhantes e à comunidade e nos O tédio pode ser compreendido como um desconforto
empenhando na criação de alguma coisa que tenha que comunica que a necessidade de significado não
alcance e sentido. está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto,
atacam-se os sintomas, em vez de atacar a própria
O tédio é compreendido como restrição da liberda- doença, e procuramos todas as espécies de signifi-
de existencial pela qual há evidência na dificuldade de cados substitutos.
ação, ou seja, torna-se subjacente à maioria das ações hu-
manas corriqueiras, com um caráter positivo e negativo. O ficar entediado ocorre porque falta um significado
Por conseguinte, e um propósito, e a tarefa do tédio é atrair a atenção exa-
tamente para essa situação. Portanto, o trabalho é perce-
O tédio está associado a uma maneira de passar o bido como a fonte de supressão temporária dos problemas
tempo, em que o tempo, em vez de ser um horizonte do cotidiano, da existência inautêntica que se ocupa dos
para oportunidades, é algo que precisa ser consumido. entes presentes no mundo, mas não reflete sobre a exis-
[...] Não sabemos o que fazer com o tempo quando esta- tência destes. Assim, conforme nos afirma Costa (2010,
mos entediados, pois é precisamente então que nossas p. 153): “A cotidianidade do ser-aí caracteriza em certo
capacidades ficam inertes e nenhuma oportunidade sentido a ocupação que se torna deficitária, ao passo que,
real se apresenta (Svendsen, 2006, p. 24). o que está em jogo não é um intento ontológico, mas sim
a manualidade do instrumento em si mesmo.”
Além disso, cabe salientar a diferença entre o tédio Em casos daqueles que trabalham demasiadamente,
do senso comum – o situacional – e o tédio existencial. os workaholics, pode-se inferir que, no discurso de “não
O primeiro é o estado de ficar entediado e responsabili- ter tempo para nada”, privam-se de tempo para tudo o que
zar outrem pela dificuldade da ação. O segundo é ser en- não está relacionado ao trabalho e denunciam que suas
tediado e relacionar-se ao vazio existencial. Em geral, o escolhas direcionam-se à dedicação profissional em de-
tédio situacional manifesta-se quando não se pode fazer trimento a outros afazeres que poderiam agregar em seu
o que se quer ou em situações em que o indivíduo pre- projeto existencial.
cisa fazer o que não quer e, consequentemente, surge a Para Spanoudis (1976), a razão pela qual o modo de
necessidade de passatempos. Para Kirchner (2007), pas- viver, hoje, vivencia e propaga o tédio pode ser compre-
satempos têm o objetivo de aniquilar o tempo do mundo endida pela alienação com que a vida é levada. Dessa
e são resultados de um tempo que não é pensado, sendo maneira, trabalhando demasiadamente ou abusando de
possível inferir que o homem não pode compensar o tem- passatempos é que o homem busca a libertação de sua
po em suas ocupações. vida monótona e estagnada – justamente para preencher
Para Svendsen (2006), o tédio se caracteriza por uma seu vazio existencial. Esse vazio sem significado é cha-
condição de desorientação que se apresenta no estado mado por Matos (2007) de tempo patológico, que consi-
de tédio profundo. O tédio se faz entediante, porque pa- dera o estresse como ideal, uma vez que, na monotonia,
rece algo infinito. É capaz também de revelar a própria o tempo não passa, pois o ser está alienado na perda do
finitude da existência. O tédio, em comparação à morte, sentido das ações.
assemelha-se a uma espécie de antecipação fúnebre, pois A ilusão de promoção da felicidade divulgada pelos
tédio tem relações com a finitude e com o nada. “É uma meios de consumo, pela qual se percebe um consumo ili-
morte em vida, uma não vida” (p. 43). mitado, impede a reflexão. Assim, a relação do ser com o
Como dito anteriormente, reflete-se sobre indivíduos trabalho deixa de ser de produtividade e ação e torna-se
que procuram se ocupar, porque a ocupação se torna um reprodução, uma inatividade na qual se observa a falta
jeito de evitar o vazio provocado pelo tédio. Desse modo, de sentido, gerando um mal-estar que conduz ao tédio,
o que mais importa não é a atividade com a qual se ocu- o que leva a uma desvalorização de si, das relações e do
pam, e, sim, como a ocupação em si acontece. Portanto, o próprio trabalho (Matos, 2007). Falta tempo para se vi-
passar o tempo pode ser considerado uma tentativa de se venciar o tédio e nada pode preencher totalmente o vazio
evitar o tédio, ao se procurar qualquer coisa com a qual se existencial que o ser humano deve assumir com respon-
possa consumir o tempo. O ser humano preenche o tempo sabilidade. Falta tempo para ser.
com a apropriação cotidiana e a prática dos entes, o que De acordo com Giovanetti (2002), o contexto atual é
caracteriza o papel de cada pessoa na contemporaneidade marcado também pela transformação de uma consciência
(Costa, 2010), porém, confunde a ocupação com evitação política a uma consciência narcísica, em que a centrali-
e, nas palavras de Feijoo (2000, p. 113), “(...) o eu se perde dade sobre o eu passa a definir a orientação de todas as
quando se paralisa uma tentativa de resolver o inevitá- ações do indivíduo moderno, ao ponto de excluir o ou-
vel, isto é, a situação paradoxal da existência humana”. tro de sua vida. Consequentemente, na pós-modernidade,
No tédio, o Dasein é aprisionado no tempo, em um va- as desordens neuróticas – tratadas pelos terapeutas do
Artigo

zio que parece ser impossível de ser preenchido. Svendsen início até os meados do século XX – foram substituídas
(1970, p. 32) menciona que: pelas desordens narcísicas, que se caracterizam por um

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012 164


Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade

mal-estar longo e indefinido e, naturalmente, o esvazia- é vazio, e o homem se automatiza sem encontrar sentido
mento dos significados da existência e da vida cotidiana. para suas ações. O trabalho é comumente associado a um
Ainda segundo o autor, o grande sintoma, na vida mo- meio de sobrevivência, no qual nem sempre é possível
derna, pode ser bem-representado pela dificuldade de se questionar as demandas. Dessa forma, aquele se conforma
assumir o vazio existencial. de que no futuro poderá mudar essa situação e acredita
ou deseja acreditar que eliminará o tédio com o passar
do tempo. Concebe como um dever continuar aceitando
5. O Valor do Vazio Fértil as coisas como estão, ainda que esteja insatisfeito.

Van Dusen (1977) apresenta comparações entre a cul-


tura ocidental e oriental, afirmando que, no Oriente, o 6. O Homem e a Transcendência
vazio é confortável e familiar, podendo ter um valor má-
ximo em si mesmo e possibilitando a produtividade, ao Sentir-se angustiado e cansado são os primeiros si-
contrário do mundo ocidental em que espaço vazio sig- nais para entrar em contato com o tédio existencial, e
nifica desperdício – a não ser que seja preenchido com não se reconhecer naquilo que se faz automaticamente
ações, uma vez que é muito comum, na sociedade ociden- é essencial, pois, uma vez que o homem se questiona e
tal, preencherem-se esses espaços também com objetos reflete sobre o sentimento de esvaziamento e de existên-
ou até mesmo deixar que as ações dos objetos preencham cia inautêntica no mundo e por meio da transcendência,
os espaços dos indivíduos. E o autor continua: “O vazio encontra a possibilidade de refletir sobre sua existên-
é o centro, e o coração da mudança terapêutica” (p. 125). cia no aqui-e-agora. Isto é, o que está sendo feito dele e
Assim, trabalhar na sociedade pós-moderna parece como está se apoderando de sua existência pode provocar
algo indiscutível. A criança, desde pequena, é questiona- transformações, bem como descobertas dentre inúmeras
da sobre o que quer “ser” quando crescer, sendo que “ser” possibilidades de ser e estar no mundo. E como Perdigão
tem o sentido de executar uma tarefa que deve, necessa- (1995, p. 115) cita: “somos livres, resta-nos descobrir o que
riamente, contribuir para a sociedade – direta ou indi- devemos fazer com essa assombrosa liberdade”.
retamente. Questionar uma criança sobre qual profissão Sabe-se que a tônica existencial é a crença de que o
executará no futuro também lhe mostra a importância de homem é angústia. Desse modo, faz-se necessário ficar
preparar o seu devir, no aqui e agora, com estudo, expe- atento à sua condição existencial para que encontre cada
riências, em prol dessa parte do tempo chamado futuro. vez mais sentido nas atividades, a fim de ressignificá-las.
Porém, na maioria das vezes, não é possível ser astronau- E como aponta Kundtz (1999), é possível criar no cotidia-
ta, jogador de futebol, atriz de novela, como aquela criança no alguns momentos especiais de pequenas pausas que
previa e, para sobreviver em uma sociedade capitalista, o permitam a ressignificação. Mas nem sempre a reflexão é
adulto tem a necessidade de trabalhar em cargos que não possível diante das necessidades do dia a dia. No mundo
são aquele em que de fato esperava trabalhar. Com isso, pós-moderno, há uma grande exigência de que as pessoas
frustra-se e, obrigado a trabalhar para sobreviver, passa estejam em constante atividade, ainda que para exercê-la
a enxergar o trabalho como uma ocupação e o tempo do se abra mão de muitas outras coisas. Mas será que seria
aqui-e-agora como algo a ser consumido ao seu máximo, necessário parar dias ou semanas para refletir? Às vezes,
visando a um vivenciar projetado para um futuro previa- parar por apenas alguns minutos pode permitir que a re-
mente estabelecido. flexão ocorra ou se apoderar do vazio existencial como
Quando o trabalho é satisfatório, pode-se pensar na Perls (1979, p. 231) preconiza: “Vazio fértil, fale através
combinação entre diversos fatores, tais como valores, de mim. Em estado de graça quero ver. Benção e verdade
experiências e objetivos que variam de acordo com cada sobre mim. Face a face com você”.
um e com cada etapa da vida. Isso não significa que, ne- Para entender o vazio, faz-se necessário verificar dois
cessariamente, a satisfação leve à estagnação, mas pode componentes: o antropológico e o social. O componen-
ser também um motivador para busca de novas experi- te antropológico é a perda de sentido, ou seja, as coisas
ências que gerem significados. Porém, para que isso re- que preenchiam o cotidiano dos indivíduos vão se esfa-
almente se torne eficaz é necessário participar de todo o celando, e a vida começa a desmoronar. O componente
processo, entrar em contato com a angústia, reformular sociológico do problema do vazio da vida humana, por
as questões existenciais e dar vida a novos significados sua vez, é expresso pelo esvaziamento das relações in-
ou ressignificá-los. Entretanto, não são muitos os que con- terpessoais, o que provoca um desaparecimento de laços
cluem o processo sem passar pela obscuridade do tédio. pessoais entre os homens. Esse esvaziamento provoca a
A maioria dos indivíduos que se percebem entediados exclusão do outro e exacerba mais o individualismo pre-
não se permite vivenciar e desfrutar o tempo de maneira gado pela sociedade contemporânea (Giovanetti, 2002).
mais prazerosa e consomem o tempo do mundo como se Para Giovanetti (2002), pensar na superação do vazio
Artigo

fosse o mesmo. O trabalho torna-se o mesmo, bem como é tentar ressignificar esses dois componentes que o ca-
a falta de sentido é a mesma. O significado do trabalho racterizam. No plano antropológico, torna-se necessário

165 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012


Karina O. Fukumitsu; Júlia Y. Hayakawa; Suzan E. Kuda; Elisa H. Musha; Tauane C. Nascimento; Bruna B. Oliveira;
Elisabete H. G. Rocha; Daiany A. A. Santos; Karen Ueki & Lucas P. Vasconcelos

construir um projeto de vida; no plano sociológico, res- para futuras ressignificações. O tédio e a angústia do
significar as relações interpessoais e buscar a sedimen- vazio fértil permitem a revisão do projeto existencial,
tação da intimidade. Por isso, para o autor, “(...) os rela- pois o ser humano recebe o convite para que possa re-
cionamentos pessoais estão na base de um redimensiona- fletir sobre a necessidade de reconhecimento, aceitação
mento da sociedade individualista para uma sociedade e pertencimento. O significado é próprio; portanto, é
solidária” (p. 100). preciso notar que não é o tempo que deve ser refém do
Ao se sentir ameaçado pelo vazio, o Dasein tenta se trabalho; ao contrário, o trabalho existe somente por-
abster, retirando-se do contexto ameaçador, ou busca que existe um tempo que deve ser vivido e vívido para
preenchê-lo por meio do trabalho; o vazio então cresce e que o ser não seja esquecido.
atenua a vontade. No entanto, quando o indivíduo aceita
que o vazio é fértil, pode descobrir coisas surpreendente-
mente novas dentro de si. Assim, o vazio emerge na psi- Referências
coterapia para que o indivíduo possa refletir sobre seu
feitio de existir, já que “o vazio nem é nada, nem é algo. Albom, M. (1998). A última grande lição: o sentido da vida. Rio
É o vazio fértil” (Van Dusen, 1977, p. 129). de Janeiro: Sextante.
O indivíduo que vive constantemente o enfadonho Bilibio, E. (2005). A Fenomenologia do tempo em Heidegger e
tédio e que não consegue refletir sobre como vivencia o Husserl: uma aproximação. Revista Analecta, 6(2), 77-83.
tempo, ocupando-se sobremaneira com diversas tarefas,
evita o encontro consigo e com o vazio existente. Chauí, M. (1995). Convite à Filosofia. São Paulo: Ática.

Costa, P. E. (2010). Inautenticidade e finitude em Heidegger,


No geral, o tédio representa a realidade subjetiva que Revista Saberes [online]. Vol.3, n. especial [citado 25 abril
desordena o mundo e coloca o homem frente a um 2011], p. 151-159. Disponível em: http://www.periodicos.
tipo de morte, a morte da significação. Significação ufrn.br/ojs/index.php/saberes/article/view/884
esta necessária à vida humana e à qual corremos em
Feijoo, A. M. L. C. (2000). A escuta e a fala em psicoterapia:
direção, na contramão do tempo, por meio das novi- uma proposta fenomenológico-existencial. São Paulo:
dades da modernidade como via de solução (Pinheiro, Vetor.
2007, p. 162).
Giovanetti, J. P. (2002). Pós-modernidade e o vazio existen-
O tédio existencial significa a morte de possibilida- cial. Em D. S. P. de Castro et.al. (Orgs.), Existência e saúde
(pp. 91-100). São Bernardo do Campo: Umesp.
des, pela qual surge a perda de significados na vida. Para
transcendê-lo, o homem tem de ressignificar o sentido de Josgrilberg, F. P. (2007). A temporalidade a partir da perspec-
sua vida e não estruturar sua vida somente na má-fé. Cabe tiva existencial, Revista da abordagem gestáltica [onli-
enfatizar que é possível ser inautêntico e agir sem má-fé, ne], vol. 13, supl. 1 [citado em 13 Abril, 2011], pp. 63-73.
pois a má-fé é a manifestação da coisificação. Sendo as- Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v13n1/
sim, como não há uma atitude humana sem intenciona- v13n1a05.pdf.
lidade, o grande problema é a usura e quando o homem Kirchner, R. (2007). A temporalidade da presença: a elabo-
age como se não soubesse da própria intenção. Quando ração heideggeriana do conceito de tempo. Tese de dou-
o ser humano perde a ética, perde também o respeito por torado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
si e a discriminação de suas necessidades. Dessa manei- Janeiro.
ra, torna-se imprescindível que compreenda que a ética
Kundtz, D. (1999). A essencial arte de parar. (4ª Ed). Rio de
é a própria condição humana que permite a dignidade Janeiro: Sextante.
de ser livre e de assumir suas escolhas.
Matos, O. (2007). O mal estar na contemporaneidade: per-
A vida é uma série de puxões para a frente e para formance e tempo. Comciência Revista Eletrônica de
Jornalismo Científico [online], vol. 10 [citado em 15 Abril,
trás. Queremos fazer uma coisa, mas somos forçados
2011]. Disponível em: http://www.comciencia.br/comcienc
a fazer outra. Algumas coisas nos machucam, apesar ia/?section=8&edicao=38&id=459
de sabermos que não deviam. Aceitamos certas coi-
sas como inquestionáveis, mesmo sabendo que não Minkowski, E. (2011). O tempo vivido. Revista da abordagem
devemos aceitar nada como absoluto (Albom, 1998, gestaltica [online], vol. 17, supl. 1 [citado em 20 Março,
pp. 44-5). 2011], pp. 87-100. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180968672011000100
012&lng=pt&nrm=iso
Além disso, em concordância com a proposta hei-
deggeriana, faz-se necessário recuperar o sentido esque- Perdigão, P. (1995). Existência e liberdade: uma introdução à
cido do ser, reconhecendo-se o tédio como um paradoxo filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM.
Artigo

que contém tanto o problema quanto a solução para vida


Perls, F. S. (1979). Escarafunchando Fritz: dentro e fora da lata
moderna, uma vez que o tédio é também um potencial de lixo. São Paulo: Summus.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012 166


Tédio e Trabalho na Pós-Modernidade

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Reis, R. R. (2005). Heidegger: Origem e finitude do tempo.


Karina Okajima Fukumitsu - Psicóloga, psicoterapeuta, professora
Revista Dois Pontos [online], vol. 1, supl. 1 [citado em 25
da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora convidada
Abril, 2011], pp. 99-127. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.
pelo departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae.
br/ojs2/index.php/doispontos/article/view/1921/1606. Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
(Universidade São Paulo-USP/SP). Mestre em Psicologia Clínica
Ribeiro, C. V. S., & Leda, D. B. (2004). O significado do trabalho (Michigan School of Professional Psychology-Center for Humanis-
em tempos de reestruturação produtiva. Estudos e pesquisas tic Studies - EUA). Especialista em Psicopedagogia (PUC-SP) e em
em psicologia [online], vol. 4, supl. 2 [citado em 13 Abril, Gestalt-terapia (Sedes Sapientiae-SP). Endereço para correspondência:
2011], pp. 76-83. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/ Avenida Fagundes Filho, 145 - sala 96 (Edifício Austin Office Center)
pdf/epp/v4n2/v4n2a06.pdf Vila Monte Alegre. São Paulo-SP - Brasil - CEP: 04304-010. E-mail:
karinafukumitsu@gmail.com
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Aceito em 19.11.2012
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Artigo

167 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 161-167, jul-dez, 2012


Ana M. M. C. Frota

ORIGENS E DESTINOS DA ABORDAGEM CENTRADA NA


PESSOA NO CENÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÃNEO:
REFLEXÕES PRELIMINARES

Origins and Destinations of the The Person-Centered Approach in the Brazilian


Contemporary Scenario: Introductory reflections

Orígenes y Destinaciones de lo Enfoque Centrado en la Persona en escenario


brasileño contemporáneo: Reflexiones Preliminares

A na M aria Monte Coelho Frota

Resumo: Este artigo trata de reflexões introdutórias acerca das origens e dos destinos que vêm se delineando para a Abordagem
Centrada na Pessoa (ACP). Para tanto, discute os paradigmas que sustentaram o surgimento da teoria rogeriana, a partir de um
contexto histórico determinado pelo projeto modernista. Analisa o surgimento da Psicologia Humanista como a terceira força,
contrapondo-a ao Behaviorismo e Psicanálise. A seguir, passeia sobre a teoria rogeriana, discutindo seus conceitos fundamen-
tais, que atravessam pelas diferentes fases do trabalho de Rogers. Finalmente, faz um apanhado teórico das aproximações pos-
síveis entre a ACP e alguns filósofos fenomenólogos, sendo escolhidos Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger, tal como têm sido
trabalhados por alguns estudiosos brasileiros. O artigo procura clarificar as possibilidades de continuação da ACP a partir des-
tes encontros, colocando o problema de se estar construindo algo tão novo, que não se possa colocar alinhado com a Aborda-
gem Centrada na Pessoa.
Palavras-chave: Abordagem centrada na pessoa; Psicologia humanista; Fenomenologia.

Abstract: This article brings the introductory reflection on the origins and destinations that are being constructed for the
Person Centered Approach (PCA) in the brazilian scenario. This paper discusses the paradigms that supported the emergence
of the Rogerian theory from the historical context of the modernist project. It makes the analysis of the emergence of humanis-
tic psychology as a third force as opposed to Behaviorism and Psychoanalysis. It presents Rogers’ theory and its fundamental
concepts in the different stages of the work of Rogers. Finally, it presents some possible approaches between the Person Centered
Study and some phenomenological philosophers, been chosen Husserl, Merleau-Ponty and Heidegger, as they have been pre-
sented by some brazilian scholars. The work search to clarify the possibilities of continuing the Person Centered Approach by
those relations, pointing to the direction of the construction of something so new that it cannot be aligned with the Person
Centered Study.
Keywords: Person centered approach; Humanistic psychology; Phenomenology.

Resumen: En este artículo se trata de reflexiones introductorias sobre los orígenes y destinos que han sido delineados para el
Enfoque Centrado persona (PCA). Los paradigmas de discusión que apoyaron el surgimiento de la teoría de Rogers, a partir de
un contexto histórico determinado por el proyecto modernista. Analiza el surgimiento de la psicología humanista como una
tercera fuerza, oponiéndose al conductismo y el psicoanálisis. A continuación, dar un paseo en la teoría de Rogers, discutir los
conceptos fundamentales que atraviesan las diferentes fases de la obra de Rogers. Por último, se ofrece una visión general de
las similitudes teóricas posibles entre los países ACP y algunos filósofos fenomenólogos, siendo elegido Husserl, Merleau-Ponty
y Heidegger, como se ha trabajado por algunos estudiosos brasileños. El artículo trata de aclarar las posibilidades de continua-
ción de ACP a partir de estas reuniones, poner el asunto a la construcción de algo tan nuevo, que no se pueden poner de acuer-
do con el Enfoque Centrado en Persona.
Palabras-clave: Enfoque centrado en la persona; Psicología humanística; Fenomenología.

1. A Ciência Moderna e a Psicologia ço do surgimento da ciência clássica, compreende o ser


humano totalmente realizado, maduro, independente,
Os paradigmas clássicos do método científico in- autônomo, livre e racional. Ressaltam que: “(...) o projeto
fluenciam fortemente as idéias e práticas de uma época. da modernidade tinha objetivos ambiciosos: progresso, li-
Oferecem ao mundo uma certeza extremamente ansia- near e contínuo; verdade, como a revelação de um mundo
da de progresso, respostas objetivas, ordem, liberdade e ‘conhecível’, emancipação e liberdade para o indivíduo –
Artigo

justiça social. Segundo Dahlberg, Moss e Pence (2003), social, política e culturalmente” (p. 33).
o projeto sustentado e defendido pela modernidade, ber-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012 168


Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa

Nesta direção, a busca da razão constitui-se no cami- – autônoma e independente do observador; assim como
nho da busca da essência humana e das verdades da na- por um espaço constante e em repouso. Uma figura me-
tureza. Assim, o progresso e a tecnologia caminham de tafórica seria “a imagem do universo (...) comparada a um
mãos dadas em direção à prometida felicidade. A partir grande relógio gigantesco, inteiramente determinístico”
destas reflexões torna-se muito clara a grande aceitação (Feijoo, 2000, p. 19).
e difusão do projeto da ciência moderna, uma vez que A busca de verdades pela ciência moderna é marca-
trazia embutida no seu paradigma, uma promessa de de- da pelo estatuto de cientificidade, sendo garantida pela
senvolvimento, ordem e progresso social. construção de conceitos logicamente parametrados e pela
Com a modernidade, incrementada que foi pela in- ausência de intimidade entre homens e mundo. O modo
venção da imprensa, pelas conquistas das grandes na- técnico pelo qual o homem moderno habita o mundo tem
vegações, pela revolução industrial, pela transformação estreita relação, denuncia Critelli (1996), com sua neces-
social e familiar, pelas mudanças do sistema econômico sidade de superar a insegurança do seu ser ou, senão,
mundial, dentre outras, ofereceu-se ao mundo a promes- esconder esta condição. Porém, não é porque os homens
sa da produção de um saber construído a partir de uma criaram métodos, técnicas e processos que nos permitem
metodologia objetiva, quantificável, infalível. Ora, esta controlar alguns fenômenos e criar outros, que se alterou
promessa encheu os olhos e aqueceu o coração de todos a condição ontológica de inospitalidade no mundo e de
aqueles que desejavam respostas para suas questões. liberdade humana.
A sociedade sonhava com o dia em que pudesse re- O modelo de pensamento e produção de conheci-
solver seus problemas mais urgentes como a cura de do- mentos da ciência moderna marcou profundamente a
enças, a produção de alimentos suficiente para todos, a sociedade ocidental desde o século XVIII até meados do
busca de uma justiça social e, principalmente, a supera- século XX. A partir daí, o projeto da modernidade vem
ção das crenças religiosas que, por muito tempo domina- sofrendo grandes abalos na sua tão propagada pretensão
ram as mentes humanas, impedindo-as ou dificultando da busca de verdades universais. Aos poucos, a huma-
na produção de um saber que se sustentasse em si mes- nidade foi se dando conta de que a ciência moderna não
mo. A criação de um método científico foi extremamente seria capaz de compreender e acomodar a diversidade e
bem-vindo na sociedade da época, sendo profundamen- a complexidade da experiência humana concreta. Na ver-
te marcada pela filosofia de Descartes, pela metodologia dade, “o projeto da modernidade de controle através do
científica de Bacon e pela teoria matemática de Newton conhecimento, a avidez por certeza, implodiu” (Dahlberg
(Feijoo, 2000). et al., 2003, p. 36).
A partir da análise de Feijoo (2000), para Descartes, Chamou-se de saber pós-moderno aquele estado da
o mundo material deveria ser estudado com absoluta ob- cultura construído após as transformações que afeta-
jetividade, constituindo, a partir de então, a necessida- ram as regras do jogo da ciência, da literatura e das ar-
de de neutralidade do pesquisador. Além disso, criou-se tes a partir do século XIX (Lyotard, 1989). Seu saber não
um método de busca de saber, ou seja, de produção de se propunha ser um instrumentalizador de poderes.
conhecimento, que seguisse uma metodologia objetiva, Ele refina a sensibilidade para o diferente e para supor-
passível de ser repetida, testada e generalizada, crível tar o incomensurável. Sob uma perspectiva pós-moderna,
e infalível. Como resultado, a ciência foi aceita como não existe conhecimento absoluto, realidade cristalizada
a única via de acesso a todo e qualquer conhecimento, esperando pra ser conhecida e domada; um ensinamen-
passando a desvalorizar qualquer saber produzido por to universal, que se faça fora da história ou da sociedade
outros caminhos. A crença existente era a de que o mé- (Frota, 2007). No lugar disso, seu projeto propõe que o
todo científico descrevia corretamente a realidade, sen- mundo e o conhecimento sejam vistos como socialmente
do adotada como modelo pelos saberes que se preten- construídos. Isso significa pensar que todos nós estamos
dessem científicos. engajados na construção de significados, em vez de enga-
Assim, a racionalidade deveria superar qualquer pai- jados na descoberta de verdades. Torna-se possível afir-
xão na busca dos saberes científicos a partir dos paradig- mar, deste modo, que não existe somente uma realidade,
mas clássicos da ciência moderna. Além disso, perseguin- mas várias. O conhecimento não é único, e sim múltiplo,
do a herança newtoniana, o mundo deveria ser compre- variável, fragmentado e mutável, inscrito nas relações de
endido como um grande complexo, formado por partes poder, que determinam o que deve ser considerado como
contínuas que, somadas, resultariam numa totalidade. verdade e falsidade (Lipovetsky, 2004; Goergen, 2005).
Para atingir uma compreensão e posterior domínio do A verdade é compreendida como uma correspondência
todo, seria necessário desmembrá-lo em partes, cognos- da verdade, uma representação falseada, mas que, como
cíveis através de um método objetivo, seguido por cien- tal deve ser tomada.
tistas neutros e racionais. Tal busca seria possível uma Na origem das psicologias existe uma tendência a atu-
vez que as leis do universo seguiriam uma causalidade ar como se os saberes psicológicos fossem “grandes narra-
Artigo

mecanicista, e seriam regidas por uma temporalidade tivas”, e, como tal, representassem o modelo essencialis-
linear – com presente, passado e futuro bem marcados ta da natureza humana. As grandes teorias psicológicas,

169 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012


Ana M. M. C. Frota

encarnadas por seus seguidores, assumem seus saberes nálise, e seu distanciamento, cada vez mais nítido, da
como se eles fossem “os verdadeiros” e representassem herança cientificista.
“o modelo correto” da realidade. Contudo como alertam Também o behaviorismo skinneriano segue o modelo
Dahlberg et al. (2003), “em vez de serem vistas como re- científico. Aliás, para Skinner, seu objeto de estudo era
presentações socialmente construídas de uma realidade o comportamento, aquele que poderia ser observado e
complexa, uma maneira selecionada de como descrever quantificado. A mente existia somente enquanto expres-
o mundo, essas teorias parecem se tornar o próprio terri- sa pelo comportamento. Na verdade, o behaviorismo de
tório” (p. 54). O risco daí advindo é esquecermos a con- Skinner se adequa completamente ao método experimen-
textualização histórica do saber ou, ainda, perdermos de tal: a relação causa-efeito é inquestionável, as causas dos
vista a subjetividade concreta do humano. Perderíamos de fenômenos psíquicos encontram-se no mundo externo, o
vista o homem, ficando dele somente sua re-presentação, tempo é linear, a força é sempre externa (Skinner, 1985).
falseada, que é, via teoria. Além deste risco, não podemos Para os behavioristas, a objetividade é imprescindível e
esquecer que as grandes narrativas contam as histórias deve ser garantida pelo controle das condições que regem
dos saberes como se fossem únicos e universais, já repu- as relações sujeito-objeto. Por sua vez, as técnicas com-
diadas pelo estatuto pós-modernista, por representarem portamentais clássicas “possuem um status físico para o
perspectivas teóricas descoladas da realidade e empeci- qual as técnicas usuais da ciência são adequadas e per-
lhos para a compreensão dos sujeitos reais em situações mitem uma explicação dos comportamentos nos moldes
históricas concretas. da de outros objetos explicados pelas respectivas ciên-
Vivendo numa condição pós-moderna, o conheci- cias” (Skinner, 1985, p. 42).
mento e os diversos saberes solicitam que abandonemos A Psicanálise e o Behaviorismo formaram as duas
as grandes narrativas teóricas e nos contentemos com primeiras forças dentro da psicologia. A terceira força –
objetivos locais e mais práticos. Para Heywood (2004), a Psicologia Humanista – surgiu como reação ao panora-
isso significa abandonar as esperanças mais profundas ma da psicologia norte-americana, dominado pela leitura
do pensamento iluminista: que o que está para ser des- mecanicista e determinística dominantes (Boainain Jr,
coberto seria, de fato, um mundo ordeiro e sistemático, 1998). Maslow (2007) foi um dos principais responsáveis
idêntico para cada um de nós, sendo possível estabe- pela criação da Psicologia Humanista, que pretendia, de
lecer um acordo universal com a natureza. O que fica, início, unir tendências que se opusessem ao behavioris-
então, é a busca de conhecer verdades, multiplicidades mo e psicanálise.
de narrativas, saberes construídos na e pela realidade Deste modo, ao contrário do Behaviorismo e da
social concreta. Psicanálise, a Psicologia Humanista não se identificou
A partir destas reflexões, pensemos no que isso com o pensamento de determinado autor ou escola, es-
interfere nos nossos pensares e fazeres psicológicos, pecificamente. Consistia, na verdade, de um discurso
para nos achegarmos na nossa questão maior: origens congregado de diversas tendências, unidas especialmen-
e destinos da Abordagem Centrada na Pessoa, no ce- te pela oposição às abordagens citadas, assim como pela
nário do Brasil. convergência em torno de algumas propostas comuns,
Também para a Psicologia foi importante o método tais como um compromisso inalienável com uma visão
científico, como possibilidade de se fazer aceita e rece- de homem orientada para a saúde e desenvolvimento
ber o estatuto de ciência, como afirma Capra (1983). Deste pessoal.
modo, a adaptação do objeto de estudo da psicologia, o A partir daí, torna-se clara a negação da perspectiva
psiquismo humano, aos princípios da mecânica clássi- pessimista e psicopatologizante da metapsicologia freu-
ca de Newton fez-se no sentido de busca de cientificida- diana. Além disso, a terceira força assume a perspecti-
de. É assim que a Psicanálise de Freud e o Behaviorismo va holística e organísmica do ser humano e adota uma
de Skinner se enquadram no mecanicismo da ciência visão fenomenológica e existencial para a compreensão
positivista. do homem.
Capra (1983) tem razão ao dizer que a primeira tó-
pica de Freud seguia um modelo mecanicista. Como o Assim, a volta ao humano como objeto de estudo é
próprio Freud afirma no seu Projeto de uma psicologia uma das bandeiras do movimento, importante a ponto
científica, sua intenção era representar os processos psí- de fornecer-lhe o título designativo. Qualidades, e ca-
quicos como estados, quantitativamente determinados. pacidades humanas por excelência, tais como valores,
Deste modo, pelo menos de princípio, é lícito afirmar que criatividade, sentimentos, identidade, vontade, cora-
Freud parece respeitar e seguir os princípios apregoados gem, liberdade, responsabilidade, auto-realização,
pela ciência moderna, os quais, certamente, lhe garan- etc., fornecem temas de estudo típicos das abordagens
tiriam respeitabilidade e divulgação. Coelho Jr. (1995) humanistas (Boainain Jr, 1998, p. 31).
também aponta a origem mecanicista dos trabalhos de
Artigo

Freud, frisando o contexto histórico deste início. Deixa A Psicologia Humanista defende uma visão globali-
clara a evolução histórica da metapsicologia e da psica- zante do ser humano, enfatizando a vivência das emo-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012 170


Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa

ções, a subjetividade, a intuição e as potencialidades. balho. Além da Teologia, também se dedicou ao estudo
Provavelmente como resultado da exacerbação do senti- da Psicologia, fazendo atendimento clínico e orientação
mento, da vivência e da experienciação, adotadas como psicopedagógica.
métodos de trabalho, ela foi duramente acusada de ir- Para Rogers e Kinget (1977), existe no homem uma
responsável, de teoricamente vazia (Fonseca, 1998, 2011; tendência atualizante, que o concebe como naturalmen-
Moreira, 2009b). Segundo Fonseca (1998), tais críticas te livre e bom, sendo essencialmente dotado de uma
acabaram sendo positivas, uma vez que geraram estudos capacidade para desenvolver-se positivamente. Assim,
dentro do movimento humanista brasileiro, buscando para Rogers, são as condições externas desfavoráveis que
esclarecer e fortalecer sua fundamentação, assim como corrompem e adoecem o homem. Por ser o que existe de
possíveis distorções. mais importante na sua teoria e prática psicoterápica,
O movimento humanista teve forte influência das fi- pressupõe, fundamentalmente, um respeito maior ao ser
losofias existenciais e da fenomenologia. Assim, “assu- humano, por concebê-lo como um “organismo digno de
me e propõe a inevitabilidade da adoção de um modelo confiança” (Rogers, 1976, p. 16). Afirma ainda Rogers e
de homem, ou seja, uma concepção filosófica da natureza Kinget (1977, p. 52):
humana, como ponto de partida e princípio norteador de
qualquer projeto de construção de psicologia” (Boainain Quando a tendência atualizante pode se exercer sob
Jr, 1998, p. 31). Além disso, prioriza o fenômeno, em de- condições favoráveis, isto é, sem entraves psicológi-
trimento das técnicas e teorias, centrando-se na “rela- cos graves, o indivíduo se desenvolverá no sentido
ção fenomenativa existencial atual entre seus agentes” da maturidade. Sua percepção de si mesmo e de
(Fonseca, 1998, p. 12). seu ambiente, e o comportamento que se articula de
A prática humanista parece ter sido desvirtuada pelo acordo com estas percepções, se modificarão cons-
laisser faire, pelo fetiche da vivência pura, caindo em des- tantemente num sentido de uma diferenciação e de
crédito na academia. Embora não concorde de todo com a uma autonomia crescentes, típicas do progresso em
crítica que Figueiredo (1991) faz à Psicologia Humanista, direção à idade adulta. A personalidade representará,
assim como a generalização que faz da prática dos psico- portanto, a atualização máxima das potencialidades
terapeutas de base humanista, ele tem razão ao inserir do organismo.
a psicologia humanista na matriz vitalista e naturista.
Sua crítica dirige-se à ausência de um construto teórico A compreensão empática, congruência e considera-
epistemológico, contrabalançando razão e sentimento. ção positiva incondicional também são princípios fun-
Como resposta a esta falta, muitos profissionais com for- dantes da ACP, assim como a tendência atualizante.
mação humanista (Amatuzzi, 1989; Moreira, 1990, 2007, A capacidade de o psicoterapeuta colocar-se no lugar
2009a, 2009b; Advíncula, 1991; Holanda, 1998; Messias do outro, sem deixar de ser quem é, facilita o encontro
& Cury, 2006; Dutra, 2008) iniciaram um período muito entre pessoas. Já a congruência, ela significa a capaci-
fértil de produção teórica, capaz de dar suporte à prática dade do psicoterapeuta ser autêntico em relação a seus
psicoterápica, através de pesquisas com base fenomeno- sentimentos, referindo-se à pessoa que busca ajuda. Ser
lógica e existencial. congruente, é ser genuíno, é ser fluido. “Quando somos
Tentando nos aproximar dos sentidos das psicolo- congruentes conosco mesmo, nossas necessidades, nossos
gias humanistas/fenomenológicas-existencias, passare- desejos e nosso curso de ação são uma coisa só”, afirma
mos a discutir a Abordagem Centrada na Pessoa, uma Bowen (1987, p. 65). Finalmente, a consideração positi-
das abordagens psicológicas que teve seu berço nas ori- va incondicional, é caracterizada como a capacidade de
gens humanistas. aceitar o outro como ele é, não significando concordar
com ele. Deste modo, “quando o terapeuta estima o clien-
te, de uma maneira total, em vez de uma maneira con-
2. Abordagem Centrada na Pessoa: Da Noção de dicional, então o movimento para a frente pode ocorrer”
Homem Planetário à de Homem Mundano – De (Rogers, 1987, p. 68).
Rogers a seus Discípulos Contemporâneos A influência do contexto sócio-cultural para a origem
da teoria rogeriana é claramente descrita por Fonseca (1983):
A obra de um autor tem muito das influências que
ele sofre durante sua formação pessoal e profissional. A Abordagem Centrada na Pessoa surgiu e cresceu
Rogers teve grande influência de uma tendência bioló- no seio daqueles para cujas mesas, carros e casas vai
gica de saber, justificando um pouco o que ele chama muito do que é expropriado do corpo e do ser, da casa
de tendência formativa. Acaba, por esta vertente, enfati- e dos pratos daqueles em cujo seio nasceu a Pedagogia
zando mais a natureza do que a cultura e a história do do Oprimido (p. 46).
homem. Já a influência religiosa, que recebeu de sua fa-
Artigo

mília protestante, pode ser percebida na crença otimista A teoria de Rogers constrói-se a partir de uma di-
da natureza humana, que sempre acompanhou seu tra- mensão individual da pessoa, deixando-se perceber

171 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012


Ana M. M. C. Frota

através da noção de “desenvolvimento do eu” (Rogers, que se dedicaram a promover eventos de treinamento
1961), enfatizando a polaridade individual em detri- profissional e workshops; Declínio (1978-1989), atraves-
mento da social. Também em seu livro Um Jeito de Ser, sado pelo luto trazido pela morte de Rogers e Rosenberg;
Rogers (1983) enfatiza a dimensão individual e subjeti- Renascimento (90 até hoje), trazendo consigo um aumento
va da pessoa. Para Rogers (1961) a natureza humana é significativo de profissionais que têm contribuído criati-
moralmente positiva. Segue acreditando que a pessoa vamente para a construção da ACP.
plena seria aquela que conseguisse se deixar guiar pelo Conforme estudos de Carrenho et al. (2010), é visí-
organismo, já que ele é mais sábio que a razão. Valoriza vel um movimento de expansão da ACP no Brasil. Cada
a influência social, enxergando, no entanto, uma oposi- um desses movimentos traz uma sustentação filosófica
ção entre indivíduo–sociedade, interior-exterior, objeti- que caminha ao lado dos princípios básicos rogerianos.
vidade-subjetividade, deixando claro seu limite episte- Porém, alguns estudos trazem também contribuições que,
mológico de compreender a indissociabilidade entre os ao invés de caminharem bem ao lado da teoria da aborda-
pólos. Resumidamente, podemos afirmar que a noção de gem centrada na pessoa, introduzem novas teorias e me-
pessoa rogeriana pressupõe uma pessoa centrada, autô- todologias de prática psicoterápica e de pesquisa clínica.
noma, livre, individualizada. Encontramos seguidores de Rogers que têm ampliado sua
O trabalho de Rogers vem sendo dividido em fases, a perspectiva, criando uma nova metodologia de trabalho e
partir de características centrais, criando vertentes tam- pesquisa a partir de Husserl, Merleau Ponty e Heidegger,
bém distintas. Assim, múltiplas teorizações contemporâ- dentre outros. Nossas reflexões conduzem-nos, então, a
neas vêm sendo tecidas e novos caminhos sendo trilha- pensar o limite existente entre uma aliança da ACP e
dos (Boris, 1987; Boainain Jr. 1998; Belém, 2004; Moreira, esses filósofos referidos e uma necessária ruptura entre
2010). Deste modo, a partir do delineamento de seus pres- ambos, por um distanciamento de paradigmas.
supostos, Rogers divulgou uma terapia que tinha a pessoa Sabemos que Rogers leu Kiekegaard, adotando dele
como centro do processo terapêutico, caracterizando sua sua crença na experiência pessoal. De Buber, adotou a
primeira fase de trabalho, a fase não diretiva (1940-1950). filosofia do diálogo. Porém, de acordo com a história da
Desde sempre enfatizou o respeito pelo outro, a impor- psicologia rogeriana – contada por autores contemporâ-
tância da relação com o cliente para além de sua sinto- neos brasileiros, como Belém (2000), Cury (1987), Fonseca
matologia, a expressão emocional através, não somente (1998), Moreira (1990, 1997, 2009a, 2009b) –, não se pode
do conteúdo verbal, mas do próprio corpo. O terapeuta afirmar que o pensamento de Rogers tenha sido fenome-
deveria buscar uma relação genuína, empática, isenta de nológico. Rogers sempre valorizou a relação cliente-tera-
interpretações e julgamentos e, principalmente, adotan- peuta, contudo sua visão de homem era a de um homem
do uma postura de consideração positiva incondicional individual. Moreira (2009b) é clara ao afirmar:
dirigida ao cliente. A fase seguinte, reflexiva (1950-1957),
ainda se centrava no cliente, colocando como única pos- Parece possível buscar afinidades entre as bases
sibilidade expressiva do terapeuta, respostas de apoio e filosóficas fenomenológicas e/ou existenciais e o
compreensão ao que fosse apresentado. pensamento rogeriano como é desenvolvido na
Com o tempo, a postura do terapeuta rogeriano deixa atualidade, mas não devemos nos iludir de que tais
de enfatizar a pessoa, como centro da relação, estabele- filósofos tenham influenciado a teoria rogeriana
cendo um campo interativo entre a dupla. Esta postura original. Afirmar que a fenomenologia influenciou
caracteriza a posição experiencial da terapia rogeriana a Abordagem Centrada na Pessoa (...) é um engano.
(1957-1970). Nesta nova postura, terapeuta e cliente fazem No entanto, é possível considerar que as fenomeno-
parte do processo. Como afirma Boainain Jr (1998): “Este logias existenciais passaram a ter um papel funda-
novo centrar-se, focalizando a experiência do terapeuta, mental em muitas das vertentes atuais da Abordagem
alternativo à anterior unilateralidade do centrar-se no Centrada na Pessoa (p. 10).
cliente, descortinou toda uma ampla gama de possibili-
dades expressivas para o terapeuta e veio tornar a terapia Aqui começa um novo capítulo nos estudos e deri-
rogeriana muito mais bicentrada” (p. 85). Finalmente, na vações da ACP: os movimentos dos seus discípulos nas
quarta fase da terapia rogeriana, o movimento dos gran- suas aproximações com a fenomenologia. Mas não exis-
des grupos, fase coletiva (1970-1985), revelou um Rogers te somente uma fenomenologia, ela também é múltipla.
profundamente envolvido na formação de novos terapeu-
tas e enriquecendo a prática da abordagem humanista.
Para Carrenho, Tassinari e Pinto (2010), o percurso 3. A Abordagem Centrada na Pessoa Marca Encontro
da ACP no Brasil passou por fases: Pré-história (1945- com a Fenomenologia – um Processo em Processo
1976), caracterizada pela pouca presença de trabalhos
nesta abordagem; Fertilização (1977-1986), marcada pela A Fenomenologia surgiu no final do século XIX, rom-
Artigo

presença de Rogers e sua equipe no Brasil, assim como a pendo com o modelo cartesiano e a perspectiva metafísi-
formação de profissionais, tais como Rachel Rosenberg, ca, que afirmava a existência de uma verdade universal,

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012 172


Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa

pura e imutável, possível de ser alcançada pelo homem lhas através de um método racional e objetivo. O méto-
através da razão. Segundo Frota (1997), a fenomenologia do fenomenológico vai buscar o sentido do ser do modo
aponta a “impossibilidade de se produzir um conhecimento como este se dá. Deste modo, abandonando-se o método
científico universal, uma vez que a universalidade se re- positivista, assim como a noção de causalidade, adota-se o
duz a generalidades abstratas e a necessidade à freqüên- método fenomenológico, que tem como objetivo alcançar
cia e repetição dos eventos observados” (p. 28). o fenômeno em sua totalidade, tentando compreendê-lo
A Fenomenologia surge em oposição ao Positivismo, a partir de um olhar específico.
em que o conhecimento é considerado válido apenas Porém, ao se falar de um método fenomenológico de
quando os conceitos são construídos a partir de parâme- compreensão de um fenômeno, vemos que não existe
tros lógicos e com a garantia de privação da intimidade uma única forma de se investigar. Como afirma Holanda
entre os homens e o mundo. A Fenomenologia acredi- (2001):
ta que o conhecimento é possibilitado, exatamente, por
meio da aceitação desta intimidade e envolvimento entre Não podemos falar simplesmente de pesquisa feno-
homem e mundo. Pensar, para a Fenomenologia, signi- menológica como se esta fosse um conjunto único de
fica indagar, questionar, tentar compreender. Algo pro- modos de ação. Há de se destacar que existem tantas
cessual, parcial, relativo. Muito diferente do conhecer diferenças em termos de ação metodológica na feno-
metafísico, que pretende “dominar” o conteúdo de uma menologia quantas compreensões existem da própria
matéria ou disciplina. fenomenologia (p. 42).
Para a metafísica, há a distinção entre o ser das coi-
sas e a aparência destas. Sendo a aparência, para tal Para Fonseca (2011), existiu no Brasil, e em toda a
corrente, falaciosa, como se escondesse a verdadeira es- América Latina, um grande movimento de reconstrução
sência dos fenômenos. Já para a Fenomenologia, o que da ACP após a morte de Rogers, provavelmente facilita-
se mostra, ou seja, a aparência é o próprio fenômeno do pela ocorrência dos grandes fóruns de debates e en-
sujeito à produção de sentidos dados pelo telespecta- contros Latinos e Brasileiros. Nestes encontros firmou-se
dor. Na sua aparição, o fenômeno mostra-se carregado uma crítica vigorosa à concepção de pessoa “planetária”,
de todos os sentidos a ele atribuído, que se interliga à evidenciando a indissociabilidade indivíduo-mundo.
história, cultura, sociedade, da qual faz parte. Em re- Afirma: “assumir esta concepção de pessoa na América
sumo, Fenomenologia refere-se ao estudo do fenômeno. Latina é alienar das possibilidades da abordagem amplos
Fenômeno, por sua vez, segundo Karwowski (2005), pode segmentos da população, e colaborar com o processo de
ser entendido no seu sentido estrito, como aparecer, ou sua aniquilação já a um nível conceitual” (Fonseca, 2011,
aquilo que se mostra por si mesmo, partindo do grego p. 15). Tal crítica tem proporcionado estudos e pesquisas
phainestai. Deste modo, não existe um fenômeno puro, que tentam uma aproximação da ACP com as fenomeno-
visto que a forma como o apreendo está diretamente li- logias, por acreditarem que tanto enquanto epistemolo-
gado aos meus valores, à minha história, o que colabora gia, método e filosofia, ela pode potencializar uma psi-
com a negação da neutralidade. cologia que integre o homem ao seu mundo.
Segundo Critelli (1996), o pensar fenomenológico não No Brasil, o movimento de discípulos de Rogers que
é privilégio somente dos filósofos. A partir dos anos 50 constroem uma interlocução teórica entre os fundamentos
do século passado, houve um grande desenvolvimento do da Abordagem Centrada na Pessoa e as Fenomenologias
enfoque fenomenológico para a Psicologia. O método feno- tem se revelado um terreno fértil e produtivo. Neste per-
menológico passou a fazer parte do campo da Psicologia curso, alguns se aliam a Husserl e sua ontologia trans-
tendo como objetivo capturar o sentido ou mesmo o sig- cendental (Holanda, 2001, 2009; Amatuzzi, 2009, 2010);
nificado da vivência da pessoa, tal qual experimentadas enquanto outros caminham ao lado de Heidegger, ten-
na sua existência concreta. Contrária à idéia de verdade tando uma hermêutica ontológica (Frota, 1997; Feijoo,
como veritas, a fenomenologia existencial busca conhe- 2000; Barreto & Morato, 2009); outros ainda buscam
cer a verdade como aletheia, como desvelamento. Desse Merleau-Ponty, e a possibilidade de uma fenomenologia
modo, acredita que a verdade é sempre precária, incom- encarnada (Moreira, 2007, 2009a). Vejamos alguns des-
pleta, parcial. Seu método também não é o mesmo da tes percursos, ainda em construção, numa visada super-
ciência positivista, constituindo-se num interrogar-se ficial e panorâmica.
constante. Na verdade, a fenomenologia surge como um Amatuzzi (2010) compreende que o percurso que
contraponto à ciência mecanicista, acenando para um Husserl faz, ao aprofundar a redução no contexto da fi-
novo modo de se produzir conhecimento e, principal- losofia, foi semelhante ao de Rogers, no contexto da psi-
mente, de ver o mundo. coterapia. Para ele, Husserl parte de uma colocação en-
Esta perspectiva surge rompendo com o modelo de tre parênteses da realidade do mundo e de uma concen-
ciência cartesiana e metafísica, que afirmava, conforme tração no próprio ato de conhecimento. Enquanto isso,
Artigo

já dissemos, que a verdade é universal e imutável, que o Rogers fala de deixar de lado tanto as teorias da pessoa
conhecimento científico poderia ser apreendido sem fa- que fala, quanto às do próprio sujeito. Assim, caminha

173 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012


Ana M. M. C. Frota

em direção ao puro vivido. Nesta perspectiva, assumida em contextos tão diversos e ignorando a realidade
por Amatuzzi (2010), concreta em função de uma visão subjetiva (Moreira,
2007 p. 57).
Rogers e Husserl se aproximam muito: eles usam o
mesmo método da redução, embora com finalidades Para a autora, Rogers não consegue ultrapassar o in-
diferentes. Um para clarear o problema do conheci- dividualismo, centrando-se no homem abstrato, descon-
mento e outro para abrir caminho para a experiência textualizado sócio-historicamente, o que dificulta a emer-
vivida numa relação facilitadora de crescimento. Hus- gência dos diferentes sentidos dos fenômenos. Moreira
serl chega na necessidade de um eu transcendental, (1990) afirma, que no primeiro momento do trabalho de
e Rogers formula as reduções necessárias para um Rogers, não existia nem mesmo a tentativa da busca de
contato humano profundo e criativo. Husserl acredita articulações de sentidos emergentes na relação terapeu-
que a redução desvenda uma face do humano que ta-cliente, uma vez que o cliente era mantido como cen-
tinha ficado escondida (o eu como sujeito) e cria a tro. O mesmo acontecia na fase reflexiva, já que as in-
necessidade de um novo conceito (o eu transcenden- terferências do terapeuta costumavam se dar a partir do
tal, que é afinal o eu sujeito). Rogers, um americano que era trazido pelo cliente e pelo que surgia na relação
pragmático, acredita que essa tríplice redução é que terapeuta-cliente. As fases posteriores iniciam a explo-
abre o caminho para os dinamismos da pessoa em ração dos mundos fenomenais da dupla terapêutica, via-
pleno funcionamento e é isso que lhe interessa (p. 9). bilizando uma fenomenologia da relação intersubjetiva
e não mais somente do cliente. Porém, ainda se mantém
Além disso, para Amatuzzi (2009), a atitude empáti- numa concepção de “centrado na pessoa”, mesmo que
ca de Rogers leva a entrar em contato não somente com seja bi-centrado, como afirma Cury (1987). Isso acaba por
o sentimento puro, mas com seu significado, captando o inviabilizar o processo terapêutico experienciado como
movimento intencional da experiência, que, nesta pers- inter-subjetivo, uma vez que continua existindo amarras
pectiva, seria muito mais verdadeiro. de uma concepção centrada na pessoa.
Defendendo a perspectiva de que “toda Psicologia é Para Moreira (2009a), é a crítica à visão antropocêntri-
e deve ser fenomenológica”, Holanda (2009, p. 1) afirma ca de homem que se constitui no principal fundamento
que para Husserl o fenômeno subjetivo é, antes de qual- epistemológico da psicologia humanista-fenomenológica,
quer outra coisa, um fenômeno intersubjetivo, o que sig- no qual ela vem trabalhando. O postulado que Rogers
nifica afirmar que o mundo não existe sem meu olhar. tinha da pessoa humana, considerando-a como centro,
Assim, não existe um mundo a ser visto e sim um inter- com um externo e um interno, como uma dicotomia en-
mundo. Evidencia-se aqui o conceito de mundo vivido: tre subjetivo e objetivo, impede que ele tenha uma prática
mundo que nos é dado antes de elaborarmos conceitos efetivamente fenomenológica. Assim: “Rogers desenvol-
sobre ele. Deste modo, veu uma teoria da psicoterapia centrada na pessoa e não
uma teoria psicoterapêutica fenomenológica mundana”
Não se trata da natureza enquanto realidade objetiva (Moreira, 2009a, p. 38). Como consequência, Moreira vem
(estudada pela ciência positivista), mas do mundo que desenvolvendo um trabalho de assimilação psicológica da
se dá na relação, que se mostra como fenômeno pri- teoria filosófica, ou seja, da fenomenologia de Merleau-
meiro e que pode ser depois elaborado no pensamento. Ponty, adotando-a como suporte para a construção de
Conhecer este mundo é, então, conhecer nosso estar uma psicoterapia humanista fenomenológica.
nele, conhecer nossas relações (Amatuzzi, 2009, p. 5). Husserl foi duramente criticado por ser considerado
idealista, buscando uma filosofia transcendental, acre-
Contudo, apesar da compreensão de que a Psicologia ditando que nada mais existe que o pensamento, e que a
não pode deixar de ver o fenômeno como uma fusão de realidade estaria nele. A crítica à intencionalidade e à re-
mundos, Rogers não parece ter se dedicado a esta premis- dução fenomenológica também foi grande (Critelli, 1996;
sa, é o que denunciam alguns seguidores da ACP. Senão Frota, 1997). Contudo, Merleau-Ponty não aceitou estas
como compreender as críticas que se seguem? críticas a seu mestre, assegura Amatuzzi (2010). Para
A partir da perspectiva de Moreira (2007) o objetivo ele, Husserl não era um idealista, pois o mundo já está
maior da proposta rogeriana é dar importância à pessoa, dado como pressuposto do próprio pensamento. Afirma:
referindo-se a qualquer pessoa. Como consequência, per-
de de vista a estrutura social que constitui o indivíduo. Se nos instalarmos no interior do pensamento e
Na verdade, parece que Rogers segue tentarmos deduzir daí o mundo como realidade
externa, jamais o conseguiremos. Se nos fecharmos
(...) falando de um homem subjetivo, que não se insere no pensamento, nada nos fará sair dele. Só há um
na realidade concreta, objetiva. Fala de um homem meio: compreender que o mundo já está dado como
Artigo

planetário, um homem do planeta Terra, ignorando um pressuposto, algo que podemos ver no próprio
todas as diferenças existentes entre homens que vivem pensamento, ou na consciência, desde que tenhamos

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012 174


Origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: O Caso da Abordagem Centrada na Pessoa

uma atitude fenomenológica. É a intencionalidade que A angústia e o temor são os modos de abertura do ser.
nos restitui o mundo. Através dela percebemos que Do mesmo modo, a propriedade e a impropriedade tam-
ele sempre esteve lá (Amatuzzi, 2010, p. 6). bém são características constitutivas do ente, que tem seu
ser em jogo. No modo próprio, o ser flui mais facilmente,
Para os profissionais que tentam um caminho merle- relacionando-se melhor com o ente. No impróprio, o ente
au-pontyano, a proposta da visão de homem antropocên- vive convenções, falatórios, regras sociais.
trica de Rogers é substituída pela visão de homem mun- Enfim, a fenomenologia ontológica de Heidegger abre
dano, criando condições de se construir uma psicoterapia uma possibilidade de, através da hermenêutica, chegar a
humanista fenomenológica. Deste modo, partindo de um um sentido do ser.
novo fundamento epistemológico e filosófico, a fenome-
nologia antropológica de Merleau-Ponty apresenta a no- Neste aspecto, cabe ao psicoterapeuta reconhecer a
ção de homem como encarnado no mundo, um homem inautenticidade, a impessoalidade e o esquecimento
enquanto um ser-no-mundo, um fenômeno em constante das possibilidades do cliente, como também seu po-
interação com o mundo. der ser mais próprio e pessoal na revelação de suas
Resta-nos indagar, até que ponto não se vem criando experiências para que, então, possa atuar como tal no
algo novo, tão novo, que rompe com a abordagem centra- espaço psicoterapêutico do outro (Feijoo, 2000, p. 16).
da, por caminhar por paradigmas outros que Rogers se
apoiou na construção de sua teoria? Será possível ainda Feijoo (2000) analisa a possibilidade de se fazer uma
falarmos de uma aproximação com a ACP, ou falamos de clínica fenomenológico-existencial partindo de Heidegger
uma construção que trilha outras veredas des-encontra- e de sua hermenêutica. Porém, não faz nenhuma aproxi-
das das de Rogers? mação com Rogers e a ACP. Para Lessa (2009), a clínica
Já na perspectiva da fenomenologia heideggeriana, existencialista, inspirada nas idéias de Heidegger, tem
da fenomenologia ontológica de Heidegger como método características bem específicas:
e base epistemológica para fazer uma articulação com a
psicoterapia, temos que a noção que se oferece como base (...) problematiza a vida enquanto processo de expe-
para a prática psicoterápica é a noção de homem como rimentação e não como uma representação daquilo
dasein, como ser-aí. Nesta perspectiva, o que importa é o que foi experimentado. Nosso objetivo principal é
ontológico e não o ôntico, embora saibamos que somen- pensar o modo como o clínico lida com as diferentes
te pela via do ôntico chegamos ao ontológico. Para saber concepções do ato de pensar que atravessam o plano
do ser do homem é necessário voltar-se a uma reflexão da clínica existencial, visando dar visibilidade tanto
ontológica, perguntar pelo ser do ente. Neste caminho, a sua concepção teórica quanto ao exercício efetivo de
o método hermenêutico é a via por meio da qual se pode sua prática. Especificamente pretendemos identificar
acessar ao sentido do existir em uma existência particu- em que a clínica existencial se diferencia da clínica
lar, única, e, ao mesmo tempo, tão imprópria. que se restringe à representação, destacando, assim,
Para Heidegger, o homem é um ser de cuidado e per- os elementos que propriamente constituem o modo
guntar pelo ser, remete ao ente e seu modo de cuidar de existencial de pensar a clínica (p. 15).
si. Como o ser não se mostra como é, e sim como repre-
sentação ôntica, deve-se partir do que se mostra para Barreto e Morato (2009) são categóricas ao negar a
chegar ao que se é. Ou seja, do impróprio para o próprio, possibilidade da ACP se constituir numa abordagem fe-
do inautêntico para o autêntico. nomenológico-existencial. Afirmam: “a abordagem feno-
O método hermenêutico é o modo de acesso à com- menológica existencial, tão acriteriosamente confundida
preensão do ser, via fala. Para Heidegger, os seres huma- com a Psicologia Humanista, com a Abordagem Centrada
nos falam enquanto escutam e a escuta já é uma fala. na Pessoa e a Gestalt-Terapia (...)” (p. 41-42). Nesta pers-
Assim, a fala é a casa do homem. Diz também que uma pectiva, os saberes e práticas baseadas na compreensão
visita de casa em casa é quase impossível. É no quase do sujeito separado do mundo, o sujeito em si, não dá
que transitamos, na psicoterapia, para compreender o conta de compreender o homem, Dasein e, muito me-
ser, já que abre uma possibilidade de diálogo, de visita à nos, de “proporcionar ao sujeito a compreensão do seu
casa do outro. Visito a casa do outro a partir da minha modo de ser no mundo, abrindo-lhe possibilidades para
casa (Feijoo, 2000). novas formas de existir, e devolver-lhe a capacidade de
Heidegger e sua perspectiva de fenomenologia suge- dispor das possibilidades próprias e mais autênticas”
rem uma possibilidade de pensar a questão do ser. Está (p. 45), que seria o objetivo da psicoterapia fenomenoló-
completamente entranhada na sua filosofia ontológica. gica existencial.
O homem, dasein, é um ser lançado no mundo, cuja pré- A partir de uma visada crítica, Barreto (2006) acredi-
-sença é a abertura de possibilidades completa e total de ta que Rogers desenvolveu a “teoria da Terapia Centrada
Artigo

existência. É um ser incompleto, somente se completan- no Cliente, na qual manteve a idéia de desenvolvimento
do com a morte. Assim, quando o Dasein é, não é mais. autocentrado, hipervalorizando a pessoa-indivíduo e as-

175 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012


Ana M. M. C. Frota

sumindo a perspectiva do humanismo romântico presente Concluindo... se é que se pode concluir algo
no pensamento moderno” (p. 117). Acredita que Rogers
concebe sua teoria numa “estrita ideologia individualis- Apesar da crítica ao trabalho de Rogers – talvez até
ta, centrada na possibilidade inesgotável do potencial um pouco imerecida, já que ele nunca se disse fenome-
humano que se realiza a si mesmo, transformando o res- nólogo – muito das contribuições da ACP fazem parte da
to do mundo em meros intermediários, os quais funcio- prática clínica da psicoterapia humanista fenomenológi-
nam como forças facilitadoras ou dificultadoras” (p. 117). ca. A consideração positiva incondicional, por exemplo,
A autora desacredita que a Abordagem Centrada na quando compreendida como respeito ao outro, respeito à
Pessoa, tal como postulou Rogers, reconheça a possibili- alteridade, à particularidade, permite reconhecê-la como
dade do acontecer humano em um mundo adverso, uma a confirmação do outro como um outro que mantém um
vez que assume a intenção de expurgar a dimensão do trá- diálogo comigo. Tomando a mesma linha de pensamento,
gico da existência humana. Desse modo, afirma, “Rogers a relação empática deixa de ser criticada por seu romantis-
não estaria apontando para possibilidades de compreen- mo, para ser valorizada como a inauguração de uma par-
der a existência humana como ser-no-mundo-com-outros, ceria da dupla cliente-terapeuta, pressupondo uma com-
porque ainda se baseava em uma compreensão de ação preensão e aceitação efetiva do outro, enquanto diferente.
clínica fundamentada na liberação da força vital de au- Muitos caminhos vêm sendo desvendados. Muitas tri-
to-realização do indivíduo” (p. 123). Assim, parece cla- lhas ainda a serem abertas. Rogers vem sendo discutido,
re-inventado, por muitos de seus seguidores que, ávidos
ro que declara uma cisão entre a ACP e a Hermenêutica
por ampliar seus campos de compreensão, perscrutam
heidegeriana.
diferentes possibilidades. Fica o desejo de conhecer no-
Para uma aproximação de uma clínica fenomenoló-
vos horizontes investigados, sem preconceito, com a men-
gica existencial, na compreensão de Barreto e Morato
te aberta para o novo e o diferente. Atentos, no entanto,
(2009), a ação deve ser
para o cuidado de não nos perdermos numa construção
na qual a tessitura se esgarce, se rompa, se parta em pe-
(...) repensada como um espaço aberto, condição de
daços frankensteinianos, por total falta de coerência pa-
possibilidade para a emergência de uma transfor-
radigmática e prática.
mação não produzida, mas emergente em forma de Rogers não se voltou a construir uma teoria fenome-
reflexão, aqui compreendida como quebra do estabele- nológica. Tal movimento é mais uma característica con-
cido e condição necessária para um novo olhar poder temporânea, feita por pesquisadores que têm se voltado
emergir. Esse novo olhar, ao desalojar o homem da sua a estudar filosofia fenomenológica. Assim, a busca por
habitual relação com o mundo e a consciência, abre aproximar Rogers de Husserl, Heidegger e Merleau Ponty,
um espaço que só aparece quando o habitual é des- por exemplo, é muito mais uma preocupação atual, do
construído e o homem (Dasein) se descobre entregue que a que foi assumida por Rogers.
à tarefa inexorável de ter-que-ser (p. 50). Os destinos da Abordagem Centrada na Pessoa, como
Terapia Humanista Existencial estão se deixando desco-
Há, no entanto, pensamentos divergentes. Para brir/construir. A obra de Rogers está viva e, como tal, em
Bezerra (2007), por exemplo, é possível uma articulação processo. Talvez nesta fase pós-rogeriana, tal como refe-
entre a ACP e Heidegger. Apresentando alguns conceitos rendada por Segrera (2002), se construa algo não novo
utilizados por psicólogos que adotam o modelo fenome- que ganhe nomes e existência própria. Estaremos falan-
nológico-existencial, Bezerra (2007) destaca o conceito de do ainda da Abordagem Centrada na Pessoa?
angústia como possibilidade de revelação de um projeto
existencial inserido em um contexto situacional, e não
como um sintoma psicopatológico a ser extinto. Acredita Referências
a autora que
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Artigo

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Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal do Ceará
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de Ciências Agrárias (Departamento de Economia Doméstica) - Campus
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do Pici, s/n, CEP 60455-760 (Fortaleza/CE). E-mail: anafrota@ufc.br
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Recebido em 12.02.2012
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gre: Artes Médicas. Aceito em 30.11.12
Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 168-178, jul-dez, 2012 178


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

“VERSANDO SENTIDOS” SOBRE O PROCESSO DE


APRENDIZAGEM EM GESTALT-TERAPIA

“Traversing Meanings” About the Learning Process in Gestalt Therapy

“Ejercitando Sentidos “ Sobre el Proceso de Aprendizaje en Terapia Gestalt

João Vitor Moreira M aia


José Célio Freire
M ariana A lves de Oliveira

Resumo: Propomo-nos, a partir de um estudo exploratório, questionar: como se dá o processo de facilitação da aprendizagem em
Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? Fez-se necessário compreender como a Gestalt-terapia, em seus referenciais teóricos,
entende o processo de facilitação da aprendizagem. Nesse sentido, nos detivemos em estudos sobre Gestaltpedagogia, e sobre a
formação do psicoterapeuta na Abordagem Gestáltica. Ampliamos nossos referenciais a partir das ideias de Martin Buber sobre
Educação e sobre a Filosofia Dialógica, estabelecendo também o diálogo com a Filosofia da Alteridade de Emmanuel Lévinas,
especificamente no que diz respeito ao conceito de ensino. Partindo do pressuposto que tais referenciais teóricos orientam nos-
sa prática docente, intencionamos ilustrar nosso entendimento e vivência sobre a temática utilizando-nos das versões de sentido
realizadas por uma aluna que participou do Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, oferecido aos estudantes de gra-
duação do Curso de Psicologia na Universidade Federal do Ceará. Propomos uma prática docente que possibilite afetação, em
que se experiencie o abandono das referências, das seguranças do conhecido, e que proponha um conhecimento a partir desta
afetação provocada pela exposição ao outro do professor, dos livros e pelas experiências vividas a partir da experiência concre-
ta em sala de aula.
Palavras-chave: Processo de aprendizagem; Gestalt-Terapia; Dialogicidade; Alteridade; Versão de sentido.

Abstract: Starting from an exploratory study, we are questioning How the process of learning facilitation in Gestalt therapy
works in the academic environment? It was necessary to understand how Gestalt Therapy views the process of learning facilita-
tion in its theoretical references. Accordingly, we focus our readings in the Gestaltpedagogy studies, and on the training of psy-
chotherapists in the Gestalt approach. We expanded our references from the ideas of Martin Buber on Education and Dialogical
Philosophy as well, thus establishing a dialogue with Emmanuel Levinas’s Otherness Philosophy, specifically regarding the
concept of Teaching. Assuming that such theoretical references guide our teaching practice, we intend to illustrate our under-
standing and experience on the subject using the versions of meanings performed by a student who participated in the Training
Course in the Gestalt Approach, offered to Psychology Course graduating students at the Federal University Federal of Ceará.
We propose a teaching practice that enables affectation, the experiences of references` abandonment, the security of the known.
We are proposing a knowledge from this affectation caused by exposure to the otherness of the teacher, of the books and the ex-
periences from the concrete experience in the classroom.
Keywords: Learning process; Gestalt Therapy; Dialogicality; Otherness; Versions of meanings.

Resumen: Se propone como un estudio exploratorio interrogar: ¿cómo es el proceso de facilitar el aprendizaje en la terapia
Gestalt en el ámbito académico? Se hizo necesario entender cómo la terapia Gestalt en sus referencias teóricas entiende el pro-
ceso de facilitar el aprendizaje. Con ello, nos detuvimos en estudios sobre Gestaltpedagogía, y sobre la formación del psico-
terapeuta el Abordaje Gestáltica. Hemos ampliado nuestras referencias a partir de las ideas de Martin Buber sobre Educación
y sobre Filosofía Dialógica, estableciendo asimismo el diálogo con la Filosofía de la Alteridad de Emmanuel Levinas, en par-
ticular con respecto al concepto de la enseñanza. Suponiendo que tales referenciales teóricos orientan nuestra práctica do-
cente, tenemos la intención de ilustrar nuestro conocimiento y la experiencia sobre el tema utilizándonos de las versiones de
sentido realizadas por una estudiante que participó del Curso de Capacitación en el enfoque de la Gestalt, que se ofrece a los
estudiantes del Curso de Psicología de la Universidad Federal de Ceará. Proponemos una práctica docente que permite la afec-
tación, como lo experimenta el abandono de los referenciales, la seguridad del conocido, y proponer un conocimiento desde
esta afectación causada por la exposición al otro del profesor, de los libros y de las experiencias vividas en la experiencia con-
creta en las clases.
Palabras-clave: Proceso de aprendizaje; La terapia gestalt; Dialogicidad; Alteridad; Versión de sentidos.
Artigo

179 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012


João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira

Introdução colocado a teorização em segundo plano, o que viria a


possibilitar a concepção de que “a formação do psicote-
Este trabalho tem por objetivo apresentar os relatos rapeuta humanista é mais fácil e que o aluno teria que
iniciais das experiências vividas e as reflexões cons- estudar menos, uma vez que o que vale é a vivência das
truídas a partir do Curso de Capacitação na Abordagem emoções” (p. 97). Moreira (2007) ressalta a necessidade
Gestáltica, oferecido aos alunos de graduação do Curso da fundamentação teórico-filosófica dos enfoques psico-
de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, em terápicos humanistas, enfatizando a importância da pes-
Fortaleza, como projeto específico do PROPAG/UFC, no quisa fenomenológica mundana, na elaboração de uma
qual propomos uma atividade essencialmente relaciona- “prática clínica competente, comprometida com o homem
da ao processo de ensino/aprendizagem da Gestalt-terapia e com o mundo” (p. 108).
como abordagem psicológica e atuação clínica. Buscou-se Ao analisarmos a história da Gestalt-terapia como
ao longo do curso proporcionar uma melhor fundamen- abordagem psicoterápica, nos deparamos com o fato de
tação epistemológica e teórica, colaborando com a forma- que ela “(...) esteve tradicionalmente avessa à teorização e
ção do psicoterapeuta iniciante, no sentido também de aos ‘sobreísmos’, intencionando com isso jamais despren-
proporcionar um maior embasamento teórico-vivencial der-se da realidade última e insuperável que é a vivên-
na Abordagem Gestáltica. cia” (Karwowski, 2005, pp. 9-10). Tal compreensão gerou
Ao longo do curso referido, intencionamos examinar um distanciamento de seus teóricos, em suas primeiras
as temáticas relativas às bases históricas e epistemoló- décadas de história, do desafio e disciplina na constru-
gicas da Gestalt-terapia, em sua implicação na teoria e ção de uma fundamentação teórico-epistemológica con-
nos fundamentos da prática clínica nesta abordagem. sistente e coerente, ressaltando que, desde a década de
Destaca-se que, por compreender as psicologias como oitenta, percebe-se um esforço por parte dos maiores ex-
construções sócio-históricas, propomos uma reflexão poentes da comunidade gestáltica na construção desse
crítica acerca dos conhecimentos e práticas produzidas alicerce teórico.
pelas Psicologias, e mais especificamente pela Gestalt- Neste sentido, Holanda (2005) ressalta que “a teoria e
terapia, buscando entender as circunstâncias históricas, a prática de uma abordagem não podem estar dissocia-
sociais, econômicas e políticas em que as abordagens psi- das de uma construção coerente e de uma fundamentação
cológicas foram construídas e legitimadas socialmente, sólida, bem como devem estar situadas num determinado
sabendo que este processo de construção persiste e se contexto” (p. 24). Assim, tomamos como compromisso em
renova constantemente. nossa prática docente o ensino da Gestalt-terapia pauta-
Observamos que, na condição de abordagem psico- do em um rigor teórico-epistemológico, no entanto, sem
lógica, a Gestalt-terapia vem, em sua história recente, esquecermos do aspecto vivencial, tão enfatizado pelas
se aproximando do espaço acadêmico, com gestalt-te- abordagens fenomenológico-existenciais.
rapeutas ocupando cada vez mais o lugar na docência Na medida em que as abordagens psicológicas, “devem
e na elaboração de trabalhos acadêmicos – trabalhos de estar situadas num determinado contexto”, como aponta
conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de Holanda (2005, p. 24), tomamos também como desafio as
doutoramento – que trazem como temáticas questões te- colocações de Figueiredo (2009), quando afirma sobre a
óricas e práticas relacionadas à Abordagem Gestáltica. urgência em estabelecermos em nossas teorizações “(...)
Contudo, ainda nos parecem escassos os trabalhos que uma discussão histórica, sociológica e filosófica acerca do
se propõem a versar sobre o processo de ensino/aprendi- mundo em que vivemos, das formas dominantes de exis-
zagem na Gestalt-terapia no âmbito acadêmico, que em tir neste mundo e de como as psicologias contemporâneas
nosso entendimento traz desafios diferentes dos normal- são modos de tomar partido em relação aos problemas da
mente encontrados nos cursos de formação/especialização contemporaneidade” (p. 30).
nesta abordagem. Intencionamos, ao longo do presente Assim, a partir desta proposta de atividade docente e
trabalho, apresentar e discutir os desafios encontrados das experiências vivenciadas ao longo do processo, surgiu
em nossa experiência, fazendo também provocações sobre a necessidade de questionar: como se dá o processo de fa-
a pertinência desta temática e a necessidade de estudos cilitação da aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente
que venham a alargar tais questionamentos, entendendo acadêmico? Na tentativa de responder esta interrogação,
que os temas aqui refletidos necessitam de um esforço primeiramente, fez-se necessário compreender como a
mais árduo do que o espaço de um artigo nos possibilita. Gestalt-terapia em seus referenciais teóricos entende o
Destacamos a importância de discutirmos o processo processo de ensino/aprendizagem. Neste sentido, recor-
de aprendizagem da Gestalt-terapia no campo acadêmi- remos aos trabalhos de Burow e Scherpp (1985) sobre a
co, também pela forma que historicamente as abordagens Gestaltpedagogia, e de Cardella (2002) sobre a formação
humanistas são apresentadas e discutidas nos cursos de do psicoterapeuta. Ampliamos nossos referenciais para
graduação. Neste sentido, Moreira (2007) nos fala que as os trabalhos de Martin Buber sobre Educação e sobre a
Artigo

abordagens psicológicas humanistas, muitas vezes a par- filosofia dialógica, e propomo-nos também o diálogo com
tir da preocupação prioritária com a experiência, teriam a filosofia da alteridade radical de Emmanuel Lévinas.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012 180


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

1. A Influência da Gestaltpedagogia que este compreende e trata aquele como ser humano to-
tal, não sendo percebido somente em sua função de aluno.
Burow e Scherpp (1985) entendem a Gestaltpedagogia Entende-se que na concretização da influência da ges-
como um termo abrangente para conceitos pedagógicos taltpedagogia em práticas educacionais, dá-se ênfase aos
que se orientam pelas ideias teóricas e práticas da Gestalt- aspectos experienciais dos afetos e emoções, de auto-co-
terapia e da Psicologia da Gestalt. Ressaltam que antes nhecimento e das relações interpessoais da situação de
que se inicie qualquer prática pedagógica faz-se necessá- aprendizagem. Sobre isso, parece-nos interessante e ca-
rio que se tenham claros os objetivos, antes mesmo que bível estabelecermos um paralelo da proposta da gestal-
se busquem os métodos e conteúdos com os quais eles tpedagogia com algumas das críticas que Moreira (2007)
possam ser melhor alcançados. Toma-se também como tece à proposta educacional defendida por Carl Rogers.
premissa que os objetivos, os meios e conteúdos de ensi- Dentre outras críticas que Moreira (2007) formula
no se encontram em dependência recíproca, afirmando- sobre a abordagem centrada no aluno, proposta por Carl
-se assim, a necessidade de harmonizá-los. Rogers, destacamos uma que nos parece particularmen-
Burow e Scherpp (1985) ao retratar o trabalho de te importante para revermos a influência da gestaltpe-
Besems, um gestaltpedagogo que formula explicitamente dagogia nas práticas educacionais. Para Moreira (2007),
seus objetivos a partir de uma perspectiva político-social Rogers na medida em que privilegia a experiência vivida
– em sua concepção de um ensino intersubjetivo – citam pelo aluno enquanto pessoa desvaloriza a transmissão de
quatro objetivos amplos: conhecimentos no ensino, e nos adverte:

(1) A autoconscientização e a ampliação das próprias O ensino não somente inclui elementos que se rela-
possibilidades, dos modelos de comunicação e do cionam com aspectos pessoais e sociais (objetivos
comportamento frente aos outros e às coisas, e das da psicoterapia), mas também incorpora matérias
possibilidades de mudança direta do meio social [...] mais específicas, relacionadas com a transmissão do
(2) Proporcionar discernimento sobre o próprio fun- saber. Uma sala de aula é o lugar onde se relacionam
cionamento e sobre as relações históricas e sociais dialeticamente ser e saber, inseridos numa realidade
desse funcionamento nos contextos interpessoal e so- institucional e, por conseguinte, social (p. 75).
cial [...] (3) A ampliação das possibilidades de escolha
do indivíduo quanto a si próprio, quanto aos outros e Friedman (2002) quando nos fala sobre a perspecti-
em relação ao mundo [...] (4) Criar premissas a fim de va educacional em Martin Buber, refere-se a esta ques-
racionalizar o discernimento da interdependência de tão suscitada por Moreira (2007), apontando um conflito
funções e, assim, possibilitar a representação ativa de entre as perspectivas filosóficas modernas da educação,
interesses (pp. 109-110). sugerindo que este segue até os dias atuais. De um lado,
temos aqueles que enfatizam a importância de os objeti-
Podemos entender que, em uma prática orientada ges- vos educacionais serem obtidos a partir dos grandes li-
taltpedagogicamente, o objetivo central é o de possibilitar vros, da tradição clássica, ou do conhecimento técnico.
ao indivíduo o desenvolvimento de suas potencialidades Do outro lado, estão aqueles que enfatizam o aspecto sub-
e de uma consciência sócio-política. Para tanto, segun- jetivo do conhecimento e olham para a educação como
do a visão da gestaltpedagogia, é preciso apenas que se o desenvolvimento do poder criativo ou como a assimi-
criem as condições necessárias. lação das experiências pedagógicas a partir dos interes-
Outro objetivo central da gestaltpedagogia é do levar ses e necessidades subjetivas do aluno. Friedman (2002)
em conta, de forma adequada, o aspecto emocional no nos adverte que, dentro das reflexões de Buber sobre o
processo de aprendizagem. Compreende-se que tomar o processo educacional, estas duas propostas teóricas re-
aspecto emocional também como um objetivo central é presentam aspectos parciais de um todo, e afirma que a
de fundamental importância para o processo de aprendi- educação se dá quando:
zagem de uma abordagem psicológica, proposta em um
espaço universitário, haja vista que, tradicionalmente, o (...) o aluno cresce através do encontro com a pessoa
ambiente acadêmico privilegia os conhecimentos cogni- do professor e o Tu do escritor. Neste encontro, a
tivos, em detrimento das outras formas de conhecimento. realidade que o professor e o escritor lhe apresentam
Burow e Scherpp (1985) nos esclarecem que a modi- se torna viva para o aluno: ela é transformada de po-
ficação da relação interpessoal entre aluno e professor tencial, abstrata, e sem relação para uma forma atual,
é de fundamental importância para a gestaltpedagogia. concreta, e como presença imediata da pessoa e ainda,
Pretende-se que o professor veja e aceite o aluno em sua em certo sentido, como uma relação de reciprocidade.
existência como ser humano, como premissa para o de- Isso significa que, nenhuma verdadeira aprendizagem
senvolvimento de um clima de confiança mútua, fran- ocorre a menos que o aluno participe, mas também
Artigo

queza e autenticidade de comunicação na sala de aula. significa que o aluno deve encontrar algo realmente
A relação intersubjetiva entre aluno e professor significa “outro” do que ele antes que possa aprender (p. 209).

181 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012


João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira

Tomamos como fundamento de nossa prática do- Essa metáfora, da Vereda Estreita, rejeita uma solução
cente esta perspectiva, de que o processo educacional tranquila para as questões humanas, afirmando ainda a
se dá pelo encontro do estudante com a pessoa do pro- existência de paradoxos e contradições, presentes em cada
fessor e com livro, na medida em que o aluno se vê im- situação da condição humana. Buber (1942/1963) formula
plicado por este encontro com algo que lhe é diferente, esta perspectiva, se contrapondo às perspectivas filosófi-
outro. Temos aqui uma primeira sinalização do apren- cas que buscam estabelecer uma condição de segurança
dizado pela alteridade, dos outros e dos livros, sem a experiência humana, destacando dentre elas o pensa-
que possamos em nossas práticas de ensino prescindir mento hegeliano. Para Buber (1942/1963),
dos aspectos pessoais e sociais, bem como dos objeti-
vos mais específicos relacionados com a transmissão/ Hegel tenta dotar o homem com uma nova se-
construção do saber. gurança (...) O sistema de Hegel representa, no
pensamento ocidental, a terceira grande tentativa
de segurança: depois da cosmologia de Aristóteles
2. A Filosofia Dialógica de Martin Buber e suas Con- e a teologia de São Tomás, temos a logológica de
tribuições à Educação Hegel. Ela subjuga qualquer insegurança, toda
inquietude sobre o sentido, todo o medo pela deci-
Outro referencial teórico que tomamos, e a partir do são, toda problemática abissal (p. 48).
qual estabelecemos relações com o processo de ensino/
aprendizagem da Gestalt-terapia, é o pensamento filo- Buber (1942/1963) entende que Hegel exerceu uma
sófico de Martin Buber, a partir da antropologia filosó- influência decisiva tanto sobre a maneira de pensar de
fica. Dentre as contribuições de Buber para a reflexão uma época, como também nas atitudes sociais e políti-
sobre Educação, destacamos neste estudo as ideias de cas. Influência que teria favorecido o distanciamento da
Inclusão e de Vereda Estreita, e suas reflexões sobre os pessoa humana concreta e da sociedade humana concre-
modos como se dá o conhecimento, que nos possibili- ta em favor de uma experiência racionalizada do mundo,
tam pensar o processo educacional menos pela via da de processos dialéticos e formações objetivas. Criticando
construção metodológica, e mais por meio de uma pers- esta perspectiva racionalizada da experiência humana e
pectiva filosófica. do mundo, ele nos fala:
Por Inclusão, podemos entender a capacidade de o in-
divíduo, engajado no encontro dialógico, manter duplo se o homem é o lugar e o meio onde a razão do mundo
sentimento, tendo consciência de si próprio e, ao mes- se conhece a si mesma, então não há limite algum para
mo tempo, percebendo o outro na sua alteridade singu- o que o homem pode saber. De acordo com a ideia, ele
lar. Para Buber (conforme citado por Hycner, 1997), a realiza tudo, tudo o que há na razão (p. 48).
atitude de inclusão é fundamental para que se estabele-
ça uma relação dialógica genuína, traduzindo o concei- Buber, em toda sua antropologia filosófica, contrapõe-
to de inclusão como “(...) um salto audacioso – exigindo -se a esta perspectiva de segurança na experiência hu-
a mais intensa mobilização do próprio ser – na vida do mana, e afirma que “a grandeza do homem surge de sua
outro” (p. 42). miséria”, da “da atitude da pessoa que se encontra, sem
Na perspectiva buberiana sobre educação, o mais morada, na intempérie do infinito” (Buber, 1942/1963,
importante no encontro do professor com o estudante é p. 35). Sobre o homem, Buber (1942/1963) entende que,
que ele experiencie o aluno do outro lado, sendo que se
este processo é vivido de maneira real e concreta é remo- (...) este se encontra no mundo como um estrangeiro
vido o perigo de que o ensino se dê de maneira arbitrá- e um solitário. Quando se dissipa uma imagem de
ria, e se dê a partir do reconhecimento das necessidades mundo, prontamente surge uma nova pergunta por
dos alunos na relação destes com o mundo (Friedman, parte deste homem que se sente inseguro, sem-teto,
2002). Outro conceito que pretendemos trabalhar neste que se questiona sobre si mesmo (...) Uma vez que
estudo é o de Vereda Estreita. Por ele, Buber (1942/1963) se tenha levado a sério o conceito de infinito, não é
desejava expressar que, como humanidade, não estamos possível transformar o mundo em uma mansão para
situados sobre o homem (p. 36-37).

(...) o amplo planalto de um sistema que compreende Podemos entender que, no que diz respeito ao mun-
uma série de proposições seguras sobre o Absoluto, do humano, delimitado pelo problema do homem, não
mas que me sustentava em uma vereda estreita que existe nenhuma segurança sobre o futuro, sobre o des-
se erguía sobre o abismo, sem ter segurança alguma conhecido. A partir destas concepções e entendendo o
de um saber expressável em proposições, mas sim, processo educacional como uma experiência do mundo
Artigo

tendo a certeza do encontro com o que permanece humano, caminhar pela Vereda Estreita nos sinaliza que
oculto (p. 126). não temos nenhuma garantia; há suporte, mas nenhum

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012 182


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

substituto para o envolvimento na experiência imediata. Diante da exigência desta forma de tomada de conhe-
Lança-se assim o desafio: como utilizar a segurança das cimento, que se mostra na necessidade de abertura para
teorias e, ainda assim, não utilizá-las como uma defesa entrar em contato com a palavra que me é dirigida e da
contra o desconhecido? exigência de uma resposta, nos questionamos sobre a
Outra reflexão que intencionamos estabelecer tem re- forma de podermos facilitar em nossos alunos a consci-
lação com as formas como Buber entende que se dá o co- ência destes três modos de conhecer, e facilitar com que
nhecimento do homem. Devido à especificidade do pro- nas relações com os outros em psicoterapia, seja possível
cesso educacional ao qual nos propomos, o de facilitar a uma atitude que lhes permita também uma tomada de
formação de futuros terapeutas, entendemos que o conhe- conhecimento íntimo.
cimento de que tratamos não se dá simplesmente por uma
via cognitiva ou racional, mas trata-se de um conhecimen-
to sobre o humano, conhecimento por parte do aluno de 3. A Alteridade nas Abordagens Psicológicas e na
sua condição humana e da forma como ele percebe e se Aprendizagem das Mesmas
relaciona com os outros humanos. Neste sentido, Buber
(1982/2009) nos fala de três maneiras pelas quais podemos Neste momento, recorremos ao trabalho de Freire
perceber um homem que vive diante dos nossos olhos. (2002), onde o autor nos provoca ao questionamento so-
Uma destas formas se dá pela observação, quando bre de que forma as abordagens psicológicas possibilitam
se está: o encontro do sujeito com a alteridade do outro e de si,
com o desconhecido, o diferente, o desafiante; usando as
(...) inteiramente concentrado em gravar na sua mente teorias como dispositivos de “descentramento”, possibi-
o homem que observa, em ‘anotá-lo’. Ele o perscruta e litando a dissolução das ilusões de unidade e identida-
o desenha. E na verdade ele se empenha em desenhar de do sujeito moderno, reconhecendo a fragmentação e
tantos ‘traços’ quanto possível. Ele os vigia para que a multiplicidade do indivíduo. A partir destas provoca-
nenhum lhe escape (Buber, 1982/2009, p. 41). ções, propomo-nos a refletir sobre a necessidade de es-
tabelecermos algumas proposições para o ensino destas
Para Buber (1982/2009), outra forma se dá a partir da psicologias, que para Freire devem possibilitar o encontro
contemplação, quando não se está absolutamente concen- do sujeito com a alteridade do outro e de si. Parece-nos
trado, e é possível para o contemplador se colocar numa que as formas tradicionais de ensino e aprendizagem não
atitude que lhe permita ver o objeto livremente e esperar dão conta de facilitar nos alunos a construção e a prática
despreocupado aquilo que a ele se apresentará. Destaca destas psicologias, às quais estamos sendo convocados.
que a atitude do contemplador só de início pode ser go- Na direção das ideias de Freire (2002), Cardella (2002)
vernada pela intenção, sendo que logo em seguida tudo no livro A construção do psicoterapeuta refere-se ao “tra-
que se segue é involuntário. balho do psicoterapeuta como confronto com a alterida-
Apesar das atitudes de observação e de contempla- de” (p. 87). A autora compreende como condição para o
ção se caracterizarem por uma diferença significativa, trabalho do psicólogo uma atitude de abertura para que
Buber nos esclarece que o observador e o contemplador a alteridade do outro ressoe em sua própria alteridade.
estão na mesma posição, justamente o desejo de perceber Seria, assim, “no confronto com as alteridades do outro
o homem, tomando este homem como objeto, que assim e de nós mesmos que este trabalho se realiza” (Cardella,
não lhes exige “nenhuma ação e nem lhes impõe destino 2002, p. 89).
algum; pelo contrário, tudo se passa nos campos distan- Na tentativa de compreender e construir uma proposta
tes da estesia” (Buber, 1982/2009, p. 42). de ensino que possibilite ao professor de psicologia e psi-
Para Buber (1982/2009), existe uma percepção que é coterapia o aprendizado do aluno nesta abertura à alteri-
de uma espécie decididamente diferente, a qual chama dade, Cardella (2002) apoiando-se na filosofia mestiça de
de tomada de conhecimento íntimo, na qual em um dado Michel Serres, entende o processo de aprendizagem como
momento receptivo de nossa vida pessoal, encontra-nos exposição e estranhamento. Nesta perspectiva, o processo
um homem em que há alguma coisa, que não consegui- de aprendizagem “se dá quando ocorre o ‘estranhamento’,
mos captar de uma forma objetiva, que nos ‘diz algo’, não a experiência de olhar de diversos ângulos ou perspecti-
significando que isto que nos foi dito fale como este ho- vas, de sair do lugar conhecido e familiar, de partir para
mem é ou o que se passa nele, não sendo possível retra- o desconhecido, de desbravar” (Cardella, 2002, p. 92).
tar nem descrever o homem no qual, pelo qual, algo nos A mesma autora (2002) afirma ainda que se faz ne-
foi dito, nada podemos contar sobre ele; se tentássemos cessário que o processo de aprendizagem possibilite ao
fazê-lo, já seria o fim do dizer. Buber (1982/2009) ressalta aprendiz passar pela experiência de abandono das refe-
que este homem não é nosso objeto, e na verdade, “o que rências, no qual se experimenta a exposição, a solidão,
importa agora é unicamente que eu me encarregue des- a errância, sendo função do educador facilitar o proces-
Artigo

te responder. Mas em cada instância aconteceu-me uma so pelo qual o aluno possa viver o risco de conhecer,
palavra que exige uma resposta” (p. 43). deslocando-o de sua estabilidade, ou seja, provocá-lo e

183 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012


João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira

facilitar sua exposição ao outro, provocando estranha- de fora” (p. 31). Para Lévinas a perspectiva maiêutica,
mentos, o que possibilitaria que todos os sentidos pos- em seu sentido último, tem a ver com a permanência no
sam ser vertidos. Mesmo. Nestes termos, “conhecer equivale a captar o ser
a partir de nada ou a reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a
Educar é, portanto, levar o aprendiz a compreender sua alteridade” (Lévinas, 1980/1988, p. 31).
que é outro para si mesmo e, assim, reconhecer a exis- Neste momento, aproximamos a concepção de Buber
tência do diferente em si e no outro. Isso possibilita de tomada de conhecimento íntimo, que se dá pela condi-
um deslocamento, e a experiência da complexidade ção de abertura para entrar em contato com a palavra que
que possibilita o aprender. O aprendiz deve experi- me é dirigida e da exigência de uma resposta, com a pers-
mentar o conhecido e o enigmático, o esperado e a sur- pectiva levinasiana de Discurso, que se dá pela condição
presa, o estranho e o familiar (Cardella, 2002, p. 93). de abertura e resposta ao outro, logo ética. Permitimo-nos
utilizar uma extensa citação de Lévinas (1980/1988) que
A partir desta perspectiva de Educação, Cardella nos esclarece as questões aqui discutidas:
(2002) afirma que o professor de psicoterapeutas deve pro-
mover a experiência de perda de referências, de errância, O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a
de suspensão, para que o aluno possa se deparar com o ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de facto, rosto.
outro em si mesmo. A autora destaca ainda: Esta maneira não em figurar como tema sob meu
olhar, em expor-se como um conjunto de qualidades
Na formação de psicoterapeutas é importante que que formam uma imagem. O rosto de Outrem destrói
haja oportunidade para que o aluno seja mobilizado, em cada instante e ultrapassa a imagem plástica que
perturbado, sob pena de deixar a universidade sem ele deixa, a ideia à minha medida e à medida do seu
aprender, num nível básico, a fazer uso de sua própria ideatum – a ideia adequada [...] Exprime-se. O rosto,
experiência, o instrumento terapêutico por excelên- contra a ontologia contemporânea, traz uma noção de
cia, e colocá-la a serviço do outro (p. 94). verdade que não é o desvendar de um Neutro impes-
soal, mas uma expressão [...] Abordar Outrem no dis-
Cardella (2002) sintetiza que a tarefa da formação curso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em
de psicoterapeutas seria a de contribuir para que o alu- cada instante a ideia que dele tiraria um pensamento.
no desenvolva alguma familiaridade e, talvez, muita es- É, pois, receber de Outrem para além da capacidade do
tranheza, perante si mesmo: suas crenças, seus valores, Eu; o que significa exatamente: ter a ideia do infinito.
seus afetos, suas emoções, suas concepções, seus desejos, Mas isso significa também ser ensinado. A relação
suas necessidades, seus pontos cegos e suas dificuldades. com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica,
A partir destas colocações acerca do familiar e da alte- uma relação ética, mas o discurso acolhido é um
ridade, recorremos ao pensamento de Emmanuel Lévinas. ensinamento. O ensinamento não se reduz, porém, à
Propomo-nos, assim, o diálogo com a filosofia da alteri- maiêutica. Vem do exterior e traz-me mais do que eu
dade de Lévinas, especificamente no que diz respeito ao contenho. Na sua transitividade não-violenta, produz-
conceito de ensino que se dá pela epifania do rosto. -se a própria epifania do rosto (p. 37-38).
Destacamos que o pensamento de Lévinas parte de
uma crítica à filosofia tradicional, em especial a ontolo- Dentro desta perspectiva ética de ensinamento, como
gia, que em seu entendimento estabelece o primado do acolhimento ao discurso, o saber significa “(...) uma rela-
Mesmo, usurpando de suas teorizações o lugar do Outro, ção tal com o ser que o ser cognoscente deixa o ser conhe-
para Lévinas anterior a questão do Eu. Assim, Lévinas cido manifestar-se, respeitando a sua alteridade e sem o
constrói seu pensamento ético-filosófico rompendo com marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento”
as tradições filosóficas ocidentais, que se caracterizam (Lévinas, 1980/1988, p. 29). Sabedoria ensinada pelo ros-
pelo pensamento totalizador e pela primazia do Mesmo. to do outro homem, na medida em que abrimos mão dos
Com relação à primazia do Mesmo, para Lévinas saberes totalizantes que se dão pela primazia do Mesmo.
(1980/1988) a Teoria, a Razão, e a Representação – con- Ensinamento ético a partir do qual “(...) o Mesmo só pode
ceitos tradicionalmente privilegiados nos processos edu- juntar-se ao Outro nas vicissitudes e nos riscos da procu-
cacionais – se traduzem como uma redução do Outro ao ra da verdade, em vez de descansar em si em toda a se-
Mesmo, buscando assegurar a “inteligência – logos do gurança” (Lévinas, 1980/1988, p. 48).
ser – ou seja, uma maneira tal de abordar o ser conheci- Por fim, para Lévinas (1980/1988) “afirmar a verdade
do que a sua alteridade em relação ao ser cognoscente se como modalidade da relação entre o Mesmo e o Outro não
desvanece” (p. 30). Lévinas (1980/1988) estabelece uma equivale a opor-se ao intelectualismo, mas a assegurar a
crítica ao método socrático – a maiêutica – e afirma que sua aspiração fundamental, o respeito do ser que ilumi-
o primado do Mesmo foi a lição de Sócrates: “nada rece- na o intelecto” (p. 51), mas destaca que “a experiência do
Artigo

ber de Outrem a não ser o que já está em mim, como se, Outro a partir de um Eu separado continua a ser uma
desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem fonte de sentido para a compreensão das totalidades, tal

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012 184


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

como a percepção concreta continua a ser determinante las são bem inquietantes”. Tal fala nos sinaliza a riqueza
para a significação dos universos científicos” (p. 45). Se desta proposta de explicitar o diálogo entre o aluno e o
tomarmos a afirmação de Lévinas no âmbito dos discur- texto no processo de aprendizagem, promovendo também
sos e práticas psicológicas, ressalta-se a necessidade de ao longo das discussões questionamentos sobre a forma
um processo de aprendizagem que possibilite o encontro como as temáticas trazidas pelo texto os afetaram e que
e o acolhimento do Outro, da diferença, do estranho, em respostas são formuladas a partir dos questionamentos,
oposição aos discursos teóricos e práticas de ensino to- interpelações, exigências que as obras nos trazem.
talizantes, que se fundamentam em verdades absolutas Entendemos que ao tomarmos a discussão a partir do
e redutoras de toda alteridade ao primado do Mesmo, do campo existencial dos alunos, diminuindo assim o dis-
Saber, da Teoria, haja vista que são muitas as escolas e tanciamento entre a teoria e suas experiências concretas,
abordagens psicológicas que se propõem em seus projetos possibilitamos que os mesmos entrem em contato com os
epistemológicos uma aproximação com o quadro das ci- fundamentos da Abordagem Gestáltica a partir de suas
ências naturais, gozando assim, de um status de verdade. referências existenciais, o que possibilita também que
estas possam ser confrontadas com as concepções éti-
cas e estéticas da Abordagem Gestáltica. Neste sentido
4. Versando Sentidos sobre a Aprendizagem em a aluna nos fala:
Gestalt-Terapia
Achei a dinâmica do dia bem interessante, pois refle-
Retomando neste momento nosso questionamento timos e conversamos sobre categorias como desespero,
inicial – Como se dá o processo de facilitação da apren- sofrimento, solidão, impotência, segurança, liberda-
dizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico? – e de... Mais uma vez o facilitador solicitou que o grupo
na tentativa de respondê-lo não mais apenas a partir dos se colocasse diante dessas categorias de forma pessoal
referenciais teóricos da Gestalt-terapia, mas também a e compartilhassem o modo como somos afetados e o
partir das experiências vividas no Curso de Capacitação significado daquilo na vida de cada um, de forma a
na Abordagem Gestáltica, propomos a utilização do re- perceber quais crenças nos guiam e como isso pode
curso metodológico da Versão de Sentido proposta por se refletir na nossa atitude como psicoterapeuta.
Mauro Martins Amattuzi, e que vem sendo utilizada em
pesquisas fenomenológicas e nos processos de supervi- Entendemos que o diálogo entre a teoria e as experi-
são clínica na formação de psicoterapeutas. ências concretas dos alunos possibilita-os darem-se conta
Amatuzzi (2002) entende por Versão de Sentido (VS) de suas crenças, seus valores, seus afetos, suas emoções,
um relato livre, escrito ou falado, que não tem a pretensão suas necessidades, seus pontos cegos e suas dificuldades,
de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de processo de conscientização tão importante para a forma-
ser uma reação viva a isso, como uma palavra primeira. ção do psicoterapeuta. Permite ainda aos alunos darem-
Consiste numa fala expressiva da experiência imediata -se conta do que muitas vezes é vivenciado de maneira
de seu autor, face a um encontro recém-terminado. conflitiva e angustiante, o que pode ser percebido a par-
Entendemos a pertinência desta proposta metodoló- tir da seguinte fala: “Em vários momentos me questionei
gica aos objetivos deste estudo exploratório, por enten- sobre como eu serei psicoterapeuta se eu tenho tanta di-
der que o mesmo nos possibilita compreender os sentidos ficuldade em acolher algumas falas de algumas pessoas”.
das experiências vividas no processo de aprendizagem Entendemos que este processo de conscientização de si e
da Gestalt-terapia, bem como de ilustrar nossa propos- do outro, possibilita aos alunos entrarem em contato com
ta de ensino/aprendizagem ao longo da experiência aqui a diferença em si e no outro, consciência da alteridade.
retratada. Propomos assim, apresentar e discutir alguns Assim o processo do grupo, mesmo em se tratando de
recortes das Versões de Sentido realizadas por uma alu- um grupo didático-vivencial, como em nossa experiên-
na do referido curso, que foram realizadas ao término de cia no curso de capacitação, nos possibilita a experiência
quatro encontros, com duração média de três horas cada de olhar de diversos ângulos ou perspectivas, de sair do
um, e que se deram por volta do meio do curso. lugar conhecido e familiar. A partir da experiência ime-
Tomamos como proposta didática norteadora de nos- diata grupal se dá a facilitação de uma vivência compre-
so trabalho docente uma metodologia teórico-vivencial, ensiva sobre a experiência de si e do outro, o que refor-
que privilegiasse a leitura e discussão de textos filosófi- ça a herança fenomenológica da Abordagem Gestáltica.
cos e teóricos que fundamentam epistemologicamente a O desafio desta vivência grupal compreensiva no con-
Gestalt-terapia. A partir da leitura dos textos era solici- texto do curso nos sinaliza a importância do processo de
tado aos alunos que entrassem em contato com a forma construção de um clima de acolhimento das experiên-
como aqueles os tocavam. Tal proposta pode ser ilustrada cias e das alteridades percebidas no grupo, o que ultra-
a partir da fala da aluna: “O João Vitor sempre faz pergun- passa a perspectiva de estabelecimento de um clima de
Artigo

tas pra saber qual a relação que estabelecemos entre o que confiança mútua, franqueza e autenticidade na relação
estudamos e o que fazemos da nossa vida, e a maioria de- inter-humana professor-aluno, e instaura o desafio des-

185 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012


João V. M. Maia; José C. Freire & Mariana A. Oliveira

te clima nas relações grupais como um todo, que passa a [...] fiquei observando como cada cena me afetava e
ser entendido e vivido como um dos principais aspectos quais partes me chamavam mais atenção [...] Fiquei
na mediação do processo de aprendizagem em Gestalt- emocionada com a cena em que o pai liga pra ele, e não
terapia. “Ainda é difícil para o grupo se expor e realmente sei explicar porque, mas acho que ali mostra mais uma
se implicar nas vivências propostas, mas acho que nesse vez a sensação de impotência dos dois diante da vida.
encontro caminhamos para uma maior cumplicidade e
intimidade”. A fala da aluna nos remete ao conceito de Inclusão, que
Interessante percebermos o que nos é revelado pela trabalhamos anteriormente, e que se faz presente como
aluna quando fala do grupo, que apesar de não se con- um dos conceitos básicos da clínica gestáltica, entendi-
figurar como uma proposta de grupo terapêutico, pos- do como a condição de entrar em contato, tanto quanto
sui intencionalmente elementos deste1. Sobre o grupo possível, com a experiência vivida pelo outro.
nos é dito: Uma última fala da aluna nos parece bastante inte-
ressante para evidenciarmos nosso esforço para a supe-
É engraçado que pra mim o curso às vezes parece ração da histórica dicotomização teoria e vivência nos
um grupo terapêutico, em que eu vou ampliando processos de formação dos gestalt-terapeutas:
minha consciência e minha percepção sobre o fazer
do psicoterapeuta. Acho que isso também se dá prin- Fiquei muito feliz por conseguir enxergar distúrbios de
cipalmente devido as pontuação e interrogações que contato como a confluência e a retroflexão em casos
o João Victor faz, que são geralmente bem pessoais e reais que eu conheço, o que me transmitiu momen-
profundas. Como o grupo não é terapêutico e ainda taneamente uma sensação de segurança em relação
não há tanta cumplicidade, algumas questões não a minha atuação na clínica no próximo semestre [...]
podem ser aprofundadas e por isso ficam em aberto e Já aconteceu, mais de uma vez, de eu ‘fechar algumas
continuam ressoando depois. gestalten’ teóricas no grupo [...].

O trabalho com o grupo e o compartilhar de experi- Propomo-nos assim, uma perspectiva integrativa des-
ências em nosso entendimento possibilitam o questio- tes aspectos do processo de aprendizagem, da experiên-
namento e o possível abandono das teorias totalizantes, cia humana, o que intencionamos evidenciar em nossa
na medida em que é permitido aos alunos expressarem proposta de diálogo dos alunos com os textos a partir de
as mais diversas experiências sobre os temas suscitados suas experiências concretas. Uma proposta didática que
pelos textos e discussões, afirmando os diversos senti- enfatiza os aspectos experienciais dos afetos e emoções,
dos possíveis para a experiência humana. A forma como de autoconhecimento e das relações interpessoais da si-
os alunos são afetados e respondem a cada experiência tuação de aprendizagem sem, no entanto, desvalorizar a
concreta em sala de aula atestam a impossibilidade de transmissão de conhecimentos no ensino.
esgotar os sentidos da experiência humana, apontando
assim para além do Mesmo.
Compreendemos assim, que o espaço didático-viven- Considerações Finais
cial do grupo nos permite acessar aquilo que Buber de-
nomina de tomada de conhecimento íntimo, ou a pers- Intencionamos, a partir deste estudo exploratório,
pectiva de ensino proposta por Lévinas, na medida em compreender como se dá o processo de facilitação da
que possibilita a partir de uma condição de abertura ao aprendizagem em Gestalt-terapia no ambiente acadêmico,
outro a experiência de ser provocado, afetação que exige e, neste intento, caminhamos pelos referenciais teóricos
uma resposta. Afetação esta que nos damos conta pela in- da abordagem, bem como pelas experiências vividas no
quietação, desconforto e sensação de sair mexido expres- Curso de Capacitação na Abordagem Gestáltica, a partir
sa pelos alunos, como descrita na fala anterior da aluna. das Versões de Sentido.
Na intenção de promover um espaço mais fértil pos- Ao entendermos a Gestalt-terapia como construção
sível para esta condição de afetação e resposta, propomo- sócio-histórica, temos consciência de seu próprio contí-
-nos também a utilização de outros recursos tais como nuo processo de (re)construção, da mesma forma, das res-
contos, poesias e filmes que buscam permitir no processo postas que a abordagem dá a sociedade contemporânea,
educacional o conhecimento não apenas pela via da racio- afirmando a importância do sentido ético dos discursos
nalidade, mas também pela sensibilidade. Em um dado e práticas psicológicas. Compreendemos também que na
encontro, propomos o filme O Escafandro e a Borboleta tentativa de melhor se organizar em seus fundamentos
dirigido por Julian Schnalbe, novamente solicitando aos epistemológicos e teóricos, a Gestalt-terapia se apresenta
alunos que buscassem darem-se conta de como eram afe- hoje de maneira cada vez mais presente no âmbito aca-
tados pelo filme. Neste sentido, a aluna nos fala dêmico, o que afirma a necessidade de pensarmos como
Artigo

se dá o processo de aprendizagem da Gestalt-terapia nes-


1
Enquanto facilitadores têm-se consciência dos limites éticos e das
tes espaços.
possibilidades terapêuticas do espaço proposto.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012 186


“Versando Sentidos” sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia

Destaca-se que na tentativa de superação de anti- Burow, O. A., & Scherpp, K. (1985). Gestaltpedagogia: um ca-
gas dicotomias presentes nos primeiros momentos do minho para a escola e a educação. São Paulo: Summus.
desenvolvimento da Abordagem Gestáltica, propomos Cardella, B. H. P. (2002). A construção do psicoterapeuta: uma
uma prática docente compromissada e pautada no ri- abordagem gestáltica. São Paulo: Summus.
gor teórico-epistemológico, no entanto, sem esquecer
o aspecto vivencial, tão enfatizado pelas abordagens Figueiredo, L. C. M. (2009). Revisitando as psicologias: da
fenomenológico-existenciais. epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos.
Petrópolis: Vozes.
Ao entendermos a Gestalt-terapia como uma aborda-
gem que propõe uma perspectiva compreensiva do outro, Freire, J. C. (2002). O lugar do Outro na modernidade tardia.
em que se toma como fundamento de sua prática clínica São Paulo: Annablume.
a abertura à consciência, o diálogo e o confronto com a
Friedman, M. S. (2002). Martin Buber: the life of dialogue. New
alteridade, defendemos uma prática docente que possi-
York, NY: Routledge.
bilite aos alunos a consciência da alteridade em si e do
outro. Prática docente que possibilite afetação, em que se Karwowski, S. L. (2005). Prefácio. Em A. F. Holanda & N. J. de
experiencie momentaneamente o abandono das referên- Faria (Orgs.), Gestalt-terapia e contemporaneidade: con-
cias, das seguranças do conhecido, e que proponha um tribuições para uma construção epistemológica da teoria
conhecimento a partir desta afetação provocada pela ex- e da prática gestáltica, pp. 09-12. Campinas: Livro Pleno.
posição ao outro do professor, dos livros e das experiên- Holanda, A. F. (2005). Elementos de Epistemologia da Gestalt-
cias vividas a partir da experiência concreta em sala de terapia. Em A. F. Holanda & N. J. de Faria (Orgs.), Gestalt-
aula. Experiência que promova estranhamento e uma cer- terapia e contemporaneidade: contribuições para uma cons-
ta familiaridade, mas que tenha como intenção provocar trução epistemológica da teoria e da prática gestáltica (pp.
respostas por parte dos alunos e do professor, respostas às 23-55). Campinas: Livro Pleno.
exigências de cada situação vivida, cada texto, cada face Hycner, R. (1997). Relação e cura em Gestalt-terapia. São Paulo:
que se apresente e que exija esta implicação responsiva. Summus.
Entendemos a necessidade de investimento em estu-
dos mais profundos que tomem esta temática, haja vista Lévinas, E. (1988). Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70
(Original publicado em 1980).
que ainda nos parecem reduzidos os trabalhos que se pro-
põem a versar sobre o processo de ensino/aprendizagem Moreira, V. (2007). De Carl Rogers a Merleau-Ponty: a pessoa
no âmbito acadêmico. Esperamos que a partir do conta- mundana em psicoterapia. São Paulo: Annablume.
to dos leitores com a presente obra novas inquietações
possam ser vivenciadas; questionamentos, divergências,
mobilização que sinalizem afetação e que possibilitem o João Vitor Moreira Maia - Mestrando em Psicologia pelo Programa
responder. Que os leitores, alunos e mestres, se conscien- de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará
(Bolsista Capes/Propag); Gestalt-terapeuta e Coordenador Pedagógico
tizem desta palavra que lhes é dirigida como texto, e que
do Instituto Gestalt do Ceará. Endereço Institucional: Instituto Gestalt
nos digam: “e o que me importa agora é unicamente que do Ceará, Rua João Regino, 474 (Parque Manibura). CEP 60821-780,
eu me encarregue deste responder. Mas em cada instân- Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: jv_psi@yahoo.com.br.
cia aconteceu-me uma palavra que exige uma resposta” José Célio Freire - Professor Associado do Departamento de Psicologia e
(Buber, 1982/2009, p. 43). do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Endereço
Institucional: Departamento de Psicologia. Av. da Universidade, 2762
(Campus do Benfica), CEP 60020-180, Fortaleza/CE, Brasil. E-mail:
jcfreire@ufc.br.
Referências
Mariana Alves de Oliveira - Graduanda em Psicologia pela Universi-
dade Federal do Ceará e Aluna do Curso de Capacitação na Abordagem
Amatuzzi, M. M. (2010). Por uma psicologia humana. Campinas:
Gestáltica. E-mail: marianadeo@hotmail.com.
Editora Alínea.

Buber, M. (1963). ¿Qué es el hombre?. México, DF: Fondo de


Cultura Económica (Original publicado em 1942). Recebido em 10.05.2012
Buber, M. (2009). Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Debates Primeira Decisão Editorial em 25.09.2012
(Original publicado em 1982). Aceito em 12.12.2012
Artigo

187 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 179-187, jul-dez, 2012


Lauane Baroncelli

ADOLESCÊNCIA: FENÔMENO SINGULAR E DE CAMPO

Adolescence: a singular and field-related phenomena

La adolescencia: un fenómeno único y producidos en el campo

Lauane Baroncelli

Resumo: O período do desenvolvimento humano denominado adolescência vem sendo frequentemente concebido, tanto na lite-
ratura científica sobre o tema, quanto no imaginário do homem comum, de forma estereotipada e generalizante. Condições de
caráter histórico e concreto são, nesta ótica, naturalizadas, e a adolescência é tomada como uma série previsível de característi-
cas comuns a todos aqueles que vivenciam o período. Neste artigo, analiso como e por que a Abordagem Gestáltica questiona e
refuta tal perspectiva. Na literatura sobre adolescência, tais questões vêm sendo tradicionalmente discutidas na perspectiva da
Psicologia Sócio-Histórica. Por isso, e considerando também a afinidade teórica desta perspectiva com a Gestalt-terapia no que
tange à relação indivíduo/contexto, o artigo inicia com uma breve discussão sobre a ótica sócio-histórica acerca da adolescência.
Em seguida, analisa-se como a Gestalt-terapia, por meio de seus pressupostos teóricos mais elementares – destacando-se, entre
eles, a Teoria de Campo de Kurt Lewin – ressoa e oferece novas nuances à crítica sócio-histórica, concebendo a adolescência
como um fenômeno singular e de campo.
Palavras-chave: Adolescência; Gestalt-Terapia; Psicologia sócio-histórica; Teoria de campo.

Abstract: The developmental period called adolescence has been often conceived, both in the scientific literature about the
subject as well as in common sense, from a stereotyped and generalizing point of view. Historical and concrete conditions are,
in this perspective, conceived as natural features of adolescence and the period is taken as a set of predictable characteristics
common to all adolescents. In this paper, I analyze why and how the Gestalt Approach refutes this perspective. In the literature
on adolescence, these issues have been analyzed on the perspective of the Socio-historical Psychology. As such, and also be-
cause of the affinities between this perspective with Gestalt-therapy in regard to the relationship between individual and con-
text, the paper begins with a brief discussion about the socio-historical outlook on adolescence. Following, it is analyzed how
Gestalt-therapy, according to its most elementary theoretical premises – foremost among them, the Kurt Lewin’s Field theory
– resonates and, at the same time, provides new nuances to the socio-historical critique, conceiving adolescence as a singular
and field-related phenomenon.
Keywords: Adolescence; Gestalt-Therapy; Socio-historical psychology; Field theory.

Resumen: El período de desarrollo llamado adolescencia a menudo se ha concebido, tanto en la literatura científica sobre el
tema, así como en el sentido común, desde un punto de vista estereotipado y generalizado. Condiciones generales de uso histó-
rico y concreto son, en este punto de vista, naturalizada, y en la adolescencia se toma como una serie predecible de caracterís-
ticas comunes a todos los que experimentan el período. En este artículo se analiza cómo y porqué el enfoque Gestáltico refuta
esta perspectiva. en las teorias sobre la adolescencia, estas cuestiones han sido analizadas desde la perspectiva de la Psicología
socio-histórica. Como tal, y también debido a las afinidades entre esta perspectiva con la Gestalt-terapia en cuanto a la relación
entre el individuo y el contexto, el artículo comienza con una breve discusión sobre el panorama socio-histórico en la adoles-
cencia. A continuación, se analiza cómo la Gestalt-terapia, de acuerdo con sus supuestos teóricos más básicos – entre los que
destaca la Teoría del Campo de Kurt lewin – resuena y, al mismo tiempo, ofrece nuevos matices a la crítica histórico-social, con-
cibiendo la adolescencia como un fenómeno singular y de campo.
Palabras-clave: Adolescencia; Gestalt-Terapia; Psicología socio-histórica; Teoría de campo.

Introdução cência na ótica da psicologia sócio-histórica e o emba-


samento teórico da Gestalt-terapia. A escolha de tal rota
O presente artigo pretende discutir a adolescência sob teórica se justifica pela coerência entre tais abordagens
a perspectiva da Gestalt-terapia, entendendo-a como um no que tange à relação indivíduo-contexto.
fenômeno singular e de campo. Nesta direção, questio- A Psicologia Histórico-Cultural ou Sócio-Histórica
namos a concepção naturalizante presente em diversos fundada por Liev S. Vygotski na década de 1920 e de-
estudos sobre a adolescência em que características de senvolvida por autores como Luria e Leontiev entende o
caráter supostamente universal são tomadas como con- indivíduo como um ser constituído nas condições con-
dição natural deste período. cretas de sua existência. Sob inspiração do materialismo
Artigo

Para desenvolver tal argumento, o artigo estabelece histórico dialético de Karl Marx, o indivíduo é concebido
uma articulação entre algumas leituras sobre a adoles- nesta abordagem como um ser ativo e histórico. Em outras

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012 188


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo

palavras, como determinado e determinante da própria Muitas outras diferenças poderiam ser discutidas,
condição no interior de um dado contexto. mas como dito, não é este o espaço para tal. Nosso obje-
Similarmente, a Gestalt-terapia – refletindo dentre ou- tivo é, portanto, e tão somente, explorar e desenvolver a
tros aspectos teóricos, a assimilação de certos pressupos- compreensão da adolescência na Abordagem Gestáltica
tos-chave da Teoria de Campo fundada por Kurt Lewin como um fenômeno singular e de campo partindo de um
– vê o ser humano como um existente impossível de ser diálogo com algumas leituras da abordagem sócio-histó-
compreendido fora do contexto de suas relações, desde as rica acerca do tema.
mais elementares, com as pessoas de seu convívio, até as A afinidade de posicionamento teórico no que con-
mais amplas, com a sociedade, a história, e o universo. cerne, como mencionado anteriormente, à relação indi-
Em um artigo esclarecedor acerca das fontes epistemo- víduo-contexto torna tal articulação teórica não só pos-
lógicas do pensamento vigotskiano, Toassa e Souza (2010) sível como também bastante inspiradora para o entendi-
sublinham algumas importantes afinidades teóricas entre mento do fenômeno da adolescência numa ótica gestál-
Vigotski e Kurt Lewin. Dentre tais afinidades, as autoras tica. Assim, se por um lado, a ênfase nas determinações
destacam os conceitos de espaço vital e campo psicológico sócio-históricas é rejeitada pela Gestalt-terapia, por outro
de Lewin de um lado, e o conceito vigotskiano de vivên- lado, a ênfase oposta, nos aspectos biográficos do ser em
cia, de outro. Segundo elas, a imersão do indivíduo em contraposição aos aspectos mais amplos da pertença ao
seu meio é destacada em ambos, superando concepções mundo social, cultural e econômico é outra maneira de
dualistas de outras psicologias nas quais uma cisão ar- também negligenciar partes e, portanto, de perder a visão
tificial entre meio e indivíduo é estabelecida. de todo tão valorizada nesta abordagem. Como psicólo-
Desde Lewin e Vigotski, portanto, pode-se dizer que gos e psicoterapeutas, sabemos que, na prática, o risco na
a abordagem sócio-histórica e a Abordagem Gestáltica direção de uma compreensão psicologizante do huma-
convergem no que tange a consideração dos fenômenos no é sempre presente, embora também acreditemos que
em sua totalidade, superando dualidades como interno/ a fundamentação teórica da Gestalt-terapia nos protege
externo, biológico/social, ontogênese/filogênese, psíqui- disso. Assim, não só no sentido teórico, mas também no
co/orgânico, homem/sociedade, dentre outras. sentido pragmático, o diálogo com uma abordagem que
Reconhecendo tais ressonâncias, é necessário ressal- sublinha o olhar sócio-histórico parece relevante.
tar, entretanto, que o presente estudo não almeja desen-
volver uma articulação da ótica Sócio-Historica sobre a
adolescência com a visão da Gestalt-terapia. Além de não 1. A Leitura Sócio-Histórica da Adolescência
ser o foco do artigo, tal proposta ultrapassaria em muito
o espaço disponível. Conforme os estudos de Aguiar, Bock e Ozella (2001)
É importante esclarecer ainda que acreditar na pos- a idéia hoje hegemônica sobre a adolescência é contem-
sibilidade de diálogo entre tais abordagens não implica porânea ao surgimento da sociedade moderna industrial.
sugerir que estas são congruentes em todos os seus as- Segundo os autores, é por meio da maior permanência
pectos teóricos e filosóficos. A própria afinidade teó- dos jovens nas escolas e do correlato retardamento da
rica entre Lewin e Vigotski, por exemplo, não exclui a profissionalização dos mesmos no interior de um de-
existência de diferenças importantes entre as suas te- terminado sistema sócio-cultural e econômico que se
orias, o que se revela, por exemplo, na forte inspiração conforma a adolescência com as características que co-
histórico-cultural, marxista, presente no pensamento nhecemos hoje.
de Vigotski e ausente nas idéias do primeiro. A inspira- Discutindo a adolescência sob o ponto de vista da
ção marxista dota a ótica sócio-histórica de uma ênfase Psicologia Sócio-histórica, Facci e Tomio (2009) sugerem
particular na idéia de dominação econômico-ideológica que uma indicação clara da conformação histórica da
e política no interior da sociedade capitalista e de crí- adolescência se revela no discurso das gerações anterio-
tica a este sistema, ênfase esta que não faz sentido na res. As autoras observam que pessoas nascidas por volta
Gestalt-terapia. da década de 1940 e anteriormente, costumam declarar
Além disso, embora afirmem o homem como multi- que “no seu tempo não havia adolescência”, no sentido
dimensional, determinado e determinante de sua con- de um período intermediário entre a infância e a idade
dição, em algumas análises, a dimensão de determina- adulta. Tais discursos sugerem que há cerca de 80 anos,
ção se sobrepõe ao reconhecimento e devida valoriza- as pessoas passavam da condição de criança diretamen-
ção da liberdade e singularidade humanas como enten- te para a de adulto, processo este fortemente vinculado
de a Gestalt-terapia. Ainda, o caráter fenomenológico da à presença do trabalho, principalmente no caso dos ho-
Gestalt-terapia a diferencia da perspectiva sócio-histórica mens. No caso das mulheres, apontam as autoras, uma
que, numa inspiração vigotskiana, postula que a compre- vez que estas eram chamadas a cuidar da casa ou mes-
ensão dos fenômenos só é possível a partir de uma expli- mo de uma nova família (na medida em que se casavam
Artigo

cação (e não “meramente” uma descrição) das relações bem mais cedo), este “período de latência” entre infância
que o determinam. e vida adulta também não fazia sentido. Somente a partir

189 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012


Lauane Baroncelli

da necessidade de prolongar o tempo de formação dos jo- à cultura juvenil. Estes, sendo incorporados pelo mer-
vens – a fim de prepará-los para as novas as demandas de cado (em rápida evolução na época) e espetacularizados
trabalho geradas pela industrialização emergente – que a na lógica própria do marketing e dos meios de comuni-
idéia, os discursos e, em muitos sentidos, a própria expe- cação, ajudam a produzir novos traços para a identida-
riência da adolescência começa a se constituir. de juvenil. Marcadas por imagens produzidas de “ser
Um estudo de Clímaco (1991, conforme citado por jovem” – muitas vezes associadas à rebeldia, contesta-
Bock, 2007) ressalta que outro aspecto relevante na cons- ção de regras e à busca do prazer – e pelo consumo de
trução histórica da adolescência foi o impacto gerado pelo determinados bens e serviços, as identidades adolescen-
desenvolvimento científico sobre a prolongação da vida tes vão então se constituindo. Nesse processo, em alguns
e o consequente aumento de adultos jovens em idade níveis, a adolescência se torna um discurso de mercado
de trabalho. A partir disso, mais uma razão se colocava que simultaneamente revela e produz visões e experi-
para aumentar o tempo de permanência nas escolas, pois, ências de ser adolescente.
além da já citada demanda de formação mais sofistica- Tais raízes históricas são raramente levadas em con-
da, a escolarização prolongada ajudaria a regular a alta sideração nos estudos clássicos sobre o tema. Ao invés
taxa de desemprego dos estágios iniciais do desenvolvi- disso, a adolescência tem sido tradicionalmente descrita
mento industrial. como um período inerentemente problemático em que
Neste processo, os filhos passam a viver mais tempo a irresponsabilidade, a rebeldia gratuita e as identifica-
sob a tutela dos pais, sem ingressar no mercado de traba- ções massificadas com grupos e tribos predominam não
lho, ao mesmo tempo em que surgem as oportunidades como conseqüência de tais forças, mas como um efeito
para que encontrem, na escola, os chamados “grupos de previsível numa adolescência dita normal.
iguais”. Com isso, apesar de ser possível assumir um pa- Aguiar et al. (2001) sublinham o papel central da
pel diverso na sociedade (como acontecia no passado), o Psicanálise na construção desta perspectiva, em que a
jovem se distancia do mundo do trabalho e das possibili- adolescência é tomada como uma fase inerentemente pro-
dades de obter autonomia e condições de sustento. Estão blemática a ser ultrapassada em direção à maturidade.
lançadas, assim, as condições sociais que “convidam” os Particularmente, afirmam os autores, diante da influên-
jovens a desenvolver uma série de características que, cia exercida pelo psicólogo Stanley Hall (introdutor da
nos dias de hoje, são frequentemente concebidas como psicanálise nos Estados Unidos) a adolescência passa a
naturais (Bock, 2007). ser concebida como uma etapa marcada por conturbações
Segundo a crítica sócio-histórica, com a qual con- vinculadas à emergência da sexualidade.
cordamos, os discursos de caráter naturalizado so- Mais recentemente, Aberastury e Knobel (1992) repro-
bre a adolescência devem ser revisitados. No domí- duzem e disseminam tal concepção naturalizante. Na lei-
nio da Psicologia, sob influência da Psicanálise e da tura dos autores, após tornar-se biologicamente capaz de
Epistemologia genética principalmente, uma visão na- exercer a sua genitalidade para a procriação, e vivenciar
turalizante da adolescência é desenvolvida e se propa- mudanças “incontroláveis” em seu corpo, instauram-se
ga por todo o ambiente cultural. Nesta ótica, a adoles- conflito referentes à diferença entre o corpo real e o corpo
cência é decorrente, sobretudo, de um acelerado pro- ideal e ainda quanto à própria definição da sexualidade,
cesso de mudanças biológicas e ‘pulsionais’ (por meio que não ocorre de imediato. Tal conflito fomenta reações
do despertar da sexualidade no nível da maturidade de instabilidade afetiva, crises, conduta turbulenta ou de
genital) que, por si só, acarretam as mudanças suposta- indiferença, angústias e ansiedades, configurando uma
mente inerentes ao desenvolvimento adolescente (Facci espécie de “patologia normal da adolescência”.
& Tomio, 2009). Outro aspecto problemático das visões sobre a ado-
Ao alienar a participação da cultura na conforma- lescência que vem sendo denunciadas pela perspectiva
ção das visões e experiências da adolescência, tal pers- sócio-histórica diz respeito à postulação de caracterís-
pectiva naturalizante subestima não apenas as raízes ticas supostamente universais do período baseadas, na
históricas do período como também os interesses subja- realidade, nas condições de adolescentes oriundos das
centes de mercado que se beneficiam de uma delimita- classes médias e altas da sociedade.
ção precisa de características, hábitos e interesses nesta Tais características e experiências, tomadas em análi-
época da vida. ses pouco cuidadosas como generalizáveis, são, entretan-
Num artigo que trata da historicidade dos conceitos to, plenamente situadas. Neste sentido, a singularidade
de infância e de adolescência, Frota (2007) cita diversos das contradições e incertezas de adolescentes oriundos
autores que analisam a interrelação entre adolescência das classes populares, que pra começar, experimenta-
e mercado. Abramo (1994, conforme citado por Frota, ram infâncias bastante diversas, raramente é levada em
2007), por exemplo, analisa que por volta da década de consideração. Eles são adolescentes e isso parece dizer
1960, período em que os chamados movimentos estudan- tudo. Será?
Artigo

tis e, portanto, os jovens, ganham grande projeção cul- As pesquisas de Aguiar e Ozella (2008) sugerem que
tural, surge uma grande variedade de signos associados a resposta a esta pergunta deve ser um sonoro “não”.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012 190


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo

Segundo os autores, muitos adolescentes das classes mais Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica
pobres da sociedade, contrariando a cartilha dos manuais ou sociológica temos de partir da interação organismo-
de psicologia, não sofrem tanto com os tradicionalmente -ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um
mencionados conflitos familiares na luta pela diferen- animal que respirar sem considerar o ar e o oxigênio
ciação e construção de si ou com as dúvidas quanto à como parte da definição deste, ou falar de comer sem
escolha da carreira. Frequentemente, observam as auto- mencionar a comida (...). Não há uma única função, de
ras, suas dores se revelam, principalmente, em sua falta animal algum, que se complete sem objetos e ambiente
de perspectivas, no medo de ficarem desempregados e, (...). Denominemos esse interagir entre organismo e
mais do que pensar em escolher uma profissão, duvidam ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/
se poderão conseguir um trabalho. ambiente’ e lembremo-nos de que qualquer que seja a
Desse modo, se o adolescente vivencia um lugar social maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instin-
em que projetos de vida e até mesmo de sobrevivência tos, etc., estamos nos referindo sempre a este campo
estão em cheque, definir ‘quem eu sou’ pode ser mais do interacional e não a um animal isolado (p. 42-43).
que uma manobra de discriminação em relação aos pais
e outros adultos significativos. Em alguns casos, o campo A Teoria de Campo de Kurt Lewin, embutida na de-
em que se constituem impõe a necessidade de discrimi- finição gestáltica de campo-organismo-ambiente, intro-
nar-se de um não-lugar na sociedade a fim de que outro duz a idéia de que, psicologicamente, diversas forças e
lugar, possível, possa ser projetado. influências agem umas sobre as outras produzindo um
resultado que é sempre único dentro de um tempo igual-
mente específico.
2. Perspectivas Gestálticas: Adolescência-no-Campo Em “Principles of Topological Psychology” (1936),
Kurt Lewin explicita sua perspectiva acerca do papel
Ao investigar tais circunstâncias sobre o ponto de vis- do ambiente na vida individual, esclarecendo que este
ta da Gestalt-terapia, constata-se, em primeiro lugar, que não deve ser tomado como uma força exterior que ser-
o questionamento acerca dos condicionantes contextuais ve meramente para facilitar ou para inibir tendências
da adolescência realizado pelos autores da abordagem prévias e definitivamente estabelecidas na natureza
sócio-histórica é bastante coerente com a perspectiva de da pessoa.
relacional abraçada pela abordagem. Ora, é justamente essa a perspectiva tradicionalmente
Como desenvolveremos a seguir, a Gestalt-terapia en- assumida pelas teorias psicológicas do desenvolvimento
tende ser a concretude da existência do ser-no-mundo que ao abordarem a adolescência. De acordo com tais teorias,
se manifesta em cada adolescente. Tal concretude inclui, o homem é dotado de uma natureza e suas relações com
mas não se limita, nem se organiza a partir do aspecto o meio apenas permitem (ou dificultam) a atualização de
fisiológico das mudanças corporais, como diversas abor- tais traços naturalmente dados.
dagens teóricas pressupõem. Ser adolescente é, portanto, Segundo o estudo de Muuss (1996), Kurt Lewin apre-
sê-lo num determinado corpo, mas também numa deter- senta sua teoria da adolescência em trabalho intitulado
minada sociedade, etnia, classe social, cultura, família “Teoria de campo e experimento na psicologia social”
e para determinada pessoa que vai significar todos estes (Lewin, 1939, citado por Muuss, 1996), fornecendo al-
aspectos de formas sempre únicas. guns elementos importantes para pensar a adolescência
Desta maneira, a perspectiva evolucionista em que o na perspectiva gestáltica.
desenvolvimento psicológico ocorre de maneira progres- Um aspecto fundamental do pensamento lewiniano
siva por meio de estágios fixos e invariáveis – adotada nesta área é sua crítica de conceitos psicológicos base-
pelas teorias tradicionais sobre adolescência – deve ser ados na frequência com que ocorrem numa população
contestada. Ao conceberem seres abstratos que atraves- dada. Segundo Lewin (1939, conforme citado por Muuss,
sam os mesmos estágios, na mesma sequência, em dire- 1996) na medida em que leis psicológicas são abstraídas
ção à maturidade, tais teorias alienam pelo menos dois a partir do comportamento de muitos s, elas só podem
aspectos fundamentais da Abordagem Gestáltica: a con- ser verdadeiras em termos de probabilidade. A análise
cretude existencial dos existentes e sua singularidade. de Kurt Lewin sobre adolescência se propõe, portanto, a
Concordamos então com as idéias de Antony (2006) e explicar e a descrever a dinâmica de comportamento de
Soares (2005) quando sustentam que a compreensão do quem vivencia o período sem apostar numa generalização
desenvolvimento segundo a Gestalt-terapia supera a visão possível para a adolescência enquanto grupo.
reducionista e determinista do existir humano que com- Tal observação é muito oportuna e bastante congruen-
partimenta, fixa e normaliza as fases da vida te com a perspectiva teórica e filosófica da Abordagem
Na Gestalt-terapia, a idéia de seres concretos e situados Gestáltica bem como com o argumento principal do pre-
é revelada desde a noção de campo-organismo-ambiente sente artigo. Assim, embora as teorias psicológicas se re-
Artigo

apresentada por Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) firam a comportamentos e sentimentos possíveis e por
no livro inaugural da Gestalt-terapia: vezes freqüentes, estes são equivocadamente transfor-

191 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012


Lauane Baroncelli

mados em leis psicológicas gerais e, portanto, naturais e de sua humanidade e não a partir de leis objetivas mecâ-
intrínsecas ao desenvolvimento humano. nicas como postula a teoria de Lewin.
Lewin chama atenção para a dificuldade de nomear Embora não caiba aqui uma análise mais amiúde de
a interação indivíduo-ambiente sem isolar cada elemento tal posicionamento critico, vale destacar que não apenas a
do par. Para dar conta deste problema, o autor introduz teoria lewiniana, mas diversos outros elementos – filoso-
o termo “espaço de vida psicológico” que indica, segun- fias ou teorias que fundamentam a Abordagem Gestáltica
do ele, a totalidade dos fatos que afeta o comportamento – compõem a visão gestáltica da noção de campo. Deste
de uma pessoa num certo momento (Lewin, 1936). Essa modo, uma compreensão “de campo” que supera as men-
totalidade dos fatos cria um campo dinâmico, o que sig- cionadas dicotomias entre indivíduo/sociedade e outras
nifica que uma mudança numa das partes afeta todas as marca a Gestalt-terapia para além da influência de Lewin,
demais partes e o campo como um todo. pautando-se na própria natureza holística da abordagem.
Embora na visão de Kurt Lewin a adolescência seja É isso que leva Antony e Ribeiro (2005) a afirmarem que
vista como um fenômeno sempre diferenciado para cada de acordo com as suas teorias de base, “a Gestalt-terapia
pessoa, algumas regularidades são apontadas por ele no fundou uma visão holística calcada no conceito todo-
que concerne às transformações que ocorrem no espaço -parte, onde somente a totalidade contém o significado a
de vida do jovem. No período da adolescência, observa partir das múltiplas interações existentes entre as partes
Lewin (1939, citado por Muuss, 1996), este se torna mais e os campos (...)” (p. 193).
extenso e mais diferenciado em comparação ao espaço Isso sugere uma visão de adolescência como um fe-
de vida mais restrito e pouco diferenciado da criança. O nômeno global que integra “num todo singular” as diver-
adolescente conhece mais pessoas, torna-se familiar com sas forças do ser-no-campo e não como mera latência em
mais áreas geográficas, informações, ou seja, têm maiores direção à maturidade. Como resume Almeida (2010, p.
recursos cognitivos, sociais, físicos e de linguagem para 19), “estamos, a todo instante, imersos em uma comple-
contatar o ambiente e a si mesmo. Muuss (1996) ressalta, xidade infindável de estímulos, vivências, experiências
entretanto, que na proposta lewiniana, uma compreensão que não podem ser restritas a uma linha do tempo” do-
acurada de tais novidades precisa levar em consideração tando a visão de desenvolvimento na Gestalt-terapia de
o caráter dinâmico e sempre particular do ambiente no uma perspectiva oposta à idéia de amadurecimento tão
qual as mudanças ocorrem e, ainda, as diferentes formas comumente adotada pelas abordagens de desenvolvimen-
de sensibilidade e modos de ação. to. Aguiar (2005) também aborda a questão, destacando
Isso significa que pra Lewin o ambiente não é somen- que ao conceber o homem como um todo singular em
te a totalidade dos fatos presentes, mas inclui, também, o constante transformação na busca de equilíbrio (equi-
ambiente tal como é percebido e interpretado pela pessoa, líbrio este ora perturbado, ora recuperado numa articu-
de acordo com suas próprias necessidades do momento. lação entre necessidades e possibilidades no campo) a
Como analisa Evangelista (2010), o “meio” na Teoria de Gestalt-terapia não pode pensar o ser – na lógica da uni-
Campo é o “meio fenomenológico”, isto é, o ambiente tal versalidade – como um projeto inacabado ou imperfeito
como a pessoa o experimenta e não como uma presença que viria a se concretizar na fase adulta.
objetiva. Neste sentido, verifica-se que a concepção ges- Neste ponto, alguém poderia argumentar que um
táltica de indivíduo relacional e singular ressoa desde as aspecto universalmente presente na adolescência são
idéias lewinianas, perspectiva esta que reconhecidamen- as transformações físicas sofridas pelo corpo neste pe-
te influenciou a constituição da Gestalt-terapia. ríodo da vida. De fato, as mudanças físicas são marcas
Vale sublinhar, ainda, que a idéia de campo na concretas desta fase. No entanto, o corpo não é entendi-
Gestalt-terapia vai além das definições propostas por do, na Gestalt-terapia, em relação de exterioridade em
Lewin. Como colocado acima, a Teoria de Campo é ape- relação aos domínios subjetivos e relacionais. Assim
nas uma das fontes na qual a Gestalt-terapia foi “be- sendo, embora as mudanças físicas sofridas pelo ado-
ber” para construir a formulação própria desta abor- lescente tenham um caráter objetivo enquanto “marcas”
dagem. Deste modo, além de elementos da Teoria do no corpo, estas são necessariamente significadas pelo
Campo, esta integra (e transforma) elementos da Teoria ser-no-campo.
Organísmica, da Psicologia da Gestalt e das concep- Nesta direção, Perls (1988) observa que a partir
ções filosóficas do Humanismo, Existencialismo e da da perspectiva de campo que marca a Gestalt-terapia,
Fenomenologia. não faz qualquer sentido entender as ações mentais e
Inclusive, algumas análises (por exemplo, Evangelista, físicas de forma cindida. Portanto, a tentativa de en-
2010) sugerem que ao recorrer ao modelo da física, a contrar um padrão geral nos supostos “fatos objetivos”
Teoria de Campo tende a objetificar o ser humano en- do corpo (o que contrariaria a concepção de adoles-
tendendo-o a partir das mesmas leis que regem objetos cência como fenômeno sempre singular e de campo)
físicos. Tal concepção, segundo o autor, se choca com a não se sustenta.
Artigo

ótica fenomenológica, baseada na idéia de que as pessoas O Gestalt-terapeuta norte-americano McConville


devem aparecer para a compreensão do psicólogo a partir (2001), apoiando-se nos estudos de Kurt Lewin, conce-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012 192


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo

be a adolescência como uma desestruturação da unida- sócio-culturais no interior dessa. De fato, na tentativa de
de da infância por meio da expansão do espaço de vida aplicar tal descrição à realidade de crianças oriundas de
e da transformação dos processos de contato que orga- segmentos pobres de nossa sociedade, contradições sig-
nizam o campo. nificativas emergem. Assim, embora uma criança não
Para entender esta afirmação, é necessário fazer, nes- vá, por exemplo, escolher uma escola discernindo sobre
te ponto, uma breve introdução ao conceito de contato os métodos pedagógicos, muitas crianças, assumindo a
na Gestalt-terapia. Contato envolve tanto a noção de self tarefa de cuidarem dos irmãos mais novos precisam se
quanto a de campo, referidas anteriormente. Segundo responsabilizar e tomar decisões desde muito cedo. Desse
Perls et al. (1951/1997): “Primordialmente o contato é a modo, sua experiência de depender, embora não seja nula,
awareness da novidade assimilável e o comportamento é certamente diferenciada para este público.
em relação a esta e rejeição da novidade inassimilável. Além disso, embora seja possível dizer que, na infân-
O que é difuso, sempre o mesmo, ou indiferente, não é cia, a criança está mais disposta a receber informações
objeto de contato” (p. 44). Mais adiante, continuam os de maneira passiva ela definitivamente não é um mero
autores: “Todo contato é ajustamento criativo do orga- receptor de princípios adultos. A depender das condições
nismo e ambiente. Resposta consciente no campo (como gerais do campo (incluindo aspectos familiares, culturais,
orientação e como manipulação) é o instrumento de cres- históricos, educacionais e outros) e da singularidade de
cimento no campo” (p. 45). cada criança, o questionamento e a escolha farão parte
A presença da novidade na adolescência é, em mui- de suas interações na vida. Nesta linha de argumenta-
tos aspectos, notável. Neste período, o adolescente co- ção, Aguiar (2005) ressalta o surgimento da capacidade
meça a se defrontar com a necessidade de definir a sua de diferenciação ainda na infância, quando a criança é
vida diante das novas questões existenciais como as capaz de rejeitar ou digerir determinada introjeção fami-
que se depara – concernentes a sua sexualidade, os seus liar, iniciando o processo de constituição de sua fronteira
estudos, relacionamentos de amizade, escolha da car- de contato, processo esse que continuará a se aperfeiçoar
reira e tantas outras, que demandam decisões íntimas ao longo do tempo.
(McConville,1995). Por consequência, este é um período Ainda, levando em conta o campo sócio-cultural que
do desenvolvimento no qual a capacidade de contato, que caracteriza as sociedades contemporâneas – em que as
se desenvolve durante toda a vida, é vivida de maneira antigas autoridades tradicionais têm seu poder diluído
intensa e significativa. e, dentre outros aspectos, o antigo abismo de poder entre
Neste sentido, conforme McConville (1995), a fronteira as gerações é questionado – as crianças dos dias de hoje
de contato do adolescente – limite que contém e protege também “são outras”. Cada vez mais, elas perguntam,
o organismo ao mesmo tempo em que contata o ambien- questionam e por vezes “colocam os pais em cheque”,
te (Perls et al., 1951/1957) – está se constituindo, ama- apontando-lhes contradições e até mesmo questionando
durecendo e sendo burilada diante dos novos desafios. seus valores (comportamento anteriormente tipicamente
Em termos concretos, ainda segundo McConville esperado apenas com a chegada da adolescência). Assim,
(1995), quando criança, vivencia-se uma relação de de- diante das complexidades do mundo contemporâneo, em
pendência vinculante com os adultos no qual boa parte que a antiga força e rigidez da palavra dos pais são di-
de seu espaço de vida é indiferenciado do espaço de vida luídas diante da coexistência de múltiplos referenciais
adulto. Cabe aos adultos, por exemplo, a maior parte – de sentido (Berger & Luckmann, 1995) é cada vez mais
senão todas – as decisões a respeito de suas atividades, freqüente que os pais / responsáveis se sintam perdidos
como por exemplo, a escolha de sua escola, métodos pe- e fragilizados diante da necessidade de impor limites e
dagógicos, aceitação de professores, tipo de alimentação, mesmo diante da necessidade de se diferenciar, em ter-
de diversão e programas culturais, atividades educativas mos de papel, das crianças.
extra-escolares etc. O padrão relacional estabelecido na Quanto à adolescência, jovens das classes populares
infância é, fundamentalmente, jogar, obedecer, aprender se depararam com questões por vezes bastante diversas
e depender enquanto na adolescência, o caminho é em das de um jovem típico da classe média.
direção à independência. Isso não significa, entretanto, que a condição sócio-
Problematizando a descrição de McConville e, ao -econômica determina a adolescência de uma forma to-
mesmo tempo, ressaltando a dimensão de campo des- talizante estabelecendo uma espécie de “classificação”
te processo, é interessante observar que sua análise faz de características da adolescência de acordo com as con-
sentido no interior de um contexto cultural dado – o das dições materiais. Na ótica gestáltica, o que muda são as
sociedades ocidentais contemporâneas1 – e, de forma pri- forças presentes no campo, o que certamente afeta, mas
vilegiada, melhor se ajustam a determinados segmentos de modo algum determina o comportamento e as expe-
riências dos jovens.
1
Ressaltamos que o próprio contorno do termo “sociedades ocidentais No que diz respeito à dimensão tempo, (que precisa
Artigo

contemporâneas” como uma unidade evidente e indiferenciada é ser sempre levada em consideração numa abordagem “de
bastante contestável, o que se revela, no campo sociológico, por
campo” como a Gestalt-terapia) a época contemporânea
meio da noção de “múltiplas modernidades” (Eisenstadt, 2000).

193 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012


Lauane Baroncelli

introduz diversas transformações na experiência de ser No caso particular do adolescente, este fará então o
adolescente. possível para equilibrar-se diante da circunstância em
Como diversas análises têm ressaltado (ver por ex.: que se encontra num balanço entre possibilidades pre-
Lira, 2010; Garcia & Rocha, 2008; Calligaris, 2000), o an- sentes de si mesmo e do contexto. Alguns ajustamentos
tigo anseio de se tornar adulto, escolher uma profissão, podem, portanto, revelar respostas fluidas e espontâneas
assumir responsabilidades, constituir família etc. vêm às suas novas necessidades. Por outro lado, alguns ajusta-
sendo permeado por aspectos contraditórios. mentos podem indicar um modo rígido e pouco respon-
Se por um lado é provável que tais anseios ainda dente às mudanças enfrentadas.
existam, por outro, eles convivem com a valorização da Assim, se o trânsito entre a vivência do “campo in-
adolescência como ideal cultural (Garcia & Rocha, 2008). fantil” para o “campo adolescente” pode, por um lado,
Isso se revela em circunstâncias nas quais a antiga e tra- constituir uma experiência de crise, por outro, a busca
dicional versão cultural em que adolescentes querem pa- pelo projeto de si mesmo pode assemelhar-se mais a uma
recer e ter os direitos e liberdades dos adultos aparece progressiva exploração de papéis e potenciais escolhas
de forma invertida. Atualmente, numa cultura em que (que pode inclusive ter começado paulatinamente desde
a liberdade, o prazer e a juventude (de corpo e espírito) a infância) do que uma repentina busca sofrida e angus-
são propagados como instrumentos de valor pessoal ou tiada por si mesmo.
até mesmo como imperativos sociais é cada vez mais co- Tradicionalmente, enquanto o aspecto de regularida-
mum encontramos adultos querendo ter direitos e liber- de das tormentas emocionais e crises adolescentes é, re-
dades de adolescentes. petidamente, objeto de análise em diversas teorias sobre
Deste modo, falar em conflitos de gerações, ou mes- o desenvolvimento, outros aspectos, como a visão crítica,
mo descrever a adolescência como uma transição para o a amizade, a sinceridade e até a lucidez adolescente que
mundo adulto, pode significar cair no vazio. O vazio é a chamada maturidade frequentemente amortece são ra-
gerado pela falta de sensitividade para os elementos de- ramente mencionados. Sendo a Gestalt-terapia uma abor-
-um-campo que como analisamos anteriormente, é sem- dagem que concebe o indivíduo como um ser relacional,
pre mutante no tempo e no espaço. transformador e único, a generalização ou universali-
zação de supostas características da adolescência, bem
como a exclusão de outras formas possíveis de se ajustar
3. “Liberdade” e “Campo”: Facetas Inextrincáveis no criativamente devem ser evitadas.
Conceito de Ajustamento Criativo Para finalizar, vale destacar um elemento fundamen-
tal do contexto do adolescente que afetará de modo im-
O conceito gestáltico de ajustamento criativo, abso- portante seu processo de ajustamento criativo: seu rela-
lutamente conectado ao conceito de contato e de campo cionamento com os “outros significativos” (pais, respon-
referidos anteriormente, constitui um elemento central sáveis, professores, familiares, amigos etc.).
da visão gestáltica sobre processos de saúde e doença, Se na criança o relacionamento com os familiares e
sendo, portanto, fundamental para a compreensão do adultos se caracteriza, predominantemente, por uma de-
desenvolvimento humano nesta abordagem. pendência vinculante, a partir das diversas mudanças no
Por meio da capacidade humana de ajustar-se criati- espaço de vida dos jovens, estes tendem a sentir a neces-
vamente ao meio, ao mesmo tempo em que o ser se cons- sidade de serem tratados como indivíduos separados e
titui nas facticidades do desenvolvimento biológico, da independentes. Consequentemente, se perceberem ser ne-
cultura, da classe social e da época em que vivemos, pode cessário, podem se ajustar criativamente à nova situação
lidar criativamente com isso, escolhendo e criando a si materializando um jogo de oposições com seus responsá-
mesmo continuamente. veis, contrariando opiniões, idéias e valores dos mesmos
O ajustamento criativo pode ser definido como o pro- a fim de construir sua própria forma de ser.
cesso pelo qual o existente se relaciona com o meio cria- Em algumas experiências, é possível que os respon-
tivamente na busca de equilíbrio através dos recursos sáveis e familiares rivalizem com os adolescentes, ou si-
disponíveis no campo (Ribeiro, 2006). Ou ainda, como gam tratando-os como crianças para, desta forma, negar
define Moreira (2010, p. 24): “Ajustamento criativo sig- a passagem do tempo e a finitude de seu poder e prima-
nifica auto-regulação, abertura ao novo, contato vivo e zia sobre eles. Nestes casos, o campo como um todo está
vitalizante, referindo-se à formação de novas configura- impregnado de elementos de conflito, e não apenas o ado-
ções pessoais (ou gestalten) a partir da entrada de novos lescente, como se este existisse isolado em uma suposta
elementos através da experiência de contato”. Portanto, interioridade conflituosa.
tal processo configura-se como uma expressão do ser- Por outro lado, tais padrões de relacionamento com a
-no-campo, no qual as facetas humanas de liberdade família também não devem ser naturalizados. Relações
(revelado na palavra criativo) e contextualidade (sen- conflituosas com pais e responsáveis têm sido tão ampla-
Artigo

tido presente na palavra ajustamento) atualizam-se de mente generalizadas nas leituras acadêmicas e no ima-
maneira integrada. ginário social sobre adolescência que algumas famílias

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012 194


Adolescência: Fenômeno Singular e de Campo

desconfiam que algo possa estar errado caso o adolescente Referências


mantenha-se responsável, lúcido e uma companhia agra-
dável. No entanto, a diferença humana ainda resiste às Aberastury, A., & Knobel, M. (1992). Adolescência normal: um
generalizações teóricas e alguns adolescentes efetivam enfoque psicanalítico. (S. M. G. Ballve, Trad.). Porto Alegre:
Artes Médicas (Original publicado em 1970).
ajustamentos criativos num campo em que a proximida-
de e o diálogo com a família podem se desenvolver sem Aguiar, L. (2005). Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática.
afetar sua necessidade de discriminação. São Paulo: Livro Pleno.
De qualquer modo, o comportamento do adolescente
Aguiar, W. M. J., Bock, A. M. B., & Ozella, S. (2001). A orienta-
revela o que vive na escola, na família, na sociedade e
ção profissional com adolescentes: um exemplo de prática
na cultura. Em vários níveis, insistimos, ele não é ado- na abordagem sócio-histórica. Em M. B. Bock, M. da G. M.
lescente sozinho. Na perspectiva de campo adotada pela Gonçalves & O. Furtado (Orgs.), Psicologia sócio-histórica:
Gestalt-terapia, cada existente co-existe numa realidade uma perspectiva crítica em Psicologia (pp. 163-178). São
compartilhada em que todos estão implicados (Parlett, Paulo: Cortez.
2005). Entretanto, se é verdade que o adolescente não
Aguiar, W. M. J., & Ozella, S. (2008). Desmistificando a con-
vivencia seus possíveis conflitos de modo interno, mas
cepção de adolescência. Cadernos de Pesquisa, 38(133),
num campo, por outro lado, a família, a escola ou a so- 97-125.
ciedade também não são as causadoras por excelência de
problemas na adolescência. Almeida, J. M. T. de. (2010) Reflexões sobre a prática clí-
O existente (e, consequentemente, o adolescente) é nica em Gestalt-terapia: possibilidades de acesso à ex-
para a Gestalt-terapia, produto e produtor de sua condi- periência do cliente. Revista da Abordagem Gestáltica,
16(2), 217-221.
ção. Revelando a noção de causalidade circular da Gestalt-
terapia, a escola, a família, o mundo e o adolescente livre se Antony, S. (2006). A criança em desenvolvimento no mundo:
influenciam mutuamente de modo a se tornar basicamente um olhar gestáltico. Revista IGT na rede, 3(4).
impossível detectar relações mecânicas de causa e efeito em
Antony, S., & Ribeiro, J. P. (2005). Hiperatividade: doença ou
suas interações (Brafman, citado por Toman e Bauer, 2005).
essência. Um enfoque da Gestalt-terapia. Revista Psicologia
Ciência e Profissão, 25(2), 186-197.

Considerações Finais Berger, P. L., & Luckmann, T. (1995). Modernity, Pluralism and
Crisis of Meaning. Gütersloh: Bertelsmann Foundation
Publishers.
Como pretendemos ter deixado claro ao longo do
artigo, a Gestalt-terapia compartilha o questionamento Bock, A. M. (2007). A adolescência como construção social: es-
– que vem sendo explorado na literatura sobre o tema, tudos de livros destinados a pais e educadores. Psicologia
sobretudo, pela perspectiva sócio-histórica – acerca da Escolar Educacional, 11(1), 63-76.
naturalização da adolescência como um fenômeno abs-
Calligaris, C. (2000). A adolescência. São Paulo: Publifolha.
trato e universal.
Tal naturalização entra em choque com elementos Eisenstadt, S. N. (2000). Multiple Modernities. Daedalus,
fundamentais da concepção gestáltica de indivíduo, no- 129(1), 1-29.
tadamente a consideração deste como um ser contextu-
Evangelista, P. (2010). Interpretação Crítica da teoria de Campo
alizado (ser-no-campo) e singular e, portanto, como um Lewiniana a partir da Fenomenologia. Artigo elaborado
existente que só pode ser compreendido no interior de para o Centro de Formação e Coordenação de Grupos em
suas relações sempre complexas e únicas com o mundo. Fenomenologia. Disponível na World Wide Web: http://
Sendo assim, podemos resumir dizendo que a leitura www.fenoegrupos.com/JPM-Article3/index.php?sid=14
sobre a adolescência na ótica da Gestalt-terapia precisa ser
Facci, M. G. D., & Tomio, N. A. O. (2009). Adolescência: uma
flexível e complexa o suficiente para evitar os seguintes
análise a partir da psicologia sócio-histórica. Rev. Teoria e
“engodos” teóricos: a naturalização do desenvolvimento Prática da Educação, 12(1), 89-99.
adolescente, alienando aspectos históricos e contextuais
inerentes a este; a correlata generalização e universali- Frota, A. M. M. C. (2007). Diferentes concepções da infân-
zação de características que alienam a singularidade de cia e adolescência: a importância da historicidade para
cada experiência no mundo concreto; e, finalmente (as- sua construção. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 7(1),
147-160.
pecto esse que inclui os dois últimos), faz-se fundamental
evitar a cegueira conceitual que reproduz entendimentos Garcia, C. A., & Rocha, A.P. R. (2008). A Adolescência como
teóricos sobre a adolescência que se tornaram hegemô- Ideal Cultural Contemporâneo. Psicologia Ciência e
nicos tanto na academia como no imaginário social, ig- Profissão, 28(3), 622-631.
norando os aspectos reducionistas e estáticos embutidos
Lewin, K. (1936). Principles of topological psychology (F. Heider
Artigo

em tais entendimentos que contrariam os pressupostos e G. M. Heider, Trads.). New York: McGraw-Hill.
elementares da Gestalt-terapia.

195 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012


Lauane Baroncelli

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Aceito em 10.11.12
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Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 188-196, jul-dez, 2012 196


A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial

A ESPACIALIDADE NA COMPREENSÃO DO TRANSTORNO


DO PÂNICO: UMA ANÁLISE EXISTENCIAL

The spaciality in the understanding of the panic disorder: an existential analysis

La Espacialidad en la compreensión del transtorno de panico: una análisis existencial

Gustavo A lvarenga Oliveira Santos

Resumo: O texto apresenta um caso clínico sob a luz da análise existencial de Ludwig Binswanger. Elege-se a espacialidade como
categoria central na compreensão clínica aqui apresentada. Em um primeiro momento, será apresentado ao leitor o conceito de
espacialidade segundo a ontologia fundamental de Heidegger, em Ser e Tempo. Feito isso, o artigo traz à luz o conceito de pâ-
nico, de acordo com a análise existencial. O relato do caso clínico, bem como sua análise, conforme os conceitos apresentados,
desvelará de que forma o pânico pode ser entendido como um transtorno no modo de espacializar. Essa compreensão nos dará
subsídios para um entendimento existencial do transtorno do pânico, bem como nos possibilita pensar em formas de condução
do tratamento, diferente das tradicionais.
Palavras-chave: Transtorno do pânico; Análise existencial; Espacialidade; Binswanger.

Abstract: This text presents a clinical case under the light of the existential analysis of Ludwig Binswanger. It is chosen spa-
ciality as central category in the clinical understanding presented here. At a first moment, basic on the essential ontology of
Heidegger in Being and Time, will be presented to the reader the concept of spaciality. Made this, the article brings to the light
the concept of panic, in accordance with the existential analysis. The story of the clinical case, as well as its analysis, will re-
veal of that it forms the panic can be understood as a disorder in the way of to space of the individual. This understanding in
will give us subsidies for an existential agreement of the panic disorder, as well as in makes possible to think about forms of
conduction of the treatment, differently of the traditional ones.
Keywords: Panic disorder; Existential analysis; Spaciality; Binswanger.

Resumen: Este trabajo presenta un estudio de caso a la luz del análises existencial de Ludwig Binswanger. Elige a la espacia-
lidad como uma categoria central en la comprensión del caso. En un primer momento, el lector se introducirá el concepto de
espacialidad de acuerdo a la ontología fundamental de Heidegger, en Ser y Tiempo. A continuación, el artículo saca a la luz el
concepto de pánico, de acuerdo con el análisis existencial. El caso clínico y su análisis dará a conocer como el pánico se puede
compreender como un transtorno en el modo de espacializar. Esa comprensión subsidiará para un entendimento existencial del
transtorno de pânico, mientras possibilitará piensar en modos de conducción del trataimiento, diferente de los tradicionales.
Palabras-clave: Transtorno de pánico; Analísis existencial; Espacialidad; Binswanger.

Introdução relação homem-mundo. Destacaremos nesse texto aspec-


tos do ser do homem como Dasein, no sentido de elucidar
Este texto se propõe a discutir um tema recorrente na um caso clínico, em especial no que tange à questão da
clínica psicológica e psiquiátrica: o transtorno do pâni- espacialidade, já abordada por Heidegger e aplicada por
co. Para tanto, utilizaremos a categoria da espacialidade, Binswanger em sua psicopatologia.
tal como entendida pela Antropologia Fenomenológica Binswanger elucida essa relação da compreensão
de Ludwig Binswanger, na análise de um caso clínico. do homem como Dasein nos casos clínicos reunidos
Em um primeiro momento, será esclarecido o signifi- no livro Schizophrenie, publicado em 1957 (e inédi-
cado do termo alemão Da-sein, em acordo com a onto- to em português), onde aparecem os casos: Ellen West
logia fundamental de Martin Heidegger, presente em (1944-1945), Use (1945), Jürg Zund (1946-1947), Lola
Ser e Tempo. Esse conceito é base, e é a partir dele que Voss (1949) e Suzan Urban (1952-1953). Nessa mes-
entenderemos a categoria da espacialidade conforme a ma época é também publicada a obra: Três Formas de
Analítica do Dasein. Existência Malograda: Extravagância, Excentricidade,
O médico suíço Ludwig Binswanger foi um dos psi- Amaneiramento (Binswanger, 1956/1972)1 em que são
quiatras inspirados pela nova perspectiva em que o ser do evidenciadas a partir da compreensão do Dasein, al-
homem era concebido por Heidegger. A compreensão do
Artigo

homem como Dasein permitia possibilidades de compre- 1


Título original: Drei Formen missglückten Daseins. Verstiegenheit,
ensão das patologias mentais, embasados nos modos de Verschrobenheit, Manieriertheit.

197 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012


Gustavo A. O. Santos

guns modos de ser que aparecem na esquizofrenia. um ente. A palavra Da- é pronome demonstrativo, signi-
Após essa fase, segundo Giovanetti (1990), o autor se fica “Aí”; sein, “ser”; logo Ser-aí, é sua tradução literal.
utilizará da fenomenología transcendental de Edmund Da-sein é o ente através do qual o Ser é em relação,
Husserl na análise de algumas patologias. Essa nova fase tornando assim possível a pergunta sobre ele mesmo.
do pensamento de Binswanger se expressa, por exem- Da-sein é o homem enquanto existente, ou seja, imbuí-
plo, em Melancolia e Mania. Estudos Fenomenológicos2 do da tarefa primordial de ter que constituir seu próprio
(Binswanger, 1960/1987), publicado em 1960, aparecerá ser, e nesse processo ser o ente através do qual é possível
nas considerações finais quando justificaremos por que uma pergunta sobre o Ser em geral.
o caso relatado não se trata de uma psicose. Interessa-nos, para este trabalho, apreendermos no
Descreveremos brevemente o caso “Suzanne Urban”, Da-sein seu caráter eminentemente espacial. Destaca-se,
último estudo clínico do autor, em uma perspectiva que o modo pelo qual esse aparece, pressupõe de ante-
Daseinsanalítica, onde nos interessa a noção do Terror, mão uma relação intrinsecamente espacial já denotada
que na aproximação de Pereira (1997), serve-nos para a em sua nomeação. O “Aí” é uma relação direta com o es-
compreensão do hoje chamado Transtorno do Pânico. paço: sendo em relação, o homem não é aqui, junto com
Alguns apontamentos teóricos, relevantes da análise exis- as coisas, mas tem que existir orientado para elas.
tencial, empreendida por Binswanger nesse caso, servi- Enquanto um existente, que se orienta para algo, o
rão como subsídio para a discussão de um caso clínico homem tem entre si e o mundo um distanciamento, se-
de transtorno do pânico atendido pelo autor deste texto. gundo Heidegger (1927/1997, p. 157): “(...) o que se acha
A descrição desse caso e sua análise, sob um ponto à mão no mundo circundante, pode vir ao encontro em
de vista analítico-existencial, alicerçado à categoria da sua espacialidade”. Desse modo o Da-sein estabelece o
espacialidade, contribui para um entendimento desse seu ser-no-mundo, espacializando, e seu espacializar
transtorno, tanto do ponto de vista teórico, como do pon- desvela que a relação com as coisas não é dada de ante-
to de vista da condução do tratamento. mão, mas se dá enquanto ultrapassa o distanciamento
inerente à sua condição.
O modo como um indivíduo particular espacializa,
1. O Modo de Ser-em Espaço: A Espacialidade do é, para Binswanger, uma categoria importante na com-
Da-sein como Dis-tanciamento preensão das patologias mentais. O autor destaca no en-
tendimento nos casos clínicos “Lola Voss” e “Suzanne
Devemos esclarecer de antemão a que nos referimos Urban” essa categoria como elemento central para o en-
quando nos utilizamos do termo Da-sein. Traduzido co- tendimento das consequências da experiência que ele
mumente por pre-sença, graças à edição atual de Ser e denomina como Terror.
Tempo em português, o conceito tem gerado uma série O Terror se dá na vivência direta do abismo, no dis-
de equívocos e mal entendidos quando utilizado à reve- tanciamento que há entre o Si e as coisas. A existência4
lia da genuinidade que ele traz na concepção de homem é uma condição abissal, pois no seu espacializar, ela se
atual. Preferimos neste texto, assim como tem sido uti- faz sobre o nada. Ela não é fundamentada, não é com o
lizado por estudiosos da analítica existencial, utilizar o mundo, mas no mundo, ou seja, em relação a ele. O Terror
termo em alemão: Da-sein, para preservarmos o seu sen- é uma forma de Angústia, e essa última é o sentimento
tido original e nos livrarmos das ambiguidades presen- privilegiado que revela ao Da-sein seu modo de ser sobre
tes na tradução latina, alvo de muitas discussões entre o nada. No domínio da inautenticidade, o Da-sein se crê
os especialistas da área. fundamentado no próprio solo que ele criou para habi-
Longe de querermos alongar muito no tema e nos de- tar, alienando-se. Quando esse solo se revela inautênti-
batermos em questões filosóficas de ordem ontológica, co através da vivência da angústia, o existente se vê sob
cabe-nos, para o que nos interessa neste artigo, demons- o domínio de “ter-que-ser-si-mesmo” – que é a expressão
trar o pano de fundo sobre o qual foi concebido o concei- utilizada por Binswanger na análise do caso Suzanne
to, de forma que se torne claro a espacialidade implícita Urban, e que se refere à dimensão própria do existir que
na sua própria concepção. se caracteriza em ser irremediavelmente responsável por
Da-sein foi o termo utilizado por Heidegger em Ser e seu próprio ser-no-mundo – e o solo aparece como abis-
Tempo, na busca de um ente em que poderia se colocar sal. Chamond (2011) ao propor um estudo sobre a psico-
a questão sobre o Ser3. O Ser, segundo o autor, havia ca- patologia do espaço vivido de acordo com Binswanger
ído no esquecimento em um mundo cada vez mais do- destaca que para o autor:
minado pelo tecnicismo científico que o transformou em
A imagem da queda expressa uma possibilidade con-
2
Título original: Melancholie und Manie. Phänomenologische Studien
(inédito em português).
creta da espacialidade vivida, do corpo habitando o
3
Para distinguirmos o Ser (Sein) em geral e o ser em particular, utili- espaço: ela é uma estrutura antropológica do mundo,
Artigo

zaremos o primeiro com maiúscula e o segundo com minúscula. O


Ser em geral é ontológico, pois se refere à questão sobre aquilo que é, 4
Ex-sistere significa ebulência, emergência, salto além de si. Segundo
já o ser do Da-sein é particular, pois se singulariza no ente Da-sein. Heidegger é a tradução latina mais próxima ao conceito de Da-sein.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012 198


A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial

uma forma de habitá-lo, aquela da perda do apoio e da vivência, ele vem como algo que lhe toma de fora e que
harmonia, da ruptura em uma corporeidade tranqüila. aparece como que estando o Da-sein presa de uma po-
Mas além do corpo que cai realmente, a imagem da tência superior.
queda traduz a essência mesma da perda do escora- O abismo traz-lhe a possibilidade sempre presente de
mento e do vivido de terror que lhe é consubstancial. não ser ele mesmo e, paradoxalmente, o mantém à vista
A queda descreve uma possibilidade fundamental as múltiplas possibilidades de ser como projeto. Essa ex-
de ser no mundo: a perda do equilíbrio, o colapso, o periência, segundo Binswanger (1957/1988), é típica da
terror (p. 5). psicose em que o próprio modo de constituição do ser-
-aí se perde na noção mesma de se orientar no espaço.
O “ter-que-ser-si-mesmo”, dá-se, no entendimento Binswanger (1956/1972) estabelece três formas de
heideggeriano, como projeto (Entwurf). Entendendo o ser “existência malograda” como modos de ser típicos da es-
como projeto em acordo com a categoria da espacialida- quizofrenia, são elas: o maneirismo, a excentricidade e
de, podemos dizer que o primeiro é como um elo que nos a extravagância. Na extravagância, o abismo é encarado
conecta às coisas que nos circundam. Quando esses elos pelo Da-sein como algo a ser transposto, o salto que se
que construímos com o mundo perdem seu fundamen- dá para o seu atravessamento, porém, queda despropor-
to, o nada sobre o qual eles foram construídos torna-se cional com a possibilidade mesma do projeto, ficando o
evidente, e a angústia torna-se o sentimento prevalente. indivíduo preso em sua própria forma de espacialização.
Ou seja, se os projetos de determinado sujeito quedam Sem referências para as quais se orientar, o extravagante
ameaçados, é a existência mesma que perde seu funda- torna-se como um alpinista que, ao escalar uma monta-
mento, como se já não tivesse laços que a una às coisas nha, perde a noção de fundo que lhe abriria a possibili-
do mundo; em termos binswangerianos, essa existência dade do próximo passo ou do possível retorno. O terror
torna-se malograda. é vivenciado diretamente, pois ele paira sobre o abismo
Boss (1977) relata o caso de um paciente esquizofrê- e o nada lhe aparece evidente.
nico que percebia da janela um mundo próximo, bidi- Já no caso Suzanne Urban, a experiência do abismo
mensional e ameaçador que o comprimia. Esse paciente se dá de outro modo e o aterrorizante vem como algo de
também apresentava os chamados sintomas negativos fora. Suzanne é descrita por Binswanger (1957/1988) como
da esquizofrenia: embotamento afetivo, lentificação do uma mulher extremamente cuidadosa com relação aos
pensamento e autismo. Ou seja, o modo como se compri- seus cuidados pessoais e os dos outros, principalmen-
mia e se limitava na forma de Ser aí, também era o modo te nos aspectos ligados à saúde dos seus entes queridos.
como espacializava, trazendo para a proximidade os entes O seu processo psicopatológico começa quando acompa-
enquanto algo que o comprimia. Da mesma forma, um nha seu marido em uma consulta rotineira a um urolo-
outro paciente pode perceber o espaço como profundo gista para tratar de um possível problema urinário. Qual
e desafiador, luminoso e amplificado, nesse estado ele não foi a surpresa quando o médico diagnostica nele um
aparece como que tomado por uma sensação de êxtase, câncer de vesícula praticamente inoperável.
como se o mundo fosse dotado de infinitas possibilida- A cena do médico proferindo o diagnóstico retém-
des de existência. -se na memória de Suzanne. Ela passa a se ocupar do
Cabe-nos nesse artigo demonstrar em um caso clínico tema, o que repercute no sentido de sua orientação es-
específico a forma como se dá a espacialização no chama- pacial, onde irá prevalecer o mundo enquanto perigo.
mos, atualmente, de “Transtorno do Pânico”. Antes disso, A cena do diagnóstico de câncer é deslocada para todas
porém, veremos como Binswanger (1957/1988) evidencia as suas formas de relação com o mundo e, em seu modo
o pânico no caso “Suzanne Urban”. Esse se revelará para de espacialização, passa a predominar o que Binswanger
ela como experiência do Terror, que a paciente vivenciará (1957/1988) chama de “atmosferização do tema”. Assim
como evidência não mediada do abismo, o que ameaça a ameaça não se refere ao medo pela morte do marido,
sua existência como um todo. como poderia se supor, mas toma toda a forma de mun-
do no espaço que a paciente habita. Temos aqui então a
“atmosfera do terror”.
2. O Caso Suzanne Urban: Terror e Pânico como Na “atmosfera do terror”, o modo como Suzanne es-
Perturbação da Dimensão Espacial pacializa não se ancora mais nas relações possíveis que
lhe são dadas; pelo contrário, ela cerceia seus modos de
Sobre a experiência da angústia do abismo, Bins- relação e as coisas trazem a sempre iminente possibilida-
wanger (1957/1988) propõe a noção de Terror. O Terror é de de seu aniquilamento. Daqui podemos deduzir o pâ-
a constatação do Da-sein de sua facticidade5. Enquanto nico, como modo de experiência de um terror atmosféri-
co que ameaça o ser de fora, sem se mostrar em nenhum
5
A facticidade (Geworfenheit) refere-se à condição do Da-sein enquan- ente específico, mas no espaço como um todo. Daí que
Artigo

to ser lançado no mundo, “num abandono no meio do ente que o as crises de pânico quando muito recorrentes podem de-
põe frente à única possibilidade de constituir-se ele mesmo o seu
senvolver o que em psiquiatria chama-se agorafobia, ou
ser” (Pereira, 1997, p. 37).

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Gustavo A. O. Santos

seja, em um pavor inespecífico a espaços amplos e vagos, controle e ficar louco são comuns; o transtorno desve-
como apontado por Pereira (1997). la um modo de espacializar que se rompeu, deixando
No caso Suzanne Urban, ao lidar com a experiên- vaga a distância que separa o ser de seu mundo, daí as
cia do Terror, ela passa a criar o que denomina “teatro idéias de aniquilamento, ou seja, da perda de sua di-
do horror”: imagina forças demoníacas que lhe estão à mensão existencial.
espreita, fantasia perigos imaginários e sente-se cons- Vejamos como isso se deu em um caso clínico.
tantemente ameaçada pelos outros. Ou seja, do pâni-
co geral que ameaça seu ser como um todo e é ines-
pecífico, passa a eleger os objetos do perigo, de onde 3. Das Crises de Pânico às Passarelas da Vida: o Caso
Binswanger (1957/1988) conclui ser a base de evolução Lucas
de seu delírio.
Na experiência do Terror de Suzanne, não há pos- O atendimento que será relatado ocorreu em um
sibilidade que se elabore qualquer discurso ou enten- Serviço de Psicologia vinculado a uma Faculdade de
dimento verbal sobre o que a atormenta. Ao criar o Psicologia. O contrato de atendimento, estipulado em um
“Teatro do Horror”, ela já se familiariza com seus per- termo de consentimento assinado pelo paciente e seu res-
seguidores, e na personificação do Terror fabula um ponsável legal, previa que, por se tratar de um serviço de
mundo fantástico onde o perigo se personifica nas pes- psicologia universitário, os casos ali atendidos poderiam
soas ao seu redor. ser utilizados para pesquisas, bem como material didá-
Pereira (1997) considera o relato do caso Suzanne tico para o ensino de psicologia, garantindo o sigilo das
Urban como uma possibilidade de entendimento para informações (em caso de relato), por meio de omissão de
a experiência do pânico; com a diferença de que no elementos que identifiquem o paciente e uso de nomes
Transtorno do Pânico, o Dasein elege o corpo como lu- fictícios. O autor do artigo atendeu o caso, na qualidade
gar de anteparo ao terrífico da experiência do abismo. de docente e pesquisador da referida faculdade, interes-
Segundo Pereira (1997, p. 239): “(...) no pânico, o terrível sado por questões relativas aos transtornos de ansiedade.
ancora-se de forma hipocondríaca no real do corpo. Dessa Chega-me para atendimento clínico um adolescente
forma, o pânico não pode ser considerado como um ino- de 14 anos, encaminhado pela mãe e indicado por um
minável inteiramente experimentado como tal”. O corpo, cardiologista. A queixa principal, relatada pela respon-
assim como no “Teatro do Horror” de Suzanne Urban, ser- sável, era que Lucas (nome fictício) estava sofrendo, nos
ve frente ao abismo do inominável e do nada. Enquanto últimos meses, recorrentes crises de arritmia cardíaca,
ainda se é possível uma querela sobre um modo de rela- que, segundo o médico da família eram de fundo psico-
ção real, o indivíduo se mantém em algum chão, mesmo lógico, não tendo sido encontrado nenhum problema or-
que à beira do precipício. gânico que as justificasse.
Os sintomas do transtorno do pânico aparecem, em A mãe foi recebida em particular antes de Lucas ser
geral, como um pavor inespecífico, acompanhados ou convidado a ser atendido individualmente. Foi pergun-
não de uma sensação iminente de morte. O pavor, como tado se ele consentia em participar de um processo psi-
dito, manifesta-se no corpo por alguns sintomas, segun- coterápico. Ele consentiu, mas disse que necessitava do
do o DSM-IV (American Psychiatric Association, 1995): atendimento não pelo motivo exposto pela mãe, qual seja,
“1 - palpitações ou ritmo cardíaco acelerado; 2 - sudo- a arritmia cardíaca. Desse sintoma, ele daria conta, já não
rese; 3 - tremores ou abalos; 4 - sensações de falta de ar o sentia tanto quanto antes, mas o verdadeiro motivo se-
ou sufocamento; 5 - desconforto torácico; 6 - náusea ou ria conseguir se concentrar melhor nos estudos, dada a
desconforto abdominal” (p. 193). Os ataques se dão, em necessidade em ser aprovado em um concurso para estu-
geral, quando o indivíduo encontra-se só ou em aglo- dar em uma importante escola técnica federal.
merações, como congestionamentos e lugares públicos. Assim começaram as entrevistas, e Lucas, a princí-
A ocorrência de um ou dois ataques esparsos não sig- pio, mostrava-se em uma postura distante, desconfiado,
nifica, no entanto, que a pessoa desenvolveu o chama- ora gaguejando, ora falando muito baixo. Indagava sem-
do transtorno do pânico. Para que esse se caracterize pre por onde começar e, sentindo no terapeuta, alguém
enquanto tal é necessário, segundo o DSM-IV, que o in- disposto a escutar o que tinha a dizer, foi aos poucos dis-
divíduo apresente uma preocupação acerca das conse- correndo sobre suas preocupações cotidianas, bastante
quências dos ataques de pânico: ideias de morte, medo típicas para um garoto de sua idade. Vídeo games, com-
de perder o controle, ficar louco ou morrer por parada putadores, patins, bicicleta, o futebol que praticava, eram
cardíaca são comuns. temas recorrentes nas entrevistas iniciais. Aos poucos fui
O transtorno surge como uma tentativa do indiví- me aproximando dele, de seu linguajar próprio, de seus
duo defender-se contra o abismo do nada, no corpo ou interesses, mostrei-me como parceiro e como quem co-
nas ideações que podem vir a se tornar delírio, como mungava, na sua idade, dos mesmos interesses.
Artigo

no caso Suzanne Urban. Assim compreendemos o mo- Lucas era o filho mais velho, tinha mais um irmão de
tivo por que as ideações de morte, o medo de perder o 13 anos, de uma pequena família de classe média. Seu

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A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial

pai havia-se aposentado do serviço público, ficando boa atendeu em pelo menos três ocasiões, em que sendo leva-
parte do seu tempo livre, em casa, a mãe tinha o ensino do para o serviço de cardiologia do pronto-socorro, nada
médio e era dona de casa. Do pai se referia como um ho- se constatou de anormal.
mem a quem devia muito sua formação e boa educação. Fora os “sintomas”, eram recorrentes as ideias de mor-
Afinal, estudava em um bom colégio e tinha privilégios te e de ameaça constante. O prédio onde estudava, por
como aulas de informática e futebol. Devia também a ele exemplo, podia desabar a qualquer momento. Segundo
sua possível aprovação no concurso da escola técnica, seu relato a engenharia ainda não atingira seu grau de
coisa pela qual era sempre cobrado. O pai dizia que já perfeição, assim todas as construções guardavam uma
na idade de Lucas, ele trabalhava e nem podia se dar ao ameaça latente de desabamento. As escadas também
luxo de só estudar, assim ser aprovado no concurso era guardavam a morte em potencial, um deslize, um degrau
nada mais que uma obrigação para o filho. a menos ou a mais no cambiar das pernas, poderia lhe
O discurso do pai dominava as sessões. Lucas falava provocar uma queda súbita. A morte de um humorista
comumente sobre suas queixas: dizia que o pai o chamava famoso na televisão, repentina por um ataque cardíaco,
de “vagabundo”, que ele não daria em nada na vida, que foi um dos desencadeadores de um ataque: ora se era as-
nenhuma mulher o desejaria. Lucas demonstrava certa sim, como acontece a qualquer um, isso poderia ocorrer
ambiguidade em relação a isso. Ora considerava essas co- com ele também. Sabia da irracionalidade de seus medos,
branças pertinentes, o que o inferiorizava diante do pai; confiava em parte no diagnóstico dos médicos, mas não
ora já se enfastiava de tantas obrigações por ele exigidas, conseguia se livrar, segundo ele, dessa sensação iminen-
queixando a mim sobre a falta de tempo suficiente para te de morrer que lhe rondava.
o seu lazer e para ficar à toa como gostaria. Lucas via a Aos poucos foi se recolhendo mais em casa, e, embora
mãe como quem apaziguava as cobranças paternas em as pressões do pai lhe incomodassem, sabia que ali, pelo
relação a ele, tentando desviar sua atenção do fato dos menos, era um lugar razoavelmente seguro, sentindo-se
adolescentes da casa não estarem atendendo às suas ex- um tanto livre das ameaças constantes da rua. Nesse
pectativas. O paciente, no entanto, insistia em ter seus tempo largou o futebol e reduziu ao máximo suas ativi-
momentos de lazer, o que irritava ainda mais o pai, tor- dades, inclusive faltou a várias sessões de psicoterapia.
nando suas reclamações recorrentes. Ia à escola sempre acompanhado do irmão e sentia sem-
Com o quadro de sua situação já apresentado e os re- pre as palpitações ao atravessar a rua, ou subir as escadas.
latos se voltando a esses temas, ora ao lazer e aos jogos As queixas do pai se atenuaram e os recorrentes ata-
de futebol, ora aos estudos e a cobrança excessiva do ques passaram a ser tematizados em nossos encontros.
pai, Lucas começou a dizer sobre sua preocupação com Nesse tempo Lucas já estava há seis meses em psicotera-
a morte. Quando indagado se já tivera alguma perda sig- pia, interrompidos por vinte dias de férias, quando outras
nificativa em sua vida, de pronto se lembrou da morte crises mais severas haviam lhe acometido.
repentina de seu avô, com quem tinha um vínculo mui- Retornado das férias apressou-se em dar seu diagnós-
to significativo. tico: síndrome do pânico. E pedia incessantemente um
Lucas descreve o avô em contraposição ao pai, como encaminhamento a um psiquiatra ou que lhe propusesse
sendo mais relaxado e menos exigente, e que desbanca- uma técnica que o livrasse logo daquilo. Respondi que na
va, sempre que tinha oportunidade, a postura parcial e nossa proposta deveríamos nos atentar ao significado que
autoritária do seu genitor. O avô, segundo ele, dizia que “os sintomas” tinham para ele, e não em simplesmente
seu pai não era nada disso que ele tentava se mostrar e expulsá-lo da sua vida; que era algo que deveríamos des-
que havia tido condições para estudar, fazer seu curso cobrir juntos e que, com certeza fazia parte da totalidade
superior e depois poder exercê-lo como funcionário pú- de sua existência. Confiou. As sessões pareceram mais
blico, sendo que suas exigências não faziam sentido, não produtivas, principalmente em verbalizações e as crises
era um exemplo sobre aquilo que ele próprio dizia. O avô foram-se reduzindo até o momento em que ele tratou do
também era alguém com quem se podia jogar sinuca, totó, tema das passarelas. As passarelas segundo ele, traziam
xadrez; pessoa festiva e tranqüila, Lucas se assustou com um desafio ainda maior, pois se tratavam de construções,
sua morte. Ao falar desse fato, ocorrido há aproximados vulneráveis como quaisquer outras, mas que pairam nos
três anos, ele fez questão de salientar que não tinha rela- abismos, rios e avenidas movimentadas da cidade.
ção com seus sintomas; aliás, os sintomas há muito não Citou os diversos tipos de passarelas existentes, das
lhe incomodavam, mas foram reaparecendo logo após a estreitas às mais largas, das precárias de estrutura me-
sessão em que se falou sobre essa morte. tálica construídas às pressas sob interesses políticos, às
Os “sintomas”, como o próprio Lucas a eles se referia, antigas de cimento, já velhas e com pouca ou nenhuma
apareciam como pontadas no peito que sentia quando jo- inspeção de engenheiros. Sempre se debatera com elas,
gava bola, dormia ou devido a esforço físico razoável; sen- lembrou. Isso desde sua infância, seu pai uma vez o for-
tia uma palpitação diferente no coração. Em algumas situ- çou a atravessar uma, puxando-o violentamente pelas
Artigo

ações, chegou a pedir à família que contatasse o Serviço mãos até ele ser arrastado, chorando e se debatendo, pa-
de Atendimento Municipal de Urgência (SAMU) que lhe voroso. Na medida em que os sintomas se acalmavam e

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Gustavo A. O. Santos

ele se interessava cada vez mais pelas construções arqui- sobre a necessidade em avaliarmos juntos alguns aspec-
tetônicas, contou-me sobre um feito recente. tos determinantes das crises que sofrera e as vantagens
Uma passarela suspeita, estreita, dessas antigas, ha- de um tratamento que não se finda apenas com o alívio
via o desafiado a uma travessia. Ele precisava atravessá- dos sintomas.
-la para verificar um possível estágio numa empresa es- Disse-lhe que os sintomas eram apenas uma “ponta
pecializada em recrutamento. O desafio o emocionou, a de um iceberg” que indicava que deveríamos aprofundar
ponto de chorar; sentia, paradoxalmente, uma ânsia em mais em direção a seus problemas. No entanto, Lucas
chegar e certa vontade de ficar, enfim resolveu que iria estava decidido; findas as crises e tendo-se reconcilia-
enfrentar seu medo e atravessar a passarela. Essa era es- do com o seu corpo, segundo o que disse, poderia cami-
treita, e para ele, das mais temíveis, pois se angustiava nhar sozinho. Nada valeu minha insistência e o pacien-
mais com as estreitas e menos com as largas e ocupadas te deu por encerrado o processo, agradecendo-me muito
por corrimões. Segundo imaginava, alguém em direção pela ajuda e se dizendo totalmente curado do transtorno
contrária poderia lhe empurrar para o fundo do rio sobre que sofria. Após três meses do fim de nossas consultas
o qual a passarela passava. Fez-se de destemido (segundo liguei-lhe para ter notícias; disse que se curara de vez
suas próprias palavras). Passou tremendo e sentindo as dos sintomas e que havia sido aprovado no concurso e se
mesmas palpitações, mas resolveu, no entanto, não pres- preparava para o curso técnico; o que fosse fazer depois
tar atenção a elas; seria um estado normal, mais fruto de decidiria mais tarde.
seu psicológico do que de um real problema cardíaco.
Quando findou a travessia, sentiu-se tomado de uma
intensa alegria, como se houvesse reconciliado algo den- 4. O Caso Lucas à Vista da Fenomenologia Existencial
tro de si que não suspeitava. Respondi que a sensação po-
deria ser análoga a ele ter passado no concurso, ele disse Lucas revela desde o primeiro encontro, uma postura
que sim. Constatou que suas dificuldades remeteram às distante, tímida. Falava por gaguejos e se corrigia cons-
passarelas que ele tinha que enfrentar e aos desafios que tantemente. Os sintomas não são, a princípio, o que o
tinha ainda pela frente. abriria ao processo psicoterápico, antes fazem um apelo
Nos encontros seguintes Lucas passou a questionar àquilo que o mantém enlaçado ao mundo: a necessidade
a viabilidade do projeto do pai para que ele aprovasse em atravessar a ponte que o ligaria a uma vida profissio-
no concurso. Justificava esse projeto como algo que po- nal digna, tal qual fora a de seu pai. Aproximar-se das
deria lhe garantir um emprego mais seguro já em sua palpitações, do descontrole, do medo iminente da morte
idade, podendo se tornar independente do pai e de suas é também se aproximar das experiências advindas disso,
frequentes cobranças. Indiquei-lhe outras possibilida- é estar com aquilo que é o núcleo de seu adoecimento.
des, investigando seus interesses na escola. Era bom alu- Prefere de início se relatar como de “fora” do processo,
no, obtinha as melhores notas, sobretudo em matemáti- apresenta-se como quem cabe suplantar a dura missão
ca, discutimos juntos outros projetos possíveis para sua de lidar com um estudo focado, concentrado, tal qual se
vida profissional. apresentava no projeto do pai.
Pensou em estudar Mecatrônica na universidade e O mundo exigente do pai apareceu-lhe como pré-de-
viu na escola técnica como uma via para o cumprimento terminado e ameaçador à sua existência. A solicitação
dessa meta. A elaboração de outros possíveis foi-se dan- de que era dele a responsabilidade por seu futuro e que
do sem muita angústia, mas já numa relação segura com esse estava atrelado à aprovação no concurso, cerceava
o terapeuta. Várias possibilidades para seu futuro foram suas possibilidades de ser, o que de certa forma o sufoca-
elaboradas e projetadas. Nesse tempo – que durou apro- va, ao mesmo tempo em que, ao não se posicionar sobre
ximadamente um mês e meio –, as crises não voltaram e isso, não conseguia empreender-se nos estudos necessá-
ele percebeu que as alterações em seus batimentos car- rios à sua aprovação.
díacos eram devidas às suas atividades físicas; não vol- O Terror do pânico se lhe revela quando as possibi-
tou mais ao futebol, mas lhe apetecia ainda a prática de lidades de espacialização vão se reduzindo a ponto dele
alguns exercícios. Começou a vir às sessões de bicicleta, vislumbrar a possibilidade terrífica do abismo lhe inva-
e relatava um certo cansaço quando chegava, além de dir. Por um lado, temos que o núcleo do terror vivencia-
apontar alguns traços da arquitetura da cidade que an- do por Lucas bem poderia se encontrar na morte do avô.
tes lhe passava despercebido, como o topo dos prédios e O fato da sintomatologia do pânico ocorrer logo após o
a elevação das construções. falar sobre essa morte, não garante que os ataques este-
As crises não voltaram, viu-se reconciliado com seus jam simplesmente associados a essa. O que vale destacar
projetos e por decisão própria quis encerrar o tratamen- na forma como Lucas compreende essa morte é que ela
to. Sentia-se agora mais dono de si, segundo suas pala- inaugura um abismo de continuidade, interferindo em
vras, e gostaria de exercer uma independência maior em seu modo de espacializar.
Artigo

relação às suas próprias escolhas, o que o fazia se sentir, O concurso aparece sempre como um inatingível
de alguma forma, preso às nossas sessões. Alertei-lhe idealizado, sua posição perante a ele, confunde-se como

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A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial

uma posição diante ao pai. Posicionar-se, nesse sentido, A arquitetura já não vista como um desabamento,
requereria confrontar o seu projeto com o do Pai o do mas como elos que se ligam em travessias possíveis por
dele e se estabelecer em uma relação em que ele pudesse bicicleta. Os blocos dos prédios, as pontes, os viadutos
compor seu próprio futuro e seu modo de espacialização, que atravessava, denotavam já a possibilidade de ser aí
mas isso não se deu. como projeto para alguma coisa.
Lucas se retrai frente à ameaça paterna e o descon-
solo do avô morto. O abismo o ameaça, pois lhe aponta a
possibilidade iminente de fracasso no concurso que ele Considerações Finais
mesmo passa a traçar na atitude relapsa para o seu pre-
paro. Passar ou não passar no concurso seria a afirmação Para o que nos interessa em uma análise existencial,
do seu próprio ser, desafio esse que ele prefere não ter o caso nos apresenta um exemplo de como uma catego-
que suportar. Como fuga a esse possível aniquilamento, ria própria ao Dasein – a espacialidade – aparece como
Lucas reduz seu modo de espacialização, a ponto de re- elemento a ser compreendido dentro do quadro de uma
duzir seu espaço a seu quarto e às pequenas caminhadas sintomatologia específica. Não se trata aqui de símbolo
que fazia no trajeto entre sua casa e a escola. No entanto, ou metáfora de algo mais profundo que se encontraria no
o mundo de fora parecia invadi-lo, a ponto de o aniquilar. pano de fundo da visão e significação do paciente, mas
A sensação de morte iminente, comum nos ataques de do próprio modo como ele configura um mundo especí-
pânico, desvela que o nada aparece como algo que vem fico em seu modo de espacialização.
de encontro ao mundo do indivíduo. Algo de fora, incon- As passarelas diziam de suas possibilidades de ser
trolável, ameaça sua existência como um todo. diante ao mundo, pois traziam à sua presença os desa-
As crises de pânico vão se tornando severas na me- fios que lhe apareciam em sua existência. Algo que une
dida em que a data do concurso vai se aproximando e um solo a outro, mas que paira no abismo faz relação de
Lucas vai se sentindo engalfinhado. Sua atenção, voltada sentido com aquilo que Lucas vivenciava na dimensão
às construções, mostra-nos o caráter plenamente reificado profissional e afetiva. O Terror é esse elemento que o in-
do mundo que ele estava a habitar, sem se construir, elas vadia no “entre os solos”, guardando uma potência ani-
o chamam ao desabamento, já que como elas, ele é ape- quiladora, pois o confrontava diretamente com a morte.
nas facticidade e a queda é iminente. Nesse se desmon- Interessante notar que a morte aqui diz da possibilida-
tar Lucas não se apropria do seu modo próprio e se per- de de Lucas não existir como projeto em relação a algo.
cebe como um “ente-intramundano” no meio dos outros. A morte no humano não é simples ausência de vida, mas
Interessante notar que a vivência do terror da morte falta de sentido em relação a que se direcionar.
vai aos poucos se atenuando após a experiência com a Nesse trabalho, ao falarmos sobre o terror, resgata-
passarela; passarela esta que ele atravessou destemida- mos uma experiência comum nos quadros de psicoses
mente à procura de um estágio que lhe traria maior in- e a entendemos no contexto específico do transtorno do
dependência financeira em relação ao pai. Atravessar a pânico. A diferença diagnóstica entre essas patologias –
passarela significa recuperar um modo de espacializa- devemos ter claro –, não está propriamente na experiên-
ção que fora rompido desde a morte do avô. Ao desafiá- cia em si, mas na biografia do indivíduo e na história da
-la, novas formas de relações existenciais lhe abriram. evolução de sua patologia.
Lucas pode vislumbrar possibilidades que antes não lhe Lucas não desenvolve um processo psicótico por ter
apareciam, posto que se afundavam no abismo do ter- em sua biografia alguma base sobre a qual pudesse ain-
ror da morte. da se manter. Essa base é chamada por Laing (1961/1972)
A possibilidade de não passar no concurso foi a pri- de “segurança ontológica” e se dá na medida em que o
meira menção que ele fez, já como posição frente ao proje- indivíduo sente, desde a infância, a confirmação de sua
to do pai sobre ele. A possibilidade de continuar estudan- existência por parte de um outro significativo, podendo
do no ensino médio sem a especialização técnica visando ser o pai, a mãe ou alguém com quem o indivíduo man-
um melhor preparo para o vestibular foi outra. Existia tenha um vínculo especial e contínuo no processo de seu
ainda uma terceira forma de se posicionar como projeto, desenvolvimento.
aprovar-se no concurso federal como meio de se realizar Na fase em que Binswanger (1960/1987) se dedi-
mais à frente um curso universitário de Mecatrônica, o ca à obra de Husserl, utilizando-se da Fenomenologia
que reuniria seus interesses aos do pai. Essa aproximação Transcendental, o autor se refere à psicose como uma
paulatina com seu projeto e seu modo de espacialização descontinuidade no plano da experiência. O sujeito per-
coincide com o fim das sintomatologias e alívio para o deria a possibilidade de se atualizar diante do fluxo de
seu sofrimento. O espaço de Lucas amplia-se de tal for- suas experiências existenciais. Assim, há por parte do
ma que ele passa a vir às sessões de bicicleta, e sempre psicótico, diante de determinada experiência, a predo-
me trazendo detalhes novos sobre as edificações entre as minância de um tema único em sua existência, do qual
Artigo

ruas que ele ainda não havia notado, pois estava cego às ele não pode escapar por sua própria vontade.
construções e suas possibilidades.

203 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012


Gustavo A. O. Santos

Assim, o fato de Lucas vivenciar a angústia, significá- teriormente em uma nova situação, desencadeados por
-la em seu contexto existencial, e se abrir às novas possi- novos impasses nas relações interpessoais. A idade com
bilidades existenciais – graças, em parte, a um encontro que eles apareceram e foram tratados, podem nos deixar
significativo com seu terapeuta – demonstra que em seu otimistas quanto a isso; antes de Lucas se solidificar em
caso o transtorno do pânico não foi prenúncio de uma um modo de fuga da angústia essa foi por ele enfrenta-
experiência da qual ele se tornaria refém, como é o surto da em uma situação específica, permitindo a abertura a
psicótico6. A relação de parceiro existencial vivenciada possíveis dentro de sua estrutura existencial.
no processo psicoterápico permitiu a Lucas uma abertura A adolescência já é por si só um abismo a se transpor
para o seu ser além do mundo, em termos binswangeria- e essa ponte, muitas das vezes, dá-se como um projeto
nos, ou seja, a possibilidade de se projetar para além da- profissional, algo com que Lucas se debateu prematu-
quela situação imediata e desesperadora que vivenciara. ramente graças às exigências do pai. Não é comum que
A relação do desenvolvimento do transtorno associado adolescentes de 15 anos sejam postos dessa forma dian-
à morte do avô e às pressões paternas para que ele fosse te da uma escolha de um futuro tão relevante para sua
aprovado no concurso, desvela como a perda de um outro vida, o que ameaçou, sem sombra de dúvida, sua frágil
significativo repercutiu de forma drástica em sua exis- estrutura existencial, ainda imatura para se posicionar
tência como um todo. Ainda assim, a figura reparadora diante de projetos desse tipo.
do terapeuta como alguém a quem pudesse confiar suas O pai não foi chamado para as sessões, justamente
angústias e temores, bem como a participação dedicada pelo terapeuta prever que o mesmo poderia ameaçar o tra-
da mãe a quem confiava dava a ele algum subsídio para tamento. A mãe confirmava a aversão que o mesmo tinha
a realização de seus projetos. A perda de uma relação sig- por psicólogos e “frescuras” do tipo. As exigências dele
nificativa como a que tinha com o avô, não significou a acabariam por reforçar a sintomatologia de Lucas que,
perda de sua própria existência, como no caso Suzanne quando em ataques agudos, assustava o pai que recuava
Urban na relação com o diagnóstico do esposo, mas uma diante das exigências. Paradoxalmente, foram as próprias
angústia intensa que lhe desvelou o nada de sua condição crises que o sensibilizaram, atenuando suas cobranças e
existencial e que possibilitou, concomitantemente, uma possibilitando a Lucas um novo posicionamento.
abertura a novas possibilidades e revisão de seu projeto. O caso se encerra por própria iniciativa do paciente,
Binswanger (1960/1987) diz ainda que, na psicose, o que se sentia agora mais seguro em relação a seus pró-
binômio “angústia e confiança”, como modo de abertura prios caminhos e que via no terapeuta um apoio fútil
do Da-sein, se desfaz. Assim, na neurose, angústia e con- para esse momento. A extravagância do ato pode tam-
fiança, embora possam estar comprometidas em algum bém nos apontar de que modo Lucas traçava para si um
aspecto, aparecem interconectadas na relação que o in- modo de ser sobre o abismo que depois poderia não su-
divíduo tece com seu mundo. O mesmo não se dá na psi- portar. O seu retraimento em relação a seus sentimentos
cose, em que uma das dimensões sobrepõe à outra. Ora o e anseios, desvelado na primeira sessão, aponta-nos para
sujeito confia sem se angustiar, como nos casos da mania, a possibilidade do paciente ter-se comprometido com os
ora se angustia sem exercer nenhuma confiança, como projetos do pai, como meio de respondê-lo sem, no en-
nos delírios persecutórios presentes na esquizofrenia. tanto, estar consciente de sua própria base existencial
No caso Suzanne Urban, o nada se sobrepôs às suas para a realização desses.
possibilidades e sua existência se paralisou em um úni- O cliente sai esperançoso na construção de um pro-
co tema, o mundo não lhe apareceu digno de confiança, jeto próprio que lhe fosse viável e autônomo. E o texto
haja vista que todos eram vistos por ela, como potências aqui se cumpre ao mostrar, de uma perspectiva analítico-
aniquiladoras de sua própria existência. Lucas foi capaz -existencial, de que forma podemos compreender e tratar
de confiar, mesmo que ainda angustiado, em uma rela- o transtorno do pânico tendo como existenciário básico
ção significativa com seu terapeuta e nas suas próprias a espacialidade.
capacidades e possibilidades de realização.
O transtorno do pânico tem sido alvo de intensos de-
bates entre psiquiatras, psicoterapeutas e psicanalistas, Referências
tanto do ponto de vista explicativo quanto nos modelos
de tratamento. Este trabalho teve como intuito demons- American Psychiatric Association (1995). Manual Diagnóstico
trar como uma relação que se estabeleceu entre psicote- e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV. Porto Alegre:
Artes Médicas.
rapeuta e cliente pode elucidar alguns pontos presentes
na patologia e promover alívio para os sintomas em um Binswanger, L. (1972) Tres formas de la existencia frustra-
caso específico, pelo menos por um período de seis meses. da: exaltación, excentricidad, manerismo. Buenos Aires:
Faltam-nos elementos para saber se os chamados Amorrortu Editores (Original publicado em 1956).
“sintomas”, nos dizeres do paciente, reaparecerão ul-
Artigo

Binswanger, L. (1988). Le Cas Suzanne Urban – Étude sur la


6
Cabe lembrar que os estados de pânico, tal como os vivenciados por schizophrénie. Saint-Pierre-de-Salerme: Gérard Monfort
Lucas, costumam prenunciar um surto psicótico. (Original publicado em 1957).

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012 204


A Espacialidade na Compreensão do Transtorno do Pânico: Uma Análise Existencial

Binswanger, L. (1987). Melancolie et manie. Études phénoméno- Pereira, M. E. C. (1997). Pânico: contribuição à psicopatologia
logiques. Paris: Presses Universitaires de France (Original dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos Editorial.
publicado em 1960).

Boss, M. (1977). O modo-de-ser esquizofrênico à luz de uma


Gustavo Alvarenga Oliveira Santos - Psicólogo, Mestre em Psicologia
fenomenologia daseinsanalítica. Revista da Associação
Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Docente
Brasileira de Daseinsanalyse, 3, 5-28.
na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Endereço
Institucional: Rua Getúlio Guaritá, 159 (Bairro Nossa Senhora da
Chamond, J. (2011). Fenomenologia e psicopatologia do espaço
Abadia). CEP 38025-440. Uberaba/MG. Email: gustavo.alvarenga@
vivido em Ludwig Binswanger: uma introdução. Revista psicologia.uftm.edu.br
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Laing, R. D. (1972). O eu e os outros. Petrópolis: Vozes (Original


publicado em 1961).

Artigo

205 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 197-205, jul-dez, 2012


Thiago A. A. Aquino

Análise da narrativa de Viktor Frankl


acerca da experiência dos prisioneiros nos
campos de concentração

Analysis of Viktor Frankl’s Narrative on the Experience of Prisoners in Concentration Camps

Análisis de la Narrativa de Viktor Frankl sobre la Experiencia de los Presos en Campos


de Concentración

Thiago A ntonio Avellar de Aquino

Resumo: O objetivo do presente artigo foi identificar a estrutura lexical mais significativa na obra de Viktor Frankl Em busca de
sentido: um psicólogo no campo de concentração. O corpus do texto foi analisado por meio do software ALCESTE (Análise Lexi-
cal Contextual de um Conjunto de Segmentos de Texto), um método computacional que se propõe a decompor um texto a fim de
obter as estruturas mais significativas. Os significados encontrados foram divididos em três classes subdivididas em dois eixos:
Facticidade e Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Por meio dessa análise foi possível identificar as palavras mais
características utilizadas por Frankl na sua narrativa acerca da vivência do prisioneiro no campo de concentração. Os resulta-
dos foram discutidos com base nos direitos humanos e na logoterapia e análise existencial.
Palavras-chave: Existencialismo; Prisioneiros; Historicidade; Léxico.

Abstract: The aim of this paper was to identify the lexical structure more significant in the work of Viktor Frankl’s Man’s Search
for Meaning. The text corpus was analyzed by the software ALCESTE (Lexical analysis by context of a set of text segments), a
computational method that aims to decompose a text in order to obtain the most significant structures. The meanings found
were divided into three classes subdivided into two axes: Facticity and Psycho-existential Positioning of Prisoners. By this anal-
ysis it was possible to identify the most typical words used by Frankl in his narrative about the experience of the prisoner in a
concentration camp. The results were discussed based on human rights and logotherapy and existential analysis.
Keywords: Existentialism; Prisoners; Historicity; Lexicon.

Resumen: El objetivo de este trabajo fue identificar la estructura léxica más importante en la labor de búsqueda de Viktor
Frankl en busca de sentido: un psicólogo en el campo de concentración. La recopilación del texto fue analizado por el software
ALCESTE (Análisis léxico por el contexto de un conjunto de segmentos de texto), un método computacional que tiene como ob-
jetivo descomponer un texto con el fin de obtener las estructuras más importantes. Los significados que se encuentran dividi-
dos en tres categorías, subdivididas en dos ejes: facticidad y posicionamiento psico-existencial de los reclusos. Mediante este
análisis se pudo identificar las palabras más típicas utilizadas por Frankl en su relato sobre la experiencia de los prisioneros
en un campo de concentración. Los resultados fueron discutidos con base en los derechos humanos y en la logoterapia y aná-
lisis existencial.
Palabras-clave: Existencialismo; Reclusos; Historicidad; Lexico.

“Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o (Lukas, 1989). Por um lado, trata da busca de significado
ser humano como ele de fato é. Afinal, ele é aquele ser que para a vida como motivador primário do ser humano; por
inventou as câmaras de gás de Auschwitz; mas ele é também outro, as possibilidades de decaimento psíquico por oca-
aquele ser que entrou naquelas câmaras de gás de cabeça sião da frustração existencial. Sua teoria foi constituída
erguida, tendo nos lábios o Pai Nosso ou o Shemá Yisrael”
na primeira metade do século XX, com sólidas bases filo-
(Frankl, 2010)
sóficas e mediante as experiências clínicas com jovem em
situação de risco (Frankl, 2006). Mas, inequivocamente,
suas ideias foram corroboradas com suas vivências como
Introdução prisioneiro comum em quatro campos de concentração
nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Viktor Frankl (1905-1997) é considerado como o fun- Após a sua soltura, Frankl ditou em nove dias o livro
dador da Logoterapia e Análise Existencial, aborda- Ein Psycholog erlebt das Konzentrationslage (“Um psicólo-
Artigo

gem psicoterápica desenvolvida em Viena, posterior à go no campo de concentração”), que trata da sua vivência
Psicanálise de Freud e à Psicologia Individual de Adler como prisioneiro comum, sob o número 119.104, e da des-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012 206


Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

crição dos aspectos psicológicos e existenciais dos demais a consciência intuitiva (Gewissen) seria o órgão que ras-
encarcerados. Esse livro foi considerado por Karl Jaspers treia as possibilidades de sentido.
como “um dos poucos grandes livros da humanidade” A outra característica da teoria de Frankl (1989a, 1990)
(Garcia Pintos, 2007). Gordon Allport, por ocasião do pre- é a análise existencial, que se constitui como um método
fácio da edição americana do referido livro, concebe que antropológico de pesquisa. Segundo o autor, não há ne-
“(...) é uma obra-prima de narrativa dramática focalizada nhuma explicação ou síntese da existência, já que “(...) a
nos mais profundos problemas humanos” (Frankl, 2010). pessoa também se explica a si mesma: se explica, se des-
Já Caldas e Calheiros (2012), tecendo comentários so- dobra se desenvolve no transcurso da vida” (Frankl, 1990,
bre esse autor, afirmam que: p. 63). Dessa maneira, o próprio ser humano em última
instância lê na vida, ou seja, explica-se a si mesmo, sendo
sua experiência como prisioneiro de campos de o papel da análise existencial compreender a existência
concentração serviria, assim, para comprovar que o em suas possibilidades de ser no mundo bem como em
ser humano é portador – além das dimensões física seus desdobramentos.
e psíquica –, de uma dimensão mais abrangente que Destarte, a logoterapia como uma modalidade de
pode dotá-lo de uma surpreendente força de resis- análise existencial pode ser classificada como uma
tência (p. 93). Geisteswissenschaft, ou seja, uma ciência do espírito
(Dilthey, 1989), por esse motivo preocupa-se com os fenô-
Dessa forma, considerando a relevância desse livro menos especificamente humanos. Nesse sentido, em sua
no âmbito da psicologia humanista-existencial, o objeti- ontologia dimensional, atém-se em compreender quem é
vo do presente artigo foi o de realizar uma análise lexi- o homem, advogando que o ser humano é muito mais do
cal com o intuito de identificar as estruturas mais sig- que a sua dimensão psicofísica, constituído também por
nificativas desse texto. Antes de apresentar o material, uma dimensão dos fenômenos especificamente humanos,
que foi objeto de análise, torna-se relevante tecer alguns denominada de noológica. Essa dimensão define a sua
comentários acerca de alguns aspectos teóricos desen- verdadeira humanidade, correspondendo à preocupação
volvidos pelo autor em foco, o que será apresentado no com valores (a ética e a estética), os atos intencionais, a
tópico que se segue. criatividade, o humor, o senso religioso, a preocupação
com o sentido e todos os atos que diferenciam os homens
dos animais (Lukas, 1989).
1. Logoterapia e Análise Existencial Frankl (1989a) compreende que o principal fenôme-
no humano é a vontade de configurar um sentido para a
A Logoterapia é definida como uma psicoterapia cen- vida, que se constitui como um desejo de realizar valo-
trada no sentido da existência, já que a palavra grega lo- res durante a sua existência finita e limitada no tempo e
gos corresponde a sentido e direção e therapeía deriva- no espaço, tornando-se responsável por algo ou alguém.
-se do verbo therapeúo, prestar cuidados médicos, tratar Destarte, esse autor apregoa que o ser humano quando
(Liddell & Scott, 1983). Dessa forma, constitui-se em uma frustrado na sua busca de sentido, pode ocorrer uma sen-
forma de tratar por meio do sentido. Essa primeira acep- sação de vazio existencial, resultante da carência de va-
ção refere-se a um sistema de cura, mas de forma geral lores existenciais. Essa sensação constitui-se como uma
sua fundamentação constitui-se de três eixos básicos: a neurose coletiva nas sociedades industriais, por esse
liberdade da vontade, a vontade de sentido e o sentido motivo, o homem atual necessita extrair sentido na sua
da vida (Lukas, 1989). A liberdade da vontade constitui o relação com o mundo, posto que não receberia mais os
eixo antropológico, que pressupõe uma liberdade de es- valores por meio da tradição.
colha apesar dos condicionamentos externos e internos. Para a logoterapia o homem comum, por meio de sua
Dessa maneira, o ser humano não seria livre dos condicio- “autocompreensão ontológica pré-reflexiva”, concebe três
namentos, mas em última instância poderia decidir o que vias de encontro de sentido na vida: os valores vivenciais,
irá ser no próximo instante (Frankl, 1978, 1989a, 1989b). criativos e atitudinais. O primeiro é caracterizado como
O segundo eixo corresponde à vontade de sentido. as vivências com a natureza e/ou com um tu, o segun-
Segundo essa concepção teórica, o ser humano seria mo- do é a qualidade de criar algo para o mundo, como uma
tivado por um desejo de configurar sentidos e valores obra artística ou científica e está, em geral, relacionado
em sua existência, isto é, em todas as suas experiências com a capacidade de trabalhar. O terceiro vincula-se à
no mundo. Para Frankl (1989a, 2010), essa motivação se postura perante uma situação imutável, ou seja, aquela
constitui como um fenômeno primário e como o princi- característica humana de transformar um sofrimento em
pal fator de proteção da saúde mental. Por fim, o tercei- uma realização ou conquista, que geralmente está asso-
ro eixo é aquele que corresponde ao sentido da vida, ou ciada com a capacidade de suportar o sofrimento inevi-
seja, a visão filosófica do mundo. Para essa perspectiva, tável (Frankl, 1989a).
Artigo

ao contrário da visão niilista, na vida há sempre um sen- Para esse autor o mundo é constituído por valores,
tido a ser desvelado, latente nas situações, e nessa busca sendo esses considerados como objetos dignos de inten-

207 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012


Thiago A. A. Aquino

cionalidade, ou seja, os valores transcendem a própria Pode-se constatar que a narrativa de Viktor Frankl
esfera do ser humano. Por esse motivo, “a logoterapia se (2010) decorre da sua vivência nos campos de Auschwitz,
baseia em afirmações sobre valores tomados como fatos, Dachau e Theresienstadt como prisioneiro comum, já que
não em julgamentos sobre fatos tomados como valores” o mesmo foi torturado e sobreviveu à custa do trabalho
(Frankl, 2011, p. 92). Nessa perspectiva, a realização forçado em escavações e construções de ferrovias. O au-
dos valores decorre da concepção de que a pessoa é um tor, em sua narrativa, propõe-se a responder à seguinte
ente aberto para o mundo, que é sempre um ser em re- questão: “de que modo se refletia na mente do prisioneiro
lação a algo. A essa capacidade de sair de sua própria a vida cotidiana no campo de concentração?” (Frankl,
esfera para se lançar para o mundo, Frankl denomi- 2010, p. 15). Dessa forma, objetivou compreender as ati-
nou de autotranscendência, ou seja, aquela capacida- tudes dos cárceres mediante os fatos que causaram uma
de de voltar-se para algo ou alguém além de si mesmo experiência psicológica (Frankl, 2010).
(Frankl, 1989a, 1978). Por ocasião da sua reclusão e por meio de uma auto-
Outra característica antropológica é o autodistancia- observação e da observação dos seus companheiros de
mento que se constitui como uma capacidade humana reclusão, pôde identificar três fases distintas pelas quais
de se afastar dos condicionamentos internos ou exter- os internos estruturaram suas experiências: Choque de
nos. Segundo o próprio autor, “as autênticas faculdades entrada, fase de adaptação e fase da soltura (Frankl, 1990,
humanas ancestrais da autotranscendência e do autodis- 2010). A primeira fase, o choque da entrada, se caracte-
tânciamento, tal como afirmo nos últimos anos, foram ve- riza pelo contato intersubjetivo dos prisioneiros novatos
rificadas e convalidadas de forma existencial no campo com os antigos bem como com os guardas e os coman-
de concentração” (Frankl, 2006, p. 86). dantes do campo. A recepção não é amistosa e logo os
Frankl (2010) considera que suas concepções foram prisioneiros abandonam possíveis ilusões, que no caso
validadas de forma vivencial durante a Segunda Guerra de Frankl seria o de conservar um manuscrito científico.
Mundial. Para tanto, utiliza-se da perspectiva fenomeno- Decorre daí que o prisioneiro muda de sua situação exis-
lógica a qual define da seguinte maneira: tencial pregressa para se deparar com uma perspectiva
caracterizada como “sem saída”, próximo da sua morte e
a fenomenologia é uma tentativa de descrição do modo da morte de outros companheiros. Entretanto, nesse es-
como o ser humano entende a si próprio, do modo tágio o prisioneiro não teme a morte e a câmara de gás,
como ele próprio interpreta a própria existência, longe tornando o suicídio um ato desnecessário.
de padrões preconcebidos de explicação, tais como Enquanto a primeira fase é caracterizada pelo pâ-
os forjados no seio das hipóteses psicodinâmicas ou nico, a segunda é marcada pela indiferença. Na fase de
socioeconômicas (Frankl, 2011, p. 16). adaptação, o prisioneiro se torna apático, os sentimentos
tornam-se embutidos, como um mecanismo de defesa
Destarte, o relato sobre suas vivências como prisio- daquela situação de extremo sofrimento. Por essa razão,
neiro nos campos de concentração constitui uma forma não chegam a manifestar emoções tais como amarguras,
de validação existencial das suas próprias concepções indignações e desesperanças.
acerca do ser humano. Torna-se pertinente nesse mo- Nesta fase de adaptação, a vida afetiva vai se reduzin-
mento apresentar, de forma sucinta, o conteúdo do seu do e a aspiração primordial é a sobrevivência, regredindo
manuscrito autobiográfico, o que será descrito a seguir. à vida instintiva mais primitiva. Além da apatia, o pri-
sioneiro é acometido por uma irritabilidade expressa por
certo nível de agressão, o que Frankl (2010) atribui não
2. O Campo de Concentração apenas a uma origem psicológica, mas também à ausên-
cia de cafeína e nicotina. Mediante a situação sociológica
Viktor Frankl, por ser de origem judaica, foi deporta- em que se encontravam, não era incomum o sentimento
do para o gueto de Theresienstadt junto com a sua família de inferioridade nos prisioneiros comuns, aqueles que
(os pais e sua esposa). Esse local era considerado a porta não tinham privilégios.
de entrada para os campos de extermínio e nele perma- Embora tenham regredido ao estágio da luta pela so-
neceu durante vinte e cinco meses até ser transferido, em brevivência, duas áreas de interesse se sobressaíam: a
outubro de 1944, para Auschwitz-Birkenau na Polônia política e a religião. A primeira temática está vinculada
onde recebeu o número 119.104. O lema desse campo era: à esperança do fim da guerra, que nem sempre era veros-
Arbeit macht frei, o trabalho liberta (Herrera, 2007), o que símil; já a segunda surpreendia os prisioneiros recém-
não se constituía apenas como uma medida disciplinar, chegados pela vitalidade das preces e orações em luga-
mas como uma tortura psicológica. Outros campos nos res improvisados.
quais esse autor esteve interno foram as dependências de Gradativamente os internos progrediam para um tipo
Dachau: Kaufering e Turkhein, onde permaneceu até o de experiência da existência provisória, pois “o fato de
Artigo

dia 27 de abril de 1945, quando foi libertado por ocasião que não exista um término da forma de existir no campo
do término da guerra (Garcia Pintos, 2007). de concentração conduz à experiência de um futuro ine-

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012 208


Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

xistente” (Frankl, 1990, p. 207). Ocorre, portanto, uma libertos: a amargura e a decepção. Quando retornam para
perda da estrutura temporal, levando o prisioneiro a uma os antigos ambientes, as pessoas, de forma geral, reagem
experiência de um futuro inexistente, o que, por conse- de maneira vaga ou superficial com relação ao sofrimen-
guinte, o conduz a viver no imediatismo. to que tinham vivenciado, o que leva o sobrevivente ao
Herrera (2007), ao comentar o relato de Frankl, resume seguinte questionamento: “para que serviu tanto sofri-
em três aspectos a vida anímica do prisioneiro: mento?”. Já a decepção estava relacionada à sensação de
desamparo quando não mais encontra o ente querido que
1. A vida onírica, como expressão das aspirações e tanto esperava reencontrar quando estava nos campos de
desejos dos presos; concentração e que lhe dava esperanças, como expressou
2. O silêncio do impulso e desejo sexual; o ex-recluso: “Ai daquele em quem não existe mais a razão
3. A depreciação de tudo aquilo que não serve para de suas forças no campo de concentração” (Frankl, 2010,
conservar a vida, que se expressou na falta, quase p. 118). Torna-se fundamental um acompanhamento psi-
absoluta, de sentimentalidade ou falta de reação coterápico para os ex-detentos.
emotiva (p. 43). Tendo em vista a narrativa do prisioneiro 119.104,
torna-se relevante analisar essa obra de uma forma mais
Para o recluso que perde a noção dos fins e de uma detalhada, tanto para a compreensão da experiência dos
meta em sua existência, sucumbe à própria apatia, ou prisioneiros do campo de concentração, como para a com-
seja, não se preocupam mais com a higiene e com a ali- preensão dos aspectos teóricos da logoterapia e análise
mentação, recusando-se a encarar o trabalho forçado e existencial. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho
suportando com indiferença o castigo imposto. Sobre isso foi identificar os campos lexicais ou contextos semânti-
Frankl (1990) observa que: cos que organizam a narrativa de Viktor Frankl acerca
de suas vivências e análises do prisioneiro nos Campos
(...) A orientação a um ‘fim’ e a uma meta posta no de Concentração Nazistas.
futuro representa aquele apoio espiritual que tanto
necessita o detento no campo de concentração, porque
apenas esse apoio espiritual é capaz de preservar o 2. Método
homem para que não caia em mãos dos poderes do
entorno social que imprimem caráter e que formam 2.1 Material
tipos, ou seja, para que não se deixe cair (p. 208).
O corpus analisado foi a primeira parte do livro
Frankl (2010) observa que em última instância o pri- Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concen-
sioneiro decidia que tipo de pessoa gostaria de se tor- tração, extraído da vigésima nona edição da versão em
nar, um recluso típico ou tomar uma postura alternativa. português editado pela Sinodal e Vozes. Esse manuscrito
A essa atitude espiritual denominou de força de obstina- foi produzido por Viktor Frankl após a guerra, além de se
ção do espírito. O autor narra exemplos de prisioneiros constituir como uma narrativa autobiográfica que descre-
que conseguiram, apesar da irritabilidade e apatia, uma ve a psicologia do prisioneiro nos campos de concentra-
superação das condições internas e externas e passavam ção por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Para efetu-
pelos barracões proferindo algumas palavras de conforto ar a análise do corpus, este foi transcrito para um docu-
e oferecendo um pedaço de pão. Nesses casos, pode-se mento do Word for windows e salvo no formato texto-txt.
afirmar que alguns dos prisioneiros ainda permanece-
ram humanos apesar das condições desumanas, embo- 2.2 Procedimentos
ra esse fato tenha ocorrido de forma escassa. Entretanto,
para aqueles que conseguiram se posicionar com uma Com o objetivo de realizar uma análise de dados tex-
atitude livre, os campos lhes proporcionaram uma pro- tuais do corpus escolhido, foi utilizado o programa com-
gressão moral e religiosa (Frankl, 1990). Para esse tipo putacional Alceste (Analyse de lexémes coocurrent dans
de prisioneiro “nunca tinha considerado a vida no campo les ennoncés simples d’un texte), versão 4.7, que se cons-
de concentração como um mero episódio – para eles era titui como uma via para uma análise textual, identifi-
mais, e se converteu, no auge de sua existência” (Frankl, cando as classes de palavras emergentes de um discurso
1990, pp. 211-212). (Reinert, 1990). Dentre outras finalidades, esse progra-
Por fim a terceira fase foi o da soltura, nela os prisio- ma se presta também a analisar obras literárias em seus
neiros ainda estão tomados pelo sentimento de desperso- contextos semânticos. Para tanto, parte-se do princípio
nalização e tudo lhes parece um sonho, um simulacro de de que as pessoas se expressam por meio de um universo
liberdade. Eles passam de um estado de tensão elevada lexical que representa suas estruturas mentais.
para o de distensão, ou seja, ocorre uma descompressão De forma específica, o programa agrupa as palavras
Artigo

repentina, o que seria prejudicial para a saúde mental por radicais calculando a sua frequência no corpus do
(Frankl, 2010). Dois sentimentos atormentam os recém- texto para, em seguida, prover as unidades de contex-

209 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012


Thiago A. A. Aquino

to elementares (UCE). Dessa forma, “é a partir do per- de uma unidade de contexto inicial (UCI), constituí-
tencimento das palavras de um texto a uma UCE, que o da pela vivência de Frankl descrita no livro Em busca
programa Alceste vai estabelecer as matrizes a par- de sentido. Quando processado pelo software Alceste
tir das quais será efetuado o trabalho de classificação” apresentou uma divisão do corpus em 2101 unidades
(Reinert, 1998, p. 17). Para tanto, o programa utiliza-se de contexto elementar (UCE) contendo 8989 palavras,
do cálculo do qui-quadrado para identificar tanto os vo- formas ou vocábulos distintos e 74% das UCE foram
cábulos mais característicos que compõem uma classe analisadas, o que se considera satisfatório visto que a
com a força de associação entre as palavras e a classe. solução aceitável requer no mínimo 70% (Kronberguer
Nesse sentido, foi realizada uma classificação hierár- & Wagner, 2002). O Alceste organizou as ideias mais
quica descendente. relevantes da obra analisada em três classes, dispostas
em dois eixos principais.
2.3 Resultados A Figura 1 apresenta o Dendograma que represen-
ta as classes que emergiram após a análise lexical. Ele
Segundo Kronberger e Wagner (2002), a análise com proporciona a visualização, de forma decrescente, das
Alceste tem por objetivo distinguir classes de palavras palavras mais significativas em função das classes, que
que representam diferentes formas de pensar acerca de são concebidas como contextos semânticos. Tendo em
uma temática específica. No caso da presente pesquisa, vista que a força de associação entre o vocábulo e a clas-
a temática foi a narrativa de Viktor Frankl acerca da ex- se é representada por meio do cálculo do qui-quadrado,
periência dos prisioneiros nos campos de concentração. consideraram-se apenas as palavras que apresentaram
A análise dos resultados foi obtida por meio do corpus χ2 ≥ 3,84 (p = 0,05).
Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012 210


Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

Como se pode observar, o primeiro eixo é composto (...) justamente uma situação exterior extremamente
por 64,4 % do conteúdo analisado e está relacionado com difícil que da à pessoa (...) somente uma vida ativa
a facticidade dos prisioneiros no campo de concentração, tem sentido, em dando a pessoa a oportunidade (...)
ou seja, as condições em que os prisioneiros se encontra- uma chance de se realizar criativamente e em termos
vam imersos e sem a participação da vontade dos mesmos. de experiência (...) falando em termos filosóficos, se
A classe 1, que compõe esse eixo, foi composta por pala- poderia dizer que se trata de fazer (...) uma única res-
vras e radicais no intervalo de χ2 = 27 [barrac+(barraca, posta correta à pergunta contida na situação concreta
barracão, barracas, barracões)] a χ2 = 7,7 [pão; fri+(fria, (...) gozo da vida, que permite à pessoa a realização
frieza, frio)]. Pode-se atribuir a essa classe a denominação na experiência do que (...) caracteriza cada pessoa
de destino, o que se constitui por condições externas e humana e dá sentido à existência do individuo (...)
internas as quais não são passíveis de escolha por parte entorpece em semelhante situação interior e exterior?
do prisioneiro. A seguir são apresentadas algumas UCE para não falar (...) espiritual dotado de liberdade in-
representativas dessa classe: terior e valor pessoal. Ela (...) concentração se pode
privar a pessoa de tudo, menos da liberdade não se
(...) cansaço, o prato de sopa na mão, quando entrou pode perder. Sem duvida, elas poderiam dizer que
um companheiro correndo (...) aconteceu? A passos foram dignas (...) e belo, na experiência da arte ou da
lentos os companheiros se arrastam em direção ao natureza. Também há sentido (...) como testemunho
(...) repente saio do barracão rumo à enfermaria para para o fato de que a pessoa interiormente pode ser
avisar o meu colega (...) frente ao pequeno fogão do (...) existência também não consegue viver em função
barracão, cuidando do fogo naquelas horas (...) parar de um alvo. ela também (...) esquecidas as possibi-
meu colega e amigo P. ele foi mandado para o outro lidades de influência criativa sobre a realidade (...)
lado? Sim (...) dia seguinte o capo me contrabandeou que ele somente pode existir propriamente com uma
para outro comando de trabalho (...) fui acordado pelo perspectiva futura (...) exigência, e com ela o sentido
companheiro que dormia ao meu lado a gemer e (...) da existência, altera-se de pessoa para (...) cumprir
amontoavam cerca de cinquenta companheiros com uma tarefa. Havia muito sofrimento esperando ser
febre alta, delirantes (...) galpão a me mandar para resgatado por (...) concentração foram de natureza
a enfermaria central a fim de receber (...) enfermos. individual e coletiva. As tentativas (...)
Os destinados para o transporte, aqueles corpos con-
sumidos (...) tentaria arranjar algum pedaço de pão Por sua vez a classe 3, Reações Psicológicas, pode
para comermos nos dias seguintes (...) dois doentes ser ilustrada por meio dos seguintes extratos do texto de
de tifo exantemático, dois enfermeiros, um medico. E Viktor Frankl:
já (...) pedaço de pão no bolso da capa, com os dedos
desprovidos de luvas e (...) no chão, enquanto os demais (...) importa na medida em que tem um número de
eram forçados a ficar de pá horas a fio (...) uma voz prisioneiro, representando (...) novo a alegrar-se. Sob
de comando: grupo de trabalho weingut, marchar! es- o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de (...)
querda, 2 (...) gola da capa o companheiro que marcha segunda fase dentro das reações anímicas do recluso
ao meu lado murmura de repente (...) quem trabalhei no (...) terceira fase de reações anímicas do recluso, ou
lado a lado, por semanas a fio, no local da construção seja, a psicologia de (...) natural e, conforme ainda se
(...) solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e mostrara, típica naquelas circunstancias (...) necessi-
horas a fio (...) campos menores, sentados, acocorados dades mais primitivas fá-lo experimentar a satisfação
ou de pé, no chão de terra (...) das (...) campo de concentração naturalmente apresen-
tava muitos aspectos (...) seja, de enfrentar decisões.
Já o segundo eixo foi composto por duas classes, que A apatia tem ainda outras causas e não (...) psicológica
concentraram 35,3% do conteúdo, referindo-se ao posicio- e explicação psicopatológica dos traços típicos com que
namento psico-existencial dos prisioneiros. Na classe 2 a (...) sobre a capacidade de resistência dos prisioneiros
predomina a referência às reações e posicionamentos dos se manifestou (...) apatia dos outros, e mais ainda dian-
prisioneiros e abarcou palavras no intervalo de χ2 = 96,5 te do perigo em que ela coloca a (...) queremos detalhar
[sofri+(sofrimento, sofrimentos)] a χ2 =18,5 [fat+(fatais, a seguir. A observação psicológica dos reclusos, no
fatal, fato, fator)]; já a classe 3 agrupa ideias sobre as re- (...) ex-prisioneiro 119104 tenta descrever agora o que
ações psíquicas dos mesmos. Essa última abrange os vo- vivenciou como (...) nós, prisioneiros, já atingíramos
cábulos de χ2 = 169,7 [psicolog+(psicologia, psicológica, este ponto no curso dos eventos (...) segundo estágio de
psicológicas, psicológico, psicológicos, psicólogo)] a χ2 = suas reações psíquicas, não mais tenta ignorar a (...)
22,9 [higien+ (higiene, higiênicas); condic+(condição, quantidades de calorias. O alivio psíquico e produzido
condições)]. Para ilustrar o contexto do discurso referen- por ilusões que (...) preponderância dos instintos pri-
Artigo

te à classe 2, são apresentados os seguintes fragmentos mitivos e a peremptória necessidade de (...) aquilo que
do texto analisado: não serve a este interesse exclusivo. Assim se explica

211 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012


Thiago A. A. Aquino

a (...) das circunstâncias e a despeito de sua delicada concentração, uma é a de ser um prisioneiro típico e a
sensibilidade (...) outra é a de tomar uma atitude livre perante as condi-
ções impostas.
Em síntese, da análise da estrutura lexical da narra- Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos
tiva de Frankl emergiram dois polos: por um lado, a con- (ONU, 1948) tenha sido proclamada posterior à Segunda
dição cotidiana que se configurou como o destino, e, por Guerra, considera-se pertinente analisar o primeiro eixo
outro, as reações psíquicas e a mobilização da dimensão da estrutura léxica, Facticidade dos Prisioneiros, a ótica
noológica dos prisioneiros. dos artigos mais violados durante a permanência dos re-
clusos nos campos de concentração. Por exemplo, o Artigo
I reza que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em
3. Discussão dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência
e devem agir em relação umas às outras com espírito de
Viktor Frankl reconhece que a sua descrição como fraternidade”. O direito à liberdade foi cerceado tendo em
um observador participante poderia ter o viés subjetivo vista que os prisioneiros se encontravam destituídos de
por se tratar de uma experiência pessoal (Frankl, 2010). escolha e se consideravam joguetes do próprio destino.
Por esse motivo, faz a seguinte consideração: “(...) deixarei Já o Artigo II prescreve que
que outros destilem mais uma vez o que está sendo apre-
sentado, tirando do estrato dessas experiências subjetivas Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos
suas conclusões impessoais em forma de teorias objetivas” e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem
(Frankl, 2010, p. 21). Seguindo essa recomendação, reali- distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
zou-se uma análise textual do seu relato autobiográfico. língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
Considerou-se que o objetivo foi atingido tendo em vista origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
que, por meio de uma análise lexical, encontrou-se uma qualquer outra condição.
estrutura da narrativa desse autor.
Diferentemente de outros autores como Levi (1990), No campo de concentração as pessoas eram julgadas
que se preocuparam em descrever os horrores dos cam- de acordo com a sua raça. A esse respeito Frankl (2010)
pos de concentração, Frankl coloca os acontecimentos concebeu que existem apenas duas raças, a das pessoas
nos campos como o pano de fundo para compreender decentes e a das indecentes, independente do grupo em
o vivido dos cárceres, posto que o seu foco foi a experi- que as pessoas se encontrem. Apesar da perseguição ét-
ência psicológica dos prisioneiros comuns. Para tanto, nico-religiosa os prisioneiros puderam expressar o sen-
o autor utiliza-se de um método que supera a dualida- timento religioso em lugares improvisados:
de sujeito-objeto, ou seja, é o de um observador partici-
pante utilizando-se de uma postura fenomenológica ao O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em
analisar o vivido de sua própria consciência. Cabe agora que surgia, era o mais ardente que se possa imagi-
analisar os eixos e as classes que emergiram; o que será nar. Não era sem um certo abalo que os prisioneiros
desenvolvido a seguir. recém-chegados se surpreendiam pela vitalidade e
profundidade do sentimento religioso. O mais impres-
Eixo I - Facticidade dos prisioneiros sionante neste sentido devem ter sido as reações aos
O eixo I foi composto por uma classe, a qual se cons- cultos improvisados, no canto de algum barracão ou
tituiu como o maior poder explicativo desse dendograma num vagão de gado escuro e fechado, no qual éramos
(64,7% do total). As palavras de maior associação dessa trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais
classe referem-se ao destino sociológico dos prisionei- distante, cansados, famintos e passando frio em nos-
ros, ou seja, o contexto ambiental que não é passível de sos trapos molhados (Frankl, 2010, p. 51).
mudança. A estrutura revela-se de forma coerente com
a proposta do narrador do texto, em suas próprias pala- No Artigo III reza que “Toda pessoa tem direito à vida,
vras ele faz a seguinte consideração: “apresentaremos os à liberdade e à segurança pessoal.” Os prisioneiros que
fatos apenas na medida em que eles desencadeavam uma não serviam mais para o trabalho não tiveram direito a
experiência na própria pessoa (...)” (Frankl, 2010, p. 19). uma vida digna, sendo encaminhados para a câmara de
Os “fatos” representam no dendograma o primeiro eixo, gás aqueles que não estavam aptos ao trabalho. Frankl
ou seja, o cotidiano, que se associou com o segundo eixo (1989a) apregoa a dignidade e o valor incondicional da
Posicionamento Psicoexistencial dos Prisioneiros. Frankl pessoa humana e não os condicionam a sua capacidade
(1989a) considerou que em última instância a liberdade de produzir para a sociedade. O próprio Frankl (2006),
seria a escolha das potencialidades do vir-a-ser, como por ocasião da autorização da eutanásia em pacientes
por exemplo, uma atitude pessoal perante a conjuntura psicóticos, alterou os laudos médicos com a intenção
Artigo

de condicionamentos. Assim, haveria duas possibilida- de salvar seus pacientes quando ainda podia atuar no
des de posicionar-se perante a facticidade do campo de Hospital Judeu.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012 212


Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

No que se refere ao Artigo IV, “Ninguém será man- tifo exantemático. Nesse livro, o autor trata das grandes
tido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico temáticas de sua análise existencial, dentre elas a do so-
de escravos serão proibidos em todas as suas formas”, os frimento humano e as possíveis posturas perante a sua
prisioneiros foram tratados como escravos, já que eram facticidade.
obrigados a trabalhos forçados a fim de sobreviverem, A narrativa de Frankl sobre os campos de concentra-
restritos a uma alimentação com poucas calorias. Por ção torna-se uma validação dos pressupostos filosóficos
fim, no Artigo V encontra-se escrito que “Ninguém será da logoterapia onde demonstra a capacidade do espírito
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, humano em resistir ao sofrimento quando se depara com
desumano ou degradante”. Segundo o relato de Frankl uma situação limite. Nessa perspectiva, Frankl (1989a)
(2010), ao chegar ao campo os prisioneiros tinham todos conclui que sofrimento destituído de sentido pode levar
os pertences subtraídos, raspado todo pelo do corpo e ao desespero. Destarte, o papel do médico e também do
chicoteados sem nenhuma razão. psicoterapeuta seria aquele de consolar o homo patiens, ou
Frankl (1990) compreendeu em sua análise existen- seja, seguir o imperativo colocado no portal do Hospital
cial que o ser humano não é livre de condições. O autor Geral de Viena por seu fundador, o imperador José II: “sa-
em foco considera que o ser humano não está no vácuo, lus et solatio aegrorum”, ou seja, “não só a cura, mas tam-
mas se encontra sempre em relação a algo que o condi- bém a consolação dos doentes” (Frankl, 1990).
ciona. De fato, o homem como ser-no-mundo está enrai- Nesse sentido, o projeto fundante da análise existen-
zado na existência, sempre está em relação a algo ou al- cial desse autor foi o de reumanizar a medicina e a psico-
guém. Entretanto, a forma de se relacionar com o mun- terapia, pois quando o profissional tornar-se um técnico,
do no campo de concentração foi desumanizante, pois perde de vista o caráter especificamente humano do seu
os prisioneiros eram tratados como coisas. O Eixo I, de paciente. Dessa maneira, o psicólogo deveria confrontar
forma geral, enfatiza a vivência cotidiana do prisioneiro a capacidade do paciente de se posicionar perante o seu
comum ao ser inserido em um processo de despersonali- psicofísico (facticidade), instância na qual a pessoa não
zação. Apesar da perda da sensibilidade, os prisioneiros pode eleger ou realizar escolhas. Isso significa que quan-
ainda se indignavam com as injustiças acometidas sem do o ser humano se encontra com um sofrimento inevi-
nenhuma razão, o que remete ao segundo eixo. tável, pode escolher uma atitude perante a sua própria
dor, encontrando um sentido por meio dos “valores ati-
Eixo II - Posicionamento psicoexistencial tudinais” (Frankl, 1990).
Esse eixo é composto por duas classes: atitude singu- Para tanto, o autor em foco acentua a capacidade
lar dos prisioneiros e reações psicológicas. Enquanto a prospectiva do ser humano no campo de concentração,
segunda classe explicou 23,7% do total, a terceira apre- pois a experiência de três anos em Auschwitz e Dachau
sentou o menor poder explicativo do dendograma (11,6% lhe ensinou que o mais relevante para a sobrevivência
do total). Percebe-se que na classe 2 predominaram con- naquela situação era estar orientado para o futuro, para
teúdos concernentes à dimensão noológica, enquanto na uma pessoa a ser encontrada ou um sentido a realizar
classe 3 prevaleceram as palavras que referenciam o es- após a guerra (Frankl, 1989b). Nessa perspectiva, o se-
tado anímico dos prisioneiros. Frankl (2010) destaca, por gundo eixo da análise apresentou uma associação entre
um lado, algumas características psíquicas, tais como a as reações psíquicas e a atitude singular do prisioneiro.
perda da sensibilidade (embotamento afetivo), a irritabili- Frankl (1989b) apresenta o seguinte exemplo do que
dade e o sentimento de inferioridade do prisioneiro. Além ocorrera no gueto de Theresienstadt:
da apatia, foi observado também o temor em tomar deci-
sões, pois as consequências poderiam ser imprevisíveis. Foi publicada uma lista de com o nome dos cerca de
Por outro lado, o referido autor concebeu que há uma mil jovens que na manhã seguinte seriam retirados do
estranha relação dialética entre existência e facticidade, gueto. Quando amanheceu o dia, era do conhecimento
advogando que são “(...) dois momentos que se interdepen- geral que a livraria do gueto fora esvaziada. Cada um
dem e se exigem reciprocamente. Estão sempre incrusta- daqueles rapazes – que estavam condenados a morrer
dos um no outro, razão pela qual só a força é que se pode no campo de concentração de Auschwitz – pegara um
separá-los” (Frankl, 1990, p. 96). Essa perspectiva corro- par de livros do poeta, do romancista ou pensador
borada por meio do significado do termo Ex-sistir, ou seja, preferido e o escondera na mochila (p. 27).
sair de si mesmo e confrontar-se (Frankl, 1990).
Para comprender a narrativa de Frankl, torna-se ne- Nesse sentido, demonstra a capacidade dos prisio-
cessário compreendê-la no conjunto de sua obra cientí- neiros de se posicionarem perante as suas últimas áre-
fica. Destarte, pode-se considerar que esse manuscrito as de liberdade até o encontro com a morte. Em outros
seja complementar ao livro que Frankl publica em 1946: momentos, os prisioneiros expressaram os valores vi-
Ärztliche Seelsorge, cura médica de almas, o qual es- venciais quando contemplam o pôr do sol ou uma mú-
Artigo

tava escrevendo antes da sua internação nos campos e sica do violino (Frankl, 2010). Nessa perspectiva, a
tentou reconstruí-lo no final da guerra quando contraiu análise semântica das palavras que se associaram em

213 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012


Thiago A. A. Aquino

torno da classe 2 sugere as posturas e atitudes singu- (Frankl, 2010, p. 10). Nesse sentido a obra poderia ter um
lares dos prisioneiros, o que se torna possível median- efeito terapêutico ou biblioterapêutico sobre o leitor, en-
te a força de resistência do espírito humano. Sobre isso tretanto não se conhecia até então a estrutura lexical que
comenta Frankl (1989b): “as pessoas acentuavam suas estaria latente ao manuscrito que pudesse mobilizar os
diferenças individuais. Vinha à luz a natureza animal recursos internos da pessoa humana.
do homem, mas acontecia o mesmo para a santidade. Outro ponto relevante da sua narrativa refere-se a
A fome era a mesma, mas as pessoas eram diferentes” questões éticas acerca das posturas das pessoas que so-
(p. 42). Herrera (2007) salienta que essa liberdade inte- frem injustiça. Apesar dos relatos dos pequenos atos he-
rior do prisioneiro não era uma liberdade-de (livre dos róicos dos prisioneiros, Frankl (1989b) considera que os
condicionamentos), mas uma liberdade-para (tomada ‘homens humanos’ se constituem como minoria. Para
de posição apesar dos condicionamentos). Destarte, ao esse autor, o prisioneiro que tomou uma postura ética
descrever a existência desnuda dos prisioneiros, se- ou humana, diante dos condicionamentos impostos nos
gundo a narrativa do autor, pôde-se contatar que eles campos, o fez de forma facultativa. A esse respeito ele
não eram apenas um joguete do próprio destino, mas tece o seguinte argumento: “contudo é exatamente esse
que foi possível naquela situação tomar uma postura fato que deve estimular a cada um de nós a unir-se à mi-
pessoal perante o psicofísico do prisioneiro, o que na noria: as coisas vão mal, mas se não fizermos o melhor
análise se constituiu como a classe 2. que pudermos para fazê-las progredir, tudo será ainda
pior” (Frankl, 1989b, p. 24). Nessa perspectiva, torna-se
compreensível que ao sair da reclusão, Frankl (2010)
Considerações Finais apregoa que quem sofreu injustiça não teria o direito de
cometer injustiça.
O objetivo do presente artigo foi identificar a estru- Considera-se que tanto a vivência de Frankl (1989a)
tura lexical mais significativa do livro Em busca de sen- quanto a sua visão teórica são complementares, ou seja,
tido: um psicólogo no campo de concentração, o que foi constituem dois momentos distintos que resultam na
considerado plenamente alcançado. No entanto, faz-se visão de homem e de mundo. A Logoterapia e Análise
necessário nesse momento elencar algumas limitações do Existencial se opõe a concepção reducionista, aquela em
estudo. Inicialmente considera-se que a análise foi feita que o ser humano é completamente condicionado e sem
por meio de uma tradução do alemão para o português. qualquer possibilidade de escolha (pandeterminismo),
Assim, questiona-se se o significado semântico pode ter pois não considera a pessoa como um joguete do desti-
sido modificado ou mesmo que a tradução tenha sido no. Como pode ser constatado por meio da análise da
um viés no presente estudo. Dessa forma, recomenda-se narrativa de Frankl, a pessoa é compreendida como um
fortemente que outros estudos, ao utilizarem dessa mes- ser que responde às demandas do mundo. Na totalidade
ma metodologia, possam se ater ao texto original em sua da obra de Frankl, o autor substitui a expressão “nada
versão germânica. mais que”, típica do reducionismo, por “mais que”, o
Outra questão a ser ressaltada é que o autor da narra- que resulta em uma compreensão de homem como um
tiva tanto foi observador quanto objeto de observação, já ser que é sempre “mais que” as suas condições inter-
que o mesmo não poderia se distanciar do contexto em nas e externas.
que estava inserido. Considera-se que ele foi um obser- A estada de Frankl nos campos de concentração pro-
vador participante, narrando também as próprias vivên- porcionou a validação vivencial dos princípios que esse
cias no campo. Entretanto, sabe-se que ele já vinha de- autor adota em sua visão antropológica, ressaltando, so-
senvolvendo a sua perspectiva teórica antes de ingressar bretudo, a “liberdade da vontade” e a “vontade de sen-
como recluso nos campos de concentração. Dessa forma, tido”. De forma geral, a técnica estatística textual aqui
a sua visão de homem e de mundo poderia ter facilitado aplicada permitiu o mapeamento do mundo lexical da
na constatação dos fenômenos especificamente huma- primeira parte da obra Em busca de Sentido, o que per-
nos. Embora tenha feito uma análise fenomenológica da mitiu revelar a estrutura da sua narrativa. Essa análise,
vivência do prisioneiro, não é possível saber até que pon- realizada por meio do ALCESTE, identificou três classes:
to ele suspendeu o seu olhar teórico para realizar tal ob- por um lado, a classe 1, Facticidade dos prisioneiros, por
servação. Nesse caso, sugere-se que outros manuscritos, outro as classes 2 e 3, Posicionamento psicoexistencial,
de outros autores que passaram por essa mesma experi- corroborando a concepção desse autor segundo a qual o
ência, possam ser analisados para efeito de comparação ser humano poderia se posicionar perante as condições
com a descrição de Viktor Frankl. psicossociais, escolhendo sua forma de ser-no-mundo
Sobre a intenção de escrever o seu relato sobre a sua por meio de sua dimensão noológica. Assim, considerou-
vivência nos campos, o próprio autor esclarece que “ha- -se relevante analisar esse corpus tendo em vista que o
via querido simplesmente transmitir ao leitor, através de mesmo desvela a essência do pensamento originário do
Artigo

um exemplo concreto, que a vida tem um sentido potencial autor em tela, tornando tangíveis os conceitos teóricos e
sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis” filosóficos dessa abordagem.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012 214


Análise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experiência dos Prisioneiros nos Campos de Concentração

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som: um manual prático (pp. 461-441). Petrópolis: Vozes.

Artigo

215 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 206-215, jul-dez, 2012


Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto

LINGUAGEM POÉTICA E CLÍNICA FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL:


APROXIMAÇÕES A PARTIR DE GASTON BACHELARD*

Poetic Language and Existential Phenomenological Clinic: Rapprochements with Gaston Bachelard

El Lenguaje Poético y la Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximaciones a Partir de Gaston Bachelard

R afael Auler de A lmeida Prado


M arcus Tulio Caldas
K arl Heinz Efken
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

Resumo: A clínica fenomenológica existencial posiciona-se criticamente a uma modalidade de linguagem concebida por crité-
rios, categorias ou conceitos. Este artigo consiste numa reflexão teórica, com o objetivo de apresentar a imaginação poética como
via de linguagem articulada com a dimensão compreensiva, própria desta abordagem psicológica. Compreendemos a linguagem
como gesto significador, de acordo com Merleau-Ponty e em oposição às concepções intelectualistas ou empiristas. A “imagina-
ção criadora” de Bachelard distingue-se da referência usual de imaginação como subproduto da memória. A imaginação poéti-
ca, segundo a concepção de Bachelard é uma possibilidade de linguagem por meio da qual se vive plenamente o sentido de algo
que vem ao nosso encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos de significados extremamente ricos e que dizem res-
peito ao mundo que está ao nosso redor.
Palavras-chave: Linguagem; Significação; Imaginação poética; Clínica fenomenológica existencial.

Resumen: La clínica fenomenológica existencial toma de modo crítico a una modalidad de lenguaje concebido por criterios,
categorías o conceptos. Este artículo se propone una investigación teórica, con el objetivo de presentar la imaginación poética
como una posibilidad de lenguaje articulado con la dimensión comprensiva, típico de este enfoque psicológico. Comprendemos
el lenguaje como gesto significante de acuerdo con Merleau-Ponty y en oposición a los conceptos empiristas o intelectualistas.
La “imaginación creativa” de Bachelard se distingue de la referencia corriente que considera a la imaginación como un sub-
producto de la memoria. La imaginación poética de acuerdo con la concepción de Bachelard es una posibilidad del lenguaje
por el cual es posible vivir en plenitud el sentido de nuestra existencia con las cosas del mundo. En resumen la experiencia de
la imaginación poética nos permite apoderarse de significados muy profundos que se relacionan con el mundo que nos rodea.
Palabras-clave: Lenguaje; Significado; Imaginación poética; Clínica fenomenológica existencial.

Abstract: Existential phenomenological psychology criticizes a conception of language defined by criterions, categories or con-
cepts. This article consists of theoretical reflection, with the aim of presenting poetic imagination as a conception of language
articulated to comprehension. We understand language as a signifier gesture, according to Merleau-Ponty and in opposition to
empiricist or intellectualist conceptions. Bachelard´s “creative imagination” distinguishes itself from the imagination´s usual
reference – memory´s byproduct. The poetic imagination, according to Bachelard’s conception, consists of a type of language by
which we can fully experience the sense of something. This experience allows us to take hold of multiple meanings that relate
to the world that surrounds us.
Keywords: Language; Meaning; Poetic imagination; Phenomenological existential psychology.

O presente artigo procura realizar uma aproximação linguagem de modo igualmente fundamental, como gesto
entre a imaginação poética, entendida como modalidade criador e significador de um mundo. Este tipo de relação,
de “imaginação criadora”, e expressão do sonhar, segundo também almejado pela clínica fenomenológica existen-
o pensamento de Gaston Bachelard e a clínica fenomeno- cial, só pode ser estabelecida quando a linguagem deixa
lógica existencial. Esta aproximação tentará mostrar que de ser “usada” como meio de expressão ou “instrumento”
a reflexão filosófica sobre a imaginação poética feita por e passa a manifestar e revelar nosso modo de ser situado
Bachelard pode abrir novas modalidades de compreensão no mundo com os outros. É nesse sentido de manifesta-
para uma prática clínica fenomenológica e existencial. ção e revelação daquilo que mais propriamente nos diz
A poética se apresenta como possibilidade para o ser hu- respeito que a poética é compreendida por Bachelard, o
mano estabelecer uma relação viva consigo e com os ou- que justifica nosso interesse pelo tema em questão.
Artigo

tros, a partir de sua linguagem própria, e de seu peculiar A clínica fenomenológica existencial não se restringe
modo de se expressar. Merleau-Ponty (1945/1999) toma a a conceitos e categorias, construtos de uma linguagem

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 216


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

categorial, mas se apresenta vinculada a modalidades de essa importante noção. Escolhemos essa concepção por
compreensão humana. A psicoterapia não é apenas uma ela não entender a linguagem como um processo asso-
construção teórica, mas encontra a sua efetivação na prá- ciativo ou representacional, mas como gesto significador.
tica clínica. Como prática, pode ser fecundada por uma Esta compreensão de linguagem norteia nossa reflexão
determinada concepção filosófica. O psicólogo é o pro- sobre a imaginação poética.
fissional cuja fala e escuta se prestam a uma compreen- Num terceiro momento, falaremos sobre a especifici-
são. Em sua formação acadêmica, procura desenvolver e dade da imaginação poética, aproximando considerações
aperfeiçoar sua capacidade de compreensão. É para aten- de Merleau-Ponty e de Bachelard. Procuraremos mostrar
der essa necessidade de qualificar seu compreender que o que de específico tem a imaginação poética a partir da
fundamenta sua prática em uma teoria. O suporte teórico concepção de linguagem adotada. A imaginação poética
vigente fundamenta-se no método científico, concebido não é, para Bachelard, um processo de representação ou
a partir de premissas filosóficas. Em consonância com expressão de uma idéia. A poética é uma modalidade de
tal fato, teorias psicológicas se desenvolveram a partir linguagem pela qual significamos e criamos nosso mun-
da preocupação de fornecer ao psicólogo uma melhor do a partir de nossa capacidade de sonhar.
capacidade de compreensão. É inquestionável que, com Dando continuidade às reflexões anteriores, apresen-
o desenvolvimento de teorias psicológicas, como a psica- tamos e discutimos algumas imagens poéticas trabalha-
nálise, a psicologia comportamental e a psicossociologia, das por Bachelard. Concluímos o artigo pensando sobre
a prática do psicólogo tem se tornado mais qualificada. possíveis contribuições da imaginação poética para a
Seria por isso uma exclusividade do método cientí- psicologia fenomenológica existencial.
fico a possibilidade de fornecer referenciais que possam
servir de guia para o psicólogo compreender o outro?
Por que haveriam de ser menos válidas para uma prá- 1. O Pensamento de Descartes, Ciências Psicológicas
tica clínica as referências sobre o humano fornecidas e Linguagem
pela poética e pela filosofia? Seriam desprezíveis? Não
se pretende defender a fundação de uma nova proposta Partimos da ideia de que há uma limitação quanto
psicoterápica, muito menos desvalorizar aquelas funda- à adoção metodológica de inspiração cartesiana, no que
mentadas por métodos científicos, mas somente refletir diz respeito à fundamentação das ciências humanas, in-
sobre a possibilidade da poética ser uma modalidade de clusive a psicologia. Embora o pensamento de Descartes
linguagem útil para a prática psicoterápica fenomeno- seja de inestimável importância para a história da filoso-
lógica existencial. fia e tenha contribuído para o desenvolvimento das cha-
Sá (2009) nos lembra que sempre haverá uma condi- madas ciências naturais, a crítica aqui é dirigida ao uso
ção histórica fundada em uma comunidade humana que dogmático e acrítico do método cartesiano no campo do
a partir de uma linguagem que pareceria natural, nos conhecimento sobre o ser humano.
permite uma experiência do mundo cotidiano. Portanto, As concepções filosóficas que orientam as práticas
os procedimentos técnicos e científicos, ou mesmo qual- psicológicas existentes são fundamentadas numa tradi-
quer teorização, por mais que alcance uma linguagem ção de conhecimento predominante, em que há uma di-
técnica altamente especializada, depende desta determi- visão epistemológica fundamental entre sujeito e objeto,
nação histórica. Esta reflexão nos indica o cuidado que que se desdobra nas dicotomias entre homem e mundo,
devemos ter ao tomar a verdade em seu caráter absoluto. e corpo e mente – ou psique – entre outras. Medard Boss
A partir daí, acreditamos que a verdade sempre será uma ressalta que o termo psique deriva do grego antigo e tem
construção, não por isso menos verdadeira que qualquer o significado original de “(...) uma determinada maneira
verdade técnico-científica. de existir, ou seja, aquele modo-de-ser que distingue os
Para cumprir seus propósitos, este artigo iniciará seres vivos” (Boss, 1972/1981, p. 53).
com uma reflexão sobre o pensamento de Descartes, sua Psique foi assumindo, no entanto, no pensamento eu-
influência para a fundamentação das ciências psicológi- ropeu, o significado de “(...) uma coisa substancial, a qual
cas e para uma determinada concepção de linguagem. se encontra em algum lugar no espaço” (Boss, 1972/1981,
Mostraremos como o método de conhecimento propos- p. 53), colocando-se dessa forma em oposição à corpo-
to por este filósofo foi, por um lado, de fundamental im- reidade. No pensamento de Descartes, psique assume o
portância para o desenvolvimento das ciências; porém, significado de Res Cogitans, entendida como o espírito
por outro lado, caso utilizado como única forma de se humano, o sub-iectum que “(...) quer dizer aquilo no que
atingir “a verdade”, limita a compreensão do ser huma- algo se baseia, que está como fundamento de todo o res-
no, que é fundamental para a proposição de uma prática tante.” (Boss, 1972/1981, p. 53). Por sub-iectum também
psicológica adequada. se entende a base para que as realidades do mundo exis-
Em seguida, apresentaremos a linguagem compreen- tam, sendo tomadas por objetos. A psicologia assimilou
Artigo

dida como gesto que significa e cria um mundo no pen- o conceito de Res Cogitans como “aparelho psíquico” na
samento de Merleau-Ponty; com o intuito de explicitar teoria freudiana.

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No campo da psicoterapia, Boss considera indispen- ração entre um corpo físico e uma alma ou mente, e nem
sável ao terapeuta ter conhecimento da origem de sua o corpo é compreendido como ideia ou objeto. O “corpo-
fundamentação filosófica. Como a maioria das ciências -próprio” para Merleau-Ponty é um “corpo sujeito”, um
atualmente se fundamentam na filosofia de Descartes, modo paradoxal desse sujeito “estar” no mundo, posto que
inclusive as ciências humanas, ele alerta para a impor- o mundo o permeia de modo que o corpo é visível e se vê,
tância do psicólogo refletir sobre seus pressupostos te- é sensível e se sente, é tocável e se toca. O ser humano é
óricos examinando criticamente a filosofia cartesiana: seu próprio corpo e nada além, ou fora dele.
“[É] (...) indispensável ao atual psicoterapeuta que – caso O pensamento de Merleau-Ponty caracteriza-se por
ele queira saber o que faz – que ele reflita, pelo menos um uma alternativa às limitações colocadas pelo pensamen-
pouco, sobre o que aprontou a seu tempo, este matemáti- to cartesiano e busca ir além dele, fazendo uma releitu-
co-filósofo, com o nosso mundo e com o mundo dos pos- ra da condição do ser humano, de modo que mundo e
teriores psicoterapeutas” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor homem não são mais compreendidos como separados,
chama a atenção para o fato de que, na filosofia cartesia- mas o homem, através de sua corporeidade, é um ser no
na, verdade e realidade são entendidas como o aquilo que mundo, sendo o mundo o que o cerca e lhe diz respeito.
é mensurável, calculável e exato. Essas características, Esta concepção devolve o homem ao seu pertencimento
por serem controláveis, foram eleitas para estabelecer o ao mundo, e permite que os fenômenos humanos sejam
que é verdade, permitindo que o homem exerça controle reinterpretados. A linguagem, a partir da corporeidade
sobre a natureza. proposta por Merleau-Ponty é, desse modo, compreendi-
Nossa sociedade contemporânea é capitalista e con- da de uma outra forma.
sumista. O capitalismo, por um lado, se estrutura no
controle de condições e no processo de produção indus-
trial, o que estimula, por exemplo, pesquisas científicas 2. Linguagem como Gesto que Significa e Cria um
para fabricação de novos produtos ou criação de novas Mundo
máquinas que aceleram e intensificam a produção. Por
outro lado, no controle de condições também se oferece A dicotomia sujeito-objeto, proposta pelo modelo car-
a possibilidade de se manipular e de se ter poder. tesiano, deu origem a duas correntes de pensamento: o
Nietzsche afirma (conforme citado por Boss, intelectualismo, que privilegia o subjetivismo, e o me-
1972/1981, p. 54) que o “(...) século XIX não trouxe a vitó- canicismo, que privilegia o objetivismo. No âmbito da
ria da ciência, mas a vitória do método (método de pen- concepção da linguagem, ambas as correntes consideram
sar científico) sobre a ciência”. Para Boss, a colocação de uma separação entre pensamento e fala em que ou um é
Nietzsche é válida ainda hoje. O método científico, que é causa do outro, ou um representa o que outro expressa.
um método de controle sobre o mundo, tornou-se o modo Para Merleau-Ponty (1945/1999), a fala e o pensamento
de pensar e de ser de uma sociedade. Com isso, as qua- são dois momentos de um mesmo gesto, um gesto que só
lidades de mensurabilidade, calculabilidade e exatidão, pode se dar através do corpo. É por isso que o autor afir-
exigidos para que a ciência estabeleça controle sobre o ma que “(...) para poder exprimi-lo em última análise o
mundo, tornaram-se sinônimos de verdade e realidade corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que
no plano das ideias. ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala.” (Merleau-
As práticas psicológicas, portanto, fundamentam-se Ponty, 1945/1999, p. 267).
numa filosofia que tem como objetivo o controle da na- A linguagem – fenômeno do corpo – é uma modali-
tureza e apresenta caráter possessivo. Boss (1972/1981) dade de gesto. Como todo gesto, a fala só acontece a par-
ressalta o risco que as psicoterapias correm de “(...) ser- tir das possibilidades expressivas do corpo como vocife-
vir para um aumento de poder do sujeito em relação a rar e soltar ar silibante, e, ao mesmo tempo constitui um
todos os objetos do mundo externo – inclusive de seus se- mundo de significados que expressam suas intenções e
melhantes” (Boss, 1972/1981, p. 55). Segundo o autor, as sua disposição emocional. Este mundo de significados é
psicoterapias atuais “(...) correm este perigo de serem elas constituído pela fala e se refere a uma rede significativa
também como todas as ciências naturais que tentam obter “intersubjetiva” já adquirida, a qual permite que a fala
o domínio sobre a natureza inanimada, filhas desta men- seja compreendida pelo outro. No entanto, a fala não se
talidade extremamente possessiva, subjetivista da filoso- relaciona a esta rede “intersubjetiva” a partir de um pro-
fia cartesiana” (Boss, 1972/1981, p. 55). O autor aponta cesso causal, nem por um acesso intelectual a represen-
ainda para a necessidade de a proposta psicoterápica fe- tações mentais pré-existentes. A fala do outro habita meu
nomenológica existencial estabelecer novos referenciais corpo, há uma reciprocidade entre minhas intenções e
humanos não-conceituais ou categoriais, mas que possam desejos e a fala do outro e vice e versa e, só por isso, há
servir para expressar melhor o domínio da compreensão. fala. A rede intersubjetiva é apenas o meio (linguístico)
Merleau-Ponty (1945/1999), ao formular sua concepção possibilitador da fala.
Artigo

de corpo, tenta superar a dicotomia entre sujeito e objeto A fala não pressupõe o pensamento. Falar não é unir-
proposta por Descartes. Para o autor, não existe a sepa- -se ao objeto através de uma representação nem por uma

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A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

intenção de conhecimento. A denominação dos objetos é singularidade entre as operações expressivas é a possibi-
seu próprio reconhecimento, e não anterior a ele. lidade de criar um “saber intersubjetivo” a partir de sua
sedimentação. Por isso, só a metalinguagem – ou falar so-
(...) a fala não é o signo do pensamento, se entendemos bre a fala – é possível, e algo semelhante não é possível
por isso um fenômeno que anuncia outro, como a fuma- em outras modalidades expressivas, como pintar sobre a
ça anuncia o fogo. A fala e o pensamento só admitiriam pintura e cantar sobre a música. A “atividade categorial”
essa relação exterior se um e outro fossem tematicamen- ou nossa possibilidade de estabelecer categorias é ape-
te dados; na realidade, eles estão envolvidos um no ou- nas um modo de nos relacionarmos com, ou de estarmos
tro, o sentido está enraizado na fala, e a fala é a essência no mundo, ou mesmo um modo de configurarmos nossa
exterior do sentido (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 247). experiência. O pensamento cartesiano e as ciências que
nele se fundamentam elegem esta possibilidade como a
Compreendemos para além do que pensamos esponta- mais verdadeira ou confiável e invalidam as outras.
neamente. Isso mostra que o pensamento não se relacio-
na com a fala a partir de um processo associativo, como
é defendido pelo intelectualismo. O sentido de uma obra 3. A Especificidade da Linguagem Poética - Apro-
literária, por exemplo, mais contribui para modificar o ximando Considerações de Merleau-Ponty e de
sentido comum das palavras do que é por ele constituído. Bachelard
Há um “pensamento que fala” (Merleau-Ponty, 1945/1999)
tanto no escutar e ler, como no falar e escrever. Isso é des- Em 1938, Gaston Bachelard, a convite do poeta
considerado pelo intelectualismo. Jean Lescure, escreve um artigo sobre poesia chamado
Pronunciar uma palavra é o único modo de repre- “O instante poético e o instante metafísico”. Este tex-
sentá-la para mim. Assim como outras modalidades da to marca profundamente o rumo de suas reflexões filo-
consciência corporal, a imagem verbal é uma das moda- sóficas, antes mais preocupadas com a epistemologia.
lidades de gesticulação fonética. Fala e pensamento estão Segundo Pessanha (1994),
arraigados um ao outro e não são dados separadamen-
te. A fala é a “essência exterior do sentido” que, por sua (...) o que Bachelard conquista a partir desta época
vez, está fundado na fala. A duplicação e a vociferação para ele e para nós – são os fundamentos da legiti-
que revestem o pensamento trazem e contêm em si o seu midade do devaneio, os motivos que tornam o sonho
sentido. A fala tem uma “potência de significação” que imprescindível à arte e à vida. Conquista o direito de
lhe é própria. A operação expressiva realiza a significa- sonhar. E, aqui também pedagogo, ensina as riquezas
ção da fala, ela não a traduz. A fala é um gesto, e como e benefícios do devaneio (pp. 10-11).
(todo) gesto contém seu sentido, o que permite a comu-
nicação. A comunicação acontece de mim para um outro O devaneio é compreendido por Bachelard como uma
“sujeito falante”, que tem um determinado modo de ser função de um sonhar ativo, vivificador e não pelo seu
e com “um mundo que ele visa”. Não nos comunicamos sentido divagativo. A imaginação poética é uma moda-
com pensamentos nem com representações, assim como lidade de devaneio que diz respeito à expressão poética
é proposto pelo intelectualismo. sobre o que se sonha e vive.
A fala é um gesto cuja origem é o “silêncio primor- As concepções de imaginação e de devaneio poéticos
dial”. Ela é o gesto que rompe este silêncio. A significa- estão fundamentadas numa concepção de linguagem.
ção da fala é um mundo. A comunicação acontece não Para compreender como Bachelard nos apresenta estes
através da apreensão de um sentido dado, mas pela com- fenômenos humanos, vamos adotar como referência a
preensão do gesto do outro. A compreensão só é possível concepção de linguagem de Merleau-Ponty. Ela nos ofe-
porque existe uma reciprocidade entre minhas intenções rece uma compreensão sobre este fenômeno que difere
e os gestos dos outros. Assim, minhas intenções podem das concepções tradicionais e que tem compatibilidade
habitar o corpo do outro, assim como as intenções do ou- com as proposições bachelardianas. Merleau-Ponty de-
tro podem habitar meu corpo. fende que a linguagem é um gesto do corpo, que na sua
Tanto a compreensão do outro como a percepção das expressão revela seu sentido. Não existe uma cisão entre
coisas se dão pelo corpo. O sentido do gesto está na sua um pensamento, em que as ideias estariam representadas,
expressão e não é dado separada ou anteriormente a ele e a fala que apenas expressaria ideias previamente da-
numa representação. O sentido do gesto estrutura um das, disponíveis para uma expressão. Ele acredita numa
mundo de significações. A gesticulação verbal se serve de unidade “ambígua” entre pensamento e fala, na qual a
significações já disponíveis, estabelecidas por expressões fala é o próprio pensamento consumado, dando-se junto
anteriores, que são comuns aos falantes. O sentido da fala com este e não de forma exterior. Isso rompe com noções
é o modo como ela articula essas significações adquiridas. mecanicistas e idealistas da linguagem que a veem como
Artigo

A fala é uma das possibilidades da “potência irracio- efeito de uma causa exterior ou como expressão de uma
nal” humana que cria significações e as comunica. Sua representação mental prévia.

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Bachelard (1957/2000) afirma que para estudar os pro- ção da experiência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 259).
blemas propostos pela imaginação poética, um filósofo Para o autor, se a fala é autêntica, “faz nascer algo novo”
que costuma fundamentar seus estudos no racionalis- (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 263). O estudo sobre a ima-
mo ativo deve romper com suas linhas de pensamento e ginação poética, realizado por Bachelard, visa justamente
seus hábitos de pesquisa. Essa posição converge para a ao nascer desta novidade, deste mundo de significações e
de Merleau-Ponty, no sentido de não se limitar às noções sentidos singulares e únicos que as imagens nos trazem.
causais e dicotômicas que configuram as correntes idea- A linguagem poética, segundo Bachelard (1957/2000),
listas ou empiristas para se estudar um fenômeno da or- é a linguagem pela qual o ser humano expressa mais di-
dem da linguagem como a imaginação poética. reta e nitidamente o modo como é tocado pelo mundo.
A proposição de Bachelard é convergente à concep- O mundo, constructo permanente e mutável da plurali-
ção de linguagem para Merleau-Ponty. Quando o primei- dade do ser humano, são as redes de significações que
ro afirma que é: “(...) necessário estar presente, presente à se estabelecem nas relações dos homens com as coisas.
imagem: se há uma filosofia da poesia ela deve nascer e A poética é uma possibilidade do homem se reconhecer
renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão to- na sua singularidade e de dar sentido à sua vida.
tal a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio Na perspectiva colocada por Bachelard, o imaginá-
êxtase da novidade da imagem” (Bachelard, 1957/2000, p. rio, estudado pelo autor, na forma de imaginação poética,
1), o autor encontra um modo específico possível de fa- tem um lugar central na existência humana no que diz
lar que, de certa forma, contempla a posição de Merleau- respeito à relação do ser humano consigo mesmo, com
Ponty sobre linguagem. Este afirma que: “O elo entre a os outros e na significação de seu mundo. Essa posição é
palavra e seu sentido vivo não é um elo exterior de asso- consonante com a posição de Merleau-Ponty (1945/1999)
ciação; o sentido habita a palavra, e a linguagem ‘não é sobre linguagem:
um acompanhamento exterior dos processos intelectuais’”
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262). A partir do momento que o homem faz uso da lingua-
A imaginação e o devaneio poético são modos pri- gem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo
vilegiados de conhecer uma dimensão humana ainda ou com seus semelhantes, a linguagem não é mais um
pouco explorada pela psicologia: o potencial do imagi- instrumento, não é mais um meio, ela é uma manifes-
nário compreendido como “imaginação criadora”, nossa tação, uma revelação do ser íntimo e do elo psíquico
capacidade de sonhar com olhos abertos (que difere do que nos une ao mundo e aos nossos semelhantes
sonhar noturno). Segundo o autor, a psicologia vem tra- (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 266) (Grifos do autor).
dicionalmente tratando a imaginação como subproduto
da memória, não lhe dando grande importância. A própria elaboração que a pessoa faz sobre si mes-
Bachelard elege a imaginação poética como forma de ma é poética, no sentido de que é única e que fala dela, e
estudar a imaginação. Esta modalidade se encontra no porque busca o sentido do que se vive e não causas e ex-
domínio da linguagem escrita, o que facilita a reflexão e plicações. Na prática psicoterápica podemos propor que
permite ao leitor, através da leitura de imagens poéticas, o terapeuta promove, através de uma escuta cuidadosa
servir-se de referenciais humanos sempre novos, con- e interessada, o aprofundamento da elaboração poética
tribuindo para ampliar seu mundo e suas significações. que a própria pessoa faz a respeito de suas experiências
Estas, segundo Merleau-Ponty, são o meio pelo qual a lin- vividas. O psicólogo, também, assume uma atitude poé-
guagem humana se dá. tica em relação ao que o paciente lhe conta, quando ele
se coloca em sua posição e encontra palavras que escla-
Ela [a linguagem] apresenta, ou antes ela é tomada de recem o sentido que se apresenta na fala do paciente. Isso
posição do sujeito no mundo de suas significações. difere de uma postura em que o terapeuta atribui expli-
O termo ‘mundo’ não é aqui uma maneira de falar: cações e causas para as vivências relatadas pelo pacien-
ele significa que a vida ‘mental’ ou cultural toma de te, o que é próprio das abordagens teóricas psicológicas
empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que fundamentadas no pensamento cartesiano.
o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encar-
nado (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 262).
4. Algumas Imagens Poéticas Trabalhadas por Gaston
Para Merleau-Ponty, a linguagem categorial é ape- Bachelard
nas uma das possibilidades da linguagem, mas segundo
uma perspectiva idealista é a única forma de se conse- A título de ilustração, apresentaremos neste item
guir conhecimento verdadeiro ou absoluto. “Mas, se nos a análise de três imagens poéticas trabalhadas por
reportamos às descrições concretas, percebemos que a Bachelard, para que possamos ter uma ideia do tipo de
atividade categorial, antes de ser um pensamento ou um contribuição que estas podem oferecer para a psicologia
Artigo

conhecimento, é uma certa maneira de relacionar-se ao clínica fenomenológica existencial e foram escolhidas
mundo e, correlativamente, um estilo ou uma configura- com o propósito de mostrar um pouco da variabilidade

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 220


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

dos temas e dimensões humanas que podem ser expres- lho que inspira a imagem poética. Não se trata nem de
sas através dessa modalidade de linguagem. A elabora- um trabalho sob sua contextualização capitalista, nem
ção poética é linguística e, portanto, tem a função de dar de um trabalho num cenário de luta de classes. É um
sentido ao mundo. A primeira imagem apresentada aqui é trabalho corporal na sua corporeidade mais radical; um
do domínio dos sentimentos; a segunda diz respeito a um trabalho braçal que pouco inspiraria, à primeira vista,
devaneio em que o elemento terra é mais fortemente pre- nossas forças devaneadoras. Mas o trabalho, nesta ima-
sente; e a terceira é uma imagem da “imensidão íntima”. gem, é apresentado como luta que nos fortalece como se-
Jules Supervielle (conforme citado por Bachelard, res humanos felizes.
1957/2000, p. 206), na seguinte imagem poética, nos traz A terceira imagem, de Bachelard, nos convida para o
uma nuance do sentimento de tristeza que encontrou interior da nossa floresta interna. Encaramo-nos com os
seu lugar, e de alguém que se permite triste pela própria mistérios de nossa origem. A floresta como um “antes-
necessidade que a tristeza apresenta e não tenta evitá-la, -de-nós” parece-nos testemunhar silenciosamente nossa
não a sente de forma insuportável: “Conheço uma triste- ancestralidade.
za que tem cheiro de abacaxi. Sou menos triste, sou mais
docemente triste”. A floresta é um antes-de-nós (...). Quando se abranda
A leitura de uma imagem poética, quando repercute a dialética do eu e do não-eu, sinto as pradarias e os
no íntimo de uma pessoa, ‘empresta’ ao sentimento dela campos comigo, no comigo, no conosco. Mas a flo-
um meio de se expressar. Ele é, assim, reconhecido, não resta reina no antecedente. Em determinado bosque
é mais estranho, mas familiar e pode ser incorporado. que conheço meu avô se perdeu. Contaram-me isso,
Sobre a imagem poética, acima citada, o autor afirma: não o esqueci. Foi num outrora em que eu não vivia.
“Qualquer que seja a afetividade que matize um espa- Minhas lembranças mais antigas têm cem anos ou
ço, mesmo que seja triste ou pesada, assim que é expres- pouco mais. Essa é a minha floresta ancestral. Tudo
sa, a tristeza se modera, o peso se alivia” (Bachelard, o mais é literatura (Bachelard, 1957/2000, p. 194).
1957/2000, p. 206). As imagens poéticas não encerram o
significado de uma vivência humana, mas detalham-no Esta imagem expressa “nosso estarmos” limitados em
ao máximo, permitindo que na especificidade de sua sig- relação à compreensão de nós mesmos e de nossa origem.
nificação, falem algo genuíno e vivo, capaz de sensibili- Por meio dela, nos sentimos assistidos por um mundo que
zar o leitor, que se reconhece na imagem. nos conhece mais que a nós mesmos. A floresta ancestral,
Bachelard dedica-se, num primeiro momento de suas ambiguamente, também mobiliza em nós um sentimento
obras a tratar das imagens materiais. Ele escreve cinco de familiaridade com o mundo.
obras, sendo cada uma inspirada em um elemento da A imagem poética, conforme queremos sugerir, é uma
natureza ou matiz material (fogo, ar, água e duas obras forma de linguagem como significação de mundo, e como
destinadas aos devaneios da terra). O autor diferencia a forma de estabelecer uma relação viva conosco mesmos e
imaginação formal da imaginação material, situando no com o outro. Ela é direta na sua singularidade. Ela é as-
universo da segunda suas obras sobre a poética e o de- sim, o que há de mais sincero, de mais espontâneo. Ela é
vaneio. A primeira modalidade de imaginação, forma- pura imediaticidade. A confiança passa aqui do que está
dora de conceitos, é própria da ocularidade, própria de mais atrás (como na adoção de causalidade como referên-
um filósofo “que vê o trabalhador trabalhar” (Bachelard cia explicativa de um fenômeno), para o que vem mais à
conforme citado por Pessanha, 1994, p. 14). A imagina- frente, o que se mostra, mais nítido, mais visível. Segundo
ção material já é fruto da mão que trabalha a matéria, de Bachelard: “(...) a imagem em sua simplicidade, não pre-
uma experiência corporal de criação. Como exemplo do cisa de um saber. É dádiva de uma consciência ingênua.
tipo de imaginação que Bachelard chama de imaginação Em sua expressão, é uma linguagem jovem. O poeta na
“da mão feliz”, apresentamos a seguinte imagem: “’A ma- novidade de suas imagens é sempre origem de linguagem”
téria estava vencida, a natureza não era tão forte como (Bachelard conforme citado por Pessanha, 1994, p. 28).
ele’” (Phillipe conforme citado por Bachelard, 1948/2001,
p. 49). Por meio do seu trabalho o trabalhador vence a
matéria, unindo o seu devaneio à sua vontade de poder. 5. Aproximações entre Clínica Fenomenológica e
Esta imagem se refere a um operário que termina um Imaginação Poética
tamanco, mas fala de “(...) um sentimento de vitória con-
sumada proporcionada pela matéria domada no traba- Que contribuições a noção de imaginação poética –
lho” (Bachelard, 1948/2001, p. 49). Ela também mostra apresentada através desta reflexão – pode trazer para a
que o devaneio está subjacente a qualquer atividade hu- psicologia? A busca pela imaginação poética, da qual o
mana. Neste trabalho de fabricação manual do tamanco, devaneio é expressão, como fonte de referenciais huma-
o orgulho de realização acontece através do devaneio da nos para a psicologia é uma busca por um modo alterna-
Artigo

luta; a vitória da realização acontece através da vitória tivo aos estabelecidos segundo concepções cartesianas.
contra a adversidade da matéria. Esta é a forma de traba- O devaneio poético é uma possibilidade humana em que

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se vive plenamente o sentido de algo que vem ao nosso duo para si mesmo e fazer com que este se aproprie de seu
encontro. Sua vivência permite que nós nos apropriemos próprio mundo, libertando-o do que não lhe diz respeito.
de significados extremamente ricos e que dizem respeito
ao mundo que está ao nosso redor. Por imaginação, neste De um modo mais geral, compreende-se também todo
estudo, entende-se “imaginação criadora” no sentido do o interesse que há, acreditamos nós, em determinar
termo atribuído por Bachelard, e não pelo que se costu- uma fenomenologia do imaginário onde a imaginação
ma chamar de imaginação, segundo a referência usual é colocada no seu lugar, como princípio de excitação
que a considera um subproduto da memória. direta do devir psíquico. A imaginação tenta um fu-
A imaginação e o devaneio poéticos permitem uma turo. A princípio ela é um fator de imprudência que
ampliação de novas considerações sobre a imaginação e o nos afasta das pesadas estabilidades. Veremos que
sonhar de forma geral. Grafado na forma de imagem poé- certos devaneios poéticos são hipóteses de vida que
tica, o devaneio é preservado e pode assim ser comparti- alargam nossa vida dando confiança no universo (...).
lhado por outras pessoas. A imagem poética tem sentido Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que
ontológico e é apreendida pelo leitor acompanhada pelo é o nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos
sentimento de pertencimento. “Essa imagem que a leitura possibilidades de engrandecimento de nosso ser nesse
do poema nos oferece torna-se realmente nossa. Enraíza- universo que é o nosso. (Bachelard, 1960/1996, p. 8).
se em nós mesmos. Nós a recebemos, mas sentimos a im-
pressão de que teríamos podido criá-la, de que deveríamos Um estudo sobre a imaginação e o devaneio poéticos
tê-la criado” (Bachelard, 1957/2000, p. 7). poderá contribuir para o modo de estar na relação com
A leitura de um poema se dá pelas dinâmicas de re- o cliente, acompanhando-o na apropriação de si mes-
percussão, entendidas pelo modo como somos sensibili- mo, através da apropriação da sua capacidade de sonhar.
zados pela imagem poética e de ressonância, elaboração O interesse em refletir sobre a imaginação poética como
intelectual posterior que dá sentido ao poema. A resso- referência para o sonhar e a imaginação criadora se deu
nância é uma vivência superficial que contextualiza o po- também pelo fato de a poética ser uma linguagem possí-
ema. Na repercussão, o indivíduo se apropria do poema, vel na psicoterapia fenomenológica existencial, segundo
sentindo que seus significados lhe dizem respeito. A re- Pompéia e Sapienza (2004). A reflexão sobre a imagina-
percussão serve para o leitor como desvelamento de sen- ção poética apresentada por Gaston Bachelard possibili-
ta a compreensão teórica sobre a imaginação e o sonhar,
tido de sua própria existência, enquanto as ressonâncias,
e pode contribuir para ampliar a comunicação do psi-
como próprias da intelectualidade “(...) dispersam-se nos
cólogo que, ao se familiarizar com a linguagem poética,
diferentes planos da nossa vida no mundo” (Bachelard,
familiariza-se com uma linguagem compreensiva, pró-
1957/2000, p. 7) e produzem documentos psicológicos.
pria da psicoterapia.
Se considerarmos a fala escrita – na forma de imagem
poética – como gesto do outro, poderemos aproximar o
Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do
fenômeno da repercussão e da ressonância na compreen-
nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente da-
são de uma imagem poética da noção de Merleau-Ponty,
quelas coisas que já nos foram caras, que já foram coisas
o qual considera que a compreensão do gesto do outro
do coração, mas que perderam esse vínculo em função
acontece a partir da reciprocidade entre as intenções dos
de dificuldades de comunicação, tornando-se desgas-
outros e as minhas. Segundo Merleau-Ponty:
tadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura
através da linguagem poética, podemos reencontrá-las.
Tudo se passa como se a intenção do outro habitasse Quando isto acontece, encontramos uma verdade (Pom-
meu corpo ou se minhas intenções habitassem o péia & Sapienza, 2004, p. 161) (Grifo do autor).
seu. O gesto que testemunho desenha em pontilhado
um objeto intencional. Esse objeto torna-se atual e é Segundo apontamento de Pompéia e Sapienza (2004), a
plenamente compreendido quando os poderes de meu linguagem poética conduz o paciente a se encontrar con-
corpo se ajustam a ele e o recobrem (Merleau-Ponty, sigo mesmo, a conseguir significar, validando e dando
1945/1999, p. 251). sentido à sua vida. Boss ressalta que os pacientes libertos
para si mesmos têm suas possibilidades de ser e sua liber-
Bachelard ressalta que a psicologia limita-se a estu- dade recuperadas através do conhecimento de si mesmo,
dar a ressonância poética, buscando contextualizar o po- possibilitado e alimentado pela psicoterapia. As verdades
ema socioculturalmente e a partir da história de vida do encontradas durante a procura psicoterapêutica, que se
poeta. O autor defende que falta à psicologia um estudo dá através da linguagem poética, são compreensões liber-
sobre a repercussão poética e volta parte de sua obra às tadoras. O paciente esclarece e conta com novas possibi-
imagens poéticas que repercutem no leitor. Um estudo lidades de ser e pode, a partir delas, fazer suas escolhas
fenomenológico sobre a imaginação e sobre o devaneio de modo mais apropriado. A libertação do paciente para
Artigo

poético é importante, pois o devaneio, através da vivência suas próprias possibilidades de ser é a que a psicotera-
de repercussão de uma imagem, pode devolver o indiví- pia fenomenológica existencial se propõe, segundo Boss:

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 222


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

Como psicoterapeutas queremos, no fundo, libertar * Agradecemos ao Fundo de Amparo à Ciência e à Tecnologia do Esta-
do de Pernambuco (FACEPE) pela concessão de bolsa de Doutorado
nossos pacientes para si mesmos (...). Por isso, com
que nos permitiu a realização do presente artigo.
a libertação psicoterápica, queremos levar nossos
pacientes ‘apenas’ a aceitar suas possibilidades de
vida como próprias e a dispor delas livremente e com
Referências
responsabilidade. Isto quer dizer também, que nós
queremos que eles criem coragem de levar a termo Bachelard, G. (1996). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins
suas possibilidades de relacionamento co-humanos Fontes (Original publicado em 1960).
e sociais de acordo com sua consciência intrínseca
e não como uma pseudo-consciência imposta por Bachelard, G. (2000). A Poética do Espaço. São Paulo: Martins
Fontes (Original publicado em 1957).
qualquer um (Boss, 1972/1981, p. 61).
Bachelard, G. (2001). A Terra e os Devaneios da Vontade. São
A imaginação poética pode contribuir para a prática Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1948).
psicológica por oferecer imagens de rico significado hu-
Boss, M. (1981). Angústia, culpa e libertação (ensaios de psi-
mano para o psicólogo, e por deixá-lo mais sensível para
canálise existencial). São Paulo: Livraria Duas Cidades
compreender e legitimar os devaneios de seus pacientes. (Original publicado em 1972).
Estes, embora não escrevam sobre seus devaneios tornan-
do-os poemas escritos, devaneiam, por exemplo, ao lem- Merleau-Ponty, M (1999). Fenomenologia da Percepção. São
brar de sua infância e revivê-la, ou mesmo ao se entrega- Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1945).
rem a um momento contemplativo ou terem um insight. Pessanha, J. A. M. (1994). Introdução à coletânea póstuma de
No plano de contribuições para pensar uma clínica artigos de Gaston Bachelard. Em G. Bachelard, O Direito de
numa perspectiva fenomenológica existencial, as ima- Sonhar (pp. 5-31). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
gens poéticas podem ampliar as possibilidades compre-
ensivas do discurso do cliente. A poética é a linguagem Pompéia, J. A., & Sapienza, B. T. (2004). Na Presença do Sentido.
São Paulo: Paulus.
que mais possibilita e amplia a capacidade de compreen-
são, e por isso, é uma modalidade de linguagem possível Sá, R. N. (2009). Psicoterapia, cientificidade e interdisciplina-
na clínica fenomenológica existencial. Boss (1972/1981) ridade: a propósito de uma discussão sobre a suposta ne-
defende que as contribuições verdadeiramente impor- cessidade de uma regulamentação das práticas psicológi-
tantes da abordagem existencial para a prática clínica cas clínicas, Portal do Conselho Regional de Psicologia de
fundamentam-se na compreensão mais aprofundada da São Paulo [online]. Disponível na World Wide Web: http://
www.crpsp.org.br/psicoterapia/textos_6.aspx
existência humana e não em técnicas psicoterápicas.
As imagens poéticas, por serem do âmbito da compreen-
são, diferentemente dos conceitos que são do âmbito da
Rafael Auler de Almeida Prado - Mestre e Doutorando em Psico-
explicação, podem ser referências importantes para um logia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
terapeuta existencial. Email: rafaelpradoauler@gmail.com
O gesto humano de se comunicar, de buscar signifi- Marcus Tulio Caldas - Doutor em Psicologia pela Universidade de
cados de criar e alimentar seu mundo está plenamente Deusto-Espanha; Professor da Graduação e Pós-Graduação do Curso
contemplado pela leitura de uma imagem poética. Este de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
modo de se relacionar com a linguagem – a imaginação Email: marcus_tulio@uol.com.br
poética – nos volta para o sentido fundamental da lin- Karl Heinz Efken - Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade
guagem, que é criar e significar o mundo, estabelecendo Católica do Rio Grande do Sul; Professor e Coordenador do Curso
de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
uma relação viva consigo e com os outros. É prestando a
Email: khefken@hotmail.com
esta finalidade que a linguagem deixa de ser objeto reve-
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto - Doutora em Psicologia Clínica
lar-se como um modo de estar no mundo com os outros.
pela Universidade de São Paulo (USP). Professora e Coordenadora do
Um estudo sobre a imagem poética nos provoca, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade
entanto, uma sensação de insegurança que atribuímos Católica de Pernambuco (Unicap). Coordenadora do Laboratório em
ao seu caráter de não encerrar questões em conceitos, Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial- LACLIFE. Endereço
Institucional: Universidade Católica de Pernambuco, Centro de Ciên-
não permitindo, por exemplo, o estabelecimento de sa-
cias Biológicas e Saúde. Rua do Príncipe, 526 - Bloco B (Boa Vista).
beres fundamentais. Mas são os saberes infinitos sobre CEP 50050-410 - Recife/PE. Email: carmemluciabarreto@hotmail.com
o ser humano e sua condição que são ditos pela imagem
poética. É preciso aceitar a inesgotável possibilidade de
saberes como condição humana de inconclusividade.
Recebido em 16.10.12
O tipo de estudo que a imagem poética exige, apresenta
Primeira Decisão Editorial em 07.12.12
contribuições para pensar uma clínica fenomenológica
Aceito em 26.12.12
Artigo

existencial que não se apoia em conceitos estabelecidos


ou em categorias.

223 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012


Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto

AS PSICOPATOLOGIAS COMO DISTÚRBIOS DAS


FUNÇÕES DO SELF: UMA CONSTRUÇÃO TEÓRICA
NA ABORDAGEM GESTÁLTICA

Psychopathologies as Disorders of the Self Functions:


A Theoretical Construction in Gestalt Approach

Las Psicopatologías como Disturbios de las Funciones del Self:


Una Construcción Teorética en el Abordaje Gestáltica

Carlene M aria Dias Tenório

Resumo: Com o objetivo de compreender as psicopatologias com base no DSM-IV e na teoria de F. Perls, o processo de estrutu-
ração dos padrões neuróticos, psicóticos e antissociais é descrito a partir dos impasses existenciais, introjeções tóxicas e con-
flito interno dominador-dominado, que favorecem os distúrbios das fronteiras e funções do self responsáveis pelas dificuldades
do sujeito para se diferenciar dos outros, fazer contato pleno com estes, discriminar as demandas internas e externas e agir de
modo adequado ao atendimento das mesmas. Nesta perspectiva, supõe-se que, enquanto as psicoses são produzidas pela falên-
cia total das fronteiras e funções do self, as neuroses são geradas pelo distúrbio dessas fronteiras e funções, caracterizado pela
repetição crônica de interrupções do contato e comportamentos mal adaptativos, que constituem os transtornos de personalida-
de descritos pelo DSM-IV. Como resultado da articulação entre conceitos, pressupostos, critérios diagnósticos e evidências clí-
nicas são construídas proposições teóricas nas quais os transtornos de personalidade, com exceção do transtorno antissocial,
são entendidos como padrões neuróticos de funcionamento desencadeados por distorções primárias e secundárias, negativas e
positivas da percepção de “si mesmo” e do “outro”, podendo evoluir para transtornos psicóticos em situações de extremo estres-
se e vulnerabilidade das fronteiras e funções do self.
Palavras-chave: Psicopatologia; Distúrbio; Self; Abordagem gestáltica.

Abstract: In order to understand the psychopathology based on DSM-IV and the theory of F. Perls, the process of structuring
neurotic, psychotic and antisocial patterns is described from the existential dilemmas, toxic introjections and a dominator/
dominated internal conflict that favors boundaries disturbances and the functions of the “self” responsible for the difficulties
of the subject to differentiate itself from others; making full contact with them; discriminating between internal and external
demands and acting appropriately to meet them. From this perspective, it is assumed that, while psychoses are produced by the
total failure of boundaries and functions of the “self’, the neuroses are generated by the disturbance of these boundaries and
“self” functions, characterized by the chronic repetition of interruptions of contact and maladaptive behaviors, which consti-
tute personality disorders described by DSM-IV. As a result of the articulation between concepts, premises, diagnostic criteria
and clinical evidence, theoretical propositions are constructed in which personality disorders, except for the antisocial disor-
der, are perceived as neurotic patterns of functioning triggered by primary and secondary distortions, negative and positive of
perception of the “self” and the “other”, sometimes progressing to psychotic disorders in situations of extreme stress and vul-
nerability of boundaries and functions of the “self”.
Keywords: Psychopathology; Disorder; Self; Gestalt approach.

Resumen: Con el objetivo de comprender las psicopatologías con base en el DSM-IV y en la teoría de F. Perls, el proceso de es-
tructuración de los padrones neuróticos, psicóticos y antisociales es descrito a partir de los impasses existenciales, introyec-
ciones tóxicas y conflicto interno dominador/dominado, que favorecen los disturbios de las fronteras y funciones del self res-
ponsables por las dificultades del sujeto para diferenciarse de otros; hacer contacto pleno con estos; discriminar las demandas
internas y externas y actuar de modo adecuado al atendimiento de las mismas. En esta perspectiva, se supone que, mientras
las psicosis son producidas por la falencia total de las fronteras y funciones del self, las neurosis son generadas por el distur-
bio de esas fronteras y funciones, caracterizado por la repetición crónica de interrupciones del contacto y comportamientos
mal adaptativos, que constituyen los trastornos de personalidad descritos por el DSM-IV. Como resultado de la articulación
entre conceptos, presupuestos, criterios diagnósticos y evidencias clínicas son construidas proposiciones teóricas en las cua-
les los trastornos de personalidad, con excepción del trastorno antisocial, son entendidos como padrones neuróticos de fun-
cionamiento desencadenados por distorsiones primarias y secundarias, negativas y positivas de la percepción de “sí mismo” y
del “otro”, pudiendo evolucionar para trastornos psicóticos en situaciones de extremo estrés y vulnerabilidad de las fronteras
y funciones del self.
Palabras-claves: Psicopatología; Disturbio; Self; Abordaje gestáltica.
Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 224


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

Introdução em contato com alguma coisa, uma vez que o mesmo é


considerado como sendo a fronteira de contato organis-
Para Perls (1973/1981), todas as neuroses surgem da mo-meio em funcionamento.
incapacidade do indivíduo para encontrar e manter o Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o self se
equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo, e todas constitui na proporção em que existem diferenciação e
têm em comum o sentimento de que os limites do meio interação de limites organismo-meio, sendo, portanto, o
se estendem demais sobre si mesmo. O neurótico é o in- “si mesmo”, cuja vivência e manifestação se dão na fron-
divíduo sobre quem a sociedade influi demasiadamente teira de contato. Por isso, quanto maior e mais clara for
e suas interrupções de contato são manobras defensivas a diferenciação e a delimitação de fronteiras entre o “eu”
para protegê-lo contra a ameaça de ser barrado por um e o “outro”, que normalmente acontece em situações de
mundo esmagador; são estratégias criadas para manter tensão e conflito, mais claramente o self se fará presen-
seu equilíbrio em situações nas quais se vê impotente e te, atuando no meio de forma mais consciente, determi-
dominado pelo “outro”, acreditando que as probabilida- nada e agressiva, no sentido de recuperar seu equilíbrio.
des estão todas contra ele. Em síntese, na abordagem de Perls, o self é o “si mes-
De acordo com o DSM-IV, os transtornos de persona- mo”, tal como é vivido e percebido pelo sujeito no con-
lidade se caracterizam por traços de personalidade in- tato com o “outro” e consigo mesmo, sendo, portanto,
flexíveis e mal adaptativos, que causam sofrimento sub- um “eu” relacional, processual e consciente, que se for-
jetivo e prejuízo funcional significativo para o sujeito. ma e se transforma por meio de ajustamentos criativos,
O transtorno de personalidade antissocial é marcado enquanto pensa, sente e age na busca pela satisfação de
pelo desrespeito e violação das normas sociais e dos di- suas necessidades e atualização de suas potencialidades
reitos alheios, sem sentimento de culpa ou remorso por no campo organismo–meio.
parte do sujeito, por acreditar que não deve submeter- O ajustamento criativo como função essencial do self,
-se a ninguém, para não correr o risco de ser dominado. pode ser definido como sendo o processo pelo qual o self
Nos transtornos psicóticos, os pacientes evidenciam con- promove sua autorregulação, criando formas de satisfazer
fusão mental, pensamento e comportamento desorgani- suas necessidades de acordo com as condições do meio,
zados, com prejuízo no teste de realidade, manifestando ou transformando essas condições para adequá-las às
delírios e alucinações. próprias demandas e capacidades. “Dada a novidade e a
A hipótese que se defende neste trabalho é de que variedade indefinida do ambiente, nenhum ajustamento
os sintomas neuróticos ou psicóticos referentes aos seria possível somente por meio da autorregulação herda-
Transtornos Clínicos classificados no Eixo I do DSM- da e conservativa; o contato tem de ser uma transforma-
IV emergem como figura de um fundo constituído pelos ção criativa” (Perls et al., 1951/1997, p. 211).
transtornos de personalidade apresentados no Eixo II, Considerando que a transformação criativa do cam-
caracterizados por padrões rígidos de comportamento po só acontece se o contato entre organismo e meio for
mantidos pelos distúrbios das funções do self. pleno, o ajustamento, quando é feito através de contatos
interrompidos, deixa de ser criativo para se tornar con-
servativo, uma vez que, na interrupção do contato, as
1. Conceituação e Constituição do Self e da Perso- necessidades do organismo não são plenamente satis-
nalidade feitas, as condições do meio não são transformadas, di-
ficultando, assim, a autorrealização e o crescimento do
Com base nas elaborações de Perls sobre self e per- self, embora a preservação de sua estrutura seja garan-
sonalidade, compreende-se que o desenvolvimento e o tida. Desse modo, o ajustamento conservativo acontece
funcionamento saudável dos referidos sistemas depen- sempre que o self, na impossibilidade de transformar as
dem, essencialmente, da qualidade da relação, do conta- circunstâncias do meio, no sentido de promover sua au-
to que se estabelece com o “outro”, desde os primórdios torrealização, atua basicamente com o objetivo de garan-
da existência do indivíduo, uma vez que, para esse teó- tir sua sobrevivência e manter seu equilíbrio no nível em
rico, self e personalidade se constituem na fronteira en- que o ambiente permite, o que implica em abrir mão de
tre organismo e meio. seus verdadeiros objetivos e interesses, para adequar-se
Sobre isto, Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997) às exigências externas.
esclarecem que self é o sistema de contatos e de respostas Perls et al. (1951/1997) definem personalidade co-
em qualquer momento, diminuindo com o sono, quando -mo sendo o sistema de atitudes adotado nas relações
há menos necessidade de reagir. Sua atividade é formar interpessoais:
figuras e fundos e fazer ajustamentos criativos. Sendo
assim, onde há mais conflito, contato e figura/fundo, há (...) é a admissão do que somos, que serve de funda-
mais self; onde há mais confluência, isolamento ou equi- mento pelo qual poderíamos explicar nosso com-
Artigo

líbrio, há um self diminuído. Desse modo, o self não tem portamento, caso nos fosse pedida uma explicação.
consciência de si próprio abstratamente, mas quando está Quando o comportamento interpessoal é neurótico, a

225 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012


Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto

personalidade consiste em alguns conceitos errôneos sastrado e deveria ser mais cuidadoso, etc. (Tenório,
a respeito de nós próprios, introjetos, ideais de ego, 2003a; 2005).
máscaras, etc. (...) a Personalidade é uma espécie de Nestas condições, a personalidade se caracteriza por
estrutura de atitudes por nós compreendidas, que po- padrões rígidos de comportamento determinados por dois
dem ser empregadas em todo tipo de comportamento tipos de autoconceito, ambos introjetados e distorcidos,
interpessoal (pp. 187-188). um deles referente a um “eu” vivenciado como real (co-
varde, acomodado e desastrado) e o outro vinculado a
Sendo um sistema de atitudes adotado pelo sujeito, um “eu” encarado como ideal (corajoso, esforçado e cui-
que fundamenta a explicação deste sobre o próprio com- dadoso). Por terem sido originados pela internalização do
portamento, a personalidade corresponde à maneira par- “outro dominador”, tanto o “eu real” quanto o “eu ideal”
ticular de cada um ser no mundo, influenciando e sendo introjetados irão dominar e sabotar o “eu real” e o “eu
influenciada pela percepção que se tem de “si mesmo”, ideal” não introjetados construídos a partir de experiên-
que é construída pela “função personalidade” do self, cias, cujas significações e representações se basearam em
através da seleção e integração de experiências que se avaliações organísmicas. (Tenório, 2003b; 2005)
harmonizam com o autoconceito até então assumido pelo A “função id”, mesmo em sua plena atividade, é ca-
sujeito, fazendo com que as demais experiências sejam racterizada por uma percepção vaga do meio ambiente,
distorcidas, excluídas da consciência, ou colocadas fora prevalecendo as sensações proprioceptivas, que emergem
das fronteiras do self. como figura e produzem reações instantâneas, descom-
Além da “função personalidade”, Perls et al. (1951/ prometidas com as demandas externas. No pré-contato,
1997) afirmam que o self possui outras duas funções, “id” onde o self funciona através do “id”, suas fronteiras ain-
e “ego” que, juntamente com a “personalidade”, corres- da não foram totalmente reconstruídas, após serem dis-
pondem às etapas do processo de ajustamento criativo: solvidas na experiência recente de pleno envolvimento
pré-contato, contato e pós-contato. e troca com o “outro”, na fase final do contato com este.
Enquanto “id” e “ego” são funções de autorregulação, Nestas circunstâncias, o self assume características de
nas quais o self interage com o meio, em busca da satis- um “eu” frágil e incipiente, que se comporta de modo ir-
fação de suas necessidades, possibilitando uma cons- racional e irresponsável, incapaz de fazer ajustamentos
ciência vivenciada de “si mesmo”, a “personalidade” é criativos, dada a impossibilidade de perceber com clare-
uma função de seleção, integração, organização e sínte- za, avaliar, enfrentar e transformar deliberadamente seu
se de experiências vivenciadas na fronteira de contato, campo existencial, semelhante ao que acontece no dis-
propiciando o desenvolvimento de uma consciência re- túrbio da “função ego”.
presentada de self. É como se cada experiência de con- Com base nesse pressuposto, supõe-se que, nas neu-
tato – vivenciada em determinadas circunstâncias, nas roses, o “id” seja a função mais preservada, garantindo
quais o sujeito assume atitudes, enquanto desempenha a satisfação mínima das necessidades indispensáveis à
um papel (pai, filho, chefe, subordinado, salvador, víti- sobrevivência do self, uma vez que, nessa função, a prio-
ma, vilão, etc.) – fosse gerada e, ao mesmo tempo, gerasse ridade do self é garantir seu equilíbrio e sua integridade,
uma representação de “si mesmo”, ou seja, um “eu par- através de uma autorregulação herdada e conservativa,
cial”, que após ser integrado aos demais, irá fazer parte mantida por comportamentos reativos, automáticos e im-
de um “Eu total”, resultante da organização e síntese de pulsivos, nos quais é empregado o menor esforço possível,
vários “eus parciais”. É o “Eu total” que vai permanecer no sentido de reduzir as tensões vivenciadas no campo
no fundo, influenciando e sendo influenciado pelas ati- organismo-meio. No entanto, nas psicoses, a “função id”,
tudes do sujeito em cada situação e pelas representações como as demais funções do self, encontra-se totalmente
parciais de “si mesmo”. anulada, pois, devido ao rompimento das fronteiras, de-
Enquanto no funcionamento saudável, o “Eu total” sintegração e fragmentação do “Eu total” em seus diver-
está constantemente se reorganizando, a partir da inte- sos “eus parciais”, fica impossível manter o equilíbrio
gração de novos “eus parciais” referentes às novas ex- mínimo no mundo interno e externo, como também mi-
periências vivenciadas em circunstâncias diferentes, nimizar o sofrimento causado pela desorganização, con-
no funcionamento neurótico, onde acontece o distúrbio tradição e incoerência dos pensamentos, sentimentos e
da “função personalidade”, o “Eu total” tende a perma- comportamentos.
necer da mesma forma, pois, muitas experiências, que No exercício pleno da “função ego”, o self é vivenciado
não se harmonizam com sua configuração atual, são e se manifesta como um “eu” racional, ativo, determina-
negadas ou distorcidas, para que a integridade de sua do e consciente, com capacidade para fazer ajustamen-
estrutura seja preservada. Além disso, as representa- tos criativos, na medida em que estabelece claramente
ções parciais de self são construídas, principalmente, suas fronteiras, percebe as demandas do campo, escolhe
a partir de mensagens bionegativas introjetadas, como comportamentos mais apropriados para atendê-las, dis-
Artigo

por exemplo: sou covarde e deveria ser mais corajoso; criminando o que pertence a “si” e ao “outro”, o que é tó-
sou acomodado e deveria ser mais esforçado, sou de- xico e nutritivo ao seu organismo, para, em seguida, abrir

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 226


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

ou fechar suas fronteiras, aceitar (identificar) ou recusar Com relação ao processo de desenvolvimento da per-
(alienar) o que vem de fora, com o objetivo de promover sonalidade, Perls (1947/2002) entende que suas bases se
seu equilíbrio, sua autorrealização e seu crescimento. formam ao longo dos dois primeiros anos de vida, atra-
Esse é o funcionamento saudável, caracterizado pelo for- vés de estágios que se correlacionam com as etapas de
talecimento das fronteiras e da “função ego” do self, pelo nascimento dos dentes, uma vez que, para esse teórico, o
ajustamento criativo, pelo contato não interrompido com desenvolvimento da capacidade para morder, mastigar e
o “outro” e consigo mesmo. digerir o alimento, ou seja, para desestruturar, transfor-
Apesar da afirmação de Perls et al. (1951/1997) de que mar e assimilar o que é oferecido pelo meio, é de funda-
as neuroses resultam da perda da “função ego” do self, o mental importância para a constituição saudável do self
que se pretende mostrar aqui é que tal perda gera as psi- e da personalidade.
coses, enquanto o enfraquecimento ou o distúrbio dessa
função gera as neuroses, embora estas, em determina- Quero dizer que o alimento psicológico que nos ofe-
dos casos e circunstâncias, possam evoluir para as psi- rece o mundo externo – o alimento de fatos e atitudes
coses. Nesta perspectiva, supõe-se que os sintomas psi- sobre o qual se constroem as personalidades – tem que
cóticos podem ser desencadeados por intensos conflitos ser assimilado exatamente da mesma forma que nosso
responsáveis pela completa falência das fronteiras e das alimento real. Tem que ser desestruturado, analisado,
funções do self, que já se encontravam debilitadas pelas separado e, de novo, reunido sob a forma que nos será
introjeções tóxicas e consequente luta entre “eu domina- mais valiosa. Se for meramente engolido inteiro não
dor” e “eu dominado”. Sendo assim, todo psicótico seria, contribui para o desenvolvimento de nossas persona-
no fundo, um neurótico, mas nem todo neurótico seria lidades (Perls, 1973/1981, p. 47)
um psicótico, uma vez que a passagem do primeiro para
o segundo tipo de transtorno iria depender do nível de Neste sentido, o self e a personalidade se desenvolvem
vulnerabilidade das funções e das fronteiras do self, bem no contato com o “outro”, através de processos de ajus-
como da intensidade dos conflitos vivenciados tanto no tamentos criativos, nos quais a criança assume, gradati-
mundo interno quanto externo. vamente, uma postura mais consciente, ativa e indepen-
No distúrbio da “função ego”, que acontece nas neu- dente, na busca pela satisfação de suas necessidades e
roses, e na perda dessa função, que se dá nas psicoses, recuperação de seu equilíbrio no campo organismo-meio.
as fronteiras do “eu” estão enfraquecidas (neurose), ou No entanto, para que isto aconteça, é imprescindível
rompidas (psicose), desse modo, a consciência das dife- que os contatos mantidos com a criança sejam suficien-
renças e a capacidade para discriminar figura e fundo, temente saudáveis, para que ela possa se diferenciar do
“eu” e “outro” ficam diminuídas (neurose) ou ausentes “outro”, percebendo-se como ser único, que tem caracte-
(psicose), dificultando (neurose) ou impossibilitando (psi- rísticas, necessidades e limites próprios, com capacidade
cose) a formação e destruição de novas figuras. Com isto, para autorrealizar-se, transformando ou adaptando-se às
nas neuroses e nas psicoses, a mobilização do organis- condições do ambiente que lhe cerca.
mo é bloqueada ou desfocada, a ação e a interação com O contato saudável é compreendido aqui como um
o meio são inadequadas ou obsoletas, e o contato final é contato pleno e dialógico, que proporciona ao sujeito a
abortado, impossibilitando a satisfação da necessidade, experiência de ser respeitado e valorizado pelo “outro”
o fechamento da figura e a recuperação do equilíbrio no em sua singularidade, semelhante ao que é descrito por
campo organismo-meio. Hycner (1995) como “diálogo genuíno” inspirado na filo-
Desse modo, as figuras que ficam em aberto contami- sofia de Buber. Do ponto de vista dialógico, todo “eu” é
nam o campo perceptivo e fazem com que a situação do posterior à relação, pois é no diálogo com o “tu”, diferente
momento seja avaliada de modo incoerente com a reali- e separado do “eu”, que se constrói a noção de “si mesmo”
dade, uma vez que a significação da experiência vivida e do “outro”. Nesta perspectiva, a psicopatologia acontece
no aqui e agora é influenciada pelos impasses existen- quando o sujeito, em seus relacionamentos interpessoais,
ciais do passado, que permanecem mal resolvidos como não vivenciou, de modo suficiente, a experiência de ser
“microcampos” introjetados. Essa é a explicação para a confirmado pelo “outro” em sua alteridade.
percepção da realidade parcialmente distorcida nas neu- Na descrição de Perls (1947/2002) sobre o desenvol-
roses, que favorece a repetição de mecanismos de inter- vimento da personalidade, fica implícita a necessidade
rupção do contato, a fixação das fronteiras na abertura de se estabelecer contatos satisfatórios com a criança,
ou no fechamento e a manutenção de padrões rígidos de para que as fronteiras e as funções do self se constituam
comportamentos, que caracterizam os Transtornos da de forma plena. Isto não quer dizer que a criança, para
Personalidade. Também é a explicação para a percepção se desenvolver de forma saudável, deva crescer em um
da realidade totalmente distorcida nas psicoses, respon- ambiente totalmente permissivo, no entanto, é neces-
sável pela formação dos delírios e alucinações, através sário que, na relação com o “outro” mais significativo,
Artigo

da projeção no meio e nos outros dos introjetos tóxicos e prevaleça o contato pleno e dialógico, onde ambos se
dos aspectos alienados do self. coloquem de forma inteira e espontânea, respeitando-se

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mutuamente em suas diferenças, o que torna impossível faz com que os filhos sejam excessivamente cobrados,
uma relação sem renúncias, desafios, conflitos e ajusta- controlados e tolhidos completamente em sua liberdade
mentos criativos. Por outro lado, todo contato pressupõe e individualidade.
diferenciação e troca entre “eu” e “não eu”, que implica No entanto, esses contatos interrompidos e não dia-
numa consciência ampla de “si mesmo” e do “outro”, lógicos também acontecem quando os pais são extre-
mobilização em busca da satisfação mútua, através da mamente permissivos e indulgentes, com dificuldades
criação de estratégias, pelas quais ambos se modificam, para impor limites, submetendo-se aos filhos, por medo
adequando-se um ao outro. de frustrá-los e magoá-los. Nesse contexto, os filhos não
conseguem crescer emocionalmente, permanecendo com
(...) quando duas pessoas se encontram, inicia-se o baixa tolerância às frustrações e com medo de enfrentar
jogo do encontro (...). Assim, elas estão à procura de as adversidades do dia a dia. Esses pais, por serem ex-
um interesse comum, ou de um mundo em comum, tremamente imaturos ou problemáticos, não conseguem
onde passam repentinamente do eu e você para o nós. desempenhar suas funções adequadamente, tornando-se
Desta forma, surge um novo fenômeno, o nós, que é reféns dos próprios filhos. A fragilidade e a submissão
diferente do eu e você. (...) E quando nos encontramos, dos pais em relação aos filhos faz com que estes tenham
então eu mudo e você muda, através do processo de uma visão deturpada da realidade, interrompendo o con-
um encontro mútuo (Perls, 1969/1977, p. 21). tato com aspectos do self e do ambiente que entram em
contradição com suas fantasias e idealizações a respeito
Se a criança vivenciar, com frequência, a experiên- de si e do mundo.
cia de ser aceita e confirmada pelo “outro”, mais tar-
de ela poderá estabelecer um diálogo consigo mesma, No processo de crescimento existem duas escolhas.
mantendo contato com todos os aspectos do self, inclu- A criança pode crescer e aprender a superar frustra-
sive com aqueles que, aparentemente, são ameaçado- ções, ou pode ser mimada de forma a receber tudo
res, favorecendo, assim, seu funcionamento saudável. o que quiser, porque a criança deve ter tudo o que o
Se ela tiver que ser como os “outros” desejam que ela papai nunca teve, ou porque os pais não sabem como
seja, tendo que negar suas diferenças, para não entrar frustrar os filhos. (...) Sem frustração não existe ne-
em conflito com eles, ao invés de uma diferenciação, cessidade, não existe razão para mobilizar os próprios
haverá uma confluência com os mesmos, comprome- recursos, para descobrir a própria capacidade para
tendo a constituição plena das fronteiras e das funções fazer alguma coisa e, a fim de não se frustrar, que é
do self. “Todo indivíduo, toda planta, todo animal tem uma experiência muito dolorosa, a criança aprende
apenas um objetivo inato – realizar-se naquilo que é” a manipular o ambiente. (Perls, 1969/1977, pp. 54-55)
(Perls, 1969/1977, p. 52).
Nos relacionamentos em que os pais frustram, repri-
mem e controlam excessivamente os filhos, a vulnera-
2. Constituição e Caracterização das Psicopatologias bilidade das fronteiras da criança, que ainda estão em
formação, favorece a introjeção de mensagens nocivas e
O contato interrompido e não dialógico, ao contrário irrealistas a respeito de “si mesma”, responsável por uma
do contato pleno e dialógico, se caracteriza por um tipo de distorção “negativa” da autoimagem, na qual ela passa a
relação dominador-dominado, onde as pessoas assumem se perceber como culpada, má e inadequada. Essa distor-
atitudes impositivas ou subservientes diante da outra. ção “negativa” também acontece quando a criança é ex-
Nesse contexto, existe uma grande diferenciação e sepa- tremamente protegida. A superproteção dos pais reforça
ração mantidas por fronteiras impermeáveis ou fechadas a fragilidade e a inferioridade do filho, fazendo com que
do lado impositivo e dominante, e uma indiferenciação ele, apesar do avanço de sua idade, continue se perceben-
e confluência mantidas por fronteiras muito permeáveis do como incapaz de conduzir a própria vida. É essa dis-
ou abertas do lado subserviente e dominado, dificultan- torção “negativa” da autoimagem que vai gerar os senti-
do o encontro e a troca entre os dois e favorecendo o de- mentos crônicos de impotência e menos valia típicos do
senvolvimento das psicopatologias. funcionamento neurótico.
Na relação entre pais e filhos é comum acontecer No contexto familiar em que os filhos são superva-
contatos interrompidos e não dialógicos, principalmen- lorizados, a imaturidade das fronteiras do self favorece
te quando os pais são demasiadamente rígidos e autori- a introjeção de mensagens de engrandecimento irreal,
tários. Nesses casos, os pais não conseguem perceber as responsável por uma distorção “positiva” da autoima-
reais capacidades e necessidades dos filhos, assumin- gem, na qual a criança passa a se perceber como alguém
do atitudes extremamente dominadoras, caracterizadas especial, dificultando suas relações interpessoais, uma
pela imposição arbitrária de regras e limites, motivados vez que, como defesa, procura se manter fechada, por
Artigo

pela necessidade de criarem indivíduos perfeitos, como medo de ser desmascarada pelo “outro” e confrontada
eles mesmos gostariam, mas não conseguiram ser. Isto com as próprias limitações, ou por não ter interesse em

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 228


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

aprofundar a relação com esse “outro”, por considerá-lo gens induzidas pela fragilidade e impotência do adulto:
desagradável, insignificante ou inferior. eu tenho que ser forte; eu tenho que me controlar; eu não
Diante das reflexões feitas até o momento, percebe- posso falhar; eu tenho que me virar sozinha (ideal intro-
-se que, enquanto o funcionamento saudável é promovi- jetado, que vai funcionar como dominador no neurótico
do pela vivência de contatos plenos e dialógicos com o com traços obsessivo-compulsivos). Ela também pode in-
“outro”, o adoecimento psicológico tem como base a ex- trojetar mensagens como essas: eu sou especial; eu sou
periência intensa e frequente de contatos interrompidos melhor que os outros; eu mereço ter tudo que quero (real
e não dialógicos, nos quais são introjetados conceitos, va- introjetado, que vai atuar como dominador no neurótico
lores, normas e exigências impostas arbitrariamente pelo com traços narcisistas).
“outro” de grande significação afetiva para o indivíduo, São esses “eus introjetados” (real e ideal) que irão
propiciando a internalização do conflito “dominador-do- funcionar como “eu dominador”. Na tentativa de mini-
minado”, como explica Perls (1975/1977): mizar o conflito interno gerado pelas incoerências en-
tre as experiências vividas (“eu dominado”) e as repre-
O potencial humano é diminuído tanto pelas ordens sentações deturpadas de si mesmo (“eu dominador”), o
não apropriadas da sociedade, como pelo conflito neurótico interrompe o contato com o “outro” e consi-
interno. A parábola de Freud sobre as duas serventes go mesmo de forma crônica e obsoleta. Ao interromper
brigando, resultando em ineficiência é, na minha o contato como o “outro”, ele perde a oportunidade de
opinião, novamente uma meia verdade. Realmente são assimilar o novo e transformar o campo, bloqueando,
os patrões que brigam. (...) Na minha linguagem, eu assim, sua autorrealização e seu crescimento. Na inter-
chamo os patrões que brigam de dominador (topdog) rupção do contato consigo mesmo, o neurótico desco-
e dominado (underdog). A batalha entre os dois é nhece, nega ou distorce algumas de suas experiências
tanto interna quanto externa. O dominador pode ser e características que, embora sejam inerentes a “si mes-
descrito como exigente, punitivo, autoritário e primi- mo” (eu dominado), são incompatíveis com os introjetos
tivo. (...) Integração e cura só podem ser conseguidas tóxicos (eu dominador).
quando a necessidade de controle entre dominador e O “eu dominador” é um tirano implacável e exigente,
dominado cessa (pp. 24-25). cujas imposições, quase sempre, emergem como figura,
sobrepondo-se às demandas do “eu dominado”, as quais
Conforme foi abordado anteriormente, é no contexto permanecem no fundo. No entanto, podem existir mo-
familiar autoritário e controlador, que a criança viven- mentos de extrema tensão, em que as necessidades do
cia o conflito “dominador–dominado”, que ao ser inter- “eu dominado” se tornam urgentes e atingem o primei-
nalizado, irá produzir as neuroses. Esse conflito é, para ro plano da consciência fazendo com que este se rebele
criança, um verdadeiro impasse existencial, no qual ela contra seu “dominador” e, apesar de sua timidez e fragi-
vivencia uma situação que é, ao mesmo tempo, intolerável lidade, consiga assumir o poder, satisfazendo seus dese-
e inevitável. Sentindo-se totalmente dependente e impo- jos, através de atitudes ousadas, impulsivas e inconse-
tente diante de seu “dominador”, a criança se vê obrigada quentes, que são, muitas vezes, incoerentes com os valo-
a fazer o que é exigido por este, embora seja incompatível res e normas da sociedade, como acontece com algumas
com seus interesses, para evitar a possibilidade de ser pu- pessoas que manifestam comportamentos extremamen-
nida, ou abandonada por ele. Nesta situação, ela não en- te descontrolados, imaturos, ou caracteristicamente an-
contra outra saída a não ser submeter-se completamente tissociais. É assim que, no processo de autorregulação
às vontades do “dominador”, abrindo mão daquilo que é organísmica, a “função ego” enfraquecida pelo conflito
essencial à sua autorrealização, o que favorece a intro- “dominador-dominado”, perde sua capacidade de fazer
jeção de mensagens bionegativas, tais como: eu não sou ajustamentos criativos, cedendo espaço para a “função
boa o suficiente; eu faço tudo errado; eu sou culpada (real id”, que em casos de emergência assume, naturalmente,
introjetado); “eu tenho que ser melhor, mais obediente, o controle da situação.
controlada e cuidadosa” (ideal introjetado), que irão fa- No processo de constituição das psicoses, como foi
vorecer o desenvolvimento das neuroses caracterizadas explicado antes, a extrema fragilidade das fronteiras e
por comportamentos dependentes, tímidos, retraídos, da “função ego” do self, causada pelo intenso conflito
exigentes, perfeccionistas e ansiosos. dominador-dominado vivenciado no mundo tanto exter-
No contexto indulgente e permissivo, o conflito e o no, quanto interno, faz com que o “Eu total” perca sua
impasse existencial é vivenciado pela criança, na medi- unidade, fragmentando-se em vários “eus” desconecta-
da em que ela precisa ser protegida, orientada e contida dos um do outro e em constante luta entre si, produzin-
pelo “outro”, mas percebe que esse “outro” não é forte, do pensamentos e sentimentos opostos, que se alternam
seguro, ou maduro o suficiente para lhe dar proteção e e mudam rapidamente. Isto faz com que as figuras, re-
orientação, deixando de colocar os limites indispensáveis ferentes às prioridades do self, não se destaquem intei-
Artigo

à sua segurança e crescimento. Ao se sentir totalmente ramente do fundo, nem permaneçam o tempo suficiente
insegura e desamparada, a criança introjeta as mensa- para que sejam completadas. Sendo o fundo constituído

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por figuras inacabadas, conflitos mal resolvidos e intro- Conforme descrição do DSM-IV, no Transtorno da
jetos tóxicos desintegrados da totalidade do self, as novas Personalidade Borderline também é marcante o senti-
figuras são contaminadas pelas experiências vivencia- mento de vazio crônico e de dependência em relação ao
das anteriormente e pelas polaridades alienadas de “si “outro”, produzido por uma percepção de “si mesmo”
mesmo”, fazendo com que a percepção do campo atual como alguém sem valor e incapaz de sobreviver por con-
seja completamente distorcida, desencadeando delírios ta própria. A diferença é que no Borderline existe uma
e alucinações. grande instabilidade e impulsividade emocional, na qual
Quanto ao processo de constituição das neuroses, é o sujeito valoriza e ama intensamente o “outro”, mas, de
importante enfatizar que o enfraquecimento das frontei- uma hora para outra, o despreza e o odeia com a mesma
ras e da função “ego” do self faz com que as interrupções intensidade. Essa instabilidade está relacionada à alter-
do contato se tornem padrões rígidos de funcionamen- nância de fortes sentimentos de satisfação e frustração,
to, ou ajustamentos conservativos, caracterizados pelas acolhimento e abandono, vivenciados na relação com o
tendências para fixação das fronteiras na abertura ou no “outro”, com quem mantém ligação afetiva. Outro aspec-
fechamento. Nessas duas formas de fixação, os sentimen- to desse tipo de transtorno é a automutilação recorrente,
tos de “menos valia” e impotência, sejam como figura ou utilizada como forma de manipulação, e a fragilidade
fundo, favorecem a aproximação, confiança e aceitação acentuada do sentimento de self.
do “outro”, ou o afastamento, desconfiança e rejeição Tanto no Transtorno Borderline quanto no Transtorno
deste. Sendo assim, enquanto no funcionamento fixado Dependente, o indivíduo manifesta medo do abandono,
na abertura o “outro” é visto como sendo essencialmente mas o “borderline” reage a esse abandono com raiva e exi-
bom e confiável, representando a possibilidade de equi- gências, ao passo que o “dependente” reage com crescen-
líbrio, satisfação, vantagem e bem estar, no fechamento te humildade e submissão, buscando urgentemente um
crônico das fronteiras do self, o “outro” é encarado como novo relacionamento que lhe dê a segurança e o apoio
sendo essencialmente mau e traiçoeiro, com grande pro- que ele tanto necessita. Os indivíduos com Transtorno
babilidade de lhe proporcionar desequilíbrio, frustração, da Personalidade Histriônica, como no Transtorno da
desvantagem e mal estar. Personalidade Dependente têm uma forte necessidade de
Os neuróticos com fixação de suas fronteiras na aber- amparo e aprovação, podendo parecer infantis e demasia-
tura, portanto, acreditam que podem ter uma vida mais damente apegados. Entretanto, enquanto o “dependente”
tranquila e prazerosa, na medida em que conseguirem se caracteriza por uma autoanulação e comportamento
conquistar a confiança, o respeito e o apoio dos outros, dócil, o “histriônico” se caracteriza pela exuberância,
procurando, compulsivamente, atender às expectativas com exigência ativa de atenção.
destes. Devido ao sentimento de menos valia, fragilida- Com relação aos padrões fixados no fechamento das
de e impotência em relação à maioria das pessoas, esse fronteiras do self, é necessário esclarecer que eles se ca-
tipo de neurótico costuma desenvolver estratégias de racterizam por três tipos de funcionamento gerados por
sedução e manipulação, desempenhando papéis (bon- três formas de distorção da autoimagem: negativa, posi-
zinho, coitadinho, certinho, etc.), que facilitem o reco- tiva primária e positiva secundária, associadas à percep-
nhecimento e o acolhimento por parte daqueles com os ção do “outro” como alguém que é potencialmente mau
quais convive diariamente. Essas características neuró- e traiçoeiro, ou essencialmente insignificante e culpado,
ticas correspondem à descrição feita pelo DSM-IV dos por isso, merece sofrer.
Transtornos da Personalidade Dependente, Borderline O primeiro tipo de fixação no fechamento se correla-
e Histriônica. ciona com o Transtorno de Personalidade Esquiva e tem
como base uma distorção “negativa” da autoimagem, na
A característica essencial do Transtorno da Perso- qual a pessoa se sente frágil, inferior e impotente em re-
nalidade Dependente é uma necessidade invasiva de lação aos outros, os quais são percebidos como ameaçado-
ser cuidado, que leva a um comportamento submisso res, precisando, portanto, se proteger ou evitar o contato
e aderente e ao medo da separação. (...) Os compor- com eles. O segundo tipo de fixação no fechamento das
tamentos dependentes e submissos visam a obter fronteiras do self se desenvolve a partir de uma distorção
atenção e cuidados e surgem de uma percepção de si “positiva primária” da autoimagem, correspondendo ao
mesmo como incapaz de funcionar adequadamente “padrão egotista” de comportamento, tal como é defini-
sem o auxílio de outras pessoas. (...) Como temem do e descrito pela abordagem gestáltica, que se correla-
perder o apoio ou aprovação, muitas vezes têm difi- ciona com os Transtornos da Personalidade Narcisista e
culdade em expressar discordância de outras pessoas, Antissocial nos aspectos referentes à tendência do indiví-
especialmente aquelas das quais dependem. (...) Eles duo para ser egocêntrico, volúvel, superficial, explorador,
não ficam zangados, quando seria adequado, com as arrogante, prepotente, insensível e destituído de empatia.
pessoas cujo apoio e atenção necessitam, por medo Segundo Dias (1994), o “egotista” tem uma autocons-
Artigo

de afastá-las (American Psychiatric Association, ciência exacerbada, isto é, ele costuma vigiar excessiva-
1995, p. 627). mente suas fronteiras, selecionando criteriosamente tudo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 230


A Linguagem Poética e a Clínica Fenomenológica Existencial: Aproximação a Partir de Gaston Bachelard

que entra e sai de seu sistema, com medo de se entregar tomadas ao sabor do momento, de maneira impensada,
afetivamente ao “outro” e ser dominado ou sufocado por sem considerar as consequências para si mesmos ou
este. Nestas circunstâncias, como forma de defesa, ele para outros. (...) tendem a ser irritáveis ou agressivos
mantém suas fronteiras fixadas no fechamento, inter- e podem repetidamente entrar em lutas corporais ou
rompendo seus contatos, através de mecanismos como a cometer atos de agressão física (...) tendem a ser consis-
retroflexão e a projeção, permanecendo emocionalmente tente e extremamente irresponsáveis. (...) demonstram
isolado em relação à maioria das pessoas, uma vez que pouco remorso pela consequência de seus atos. (...)
sempre conta com a possibilidade de ser traído, invadi- podem acreditar que todo mundo está aí para “ajudar
do ou abusado em seus relacionamentos. Além disso, o o número um” e que não se deve respeitar nada nem
“egotista” constrói e se mantém fixado a uma imagem ninguém para não ser dominado (American Psychia-
idealizada de “si mesmo”, alimentando um falso despre- tric Association, 1995, pp. 656-657).
zo pelo “outro”, enquanto o “eu” é ilusoriamente enalte-
cido pela aquisição de características irreais de extremo O medo de ser dominado confirma a hipótese de que
valor, capacidade e poder. o Transtorno Antissocial se constitui em um contexto
Dessa maneira, tanto os “narcisistas”, quanto os “an- familiar autoritário, controlador e frustrador, propi-
tissociais” podem ser considerados pessoas “egotistas”, na ciando a distorção “positiva secundária” da autoima-
medida em que funcionam como crianças egocêntricas, gem como forma de defesa contra os sentimentos de
mimadas e sem limites, que só se preocupam com a sa- inferioridade, vulnerabilidade e impotência produzi-
tisfação de seus próprios desejos, sem levar em considera- dos por situações de impasses existenciais e de confli-
ção as condições e as demandas do meio. No Transtorno to “dominador-dominado”, que favorecem a introjeção
Narcisista da Personalidade, embora o sujeito dependa de mensagens bionegativas e a fixação das fronteiras
do “outro” para ter a confirmação de seu próprio valor, do self na abertura.
promovendo, assim, sua satisfação e seu equilíbrio, essa Embora em alguns casos, o “antissocial”, ou o “per-
dependência é frequentemente negada. O narcisista, como verso”, no fundo, possa se sentir inferior, vulnerável e
todo neurótico, no fundo, se sente menor e menos capaz impotente, o que emerge como figura são sentimentos de
que o “outro”, mas, por conta da desconfiança, medo ou superioridade, força e poder gerados pela identificação
desprezo em relação a este, ele controla a aproximação e com seu “dominador”. A suposição é de que, apesar des-
o envolvimento com a maioria das pessoas, para não cor- se indivíduo, durante uma parte de sua infância, ter ali-
rer o risco de revelar e encarar suas próprias limitações, mentado a ilusão de que sua segurança e seu bem-estar
ameaçando seu “eu idealizado” construído por uma dis- poderiam ser alcançados através do contato afetivo com
torção “positiva primária” da autoimagem. o “outro dominador”, a partir de uma determinada fase
No terceiro tipo de fixação no fechamento, desenvol- de sua vida, devido às várias experiências de abuso e vi-
vido através de uma distorção “positiva secundária” da timização produzidas por esse “outro”, ele desiste dessa
autoimagem, o indivíduo “egotista”, além de manifestar ideia e começa a lutar pelo completo afastamento emo-
os traços que caracterizam o segundo tipo, que é essen- cional em relação aos “outros” em geral, para não correr
cialmente narcisista, sua personalidade também eviden- o risco de ser abusado novamente.
cia aspectos que, provavelmente, foram desencadeados Por esse motivo, é coerente dizer que o “antissocial”
pelas experiências de abuso e vitimização vivenciadas pode ser, no fundo, um neurótico que encontrou um jei-
na infância ou adolescência, os quais correspondem aos to de não permanecer no papel humilhante e sofrido de
critérios para o diagnóstico diferencial do Transtorno “dominado”, identificando-se com seu “dominador” e
da Personalidade Antissocial em relação ao Transtorno reproduzindo o comportamento deste em suas relações
Narcisista: dificuldade para adequar-se às normas so- interpessoais. Por outro lado, certos neuróticos, podem
ciais, propensão para enganar ou ludibriar os outros para ser encarados como “perversos” disfarçados de “coitadi-
obter vantagens pessoais, impulsividade, agressividade, nhos”, “bonzinhos” ou “certinhos”, pois, embora, muitas
irresponsabilidade consistente e ausência de remorso. vezes, sinta inveja e raiva dos outros, não têm coragem
Como se pode perceber, a personalidade antissocial, suficiente para enfrentá-los, desenvolvendo formas indi-
psicopata ou perversa, embora compartilhe alguns as- retas e camufladas de obter vantagens sobre eles.
pectos com a personalidade “narcisista”, o indivíduo A distorção “positiva secundária” da autoimagem, no
“antissocial” se diferencia basicamente pela autoestima entanto, também pode ser responsável pelo desenvolvi-
fortalecida, pela raiva e agressividade, com necessidade mento de outros padrões de funcionamento fixados no fe-
de controlar e dominar os outros, para não correr o risco chamento, como aqueles que evidenciam um sentimento
de ser controlado e dominado por eles. de desconfiança e suspeita em relação aos outros, aponta-
do como um dos critérios diagnósticos para o Transtorno
Os indivíduos com este transtorno não se conformam da Personalidade Paranóide e aqueles que se caracterizam
Artigo

às normas pertinentes (...) (...) desrespeitam os desejos, pela extrema necessidade de controle e perfeição encon-
direitos ou sentimentos alheios. (...) As decisões são trada no Transtorno Obsessivo-compulsivo.

231 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012


Rafael A. A. Prado; Marcus T. Caldas; Karl H. Efken & Carmem L. B. T. Barreto

Considerações finais Perls, F. S. (1977). Gestalt-Terapia e Potencialidades Humanas.


Em John O. Stevens (Org.), Isto é Gestalt (pp. 19-27). São
Neste trabalho foi descrito o processo de formação das Paulo: Summus (Original publicado em 1975).
psicopatologias numa perspectiva gestáltica, concluindo- Perls, F. S. (1977). Gestalt-Terapia Explicada. São Paulo: Summus
-se que os funcionamentos neurótico, psicótico e antis- (Original publicado em 1969).
social se desenvolvem a partir da vulnerabilidade ou de-
sintegração do “eu”, favorecida pela vivência de impasses Perls, F. S. (1981). Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular
da Terapia. Rio de Janeiro: Zahar Editores (Original publi-
existenciais e pela internalização de mensagens bionega-
cado em 1973).
tivas, que propiciam a distorção da percepção interna e
externa, a utilização crônica de interrupções do contato Perls, F. S. (2002). Ego, Fome e Agressão: uma revisão da teoria
e a fixação das fronteiras na abertura ou no fechamento, e do método de Freud. São Paulo: Summus (Original pu-
como forma de ajustamento conservativo. blicado em 1947).
Em síntese, nas psicoses, a grande tensão gerada pelo Perls, F. S., Hefferline, R., & Goodman, P. (1997). Gestalt-Terapia.
conflito “dominador-dominado” gera a desintegração do São Paulo: Summus (Original publicado em 1951).
self, como consequência da falência total de suas fron-
teiras e funções, impossibilitando a diferenciação entre Tenório, C. M. D. (2003a). Os Transtornos da Personalidade
figura e fundo, fantasia e realidade, “eu” e “tu”. No neu- Histriônica e Obsessivo-Compulsiva na Perspectiva da
Gestalt-Terapia e da Teoria de Fairbairn. Tese de Doutorado,
rótico, essa tensão acontece em grau menor, produzindo
Universidade de Brasília, Brasília.
o enfraquecimento das fronteiras e o distúrbio das fun-
ções do self, responsável pela criação e cristalização de Tenório, C. M. D. (2003b). O Conceito de Neurose em Gestalt-
interrupções de contato, na tentativa de minimizar o so- Terapia. Revista Universitas Ciências da Saúde, 1(2),
frimento imposto pelo “dominador” nos mundos interno 239-251.
e externo. No antissocial, a mesma tensão gera a explo- Tenório, C. M. D. (2005). O Self eu o Eu nos Transtornos
são, ou a revanche do “dominado” contra seu “domina- Histriônico e Obsessivo-Compulsivo da Personalidade.
dor”, na qual ele, enquanto vítima, se identifica com seu Anais do XI Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica,
agressor, tornando os outros reféns de seu egoísmo, frie- pp. 187-199.
za, arrogância, prepotência e raiva.

Carlene Maria Dias Tenório - Psicóloga graduada pela Universidade


Referências Federal do Ceará (UFC), Especialista em Gestalt-Terapia, Mestre
e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília
(UnB), Professora do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)
American Psychiatric Association (1995). DSM-IV, Manual e membro efetivo do corpo docente do Instituto de Gestalt-Terapia
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed. de Brasília (IGTB). Endereço Institucional: SEPN 707/907, Campus
Revisada). Porto Alegre: Artes Médicas. do UniCEUB, 70790-075, Brasília-DF - Fone: (61) 3340.1046 E-mail:
carlenedtenorio@yahoo.com.br
Dias, C. M. A. (1994). Os distúrbios da fronteira de contato: Um
estudo teórico em Gestalt-Terapia. Dissertação de Mestrado,
Universidade de Brasília, Brasília.
Recebido em 18.09.11
Hycner, R. (1995). De Pessoa a Pessoa: psicoterapia dialógica. Primeira Decisão Editorial em 03.01.12
São Paulo: Summus. Segunda Decisão Editorial em 14.12.12
Artigo

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012 232


Textos clássicos ................
Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

TEXTOS CLÁSSICOS

EDMUND HUSSERL E OS FUNDAMENTOS DE SUA FILOSOFIA1

Marvin Farber

(1940)

Nenhum assunto na filosofia recente alcança a con- to valioso que, sem dúvida, enriquecerá e modificará o
fiança suprema com a qual Husserl anunciou o começo entendimento sobre o método fenomenológico. Assim, a
triunfante de uma nova ciência da filosofia, uma discipli- recente publicação de Husserl, Erfahrung und Urteil4 tor-
na “absoluta” alcançada através de um método cuidadosa- nou-se reveladora, acrescentando muito ao entendimento
mente elaborado. Essa ciência era muito avançada, assim sobre a sua filosofia da lógica. Por essa razão, é correto
como os resultados realmente positivos dos esforços filo- afirmar que Husserl publicou o suficiente para favorecer
sóficos da época. De fato, os filósofos que o antecederam uma justa apreciação de sua filosofia, estabelecendo um
foram classificados por Husserl como não corresponden- ponto de partida para trabalhos futuros bastante frutífe-
tes aos ideais da fenomenologia. Reside aí algo de admi- ros em conjunto com linhas fenomenológicas.
rável e heroico sobre o tom de Husserl e sua opinião não Para tanto, é necessário analisar sua filosofia de ma-
precipitadamente avançada. Mais de cinquenta anos de neira objetiva, sem um pensamento restrito ou vínculos
reflexões consecutivas e trabalho incessante, que resul- teóricos pessoais. Isso significa que é preciso estar prepa-
taram em numerosos exemplos de análises descritivas, rado para reconhecer avanços positivos feitos por Husserl
justificam a necessidade de saudar suas reivindicações, na filosofia e em ciências distantes como a psicologia,
ouvindo com atenção seus argumentos. O pensamento além de empenhar-se para apurar se todos os elementos
e as contribuições de um dos mais argutos e completos do seu pensamento são coerentes com seus preceitos de-
filósofos do último século merecem uma atenção bem clarados. Um interesse especial é a forma final do idea-
maior do que a que tem recebido. Considerar seu trabalho lismo representado pelo último sistema de fenomenolo-
é necessário em razão da insistência de Husserl de que gia transcendental, o qual revela os limites, bem como os
sua filosofia ainda é desconhecida2 e de seus repetidos méritos, do modo subjetivo do procedimento filosófico.
protestos por ser mal interpretado. O fato de que Husserl A atenção renovada ao método na filosofia torna a aná-
raramente responde seus críticos tem dificultado ainda lise da fenomenologia bastante pertinente; sendo assim
mais a compreensão do público filosófico em geral sobre o grande desenvolvimento da teoria lógica é necessária
a relevância de seu trabalho. Para muitos ele era firme para colocar a fenomenologia em conexão com esta, pre-
demais, não importando críticas a favor ou contra, o que vendo possíveis reações mútuas. Atenção especial deve
acabou gerando interpretações errôneas. Publicações im- ser dada às contribuições lógicas de Husserl, por serem
portantes feitas nos últimos anos de sua vida incluíram muito significativas considerando-se as dúvidas e difi-
duas respostas a esses críticos, sendo que foram as únicas culdades análogas aos problemas existentes na época das
mais elaboradas desde sua resposta a Palagyi em 1903. Investigações Lógicas5.
Agora é possível analisar e apreciar a filosofia fenome-
nológica mesmo que muitos manuscritos nunca tenham ou simplesmente Husserliana, que contém a série principal de
suas obras, manuscritos e inéditos, constantes na Husserl-Archives
sido publicados3. Estes textos contêm um material mui- Leuven. Atualmente, a coleção conta com 41 volumes já editados
(N. do. E.).
1
Título original: “Edmund Husserl and the Background of his Phi- 4
Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik, ou
losophy”, publicado na revista Philosophy and Phenomenological Experiência e Juízo. Estudos sobre a Genealogia da Lógica, inédita
Research, Vol. 1, Nr.1, p. 1-20 (1940), editada pela International em português. A primeira impressão desse texto se deu logo após a
TextosClássicos

Phenomenological Society. As notas do autor foram aqui mantidas, morte de Husserl, em 1938, tendo sido editada em Praga. Contudo,
na mesma ordem e numeração do texto original. As notas explica- com a anexação da Tchecoslováquia à Alemanha Nazista, houve
tivas acrescidas pelo Editor estão em formato alfabético, para não significativo prejuízo na divulgação dessa obra. Foi organizada
interferir no texto original. finalmente em 1948, por Ludwig Landgrebe (Nota do Editor).
2
Cf. E. Fink. “Was will die Phanomenologie Edmund Husserls?” Die 5
Logische Untersuchungen. Zweite Teil: Untersuchungen zur Phäno-
Tatwelt, 1934, p. 15. menologie und Theorie der Erkenntnis, publicado originalmente em
3
É importante assinalar que, desde a publicação original desse tex- 1901 (Primeiro Volume.). O segundo volume foi publicado poste-
to, muitos manuscritos husserlianos foram publicados na coleção riormente (Ver Nota 8 desse texto). No Brasil, a primeira tradução
conhecida como Husserliana: Edmund Husserl Gesammelte Werke desse texto se deu em 1976, na forma da “Sexta Investigação”, e

235 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012


Marvin Farber

Assim como o enigma proposto pelo pensamento de da contradição e função geral das concepções sobre o co-
Husserl, e que pode ser melhor solucionado aproximan- nhecimento. De acordo com Lipps, a derivação genética
do-se do seu desenvolvimento, este artigo enfatiza algu- das leis básicas do conhecimento depreendida dos fatos
mas das influências que antecederam seu pensamento originais da vida física eram idênticas às suas fundações
e pontua as fases de seu trabalho. Não será possível fa- “epistemológicas”, em outras palavras, a teoria do conhe-
zer jus a todas essas influências: Husserl deriva de uma cimento seria uma ramificação da psicologia. Há que se
história inteira da filosofia e, sem dúvida, deve muito e reconhecer, assinala Natorp, que fatos psíquicos são re-
indiretamente a todos os pensadores que nunca foram presentados nas leis do conhecimento, e esses fatos, por
mencionados explicitamente em suas obras. Portanto, serem psíquicos, constituem também objeto de investi-
é suficiente para os nossos propósitos, chamar atenção gação para a psicologia; porém, não é uma questão de in-
para a controvérsia da qual Husserl é famoso – a questão diferença se são fatos psíquicos ou se a psicologia uma
da relação entre psicologia e filosofia (em especial a ló- pressuposição da teoria do conhecimento. Conhecimento
gica) e indicar, mesmo que apenas mencionando nomes, é admitido como sendo um processo psíquico apenas na
as influências mais importantes sobre o seu pensamento forma de conceitos e teorias, ou de modo geral, como cons-
conforme admitido pelo próprio Husserl. ciência. Mesmo a verdade sobre o conhecimento, assim
como a lei que rege essa verdade como algo objetivamen-
te válido, devem ser investigadas através da consciência
1. Psicologismo e Filosofia na Década de 1880 que seres pensantes possam ter sobre ela.
Nesse sentido, conceitos e verdades sobre a geome-
Proeminente na filosofia do final do século XIX era tria seriam fatos psíquicos, e mesmo assim, os axiomas
um ponto de vista conhecido por “psicologismo”. A filo- de Euclides não são considerados como sendo leis psi-
sofia de uma época é sempre condicionada e influenciada cológicas por ninguém, nem se supõe que seu objetivo
pelas concepções científicas mais destacadas, especial- depende do entendimento psicológico de apresentações
mente as novas; exemplo disso é o racionalismo, na filo- geométricas. Natorp, portanto, apenas ressaltou o fato de
sofia moderna, que refletiu os avanços da matemática e que a consciência da verdade independe de toda explica-
da física. No período em questão a ciência emergente era ção genética por meio de conexões psicológicas e chamou
a psicologia que detinha dupla importância para a filo- atenção para a independência da base objetiva dos prin-
sofia alemã: sugeria um caminho seguro para a solução cípios do conhecimento. Assim, para Natorp, a crítica e
de problemas difíceis da lógica e da teoria do conheci- a psicologia do conhecimento se exigem e se condicio-
mento, além de oferecer um substituto e um acréscimo nam uma a outra. Um indicativo de seu ponto de vista
para a perspectiva idealista em filosofia. O psicologismo é dado por sua asserção que uma lei de conhecimento é
já era relevante na filosofia inglesa, cujo representante a priori, assim como toda lei é a priori para aquilo que
maior foi J.S.Mill. Na Alemanha, Wundt e Lipps servem é sujeito à lei.
de exemplos. Natorp, Brentano, Stumpf e posteriormen- As primeiras reações de Natorp contra o psicologismo
te Frege são de particular importância, por fornecerem estão expressas também num artigo sobre os fundamentos
significativa influência para Husserl. A reação contra o objetivos e subjetivos do conhecimento7, no qual o autor
psicologismo foi claramente ilustrada nos primeiros escri- argumenta que não existiria nenhuma lógica, ou ela deve-
tos de Natorp; e Schuppe e Volkelt antecederam Husserl ria ser inteiramente construída sobre suas próprias bases,
na teoria do conhecimento, embora não tenham exerci- sem a necessidade de se fundamentar em qualquer outra
do influência direta sobre ele. Isso, porém, não afeta a ciência. Aqueles que fazem da lógica uma ramificação da
originalidade de Husserl, visto que o uso sistemático im- psicologia afirmam que esta é a ciência de base e que a
posto por ele às mesmas causas, resultaram na sua radi- lógica é, na melhor das hipóteses, apenas uma aplicação
cal reformulação. da psicologia. Natorp afirmou que não apenas o signifi-
O Psicologismo foi uma perspectiva extremada, e uma cado da lógica, mas também o significado de toda ciên-
reação a isto era inevitável. A revisão de Natorp, do livro cia objetiva é ignorado e quase pervertido em seu opos-
de Theodor Lipps Basic Facts of Mental Life6 é uma indica- to, quando a verdade objetiva do conhecimento se torna
ção precoce de tal reação. Lipps considerava a psicologia dependente de uma experiência subjetiva. Fundamentar
como constitutiva da base filosófica, mas Natorp duvidava a lógica sobre bases subjetivas seria anulá-la como teo-
da possibilidade de a psicologia “fundamentar” a lógica ria independente da validade objetiva do conhecimento.
e a teoria do conhecimento. Lipps, por outro lado, consi- Por essa razão, Natorp não estava somente defendendo os
TextosClássicos

derava esses temas como a base psicológica do princípio direitos da lógica no sentido comum do termo, mas tam-
bém chamando atenção para a validade objetiva da qual
publicada na coleção Os Pensadores. Atualmente contamos com uma
tradução portuguesa dos dois volumes (Universidade de Lisboa) e
uma brasileira do primeiro volume e do II Tomo (N.do E.) 7
P. Natorp, “Uber objektive und subjektive Begründung der Erkenn-
6
Cf. Paul Natorp, revisão da obra da obra de Lipps Grundthatsachen tnis” (Erster Aufsatz), Philosophische Monatshefte, vol. XXIII, 1887,
des Seelenlebens, Bonn, 1883, publicado no Göttingische gelehrte pp. 257-286. Husserl refere-se à página 265 f. desse artigo nas Inves-
Anzeigen, 1885, pp. 190-232. tigações Lógicas como reforço para seu debate sobre o psicologismo.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012 236


Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

é feita toda ciência, ao sustentar que a validade objetiva buscou compreender qual procedimento matemático é
deve ser também sustentada objetivamente. Como pres- objetivo, além de mostrar que a lógica formal deve ser
suposição da ciência objetiva, Natorp formulou o precei- fundamentada na lógica do conhecimento objetivo ou
to de que o verdadeiro conhecimento científico somen- na lógica transcendental.
te pode depender de leis que gerem a certeza no âmago Outra ideia importante na época foi o ideal da ausên-
da ciência e que sejam desenvolvidas de maneira lógica, cia de pressuposições no procedimento filosófico. Esse
independente de quaisquer pressuposições que possam ideal foi tomado por Husserl nas Investigações Lógicas
ser vinculadas a elas. Assim, todo recurso ao sujeito cog- como uma exigência óbvia a ser imposta sobre toda in-
noscente e sua capacidade de ciência objetiva é marcado vestigação epistemológica.
como algo estranho. Assim, é possível apontar as influências diretas so-
Natorp foi muito claro ao afirmar que a objetividade bre Husserl no início do seu percurso, derivadas de al-
da ciência requer a superação da subjetividade. Nesse gumas poucas fontes embora, posteriormente, abordasse
sentido, sua concepção sobre a verdade científica é com- filósofos que, num primeiro momento, tinham sido ne-
patível com o ideal posterior de Husserl de uma ciência gados ou rejeitados. Natorp, Volkelt, Schuppe e Rehmke
rigorosa para a filosofia, mas não a ponto de sugerir a podem ser considerados representantes únicos de uma
ideia de uma ciência universal ou de uma filosofia “cien- geração emergente de idealistas, cujos trabalhos seriam
tificamente enraizada”. O objeto da crítica de Natorp era, relevantes na literatura filosófica das décadas subsequen-
de fato, o psicologismo e ele foi bem-sucedido ao formu- tes. Suas publicações foram lidas, caso de Natorp, e tam-
lar claramente essa questão. Natorp afirmou que a ver- bém consideradas como trabalhos paralelos por Husserl.
dade científica, conforme ilustrada na ciência natural A orientação à filosofia de Kant, sempre proeminen-
matemática, torna-se uma certeza quando fundamen- te na Alemanha viria a ser de grande significância para
tada em pressuposições objetivas, ressaltando sua auto- Husserl. Brentano, que não é facilmente classificado,
nomia como ciência. Logo, o matemático e o físico não combinou o escolasticismo e a filosofia de Aristóteles
deveriam buscar na psicologia a essência da verdade de com o empirismo, inaugurando um período frutífero de
seus conhecimentos. desenvolvimento da psicologia, tendo Stumpf como um
A expressão “validade objetiva” foi, assim, utilizada dos seus primeiros discípulos mais produtivos. O desen-
para indicar a independência do aspecto subjetivo do sa- volvimento moderno da lógica simbólica, que teve seu
ber. Seu significado positivo era bem menos claro para início na Inglaterra através de Boole, foi conduzido na
Natorp. A ideia de que existem objetos fora e indepen- Alemanha por Schröder e Frege. Esses estudiosos podem
dentes de toda subjetividade seria uma possível resposta, ser citados como constituindo a cena filosófica em que
mas Natorp acreditava que o “ser em si mesmo” do objeto Husserl entrou quando ele se juntou ao corpo docente da
já era em si um enigma, em razão do seu kantismo não Universidade de Halle em 1887. Todos representam uma
resolvido. Natorp argumentava que a independência do fase especial do contexto da filosofia Alemã na época.
objeto da subjetividade do saber somente poderia ser en-
tendida por meio da abstração, visto que os objetos nos
são dados somente através do conhecimento de que temos 2. O Discípulo de Brentano
deles. Sendo assim, seria necessário abstraí-los a partir do
conteúdo da experiência subjetiva. De acordo com Natorp “Brentano, meu professor” era uma expressão fre-
os verdadeiros princípios e bases do conhecimento são quentemente ouvida nas aulas de Husserl. Sua dívida
as unidades objetivas finais. Na matemática, não são os intelectual com Brentano era considerável no início de
fenômenos que são básicos, mas sim as abstrações funda- seus estudos, mas foi o elemento moral e o exemplo pes-
mentais que são expressões da unidade de determinação soal de Brentano que o levou a escolher a filosofia como
de possíveis fenômenos tais como ponto, linha, retidão e objetivo de vida e que constitui sua última influência.
igualdade de magnitude. Tudo isto envolve a função fun- Husserl foi um aluno agradecido a Brentano acompanhan-
damental de objetivação e a “unidade da multiplicação” do-o, juntamente com Stumpf, durante viagens de férias.
de Kant e Platão. Somente assim os “fenômenos” únicos Entretanto, Husserl não estava preparado na época para
da ciência se tornam possíveis. Natorp argumentou que aproveitar esse contato. A eficácia de Brentano como pro-
deve haver uma função determinante e “firme”, a fim de fessor é justificada pelo número de teóricos notáveis que
tornar essa positividade uma realidade possível. Numa devem o começo de seus estudos a ele, tais como Stumpf,
discussão posterior8 Natorp buscou verificar como o tipo Husserl, Meinong, Höfler e Marty.
TextosClássicos

de argumentação que tinha usado era objetivo, ou seja, Husserl deixou um tributo revelador a Brentano de-
dicando uma obra inteira ao mestre9. Husserl participou
8
Cf. P. Natorp, “Quantität und Qualität in Begriff, Urteil und gegens-
tändlicher Erkenntnis”, Philosophiache Monatshefte, vol. XXVII,
1891, pp. 1-32, 129-160. No seu Einleitung in die Psychologie nach 9
Cf. Husserl “Erinnerungen an Franz Brentano”, Supplement II, pp.
kritischer Methode (Freiburg f. B., 1888), Natorp se colocou a tarefa 153-167, no livro de Oskar Kraus, Franz Brentano, Zur Kenntnis
de tornar seguras as bases da psicologia através de uma investigação seines Lebens und seiner Lehre (O Supplement I é de autoria de Carl
preliminar do seu objeto de estudo e método. Stumpf), München, 1919.

237 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012


Marvin Farber

de seus cursos durante dois anos, de 1884 a 1886, depois tradição do idealismo alemão que, na sua opinião, dege-
de ter completado formalmente seus estudos universitá- neravam a filosofia.
rios, nos quais a filosofia era um objeto menor. Brentano Husserl trocou poucas correspondências com
proferia conferências sobre a filosofia prática, lógica ele- Brentano. Em resposta a uma carta, solicitando que
mentar e suas reformas necessárias e também falava so- aceitasse uma dedicatória feita a ele na obra Filosofia
bre questões psicológicas e estéticas específicas. Husserl da Aritmética10, Brentano expressou cordiais agradeci-
estava em dúvida, então, se deveria dedicar-se à filosofia mentos, posicionando-se contra, temendo que Husserl
ou à matemática e foram as conferências de Brentano que angariasse a animosidade de seus inimigos. Husserl, en-
o ajudaram a tecer sua escolha. Embora tenha sido cons- tretanto, não recebeu nenhuma resposta quando enviou
tantemente advertido por seu amigo Masaryk a estudar a Brentano uma cópia dessa obra com sua dedicatória.
com Brentano, Husserl comenta que participou das con- Brentano só foi notar que o trabalho de Husserl tinha sido
ferências apenas por curiosidade, pois na época Brentano dedicado a ele quatorze anos depois tendo, então expres-
era muito discutido em Viena, sendo admirado por muitos so calorosos agradecimentos. Husserl aceitou os agrade-
e insultado por outros que o comparavam a um jesuíta cimentos e compreendeu seu mestre o suficiente para se
disfarçado. Husserl ficara impressionado desde o início sensibilizar com este incidente. O desenvolvimento in-
por seus gestos leves e seu rosto expressivo, com rugas dependente desses dois teóricos deve-se a essa pequena
que evidenciavam não apenas um mero trabalho mental, quantidade de cartas trocadas entre eles.
mas profundas batalhas intelectuais. Brentano o impres- Husserl viu Brentano em 1908 em Florença, quando
sionou como alguém que estava sempre consciente de ter o último estava quase cego. Novamente sentiu-se como
uma grande missão. A linguagem de suas conferências um iniciante tímido, mais propenso a ouvir do que falar.
era livre de toda artificialidade, revelando sua perspicá- Uma vez foi chamado a se manifestar e foi ouvido por
cia, uma inteligência viva através de um tom de voz bas- Brentano sem interrupção. Seu relato acerca do signifi-
tante peculiar, velado, suave, acompanhado de gestos cado do método fenomenológico de investigação, bem
quase sacerdotais que faziam-no parecer um profeta de como do seu conflito anterior com o psicologismo, não
verdades eternas e um locutor de outro mundo. Husserl os levaram a nenhum acordo. Husserl afirmou que tal-
comentou mais tarde que sucumbiu à força daquela per- vez a culpa fosse parcialmente sua. Ele tinha ficado ini-
sonalidade, apesar de todos os seus preconceitos. E, foi a bido pela sua íntima convicção de que Brentano, em ra-
partir dessas conferências que ganhou convicção de que zão de sua firme postura de conceitos e argumentos, já
a filosofia é um campo de trabalho intenso, vigoroso e não era mais suficientemente adaptável para entender a
que pode ser tratado no âmago da ciência mais rigorosa, e necessidade de transformação de suas ideias fundamen-
isso o levou a tomar a filosofia como um projeto de vida. tais, o que Husserl acreditava que ele estava compelido
Brentano era mais eficiente nos seus seminários, nos a fazer. Brentano vivia continuamente no seu mundo de
quais estudou os seguintes textos: Enquiry Concerning ideias e na completude de sua filosofia que dizia tinha
Human Understanding e Principles of Morals, de Hume; sido submetida a um grande desenvolvimento ao longo
a fala de Helmholtz sobre “The Facts of Perception”, e de de décadas. Pairava sobre ele uma aura de transfiguração,
Du Bois-Reymond, “Limits of Natural Logic”. Na época, embora ele não pertencesse mais a este mundo e vivesse
Brentano estava particularmente interessado em ques- metade de sua vida naquele mundo maior no qual acre-
tões de psicologia descritiva, que discutiu com Husserl. ditava tão firmemente. Esta última imagem calou fundo
Nas conferências sobre lógica elementar Brentano tra- na mente de Husserl.
tou a psicologia descritiva considerando o trabalho de Este tributo de um grande pensador a outro revela o
Bolzano “Paradoxos do Infinito” além das diferenças en- grau de influência exercido por Brentano sobre Husserl.
tre as ideias de “intuitivo e não-intuitivo”; “claro e obscu- A semelhança entre os dois é notável. O reconhecimento
ro”; “distinto e não distinto”; “real e irreal” e “concreto e de que Brentano foi uma influência determinante para
abstrato”. Outros temas incluíram a investigação do jul- Husserl deve ser entendido literalmente, pois Husserl
gamento e também problemas descritivos da fantasia. O compartilhou no mais alto grau a seriedade dos modos
alcance da influência de Brentano é demonstrado nos pri- suaves de Brentano, e também o desdém do humor e ou-
meiros escritos de Husserl, bem como nas investigações tras estratégias utilizadas pelo mestre em suas conferên-
subsequentes sobre a lógica e a teoria do conhecimento. cias que tanto o impressionaram. Outra grande caracte-
Sua dívida com Brentano foi reconhecida explicitamen- rística entre ambos era a crença declarada de Husserl de
te e de bom grado por Husserl. É interessante notar que que tinha fundado a única filosofia válida. Ele também
TextosClássicos

Brentano sentiu-se como o criador de uma philosophia nunca ficou parado e acreditava que seus avanços, mes-
pereniss, embora não tenha se fixado em suas perspecti- mo nos últimos anos de sua vida, foram notáveis e pro-
vas nem ficado parado no tempo. Brentano exigia clareza fundos. O espírito de “escola”, no qual os discípulos do
e a distinção de conceitos fundamentais, considerando mestre seriam treinados mais tarde, foi ilustrado também
as ciências naturais exatas como representantes do ideal
10
No original, Philosophie der Arithmetik. Psychologische und logische
de uma ciência exata da filosofia. Este ideal se opunha à
Untersuchungen, publicado em 1891 (N.do E.).

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012 238


Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

no movimento fenomenológico, embora, para ser sincero, de Husserl pela originalidade de seu trabalho. Desafiando
o método cuidadosamente elaborado por Husserl colocou- a crença de que a refutação do psicologismo foi devido
-o acima dos confinamentos de uma escola no sentido co- às Investigações Lógicas, Kraus referiu-se a evidências no
mum do termo. O retrato de Brentano é estranhamente artigo de Brentano, que teria incorporado no texto do vo-
familiar àqueles que conheceram Husserl pessoalmen- lume sobre Verdade e Evidência14. Brentano também se
te; ao descrever seu professor, Husserl se auto revelou. opôs à concepção de evidência como sentimento, um as-
pecto antipsicologista que tinha sido creditado a Husserl.
Através de alguns trechos da obra de Brentano, The Origin
3. O Julgamento Final de Brentano, por Husserl of the Knowledge of Right and Wrong (Ursprung sittlicher
Erkenntnis, 1889), Kraus tentou estabelecer a prioridade
Brentanto é mais conhecido por sua obra Psychologie deste na oposição ao psicologismo. Os objetos ideais de
vom empirischen Standpunkt11 (1874). As publicações re- Husserl e os “objetivos” de Meinong foram rastreados por
centes de seus trabalhos, feitas por Kraus e Kastil12, tem ele na introdução de Brentano sobre as pressuposições dos
esclarecido melhor as razões da influência extraordiná- “fatos” irreais (Sachverhalte, existentes e não existentes).
ria exercida sobre Husserl por Brentano. Husserl estava Tudo isso prova que Brentano fora um pensador esti-
em débito com Brentano, pelo seu interesse no concei- mulante, que deu início a diversas ideias desenvolvidas
to de intencionalidade e pela investigação descritiva da posteriormente por alunos muito talentosos. É possível
percepção interna, e sem dúvida, aprendeu a se tornar rastrear numerosas ideias da fenomenologia inspiradas
um investigador filosófico ao ser exposto a exemplos con- nas sugestões dadas pelo pensamento de Brentano, mas
cretos de análise descritiva e a como reconhecer proble- seria um absurdo superestimar esse débito ao ponto de
mas. Era inevitável que seu desenvolvimento aconteces- exigir a reivindicação de prioridade. Partindo da perspec-
se de forma paralela e se sobrepusesse a alguns esforços tiva de Kraus, a ideia de fatos irreais dificilmente é cre-
de Brentano. Embora também fosse fácil para Husserl se ditada a Brentano, visto que este afirmava que somente
livrar da quantidade de dívidas com Brentano, deve ser as coisas concretas, realia, ou as essências reais podem
dito que o estudo dos principais elementos do pensamen- ser pensadas, enquanto as irrealia como o ser, o não-ser,
to do mestre é indispensável para a compreensão genéti- fato e verdade são meras ficções.
ca da fenomenologia. Nas Investigações Lógicas, Husserl chamou atenção
A crítica de Brentano sobre o trabalho de Husserl al- para os defeitos na teoria do conhecimento de Brentano
guns anos depois da publicação das Investigações Lógicas enfatizando a ambiguidade de expressões como “em cons-
foi disponibilizada através da publicação de duas car- ciência” e “imanente na consciência”15. Não há dúvidas
tas escritas para Husserl em 190513, nas quais expressou sobre seu débito para com Brentano pelo conceito de in-
suas objeções e receios em relação ao trabalho de Husserl. tencionalidade e pelo campo da análise descritiva que se
Brentano concordava com as críticas ao psicologismo, o desvelou a partir disso, mas era de Husserl a crença de
qual considerava essencialmente Protagoreano, isto é, que, apesar disso, Brentano falhou ao buscar sua real na-
perspectiva na qual o homem é a medida de todas as coi- tureza e colocá-la para uso filosófico. Como Husserl fez
sas. Enquanto admitia que o empreendimento de Husserl essa afirmação somente nos seus últimos anos de vida,
com a lógica pura não era suficientemente claro para ele já era tarde para que pudesse caracterizar corretamente,
[Brentano], julgava impossível congregar todas as verda- e de forma cuidadosa, a radicalidade dos novos tipos de
des, caminhando intuitivamente do nível dos conceitos problemas que advinham da intencionalidade, descober-
para uma ciência teórica da lógica; e ele não estava dis- tos nas Investigações Lógicas, no seu significado universal
posto a aprovar os esforços para delimitar uma ciência para uma psicologia genuína e uma filosofia transcenden-
teórica das verdades que excluísse quaisquer dados empí- tal. Husserl tinha finalmente alcançado a compreensão
ricos. Os comentários de Brentano, embora interessantes do que Brentano buscava: uma psicologia dos fenômenos
em si mesmos, indicavam uma interpretação completa- da consciência (experiências intencionais) da qual não
mente equivocada do objetivo e do trabalho de Husserl. tinha noção sobre o significado real, nem tampouco do
Na opinião do editor, professor O. Kraus, Husserl método que deveria utilizar para sua realização.
falhou ao responder os “argumentos conclusivos” de As críticas de Kraus não impressionaram e nem de-
Brentano, enquanto a esperança do mestre de afastá-lo tiveram Husserl. Voltando o olhar para o início de seus
dos erros era completamente ilusória. Kraus estava par- estudos, a partir da perspectiva de sua maturidade, e
ticularmente interessado em enfraquecer a reivindicação em meio a um profundo sentimento de decepção difí-
TextosClássicos

cil de entender, Husserl vangloriou-se de seu vínculo


11
Psicologia do Ponto de Vista Empírico, inédita em português (N. do E.). com Brentano por anos, acreditando ser um colaborador
12
Brentanos Gesammelte Philosophiche Schriften, editada por O. Kraus
e A. Kastil, Leipzig, 1922-1980, 10 volumes. 14
Aqui refere-se o autor à obra brentaniana Wahrheit und Evidenz,
13
Cf. Brentano, Wahrheit und Evidenz, editado por O. Kraus, Leipzig, Hamburg, Felix Meiner, 1930 (N. do E.).
1930. As cartas encontram-se no apêndice sob o título de: “Sobre a 15
Logische Untersuchungen, vol. II, parte 1, p. 375. Cf. L.Landgrebe,
Generalização da Verdade e o Erro Fundamental da então chamada “Husserls Phänomenologie und die Motive zu ihrer Umbildung”,
Fenomenologia”. Revue Internationale de Philosophie, I, 2 (1939), pp. 280 ff.

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de sua filosofia, especialmente de sua psicologia. Mas, É possível distinguir diferentes períodos no desen-
como Husserl observou em seu primeiro trabalho (a tese volvimento do pensamento de Husserl no que diz res-
de 1887, parte dela desenvolvida em sua Filosofia da peito a determinar elementos nos primeiros estágios do
Aritmética), todo o seu modo de pensar era inteiramen- seu treinamento. De modo geral, referem-se ao período
te diferente daquele de Brentano. Formalmente falando, do psicologismo, da simples fenomenologia descritiva
Brentano buscava uma psicologia cujo tema fossem “os (fenomenologia num sentido estrito) e a fenomenolo-
fenômenos psíquicos” os quais, entre outras coisas, eram gia transcendental16. Do ponto de vista desta última,
definidos como consciência “de” alguma coisa. Mesmo a fenomenologia transcendental, os dois primeiros
assim, sua psicologia não era nada além de uma ciência são simplesmente estágios do processo em direção a
da intencionalidade; os problemas reais da intenciona- um reino da filosofia, acessível somente através da re-
lidade nunca foram revelados para ele; Brentano sequer dução fenomenológica. Sendo assim, as Investigações
notou que nenhuma experiência dada de consciência Lógicas foram caracterizadas como um trabalho de
deve ser descrita sem a afirmação do objeto intencional “Durchbruch”17 por Husserl. Por essa razão, pode-se
pertinente “como tal” (ex.: a percepção dessa mesa so- dizer que os dois maiores períodos de sua carreira se-
mente deve ser descrita, de modo exato, se eu a descre- riam o pré-transcendental e a filosofia transcendental.
ver como tal e tal como é percebida). Ademais ele não O grande progresso registrado nas Investigações Lógicas
fazia ideia sobre implicação intencional, modificações foi reconhecido logo após a publicação daquele traba-
intencionais, problemas de evidência ou de constitui- lho, quando Husserl afirmou ser a fenomenologia uma
ção, etc. Embora Brentano tenha se empenhado para ir disciplina autônoma. Estando plenamente consciente
além do Neo-escolasticismo, ele não foi bem sucedido; do progresso significativo que tinha feito, Husserl es-
seus escritos de idade avançada foram tidos por Husserl tava apto para conceber o passo seguinte a ser dado – a
como um “escolasticismo destilado”. Não era possível redução fenomenológica – que, sozinha, podia oferecer
que Husserl pudesse “emprestar” ideias de uma fonte técnica apropriada para uma análise descritiva reflexi-
na qual não estavam presentes. Numa resposta simples va exigida para fins de uma teoria do conhecimento e
a um Brentanista radical como Kraus, é possível aceitar da filosofia de um modo geral.
como verdadeira cada reivindicação significativa às prio- O próprio Husserl acreditava que o seu desenvol-
ridades de Brentano sem diminuir a estatura de Husserl. vimento mostrava uma consistência interna apesar da
Uma controvérsia infeliz seria assim reduzida a sua pró- ocorrência de mudanças provocadas pelas épocas, o que
pria insignificância. gerou muita dificuldade para seus seguidores em vários
momentos. Aqueles que falharam ao alcançar ou endossar
essas mudanças falharam ao participar desse “desenvol-
4. O Desenvolvimento de Husserl vimento”. As mudanças ocorridas relembram a filosofia
de Schelling. A diferença entre os estágios iniciais e fi-
A preparação inicial de Husserl incluiu as matemáti- nais é surpreendente, mas mesmo assim Husserl ressal-
cas e a psicologia. Sua tese de doutorado foi em matemáti- tou a unidade fundamental na sua carreira. O período
ca e seus estudos sob a tutela de Weierstrass conferiram- inicial viu o talento e experiência de um jovem teórico
-lhe uma base sólida para seus trabalhos posteriores com a com uma predileção para os problemas mais elementa-
lógica. Em psicologia, interessou-se preliminarmente por res. A extensão do seu psicologismo pode ser questiona-
uma investigação puramente descritiva ou “empírica” no da, embora tenha de fato defendido a tese psicologista
sentido de Brentano. A fusão dessas duas áreas aparen- em relação aos conceitos fundamentais da matemática e
temente diversas determinou o cenário de sua carreira. da lógica. Mas em lógica Husserl sabia muito bem como
As principais mudanças no seu percurso são explicadas, aplicar o método formal, como se observa no artigo so-
em grande parte, pelas dificuldades encontradas na ten- bre “Calculus of Inference” (1891). Embora tenha reagido
tativa de integrar esses dois elementos. Seus sentimen- contra sua posição inicial e mudado contínua e periodi-
tos mais íntimos de incerteza, muitas vezes de propor- camente, os resultados importantes de cada estágio fo-
ções lastimosas, refletiram o conflito existente entre um
ponto de vista formal, “realista”, segundo o qual todas 16
E.Fink, na sua introdução à obra, até agora, não publicada de Hus-
as proposições lógicas são determinadas em si mesmas, serl, “Entwurf einer ‘Vorrede’ zu den ‘Logischen Untersuchungen’”
e o método psicologista, que considerava formas lógicas (1913), Uit Tijdschrift Voor Philosophie, I, 1 (1939), p. 107. Fink divide
o desenvolvimento da fenomenologia de Husserl – tomada exter-
e princípios por meio do processo da experiência. Pouco
TextosClássicos

namente – em três fases, correspondendo aproximadamente aos


tempo antes de sua morte, Husserl comentou ter passado períodos em que Husserl lecionou em Halle, Göttingen, e Freiburg.
por um período de abatimento, semelhante às experiên- De acordo com Fink, as Investigações Lógicas e as Ideias são os
trabalhos centrais dos dois primeiros períodos. Essa classificação
cias vividas periodicamente nos primeiros anos de sua é útil para ressaltar as tendências de cada período em direção às
vida, durante os quais foi incapaz de desenvolver qual- conquistas de um nível de análise mais geral e profundo. Olhando
quer estudo. Tais períodos foram seguidos por pesquisas para trás, é possível discernir a unidade interna de cada fase.
17
Durchbruch é “rompimento”, “ruptura”, referindo-se ao momento
e produtividade intensas.
no qual se coloca sua publicação (Nota do Editor).

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012 240


Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

ram sempre retomados nos trabalhos subsequentes. Pode pecialmente seus escritos matemático-filosóficos. Vim a
até ser que a perspectiva do seu desenvolvimento seja conhecer Schuppe somente após as Investigações Lógicas
distorcida, de alguma maneira, pela ênfase dada sobre a (1900-1901), quando ele já não podia me oferecer nada de
questão do psicologismo ao ponto em que se subestime novo. Nunca estudei Rehmke seriamente. De fato, meu
o elemento da continuidade. Deve-se notar, por exemplo, curso foi pontuado pela Filosofia da Aritmética (1891) e
que as Investigações Lógicas utilizaram os “Psychological não pude fazer nada a não ser continuar a avançar”. Esta
Studies of Elementary Logic”, pertencentes ao seu perí- declaração não é de forma alguma completa, entretan-
odo inicial. Além disso, embora Frege tenha recebido to. Husserl frequentemente falava de James, cuja obra
os créditos pela derrocada da Filosofia da Aritmética e Principles of Psychology tinha um valor inestimável para
pelo fato de afastar Husserl de sua posição inicial, esse ele. Lotze e Bolzano também tiveram grande importância
vínculo não pode ser sustentado pelos fatos. Frege foi de para Husserl. Sua gratidão para Lotze foi por sua inter-
fato bem sucedido ao apontar as inadequações naquele pretação da teoria das ideias de Platão, a qual determi-
trabalho, mas ele não provocou o seu descrédito; e o fato nou todos os seus estudos posteriores. Também foi grato
de a confiança de Husserl em seu trabalho não ter sido a Bolzano pela obra Wissenschaftslehre, que lhe rendeu
necessariamente abalada, pode ser comprovada pelas o primeiro rascunho da “lógica pura” num momento bas-
referências constantes a ele em escritos posteriores. De tante crítico do seu desenvolvimento. Além disso, ne-
fato, um estudo pontual sobre a Filosofia da Aritmética nhuma explicação sobre suas relações intelectuais deve
ressalta alguns dos interesses descritivos fundamentais omitir Twardowski, Marty e outros Brentanistas, além
de Husserl e apresenta, de maneira simples, tipos de pro- de Avenarius e Dilthey.
blemas, revelados por algumas das suas últimas técnicas Olhando para seu desenvolvimento próximo de seus
descritivas mais desenvolvidas, nas suas próprias com- últimos dias de vida20, Husserl enfatizou a importân-
plexidades. Quando se lê toda a obra de Husserl conse- cia do “modo de procedimento correlativo” ilustrado
cutivamente, fica-se impressionado pela continuidade do nas Investigações Lógicas. Isso ele rastreou na Filosofia
seu desenvolvimento. Mas seria absurdo negligenciar as da Aritmética, com sua “duplicidade peculiar de análi-
grandes mudanças na sua perspectiva (assim, por exem- ses psicológicas e lógicas”, que agora eram vistas como
plo, a “redução fenomenológica” foi apresentada somente tendo íntima relação. A unidade dos Prolegomena e das
em 1913, na obra Ideias18, embora tenha sido elaborada seis investigações, esquecidas pelos críticos contempo-
e formulada alguns anos antes), ou rebaixar suas repeti- râneos, resultou da realização da natureza correlativa
das afirmações referentes às importantes mudanças nas da análise descritiva. Primeiramente, foi necessário de-
suas opiniões. fender a objetividade das estruturas lógicas contra to-
Husserl teceu os seguintes comentários sobre seu pe- dos os esforços subjetivistas, antes de proceder à prepa-
ríodo inicial: “Com respeito à conexão interna de todos ração epistemológica da ciência da lógica pura. Embora
os meus escritos, e consequentemente em relação ao meu grandes avanços sobre a Filosofia da Aritmética tenham
desenvolvimento interno, a nova edição do Philosophen sido alcançados, a análise da consciência foi principal-
Lexikon trará a explicação correta, sob o meu nome, no mente “noética”, o que significa que estava muito mais
caso do material preparado pelo Dr. Fink ser aceito sem preocupada com a vivência do que com os estratos de
alterações. ‘Influências’ externas não têm relevância. sentidos “noemáticos” pertencentes a cada experiência.
Como um teórico iniciante eu naturalmente leio muito, A necessidade e técnica para uma análise profunda dos
incluindo clássicos e literatura contemporânea das dé- dois lados da consciência foi feita, pela primeira vez de
cadas de 1870 a 1890. Gostei muito do ponto de vista cé- forma clara, nas Idéias.
tico-crítico, visto que eu mesmo não vislumbrei nenhu- A “fenomenologia” representada nas Investigações
ma base sólida em momento algum. Sempre me vi longe Lógicas utiliza somente a intuição imanente, sem ir além
do idealismo Alemão e Kantiano. Somente Natorp me da esfera da auto-doação intuitiva. Este é o significado
interessou, mais por razões pessoais, por isso li toda a do preceito “voltar às coisas mesmas”; em outras pala-
primeira edição da sua obra Introduction to Psychology19, vras, um apelo à própria doação intuitiva. O segundo
mas não fiz o mesmo com a segunda edição. Li com entu- volume da obra ilustra esse princípio metodológico por
siasmo (especialmente como aluno) a obra de Stuart Mill, meio de uma extensa análise concreta. Todos os insights
Logic, e posteriormente a obra filosófica de Hamilton. dessa obra são insigths apodíticos por essência. O reino
Tenho continuamente estudado os empiristas ingleses e das ideias que é assim revelado é finalmente referido de
as principais obras de Leibniz (ed. por J. E. Erdmann), es- volta à subjetividade da consciência, entendida como “o
TextosClássicos

campo primeiro de todo a priori”. De importância de-


18
Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen terminante na investigação universal da consciência é
Philosophie, publicado em 1913, no Jahrbuch für Philosophie und
phänomenologische Forschung, Halle. A primeira parte desta obra
a percepção de que a esfera imanente é governado por
possui traduções para o português (N. do E.). leis essenciais.
19
Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (“Introdução à
Psicologia de acordo com o Método Crítico”), publicado em Freiburg, 20
Cf. Philosophen Lexikon, by E. Hauer, W. Ziegenfuss, and G. Jung,
1888 (N. do E.). Berlin, 1937, pp. 447ff.

241 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012


Marvin Farber

Até pode ser que nenhuma posição anteriormente a fim de dar a elas uma certa coerência. A parte críti-
sustentada estivesse completamente errada, tanto que ca do primeiro volume, que tem sido mais amplamente
os resultados “corretos” de suas investigações sempre lida, consiste de uma crítica e repúdio ao psicologismo,
encontraram seu lugar em cada período sucessivo. A ex- já apresentada em seus cursos no ano de 1895. O últi-
plicação genética do pensamento de Husserl é, portanto, mo capítulo deste volume, sobre “A Ideia de uma Lógica
o melhor caminho para explicar o papel das várias di- Pura” foi adicionado posteriormente; este resultou dos
visões e aspectos de sua filosofia. Durante toda sua vida estudos matemático-lógicos precedentes conduzidos por
intelectual, os principais estímulos de sua filosofia po- Husserl, interrompidos depois de 1894, mas que avan-
dem ser verificados, até sua última fase, quando foi sus- çaram na ideia de uma ontologia formal. É importante
tentado que somente o meio “difícil” da redução feno- observar que as Investigações Lógicas registram um dis-
menológica, agora intrinsecamente elaborado, poderia tintivo avanço na compreensão da ciência formal, bem
revelar as bases “desmotivadas” e não condicionadas de como um marco no desenvolvimento de uma teoria do
toda filosofia e ciência. conhecimento, assunto que predomina em seu trabalho.
Tendo em mente o elemento da continuidade, é útil Nesta, a fenomenologia é caracterizada como uma psi-
distinguir diversos grupos de escritos, que irão descrever cologia descritiva estruturada para oferecer os esclare-
de modo mais exato os três maiores períodos já mencio- cimentos das ideias de base do pensamento formal. Isto
nados. A organização não é inteiramente cronológica, a foi especialmente infeliz na medida em que foi um fator
fim de distinguir os escritos psicológico-epistemológi- impeditivo para o correto entendimento das investiga-
cos do formal. O conteúdo e o método desses trabalhos ções. Entretanto, ficou evidente ao leitor cuidadoso que
estão em questão nesta classificação. Assim, embora tais esclarecimentos apresentavam análises essenciais.
Erfahrung und Urteil resulte de um período anterior, con- Na correção subsequente a esse erro, Husserl enfatizou
forme mencionado por Landgrebe, também deriva de um o fato de que toda apercepção psicológica é excluída, de
período posterior, em questão. Por essa razão, pertence que experiências pertencentes a seres pensantes reais
aos últimos escritos lógicos. (1) Temos a obra resultante não estão em questão. Em outras palavras, a “psicologia
do primeiro período de seu treinamento matemático, a descritiva” não foi feita para ser entendida no seu sentido
dissertação sobre o cálculo das variações, “Beiträge zur comum, mas como foi claramente apontado na primeira
Variationsrechnung”21. (2) O esforço de estabelecer uma edição da sua obra, o método de investigação foi conce-
fundação psicológica para a lógica e a matemática podem bido para ser livre de todos os pressupostos da psicolo-
ser entendidas como estágios distintos no início da dé- gia e da metafísica. (4) Os escritos publicados após a pri-
cada de 1890, embora sejam paralelas às investigações meira edição das Investigações Lógicas e até a publicação
de natureza estritamente lógica. Os estudos de Husserl, das Ideias em 1913 podem ser incluídos em um grupo,
de 1886 a 1895, focaram preliminarmente no campo da abrangendo todos os escritos conhecidos até a primeira
matemática e da lógica formal. Este foi o período dedi- formulação publicada sobre a redução fenomenológica.
cado ao psicologismo como uma posição metodológica. A segunda obra “Logical Survey” (uma discussão crítica
Husserl acreditava que a filosofia da matemática estava das publicações alemãs sobre lógica no final do século)
relacionada com a origem psicológica dos conceitos fun- continha um grande material pertencente ao período
damentais da matemática. Ao longo da obra Filosofia da precedente, além da correção da concepção de fenome-
Aritmética, Husserl dedicou atenção ao que chamou de nologia como uma psicologia descritiva. As Lectures on
fatores “quase-qualitativos” ou “figurativos” chamados the Consciousness of Inner Time (1905-1910)23 e o ensaio
de “qualidades da Gestalt” por von Ehrenfels22. (3) As publicado na revista Logos, “Philosophy as a Rigorous
Investigações Lógicas consistem nos resultados mais sig- Science” (1910)24 ilustram, respectivamente, a natureza
nificativos dos esforços intelectuais de Husserl nos anos da descrição fenomenológica e o ideal programático da
1890. Suas várias partes foram escritas em épocas dife- fenomenologia como a mais rigorosa de todas as ciências.
rentes e, portanto, tiveram que ser revisadas por inteiro Nesse período, a função esclarecedora da fenomenologia
é atribuída a uma disciplina autônoma que serve de pre-
lúdio para todo o tipo de conhecimento. Embora a análise
21
Cp. Illemann, Husserls vor-phänomenologische Philosophie, p. 70.
Illemann está correto ao ressaltar os três períodos em matemática
pura, pré-fenomenologia e pura ou “fenomenologia da epoche” 23
Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins, ou as
[“epochistic” phenomenology], embora fizesse mais sentido manter “Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo”,
a própria terminologia de Husserl ao falar de fenomenologia em cursos proferidos por Husserl entre 1905-1907, e compilados inicial-
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dois sentidos – o descritivo simples e o transcendental. Illemann mente por Edith Stein. Foram publicadas pela primeira vez em 1928,
comete o erro de apresentar o criticismo, do ponto de vista da escola sob organização de Martin Heidegger, no Jahrbuch für Philosophie
de Driesch-Schingnitz, enquanto ao mesmo tempo reconhece a und phänomenologische Forschung, 9. Halle a.d.S: Max Niemeyer,
incompletude dos períodos anteriores. Cf. revisão de Becker sobre 1928, 367-498. Em 1966, tem nova edição, por Rudolf Boehm, e sua
o livro de Illemann na Deutsche Literaturzeitung, Feb. 4, 1934, no publicação em 1969, nas Husserliana 10. A edição para o português
qual Becker sugere o título de “fenomenologia perspectivista” para foi traduzida por Pedro Alves, da Universidade de Lisboa (N. do E.).
o quarto período. 24
Philosophie als strenge Wissenschaft, publicado na revista Logos 1.
22
Refere-se à Gestaltquälitat ou “qualidade da forma”, proposta por Tübingen. (1910-11), 289-341. A tradução portuguesa data de 1965,
Christian von Ehrenfels (N. do E.). como A Filosofia como Ciência de Rigor (N. do. E.).

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012 242


Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

descritiva da consciência do tempo inclua elementos de trata do problema da vivência de outras mentes através
um caráter genético e constitutivo, e expanda o campo da empatia e introduz o conceito de intersubjetividade
de análise, a redução de todo o conhecimento à consci- transcendental, necessária para uma completa fenome-
ência pura não é definida sistematicamente tanto na obra nologia constitutiva. (6) Embora venham sob o título
quanto no ensaio de Logos. A fenomenologia é agora, em apropriado de fenomenologia transcendental, é desejável
resumo, uma região autônoma de investigação livre de listar os últimos escritos lógicos separadamente. A obra
toda pressuposição da psicologia, mantendo a exigência Formal and Transcendental Logic (1929)27 é importante
de uma filosofia livre de pressuposições. (5) As Ideias não somente em vista de sua notável excelência como um
inauguram o período da fenomenologia transcendental, clássico da lógica, mas também porque é o ponto culmi-
e o método da redução fenomenológica se torna o cami- nante das linhas de desenvolvimento da fenomenologia
nho para a filosofia. Este trabalho fornece a apresenta- lógica e transcendental. O termo “perspectivista” chama
ção sistemática da nova fenomenologia. Neste contexto, atenção para o esforço de uma síntese dos dois campos
o fenomenológico é distinguido da “atitude” natural. Esta de interesse tradicionalmente divergentes com os quais
pressupõe a existência do mundo, em conjunto com ou- a atividade filosófica de Husserl começou, ou seja, sua
tras pressuposições normalmente feitas. A atitude feno- proposição-problema original, a qual envolvia a psico-
menológica exige a suspensão de todas as pressuposições. logia e a epistemologia bem como o pensamento formal.
A existência do mundo e de tudo que é “posto”, é colocada A análise detalhada desse trabalho permite ao leitor jul-
“entre parênteses”. Os fenômenos que permanecem são gar o sucesso daquela síntese. Incluso nisto está uma rein-
o assunto principal da fenomenologia, definida como a terpretação e avaliação das Investigações Lógicas como
ciência da consciência pura transcendental. A discussão um nível avançado da fenomenologia transcendental.
sobre noesis e noema é particularmente importante para A preparação e a publicação dos últimos estudos lógi-
trazer à luz algumas estruturas fundamentais da expe- cos de Husserl, chamados de Experience and Judgment
riência e também por indicar um campo frutífero para (1939)28, finalmente permite a compreensão da base fe-
pesquisas. A “redução” abre um campo universal para a nomenológica da lógica. Husserl apresenta grande par-
investigação filosófica livre de quaisquer prejulgamentos te do material necessário para a análise da experiência,
e pressuposições, em razão da sua importância metodoló- acrescentando mais argumentos para suas investigações
gica crucial. Husserl é cuidadoso ao distinguir a redução e resultados já alcançados. Isso se aplica particularmente
eidética (procedente do fato para a essência) da redução à análise da “experiência pré-predicativa” e à “análise de
transcendental, de acordo com a qual os fenômenos são origens” dos conceitos e lógicas da forma29. Assim como
caracterizados como sendo “irreais” e não são ordenados a Formal and Transcendental Logic, este é um trabalho
no “mundo atual”. O método da redução fenomenológica de grande importância para a lógica, para a teoria do
é aplicado a fim de alcançar o campo filosófico livre de conhecimento e para a psicologia. É importante lembrar
pressuposições na consciência de um ego individual para que a oposição de Husserl ao psicologismo jamais impli-
começar, que envolve a suspensão de todas as crenças nas
realidades transcendentes. A fenomenologia tornava-se 27
No original, Formale and transzendentale Logik: Versuch einer Kritik
der logischen Vernunft (N. do Ed.).
agora a ciência mais fundamental e a base absoluta de 28
No original, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie
todo o conhecimento. O objetivo de Husserl ao trazer as der Logik, organizado por Ludwig Landgrebe e publicado logo
Investigações Lógicas até o nível das Ideias numa edição após o falecimento de Husserl. Permanece inédito em português
revisada (1913-1921) não foi concretizada plenamente, (N. do E.).
29
Cf. Erfahrung und Urteil, §§ 5, 11, e 12 para o significado do conceito
embora algumas partes dela tenham sido radicalmen- de “origem” ou de “gênese” como concebido pelo método fenome-
te alteradas em conformidade com uma clareza maior nológico. A afirmação “genética” de Husserl sobre os problemas da
que ele tinha desenvolvido. O termo “epoché”25 nomeia origem, como relacionados à lógica, não é psicológica no sentido
comum. O termo “genético” refere-se à produção pelo qual surge o
apropriadamente esse período. Não existe necessidade conhecimento na sua “forma originária” de auto-doação, um pro-
de ambiguidade no uso desse termo. Outros significa- cesso que repetidamente requer uma mesma forma de cognição. O
dos de “epoché” além daqueles das Idéias devem ser co- processo factual, histórico, dos significados que surgem a partir de
uma subjetividade definidamente histórica não está em questão.
locados explicitamente. Isso significa o caminho para a
Nosso mundo se torna um exemplo para nós por meio dos quais
esfera transcendental e sua elaboração mais detalhada é estudamos a estrutura e a origem de um mundo possível em geral.
oferecida pelas Meditações Cartesianas26. Este trabalho O esclarecimento da origem do julgamento predicativo é uma tarefa
fundamental para a genealogia da lógica num sentido transcenden-
25
No orginal, “epochistic”. Optamos por manter a palavra original tal. O objetivo é investigar as contribuições do conhecimento para
TextosClássicos

epoche, utilizada na fenomenologia, para não criar outro neologismo a construção do mundo. A fim de se ater às experiências últimas
(N.d. E.). e originais, é necessário voltar às unidades simples e considerar
26
Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge, publicados nas o mundo como um mundo puramente perceptivo, de abstrações
Husserliana 1, sob edição de S.Strasser. Referem-se às conferências de tudo o que é existente. Desse modo, o reino da natureza como
de Husserl em Paris (entre 23 e 24 de fevereiro de 1929), a convite percebido por mim é alcançado primeiramente. Assim, podemos
do “Institut d’Études Germaniques” e da “Societé Française de chegar à construção das pedras mais primitivas da contribuição
Philosphie”, na Sorbonne. Em português esses textos foram tradu- lógica, da qual o nosso mundo é construído. A linha sistemática
zidos em dois volumes distintos: Conferências de Paris e Meditações das interrogações “transcendentais” desses estudos lógicos ilustra
Cartesianas (N. do E.). tais “análises de origem”.

243 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012


Marvin Farber

cou uma oposição à psicologia. Ao contrário, não menos Transcendental”; a parte introdutória desse texto foi
importantes de suas contribuições foram feitas no cam- publicada no primeiro volume de Philosophia (1936)30.
po da psicologia. (7) As últimas publicações a aparecer, Este trabalho foi estruturado para apresentar ao aluno
uma antes de sua morte e outra póstuma, revelam seu as “dimensões radicalmente novas do conhecimento”
interesse em expandir o método fenomenológico para um da fenomenologia transcendental. O manuscrito sobre a
escopo ainda maior do que tinha sido alcançado, para origem da geometria, “Die Frage nach dem Ursprung der
incluir referência à história da ciência e da filosofia, e Geometrie als intentional-historisches Problem”, foi pu-
para dar conta do problema da história confrontando esse blicado por Fink na Revue Internationale de Philosophie
método por meios do conceito de “história intencional”. (1939). Os vestígios literários de Husserl incluem uma
Os sete grupos listados acima abrangem as seguin- grande quantidade de material descritivo sobre fenome-
tes publicações: (1) Matemática. Tese de doutorado, nologia constitutiva e revela seus muitos interesses no
“Beiträge zur Variationsrechnung” que não foi publi- campo da filosofia como um todo.
cada. (2) Psicologismo. Filosofia da Aritmética (1891),
somente o volume I foi publicado; “Psychologische
Studien zur elementaren Logik” (1894). A tese de ha- 5. Rumo ao Futuro
bilitação submetida à Universidade de Halle para fins
de qualificação docente, “Ueber den Begriff der Zahl” Husserl acreditava que estivesse fazendo grandes pro-
(1887) foi impressa, mas não colocada à venda. Foi in- gressos até o final, e que tinha finalmente alcançado a
corporada na Filosofia da Aritmética. (3) Formal Logic clareza completa sobre a compreensão. Rebaixado pela
and Phenomenology as Descriptive Psychology. Revisão Alemanha oficial e ignorado por muitos dos renomados
do trabalho de Schröder intitulado “Vorlesungen über teóricos “Arianos” na Alemanha, os quais tinha influen-
die Algebra der Logik” (1891); “Der Folgerungscalcül ciado, Husserl encarou o futuro com um apelo para o jul-
und die Inhaltslogik” (1891); controvérsia com Voigt gamento da eternidade, com a percepção serena de quem
(1893); a primeira pesquisa lógica, “Bericht über deuts- tinha alcançado muito do que é permanente. Ele escre-
che Schriften zur Logik aus dem Jahre 1894” (1897); veu: “E nós, velhas pessoas, permanecemos aqui. Uma
Logische Untersuchungen, primeira edição (1900-1901). virada singular dos tempos: isso dá aos filósofos – se não
(4) Fenomenologia Pré-Transcendental. Segunda pesquisa nos tirar o fôlego – muito para pensar. Mas agora: cogito
lógica, “Bericht über deutsche Schriften zur Logik in den ergo sum, ou seja, submeto sub specie aeterni meu direi-
Jahren 1895-99” (1903-1904); revisão da obra de Palagyi to de viver. E isso, as aeternitas em geral, não podem ser
Der Streit der Psychologisten und Formalisten in der mo- tocadas por nenhuma força terrestre”.
dernen Logik (1903); conferências sobre consciência do Para ser sincero, Husserl teve poucos “seguidores”
tempo, Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren no final de sua vida, do ponto de vista da aceitação sem
Zeitbewusstseins (publicadas em 1928, mas escritas entre reservas dos seus últimos esforços filosóficos. Mas seria
1905-1910); o ensaio publicado na revista Logos sobre a um erro restringir o número de representantes sinceros
filosofia como ciência rigorosa, “Philosophie als strenge da filosofia fenomenológica a uns poucos seguidores.
Wissenschaft” (1910). (5) Fenomenologia Transcendental. A alma do trabalho de Husserl era uma completude úni-
A edição revisada das Logische Untersuchungen, jun- ca; seus problemas tinham um horizonte sempre aberto.
tamente com o prefácio recentemente publicado de Se alguns poucos estudantes de filosofia podiam man-
1913, no qual Husserl responde aos críticos (1913- ter seu progresso atualizado, isso era devido à escassez
1921); Ideen zu einer reinen Phänomenologie (1913); o de suas publicações em relação a sua produção comple-
prefácio do autor à tradução para o inglês das “Ideen” ta. Mas não era só isso; deve-se se admitir que muitos
(1931); o artigo sobre fenomenologia na Encyclopaedia alunos de filosofia não dedicaram o tempo necessário
Britannica, 14ª edição (1929); Méditations Cartésiennes ao estudo da fenomenologia. Esta era plenamente com-
(1931); o ensaio de Fink nos Kant-Studien, “Die phä- preendida por alguns poucos, embora fosse discutida
nomenologische Philosophie Edmund Husserls in der por muitos. Husserl não poderia se sentir sozinho nes-
gegenwärtigen Kritik”, no qual Husserl endossava ao sas circunstâncias e isto foi acentuado pelo seu status
expressar suas próprias opiniões (1933). (6) Síntese na nova Alemanha.
da Logica Formal e da Fenomenologia Transcendental. O período do alcance internacional de Husserl em
Formale und Transzendentale Logik (1929); Erfahrung larga escala agora que começou, consoante o interesse
und Urteil (1939). Husserl afirmou que ele mesmo se sistematicamente organizado de estudiosos do mundo
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deparou com dificuldades antigas, mas que esse foi todo sobre o entendimento e desenvolvimento da sua fi-
sem dúvida seu trabalho mais maduro, à parte a quinta losofia. Husserl está destinado a ser objeto de discussão
edição das Meditações Cartesianas. (7) Fenomenologia por um bom tempo. Esta é a intenção dos membros da
e História. Na época de seu falecimento ele estava tra- International Phenomenological Society, de fazer feno-
balhando em seu último livro, “A Crise das Ciências
30
“Die Krisis der europäischen Wissenchaften und die transzendentale
Européias e a Filosofia: Uma Introdução à Fenomenologia
Phanomenologie”.

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012 244


Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940)

menologia efetivamente para progressos fenomenológi- da filosofia em si mesma e em sua relação com outras
cos futuros. áreas de aprendizagem.
O método fenomenológico proíbe quaisquer prejul-
gamentos e dogmas. Seu ideal é a elaboração de uma Marvin Farber (University of Buffalo)
filosofia descritiva através de um método radical, pro-
cedendo com a maior liberdade possível das pressupo-
sições. Essa é uma tendência científica na filosofia e Nota Biográfica
seu programa construtivo prevê resultados muito posi-
Marvin Farber (1901-1980) foi um filósofo americano (nascido em
tivos. Assim, o método fenomenológico tem se mostra- Buffalo, New York). Graduado summa cum laude em Filosofia pela
do de aplicabilidade, através de muitas pesquisas, em Harvard University, estudou em Berlim, Freiburg e Heidelberg, entre
diversas áreas do conhecimento como arte, matemáti- 1922-1924, período em que entrou em contato com Husserl. Em 1925,
cas, direito, ciências sociais, psicologia e psiquiatria. obteve seu Doutorado em Harvard com a tese Phenomenology as a
Method and as a Philosophical Discipline. Ao lado de Dorion Cairns foi
É certo que apenas o início foi feito. Por outro lado, a um dos pioneiros na introdução da Fenomenologia nos Estados Unidos.
adoção nominal e o uso inadequado do método fenome- Professor Emérito na Universidade de Buffalo, entre 1937-1961, fundou
nológico já ilustraram os perigos de um misticismo, de – em 1940 – a revista Philosophy and Phenomenological Research, um
uma descrição unilateral e distorcida, do dogmatismo dos mais respeitados journals de sua área, sendo seu Editor até 1980.
Anteriormente, em 1939, fundou a International Phenomenological
e do agnosticismo. Um domínio crítico e competente Society. Publicou Phenomenology as a Method (1928), The Foundation
deveria manter o método livre de tais erros, oferecen- of Phenomenology (1940), Naturalism and Subjectivism (1959) e The
do uma base para todos os estudiosos interessados no Search for an Alternative: Philosophical Perspectives of Subjectivism
programa construtivo da filosofia como ciência rigoro- and Marxism (1984, póstuma).
sa. O novo periódico, Philosophy and Phenomenological
Research, está dedicado à promoção desse ideal. O tra-
balho de Edmund Husserl constitui seu ponto de parti- Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek
da. Olhando para o futuro, ele convida a uma participa- (Universidade Tecnológica Federal do Paraná)
ção ativa de todos os estudiosos capazes de contribuir
para a compreensão e desenvolvimento da fenomeno- Revisão Técnica: Adriano Furtado Holanda
logia no seu sentido clássico e com o futuro progresso (Universidade Federal do Paraná)

TextosClássicos

245 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 235-245, jul-dez, 2012


Dissertações e Teses ...........
Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista (2010)

DISSERTAÇÕES E TESES

Título: Pesquisa Fenomenológica na Justiça do Trabalho – Proposta de Conciliação Humanista

Autor: Nayara Queiroz Mota de Sousa

Instituição: Universidade Católica de Pernambuco

Programa: Mestrado em Direito

Banca: Sergio Torres Teixeira (Orientador)


Sandra Souza da Silva Chaves (UFPB) (Co-Orientadora)
Virginia Colares Soares Figueiredo Alves (Unicap)
Marcelo Labanca Correia de Araújo (Unicap)
Luciana Grassano de Gouveia Melo (UFPE)

Defesa: 17 de fevereiro de 2010

Resumo: O Poder Judiciário exerceu uma grande influência na formação do Estado brasileiro,
o que ressaltou o papel da classe jurídica dentro da sociedade. Como juristas, os
magistrados tiveram uma grande influência na elaboração da estrutura e organização
estatal o que lhes renderam um enorme prestígio e poder dentro do meio social. Esta
característica associada à luta pela independência e profissionalização da categoria gerou
um distanciamento dos juízes com os cidadãos, sendo que a formação da magistratura
baseada no método cartesiano de fazer ciência, que não acompanhou as transformações
sociais trazidas pela modernidade, aprofundou ainda mais este afastamento, gerando
uma insatisfação com a atuação do Poder Judiciário, inclusive no ramo trabalhista.
O aumento da conflituosidade provocado pelas modificações implantadas no mundo
moderno exige respostas rápidas e efetivas do Poder Judiciário, como pacificador
social. Neste panorama, os meios de solução de conflitos devem ser privilegiados,
que além de desafogarem a máquina judiciária, resolvem a contenda no seio social.
A conciliação vem sendo estimulada como melhor e mais rápida solução para as ações
judiciais, portanto precisa ser aprimorada. A humanização da atuação jurisdicional se
apresenta como alternativa para aproximar o Poder Judiciário do cidadão e auxiliar na
missão de pacificação dos conflitos, pois promete o aperfeiçoamento da pessoa para
melhor conviver em sociedade, em um momento em que o isolamento e as contradições
parecem atingir o homem moderno. O presente trabalho objetivou identificar o sentido
da relação estabelecida em audiência entre o magistrado e as partes, através de uma
pesquisa fenomenológica existencial, utilizando como instrumento metodológico, a
versão de sentido, para a coleta de dados. Os resultados e discussão demonstram que
das falas dos magistrados e dos jurisdicionados emergiram eixos de significados que
revelam o sentimento de cada pesquisado, inclusive com tematizações específicas dos
Juízes; eixos que se comunicavam nas vivências dos reclamantes e dos reclamados e
outros que são peculiares a cada parte em específico. Analisando estas unidades de
significações se podem traçar conexões com a revisão da literatura que evidenciaram a
necessidade de aperfeiçoar a atividade jurisdicional e promoveram uma reflexão sobre
as posturas adotadas na atuação do Poder Judiciário Trabalhista da Paraíba. Conclui-
DissertaçõeseTeses

se com a sugestão de uma nova perspectiva para humanizar a tentativa conciliatória,


adotando os fundamentos da Abordagem Centrada na Pessoa para qualificar este ato
jurisdicional e implantar dentro da Justiça do Trabalho uma conciliação humanista.

Palavras-chave: Conciliação Humanista. Justiça do Trabalho. Pesquisa Fenomenológica. Versão de


Sentido. Abordagem Centrada na Pessoa.

Abstract: The Judiciary has exercised a great influence on the formation of the Brazilian state,
which emphasized the role of the judicial profession in society. As jurists, the judges

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Nayara Q. M. Sousa

had a great influence in developing the structure and the state organization that
earned them enormous prestige and power within the social environment. This feature
associated with the struggle for independence and professionalism of the category
generated a distance of judges with the public, and training for the judges based on
the Cartesian method of doing science, which not accompanied the social changes
brought by modernity, has enlarged this distance, generating a dissatisfaction with the
performance of the Judiciary, including the labor sector. The increased conflictuality
that caused by the changes implemented in the modern world requires rapid and
effective responses of the judiciary, social as peacemaker. In this scenario, the means
of conflict resolution should be privileged, that beyond the Judiciary of relief, resolve
the dispute within society. Reconciliation has been promoted as the best and quickest
solution to the lawsuits, so they need to be improved. Humanizing is an alternative
approach to the judiciary of the citizen and helping in the mission of pacifying the
conflict, for it promises the improvement of the person to cope better in society, in a time
when the isolation and the contradictions seem to reach the modern man. This study
aimed to identify the direction of the relationship between the judge and the parties,
through an existential phenomenological research, using as a methodological tool, the
version of meaning, to collect data. Results and discussion show that the speech of
judges and parties of the axes of meanings emerged that reveal the feelings of each
search, including specific thematizations Judges; axes that are communicated in the
experiences of the parties and others axes which are peculiar to each part in particular.
Analyzing these units of meaning they can trace connections to the literature review,
highlighting the need to improve the judicial activity and promote a reflection on the
postures adopted in the Judiciary of the Paraiba. This Search concluded by suggesting a
new perspective to humanize the conciliatory attempt, taking the fundamentals of the
Person Centered Approach to qualify and deploy the conciliation within the Judiciary
proposing the conciliation a humanist.

Keywords: Reconciliation Humanist. Judiciary. Phenomenological Research. Version of Sense.


Person Centered-Approach.

Texto completo: http://www.unicap.br/tede/tde_arquivos/4/TDE-2011-06-07T155431Z-395/Publico/


dissertacao_nayara_queiroz.pdf
DissertaçõeseTeses

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 249-250, jul-dez, 2012 250


“A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund Husserl: uma apresentação (2011)

DISSERTAÇÕES E TESES

Título: “A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental” de Edmund


Husserl: uma apresentação

Autor: Erico de Lima Azevedo

Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa: Mestrado em Filosofia

Banca: Mário Ariel González Porta (Orientador)

Defesa: 20 de maio de 2011

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar uma das mais importantes e intricadas obras
do filósofo alemão Edmund Husserl: “A crise das ciências européias e a fenomenologia
transcendental”, de 1936. Trata-se de uma obra significativa no desenvolvimento
de Husserl por causa da elaboração do conceito de “mundo-da-vida” (Lebenswelt),
mas, além disso, o texto contém uma dimensão adicional, igualmente inovadora: é
a primeira publicação na qual Husserl toma expressamente uma posição sobre a
história e na qual trata o problema da historicidade da filosofia, empreendendo longas
análises “histórico-teleológicas”. Porém, antes de compreender porque é possível falar
de uma crise das ciências, porque, para Husserl, a lógica, a matemática e a física ainda
precisassem de um fundamento último, e, finalmente, porque, para ele, a filosofia
seja a ciência capaz de prover este fundamento, o primeiro passo é compreender a
sua noção de “ciência”. As análises histórico-teleológicas ocupam uma posição de
destaque na última grande obra de Husserl, correspondendo ao próximo passo “lógico”:
demonstrar “como”, historicamente, tenham-se construído os equívocos da filosofia
e da ciência. Husserl analisa a teleologia ínsita no percurso histórico da filosofia na
busca de um fundamento definitivo, o qual, não fora corretamente capturado pelas
duas principais posições da filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo
transcendental. Tal percurso conduz a filosofia à necessidade de uma tarefa específica,
que é a fenomenologia. Esta é chamada a realizar o empreendimento de uma análise
intencional da consciência constitutiva do mundo, a qual desvelará pela primeira vez
como tema filosófico o “mundo-davida”, o qual surge como fundamento de todas as
ciências: filosofia, lógica, matemática, ciências naturais etc. O trabalho faz então uma
revisão de parte da vasta literatura acerca da noção de “mundo-da-vida”, seguindo as
minuciosas considerações de alguns autores: segundo a perspectiva da evolução da
idéia de “mundo” na obra de Husserl, segundo a constituição intersubjetiva do mundo
e o relativismo histórico, mas também segundo a consideração do problema filosófico
do “mundo-da-vida” enquanto um universo de ser e de verdade, apresentando, por fim,
uma análise segundo a perspectiva da totalidade da vida intencional. No que se refere
ao problema das “vias” para a redução fenomenológica transcendental, que ocupa a
terceira parte da obra, analisamos apenas a via por meio da reconsideração do “mundo-
da-vida” já dado, deixando a via da “psicologia” para uma investigação futura.

Palavras-chave: Husserl. Mundo da Vida. Crise das Ciências. Fenomenologia Transcendental.


DissertaçõeseTeses

Abstract: The present study aims to present one of the most important and difficult works of
the German philosopher Edmund Husserl “The crisis of European sciences and
transcendental phenomenology”, 1936. It is a significant work in Husserl’s development
because he evolves the concept of “life-world” (Lebenswelt), but, besides, the text also
reveals another novelty dimension: this is the first work in which Husserl takes expressly
a position about history and deals with the problem of historicity of philosophy,
doing long “historical-teleological” analysis. However, before understanding why it

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Erico L. Azevedo

is possible to declare a “crisis of sciences”, why, for Husserl, logic, mathematics and
physics were still in need of a last grounding and, finally, why philosophy is the
science capable of providing such grounding, it is necessary to pay special attention to
his notion of science. The historical-teleological analysis play, indeed, an outstanding
role in the last great work of Husserl, corresponding to the next logic step: to show
“how”, historically, the mistakes of philosophy and science have been possible. Husserl
analyses the intrinsic teleology of the history of philosophy in the search for its own
grounding, which was not correctly captured by both of main positions of modern
philosophy: physicalistic objectivism and transcendental subjectivism. Such path
leads philosophy to the need of a specific task, which is phenomenology. This is called
to accomplish an authentic and consistent intentional analysis of the consciousness
that constitutes the world, revealing for the first time as a philosophical theme the
“life-world”, which appears then as the grounding soil for all sciences: philosophy,
logic, mathematics, natural sciences etc. The study then performs a revision of part of
the literature regarding the concept of “life-world”, following detailed considerations
of a few important critics: in the perspective of the evolution of the idea of “world”
in Husserl’s texts, in the perspective of intersubjective constitution of the world and
historical relativism, but also in the perspective of a “universum of being and truth”,
and finally, in the perspective of the totality of intentional life. Regarding the problems
of the “ways” into transcendental philosophy, corresponding to the third part of the
text, we have analysed in this study only the way by inquiring back from the pregiven
life-world, while the way from psychology was left for a future investigation

Keywords: Husserl. Life-world. Crisis of sciences. Transcendental Phenomenology.

Texto completo: http://www.ontopsicologia.org.br//arquivos/download/a_crise_das_ciencias_eurpeias_


e_a_fenomenologia_transcendental_de_edmund_husserl__uma_apresentacao.pdf
DissertaçõeseTeses

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 251-252, jul-dez, 2012 252


Normas para Publicação ......
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da Abordagem Gestáltica

A REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA, edita- dologia, resultados e discussão dos dados. O manuscrito
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de ser um veículo de publicação preferencialmente da bre um determinado tema. Busca achados controvertidos
Abordagem Gestáltica, bem como daquelas abordagens para crítica e apresenta sua própria interpretação das in-
que se fundamentam em bases teórico-científicas e filosó- formações. O manuscrito deve ter entre 12 e 20 laudas.
ficas dentro das perspectivas humanistas e existenciais, Relato de experiência – estudo de caso, contendo
além das pautadas na Fenomenologia. As suas diretrizes análise de implicações conceituais ou descrição de proce-
são definidas pela Editoria e pelo Conselho Editorial, dos dimentos ou estratégias de intervenção, incluindo evidên-
quais participam psicólogos, filósofos e profissionais das cia metodologicamente apropriada de avaliação de eficá-
áreas da saúde e educação. cia, de interesse para a atuação de psicólogos em diferen-
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e Abordagem Gestáltica; b) Psicologia Humanista e ção, mestrado ou doutorado. Limitado a 10 laudas.
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pesquisa e na produção do conhecimento relativos às (no máximo há dois anos). Limitada a 5 laudas.
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Relato de pesquisa – relato de investigação concluída encaminhado também um mini-currículo contendo as se-
ou em andamento, com uso de dados empíricos, meto- guintes informações: nome completo do(s) autor(es), afi-

255 Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012


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os sugeridos por este. espaçamento interlinear simples, fonte 10, com até 200
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da apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de ple- sive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com
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aceitação, podendo, inclusive, apresentar sugestões aos Incluir também descritores em inglês (keywords) e espa-
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Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os e) Estrutura do manuscrito - os trabalhos referen-
autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma de- tes a pesquisas e relatos de experiência deverão conter
claração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclu-
por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) são. O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara
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nho 12, espaçamento interlinear de 1,5 e margens de j) Notas de rodapé - deverão ser numeradas em or-
2,5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máxi- dem crescente e restritas ao mínimo indispensável.
mo de laudas, de acordo com o tipo de publicação dese- l) Citações - deverão ser feitas de acordo com as nor-
jada (ver Informações gerais), observadas as seguintes mas da APA (5ª edição, 2001). Em caso de transcrição in-
especificações: tegral de um texto com número inferior a quarenta pala-
a) Cabeçalho - é recomendado que o título do artigo vras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre aspas
seja escrito em até doze palavras, refletindo as principais duplas, em itálico, com indicação, após o sobrenome do
questões de que trata o manuscrito. O título deverá ser autor e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma
redigido em caixa alta, fonte 14, centralizado e em ne- citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser
grito. A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em destacada em bloco próprio, começando em nova linha,
fonte 12, os títulos em inglês e espanhol. sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo ali-
b) Os nomes completos dos autores deverão apa- nhado com a primeira linha do parágrafo normal. O ta-
recer abaixo do título, em fonte 12, letra versalete, com manho da fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear
alinhamento à direita, indicando, após as Referências 1,5, como no restante do manuscrito. A citação destacada
Bibliográficas, em nota explicativa, a titulação dos auto- deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e
res, local de atividade e e-mail (se houver). outra abaixo da mesma
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c) Epígrafe - deverá ser apresentada em letra normal, m) Referências Bibliográficas - denominação a ser
em espaçamento interlinear simples, fonte 10, com ali- utilizada. Não use Bibliografia. O subtítulo Referências

Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 255-259, jul-dez, 2012 256


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Bibliográficas deverá estar alinhado à esquerda. As refe- Citações de trabalho discutido em uma fonte secun-
rências deverão seguir normas da APA (5ª edição, 2001). dária
A fonte deverá ser formatada em tamanho 12, espaçamen-
to interlinear 1,5, sempre em ordem alfabética Deixe um Caso se utilize como fonte um trabalho discutido em
espaço extra entre uma citação e a próxima. Utilize o re- outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exem-
cuo “deslocamento”. Verificar se todas as citações feitas plo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá
no corpo do manuscrito e nas notas de rodapé aparecem ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por
nas Referências Bibliográficas e se o ano da citação no Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”
corpo do manuscrito confere com o indicado na lista Na seção de Referências Bibliográficas, informar ape-
final. nas a fonte secundária (no caso Shore, 1982), com o for-
n) Anexos - usados somente quando indispensáveis mato apropriado.
à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo
de páginas (serão computadas como parte do manuscri-
to) e localizados após Referências Bibliográficas. Citações de obras antigas reeditadas

a) Quando a data do trabalho é desconhecida ou mui-


4. Tipos comuns de citação no manuscrito to antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”:
“Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).
Citação de artigo de autoria múltipla b) Em obra cuja data original é desconhecida, mas
a data do trabalho lido é conhecida, citar o nome do au-
a) dois autores tor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução
O sobrenome dos autores é explicitado em todas as ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou
citações, usando “e” ou “&” conforme a seguir: “O método (Aristóteles, versão 1931).
proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi c) Quando a data original e a consultada são diferen-
inicialmente proposto para o estudo da visão (Siqueland tes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data
& Delucia, 1969)” da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)”
ou (Pavlov, 1904/1980).
b) de três a cinco autores
O sobrenome de todos os autores é explicitado na pri-
meira citação: “Spielberger, Gorsuch e Lushene (1994) Citação de comunicação pessoal
verificaram que”. Da segunda citação em diante, só o so-
brenome do primeiro autor é explicitado, seguido de “et Este tipo de citação deve ser evitada, por não ofere-
al.” e o ano: “Spielberger et al. (1994) verificaram que”. Se cer informação recuperável por meios convencionais.
houver uma terceira citação no mesmo parágrafo, omita Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na se-
o ano: “Spielberg et al. verificaram” ção de Referências Bibliográficas, com a indicação de
Caso as Referências e a forma abreviada produzam “comunicação pessoal”, seguida de dia, mês e ano. Ex.:
aparente identidade de dois trabalhos em que os co-auto- “C. M. Zannon (comunicação pessoal, 30 de outubro de
res diferem, esses são explicitados até que a ambigüidade 1994).”
seja eliminada. Os trabalhos de Hayes, S. C., Brownstein,
A. J., Haas, J. R. & Greenway, D. E. (1986) e Hayes, S. C.,
Brownstein, A. J., Zettle, R. D., Rosenfarb, I. & Korn, Z. 5. Seção de Referências Bibliográficas
(1986) são assim citados: “Hayes, Brownstein, Haas et al.
(1986) e Hayes, Brownstein, Zettle et al. (1986). Organize por ordem alfabética dos sobrenomes dos
Na seção de Referências Bibliográficas, os nomes de autores. Em casos de referência a múltiplos estudos do
todos os autores devem ser relacionados. mesmo autor, organize pela data de publicação, em ordem
cronológica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recen-
c) de seis ou mais autores te. Referências com o mesmo primeiro autor, mas com di-
Desde a primeira citação, só o sobrenome do primei- ferentes segundos ou terceiros autores, devem ser organi-
ro autor é mencionado, seguido de “et al.”, exceto se esse zadas por ordem alfabética dos segundos ou terceiros au-
formato gerar ambiguidade, caso em que a mesma solução tores (ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxi-
indicada no item anterior deve ser utilizada: “Rodrigues liam na organização do manuscrito, mas certamente não
et al. (1988).” esgotam as possibilidades de citação. Utilize o Publication
Mais uma vez, na seção de Referências Bibliográficas Manual of the American Psychological Association (2001,
todos os nomes são relacionados. 5ª edição) para suprir possíveis lacunas.
Normas

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Normas de Publicação da Revista da Abordagem Gestáltica

Exemplos de tipos comuns de referência Vasconcelos, L. A. (1983). Brincando com histórias infantis:
uma contribuição da Análise do Comportamento para o de-
Relatório técnico senvolvimento de crianças e jovens (2ª ed.). Santo André:
ESETec.
Birney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of chil-
dren with written language disabilities (relatório n. 81-1502). Capítulo de livro
Washington, DC: National Education Association.
Blough, D. S. & Blough, P. (1977). Animal psychophysics. Em W.
Trabalho apresentado em congresso, mas não K. Honig & J. E. Staddon (Orgs.), Handbook of operant behav-
ior (p. 514-539). Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall.
publicado

Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Disgust, disre- Livro traduzido em língua portuguesa
spect and culture: moral judgement of victimless violations
in the USA and Brazil. Trabalho apresentado em Reunião Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em
Anual (Annual Meeting) da Society for Cross-Cultural outra língua é usada como fonte, citar a tradução em por-
Research, Isla Verde, Puerto Rico. tuguês e indicar ano de publicação do trabalho original.

Trabalho apresentado em congresso com resumo Salvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de co-
publicado em publicação seriada regular nhecimento. (E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas
(Trabalho original publicado em 1990).
Tratar como publicação em periódico, acrescen-
tando logo após o título a indicação de que se trata de No texto, citar o ano da publicação original e o ano
resumo. da tradução: (Salvador, 1990/1994).

Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um Artigo em periódico científico


curso para melhorar a capacidade de julgamentos corre-
tos de expressões faciais de emoções [Resumo]. Ciência e Informar volume do periódico, em seguida, o número
Cultura, 40 (7, Suplemento), 927. entre parêntesis, sobretudo quando a paginação é reini-
ciada a cada número.
Trabalho apresentado em congresso com resumo
publicado em número especial Doise, W. (2003). Human rights: common meaning and differ-
ences in positioning. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 19(3),
Tratar como publicação em livro, informando sobre 201-210.
o evento de acordo com as informações disponíveis em
capa. Obra no prelo

Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e deci- Não deverão ser indicados ano, volume ou número de
são: A teoria da maximização momentânea [Resumo]. Em páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a
Sociedade Brasileira de Psicologia (Org.), Resumos de co- ordem de nomes, é a ultima referência do autor.
municações científicas, XXII Reunião Anual de Psicologia
(p. 66). Ribeirão Preto: SBP.
Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos sobre
a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira de
Teses ou dissertações não-publicadas Sexualidade Humana.

Costa, L. (1989). A família descasada: interação, competên- Autoria institucional


cia e estilo. Estudo de caso. Dissertação de Mestrado,
Universidade de Brasília, Brasília.
American Psychiatric Association (1988). DSM-III-R,
Diagnostic and statistical manual of mental disorder (3a
Livros
ed. revisada). Washington, DC: Autor.
a) primeira edição:
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Normas

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