Você está na página 1de 5

RECENSÃO

TIAGO MOREIRA DE SÁ
O mundo de Trump E DIANA SOLLER
Donald Trump:
José Gomes André O Método
no Caos
Lisboa, Dom Quixote,
2018, 232 páginas

D onald Trump: O Método no Caos tem um objetivo ambi-


cioso, mas da maior importância: lidando com um
contexto ambíguo, associado ao polémico Presidente
norte-americano, encontrar ainda assim um fio condutor
ideológico e político que explica e orienta a sua mundi‑
vidência e ações políticas. Este não é portanto um livro
sobre Trump, o homem, mas sobre Trump, o político, com
o propósito de descrever as suas ideias e princípios, não
como uma soma de opiniões aleatórias, mas como pos‑
síveis inferências lógicas de premissas substantivas e
(mais ou menos) sólidas.
Tal empresa é levada a cabo por Tiago Moreira de Sá e
Diana Soller – dois autores muito competentes para
enfrentar este desafio com sucesso. Fala‑
mos de dois académicos e investigadores, gem clara e uma exposição didática, tor‑
com vasta obra publicada e amplo conhe‑ nando o livro acessível ao grande público.
cimento da realidade política norte-ame‑ O primeiro capítulo, intitulado «Porquê
ricana, currículo ao qual juntam grande Donald Trump?», procura identificar o
experiência na comunicação social, nor‑ quadro social, ideológico, político e eco‑
malmente comentando assuntos políticos nómico que explica a sua rápida ascensão
ligados aos Estados Unidos. Esta combi‑ e triunfo. São enunciadas quatro causas
nação resulta num livro de grande quali‑ estruturais, a primeira das quais se refere
dade, que concilia o rigor de um exercício à descrição do «jacksonianismo populista»
académico (descrição de grandes doutri‑ (seguindo a taxonomia de Walter Russell
nas, sobretudo no domínio das Relações Mead), que os autores consideram como
Internacionais; análise cuidada de docu‑ expressão identitária máxima de Trump.
mentação; comentários pertinentes sobre Trata-se de uma ideologia com grande
a bibliografia temática) com uma lingua‑ tradição na história norte-americana, que

RELAÇÕES INTERNACIONAIS JUNHO : 2019 62 [ pp. 117-121 ] https://doi.org/10.23906/ri2019.62r03


despreza os aspetos técnicos e institucio‑ ainda que o agora Presidente norte-ame‑
nais do exercício político, dando prevalên‑ ricano nada tenha a ver em termos sociais,
cia a atores políticos capazes de se culturais ou económicos com o «homem
identificarem com o cidadão comum e comum» dos Estados Unidos.
interpretarem adequadamente as suas Por fim, é referida a crise do Partido Repu‑
aspirações. Baseado num radicalismo blicano, quer em termos ideológicos quer
democrático e numa cultura individualista, organizativos (pelo desgaste provocado
o jacksonianismo populista está obcecado pelo Tea Party e lutas de grupos políticos
com um «passado glorioso» e a necessi‑ com linhas de orientação muito distintas),
dade de «mudar as regras do jogo», ideias que deixou a porta aberta para que um
que Trump tornou em verdadeiros slogans outsider, sem relações partidárias ou polí‑
de campanha. ticas relevantes, acabasse por ganhar as
Em segundo lugar, é mencionada a reemer‑ primárias e tornar-se o seu representante
gência da «comunidade folk», assente na Casa Branca.
numa forte tradição religiosa evangélica, Após esta exposição, que nos deu conta
culto da família e da tradição, ideais nacio‑ não só do contexto que «viu nascer»
nalistas, alguma xenofobia e grande des‑ Trump, mas também de algumas das
confiança da hierarquia política, do governo linhas ideológicas que marcam a sua mun‑
federal e da chamada identity politics. Não é dividência, o livro debruça-se, nos capítu‑
difícil adivinhar que esta comunidade, até los seguintes (2 a 4), a avaliar o seu
há pouco tempo relativamente marginal na impacto na política externa do Presidente
sociedade norte-americana, tem vindo a norte-americano. A principal ideia a des‑
crescer exponencialmente (ou a manifestar‑ tacar é a desconfiança de Trump face à
-se de forma mais clara...), formando o chamada «ordem internacional liberal»,
núcleo duro do eleitorado de Trump. que os próprios Estados Unidos ajudaram
Num terceiro momento alude-se à crise a moldar desde o início do século xx e que
económica da última década (que muito tem constituído uma das marcas mais sóli‑
afetou as classes média e baixa), da qual das não só da sua estratégia mundial desde
resultou uma maior clivagem social e eco‑ então, mas também do que podemos
nómica, libertando os «demónios interio‑ designar como a «estrutura fundamental»
res» da própria América, com um discurso da geopolítica no último século.
público mais agressivo contra as classes Esta desconfiança assenta na perceção de
altas, certas ordens profissionais e grupos que os Estados Unidos se encontram num
como os imigrantes, por exemplo. É neste declínio progressivo, tendo perdido
contexto que surge a retórica de Trump, influência no xadrez mundial. Tal convic‑
sem restrições do «politicamente correto», ção contrasta com a descrição de um pas‑
violenta, por vezes mesmo aviltante – mas sado mais ou menos mitificado, no qual
agora aceite por uma comunidade que se não só essa relevância teria sido prepon‑
revê nessa postura, ao ponto de entender derante, como decorreria de uma ascen‑
que «Trump diz o que nós sentimos», dência diretamente relacionada com os

RELAÇÕES INTERNACIONAIS JUNHO : 2019 62  118


«valores americanos», entretanto abando‑ americano». Mais do que uma doutrina
nados. É neste contexto que podemos ler própria, o que está em causa é portanto
o célebre slogan de Trump «Make America advogar o oposto do que está na base da
great again». Por outro lado, entende-se ordem internacional que tornou possível
que, na construção daquela ordem inter‑ esse declínio.
nacional liberal, os Estados Unidos terão É neste sentido que melhor se compreendem
adotado uma postura demasiado branda as suas relações privilegiadas com figuras
face aos restantes países, assente numa políticas marginais no quadro europeu
lógica «diplomática» que descurou a sua (nomeadamente da extrema-direita), elogios
autoridade. Uma vez que a mundividência a líderes autoritários (Putin, Kim Jong-un,
de Trump assenta num pessimismo antro‑ entre outros), a desvalorização do projeto
pológico radical, não é difícil concluir para europeu, incluindo um apoio claro ao Brexit,
o Presidente norte-americano que aquela as suas críticas ao funcionamento da nato
atitude chocou com as forças mais negati- (particularmente antagónicas àquela que
vas intrínsecas aos restantes estados, sempre foi a política externa norte-ameri‑
enfraquecendo a posição norte-americana. cana), ou a forma como menospreza aliados
Encarando o mundo numa perspetiva permanentes ou tradicionais.
maquiavélica, Trump olha para os Estados Paralelamente, Trump não perde uma
Unidos antes da sua chegada ao poder oportunidade para criticar as organizações
como «aquele Estado que, ao procurar internacionais, retirar ou diminuir a par‑
comportar-se sempre como pessoa de ticipação dos Estados Unidos em acordos
bem, acaba por se perder no meio de tan‑ globais (o caso do Acordo de Paris é sin‑
tos que não o são», parafraseando uma tomático), defender a reorganização das
passagem de O Príncipe. instituições económicas mundiais, propor
Como os autores do livro sublinham, des‑ medidas protecionistas e substituir acor‑
tas leituras resulta a convicção de que os dos multilaterais por acordos bilaterais.
Estados Unidos «devem ser novamente Embora muito variadas, estas ações fazem,
respeitados». Pouco importa se há uma no fundo, parte de uma estratégia coerente
necessidade efetiva de reposição desta que se pauta por uma postura crítica face
autoridade, uma vez que a mundividência ao internacionalismo liberal e defesa de
jacksoniana se baseia em «intuições» e não um certo isolacionismo ou, no mínimo,
sobre «factos», e uma análise ponderada de uma clara preferência pelos interesses
nesta matéria apenas revelaria desde logo norte-americanos, que «devem ser defen‑
um sinal de fraqueza. Juntando a esta didos a todo o custo», mesmo que tal
índole a sua própria formação como implique uma revolução na política externa
«homem de negócios», Trump prefere dos Estados Unidos.
seguir algo a que chamaria o seu «ins‑ Curiosamente, e porventura devido à
tinto», que no campo político se transfor‑ carência de uma ideologia estruturada,
mou numa dinâmica extremamente reativa a «mundividência jacksoniana» confere à
ao que julga serem os motivos do «declínio política externa de Trump uma índole

O mundo de Trump José Gomes André 119


ambígua, pois junta a esta lógica isolacio‑ parece desprezar a própria ideia de demo‑
nista matizes antagónicos, em particular cracia liberal (os ganhos potenciais das
uma retórica agressiva e referências habi‑ relações internacionais, sobretudo em
tuais ao hard power. Trump olha o mundo matérias económicas e de segurança,
como um cenário de forças mais ou menos superiorizam-se a considerações institu‑
anárquicas, repleto de estados vorazes, cionais, questões de direitos humanos ou
que se digladiam num jogo de soma nula, outros elementos associados ao «regime
onde prevalecem os seus interesses e nada político e social»); por outro lado, este
mais. Neste quadro, cada um está por sua «solipsismo político» norte-americano
conta, podendo recorrer a alianças de con‑ pode criar um vazio de poder no quadro
veniência, cabendo aos Estados Unidos internacional, alvo da cobiça de potências
fazer valer a sua superioridade moral e o muito mais imprevisíveis como a Rússia
seu poder político e militar (se necessário). ou a China.
Daí ser frequente o recurso em Trump a Embora não hesitem em expor as deficiên‑
uma visão maniqueísta (do tipo «nós con‑ cias – ou, mais exatamente, os aspetos
tra os outros»), alicerçada num primado problemáticos do pensamento de
nacionalista, que se traduz numa retórica Trump – os autores do livro adotam ao
belicosa contra a China, o Irão e a Coreia longo de toda a obra uma postura essen‑
do Norte (e por vezes a Rússia). Estas cialmente neutra. O seu objetivo não é
declarações, porém, parecem ser mais conduzir o leitor numa determinada lei‑
subsidiárias do princípio de que «é preciso tura, mas sim providenciar-lhe elementos
fazer respeitar a América» do que planos para elaborar o seu próprio juízo. Também
de intervenções efetivas. Na prática, Trump aqui este é um livro com muitos méritos,
tem preferido entregar matérias de segu‑ escapando-se a uma tendência comum na
rança aos países envolvidos na região, análise sobre a política norte-americana,
mesmo em zonas problemáticas do globo extremamente opinativa, simplista, por
(como o Médio Oriente), sendo até possí‑ vezes mesmo jocosa. Os autores respeitam
vel suspeitar que esta retórica visa sobre‑ a matéria sobre a qual se debruçaram,
tudo defender os interesses comerciais e mostrando respeito intelectual pelo
económicos dos Estados Unidos, e não um leitor – e isso é um facto de relevo no
desejo de promover alterações políticas e mundo editorial de hoje.
institucionais dos atores envolvidos. Ainda assim, fica a ideia de que a obra
Naturalmente, esta estratégia consigna poderia ter sido mais ambiciosa. Com‑
vários perigos, sendo destacados no livro preende-se o enfoque dado à política
sobretudo dois problemas: em primeiro externa de Trump, tanto pela formação dos
lugar, a nova «geometria de alianças» da autores, como pelo interesse do leitor por‑
Administração Trump desvaloriza a impor‑ tuguês, mas a ausência de referências à
tância de uma relação privilegiada com política doméstica empobrece um pouco
países democráticos, que agrava não só as a análise. Mesmo que de forma sucinta,
relações com aliados tradicionais, mas teria sido importante fazer alusões a matérias

RELAÇÕES INTERNACIONAIS JUNHO : 2019 62  120


como a política ambiental e a imigração autores têm o propósito de descrever o
(temas que são aliás interconexos com a method in madness de Trump, como se
política externa), ou sobre política de afirma na introdução, crendo ser possível
saúde ou temas fiscais e económicos, de expor vários princípios de uma ideologia
modo a melhor compreender a ideologia coerente que orienta a sua conduta. Porém,
do Presidente norte-americano. tendo em conta aquilo que sabemos da
Também do ponto de vista organizativo, personalidade de Trump (que não pode
lamenta-se a ausência de uma conclusão, ser totalmente apartada da figura política
não tanto como um mero resumo dos argu‑ e é marcada pelas suas diatribes pueris no
mentos apresentados, mas talvez em jeito Twitter, uma manifesta falta de sentido de
de análise prospetiva, lançando de algum Estado e um temperamento instável)
modo aquilo que poderemos esperar da e aquilo que conhecemos da sua Presidên‑
Administração Trump no futuro, a partir cia até ao momento (marcada por uma
dos princípios expostos anteriormente. instabilidade flagrante na sua Administra‑
Embora isso suceda amiúde ao longo do ção, políticas erráticas, avanços e recuos
livro, poderia ser útil uma análise mais permanentes), a que se junta a sua péssima
compacta que permitisse antever algumas relação com os democratas (que agora
das principais linhas de ação política de controlam a Câmara dos Representantes),
Trump nos meses (anos?) vindouros. realizar esse exercício prospetivo seria
Porém, na verdade, talvez um capítulo uma empresa hercúlea. Talvez haja sim‑
deste género fosse contraditório com o plesmente demasiada madness em Trump
objetivo do livro. Afinal de contas, os seus para lhe adivinhar os passos futuros.

José Gomes André Professor auxiliar na Faculdade especial incidência na análise da política norte‑
de Letras da Universidade de Lisboa, onde -americana, teorias políticas da Idade Moderna e
leciona Filosofia Política, História das Ideias filosofia política contemporânea. É autor de Razão
Contemporâneas e Teorias da Justiça. Doutorou- e Liberdade. O Pensamento Político de James Madison
-se em Filosofia Política na Universidade de Lisboa (Esfera do Caos, 2012) e de Sistema Político Norte-
com uma tese sobre o pensamento político de -Americano: Um Roteiro (integrado em O Regresso da
James Madison. Trabalhou num pós-doutoramento América, Esfera do Caos, 2008).
sobre federalismo moderno e contemporâneo. > flul | Alameda da Universidade, 1600-214
Tem diversas publicações sobre estes temas, com Lisboa | josegomesandre@gmail.com

O mundo de Trump José Gomes André 121

Você também pode gostar