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Paradoxos da política externa de Barack Obama – Anno Primo

Alexander Martins Vianna*

Resumo: Ensaio que faz um balanço crítico da política externa do primeiro ano do
governo Barack Obama. Aqui, são inventariados alguns de seus paradoxos quando se
comparam formas de ação e os valores norteadores de suas propostas de engajamento
para América Latina, África, Oriente Médio e Ásia Central, assim como, as relações
ambíguas de diálogo com a Rússia e a China, cujo objetivo foi garantir, ao longo de
2009, uma agenda externa de baixa manutenção, ou evitar a simultaneidade de
cenários de fricção. Nesse ensaio, sustenta-se a hipótese de que o governo Obama
dividiu, quando interessava, o ônus da sua política externa com instituições
mediadoras internacionais, pretendendo compartilhar com muitos o erro acumulado
de poucos (em matérias financeira, militar e estratégica) de quase uma década.
Palavras-chave: Barack Obama – Política Externa – Engajamento – Pensamento
Social

Cartaz da campanha presidencial de 2008

Introdução fosse deixada para traz no “governo da


esperança” de Barack Obama. Muitas
Em começo de 2009, havia uma
mensagens publicitárias passaram a atrelar
expectativa mundial de que a “era Bush”
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a sua imagem, em altivo busto, à palavra o equilíbrio regional na Ásia Central com o
“Esperança” – ou ao fim do “governo do engajamento da União Européia, da China,
medo”. Houve uma notória mudança na da Rússia, da Índia e do Paquistão na
retórica oficial do novo governo, visando a missão militar do Afeganistão; engajar
estabelecer uma distância formal com o China e Rússia em acordos bilaterais de
governo anterior: termos como “eixo do caráter econômico e militar; firmar
mal” (Irã-Síria-Coréia do Norte), parcerias estratégicas na África e conter a
“terroristas muçulmanos” (que, na prática, “diplomacia energética” da China em tal
estabelecia uma equivalência entre ser continente; conter a ameaça de “grupos
muçulmano e ser terrorista), ou a extremistas violentos” e de redes
exploração da díade “bem” e “mal” da transnacionais de tráfico de drogas;
caracterizada retórica “muscular” e reformar as leis e instituições que regulam
fundamentalista cristã do governo do e mediam a situação de imigrantes (legais e
texano Bush desapareceram dos ilegais) e asilados. Uma agenda ambiental
pronunciamentos oficiais. Tudo isso foi também foi esboçada, porém, foi sendo
substituído pela retórica “conciliatória”, postergada até dezembro, sem resultados
sóbria, centrista, moderada e cosmopolita significativos.
da estratégia de engajamento de Barack Os teatros de operação no Oriente Médio e
Obama. na Ásia Central estiveram estrategicamente
Assim, primando pelo princípio de que a interligados com a necessidade de
diplomacia multilateral deveria preceder a “engajar” o Irã, mas de um modo que não
“solução de força” – e que esta deveria ser desagradasse Israel e Arábia Saudita, que
também, preferencialmente, multilateral e não tinham o menor interesse em ver
aprovada pelo conselho de segurança da regimes como o dito “islã político” de
ONU –, o governo Obama não apenas diria maioria xiita no Irã tornar-se hegemônico
ratificar como relevante o papel de regionalmente, seja por meios próprios,
organismos mediadores internacionais, seja com apoio americano, russo, chinês ou
mas também sinalizaria, desde o seu indiano. Tratava-se de um jogo de xadrez
discurso de posse, em 20 de janeiro de difícil, pois o Irã (tal como a Síria) afeta
2009, para a possibilidade de diálogo com diretamente a segurança de Israel – que
os Estados “ditos desposadores de tem um lobby político muito forte nos
terrorismo” que efetivamente desejassem EUA –, mas também forma um nó
estabelecer parcerias proveitosas estratégico vital para a segurança dos dois
economicamente e que abrissem mão de teatros de operação dos EUA devido às
favorecer ações que colocassem em risco a suas fronteiras com o Iraque (em processo
segurança dos EUA e de seus interesses de estabilização pelas forças EUA-OTAN)
estratégicos no mundo. e com o Afeganistão – no qual a missão
OTAN-EUA, ao longo de 2009, adquiriu
Em seu primeiro ano, podemos observar
cada vez mais as feições de um projeto de
que as grandes metas da política externa de
“construção de Estado”.
Obama foram: pacificar o Oriente Médio
(i.e., conseguir uma solução de estado dual Em geral, as fronteiras da Ásia Central e
para israelenses e palestinos, assim como, do Oriente Médio têm sido avaliadas como
estabilizar a legitimidade do governo do porosas para a movimentação dos “grupos
Iraque); firmar o princípio da violentos extremistas”, o que amplia a
inviolabilidade da soberania dos estados necessidade de outros engajamentos que se
como forma de se distanciar da estratégia harmonizam mal com a retórica dos
preventiva de Bush; buscar a não- direitos humanos (e, particularmente, das
proliferação de armas nucleares; melhorar mulheres) do Departamento de Estado do

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governo Obama. No entanto, antes de alteridade reativa, ressentida, maniqueísta
explicitar melhor tais paradoxos da e anti-americana construída durante a era
estratégia de engajamento, gostaria de Bush para, por fim, firmar o princípio da
sistematizar alguns detalhes da nova responsabilidade compartilhada sobre
retórica oficial do governo Obama, pois questões que interconectavam os interesses
justamente demonstram “questões de valor de povos e países.
e doutrina”, assim como, pressupostos Ao agir assim, Obama fez uma escolha
morais, políticos e sociológicos que se estratégica que possibilitou, por exemplo,
subordinam à sua agenda doméstica e à sua desarmar a retórica reativa de lideranças
própria percepção da história dos EUA. regionais do porte de Hugo Chávez (da
1. O mundo para além das díades do Venezuela) e Mahmoud Ahmadinejad (do
século XX – Cui bono? Irã). Inclusive, no caso deste último,
muitos analistas do próprio governo
A nova retórica oficial do governo dos
Obama avaliaram que o seu discurso no
EUA enfatiza a construção de um mundo
Cairo, em 3 de junho de 2009, afetou
de multiparceiros que valoriza
diretamente a campanha eleitoral no Irã,
seletivamente o papel dos organismos de
pelo simples fato de ter eliminado do
mediação política internacional. Durante o
espectro político o “inimigo objetivo” que
primeiro semestre de 2009, Obama
funcionava bem para justificar
esforçou-se pessoalmente em vencer as
internamente a identidade reativa do
polarizações, desconfianças e
governo Ahmadinejad frente à oposição
ressentimentos criados, no espectro
moderada ocidentalizante, assentada
político internacional, pela estratégia de
socialmente na classe média.
defesa preventiva do governo Bush.
Lembremos que este, quando decidiu Assim, depois de 3 de junho de 2009, o
invadir o Iraque em 2003, chegou mesmo a “inimigo infiel” ficou bem menos passível
afirmar que a ONU era irrelevante para a de simplificação, quando o próprio
segurança (e política energética) dos EUA. presidente dos EUA pediu desculpas pelo
Por isso mesmo, desde o seu discurso de golpe de Estado no Irã em 1953, sinalizou
posse, Obama buscou uma retórica sóbria, para a possibilidade de diálogo com Irã e
instrutiva, quase professoral, sobre a sua Síria, falou da importância da cultura
política externa. muçulmana para a formação da civilização
ocidental e, rompendo com toda a tradição
Assim, em seus pronunciamentos oficiais
presidencial norte-americana desde o fim
ao longo de 2009, Obama evitou chavões
da II Guerra Mundial, falou da Palestina no
retóricos que criassem uma equivalência
tempo presente (e não como um projeto
simplista entre “muçulmano” e “terrorista”,
vindouro) para enfatizar uma solução dual
ou expressões bombásticas que
de Estado e, acima de tudo, exigiu que
explorassem o medo, a ignorância, o
houvesse o congelamento dos
racismo e a intolerância do telespectador.
assentamentos israelenses na faixa de Gaza
Pelo contrário, os seus discursos oficiais
e uma definição do status de Jerusalém que
buscaram instruir e criar empatia sobre
não fosse excludente para nenhuma das
temas complexos, abrir espaço para o
religiões monoteístas da região.
diálogo e superar abordagens diádicas
sobre temas complexos. Com isso, Ao analisar alguns discursos oficiais de
ratificava a idéia de que a autoridade de Obama em 2009, percebi algumas
sua liderança não seria construída através recorrências estratégicas de recursos
do medo e da força, mas sim através do retóricos, por exemplo: quando se referia
“bom exemplo”. Com tal mudança de tom, ao público norte-americano em geral,
Obama esperava reverter os efeitos de uma buscava manter um discurso pós-racial
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para evitar um dissenso que pudesse presidente dos EUA, visando a ratificar
conturbar o foco em sua reforma da saúde; claramente a sua diferença com a era Bush,
quando se dirigia aos africanos (como no Obama afirmou várias vezes que o
discurso em Gana a 11 de julho de 2009), combate aos “extremistas violentos” e à
enfatizava a sua herança familiar africana proliferação de armas nucleares deveria
para criar empatia e firmar parcerias; ocorrer dentro da regra da lei e através de
quando se dirigia às lideranças do Oriente uma moldura institucional de multiparceria
Médio, como fizera no Cairo em 3 de mundial, já que este tipo de ameaça – tais
junho de 2009, lembrava da sua como os problemas climáticos, a crise
ascendência familiar muçulmano para financeira, o tráfico de drogas, as novas
enterrar as desconfianças geradas na era epidemias e a pressão demográfica de
Bush; quando se dirigia a líderes de pobres e refugiados – transcendia as
governo em foros mundiais, tal como na fronteiras soberanas. Assim, neste, como
ONU a 23 de setembro de 2009, fazia em outros pronunciamentos, Obama
discurso político centrista que exortava um elencou ações – mais do que palavras –
mundo sem díades do tipo branco/negro, que pudessem reduzir o anti-americanismo
Bem/Mal, cristão/muçulmano, mundial herdado da era Bush e as muitas
colonizador/colonizado, norte/sul e desconfianças que, em sua avaliação,
leste/oeste. teriam servido como desculpa para a
inação coletiva em questões graves de
Em todos estes discursos, observamos se
interesse mundial.
repetir a mesma tópica temática a enfatizar
que, num mundo interconectado, cujo Um outro indício oficial desta mudança de
destino e responsabilidades são tom foi a Estratégia de Inteligência
compartilhados, não poderia haver Nacional lançada por Dennis Blair em
unilateralismo, o jogo de soma-zero nas agosto de 2009, pois ratificava o princípio
relações de poder, ou identidades que se do multilateralismo, o fim da abordagem
afirmariam a partir da contraposição ou “eixo do mal” e de que a busca por
negação simplista do Outro. Na segurança não deveria ocorrer a despeito
perspectiva de Obama, as díades políticas do governo da lei e da promoção dos
do século XX não teriam mais sentido no direitos humanos. Além disso, tal
século XXI, porque fariam com que documento afirmou um novo protocolo de
pessoas, povos, culturas, religiões ou ação centrado na idéia de que, mais do que
Estados se definissem a partir daquilo que combater militarmente ameaças terroristas,
é contra, impossibilitando a barganha ou dever-se-ia promover instituições sociais,
diálogo centrados nos interesses civis, econômicas e políticas que
compartilhados e responsabilidades efetivamente gerassem
comuns. Como Obama entende o oportunidade/esperança para a população
engajamento como o princípio que deve dos países – como o Afeganistão, o Iraque
guiar qualquer plano de cooperação e a Colômbia – que fossem de interesse
internacional, a conseqüência lógica deste estratégico para os EUA, mas igualmente
princípio é afirmar a importância de vulneráveis ao narcotráfico, aos
organismos internacionais, como a ONU, a insurgentes e aos grupos extremistas
OEA ou a OTAN, para resolver problemas violentos.
comuns, evitar ameaças globais e novas Deste modo, de forma análoga ao discurso
escaladas mundiais, regionais e de Obama para a ONU, Dennis Blair
hemisféricas de guerra. afirmou o princípio de que a segurança não
Não por acaso, durante a sua primeira se promoveria somente com a venda de
aparição na Assembléia da ONU como armas, apoio militar e ajuda financeira

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diretamente aos chefes de Estado e seus públicas de criação de oportunidade e com
consultores – ações entendidas como um a possibilidade de proteção dos direitos
erro da gestão Bush e sujeitas aos efeitos humanos daqueles militantes extremistas
da corrupção, como os casos afegão e que se entregassem pacificamente ou
paquistanês provaram de forma muito fossem presos vivos em combate. Desde
contundente. Assim, dever-se-ia também modo, os EUA liderariam pelo exemplo,
promover a ajuda financeira e a proteção evitando a emergência de novas
direta às instituições civis organizadas que identidades reativas.
dessem oportunidade de progresso e A Estratégia de Inteligência Nacional de
fortalecessem a sociedade civil, tais como Dennis Blair – tal como os discursos de
hospitais, escolas, estradas, bancos de Obama em Gana, no Cairo e na ONU –
micro-crédito, etc. dizia também que as novas tecnologias e as
Portanto, o texto oficial da Estratégia de relações econômicas globais criavam um
Inteligência Nacional expunha justamente grau avassalador de interdependência entre
o entendimento de que haveria um vínculo os países, o que tornaria anacrônicas as
causal entre segurança, progresso, tentativas de configurar uma ordem
oportunidade e a consolidação e mundial unipolar ou para poucos.
aperfeiçoamento da democracia. Este seria Coerentemente com isso, o texto da
o lastro para uma erradicação duradoura Estratégia de Inteligência Nacional evitou
dos “extremistas violentos”. Em outras qualquer recurso retórico a díades ao modo
palavras, as ameaças terroristas não da abordagem “eixo do mal” da era Bush,
deveriam ser compreendidas somente preferindo falar em “atores”, “fatores” e
como um “caso de polícia”, pois, para “tendências” que criavam desafios, mas
vencê-las, a missão militar deveria também também novas possibilidades, para uma
conquistar a simpatia e a confiança liderança global dos EUA. Tais “atores”,
(“coração e mente”) da população sob sua “fatores” e “tendências” foram
proteção. Para Obama, era fundamental os classificados e explicados da seguinte
EUA superarem a imagem externa de um forma:
behemoth pouco cuidadoso com a (1) Atores estatais com habilidade de
população civil e exclusivamente
desafiar os interesses dos EUA por
interessado em preservar seus interesses
meios tradicionais (i.e., força militar e
energéticos e de segurança através do
espionagem) e emergentes
combate militar a qualquer preço contra (ciberoperações):
“extremistas violentos”.
• Irã, que era visto como um
Como assinalara várias vezes o próprio
pólo desestabilizador do Oriente
Obama, os “grupos extremistas violentos”
Médio, por causa de seus
seriam uma fração muito pequena da
programas nucleares e mísseis, por
população dos países “desposadores de
apoiar o terrorismo em países
terrorismo” para justificar tantas baixas
vizinhos e por prover meios letais
civis em nome da necessidade de combatê-
para os adversários dos EUA e da
los. Por isso mesmo, seria necessário
Coalizão da OTAN no Iraque.
adotar uma abordagem compreensiva dos
próprios extremistas violentos, o que • Coréia do Norte, que era
significava também atuar nas causas que vista como uma ameaça à paz e
levavam muitos jovens, homens e segurança no leste da Ásia por ter
mulheres, a ingressarem em milícias alta capacidade de armamento
extremistas. Em suma, as missões militares convencional, por estar
deveriam se combinar com políticas perseguindo capacidade de lançar

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mísseis nucleares balísticos e por usar o terrorismo para atacar os
estar possivelmente transferindo a EUA, podendo valer-se, inclusive,
sua capacidade militar para de armas e dispositivos nucleares.
terceiros (embora não se afirmasse Tais grupos atuariam em rede por
explicitamente no documento, o diversas regiões e teriam por
Departamento de Estado suspeitava finalidade desestabilizar o governo
da Junta Militar de Myanmar, no da lei, destruir a ordem social,
poder desde 1990). atacar os parceiros estratégicos e
demais interesses dos EUA no
• China, que era vista como
mundo.
avançada na modernização militar,
tornando-se um complexo desafio • Insurgentes, pois estariam
global, pois, além de dividir muitos buscando desestabilizar estados
interesses econômicos e financeiros vulneráveis em regiões de interesse
com os EUA, era também uma estratégico dos EUA como, por
forte concorrente devido à sua exemplo, na região andina e no
diplomacia focada no aumento de chifre e centro da África.
recursos naturais e energéticos.
• Organizações criminosas
Embora não fosse dito no
transnacionais, incluindo-se aqui
documento, durante a sua viagem
aquelas que traficam ilegalmente
pela África em agosto de 2009, a
drogas, por sua alta capacidade de
Secretária de Estado Hillary
penetrar e corromper mercados
Clinton havia demonstrado
vitais, de desestabilizar certos
preocupação com o ritmo de
Estados e de prover armas, dinheiro
entrada da China na África, que
e outros suportes a insurgentes e
tem se valido de sua reserva de
facções criminosas violentas dentro
dólares e de governos corruptos
e fora dos EUA.
para fazer contratos que vinculam
as garantias de empréstimos e de (3) Fatores e tendências transnacionais:
investimentos setoriais em infra- • A crise econômica global,
estrutura ao controle sobre jazidas que era vista como um fator que
de minérios, gás e petróleo. poderia aumentar a turbulência
• Rússia, que era vista como política, instabilidade social e
parceira em iniciativas importantes, enfraquecer a segurança dos EUA,
como o combate à proliferação de o que poderia desgastar o apoio às
armas nucleares e ao terrorismo democracias liberais orientadas
nuclear, mas também problemática, pela economia de mercado e criar
por buscar afirmar poder e abertura para o autoritarismo.
influência por vias que
• Os “Estados-falhos” e
complicavam os interesses espaços sem o governo da lei, que
estratégicos dos EUA no Oriente eram vistos como abrigos
Médio, Ásia Central, Leste potenciais para organizações
Europeu e Cáucaso. terroristas e criminosas e para o
(2) Atores não-estatais, ou subestatais, acesso a armas de destruição de
que vêm aumentando o seu impacto na massa. Tais espaços poderiam
segurança nacional: causar ou exacerbar a fome, o
genocídio e a degradação
• Grupos extremistas
ambiental.
violentos, pois estariam planejando

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• Mudanças climáticas e a educação, à infra-estrutura, à saúde e ao
competição por recursos crédito. Portanto, seria da consolidação
energéticos. deste lugar social que se acreditava
emergir o espírito de empreendimento e de
• Rápidas mudanças iniciativa para o progresso social,
tecnológicas e disseminação de econômico e institucional da democracia
informação, que poderiam alterar
em cada país.
as forças sociais, econômicas e
políticas, além de criar os meios Ao pensar assim, o governo Obama
para os adversários agirem contra tomava como universal o que na verdade
os interesses dos EUA. No entanto, era um dos mitos fundadores dos EUA.
também dariam nova oportunidade Dentro desta lógica, como seria evidente
para preservar ou ganhar vantagens que as atividades econômicas, a
competitivas. criminalidade e as doenças conectariam
pessoas, grupos e países na era da
• Doenças pandêmicas, cibercomunicação e da globalização
como a H1N1, que poderiam financeira, cada um deveria estar engajado
conturbar o bem-estar da saúde, o no ciclo de prosperidade e sustentabilidade
comércio e a economia em geral. para que todos pudessem desfrutar os seus
É importante notar que, ao longo de 2009, efeitos com segurança, mas isso somente
os textos do discurso de posse de Barack começaria quando mais membros da
Obama (janeiro), da sua nova estratégia população de um país ascendessem para a
para o Afeganistão e o Paquistão (março), classe média. Daí, não surpreende que,
do seu discurso no Cairo (junho), do seu durante 2009, no sítio virtual da Casa
discurso em Gana (julho), do seu discurso Branca, fosse encontrado o seguinte ícone
na ONU (setembro) e da Estratégia de vinculado ao gabinete do vice-presidente
Inteligência Nacional (agosto) possuem Joseph R. Biden Jr.:
um pressuposto sociológico comum, qual
seja: a ampliação da diversidade de
parcerias comerciais, de interesses
estratégicos e de investimentos externos e
internos tornaria cada país mais
economicamente sustentável e interessado
na paz. Nisso também residia, tacitamente,
a clássica tese liberal de que a ampliação
dos vínculos especializados de Por isso mesmo, durante 2009, uma das
interdependência promoveria a tópicas recorrentes dos discursos oficiais
prosperidade geral e estimularia o de Obama foi a responsabilidade de cada
interesse pela paz mundial. um (indivíduo, povo, governo ou país)
engajar-se na construção do bem-estar
No entanto, segundo a visão/valor
geral, em vez de se acomodar numa auto-
imperante no governo Obama, isso não
indulgente vitimização, ou numa
poderia acontecer sem a consolidação, em
afirmação reativa de identidade a partir da
cada país, da classe média, pois esta seria
contraposição maniqueísta. No entanto, tal
entendida como o lastro social/moral da
como notara Hugo Chávez na assembléia
estabilidade institucional da democracia,
da ONU em 24 de setembro de 2009, as
do desenvolvimento do espírito
mensagens de “esperança” de Obama
empreendedor, do combate à corrupção,
pareciam ambíguas, dando a entender que
assim como, da promoção dos direitos das
existiam “dois Obamas”: se, por um lado,
mulheres e do acesso universal à
há aquele que demonstra uma professoral
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compreensão social e histórica de “multiparceiros”. No final das contas, o
problemas estruturais complexos – ausente “problema Africano” torna-se algo de
nos pronunciamentos de Bush –; por outro ordem moral, educacional ou institucional,
lado, há também aquele que acredita que a mais do que histórico-social ou
superação de tais problemas, em última econômica, já que os imigrantes
instância, resume-se a uma questão de Africanos, em geral, segundo Obama,
escolha moral uma vez que se criem “estariam prosperando na América”.
oportunidades e instituições adequadas Assim,...
para os indivíduos mais esforçados e “...para realizar tal promessa,
empreendedores. primeiramente devemos reconhecer a
Nesses termos, se um governo verdade fundamental à qual vocês
efetivamente cria deram vida em Gana: desenvolvimento
depende de boa gestão. Eis o
“oportunidade/esperança” e um indivíduo
ingrediente que tem faltado em
não prospera ou ascende para a classe demasiados lugares por um
média, trata-se necessariamente de uma longuíssimo tempo. Eis a mudança que
falha moral individual. Portanto, nos pode desentravar o potencial da África.
discursos oficiais de Obama, há um E esta é uma responsabilidade que
modelo de “oportunidade/esperança” que somente pode ser cumprida pelos
não é questionável. Em tal modelo, africanos.” (Grifo meu)
somente cabe o eu moral triunfante do self Em outra parte do discurso proferido em
made men que, superando individualmente Gana, tal como naqueles proferidos no
as adversidades, conseguiu ascender da Cairo e na ONU, Obama afirmou que cada
precariedade para a classe média a partir país deveria construir a democracia a partir
de um quadro de instituições que de suas próprias tradições, pois os EUA
favoreceu o mérito e o esforço individuais. não imporiam a sua verdade para os
Ora, tal visão/valor foi explicitado, por demais povos – de fato, não imporiam a
exemplo, no discurso de Obama aos sua verdade já que Obama entendia como
ganenses em 11 de julho de 2009: por um princípio universal que a base social/moral
lado, ele afirmou que o colonialismo das instituições democráticas é a classe
causou grandes perdas para o continente média. Este tipo de recurso retórico dá uma
Africano; por outro lado, afirmou também margem de manobra muito grande em
que isso seria apenas uma “parte” da diferentes teatros de interlocução: quando
História, pois ela não explicaria a for de interesse, apela-se para organismos
corrupção que impediria o progresso da internacionais como a ONU, a OTAN, a
carreira profissional de seu pai no Quênia OEA e a OMC, ou para configurações
– i.e., ascender na direção da classe média provisórias de acordos bilaterais ou
através do próprio esforço e mérito –, ou multilaterais, com o objetivo de fazer
os genocídios em Darfur ou no Congo. pressões conjuntas sobre determinados
Deste modo, mesmo reconhecendo a atores ou fatores geopolíticos; quando não
“dívida histórica” dos países for de interesse, viram-se os olhos para não
desenvolvidos com a África, Obama enxergar aquilo que fere a democracia e os
afirmava aos ganenses que o desafio da direitos humanos, pois, afinal, a própria
superação de seus males atuais seria democracia americana não seria perfeita e
exclusivamente africano. os EUA não deveriam impor a sua verdade
Como podemos notar, Obama é a nenhum estado soberano.
estrategicamente seletivo quando fala em Como podemos notar, a ambigüidade
“responsabilidades compartilhadas” num retórica de Obama está condicionada pelo
“mundo interconectado” de objetivo de sustentar uma política externa
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de baixa manutenção. Para tanto, anacrônicas do século XX”. Por isso
seletivamente tem pretendido tornar uma mesmo, em nenhum momento dos
responsabilidade global o prejuízo causado discursos de Obama aparece como
por poucos, sem questionar propriamente sugestão que seja possível um país ser
os efeitos sociais, institucionais e democrático e não orientado pela economia
ideológicos de duas décadas do formulário de mercado.
financeiro imposto ao mundo pelo Em todo caso, existiriam muitos outros
“Consenso de Washington” ou, em termos paradoxos que poderiam ser inventariados
histórico-sociais, as implicações morais, e demonstrariam o quanto não podemos
institucionais e estruturais do ignorar as estruturas que persistem e
neocolonialismo. Ora, num momento em através das quais o governo Obama atua,
que se pretende transformar o prejuízo pensa e profere valores. Para os fins deste
causado por poucos numa responsabilidade ensaio, vejamos alguns destes paradoxos a
global para garantir a “baixa mautenção” partir dos dilemas de alguns nós
da política externa, é mais do que estratégicos da política externa do governo
conveniente que Obama se valha de Obama.
discursos sóbrios, centristas e ambíguos
que, defensivamente, tratam como 2. O Oriente Médio e a Questão Nuclear
anacrônicas as díades do “século XX”. Iraniana
Embora os recursos retóricos de Obama Em 24 de setembro de 2009, durante uma
causem mais simpatia do que a retórica sessão do conselho de segurança da ONU,
muscular de Bush da “luta contra o Barack Obama e seus assessores fizeram o
terrorismo”, tal diferença retórico não seu pequeno teatro de denúncia contra o
consegue ocultar a sua “verdade projeto – supostamente secreto – de usina
fundamental”: o fato de que a forma de para enriquecimento de urânio em Qom
Obama conceber “soluções para progresso, (Irã), cuja construção com finalidade
oportunidade e democracia” sempre parte estritamente pacífica foi questionada pelo
de um lugar – i.e., o mito histórico governo dos EUA. Este pequeno teatro de
rooseveltiano do amarican way of life – e, denúncia tinha o objetivo de fazer com que
para alcançá-las, segue uma agenda o governo do Irã parecesse menos
pragmática que pretende convencer o confiável perante os outros líderes
“mundo mais interconectado” de que o mundiais, de modo a angariar para os EUA
dano causado por poucos deve ser o apoio dos principais parceiros
compartilhado por muitos. econômicos e bélico-tecnológicos do Irã
(Rússia, Paquistão, Índia, China, França e
A sobriedade de discursos centristas e Grã-Bretanha) numa potencial sanção
centrados no mito heróico da classe média econômica contra o país.
empreendedora da livre iniciativa como
fundamento do progresso e da democracia Este tipo de busca de apoio multilateral
dos EUA tem servido para Obama criar um para sanção econômica – e, no limite,
jogo sutil de empatia com o modelo norte- ataque militar – contra um país
americano de economia, leis e instituições, supostamente descumpridor de normas
o que ficou mais obviamente explícito em internacionais de segurança coletiva
seu discurso em Gana. Deste modo, através lembra, na prática, o mesmo dispositivo
de uma retórica mais simpática, travestida ideológico da estratégia de segurança
de tolerância multicultural, o modelo de preventiva de Bush aplicada ao Iraque em
sociedade e instituições dos EUA é 2003, qual seja: o governo do Irã é culpado
apresentado como um meio de de ter dispositivos bélico-nucleares,
transcendência das propaladas “díades baseando-se o veredicto em relatórios
contraditórios das inteligências dos EUA,
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França e Grã-Bretanha, que passaram por tipo de ameaça, para dar prova de que não
cima da autoridade da AIEA (Agência aceitaria dano semelhante em seu território
Internacional de Energia Atômica), que e teria capacidade para fazer retaliações
somente foi avisada depois que já havia um substanciais no Oriente Médio, Ásia
julgamento preparado contra o governo do Central e Leste Europeu, a Guarda
Irã a ser teatralizado na ONU. Nacional do Irã realizou, em 27-28 de
setembro de 2009, testes bem sucedidos
Um dia antes da denúncia, vários países
com mísseis de médio e longo alcance –
levantaram a bandeira de tornar o Oriente
deixando no ar a dúvida se já teria
Médio uma “zona livre de armar
tecnologia para carregá-los com
nucleares”, tal como a América do Sul, o
detonadores de ogivas atômicas.
que forçosamente cobraria de Israel se
desfazer de suas ogivas nucleares. No Até o resultado das eleições presidenciais
entanto, os EUA não tomaram parte neste iranianas de 12 de junho de 2009,
pleito, malgrado o interesse manifesto por contrariamente às expectativas da política
Obama, em seu discurso em 23 de de segurança da linha-dura da direita do
setembro de 2009, de tornar o mundo governo Israelense, o Departamento de
“livre de armas nucleares”. Estado dos EUA operava com a tese de
estabilizar o status quo do programa
Além deste paradoxo protocolar, outros
nuclear do Irã, em vez de propor a sua
poderiam ser destacados: a instituição
restrição preventiva, ou mesmo a quebra
fiscalizadora internacional de qualquer
da soberania/autonomia do Irã no processo
iniciativa nova de produção de energia
de enriquecimento do urânio – proposta
atômica é a AIEA, que é ligada à ONU e
pela reunião do P5+1 (EUA, Grã-Bretanha,
da qual o Irã é signatário; segundo as
França, China, Rússia + Alemanha) em 1
regras desta instituição, o Irã, como
de outubro de 2009. Depois das
qualquer outro país-membro da agência, só
contestadas eleições presidenciais do Irã,
seria obrigado a anunciar a existência de
com a continuidade do staff de
uma nova instalação nuclear 180 dias antes
Ahmadinejad e da Guarda Nacional, houve
da introdução de materiais radioativos. Por
uma tendência, capitaneada por Hillary
outro lado, somente depois da denúncia
Clinton, de retomada da abordagem “eixo
contra o Irã, os países envolvidos (EUA,
do mal” contra o regime de Teerã. O
França e Grã-Bretanha) enviaram à AIEA
resultado disso pôde ser medido, portanto,
todas as informações que vinham
em 24 de setembro de 2009, pela própria
levantando “há algum tempo”. Ora, isso
forma como se arquitetou o teatro de
significa que desrespeitaram a soberania do
denúncia contra o Irã durante a conferência
Irã com espionagem, quando deveriam
da ONU.
assegurar recursos para que a própria
AIEA fizesse o seu trabalho de inspeção. Assim, desde meados de junho, os sinais
Ao agirem assim, tornaram, na prática, da estratégia de engajamento de Barack
irrelevante o papel da agência. Obama para o Irã pareciam muito
ambíguos. No final das contas, o “teatro de
Toda a polêmica em torno do programa
denúncia” na ONU explicitou,
nuclear do Irã reverberava diretamente na
oficialmente, que o governo Obama não
relação EUA-Israel, pois o país israelense é
reconhecia status quo criado pela
contrário à existência do programa nuclear
Revolução Islâmica de 1979, malgrado a
do Irã, independentemente de suas
diplomática mea culpa manifestada no
finalidades serem oficialmente pacíficas,
discurso do Cairo. Assim, tal como os
ameaçando periodicamente bombardear as
presidentes anteriores, Obama comportou-
suas instalações tal como fizera com
se como se não reconhecesse a República
aquelas do Iraque em 1981. Por conta deste
121
Islâmica do Irã, visando somente a abrir Dada a ambigüidade da política de
canais menos assimétricos de conversação engajamento do governo Obama, o
com a “oposição moderada”. Frente ao governo Ahmadinejad – tal como os
ocorrido em 24 de setembro de 2009, governos anteriores do Irã desde 1979 –
evidenciou-se para o governo de Teerã que tem mantido os mesmos meios
não era possível acreditar numa assimétricos de defesa (como o cultivo de
cooperação estratégica sem precondições relações com forças insurgentes e milícias
para seu programa nuclear, mesmo sendo em países vizinhos), paralelamente ao
signatário do tratado de não-proliferação desenvolvimento de sua capacidade de
de armas nucleares (do qual Israel não é). lançar mísseis de média e longa distância.
Assim, mesmo que o Irã seja um signatário
E não faltavam razões para suspeitas por
do tratado mundial de não-proliferação de
parte do staff de Ahmadinejad: entre 2003
armas nucleares, tem levado as suas
e 2005, o governo iraniano suspendeu
obrigações com tal tratado até o ponto-
temporariamente o seu programa de
limite em que pudesse ser visto como um
enriquecimento de urânio, mas a reposta
país sem armas atômicas, mas com
dos EUA foi tentar restringir ainda mais os
habilidade e ingredientes para desenvolvê-
seus direitos de buscar na fissão nuclear
las. Trata-se não apenas de uma questão de
um meio alternativo de fonte de energia
afirmação de orgulho nacional, mas
não-fóssil. Ora, não por acaso, o projeto
principalmente de construir a sua própria
em Qom foi iniciado em 2005, já que o
segurança frente àquilo que continua sendo
regime não sentiu contrapartida nenhuma
percebido como um “cerco israelense-
do governo dos EUA, além de mais
americano” no Oriente Médio.
hostilidade da retórica “eixo do mal” de
Bush. Nessa época, tal tipo de atitude Não é o caráter violento e corrupto do
acabou com a credibilidade interna dos regime de Ahmadinejad que impede o
políticos moderados do Irã, que governo Obama de realizar uma
advogavam um retorno ao diálogo com os abordagem compreensiva do Irã. Afinal, o
EUA. desrespeito aos direitos humanos não
impediu o governo Obama de engajar a
Em 3 de junho de 2009, o discurso de
Rússia, a China, o Quirguistão, o Paquistão
Obama no Cairo parecia dar nova
e a Índia em sua abordagem compreensiva
credibilidade para os candidatos
do Afeganistão – cuja eleição fraudulenta
moderados da campanha eleitoral para a
de agosto de 2009 exibiu todo o poder da
presidência do Irã. No entanto,
rede de corrupção e narcotraficante da
sintomaticamente, nenhum candidato à
família Karzai. Parece que, para o staff de
eleição presidencial do Irã apoiou como
defesa do governo Obama, depois do
viável qualquer restrição unilateral ao seu
resultado das eleições presidenciais
programa nuclear. Afinal, desde abril de
iranianas, perdeu valor estratégico a
2009, a Secretária de Estado Hillary
possibilidade de manter padrões de
Clinton já havia externado a sua vontade
conversações com o Irã que pudessem
pessoal de criar um “escudo de defesa” no
desagradar o governo de Israel. Afinal,
Oriente Médio, cujo objetivo seria tornar o
também interessava ao governo Obama
Irã menos seguro, mesmo que possuísse
conseguir concessões de Israel a respeito
armas nucleares. Paradoxalmente, em
da questão palestina. Assim,
nenhum momento, ao longo de 2009, o
ambiguamente, se Obama não exige a
staff de defesa de Obama questionou, em
extirpação do programa nuclear iraniano
pronunciamentos oficiais, a validade da
para fins civis – como desejaria Israel –,
existência do arsenal atômico de Israel.
tampouco pretende que o regime de
Ahmadinejad tenha autonomia sobre o
122
processo de produção de combustível abordagem dessa guerra: ganhar a boa
nuclear, ferindo a soberania do Irã. vontade e simpatia da população local,
enfatizando-se que, para além do combate
Durante o segundo semestre de 2009, as
militar, a proteção e segurança da
ameaças norte-americanas de
população civil e a criação de
escalonamento das sanções econômicas
oportunidade, estado de direito e infra-
contra o Irã preocuparam o líder moderado
estrutura seriam componentes centrais para
que fora derrotado nas eleições iranianas,
a quebra da rede social e opressiva do
Mir Hussein Moussavi. Ele havia
Taliban. A missão deveria ser vista como
organizado um movimento popular que
internacional, em vez de apenas dos EUA,
acusava Ahmadinejad de fraudar o
e demonstrar que se importava com as
resultado das eleições. Em sua avaliação
pessoas para, deste modo, devolver à
do cenário político iraniano, as sanções
população afegã ou paquistanesa a
econômicas apenas serviriam para punir a
confiança e fé nas promessas de um estado
população do Irã e provocar um retrocesso
de direito.
no seu processo político de ampliação das
bases representativas da ala moderada, Afinal, a abordagem estritamente militar e
pois, ao recriar o “inimigo ocidental”, centrada em alianças com lideranças
poder-se-ia fazer com que os gritos de corruptas do governo de Hamid Karzai
“Morte a Ahmadinejad” pelas ruas de somente serviu para aumentar a violência
Teerã se tornassem, mais uma vez, “Morte contra a população civil, que ficou
à América”, ou seja, o mesmo tipo de efetivamente pressionada entre dois
identidade reativa que dera poder a “infernos”: um governo corrupto
Ahmadinejad e à Guarda Nacional durante ineficiente que, durante os anos do governo
a era Bush. Bush, teve carta branca para desrespeitar
os direitos humanos básico na perseguição
3. Do Afeganistão à Colômbia: As
– sempre seletiva e conforme as
escolhas paradoxais de supostas “guerras
conveniências locais – contra algumas
de necessidade”
lideranças do Taliban; o permanente risco
Desde 27 de março de 2009, quando de um retorno do Taliban para as regiões
apresentou a sua Nova Estratégia para o sob controle da missão EUA-OTAN,
Afeganistão e o Paquistão, Barack Obama devido não apenas à possibilidade de cada
tem tentado convencer os eleitores dos país sair da missão pressionado pelo seus
EUA que o erro da escolha do governo respectivos eleitorados, mas também
Bush pela guerra no Iraque não deveria devido a falhas de coordenação entre os
causar ceticismo sobre a necessidade da diversos atores da missão ou a
missão no Afeganistão para a segurança divergências de abordagens sobre
dos EUA, pois tal país, devido à estratégia. Tal situação explicaria a
fragilidade do governo frente à ação de reticência, a ambigüidade ou o ceticismo
“grupos extremistas violentos”, seria um das populações afegãs e paquistanesas em
viveiro permanente para os militantes do relação à missão internacional.
Taliban, que ofereceriam esconderijos para
A ambigüidade também não deixa de estar
lideranças da rede Al-Qaida. Segundo a
presente nas escolhas pragmáticas do
sua visão, é desta região que poderiam
governo Obama frente às necessidades da
partir novos ataques suicidas contra os
guerra contra os “grupos extremistas
EUA, tal como aquele ocorrido em
violentos” no Afeganistão. Como o próprio
Londres em julho de 2005, que teve um
Obama expusera em março de 2009, a
saldo de 52 mortos.
missão no Afeganistão estava
Como apontei anteriormente, o governo completamente ligada à segurança do
Obama tem enfatizado uma mudança na
123
Paquistão que, desde finais de 2008, vinha Aliás, uma semana antes da reunião do
sofrendo sucessivos ataques do Taliban conselho de segurança da ONU, havia sido
dentro de seu próprio território. Sendo o publicado o relatório do Comitê de
Paquistão uma potência nuclear, não Proteção de Jornalistas, sediado em Nova
interessava a instabilidade de seu regime, York, que denunciava que 17 jornalistas
para que seus artefatos atômicos não haviam sido assassinados na Rússia desde
caíssem nas mãos de “grupos extremistas 2000, o que decorria de retaliações por
violentos”. suas denúncias contra membros do
governo russo. Com isso, a Rússia tornava-
No entanto, reconhecer tal ligação orgânica
se o terceiro país mais perigoso para a
da segurança entre as fronteiras de ambos
prática jornalística, ficando atrás do Iraque
os países se esbarrava num problema:
e da Argélia. Além disso, quando
coordenar mais uma vez inteligência e
comparado com outro cenário, por
recursos com o ISI e o exército
exemplo, a relação EUA-Colômbia, a
paquistanês, que nunca foram muito
missão no Afeganistão evidenciava ainda
afinados com o governo civil eleito em
mais os paradoxos da política externa de
setembro de 2008 e tinham interesse numa
Barack Obama. Reporto-me
erradicação seletiva da ameaça do
especificamente a diferenças de diretrizes
Taliban, de modo a assegurar o seu uso em
para situações semelhantes em regiões
Caxemira e no próprio Afeganistão contra
distintas do globo:
os interesses da Índia, assim como, ao
manter a sua ameaça, garantir um fluxo (a) em julho de 2009, o enviado
permanente dos dólares da missão norte- especial do governo Obama para o
americana. Tais fatos paradoxais vêm Afeganistão e o Paquistão, Richard
sendo denunciados na imprensa dos EUA C. Holbrooke, dizia-se contrário à
por repórteres da fiabilidade de Dexter erradicação da papoula até que
alternativas viáveis de
Filkins e David E. Sanger, correspondentes
sobrevivência fossem criadas para
do New York Times. os fazendeiros pobres que viviam
Além das relações ambíguas com a de seu cultivo, pois, de outro
inteligência do Paquistão, a missão no modo, seriam entregues ao
Afeganistão cobrou do governo Obama desespero e à alienação, tornando-
se vulneráveis aos apelos
conseguir dos governos da Rússia e do
revanchistas do Taliban contra os
Quirguistão o consentimento de poder “invasores infiéis”.
sobrevoar o seu território para fazer
abastecimento de suas aeronaves. No caso (b) em setembro de 2009, o
específico do Quirguistão, o governo oficial-chefe do combate contra o
Obama conseguiu renovar o contrato para tráfico de drogas na Rússia, Viktor
P. Ivanov, dizia que 90% da
o uso das bases militares, que havia sido
heroína consumida pelos viciados
iniciado na gestão de Bush. Assim, para russos vinha do Afeganistão. Por
alcançar o “governo da lei”, os “direitos isso, Ivanov era favorável ao uso
humanos” e a proteção de “mulheres e de desfolhantes aéreos contra as
crianças” no Afeganistão, assim como a plantações de papoula afegãs, tal
“segurança dos EUA”, o governo Obama como tinham sido utilizados na
fechou os olhos para o regime opressivo do Colômbia contra as plantações de
Quirguistão, assim como, para a violência coca. Foi baseando-se neste
perpetrada pelo governo russo contra exemplo que Ivanov exigiu ações
jornalistas, membros de ONGs de direitos “mais musculares” no Afeganistão,
humanos e contra a minoria chechena. mas não encontrou ouvidos
receptivos no Departamento de
Estado dos EUA.

124
Em certa medida, a opinião de Richard C. seus principais objetivos sempre foi
Holbrooke era coerente com o pressuposto proteger os oleodutos, sobretudo o de Caño
estratégico de que a população afegã Limón (Arauca), na fronteira entre
deveria ser protegida e cercada de Colômbia e Venezuela. Desde 2000, tais
oportunidade para não cair na esfera de construções já haviam sido explodidas
influência dos grupos extremistas dezenas de vezes pelas FARC (Fuerzas
violentos. No entanto, a opinião de Richard Armadas Revolucionarias de Colombia).
C. Holbrooke sobre o Afeganistão Por isso, a assistência militar norte-
esbarrava num outro paradoxo: as americana se concentrava estrategicamente
plantações de papoula também eram nos pólos de infra-estrutura de petróleo, de
utilizadas pelos militantes Taliban como modo a inspirar confiança nos investidores
meio de conseguirem recursos para estrangeiros. Em Caño Limón (Arauca),
comprar armamentos e a fidelidade da onde o oleoduto é operado pela Occidental
população em situação de risco social. Petroleum e pela Royal Dutch/Shell, há a
Além disso, a sua não erradicação imediata maior concentração dos assessores
feria os interesses da segurança doméstica militares dos EUA. No entanto, é
da Rússia e criava um problema de saúde justamente em Arauca que vêm ocorrendo
pública, tal como a coca colombiana fazia as piores violações dos direitos humanos.
com os EUA – vale lembrar que 90% da Entre 2001 e 2006, o número de execuções
cocaína consumida nos EUA, em 2009, extrajudiciais aumentou em mais em 50%
advinham das plantações de coca da em relação ao biênio 1999-2000.
Colômbia. Em 1999, durante o governo Bill Clinton, o
Todavia, na Colômbia, o governo norte- Plano Colômbia foi lançado, sendo
americano não fez qualquer consideração expandido, em 2004, com a Iniciativa
de ordem social, médica ou ecológico Andina Antidrogas do governo Bush. Esta
quando optou por usar desfolhantes aéreos tornou-se um dos principais aspectos da
para minar os meios de sobrevivência não estratégia dos EUA para assegurar a sua
apenas de narcotraficantes ricos, mas presença militar na América do Sul e, em
também de muitos pequenos fazendeiros particular, na Amazônia. Entre 2004 e
colombianos pobres, que não sentiam 2009, o Exército colombiano recebeu cerca
melhoras em sua qualidade de vida, de US$ 3,3 bilhões para combater as
malgrado os bilhões de dólares que FARC – i.e., erradicar a sua ameaça aos
chegavam para o governo colombiano em investimentos norte-americanos na região.
nome do combate ao tráfico de drogas e Durante 2009, continuou ocorrendo muitos
aos grupos insurgentes. Portanto, a solução abusos de poder cometidos nas operações
na Colômbia continuava sendo “muscular”, contra os insurgentes, mas o governo
pouco atenta aos efeitos de alienação social Obama fechou os olhos para isso, tanto
que o uso de desfolhantes aéreos poderia quanto para as crescentes denúncias no
causar à população pobre da região. Daí, México dos abusos de poder por parte das
era coerente que Viktor P. Ivanov exigisse forças policiais que atuavam, em conjunto
dos EUA uma solução “à colombiana” com a inteligência dos EUA, para
para o problema do tráfico afegão de combater os cartéis de drogas e vigiar a
heroína. fronteira do México com os EUA – por
onde chegava a maior parte da droga
Embora o governo dos EUA apresentasse o
combate ao narcotráfico e/ou ao terrorismo produzida na Colômbia.
como justificava para a concessão anual de O fato é que o governo Obama, tal como o
US$ 700 milhões à Colômbia – a maior governo Bush, vê a América Latina como
parte para assistência militar –, um dos um desafio para a sua política externa que

125
está atrelado muito diretamente a pontos somente quando interessava manter a
centrais de sua agenda doméstica, que “baixa manutenção” dos interesses
inclui os problemas da imigração, do hemisféricos econômicos e de segurança
tráfico de drogas, do controle de armas e dos EUA. Nesse sentido, em relação à
do livre comércio. Tais questões America Latina, os sinais de mudança do
antecedem qualquer preocupação relativa governo Obama em política externa
aos direitos humanos, pois envolvem tanto também são muito ambíguos. Várias ações
a segurança quanto os seus potenciais ao longo de 2009 serviriam para
custos – intensamente debatidos durante demonstrar isso.
2009 – sobre o sistema de saúde e
4. Ambíguos sinais de mudança nas
seguridade social, num momento em que o
relações entre EUA e a América Latina
governo pretendia aprovar reformas no
sistema de saúde que criassem uma Na Estratégia de Inteligência Nacional dos
alternativa pública, universal e concorrente EUA, como já foi apontado, não havia
com o sistema privado. qualquer alusão a ator estatal na América
Latina capaz de ameaçar os interesses
Pelo menos em 2009, dada a agenda estratégicos hemisféricos norte-
externa centrada no Oriente Médio, África americanos. O tom deste documento
e Ásia Central, o governo Obama não explicaria, em certa medida, por que o
queria que a América Latina se tornasse Departamento de Estado dos EUA deu
um problema de “alta manutenção” para a pouca importância à pressão dos países
sua política externa. Para tanto, evitou Andinos (incluso o Brasil) por maiores
alimentar tensões com rivais ideológicos explicações sobre o acordo das bases
hemisféricos, como a Venezuela e a sua militares na Colômbia. No entanto, não
propalada ALBA (Alianza Bolivariana podemos esquecer que a presença e
para los Pueblos de Nuestra América); potencial aumento de efetivo militar e civil
mas não tem dado, na prática, norte-americano na Colômbia foi fruto de
reconhecimento para iniciativas regionais uma decisão bilateral que desconsiderou as
do tipo UNASUL (União das Nações Sul- questões de segurança e soberania
Americanas) – uma potencial concorrente debatidas pelos países-membro da
hemisférica do NAFTA (North American UNASUL.
Free Trade Agreement) –, em que o Brasil
é visto como um rival econômico (mas não Ao longo de julho e setembro de 2009, o
militar, diferentemente da Venezuela) no Departamento de Estado dos EUA tratou a
Caribe e na América Central, questão como algo menor e esvaziou
particularmente na potencial exploração do qualquer possibilidade de escalá-la até o
petróleo em Cuba. nível forense da OEA. Por fim, a partir de
21 de setembro de 2009, todo o debate foi
A idéia de manter uma agenda de “baixa desfocado pelo retorno inesperado para
manutenção” para a América Latina em Honduras do presidente deposto (em 28 de
2009 explicaria as tentativas de o governo junho) Manuel Zelaya, que buscou abrigo
Obama provocar um esvaziamento ou uso na embaixada do Brasil. Antes do “caso
seletivo e circunstancial de foros regionais, Zelaya” monopolizar a agenda da OEA, o
como a UNASUL e a OEA, em assuntos governo colombiano assegurou, durante
estratégicos que envolvessem as suas bases um encontro dos chanceleres e ministros
militares na Colômbia ou a crise em de defesa da UNASUL, em 16 de setembro
Honduras. Assim, durante 2009, embora a de 2009, na cidade de Quito, que todo o
retórica do governo Obama para a América acordo com os EUA estaria centrado no
Latina não fosse “muscular” ao estilo de respeito à soberania da Colômbia e dos
Bush, foi regionalmente multilateral demais países, mas não apresentou maiores
126
detalhes dos termos do acordo. Ao sofrer O governo bolivariano de Hugo Chávez,
pressão para revelar mais detalhes do durante toda a era Bush, sempre sentiu-se
acordo com os EUA, o governo justificadamente ameaçado pela presença
colombiano reagiu dizendo que não se militar norte-americana na região andina e
metia nos acordos militares e financeiros pela espionagem colombiana,
da Venezuela com a Rússia e, por fim, particularmente depois de ter sofrido uma
ameaçou sair da UNASUL. tentativa fracassada de golpe em 2002,
cujos golpistas tiveram reconhecimento
Ora, tanta preocupação dos chanceleres e
imediato do governo Bush. Por isso, não
ministros de defesa da UNASUL tinha
surpreende que, tal como o Irã no Oriente
razões bem palpáveis: desde o lançamento
Médio, o governo Chávez também tenha
do Plano Colômbia, o Exército
alimentado métodos assimétricos de
colombiano havia recebido US$ 4,35
defesa, como o apoio velado aos
bilhões dos EUA para combater as forças
insurgentes das FARC no território do país
insurgentes e o narcotráfico. Outros
vizinho.
números eram ainda mais preocupantes: a
Colômbia tinha destinado cerca de 3,8% de Tudo isso criava um ciclo vicioso, pois o
um PIB de US$ 320,4 bilhões (2007 est.) aumento da insegurança nas fronteiras da
para gastos militares, enquanto o Brasil, Colômbia dava uma boa desculpa para a
cujo PIB é de US$ 1,838 trilhões (2007 manutenção ou ampliação da presença
est.) e possui extensão territorial norte-americana na região, com cada país
continental, tinha gastado apenas 1,5%, e a seguindo agendas bilaterais de defesa que
Argentina, com um PIB de US$ 523,7 esvaziavam a validade forense da
bilhões (2007 est.), havia gastado apenas UNASUL. Além disso, devemos lembrar
1,1%. Portanto, a reunião dos que, durante 2009, o presidente Hugo
representantes da UNASUL em setembro Chávez não permitiu a entrada na
de 2009, antecipando em uma semana o Venezuela da Comissão Interamericana de
encontro na ONU, deveria ter sido um foro Direitos Humanos (CIDH), que é um braço
privilegiado para dirimir qualquer dúvida da OEA. No final das contas, os pólos
que pudesse conduzir para uma escalada ideológicos da América do Sul (Colômbia
militar equivocada entre os países da e Venezuela), em 2009, acabaram fazendo
região andina. um tipo de jogo regional de acordos
bilaterais que dividia as forças da
Em todo caso, o aumento do orçamento
UNASUL e, tal como o governo dos EUA,
militar e da ajuda estrangeira na Colômbia
tais países sabotaram seletivamente a
não tem representado ganhos substanciais
legitimidade de instâncias mediadoras de
em segurança para a população civil
interesses regionais.
andina, ao mesmo tempo em que tem
provocado uma espécie de corrida Ao agirem assim, colaboraram
armamentista reativa por parte da indiretamente para a manutenção da
Venezuela: desde 2008, o governo Chávez hegemonia hemisférica dos EUA, já que
vem realizando acordos bilaterais com nenhum bloco regional projetado – seja em
Rússia e Irã para expandir os seus recursos matéria de economia, de ideologia ou de
militares e alternativas energéticas. Neste segurança – tornou-se suficientemente
último caso, Hugo Chávez vem coeso para gerar um efeito regional contra-
demonstrando um grande interesse na hegemônico. Ora, isso é um problema que
transferência de tecnologia para a deveria ser objeto de profunda reflexão das
construção de usinas nucleares que lideranças regionais latino-americanas,
pudessem se servir do urânio existente no particularmente se considerarmos que o
subsolo venezuelano. governo Obama endossou o projeto –

127
iniciado no governo Bush – de reativar a regimes esquerdistas que emergiram
quarta frota, cujo campo de atuação seria o durante a era Bush, os grandes países da
Caribe. América do Sul explicitaram agendas
próprias para alianças centradas no
Ao longo de 2009, muitos regimes latino-
mercado global de energia, buscando
americanos que, durante o governo Bush,
ampliar alternativas em relação à
ampliaram a sua dependência econômica
Venezuela e à Bolívia. Aliás, a
em relação à Venezuela, inclusive alguns
confirmação do potencial energético do
membros atuais da ALBA, começaram a
pré-sal brasileiro torna o Brasil um rival
buscar agendas bilaterais que claramente
energético regional em gás natural e
furavam a capa ideológica do “bloco”. O
petróleo para a Venezuela e a Bolívia,
Equador, por exemplo, que havia se
além da possibilidade de exportar a sua
tornado membro da ALBA em junho de
tecnologia de exploração em águas
2009, buscou melhorar relações com o
profundas para o pré-sal cubano, o que
FMI, EUA e Colômbia. Assim, em 24 de
tornaria Cuba financeiramente mais
setembro de 2009, durante o encontro na
independente da órbita de influência da
ONU, os governos do Equador e da
Venezuela, já que o embargo dos EUA
Colômbia sinalizaram o interesse em
impede investimentos diretos de
normalizar as suas relações diplomáticas,
empresários norte-americanos em tal setor.
suspensas desde março de 2008. Devemos
lembrar que tal aproximação surgira uma Tudo isso tem gerado uma pressão interna
semana depois da polêmica na UNASUL de investidores norte-americanos contra a
sobre o projeto das bases militares dos manutenção do embargo a Cuba. No
EUA na Colômbia – e que o presidente entanto, antes de renovar, em 14 de
equatoriano Rafael Correa havia sido o setembro de 2009, o embargo a Cuba, o
anfitrião do conselho de segurança da governo Obama já havia apontado, em
instituição. julho de 2009, para uma ampliação de
parcerias econômicas com os países
O governo do Equador havia rompido
emergentes do petróleo que fazem parte da
relações diplomáticas com Bogotá após
Comunidade Econômica dos Estados da
militares colombianos terem atacado um
África Ocidental (CEDEAO) – mesmo
acampamento das FARC em território
porque havia uma preocupação do
equatoriano, deixando mais de 20 mortos.
Departamento de Estado com a diplomacia
Para evitar este tipo de incidente, o
energética da China na África. Para os
governo colombiano se comprometeu, em
empresários globais, o regime ideológico
setembro de 2009, em não realizar
dos países pouco importa, desde que gerem
operações no país vizinho. Em
segurança e estabilidade legal-institucional
contrapartida, o Equador reiterou que não
para os investimentos. É justamente nisso
toleraria grupos ilegais em seu território e
que Venezuela e Bolívia têm falhado, mas
que qualquer incursão de rebeldes seria
não a China.
repelida. Assim, ambos os regimes
pareciam reconhecer que os insurgentes Em todo caso, paradoxalmente, a
eram um problema estratégico comum, o Venezuela ainda tem nos EUA o seu
que talvez apontasse para uma intenção principal parceiro comercial no consumo
futura de conseguir para o Equador apoio de gás natural, enquanto enfrenta o
militar e financeiro dos EUA, de modo a desempenho declinante de seus campos de
aumentar a segurança para investimentos petróleo, sem vislumbrar uma alternativa
estrangeiros nas áreas de petróleo e gás. sustentável ao petróleo dos pontos de vista
social, econômico, geopolítico e ecológico.
Portanto, num ano de atenuação das
Assim, se o governo do Equador ensaiou,
identidades reativas anti-americanas dos
128
em 2009, sair de sua esfera de influência explica a prova de força do governo russo,
para atrair mais investimentos estrangeiros, em face aos EUA, quando firmou, em
o mesmo não ocorreu com a Bolívia e setembro de 2009, um contrato de venda
alguns países menores do Caribe e da de mísseis e tanques para Venezuela,
América Central, cuja dívida com a depois de ter tornado público, em agosto
Venezuela crescera em 30% em relação de 2009, que tinha um contrato assinado,
aos 5,5 bilhões de dólares em 2008. desde 2007, que previa o fornecimento de
mísseis de defesa para o governo do Irã –
Nos países em que nutre um grau maior de
um contraponto ao projeto do governo
dependência, é possível que dê certo o
Bush de assentar um escudo antimíssil
projeto chavista de criar um Banco do Sul
(supostamente contra o Irã) na Polônia
como alternativa à influência do Banco
e/ou República Tcheca.
Mundial, mas o teor ideológico de tal
projeto não agrada ao pragmático governo Em todo caso, seria ilusório e simplificador
de centro-esquerda de Lula e ao neófito falar que estaria se configurando uma
Maurício Funes de El Salvador – eleito polarização do tipo “EUA-Colômbia” vs.
presidente em março de 2009. Embora “Rússia-Venezuela” na geopolítica da
saudado por Hugo Chávez como mais uma América Latina. Para o governo russo, a
vitória da esquerda na América Latina, o Venezuela foi apenas um acordo comercial
presidente Funes, em visita ao Brasil pouco útil para a sua balança comercial, pois não
depois de eleito – em sua primeira missão tem interesse de provocar fricção com os
no exterior –, saudou oficialmente o interesses estratégicos dos EUA na região,
exemplo do governo de centro-esquerda de quando já tem uma agenda externa bem
Lula, mas não o “socialismo bolivariano” cheia para o Cáucaso, leste europeu,
de Chávez. Oriente Médio e Ásia Central. Por outro
lado, o engavetamento provisório do plano
Ademais, para além dos países-membro da
de George W. Bush de fincar um sistema
OPEP, há uma dependência da Venezuela
antimíssil no Leste Europeu – anunciado
e da Bolívia em relação à Rússia – e mais
por Obama uma semana antes da reunião
futuramente em relação ao Brasil – no que
do conselho de segurança da ONU –
tange à regulação do preço global do
demonstrou que seu governo estava muito
petróleo e de gás natural. O setor
interessado em configurar uma política
energético russo tem se despontado no
externa de “baixa manutenção” que
mundo à medida que crescem os
incluísse a Rússia como parceira
investimentos alemães em suas empresas
estratégica, por mais problemático e
estatais em processo de privatização ou de
ambíguo que isso pudesse parecer para os
capital misto, havendo a tendência de
acordos de cooperação militar e financeira
tornar a União Européia mais dependente
firmados com a República Tcheca,
de seu potencial energético do que do
Polônia, Geórgia e Ucrânia durante o
Oriente Médio, o que pode mudar
governo Bush.
completamente o mapa geopolítico
mundial da energia. Enfim, durante o seu primeiro ano de
governo, para diminuir a identidade reativa
Por isso mesmo, não interessa aos
e anti-americana no mundo muçulmano e
governos russo e alemão ter no Irã um
entre as lideranças esquerdistas da América
inimigo que pudesse tornar o Cáucaso uma
Latina, que emergiram com força no
zona instável para investimentos
espectro político mundial durante os anos
estrangeiros. Do mesmo modo, isso explica
do governo Bush, Barack Obama se valeu
a atenuação da retórica dos direitos
da estratégia de engajamento para manter
humanos de Angela Merkel toda vez que
canais de diálogo que possibilitassem um
se dirige ao parceiro russo; assim como,
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escalonamento progressivo de ação (Venezuela), Evo Marales (Bolívia) ou
conforme a reação e o peso estratégico de Manuel Zelaya (Honduras). Por isso
seu interlocutor. Por isso, como notara mesmo, não representavam ameaças
Hugo Chávez na assembléia da ONU, significativas aos interesses hemisféricos
efetivamente houve muitos “Obamas” ao dos EUA. Por outro lado, o governo
longo de 2009. Obama redobrou a sua atenção em relação
à forma como a Rússia, a China e o Irã
Tudo isso possibilitou Obama sustentar
poderiam afetar os seus interesses
uma política externa que reduzisse cenários
estratégicos na África, na Ásia Central e no
múltiplos de fricção, de forma a garantir o
Oriente Médio.
seu menor custo possível (político, militar,
financeiro e humano) de “manutenção”. Conclusão
Para tanto, foi fundamental dividir, Independentemente da ideologia de cada
seletivamente, o ônus da política externa regime, foi interessante para a agenda
(com a ONU, OTAN, OEA, P5+1, etc) externa de “baixa manutenção” do governo
para poder se concentrar nas prioridades de Obama que houvesse parcerias
sua agenda doméstica, como a reforma da multilaterais de alcance regional no Caribe,
saúde, a proteção ao emprego e a na América Central, na região andina, no
imigração ilegal. Nesse sentido, não Oriente Médio, no chifre e no centro da
interessava ao governo Obama uma África e na Ásia Central. Em termos de
Colômbia estável frente a uma Venezuela América Latina, interessou a Obama
ou um Equador instável. Afinal, os atenuar os motivos para identidades
problemas de inteligência estratégica e reativas entre os regimes políticos
segurança na região andina foram esquerdistas, de modo a torná-los mais
avaliados por Dennis Blair como colaborativos e eficazes no combate à
basicamente oriundos de atores não- viscosidade dos grupos armados
estatais (grupos armados insurgentes e/ou insurgentes e do narcotráfico. Desse modo,
narcotraficantes) que não respeitavam leis os EUA poderiam se concentrar em
e fronteiras e, por isso, causavam danos esforços contra uma potencial rivalidade
diplomáticos entre potenciais parceiros chinesa na busca por recursos energéticos e
regionais, desestabilizavam os minérios na Ásia Central, África e Oriente
investimentos estrangeiros e criavam ônus Médio, assim como, na busca pela
à seguridade social dos EUA – neste colaboração russa e chinesa para a não-
último caso, na forma de imigração ilegal, proliferação de armas nucleares no Oriente
tráfico de drogas, corrupção e assassinatos. Médio (i.e., Irã) e na Ásia oriental (i.e.,
Assim, em termos geopolíticos, o cenário Coréia do Norte).
hemisférico manteve-se relativamente Ao longo de 2009, para prevenir a
estável para os investimentos norte- radicalização simultânea de vários cenários
americanos em 2009, não se alterando o regionais contra os interesses estratégicos
fato de que 37% do comércio dos EUA dos EUA, o governo Obama escalonou o
ocorreram com a América Latina, o que é tom da diplomacia e da força em seus
uma proporção maior do que as trocas com discursos oficiais conforme a reação, o
a Ásia e corresponde ao dobro das trocas poder econômico-militar e peso estratégico
com a União Européia. Portanto, os atores do interlocutor. Ora, isso fornece alguns
estatais da América Latina, dados os seus indícios para entendermos por que,
vínculos econômicos com os EUA, foram malgrado os governos da Venezuela e da
entendidos, em geral, como parceiros Bolívia tenham “falhado ostensivamente”,
interessados – mesmo que pontualmente em 2009, na luta contra a produção e o
conturbadores, como Hugo Chávez tráfico de drogas, o governo Obama tenha
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decidido eximi-los de possíveis sanções e, tráfico de drogas e a imigração ilegal –,
assim, os “certificou”. mas também seria uma forma indireta,
subterrânea, de contra-hegemonia
Na Bolívia, a “certificação” significava a
ideológica. Afinal, como afirmou o vice-
manutenção de apoio a programas de
presidente Joseph R. Biden Jr., em sua
intercâmbio, de desenvolvimento agrícola
visita à Geórgia e à Ucrânia em julho de
e de pequenas empresas, além de
2009, não foram ações armadas de grupos
treinamento policial. Na Venezuela,
insurgentes que derrubaram o Muro de
significava a manutenção de “programas
Berlin. Isso diz muito a respeito da forma
da sociedade civil e de desenvolvimento de
como o governo Obama pretendeu se
pequenas comunidades”, segundo os
relacionar com as lideranças esquerdistas
termos da própria certificação. Vale
da América Latina. Em todo caso, sinais
lembrar que, em 2008, os dois países não
ambíguos de mudança geram também
foram certificados pelo governo Bush,
reações ambíguas.
sinalizando a possibilidade de sanções
econômicas. Frente a isso, o presidente O governo da Bolívia tinha interesse em
Evo Morales havia expulsado o voltar a ser contemplado pelas cláusulas
embaixador norte-americano e dois especiais de importação dos EUA. Afinal,
funcionários da agência antidrogas dos os recursos “certificados” por Obama para
EUA, todos acusados de conspiração a Bolívia eram desproporcionalmente
contra o governo boliviano. Como menores em relação ao apoio financeiro
resposta, o então presidente George W. para fins militares dado à Colômbia.
Bush excluiu a Bolívia de um programa de Assim, em 16 de setembro de 2009, Evo
benefícios fiscais que favorecia a Morales diria que tinha cumprido as metas
exportação de produtos bolivianos. Tal no combate ao tráfico de drogas, mas que
sanção foi endossada por Obama em 2009. os EUA certificavam os países de acordo
com a sua conveniência política. No final
Portanto, vemos sinais ambíguos
das contas, o que interessava ao governo
característicos de sua abordagem de
de Evo Morales era que os produtos
engajamento: pune num aspecto, mas
bolivianos vendidos para os EUA não
escalona no tempo a “esperança” da
fossem barrados por tarifas desfavoráveis.
inclusão conforme o comportamento do
Assim, ressentido, Evo Morales afirmaria
interlocutor, liberando seletivamente
algo que se repete nas bocas de muitos
recursos que tocassem pontos relativos à
presidentes andinos – de esquerda ou de
inclusão social, à melhoria da ação
direita – desde a era Reagan, qual seja: que
policial e à propaganda ideológica. Ora,
os EUA não teriam moral para questionar a
este tipo de lógica estratégica explica por
Bolívia, pois não haveria nenhuma
que a renovação do embargo a Cuba foi
instância que pudesse não “certificar” o
combinada, ao longo de 2009, com
governo norte-americano por ter falhado na
medidas que suspenderam as restrições
luta contra o aumento do consumo de
para que os cubano-americanos pudessem
drogas entre os seus próprios cidadãos.
enviar dinheiro e visitar parentes em Cuba,
além de permitir que companhias de Ao final de 2009, quando comparados, os
telecomunicações dos EUA investissem na efeitos da política externa dos EUA
ilha e de proibir que propagandas pareciam mais previsíveis na América
anticastristas fossem veiculadas a partir da Latina do que na Ásia Central. Nesta parte
base militar de Guantánamo. do Velho Mundo, o seu futuro poderia ser
resumido pela província afegã de Logar.
Tudo isso tinha, obviamente, uma
Aqui, os soldados norte-americanos
finalidade estratégica – como melhorar a
cuidavam da segurança da companhia
cooperação cubana em questões como o
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estatal chinesa que explorava as reservas estável significaria segurança para seus
de cobre de Aynak, que valiam dezenas de investimentos em estradas e dutos de
bilhões de dólares. Assim, enquanto os energia (petróleo e gás), que justamente
EUA ainda empregavam a maior parte das poderiam evitar a sua dependência em
armas e recursos financeiros para fins relação às rotas do Oceano Índico –
militares no Afeganistão e no Paquistão, a atualmente, sob domínio dos EUA e da
China enfrentava, por sua vez, os riscos de Índia (esta última tem demonstrado forte
investir em um dos países mais violentos e pretensão de ampliar a sua frota naval).
instáveis do mundo para garantir o controle Assim, a situação no Afeganistão dava a
sobre os seus depósitos intocados de cobre, impressão de que os EUA estavam
ferro, ouro, urânio e pedras preciosas. No sacrificando sangue e dinheiro para, no
entanto, ao longo de 2009, o próprio final das contas, a China colher os
governo chinês demonstrou interesse em melhores frutos.
financiar programas de treinamento
Em dezembro de 2009, o governo Obama
policial e de inteligência no Afeganistão. O
anunciou que aumentaria os efetivos
problema maior é como fazer isso em
militares no Afeganistão. Caso isso não
pouco tempo, considerando o
consiga construir um governo estável ou
analfabetismo imperante e as questões
confiável na região, tal situação poderia
étnicas, religiosas e clânicas que afetavam
abalar os interesses estratégicos da Índia –
o funcionamento do “aparato policial”
um parceiro não declarado dos EUA que é,
afegão.
entretanto, um rival econômico e militar da
Por outro lado, ao explorar as reservas de China e do Paquistão na Ásia Central.
metais e minérios do Afeganistão, a China Nesse sentido, uma retomada do poder do
pode vir a criar milhares de postos de Taliban no Afeganistão representaria para
emprego e infra-estrutura para a população a Índia uma ampliação da ameaça
afegã, gerando impostos que poderiam institucional e militar do islamismo radical
estabilizar o governo de Kabul – na em suas fronteiras – com a já conhecida
eventualidade de este superar a crônica anuência do ISI e do exército paquistanês.
corrupção da rede familiar Karzai. Deste modo, a Índia teria de concentrar
Portanto, por razões e meios distintos, os mais recursos em defesa militar terrestre
interesses chineses e norte-americanos se do que no desenvolvimento econômico e
convergiam no Afeganistão: para o de sua frota naval – situação que
governo dos EUA, a visão de um favoreceria indiretamente a China. Em
Afeganistão estável significaria a outras palavras, independentemente do que
possibilidade de o país deixar de ser um aconteça no Afeganistão, a China parece
abrigo para grupos extremistas violentos e, ser o único ator regional que poderia se
assim, deixar de ameaçar a segurança dos beneficiar do melhor e do pior dos cenários
EUA; para a China, um Afeganistão mais geopolíticos.

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ALEXANDER MARTINS VIANNA é mestre e doutor em História Social pelo PPGHIS-UFRJ.

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