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A Espada da Verdade

Cadeia de Fogo
( Chainfire )

Terry Goodkind

Tradução Não Oficial:

Eduardo A. Chagas Jr.


eduardo.almeida722@outlook.com

Revisão v2.0 Junho/2018


“Richard levantou repentinamente diante dela. Ele mudou em um piscar de
olhos de um homem com uma calma intensidade para uma figura de grande presença ,
poder, e fúria.
Mas ao invés de confrontá -la, ele deu um passo, passando por ela , de volta
em direção ao caminho pelo qual eles vieram , e parou. Imóvel e tenso, Richard ficou
olhando fixamente para a floresta.
— Tem alguma coisa errada. — ele falou como um aviso em voz baixa ...”
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— Quanto desse sangue é dele ? — uma mulher perguntou .


— A maior parte, eu temo. — uma segunda mulher falou enquanto as
duas corriam ao lado dele .
Enquanto Richard lutava para focar sua mente em sua necessidade de
permanecer consciente, as vozes soavam para ele como se viessem de uma grande
distância. Não tinha certeza de quem eram elas . Sabia que as conhecia, mas ness e
momento isso parecia não ter importância .
A dor esmagadora no lado esquerdo do seu peito e sua necessidade de ar
o deixavam no limiar do pânico . Tudo que ele conseguia fazer era tentar efetuar
cada suspiro crucial .
Ainda assim, ele tinha uma preocupação maior .
Richard fez um esforço para dar voz à sua preocupação ardente, mas não
conseguia formar as palavras , não conseguia dar mais do que um leve gemido . Ele
agarrou o braço da mulher ao lado dele , desesperado para fazer com que eles
parassem, para fazer eles escutarem . Ela interpretou mal sua ação e ao invés disso
pediu pressa aos homens que o carregavam , muito embora eles já estivessem
ofegando com o esforço de carregá -lo sobre o solo rochoso nas sombras profundas
entre os enormes pinheiros . Eles tentavam ser tão cuidadosos quanto possível ,
mas jamais ousavam redu zir o passo .
Não muito longe , um galo cacarejou no ar silencioso , como se essa fosse
uma manhã comum como qualquer outra .
Richard observou a tempestade de atividade rodopiando ao redor dele
com uma estranha sensação de distanciamento . Somente a dor parecia real.
Lembrou de ter ouvido dizerem que quando você morria , não importava quantas
pessoas estivessem ali com você , você morria sozinho. Era assim que ele sentia -
se agora... sozinho .
Enquanto eles saíam do meio das árvores e entravam em um terreno
acidentado pouco arborizado com amontoados de grama , Richard viu acima dos
galhos frondosos um céu carregado ameaçando liberar torrentes de chuva . Chuva
era a última coisa de que ele precisava . Se ao menos ela demorasse um pouco .
Conforme eles corriam , as paredes de madeira sem tinta de uma pequena
construção entraram no campo de visão, seguidas por uma cerca ondulante para
criação de animais envelhecida com uma cor cinza prateada . Galinhas assustadas
cacarejaram com medo quando foram afastadas do caminho . Homens gritaram
ordens. Richard mal notou os rostos pálidos observando ele passar sendo
carregado enquanto lutava contra a dor estonteante da jornada árdua . Parecia
como se ele estivesse sendo rasgado em pedaços .
A multidão toda ao redor dele afunilou -se através de um portal estreito
e misturou-se com a escuridão além .
— Aqui. — disse a primeira mulher . Richard ficou surpreso em perceber ,
então, que era a voz de Nicci. — Coloquem ele aqui, sobre a mesa. Depressa.
Richard escutou o som de pequenas xícaras en quanto alguém as retirava .
Pequenos itens caíram ao chão e saltitaram através de um chão de terra . As janelas
bateram quando foram abertas para deixarem um pouco da luz entrar na sala
mofada.
Parecia ser uma casa de fazenda abandonada . As paredes estavam

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curvadas em um ângulo estranho como se o lugar estivesse com dificuldades para
ficar em pé, como se ele pudesse desabar a qualquer momento . Sem as pessoas
que um dia haviam tornado isso um lar, transmitido vida a ele , ele tinha a aura de
um lugar esperando para que a morte tomasse conta .
Homens segurando as pernas e os braços dele ergueram -no e então o
colocaram cuidadosamente sobre a mesa de tábuas talhada rudemente . Richard
quis prender o fôlego por causa da agonia esmagadora que irradiava do lado
esquerdo do peito dele, mas ele precisava desesperadamente da respiração que
parecia não estar conseguindo efetuar .
Ele precisava respirar para conseguir falar .
Um raio brilhou. Um momento depois um trovão ribombou pesadamente .
— Sorte termos conseguido chegar ao abrigo antes da chuva. — um dos
homens falou.
Nicci assentiu distraidamente enquanto inclinava, aproximando -se,
tateando de forma decidida no peito de Richard. Ele gritou, arqueando as costas
contra o pesado tampo de madeira da mesa , tentando afastar -se dos dedos
investigadores dela. Imediatamente a outra mulher pressionou os ombros dele para
mantê-lo no lugar.
Ele tentou falar. Quase conseguiu colocar para fora as palavras , mas
então ele tossiu um punhado de sangue . Começou a sufocar enquanto tentava
respirar.
A mulher que segurava seus ombros virou a cabeça dele para o lado . —
Cuspa. — ela falou para ele quando abaixou chegando mais perto .
A sensação de não ser capaz de conseguir ar trouxe um medo repentino .
Richard fez como ela sugeriu . Ela enfiou os dedos através da boca dele ,
procurando liberar um caminho para o ar . Com a ajuda dela ele finalmente
conseguiu tossir e cuspir sangue suficiente para ser capaz de inspirar um pouco
do ar que ele tão desesperadamente necessitava .
Enquanto os dedos de Nicci sondavam a área ao redor da flecha que
projetava-se do lado esquerdo do peito dele , ela soltou uma praga.
— Queridos espíritos , — ela murmurou em uma suave oração quando
abria a camisa ensopada de sangue dele. — permitam que ainda esteja em tempo .
— Tive medo de arrancar a flecha . — falou a outra mulher. — Eu não
sabia o que aconteceria... não sabia se deveria... então decidi que seria melhor
deixá-la e ter esperança de que eu conseguisse encontrar você .
— Fique agradecida por não tentar ," Nicci disse, sua mão deslizando sob
as costas de Richard enquanto ele encolhia-se de dor. — Se tivesse removido ela
agora ele estaria morto .
— Mas você pode curá-lo? — soou mais como um pedido do que uma
pergunta.
Nicci não respondeu .
— Você pode curá-lo. — dessa vez as palavras saíram através de dentes
cerrados .
Pelo tom de comando nascido da escassa paciência , Richard percebeu
que era Cara. Ele não teve tempo de falar para ela antes do ataque . Certamente
ela saberia. Mas se ela sabia, então porque ela di zia? Porque ela não o
tranquilizava?
— Se não fosse ele, nós teríamos sido pegos de surpresa. — falou um
homem que estava de um lado . — Ele salvou a todos nós quando emboscou aqueles
soldados que esgueiravam -se sobre nós .
— Você tem que ajudá -lo. — insistiu outro homem.

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Nicci balançou o braço com impaciência . — Todos vocês, saiam. Esse
lugar já é bastante pequeno . Nesse momento eu não posso arriscar a distração .
Preciso de um pouco de tranquilidade .
Um raio brilhou outra vez , como se os bons espíritos prete ndessem negar
a ela aquilo que ela precisava . Um trovão estourou como uma profunda, ressonante
ameaça da tempestade que fechava -se em volta deles.
— Vai mandar Cara sair quando tiver alguma notícia ? — um dos homens
perguntou.
— Sim, sim. Vão.
— E certifiquem-se de que não tenha mais soldados nas proximidades
para nos surpreender. — Cara adicionou. — Mantenham-se fora de vista caso
tenha. Não podemos ser descobertos aqui... não nesse momento .
Os homens juraram atender a vontade dela . Luz turva espalhou-se sobre
uma parede engessada encardida quando a porta abriu . Enquanto os homens
partiam, suas sombras deslizaram fantasmagóricas através de um feixe de luz ,
como se os próprios bons espíritos estivessem abandonando ele .
Em seu caminho na saída , um dos homens tocou brevemente o ombro de
Richard... uma oferta de conforto e coragem . Richard reconheceu vagamente o
rosto. Não tinha visto esses homens fazia um bom tempo . Ocorreu-lhe o
pensamento de que ess e não era o modo de fazer uma reunião . A luz desapareceu
quando os homens fecharam a porta , deixando a sala na fraca luz que vinha de
uma janela.
— Nicci, — Cara pressionou em voz baixa. — você consegue curá -lo?
Richard estava a caminho para encontrar com Nicci quando tropas
enviadas para derrubar o levante contra o governo brutal da Ordem Imperial havia
acidentalmente encontrado o seu acampamento escondido . Seu primeiro
pensamento, pouco antes dos soldados lançarem -se sobre ele, foi que ele precisava
encontrar Nicci. Uma centelha de esperança surgiu dentro d a escuridão de sua
preocupação frenética; Nicci poderia ajudá-lo.
Agora Richard tinha que fazer ela escutar .
Quando ela inclinou -se perto, sua mão deslizando por baixo dele ,
aparentemente tentando ver o quão perto a flecha chegara de penetrar todo o
caminho atravessando a costa , Richard conseguiu agarrar no ombro do vestido
negro dela. Ele viu que sua mão cintilava com sangue . Ele sentiu mais escorrendo
por seu rosto quando tossiu .
Os olhos azuis dela voltaram -se para ele. — Tudo ficará bem, Richard.
Fique parado. — um tufo de cabelo louro escorregou para frente sobre o outro
ombro dela enquanto ele tentava puxá -la mais perto . — Estou aqui . Acalme-se.
Não vou abandoná -lo. Fique parado. Está tudo bem. Vou ajudá-lo.
Independente da forma suave como ela encobri a isso, o pânico espreitava
em sua voz. Independente do sorriso tranquilizador dela , seus olhos brilhavam
com lágrimas . Então ele soube que o seu ferimento podia muito bem estar além
da habilidade dela de curar .
Isso apenas tornou mais importante ainda que ele fizesse com que ela
escutasse.
Richard abriu a boca, tentando falar. Parecia que não conseguia ar
suficiente. Ele tremeu de frio, cada respiração era um esforço que produzia pouco
mais do que um gemido . Não podia morrer , não aqui, não agora. Lágrimas faziam
arder seus olhos.
Nicci abaixou o corpo dele de volta gentilmente .
— Lorde Rahl, — disse Cara. — fique parado. Por favor. — ela tirou a

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mão dele do vestido de Nicci e segurou-a com firmeza contra si . — Nicci cuidará
de você. Você ficará bem . Apenas fique parado e deixe ela fazer o que ela precisa
fazer para curá -lo.
Enquanto o cabelo louro de Nicci estava solto e esvoaçando , o de cara
estava preso em uma trança . A despeito do quão preocupada ele sabia que ela
estava, Richard podia ver na postura de Cara somente a sua presença poderosa , e
em suas feições e seus olhos azuis de ferro a força de vontade dela . De repente,
aquela força, aquela confiança, foi um solo firme para ele no meio da areia
movediça do terror.
— A flecha não atravessou. — Nicci falou para Cara enquanto tirava a
mão de baixo da costa dele .
— Eu disse para você . Ele conseguiu pelo menos desviá -la com sua
espada. Isso é bom, não é? É melhor que não tenha perfurado a costa dele também ,
não é?
— Não. — Nicci falou entre os dentes cerr ados.
— Não? — Cara inclinou chegando mais perto de Nicci. — Mas como
pode ser pior que ela não tenha rasgado através da costa dele ?
Nicci olhou para Cara. — É uma flecha de besta. Se ela estivesse para
fora da costa dele , ou perto o bastante para que fosse necessário apenas ser
empurrada só mais um pouquinho , nós poderíamos quebrar a cabeça farpada e
puxar o corpo para fora.
Ela não disse o que teriam de fazer agora .
— O sangramento dele não está tão ruim . — Cara observou. — Nós
paramos isso , pelo menos.
— Talvez do lado de fora , — Nicci disse em voz baixa . — mas ele está
sangrando dentro do peito... o sangue está enchendo seu pulmão esquerdo .
Dessa vez foi Cara quem agarrou no vestido de Nicci. — Mas você vai
fazer alguma coisa. Você vai...
— É claro. — Nicci rosnou quando puxou o ombro do punho de Cara.

Richard arfou de dor. As águas crescentes do pânico ameaçavam tomar


conta dele.
Nicci colocou a outra mão sobre o peito dele para mantê -lo no lugar
assim como para oferecer conforto .
— Cara, — disse Nicci. — porque você não espera lá fora com os outros ?
— Isso não vai acontecer . É melhor você começar logo a cuidar disso .
Nicci avaliou os olhos de Cara brevemente, então curvou -se e novamente
segurou a flecha que projetava -se do peito de Richard. Ele sentiu o formigamento
investigador da magia seguindo o curso da flecha descendo dentro dele . Richard
reconheceu a sensação inconfundível do poder de Nicci, de forma muito parecida
como podia reconhecer a singular voz suave dela .
Ele sabia que não havia tem po a perder naquilo que ele tinha de fazer .
Assim que ela iniciasse , não havia como saber quanto tempo levaria até que ele
acordasse... se ele acordasse .
Com todo seu esforço , Richard ergueu-se, agarrando o colarinho do
vestido dela. Puxou o corpo até bem perto do rosto dela , puxou-a para baixo em
direção a ele para que ela pudesse ouvir .
Tinha que perguntar se eles sabiam onde estava Kahlan. Se eles não
soubessem , então ele teria que pedir a Nicci para ajudar a encontrá -la.
A única coisa que ele conseguiu colocar para fora foi a palavra . —
Kahlan. — que ele sussurrou com toda sua força .

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— Tudo bem, Richard. Tudo bem . — Nicci segurou os pulsos dele e tirou
as mãos dele do seu vestido . — Escute. — ela empurrou -o de volta contra a mesa .
— Escute. Não há tempo. Tem que acalmar -se. Fique parado. Apenas relaxe e
deixe que eu faça o trabalho .
Ela afastou o cabelo dele e colocou a mão gentil, carinhosa, sobre a testa
dele enquanto a outra mão segurava a flecha amaldiçoada .
Richard lutou desesperadamente para falar n ão, lutou para dizer a eles
que precisavam encontrar Kahlan, mas o formigamento da magia já estava
intensificando -se em uma dor paralisante .
Richard ficou rígido com a agonia do poder perfurando dentro de seu
peito.
Ele podia ver os rostos de Nicci e Cara acima dele.
E então uma escuridão mortal espalhou -se dentro da sala.
Tinha sido curado por Nicci. Richard conhecia a sensação do poder dela .
Dessa vez, algo estava diferente. Perigosamente diferente .
Cara arfou. — O que você está fazendo !
— O que devo fazer se quero salvá -lo. É o único jeito .
— Mas você não pode...
— Se prefere que eu deixe ele deslizar para dentro dos braços da morte ,
então diga. Caso contrário, permita que eu faça o que devo fazer para mantê -lo
entre nós.
Cara estudou a expressão feroz de Nicci apenas por um momento antes
de soltar um barulhento suspiro e assentir .
Richard tentou alcançar o pulso de Nicci, mas Cara segurou o dele
primeiro e pressionou -o de volta contra a mesa . Os dedos dele acabaram
descansando sobre a palavra VERD ADE, trançada em fios dourados no cabo de
sua espada. Ele pronunciou o nome de Kahlan outra vez, mas dessa vez som algum
saiu de seus lábios .
Cara fez uma careta quando curvou -se em direção a Nicci. — Você
ouviu o que ele disse ?
— Não sei. Algum nome. Kahlan, eu acho.
Richard t entou gritar “sim”, mas isso saiu como pouco mais do que um
leve gemido.
— Kahlan? — Cara perguntou. — Quem é Kahlan?
Não tenho ideia. — Nicci murmurou enquanto sua concentração
retornava para a tarefa atual . — Obviamente ele está delirando por causa da perda
de sangue.
Richard realmente não conseguiu respirar com a dor que espalhou -se
repentinamente através dele .
Um raio cintilou e um trovão ecoou novamente , dessa vez liberando uma
torrente de chuva que começou a tambori lar contra o teto.
Contra a vontade dele, uma escuridão nebulosa envolveu os rostos .
Richard conseguiu apenas sussurrar o nome de Kahlan uma última vez
antes que Nicci derramasse dentro dele a onda completa de magia .
O mundo dissolveu dentro do nada .

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C A P Í T U L O 2

O uivo distante de um lobo despertou Richard de um sono pesado . O


grito solitário ecoou através das montanhas , mas ficou sem resposta . Richard
deitou de lado, na luz surreal do falso amanhecer, escutando ociosamente,
esperando, por um uivo de resposta que nunca veio .
Independente do quanto tentasse , parecia não conseguir abrir seus olhos
por mais tempo do que uma simples batida do coração , muito menos reunir a
energia para erguer sua cabeça . Galhos de árvores escuros pareceram mover-se na
escuridão . Foi estranho que um som tão comum como o uivo distante de um lobo
tivesse acordado ele.
Ele lembrou que Cara estava com o terceiro turno de vigília . Sem dúvida
ela viria para acordá -los em breve. Com grande esforço , ele invocou a força para
girar o corpo. Precisava tocar Kahlan, abraçá-la, voltar a dormir com ela em seus
braços protetores por mais alguns minutos deliciosos . Sua mão encontrou apenas
um espaço vazio de chão .
Kahlan não estava ali.
Onde ela estava? Para onde ela teria saído ? Talvez tivesse acordado cedo
e foi falar com Cara.
Richard sentou. Instintivamente ele checou para ter certeza de que sua
espada estava ao alcance da mão . A reconfortante sensação da bainha polida e do
cabo com fios trançados deu boas vindas aos seus dedos. A espada jazia no solo
ao lado dele.
Richard ouviu o suave sussurro de uma lenta chuva constante . Ele
lembrou que por alguma razão ele precisava que não chovesse .
Mas se estava chovendo , então porque ele não sentiu ? Porque o rosto
dele estava seco? Porque o solo estava seco ?
Ele ficou sentado esfregando os olhos , tentando recuperar os sentidos ,
tentando clarear sua mente nublada enquanto lutava para organizar pensamentos
dispersos . Espiou dentro da escuridão e percebeu que não estava do lado de fora.
Na fraca luz cinzenta do amanhecer que entrava através de uma pequena janela
ele viu que estava em uma sala abandonada . O lugar cheirava a madeira molhada
e decadência úmida. Brasas moribundas cintilavam dentro de uma lareira em uma
parede en gessada que erguia -se diante dele. Uma colher de madeira enegrecida
pendia de um lado da lareira , uma vassoura em sua maior parte pelada estava
encostada contra o outro lado , mas além disso ele não viu quaisquer itens pessoais
que distinguissem as pessoas que viveram aqui.
Parecia ainda faltar um certo tempo para o amanhecer . O padrão
incessante da chuva contra o telhado prometia que não haveria sol nesse dia frio
e úmido. Além de gotejar através de vários buracos no teto desgastado , a chuva
pingava na chaminé, adicionando ainda mais uma camada de mancha no gesso
encardido .
Ver a parede engessada, a lareira, e a pesada mesa de tábuas trouxe de
volta fragmentos espectrais de lembranças .
Conduzido por sua necessidade de saber onde Kahlan estava, Richard
levantou, colocando uma das mãos no dolorido lado esquerdo do seu peito e
segurando na borda da mesa com a outra .
Ao escutar ele levantar na sala fracamente iluminada , Cara, recostada

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em uma cadeira não muito longe , ergueu-se rapidamente. — Lorde Rahl.
Ele viu sua espada sobre a mesa . Mas ele tinha pensado...
— Lorde Rahl, você está acordado! — na luz suave Richard conseguia
ver que Cara parecia eufórica. Ele também viu que ela estava usando sua roupa
vermelha de couro.
— Um lobo uivou e me acordou .
Cara balançou a cabeça. — Estive sentada bem aqui , acordada, tomando
conta de você. Lobo algum uivou. Você deve ter sonhado . — o sorriso dela
retornou. — Você parece melhor !
Ele lembrou que não estava conseguindo respirar , não estava
conseguindo ar suficiente . Experimentou respirar profundamente e descobriu que
fazia isso com facilidade . Embora o fantasma da dor terrível ainda o assombrasse ,
a realidade daquilo havia quase sido dissipada .
— Sim, acho que estou bem .
Curtas lembranças desconexas passaram na mente dele . Ele lembrou de
estar sozinho e parado na estranha luz da madrugada quando a onda escura dos
soldados da Ordem Imperial deslizou entre as árvores . Lembrou de fragmentos do
ataque selvagem deles , suas armas erguidas . Lembrou de soltar -se dentro da fluida
dança com a morte. Lembrou também, do som de flechas e bestas , e, finalmente,
de outros homens entrando na batalha .
Richard levantou a frente de sua camisa esticando -a para frente , olhando
para ela, sem entender porque ela estava inteira .
— Sua camisa estava destruída, — Cara explicou, notando a confusão
dele. — Lavamos e barbeamos você , então colocamos uma camisa limpa .
Nós. Essa palavra destacou -se entre todas as outras na mente dele . Nós.
Cara e Kahlan. Tinha que ser isso que Cara queria dizer .
— Onde ela está?
— Quem?
— Kahlan. — ele disse enquanto dava um passo afastando -se do suporte
da mesa. — Onde ela está?
— Kahlan? — a expressão de Cara começou a exibir um sorriso
provocante. — Quem é Kahlan?
Richard s uspirou aliviado. Cara não estaria provocando ele desse jeito
se Kahlan estivesse ferida ou com algum tipo de problema... disso ele tinha
certeza. Uma esmagadora sensação de alívio afastou seu medo e com isso um
pouco de sua preocupação . Kahlan estava segura.
Ele não conseguiu evitar de ficar animado também diante da expressão
travessa de Cara. Adorava ver ela com um sorriso alegre , em parte porque isso
era uma visão rara. Geralmente quando uma Mord-Sith sorria isso era um
ameaçador prelúdio para algo completamente desagradável . A mesma coisa era
verdadeira quando elas usavam sua roupa vermelha de couro .
— Kahlan, — Richard disse, entrando na brincadeira. — você sabe,
minha esposa. Onde ela está?
O nariz de Cara franziu com uma raramente vista alegria feminina . Esse
tipo de aparência extraordinária era tão incomum em Cara que isso não apenas o
surpreendeu, mas fez ele abrir um sorriso .
— Uma esposa. — ela falou lentamente, parecendo dengosa. — Ora, esse
é um conceito romântico... o Lorde Rahl assumindo uma esposa.
O fato dele ser o Lorde Rahl, o líder de D'Hara, às vezes ainda parecia
irreal para ele. Não era o tipo de coisa com que um guia florestal que cresceu
longe em Westland algum dia teria sonhado em suas mais loucas imaginações .

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— Sim, bem, um de nós tinha de ser o primeiro. — ele esfregou uma das
mãos sobre o rosto, ainda tentando clarear a teia de sono da sua mente . — Onde
ela está?
O sorriso de Cara aumentou. — Kahlan. — ela inclinou a cabeça em
direção a ele, erguendo uma sobrancelha . — A sua esposa.
— Sim, Kahlan, m inha esposa. — Richard disse tranquilamente.
Aprendera fazia muito tempo que era melhor não dar a Cara a satisfação de ver
suas brincadeiras maliciosas atingirem ele. — Você lembra dela... inteligente ,
olhos verdes, alta, cabelo longo, e, é claro, a mulher mais bonita sobre a qual eu
já coloquei os olhos .
O couro da roupa de Cara rangeu quando ela endireitou as costas e
cruzou os braços . — Você quer dizer a mais bonita depois de mim , é claro. — os
olhos dela estavam luminosos quando ela sorri u. Ele não engoliu a isca.
— Bem, — finalmente Cara falou com um suspiro. — certamente parece
que o Lorde Rahl teve um sonho interessante durante o seu longo sono .
— Longo sono?
— Você esteve dormindo durante dois dias... depois que Nicci o curou.
Richard deslizou os dedos através do seu cabelo sujo, desgrenhado . —
Dois dias... — ele disse enquanto tentava juntar suas memórias fragmentadas. Ele
estava ficando irritado com o jogo de Cara. — Então, onde ela está?
— Sua esposa?
— Sim, minha esposa. — Richard plant ou os punhos nos quadris
enquanto inclinava em direção à mulher . — Você sabe, a Madre Confessora .
— Madre Confessora! Ora, ora, Lorde Rahl, mas quando você sonha
certamente sonha grande . Inteligente, bonita, e também a Madre Confessora . —
Cara curvou-se com uma expressão provocativa . — E sem dúvida ela também está
loucamente apaixonada por você ?
— Cara...
— Oh, espere. — ela levantou uma das mãos para deter ele enquanto
ficava séria abruptamente . — Nicci falou que ela queria que eu a chamasse se
você acordasse. Ela foi realmente insistente nisso... disse que se você acordasse
ela precisava dar uma olhada em você . — Cara começou a andar até a porta
fechada nos fundos da sala . — Ela esteve dormindo apenas por duas horas , mas
vai querer saber que você está acordado.
Cara estava na sala dos fundos durante apenas um momento quando Nicci
saiu da escuridão, fazendo uma pausa para segurar no caixilho da porta . —
Richard!
Antes que Richard pudesse falar qualquer coisa , Nicci, seus olhos
arregalados de alívio ao ver ele vivo , correu até ele e agarrou seus ombros como
se pensasse que ele era um dos bons espíritos que veio ao mundo dos vivos e
somente os punhos firmes dela o manteriam ali .
— Estava tão preocupada. Como está sentindo -se?
Ela parecia tão esgotada quanto ele sentia -se. Parecia que o cabelo louro
dela não tinha sido escovado e parecia que ela havia dormido com seu vestido
negro. Ainda assim, o contraste de sua aparência desarrumada servia apenas para
exaltar sua peculiar beleza .
— Bem, está tudo bem em maior parte , exceto que eu me sinto exausto
e tonto independente de ter desfrutado daquilo que Cara me diz que foi um longo
sono.
Nicci balançou uma das mãos finas . — Isso era esperado. Com descanso
você terá toda a sua força de volta em pouco tem po. Você perdeu muito sangue .

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Levará tempo para que o seu corpo se recupere .
— Nicci, eu preciso...
— Calma. — ela disse quando colocava uma das mãos atrás da costa dele
e pressionava a palma da outra no seu peito. As sobrancelhas finas dela
aproximaram-se em concentração .
Embora ela parecesse ter aproximadamente a mesma idade dele , ou no
máximo apenas um ano ou dois mais velha , ela vivera um longo tempo como uma
Irmã da Luz no Palácio dos Profetas , onde aqueles que estavam dentro dos muros
envelheciam de forma diferente. O porte gracioso de Nicci, a aguda avaliação de
seus olhos azuis, e o singular sorriso tênue dela... sempre entregue com o seu
olhar firme travado no dele... no início havia sido uma distração e então, algo
inquietante, mas agora era meramente familiar.
Richard encolheu-se quando sentiu o poder de Nicci formigando fundo
em seu peito , entre as mãos dela . Essa era uma invasão desconcertante . Isso fez o
coração dele flutuar. Uma forte onda de náusea espalhou -se através dele.
— Está aguent ando. — Nicci murmurou para si mesma . Então ela olhou
nos olhos dele. — Os vasos estão inteiros e fortes . — a expressão de surpresa nos
olhos dela mostrou o quanto ela estivera incerta do sucesso . Um pouco do sorriso
tranquilizante dela retornou . — Você ainda precisa descansar , mas está indo muito
bem, Richard, realmente está.
Ele assentiu, aliviado por ouvir que estava saudável , mesmo que ela
soasse um pouco surpresa com isso . Mas as outras preocupações dele também
precisavam ser tratadas .
— Nicci, onde está Kahlan? Cara está com aquele humor dela esta manhã
e não vai falar.
Nicci pareceu estar perdida. — Quem?
Richard segurou o pulso dela e retirou a mão dela do seu peito . — Qual
é o problema? Ela está ferida? Onde ela está?
Cara inclinou a cabeça em direção à Nicci. — Enquanto ele dormia ,
Lorde Rahl sonhou com uma esposa.
Nicci virou um rosto surpreso para Cara. — Uma esposa!
— Lembra do nome que ele chamou quando estava delirando ? — Cara
exibiu um sorriso conspira tório. — É aquela com quem ele casou no sonho dele .
Ela é bonita e inteligente , é claro.
— Bonita. — Nicci piscou para a mulher . — E inteligente .
Cara ergueu uma sobrancelha . — E ela é a Madre Confessora .
Nicci pareceu incrédula . — A Madre Confessora.
— Já chega. — Richard falou quando soltou o pulso de Nicci. — Agora
estou falando sério . Onde ela está?
Imediatamente estava aparente para as duas mulheres que o senso de
humor indulgente dele havia evaporado . A intensidade na voz dele , para não falar
em seu olhar furioso , fez elas estremecerem .
— Richard, — Nicci disse em um tom cauteloso. — você estava muito
ferido. Durante algum tempo eu não achei ... — ela prendeu um cacho de cabelo
atrás da orelha e recomeçou . — Veja, quando uma pessoa é ferida seriamente
como você foi, isso pode causar confusão na mente dela . Isso é natural . Já vi isso
acontecer. Quando foi atingido com aquela flecha você não conseguia respirar .
Ficar sem ar, como quando você está afogando -se, causa...
— Qual é o problema com vocês duas ? O que está acontecendo? —
Richard não conseguia entender porque elas estavam embromando.
Parecia como se o coração dele estivesse galopando fora de controle . —

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Ela está ferida? Diga!
— Richard, — Nicci falou com uma voz calma obviamente com objetivo
de acalmá-lo. — a flecha daquela besta chegou perigosamente perto de atravessar
o seu coração . Se tivesse feito isso , não haveria qualquer coisa que eu poderia ter
feito. Não posso levantar os mortos .
— Embora ela não tenha atingido seu coração , a flecha ainda causou
sério dano. As pessoas não sobrevivem a um ferimento tão grave quanto o que
você sofreu. Eu não teria sido capaz de curá -lo da maneira convencional porque
isso não podia ser feito . Não havia tempo para ao menos tentar remover a flecha
de outra forma . Você estava sangrando por dentro . Eu tive que...
Ela hesitou quando olhou dentro dos olhos dele . Richard curvou-se um
pouco em direção a ela. — Você teve que fazer o quê ?
Nicci balançou os ombros, confiante . — Tive que usar Magia Subtrativa.
Nicci era uma feiticeira poderosa por seu próprio mérito , mas ela era
infinitamente mais excepcional pelo fato de que era capaz de comandar forças do
Submundo também. Um dia ela havia sido comprometida com aquelas forças . Um
dia ela foi conhecida como Senhora da Morte. Curar não era exatamente a sua
especialidade.
A cautela de Richard aumentou. — Porque?
— Para retirar a flecha de você .
— Você eliminou a flecha com Magia Subtrativa ?
— Não havia tempo e qualquer outro jeito . — novamente ela segurou os
ombros dele, embora de forma mai s compassiva dessa vez. — Se eu não tivesse
feito algo você estaria morto em momentos . Tive que fazer isso.
Richard olhou para a expressão sombria de Cara e então de volta para
Nicci. — Bem, acho que isso faz sentido .
Pelo menos, soava como se fizesse sentido. Ele realmente não sabia se
fazia ou não. Tendo sido criado nas vastas florestas de Westland, Richard não
conhecia muito sobre magia .
— E um pouco do seu sangue. — Nicci adicionou em voz baixa.
Ele não gostou do som daquilo . — O que?
— Você estava sangrando dentro do peito . Um pulmão já tinha falhado .
Consegui perceber que o seu coração estava sendo forçado para fora do lugar . As
artérias principais corriam o risco de serem rasgadas com a pressão . Precisei tirar
o sangue do caminho para curá -lo... para que os seus pulmões e o coração
pudessem trabalhar adequadamente . Eles estavam falhando . Você estava em um
estado de choque e delírio . Estava próximo da morte.
Os olhos azuis de Nicci encheram-se de lágrimas . — Eu estava com tanto
medo, Richard. Não havia outra pessoa a não ser eu para ajudá -lo e eu estava com
tanto medo de falhar . Mesmo depois que fiz tudo que podia para curá -lo, ainda
não tinha certeza de que você acordaria novamente .
Richard conseguiu ver o custo daquele medo na expressão dela e sentir
isso no modo como os dedos dela tremeram nos braços dele . Isso demonstrava o
quão longe ela havia chegado desde que abandonara sua crença na causa das Irmãs
do Escuro e então da Ordem Imperial .
A expressão assombrada no rosto de Cara confirmou a ele a verdade do
quanto a situação tinha sido desesperadora . Com todo o tempo em que ele
aparentemente dormiu , nenhuma delas parecia ter tirado mais do que pequenos
cochilos. Deve ter sido uma vigília apavorante .
A chuva tamborilava sem trégua contra o telhad o. Tirando isso, a casa
que parecia uma casca úmida estava completamente silenciosa . A vida parecia

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ainda mais tênue na casa abandonada . O lugar abandonado causava calafrios em
Richard.
— Você salvou minha vida , Nicci. Lembro de sentir medo de morrer .
Mas você salvou minha vida. — ele encostou os dedos na bochecha dela . —
Obrigado. Gostaria que houvesse uma forma melhor para dizer isso , uma forma
melhor para dizer a você o quanto agradeço o que você fez , mas não consigo
pensar em qualquer uma .
O leve sorriso de Nicci e o simples aceno com a cabeça indicaram a ele
que ela captara a profundidade de sua sinceridade .
Outro pensamento lhe ocorreu . — Você está querendo dizer que usar
Magia Subtrativa causou algum tipo de ... problema?
— Não, não, Richard. — Nicci apertou os braços dele como se desejasse
aliviar seus temores . — Não, eu não acho que isso causou qualquer dano .
— O que quer dizer com você não acha que causou ?
Ela hesitou um instante antes de explicar . — Nunca fiz algo assim .
Jamais ao menos ouvi sobre isso ter sido feito . Queridos espíritos , nem ao menos
sabia se isso podia ser feito . Como tenho certeza de que você pode imaginar , usar
Magia Subtrativa dessa forma é arriscado , para falar de forma suave . Qualquer
coisa viva tocada por ela também seria des truída. Tive que usar o núcleo da
própria flecha como um caminho para dentro de você . Fui o mais cuidadosa que
poderia ser para eliminar apenas a flecha ... e o sangue perdido .
Richard imaginou o que acontecia com as coisas quando a Magia
Subtrativa era us ada... o que teria acontecido com o seu sangue... mas a cabeça
dele já estava girando com a história e o que ele mais queria era que ela fosse
direto ao ponto .
— Mas entre tudo isso , — Nicci adicionou. — entre a perda massiva de
sangue, o ferimento, a terrível condição de não ser capaz de obter ar suficiente , o
stress que você passou enquanto eu usava a Magia Aditiva regular para curá-lo...
para não falar do elemento desconhecido que a Magia Subtrativa adicionou na
mistura... você estava passando por uma experiência que eu só posso descrever
como imprevisível . Uma crise terrível assim pode fazer com que aconteçam coisas
inesperadas .
Richard não sabia aonde ela queria chegar. — Que coisas inesperadas ?
— Não há como dizer . Não tive escolha a não ser usar mét odos extremos.
Você estava além do que eu pensei que fossem todos os limites . Tem que tentar
entender que você não era você mesmo durante algum tempo .
Cara enfiou um dedão atrás do cinto de couro dela . — Nicci está certa,
Lorde Rahl. Você não era você mes mo. Estava lutando conosco . Tive que segurar
você só para que ela pudesse ajudá -lo.
— Já estive sobre homens à beira da morte . Coisas estranhas acontecem
quando eles estão naquele lugar . Acredite em mim, você esteve lá durante um
longo tempo naquela primei ra noite.
Richard sabia muito bem o que ela queria dizer quando falou que esteve
sobre homens à beira da morte . A profissão de Mord-Sith tinha sido tortura... pelo
menos foi assim até que ele mudasse tudo aquilo . Ele carregou o Agiel de Denna,
a Mord-Sith que um dia esteve sobre ele naquela capacidade. Ela deu a ele seu
Agiel como um presente solene em gratidão por libertá-la da loucura do seu
terrível dever... embora ela soubesse que o preço daquela liberdade fosse a espada
dele através do coração dela .
Nesse momento Richard sentiu-se muito distante das florestas pacíficas
onde ele crescera.

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Nicci afastou as mãos como se implorasse para que ele tentasse com
mais esforço entender. — Você ficou inconsciente e depois dormindo durante um
longo tempo. Tive que revivê-lo tempo suficiente para fazer você beber água e
uma sopa, mas precisei que você ficasse em um sono profundo para que pudesse
começar a recuperar suas forças . Tive que usar um feitiço para mantê -lo naquele
estado. Você perdeu bastante sangue ; se tivesse permitido que acordasse cedo
demais isso teria drenado a sua tênue força e você ainda poderia ter escapulido
de nós.
Morrer, era isso que ela queria dizer. Ele poderia ter morrido. Richard
deu um forte suspiro . Ele não fazia ideia de tudo que acontecer a nos últimos três
dias. Basicamente ele lembrava da batalha e então de acordar quando ouviu o uivo
do lobo.
— Nicci, — ele disse, tentando mostrar a ela que podia ter calma e
compreens ão muito embora não sentisse ambas as coisas. — o que isso tem a ver
com Kahlan?
A expressão dela mostrava uma inquietante mistura de empatia e
preocupação. — Richard, essa mulher, Kahlan, é apenas um produto da sua mente
quando você estava naquele estado con fuso de choque e delírio antes que eu
pudesse curá-lo.
— Nicci, eu não estava imaginando...
— Você estava à beira da morte , — ela disse quando levantou uma das
mãos, exigindo silêncio e que ele escutasse. — Em sua mente você estava pedindo
para que alguém o ajudasse... alguém como essa pessoa , Kahlan. Por favor
acredite e mim quando digo que isso é compreensível . Mas agora você está
acordado e deve encarar a verdade . Ela era fantasia nascida da sua horrível
condição.
Richard estava estupefato em ouvir ela a o menos sugerir tal coisa . Ele
virou para Cara, implorando a ela para recuperar o bom senso , se não, que o
resgatasse. — Como você poderia pensar uma coisa assim ? Como poderia
acreditar nisso?
— Nunca teve um sonho onde estava apavorado e então a sua mãe morta
fazia muito tempo estava ali , viva, e ela ajudaria você? — os olhos azuis firmes
de Cara pareciam focados em outro lugar . — Não lembra de caminhar depois de
um sonho como esse e ter certeza de que era real , que a sua mãe estava viva
novamente, realmente viva, e que ela o ajudaria?
Não lembra do quanto você quis agarrar -se a esse sentimento ? Não
lembra do quanto você queria desesperadamente que isso fosse real ?
Nicci tocou suavemente o lugar onde a flecha estivera , onde sua carne
agora estava inteira. — Depois que eu o curei até o ponto em que você tinha
passado do pior da crise , você entrou em um longo estado de sonho durante o
sono. Você carregou essas ilusões desesperadas adiante . Sonhou com elas,
ampliou-as, viveu com elas durante mais tempo do que qualquer sonho comum .
Esse sonho prolongado , essa ilusão confortadora , esse anseio divino, teve tempo
para mergulhar em cada canto dos seus pensamentos , saturar todas as partes da
sua mente, e tornou-se real para você, exatamente como Cara diz, mas, por causa
da quantidade de tempo que você dormiu , isso ganhou ainda mais poder . Agora
que você acabou de acordar daquele sonho prolongado você está apenas sentindo
um pouco de dificuldade em distinguir que parte da sua provação era um sonho e
o que era real.
— Nicci tem razão , Lorde Rahl. — Richard não conseguia lembrar de
algum dia em que Cara par eceu tão séria. — Você apenas sonhou com isso... como

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você sonhou que ouviu o uivo de um lobo . Parece um belo sonho... essa mulher
com quem você sonhou ter casado... mas isso é tudo que foi : um sonho.
A mente de Richard rodopiou. O conceito de Kahlan ser nada mais do
que um sonho , uma fantasia da imaginação dele nascid a em seu delírio, era, em
sua essência, aterrorizante. Esse terror espalhou-se sem controle através dele. Se
aquilo que elas estavam dizendo fosse verdade , então ele não queria estar
acordado. Se isso fosse verdade, então ele queria que Nicci nunca tivesse curado
ele. Ele não queria viver em um mundo onde Kahlan não era real.
Ele tateou buscando solo fir me em um mar de escura desordem ,
atordoado demais para pensar em um jeito de lutar contra uma ameaça sem forma
como essa. Ele sentiu-se confuso por sua provação e por não lembrar da maior
parte disso. Sua certeza naquilo que ele considerava como verdadeiro começou a
desmoronar.
Ele procurou recompor -se. Sabia muito bem que não devia acreditar em
um medo e assim dar vida a ele . Embora ele não conseguisse imaginar como elas
se agarravam a uma ideia tão monstruosa , ele sabia que Kahlan não era um sonho.
— Depois e tudo que vocês duas compartilharam com ela , como podem
dizer que Kahlan é apenas um sonho?
— Certamente, — Nicci perguntou. — se aquilo que você está dizendo
fosse verdade?
— Lorde Rahl, nós jamais seríamos tão cruéis para tentarmos enganá-lo
a respeito de algo tão importante para você .
Richard piscou para elas . Poderia ser? Ele tentou freneticamente
imaginar se havia qualquer possibilidade de que aquilo que elas estavam dizendo
pudesse ser verdade.
Ele cerrou os punhos . — Parem com isso... vocês d uas!
Esse foi um apelo para um retorno da sanidade . Ele não desejava que
isso acabasse saindo de forma ameaçadora , mas saiu. Nicci deu meio passo para
trás. O rosto de Cara perdeu um pouco da cor.
Richard não conseguia reduzir a velocidade de sua respiraçã o, seu
coração estava acelerado .
— Não lembro dos meus sonhos . — ele olhou para cada uma delas . —
Não desde que era pequeno . Não lembro de quaisquer sonhos enquanto eu estava
ferido, ou enquanto eu dormia. Nenhum. Sonhos não possuem significado . Kahlan
não é um sonho. Não façam isso comigo... por favor . Isso não está ajudando em
nada, só está tornando a coisa pior . Por favor, se alguma coisa aconteceu com
Kahlan, eu preciso saber .
Tinha que ser isso. Algo aconteceu a ela e elas simplesmente achavam
que ele ainda não estava forte o bastante para encarar as notícias .
Um medo ainda pior emergiu quando ele lembrou de Nicci falando que
não podia erguer os mortos . Será que elas estavam tentando protegê -lo disso?
Ele cerrou os dentes com o esforço para não gritar c om elas, para manter
seu nível de voz e o controle . — Onde está Kahlan?
Nicci abaixou a cabeça cuidadosamente , como se buscasse o perdão dele .
— Richard, ela está apenas na sua mente . Sei que esse tipo de coisa pode parecer
muito real, mas não é. Você sonhou com ela enquanto estava ferido ... nada mais.
— Eu não sonhei com Kahlan. — outra vez ele voltou seu pedido para a
Mord-Sith. — Cara, você esteve conosco durante mais de dois anos . Lutou
conosco, lutou por nós. Quando Nicci era uma Irmã do Escuro e ela m e trouxe até
aqui ao Mundo Antigo , você lutou por mim e protegeu Kahlan. Ela protegeu você.
Vocês compartilharam e suportaram coisas que a maioria das pessoas jamais

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poderia ao menos imaginar . Tornaram-se amigas .
Ele apontou para o Agiel dela, a arma que parecia nada mais do que um
pequeno bastão de couro vermelho pendurado por uma fina corrente dourada no
pulso direito dela .
— Você até nomeou Kahlan uma Irmã de Agiel.
Cara ficou ereta e muda .
Cara conferir a Kahlan o título de Irmã de Agiel havia sido uma informal
mas profundamente solene transição de uma outrora inimiga mortal para uma
mulher que ela passara a respeitar e confiar .
— Cara, você pode ter iniciado como uma protetora do Lorde Rahl, mas
tornou-se mais do que isso para K ahlan e eu. Tornou-se como parte da família.
Cara sacrificaria voluntariamente e sem hesitação sua vida para
proteger Richard. Ela não era apenas feroz mas também destemida na defesa dele .
A coisa que Cara realmente temia era desapontá -lo.
Esse medo estava claramente evidente no s olhos dela.
— Obrigada, Lorde Rahl, — finalmente ela disse com uma voz suave. —
por me incluir no seu sonho maravilhoso .
A carne de Richard pinicou quando uma onda de frio pavor espalhou-se
através dele. Atordoado, ele pressionou a mão contra a testa , empurrando o cabelo
para trás. Essas duas mulheres não estavam inventando alguma história por medo
de transmitir a ele notícias ruins . Elas estavam dizendo a verdade .
Pelo menos, a verdade da forma como elas enxergavam . A verdade de
alguma forma distorcida em um pesadelo.
Ele não conseguia fazer nada disso encaixar em sua mente , não
conseguia ver qualquer sentido nisso . Após tudo que compartilharam com Kahlan,
tudo que eles passaram com ela , todo o tempo deles juntos , para ele era impossível
entender como essas duas mulheres podiam estar falando isso para ele . E ainda
assim, elas estavam .
Embora ele não conseguisse imaginar a causa , alguma coisa estava óbvi a
e terrivelmente errada. Uma sufocante sensação de mau agouro caiu sobre nele .
Pareceu como se o mundo todo tivesse sido virado de cabeça para baixo e agora
ele não conseguisse fazer as peças encaixarem .
Precisava fazer algo... aquilo que ele estava prestes a fazer pouco antes
dos soldados atacarem eles . Talvez não fosse tarde demais .

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C A P Í T U L O 3

Richard ajoelhou ao lado do seu colchonete e começou a enfiar roupas


dentro de sua mochila. O frio chuvisco que ele conseguia ver através da pequena
janela parecia que não acabaria em breve , então ele deixou a capa do lado de fora .
— O que pensa que está fazendo? — Nicci perguntou.
Ele avistou um pedaço de sabão ali perto e pegou -o. — O que parece que
estou fazendo?
Já havia perdido tempo demais , ele perdera dias. Não havia tempo a
perder. Ele enfiou o pedaço de sabão , pacotes de ervas secas e temperos, e uma
bolsa de damascos secos na mochila antes de enrolar rapidamente seu colchonete .
Cara parou de questionar ou fazer objeções e ao invés disso começou a arrumar
suas próprias coisas .
— Não foi isso que eu quis dizer e você sabe disso . — Nicci agachou ao
lado dele e segurou seu braço , fazendo ele virar para olhar em direção a ela . —
Richard, você não pode partir. Precisa descansar . Eu disse, você perdeu muito
sangue. Ainda não está forte o suficiente para sair perseguindo fantasmas .
Ele sufocou uma resposta indignada e apertou bem uma tira de couro em
volta do seu colchonete . — Eu me sinto bem . — não sentia, é claro, mas sentia-
se bem o bastante.
Nicci acabara de passar dias de esforço intenso salvando a vida dele .
Além de estar preocupada com el e, ela estava exausta e provavelmente não estava
pensando claramente. Todas essas coisas deviam contribuir para que ela
acreditasse que ele estava agindo de forma irresponsável .
Ainda assim, ele odiava que ela não desse a ele mais crédito .
Nicci agarrou insistentemente na camisa dele quando ele apertava a
segunda tira de couro . — Você ainda não percebeu o quanto realmente está fraco ,
Richard. Está colocando em risco a sua vida . Precisa descansar para que seu corpo
seja capaz de recuperar -se. Ainda não teve tempo suficiente para recuperar sua
força.
— E quanto tempo Kahlan tem? — ele segurou o braço de Nicci e com
calorosa frustração puxou -a mais perto. — Ela está lá fora, em algum lugar, com
problemas. Você não percebe isso , Cara não percebe isso, mas eu percebo. Vocês
acham que posso simplesmente ficar aqui mentindo quando a pessoa que eu amo
mais do que tudo no mundo está em perigo ?
— Se fosse você com problemas , Nicci, gostaria que eu desistisse de
você tão facilmente? Não desejaria que eu tentasse? Não sei o que deu errado ,
mas alguma coisa deu . Se eu estiver certo... e eu estou... então eu não consigo ao
menos supor quais são as implicações ou imaginar as consequ ências.
— O que você quer dizer?
— Bem, se você estiver certa então eu só estou imaginando c oisas dos
meus sonhos. Mas se eu est iver certo... e uma vez que está bastante óbvio que
você e Cara estão compartilhando da mesma desordem mental... isso teria que
significar que seja lá o que estiver acontecendo tem uma causa que não é
benevolente. Não posso demorar e arriscar tudo enquanto tento convencer vocês
da seriedade da situação . Tempo demais já foi perdido . Coisas demais estão em
jogo.
Nicci pareceu assustada demais com a ideia para falar . Richard soltou-

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a e virou para apertar a alça da sua mochila. Ele não tinha tempo para tentar
solucionar o enigma daquilo que estava acontecendo com Nicci e Cara.
Nicci final mente encontrou sua voz . — Richard, não vê o que está
fazendo? Está começando a inventar ideias absurdas para justificar aquilo em que
você quer acreditar . Você mesmo disse... Cara e eu não podemos estar
compartilhando a mesma desordem mental . Fique e descanse. Podemos tentar
descobrir a natureza desse sonho que criou raízes tão profundas na sua mente e
com esperança corrigir isso . Provavelmente eu causei isso com algo que fiz
quando estava tentando curá -lo. Se for assim, eu sinto muito . Por favor, Richard,
fique por enquanto .
Ela estava focada apenas naquilo que enxergava como o problema . Zedd,
o avô dele, o homem que tinha ajudado a criá -lo, sempre tinha falado enquanto
Richard estava crescendo, “não pense no problema, pense na solução ”. A solução
na qual ele precisava concentrar -se, agora, era como encontrar Kahlan antes que
fosse tarde demais. Ele gostaria de ter a ajuda de Zedd para encontrar a solução
para onde ela estava.
— Você ainda não está fora de um sério perigo. — Nicci insistiu
enquanto desviava de gotas de água da chuva pingando através de buracos no teto .
— Forçar demais o seu corpo poderia ser fatal .
— Entendo, eu realmente entendo. — Richard checou a faca que
carregava no cinto e então enfiou -a de volta na bainha. — Não pretendo ignorar
o seu aviso. Farei o mínimo de esforço que eu puder.
— Richard, me escute, — Nicci disse, esfregando os dedos contra a
têmpora como se a sua cabeça estivesse doendo . — é mais do que apenas isso .
Ela fez uma pausa para deslizar a mão sobre o cabelo enquanto procurava
as palavras. — Você não é inv encível. Pode carregar essa espada , mas nem sempre
ela pode protegê -lo. Seus ancestrais, todo Lorde Rahl antes de você, independente
de sua maestria no uso do Dom , ainda mantinham guarda-costas por perto . Você
pode ter nascido com Dom mas mesmo que fosse competente no uso dele, tal poder
não é garantia de proteção... especialmente não agora .
— Aquela flecha apenas serviu para mostrar o quanto você é realmente
vulnerável . Pode ser um homem importante , Richard, mas você é apenas um
homem. Nós todos precisamos de você . Nós todos precisamos desesperadamente
de você.
Richard desviou o olhar da angús tia nos olhos azuis de Nicci. Ele sabia
muito bem o quanto era vulnerável . A vida era o valor mais alto dele ; ele não a
considerava garantida. Quase nunca ele era contra Cara estar nas proximidades .
Ela e o resto das Mord-Sith assim como outros guarda -costas que ele pareceu ter
herdado haviam provado seu valor mais do que uma vez . Mas isso não significava
que ele estivesse indefeso ou que ele podia permitir que a cautela evitasse que ele
fizesse o que era necessário.
Mais do que isso , porém, ele entendia o sentido mais amplo das palavras
de Nicci. Aprendera enquanto esteve no Palácio dos Profetas que as Irmãs da Luz
acreditavam que ele estava profundamente mergulhado na antiga profecia... que
ele era uma figura central ao redor da qual os eventos giravam .
De acordo com as Irmãs , se o lado deles desejasse prevalecer sobre as
forças sombrias dispostas contra eles , isso aconteceria somente se Richard os
liderasse para a vitória . A profecia dizia que sem ele tudo estaria perdido . A
Prelada delas, Annalina, tinha passado grande parte da vida dela manipulando
eventos para certificar -se de que ele sobrevivesse para crescer e liderá-los nessa
guerra. As esperanças de Ann para tudo que eles mais prezavam , ouvindo ela falar

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isso, repousavam sobre os ombros dele . Pelo menos Kahlan tinha, felizmente,
acabado com a fixação de Ann a esse respeito. Porém, ele sabia que muitos outros
ainda mantinham a mesma visão . Ele sabia, também, que a liderança dele havia
galvanizado muitas pessoas que desejavam simplesmente viverem livres.
Richard esteve nas câmaras no Palácio dos Profetas e viu alguns dos
mais importantes e bem guardados livros de profecia na existência. Teve que
admitir que alguns deles eram bastante impressionantes . Todavia, sua experiência
era de que a profecia p arecia falar qualquer coisa que as pessoas quisessem que
ela falasse.
Ele teve experiência pessoal com profecias envolvendo Kahlan e ele
mesmo, especialmente aquelas profecias de S hota, a Bruxa. Até onde ele sabia, a
profecia tinha provado ser de pouco valor e causar grandes problemas .
Richard forçou um sorriso . — Nicci, você está falando como uma Irmã
da Luz. — ela não pareceu ficar feliz . — Cara estará comigo. — ele disse,
tentando tranquilizar a mente dela .
Ele percebeu, após ter falado isso , que ter Cara com ele não tinha detido
a flecha que o derrubara . Pensando nisso , onde ela esteve durante a batalha ? Ele
não lembrava dela ali com ele . Cara não temia uma luta; um grupo de cavalos não
conseguiria arrastá -la e impedir que ela o protegesse . Certamente, ela devia estar
perto ao lado dele, mas ele simplesmente não lembrava de ter visto ela .
Ele pegou seu grande cinto de couro e apertou -o em volta da cintura.
Tinha conseguido o cinto e outras partes da roupa , que um dia pertenceram a um
grande mago, da Fortaleza do Mago , onde Zedd agora montava guarda, protegendo
a Fortaleza do Imperador Jagang e sua horda do Mundo Antigo .
Nicci soltou um suspiro impaciente... um relance de um lado inflexível
e implacável dela que Richard conhecia bem demais . Ele sabia, entretanto, que
dessa vez ele era alimentado por sincera preocupação com o bem estar dele .
— Richard, nós simplesmente não podemos aceitar essa distração . Tem
coisas importantes sobre as quais precisamos conversar . Foi por isso que vim atrás
de você em primeiro lugar. Não recebeu a carta que eu enviei ?
Richard fez uma pausa. — Carta... carta... Sim, — ele disse, finalmente
lembrando. — Eu recebi a sua carta. Mandei um recado para você , com um soldado
que Kahlan tinha tocado com o poder dela.
Richard notou o rápido olhar de Cara para Nicci... um olhar surpreso que
dizia que ela não lembrava daquilo .
Nicci observou ele com uma expressão insondável . — O recado que você
enviou jamais chegou até mim .
Meio surpreso, Richard apontou em direção ao Mundo Novo. — A
missão primária dele era seguir para o norte e assassinar o Imperador Jagang. Ele
foi tocado pelo poder de uma Confessora ; morreria antes de não cumprir a ordem
dela. Se ele não conseguisse encontrar você, ele teria seguido atrás de Jagang.
Suponho que também seja possível que algo tenha acontecido com ele antes. Tem
muitos perigos no Mundo Antigo .
A expressão no rosto de Nicci fez ele sentir como se tivesse fornecido a
ela mais evidência de que estava perdendo o juízo. — Você honestamente acha ,
ao menos em suas imaginações mais loucas , que o Andarilho dos Sonhos pode ser
eliminado tão facilmente ?
— Não, é claro que não. — ele colocou uma panela de volta em sua
mochila. — Esperávamos que provavelmente o soldado fosse morto na tentativa .
Mandamos ele atrás de Jagang porque ele era um brutamontes assassino e merecia
morrer. Mas eu também pensei que havia uma possibilidade de que ele pudesse

17
ter sucesso. Mesmo que não tivesse , eu queria que Jagang ao menos perdesse um
pouco de sono sabendo que qualquer um de seus homens poderia ser um assassino .
Ele conseguiu ver pela expressão calma demais de Nicci que ela pensava
que isso, também, não era mais do que parte da elaborada alucinação dele sobre
uma mulher com quem ele sonhara .
Então Richard lembrou o que mais ha via acontecido . — Nicci, sinto
informar que pouco depois que Sabar entregou a sua carta nós fomos atacados .
Ele morreu naquela luta .
Uma olhada furtiva para Cara recebeu um aceno de cabeça como
confirmação .
— Queridos espíritos. — falou Nicci com tristeza ao ouvir as notícias
sobre o jovem Sabar. Richard compartilhou do sentimento dela .
Ele lembrou do alerta urgente de Nicci na carta sobre como Jagang tinha
começado a criar armas usando pessoas dotadas , como havia sido feito há três mil
anos na Grande Guerra. Esse era um acontecimento assustador que era
considerado impossível , mas Jagang descobrira um jeito de realizar a tarefa
usando as Irmãs do Escuro que ele mantinha cativas .
Durante o ataque ao acampamento deles , a carta de Nicci tinha sido
lançada dentro do fogo . Richard não teve chance de ler a carta toda antes que ela
fosse destruída. Porém, ele leu o bastante para entender o perigo .
Quando ele foi até a mesa , onde estava sua espada , Nicci deu um passo
entrando na frente dele. — Richard, eu sei que é difícil , mas você tem que deixar
esse assunto do sonho para trás . Não temos tempo para isso . Precisamos
conversar. Se você recebeu minha carta , então pelo menos sabe que não pode...
— Nicci, — disse Richard, silenci ando-a. — eu devo fazer isso. — ele
colocou uma das mãos no ombro dela e falou tão pacientemente quanto conseguia ,
considerando a sua sensação de urgência , mas o tom dele fez ela perceber que ele
não discutiria mais esse assunto . — Se você vier conosco então poderemos
conversar mais t arde, quando houver tempo e isso não interferir naquilo que
preciso fazer, mas nesse momento eu não tenho tempo e Kahlan também não.
Pressionando a costa da mão contra o lado do ombro dela , Richard
afastou-a para o lado e caminhou até a mesa .
Quando levant ava sua espada pela sua bainha polida , ele imaginou
brevemente porque, quando ouviu o uivo do lobo e acordou, pensou que a espada
estava no chão ao lado dele . Talvez tivesse lembrado do fragmento de um sonho .
Impaciente para ir embora, ele colocou o pensam ento de lado.
Ele jogou o antigo boldrié de couro sobre a cabeça e rapidamente ajustou
a bainha no quadril esquerdo , certificando -se de que ela estava bem apertada . Com
dois dedos ele ergueu a espada pela guarda curvada para baixo , não apenas para
checar que ela estava livre na bainha , mas para verificar que a lâmina estava bem.
Ele não conseguia lembrar de tudo que tinha acontecido na luta e não lembrava
de ter guardado a espada .
O aço polido cintilou através de uma faixa de sangue coagulado .
Lembranças fragmentadas da batalha passaram em sua mente . Foi
repentino e inesperado, mas assim que ele sacou a espada com fúria , o inesperado
não teve mais importância . Entretanto, estar em menor número teve importância .
Ele entendeu muito bem que Nicci estava certa a respeito dele não ser invencível .
Pouco tempo depois que ele conheceu Kahlan, Zedd, em sua capacidade
como Primeiro Mago , havia nomeado Richard ao posto de Seeker e deu para ele a
espada. Richard tinha odiado a arma por causa daquilo que ele erroneamente
pensou que ela representava . Zedd disse a ele que a Espada da Verdade, como ela

18
era chamada, era apenas uma ferramenta e que era a intenção do indivíduo
empunhando uma espada que dava significado a ela . Isso nunca tinha sido tão
verdadeiro quanto era com essa arma em particular .
Agora a espada estava ligada a Richard, ligada ao intento dele,
conduzida pelo propósito dele . Desde o início, a intenção e o propósito dele foi
proteger aqueles que amava e com os quais preocupava -se. Para fazer isso, ele
começou a perceber que tinha de ajudar a moldar um mundo no qual eles pudessem
viver em segurança e paz .
Para ele, era essa intenção que dava significado à espada .
O aço sibilou quando ele deslizou -a de volta em sua bainha .
Agora a intenção dele era encontrar Kahlan. Se a espada pudesse ajudá -
lo a realizar esse objetivo então ele não hesitaria em fazer uso dela .
Ele ergueu sua mochila e balançou -a, colocando ela em seu lugar
familiar nas costas enquanto observava a sala quase vazia procurando quaisquer
das suas coisas que tivesse esquecido . No chão ao lado da lareira ele viu carne
seca e biscoitos para viagem . Ao lado deles estavam outros embrulhos com
comida. As tigelas de madeira sim ples de Richard e Cara também estavam ali ,
uma com sopa e a outra com os resto s de mingau.
— Cara, — ele falou quando pegava três cantis e pendurava suas alças
em volta do pescoço. — certifique-se de pegar toda a comida que possa viajar e
trazer conosco. Não esqueça das tigelas .
Cara assentiu. Ela arrumou as coisas cuidadosamente , agora que
percebeu que ele não tinha intenção de deixá -la para trás .
Nicci segurou a manga dele. — Richard, estou falando sério , precisamos
conversar. Isso é importante .
— Então faça como eu pedi ; pegue suas coisas e venha comigo . — ele
pegou seu arco e a a ljava. — Pode falar tudo o que quiser contanto que não me
segure.
Com um aceno de resignação , Nicci finalmente abandonou seus
argumentos e correu até a sala dos fundos para buscar suas coisas . Longe de
importar-se em ter Nicci por perto , Richard queria a ajuda dela; o Dom dela
poderia ser útil para encontrar Kahlan. De fato, encontrar Nicci para que ela
pudesse ajudá-lo era a intenção dele quando acordou antes do ataque e percebeu
que Kahlan estava desaparecida.
Richard jogou sua capa de floresta sobre os ombros e seguiu até a porta .
Cara olhou para ele do lado da lareira , onde ela apressava -se para acabar de juntar
suas coisas , e fez um sinal com a cabeça para que ele soubesse que ela estaria
logo atrás dele. Ele podia ver Nicci na sala dos fundos apressan do-se para pegar
suas coisas antes que ele fosse longe .
Em sua necessidade urgente de encontrar Kahlan, a imaginação de
Richard estava começando a tomar conta dele . Podia ver ela ferida, ver ela
sentindo dor. O pensamento de Kahlan em algum lugar sozinha e com problemas
fez o coração dele bater mais rápido com o temor .
Contra sua vontade, a esmagadora lembrança do tempo em que ela
apanhou quase até a morte retornou. Ele havia desistido de tudo e levado ela para
longe nas montanhas onde ninguém poderia encon trá-los, para que ela ficasse em
segurança e pudesse ter o tempo para curar -se. Naquele verão , após ela começar
a recuperar sua força , e antes que Nicci tivesse aparecido para capturá -lo e levá-
lo embora, foi um dos melhores verões de sua vida . Como Cara poderia esquecer
aquele tempo especial era incompreensível para ele.
Pela força do hábito , ele ergueu sua espada para ter certeza de que ela

19
estava livre em sua bainha antes de abrir a porta simples de tábuas .
Ar úmido e uma luz da manhã cinzenta o recebeu . Água coletada pelo
telhado gotejava das calhas , espirrando contra as botas dele. Um chuvisco frio
pinicava contra o seu rosto . Pelo menos não era mais uma chuva forte . Nuvens
pairavam baixas e espessas , escondendo os topos de carvalhos que formavam uma
parede no lado mais distante do pequeno pasto , onde rastros de neblina deslizavam
como fantasmas acima da grama cintilante . Troncos retorcidos massivos
abrigavam sombras.
Richard estava com raiva e frustrado que tivesse de chover justo agora,
entre todos os momentos. Se não tivesse chovido , suas chances teriam sido muito
melhores . Ainda assim, isso não seria impossível . Sempre havia sinais . Ainda
haveria rastros.
A chuva tornaria mais difícil ler eles , mas nem mesmo toda essa chuva
apagaria todos os traços dos rastros. Richard cresceu rastreando animais e pessoas
através da floresta. Podia seguir rastros na chuva . Era mais difícil e consumia
mais tempo, e isso exigia concentração intensa , mas certamente ele conseguiria
fazê-lo.
E então o pensamento lhe ocorreu.
Quando encontrasse os rastros de Kahlan, ele teria prova de que ela era
real. Finalmente Nicci e Cara não teriam escolha a não ser acreditar nele .
Todos deixavam rastros únicos . Ele conhecia os de Kahlan. Também
sabia a rota pela qual eles vieram . Junto com os rastros dele e de Cara, os rastros
de Kahlan também estariam ali para todos verem . Uma sensação de esperança , se
não de alívio , espalhou-se através dele. Assim que ele encontrasse um conjunto
de marcas legíveis e as mostrasse para Nicci e Cara, não haveria mais discussão .
Elas perceberiam que isso não era um sonho e que realmente havia algo seriamente
errado.
Então ele poderia começar a seguir os rastros de Kahlan a partir do
acampamento deles e encontrá -la. A chuva retardaria esse esforço mas isso não o
impediria, e podia haver um jeito da habilidade de Nicci ajudar a acelerar essa
busca.
Homens que caminhavam do lado de fora viram ele sair da pequena casa
e aproximaram -se vindo de todos os lados . Esses homens não eram soldados , no
sentido próp rio. Eram condutores de carroça , moleiros, carpinteiros, pedreiros,
fazendeiros, e mercadores que batalharam toda sua vida sob o governo repressivo
da Ordem, tentando ganhar a vida e sustentar suas famílias .
Para a maioria dessas pessoas trabalhadoras , a vida no Mundo Antigo
significava viver em medo constante . Qualquer um que ousasse falar contra os
costumes da Ordem era rapidamente preso , acusado de rebelião, e executado .
Havia uma constante cadeia de acusações e prisões , quer fosse verdade ou não .
Esse tipo de “justiça” veloz mantinha as pessoas com medo e na linha .
A doutrinação contínua, especialmente dos jovens , produziu um
significativo segmento da população que acreditava fanaticamente nos costumes
da Ordem. Desde o nascimento , crianças eram ensinadas que pensar por si mesmas
era errado e que a fé fervorosa no sacrifício altruísta pelo bem maior era o único
meio para uma pós vida de glória na luz do Criador , e o único modo de evitar uma
eternidade nas profundezas escuras do Submundo nas mãos impiedosas do
Guardião. Qualquer outra forma de pensa mento era maligna.
Os apropriadamente devotos estavam ansiosos demais para verem as
coisas continuarem como estavam . A promessa de riquezas a serem
compartilhadas com as pessoas comuns mantin ha os sempre devotos apoiadores

20
da Ordem esperando perpetuamente por sua cota do sangue de outros , esperando
para dividirem os despojos dos ímpios , que, assim eles eram ensinados , seriam os
opressores egoístas e, dessa forma, pecadores que mereciam o desti no deles.
Das fileiras dos justos surgiu uma grande quantidade de jovens
voluntários para o exército , ansioso em fazerem parte da nobre luta para esmagar
os descrentes , para punir os malignos , para confiscar ganhos obtidos de forma
desonesta. O sancionamento da pilhagem, o reino livre da brutalidade , e o
amplamente difundido estupro das não convertidas criou um particularmente
feroz, e virulento, tipo de fanatismo. Isso gerou um exército de selvagens .
Assim era a natureza dos soldados da Ordem Imperial que espalharam-
se dentro do Mundo Novo e agora avançavam quase sem oposição na terra natal
de Richard e Kahlan.
O mundo estava à beira de uma era bastante sombria .
Era esta ameaça que Ann considerava que Richard nascera para
combater. Ela e muitos outros acred itavam que estava profetizado que se as
pessoas livres desejassem ter uma chance de sobreviver a essa grande batalha , ter
uma chance de triunfo , isso aconteceria somente se Richard os liderasse.
Esses homens diante dele enxergavam através das ideias vazias e
promessas corruptas da Ordem , enxergavam isso como aquilo que era : tirania.
Eles decidiram tomar de volta suas vidas . Isso os transformou em guerreiros na
luta pela liberdade.
Um tumulto de saudações e gritos de alegria quebrou a calmaria da
manhã. Quando reuniram -se mais perto , todos os homens falavam ao mesmo
tempo, perguntando se ele estava bem e como sentia -se. A preocupação sincera
deles o comoveu . A despeito do senso de urgência dele , Richard fez um esforço
para sorrir e cumprimentou homens que conhecia da cidade de Altur'Rang. Isso
era mais parecido com o tipo de reunião que estiveram esperando .
Além de ter trabalhado ao lado de muitos desses homens e se tornado
familiarizado com outros, Richard sabia que ele também era um símbolo de
liberdade para eles , o Lorde Rahl do Mundo Novo, o Lorde Rahl de uma terra
onde os homens eram livres . Ele mostrou que esse tipo de coisa era possível para
eles também, e deu a eles uma visão do jeito como suas vida s poderiam ser .
Em sua própria mente, Richard enxergava a si mesmo como o mesmo
guia florestal que sempre foi, mesmo que tivesse sido nomeado o Seeker e agora
liderasse o Império D’Haraniano. Embora tivesse passado por muitos momentos
de provação desde quando deixou seu lar , ele realmente era a mesma pessoa com
as mesmas crenças. Onde um dia ele enfrentara valentões , agora ele tinha que
encarar exércitos. Ainda que a escala fosse diferente , o princípio era o mesmo .
Mas nesse momento, tudo com o que ele preocupava -se era encontrar
Kahlan. Sem ela, o resto do mundo, a própria vida, não pareciam muito
importantes para ele .
Não muito longe, encostado contra um poste, estava um homem
musculoso exibindo não um sorriso, mas um olhar ameaçador que havia criado
rugas permanentes em sua testa. O homem cruzou os seus braços poderosos sobre
o peito enquanto observava o resto dos homens saudando Richard.
Richard seguiu apressado através da multidão de homens, apertando
mãos enquanto avançava, em dir eção ao ferreiro sério. — Victor!
A expressão sisuda abriu espaço para um sorriso. O homem trocou um
aperto de braços com Richard. — Nicci e Cara só deixaram que eu entrasse para
dar uma olhada em você duas vezes. Se elas não me deixassem ver você esta
manhã, eu enrolaria barras de ferro nos pescoços delas.

21
— Era você... na primeira manhã? Você passou por mim e tocou em meu
ombro?
Victor sorriu quando assentiu. — Era. Ajudei a carregá-lo até aqui. —
ele pousou uma das mãos poderosas no ombro de Richard e de u uma sacudida
experimental nele. — Você parece bem remendado mesmo que esteja um pouco
pálido. Eu tenho Lardo... isso lhe dará forças.
— Estou bem. Talvez mais tarde. Obrigado por ajudar a me trazer até
aqui. Escute, Victor, você viu Kahlan? — a testa de Victor enrugou com profundas
saliências. — Kahlan?
— Minha esposa.
Victor olhou fixamente sem esboçar reação. Seu cabelo estava cortado
tão curto que a cabeça quase parecia raspada. A chuva estava em gotas sobre o
escalpo dele. Uma sobrancelha levantou.
— Richard, desde que esteve fora você arrumou uma esposa?
Richard olhou ansiosamente por cima do ombro para os outros homens
observando ele. — Algum de vocês viu Kahlan?
Ele foi saudado com expressões vazias de muitos. Outros trocaram
olhares perplexos. A manhã cinzenta havia ficado silenciosa. Eles não sabiam de
quem ele estava falando. Muitos desses homens conheciam Kahlan e deviam ter
lembrado dela. Agora estavam balançando as cabeças e pedindo desculpas.
O humor de Richard murchou; o problema era pior d o que ele pensara.
Tinha pensado que talvez fosse apenas algo que aconteceu com a memória de
Nicci e de Cara.
Ele virou de volta para o rosto sério do mestre ferreiro. — Victor, estou
com problemas e não tenho tempo para explicar. Nem sei como explicaria. Preciso
de ajuda.
— O que posso fazer?
— Leve-me até o lugar onde tivemos a luta.
Victor assentiu. — Bastante fácil.
O homem virou e começou a andar em direção à floresta escura.

22
C A P Í T U L O 4

Com dois dedos, Nicci empurrou um galho molhado de bálsamo para fora
do caminho enquanto ela seguia vários dos homens através da densa floresta. Na
margem de uma elevação densamente arborizada eles seguiram descendo uma
trilha que serpenteava para frente e para trás para efetuarem a descida íngreme.
Rochas escorregadias tornavam a descida traiçoeira. Era uma rota mais curta do
que aquela que eles tinham usado para carregar Richard até a casa da fazenda
abandonada depois que ele foi ferido. Lá embaixo eles seguiram caminho sobre
rocha fraturada exposta e pedregulhos , ladeando a borda de uma área pantanosa
guardada por um amontoado de enormes esqueletos de cedros acinzentados
montando vigília na água estagnada .
Filetes de água caindo sobre bancos musgosos talhavam profundos
cortes através da argila da floresta para expor granito manchado embaixo . Vários
dias de chuva deixaram poças em diversos locais baixos . Em maior parte a chuva
encheu a floresta com a agradável fragrância de terra húmida , mas em lugares
baixos e fendas a vegetação húmida em decomposi ção fedia a podre .
Embora ela estivesse quente por causa da jornada curta e árdua, o ar
húmido, gelado, ainda deixava os dedos e orelhas de Nicci dormentes de frio . Ela
sabia que tão longe assim ao sul no Mundo Antigo o calor e a humidade em breve
retornariam com tal vingança que faria ela sentir falta do feitiço incomum do
clima frio.
Tendo crescido em uma cidade , Nicci passara pouco tempo em campo
aberto. No Palácio dos Profetas , onde ela vivera a maior parte de sua vida , campo
aberto significava os grama dos e jardins cuidados dos terrenos cobrindo a Ilha
Halsband. O campo sempre pareceu vagamente hostil para ela , um obstáculo entre
uma cidade e outra, algo para ser evitado . Cidades e construções eram um refúgio
dos perigos inescrutáveis das florestas .
Porém, mais do que isso , cidades foram os locais onde ela foi talhada
para o melhoramento da humanidade . Aquele trabalho jamais teve fim . Florestas
e campos não tinham sido preocupações dela.
Nicci nunca tinha apreciado a beleza de colinas , árvores, rios, lagos, e
montanhas até que tivesse conhecido Richard. Até cidades eram novidade aos
olhos dela depois de Richard. Richard transformou toda a vida em uma maravilha .
Avançando cuidadosamente sobre a escorregadia rocha escura de uma
pequena elevação , ela finalmente avistou o resto dos homens aguardando
tranquilamente sob os galhos esticados de um antigo bordo. Mais adiante, Richard
agachou, estudando um trecho de solo . Finalmente ele levantou para olhar dentro
da escura expansão de floresta além . Cara, a sombra sempre presente dele ,
esperava perto dele. Sob a densa câmara de verde tranquilizador , a roupa vermelha
de couro da Mord-Sith destacava-se como uma gota de sangue sobre uma toalha
de mesa no chá.
Nicci entendia a proteção feroz e apaixonada de Cara em relação a
Richard. Cara, também, um dia foi inimiga dele. Richard não tinha apenas ganho
a cega lealdade de Cara ao tonar-se o Lorde Rahl; ele havia, de forma muito mais
importante, conquistado o respeito , confiança e a lealdade dela . A roupa de couro
dela era propositalmente intimidadora , uma promessa de violênci a caso alguém
ao menos pensasse em causar algum dano a ele . Essa não era uma promessa vazia .

23
Mord-Sith eram treinadas desde jovens para serem absolutamente cruéis . Embora
o propósito primário d elas tivesse sido capturar os dotados e usar o poder deles
contra eles , elas eram perfeitamente capazes de usar sua habilidade contra
qualquer oposição . Homens que conheciam e confiavam em Cara, sem perceberem
que estavam fazendo isso , mantinham mais distâ ncia dela quando ela usava seu
couro vermelho.
Nicci sabia qual era a sensação para Cara de ser trazida de volta da
entorpecente loucura do dever sem raciocínio , de passar a valorizar a vida
novamente.
Ao longe, através da luz pálida, sombras e folhas got ejantes, o rouco
grasnado de corvos ecoou através da floresta . Nicci captou o nauseante fedor de
carniça apodrecendo . Olhando ao redor procurando referências no terreno como
Richard a ensinara, ela avistou, na base de uma projeção rochosa , um pinheiro do
qual ela lembrava porque ele tinha um tronco secundário que fazia curva baixo
próximo ao solo quase como um assento . Ela reconheceu o local ; além da tela de
trepadeiras e arbustos jazia a cena da batalha .
Antes que Nicci pudesse chegar até Richard, ele agachou passando sob
galhos baixos e começou a entrar na vegetação rasteira . Levantando do outro lado ,
ele balançou os braços acima da cabeça e gritou como um lunático . A sombra
profunda entre os enormes abetos explodiu com o bater de asas quando, todos de
uma vez, centenas de grandes aves negras saltaram no ar , gritando de indignação
por terem seu banquete interrompido . No início pareceu como se as aves pudessem
contestar o campo de batalha , mas quando o ar ecoou com o som único da espada
de Richard sendo sacada, elas fugiram para dentro da escuridão entre as árvores
quase como se soubessem que arma era aquela e temessem essa em particular . O
profundo grasnado furioso afastou -se dentro da neblina. Richard, o espantalho
triunfante, olhou fixamente em direção a elas durante algum tempo antes de enfiar
sua espada de volta na bainha .
Finalmente ele virou para os homens . — Todos vocês, por favor fiquem
fora dessa área por enquanto . — a voz dele ecoou entre os altos pinheiros . —
Apenas aguardem lá atrás .
Considerando-se soberana em assuntos relacionados à segurança de
Richard, Cara não deu atenção ao pedido dele . Ao invés disso , ela o seguiu quando
ele entrou na pequena clareira além , ficando perto mas fora do caminho . Nicci
abriu caminho entre as plantas jovens e samambaias molhadas , passando por
homens silenciosos, até chegar a um fino caminho de bétula branca cobrindo um
outeiro que margeava um lado da clareira. Centenas de olhos negros posicionados
na casca branca observaram enquanto ela seguia entre eles para finalmente parar
no cume do banco . Quando colocou a mão sobre a casca como papel descascando ,
ela notou a flecha de uma besta enterrada na árvore . Flechas projetavam -se de
outras árvores também .
Além, soldados mortos jaziam espalhados por toda parte . O fedor fez ela
vacilar. Os corvos foram afastados , mas as moscas , que não temiam espada ,
permaneceram para o banquete e para reproduzir . A primeira incubação de larvas
de moscas já estava trabalhando .
Um bom número de homens estavam sem cabeça ou com membros
faltando. Alguns jaziam parcialmente submersos nas poças de água parada . Os
corvos, junto com outros animais , estiveram sobre muitos deles , tomando
vantagem da oportunidade fornecida por ferimentos abertos. As grossas armaduras
de couro, peles espessas , largos cintos, cota de malha, e terríveis conjuntos de
armas não faziam mais qualquer diferença para esses homens . Aqui e ali as roupas

24
em volta de corpos inchados esforçavam -se para permanecerem abotoadas , como
se tentassem manter a dignidade onde ela não po dia existir.
Tudo, desde a carne e ossos dos homens até as crenças fanáticas deles,
permaneceria aqui e apodreceria nesse trecho esquecido de floresta .
Aguardando entre as árvores , Nicci observou enquanto Richard
inspecionou brevemente os cadáveres . Naquela primeira manhã ele já tinha morto
um grande número de soldados antes que Victor e seus homens chegassem e
atacassem para ajudá -lo. Ela não sabia quanto tempo Richard estivera lutando com
aquela flecha no peito , mas esse não era o tipo de ferimento que alguém poderi a
suportar por muito tempo .
Reunidos sob o abrigo parcial do enorme bordo, as quase duas dúzias de
homens fecharam bem as capas por causa do frio e acomodaram-se para esperar.
Por toda parte na floresta silenciosa , galhos de pinheiro e abe to pendiam
pesados e molhados , lentamente gotejando água no solo encharcado . Aqui e ali os
galhos curvados de bordo, carvalho, e olmo erguiam-se sempre que um sopro de
brisa os aliviava de sua pesada carga de água , fazendo parecer como se as árvores
estivessem acenando suavemente . O ar húmido umedecia aquilo que o chuvisco
não alcançava, deixando todos miseráveis.
Além da barreira de água , Richard agachou outra vez , estudando o solo.
Nicci não conseguia imaginar o que ele estava procurando .
Nenhum dos homens aguardando sob as árvores parecia interessado em
revisitar o local da árdua batalha ou ver os mortos . Estavam contentes em esperar
onde estavam. Matar era algo não natural e difícil para esses homens . Eles lutavam
por aquilo que era certo e eles fiz eram o que tiveram de fazer , mas não sentiam
prazer nisso. Isso, por si só, declarava seus valores . Eles tinham enterrado três
dos seus próprios mortos , mas não enterraram os corpos de quase uma centena de
soldados que os teriam assassinado alegremente se Richard não tivesse intervindo.
Nicci lembrou de sua surpresa , na manhã da batalha, ao aproximar-se de
Richard entre todos os mortos e no início não entender o que havia derrubado
tantos deles. Então tinha visto Richard deslizando entre aqueles brutamontes , a
espada dele movendo -se com a fluida graça da dança . Foi surpreendente observar .
Com cada golpe ou corte , um homem morria . Havia uma grande quantidade dos
soldados, muitos admirados em ver tantos de seus colegas caindo ao chão. A
maioria eram jovens fortes que sempre dominaram por causa dos músculos... o
tipo que adorava intimidar pessoas . Os soldados moviam-se de forma brusca e
descontrolada, golpeando e saltando até Richard, mas eles sempre pareciam atacar
pouco depois que ele já tinha partido . O movimento habilidoso não combinava
com o ataque desajeitado pelo qual eles estavam procurando . Começaram a temer
que os próprios espíritos estivessem contra eles . De certo modo, talvez
estivessem.
Ainda assim , o número deles era grande demais para um homem , mesmo
que esse homem fosse Richard e ele empunhasse a Espada da Verdade. Apenas
um daqueles homens ignorantes , pesado, fortemente conectado com um
movimento de sorte do machado dele era tudo que seria necessário. Ou uma flecha
encontrando seu alvo. Richard não era invencível, nem imortal .
Victor e o resto dos homens dele tinham chegado bem na hora... poucos
momentos antes que Nicci, também, chegasse até a cena . Os homens de Victor
haviam mergulhado na batalha , atraindo a atenção para longe de Richard. Assim
que Nicci chegou, ela acabou com aquilo em um forte clarão quando liberou seu
poder contra os soldados que ainda estavam de pé .
Com receio de ser exposta não apenas à tempestade iminente mas, ainda

25
mais preocupante, a potenciais números de soldado s inimigos que poderiam
aparecer na cena a qualquer momento , Nicci tinha instruído os homens a carregar
Richard de volta através da floresta até a casa de fazenda escon dida. O máximo
que ela foi capaz de fazer por ele naquela terrível corrida até o abrigo foi lanç ar
um fio do seu Han dentro dele , esperando que isso o mantivesse vivo até que ela
fosse capaz de fazer mais . Nicci engoliu a angústia da lembrança medonha .
De uma certa distância, ela observou enquanto Richard continuou sua
inspeção meticulosa da cena da batalha, ignorando os soldados caídos , em maior
parte, e prestando particular atenção para a área ao redor . Ela não conseguia
imaginar o que ele esperava descobrir . Enquanto ele procurava , tinha começado a
mover-se em um padrão para trás e para frente , progredindo firmemente para o
lado de fora da pequena clareira , circulando a cena em arcos cada vez mais largos.
Às vezes ele ficava a uma polegada do chão, de quatro .
Ao final da manhã Richard tinha desaparecido dentro da floresta .
Victor finalmente cansou d a vigília silenciosa e marchou através de um
colchão de samambaias sacudindo sob a suave queda da chuva até o local onde
Nicci esperava.
— O que está acontecendo ? — ele perguntou a ela em voz baixa .
— Ele está procurando alguma coisa .
— Posso ver isso . Estou me referindo a o que está acontecendo com essa
conversa sobre uma esposa ?
Nicci soltou um suspiro cansado . — Não sei.
— Mas você tem uma ideia.
Nicci avistou Richard, brevemente, movendo-se entre as árvores a uma
certa distânciam. — Ele foi seriamente ferido. Pessoas nesse estado às vezes
sofrem delírios.
— Mas agora ele está curado . Ele não parece nem age como se tivesse
febre. Ele parece bastante normal em tudo mais , não como uma pessoa sofrendo
visões e coisas assim . Nunca vi Richard comportar-se desse jeito.
— Nem eu. — Nicci admit iu. Ela sabia que Victor jamais iria declarar a
ela tais preocupações a respeito de Richard a não ser que estivesse profundamente
preocupado. — Eu sugiro que tentemos ser o mais compreensívei s quanto possível
com o que ele está passando e ver se em breve ele não começa a organizar seus
pensamentos . Ele ficou inconsciente durante dias . Ele está acordado faz poucas
horas. Vamos dar a ele algum tempo para clarear sua cabeça .
Victor consider ou as palavras dela antes de final mente suspirar e
assentir concordando . Ela ficou aliviada por ele não ter perguntado o que eles
fariam se Richard não superasse logo o seu delírio.
Então ela viu Richard, retornando através das sombras e chuvisco . Nicci
e Victor cruzaram o campo de batalha para encontrar com ele. Na superfície o
rosto dele parecia exibir somente uma intensidade de pedra , mas, tão bem quanto
ela o conhecia, Nicci podia ler na expressão dele que algo estava seriamente
errada.
Richard limpou folhas, musgo, e gravetos dos joelh os das calças quando
finalmente chegou até eles . — Victor, esses soldados não estavam vindo para
tomarem de volta Altur'Rang.
As sobrancelhas de Victor levantaram. — Não estavam?
— Não. Eles precisariam de milhares de homens para uma tarefa como
essa... talvez dezenas de milhares . Essa quantidade de soldados certamente não
realizaria uma coisa assim . E além disso, se essa fosse a intenção deles , então
qual seria o sentido em enfrentar tanta dificuldade através dos arbustos tão longe

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assim de Altur'Rang?
Victor fez uma careta admitindo que Richard devia estar certo. — Então
o que acha que eles estavam fazendo ?
— Ainda não era madrugada quando eles estavam aqui andando pela
floresta. Isso sugere a mim que eles podiam estar fazendo reconhecimento . —
Richard apontou através da floresta . — Tem uma estrada naquela direção.
Estivemos usando ela para viajar do sul . Pensei que estaríamos acampados longe
o bastante dela durante a noite para evitar problemas . Obviamente, eu estava
errado.
— Ouvimos pela última vez que você estava ao sul. — falou Victor. —
A estrada torna a viagem mais rápida , então estávamos usando as trilhas para
cortar através do campo para podermos alcançar a estrada e tomá -la seguindo para
o sul.
— É uma estrada importante. — Nicci adicionou. — É uma das artérias
principais... uma das primeiras... que Jagang construiu. Ela possibilitou que ele
movesse soldados rapidamente . As estradas que ele construiu permitiram subjugar
todo o Mundo Antigo sob o governo da Ordem Imperial.
Richard olhou em direção à estrada, quase como se pudesse enxergar
através da parede de ár vores e videiras. — Uma estrada tão bem feita também
possibilita que ele mova suprimentos . Acho que era isso que estava acontecendo
aqui. Estando tão perto de Altur'Rang, e estando bem cientes da revolta que tomou
lugar ali, provavelmente eles estavam preocupados com a possibilidade de um
ataque enquanto passavam pela área . Uma vez que esses soldados não estavam
reunindo-se para um ataque em Altur'Rang, eu apostaria que eles tinham algo m ais
importante a fazer: tomar conta de suprimentos seguindo ao norte para o exército
de Jagang. Ele precisa esmagar o último foco de resistência no Mundo Novo antes
que a revolução em casa queime no rastro dele .
O olhar de Richard retornou a Victor. — Acho que esses soldados
estavam fazendo reconhecimento... limpando o campo previamente para um
comboio de suprimentos. Muito provavelmente eles estavam fazendo varreduras
pouco antes do amanhecer na esperança de pegar quaisquer insurgentes dormindo .
— Como estávamos fazendo . — Victor cruzou os braços musculosos com
óbvio descontentamento . — Jamais esperamos que houvesse soldados aqui nessa
floresta. Estávamos dormindo como bebês . Se você não estivesse aqui e
interceptasse eles , logo teriam esgueirado sobre nós onde estávamos dormindo .
Então seriamos nós alimentando as moscas e corvos , ao invés deles.
Todos ficaram em silêncio enquanto consideravam “ como poderia ter
sido”.
— Vocês ouviram qualquer notícia de suprimentos indo para o norte ? —
Richard perguntou.
— Certamente. — disse Victor. — Tem muita conversa sobre grandes
quantidades de produtos indo para o norte . Alguns comboios são acompanhados
por novas tropas sendo enviadas para a guerra . O que você diz a respeito desses
homens fazendo reconhecimento para um comboio assim faz sentido .
Richard agachou e apontou. — Estão vendo esses rastros ? Esses são um
pouco mais recentes do que a batalha . Era um largo contingente... provavelmente
mais soldados que vieram procur ando por esses homens mortos . Isso foi o mais
longe que vieram . Essas elevações laterais nas pegadas mostram onde eles fizeram
a volta, aqui. Parece que eles entraram , avistaram os soldados mortos , e partiram.
Você pode ver pelos rastros deles que quando eles partiram estavam com pressa.
Richard levantou e descansou a mão esquerda sobre o pomo da espada.

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— Se não tivessem me levado embora logo após a batalha , esses soldados estariam
sobre nós. Felizmente eles retornaram ao invés de fazerem buscas na floresta .
— Porquê você acha que eles fariam iss o? — perguntou Victor. —
Porque eles veriam esses homens mortos recentemente e então partiriam?
— Provavelmente eles temiam que uma grande força estivesse
aguardando, então voltaram correndo para dar um alarme e garantir que a coluna
de suprimentos fosse b em protegida. Já que eles nem perderam tempo enterrando
seus colegas soldados , acho que a preocupação mais urgente deles era retirar o
comboio deles da área.
Victor fez uma careta em direção aos rastros e então de volta para os
soldados mortos. — Bem, — ele falou enquanto passava a mão sobre a cabeça ,
removendo gotas de água. — pelo menos podemos tomar vantagem da situação .
Enquanto Jagang está preocupado com a guerra isso nos dá tempo aqui para
trabalharmos em acabar com o apoio para o governo da Ordem .
Richard balançou a cabeça. — Jagang pode estar preocupado com a
guerra, mas isso não vai impedir ele de agir para restaurar sua autoridade aqui .
Se há uma coisa que aprendemos sobre o Andarilho dos Sonhos , é que ele é
metódico a respeito de aniquilar toda e qualquer oposição.
— Richard está certo, — disse Nicci. — é um erro perigoso considerar
Jagang como um simples brutamontes . Ainda que ele realmente seja brutal ,
também é um indivíduo altamente inteligente e um estrategista brilhante . Ele
ganhou muita ex periência com o passar dos anos . É quase impossível instigar ele
a agir impulsivamente. Ele pode ser ousado... quanto tem boa razão para acreditar
que a ousadia ganhará o dia... mas ele é mais voltado a campanhas calculadas . El e
age com firmes convicções , não pelo orgulho ferido . Ele está contente em deixar
você pensar que ganhou, deixar você pensar o que desejar, para dizer a verdade,
enquanto ele planeja metodicamente como vai estripá -lo. A paciência dele é a sua
qualidade mais mortal .
— Quando ele ataca, é indiferente a quantas baixas seu exército sofre ,
enquanto ele souber que terá homens mais do que suficientes para ganhar . Mas
durante o curso de sua carreira... pelo menos, até que a sua campanha tome o
Mundo Novo , ele tende a experimentar menos baixas do que os seus inimigos .
Isso porque ele não preocupa -se com noções ingênuas de batalha clássica , de
tropas digladiando-se em um campo com honra . O costume dele é geralmente
atacar com números grandiosos para transformar em pó os ossos de seu oponente .
— O que a horda dele faz com os subjugados é uma coisa legendária .
Para aqueles que estão em seu caminho , o terror da espera é insuportável . Pessoa
alguma em sã consciência iria querer ser deixada viva para ser capturada pelos
homens de Jagang.
— Por essa razão, muitos o recebem de braços abertos , com bênçãos por
sua libertação, com súplicas para terem permissão de converterem -se e juntarem -
se à Ordem.
O único som sob o acolhedor abrigo das árvores era o suave padrão da
leve chuva. Victor não duvidou da pal avra dela; ela foi testemunha de eventos
assim.
Às vezes, o conhecimento de que ela fora uma parte da causa pervertida ,
que ela fizera parte de crenças irracionais que reduziam homens a nada mais do
que selvagens , fazia Nicci desejar a morte. Certamente ela não merecia menos do
que isso. Mas agora ela estava na posição única de ter a oportunidade e a
habilidade para ajudar a reverter o sucesso da Ordem. Corrigir as coisas havia se
tornado a causa que agora a conduzia , sustentava, dava a ela um propósito .

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— É apenas uma questão de tempo até que Jagang mova-se para retomar
Altur'Rang. — Richard disse em meio ao silêncio .
Victor assentiu. — Sim, se Jagang pensou que a revolução estava
confinada a Altur'Rang então logicamente ele concentraria todos os seus esf orços
em tomar de volta a cidade e ser tão impiedoso nisso quanto Nicci diz, mas
estamos nos certificando que isso não aconteça . — ele mostrou a Richard um
sorriso. — Estamos acendendo fogueiras em cidades e vilas aonde podemos ,
sempre que as pessoas estão prontas para removerem suas correntes . Estamos
bombeando os foles e espalhando as chamas da rebelião e liberdade longe e
amplamente para que Jagang não possa alcançá -la e esmagá-la.
— Não se engane, — falou Richard. — Altur'Rang é a cidade natal dele .
É onde a revolta contra a Ordem começou . Um levante popular na cidade onde
Jagang estava construindo seu grande palácio enfraquece tudo que a Ordem
Imperial ensina. Essa deveria ser a cidade, o palácio, de onde Jagang e os Altos
Sacerdotes da Sociedade da Ord em governariam para sempre a humanidade em
nome do Criador. As pessoas destruíram aquele palácio e ao invés disso abraçaram
a liberdade.
— Jagang não permitirá que tal subversão de sua autoridade continue .
Ele deve esmagar a rebelião ali para que a Ordem sobreviva para governar o
Mundo Antigo... e o Novo . Para ele será uma questão de sustentar a crença; ele
considera a oposição aos costumes da Sociedade da Ordem como blasfêmia contra
o Criador. Ele não será tímido para lançar os seus soldados mais brutais e
experientes na tarefa. Ele vai querer fazer de você um exemplo sangrento . Eu
esperaria um ataque assim em breve.
Victor pareceu preocupado mas não inteiramente surpreso .
— E não esqueçam, — Nicci complementou. — os Irmãos da Sociedade
da Ordem que escaparam estarão entre aqueles que trabalham para reestabelecer
a autoridade da Ordem . Homens dotados como esses não são inimigos comuns .
Nós mal começamos a identificá -los.
— Tudo isso é bem verdadeiro , mas você não pode trabalhar o ferro
conforme a sua vontad e até que faça ele ficar preparado e bem quente . — Victor
mostrou um punho apertado desafiador na frente deles. — Pelo menos começamos
a fazer o que deve ser feito .
Nicci concordou acenando com a cabeça e um leve sorriso para suavizar
a imagem sombria que tinha ajudado a pintar. Ela sabia que Victor tinha razão,
que a tarefa tinha que começar em algum lugar e em algum momento. Ele já tinha
ajudado a bater o martelo da liberdade para um povo que tinha tudo mas desistira
da esperança. Ela simplesmente não que ria que ele perdesse de vista a realidade
da dificuldade que jazia adiante .
Nicci teria ficado aliviada em ouvir Richard lidando de forma lógica
com os assuntos importantes do momento, mas era bastante realista . Quando
Richard concentrava-se em algo vital para ele, podia tratar de questões periféricas
quando necessário mas s eria um grave engano pensar que isso reduzia o foco dele
em seu objetivo . De fato, ele havia transmitido seus alertas para Victor em um
rápido resumo... um mero assunto a ser removido do caminho. Ela podia ver nos
olhos dele que ele estava preocupado com questões de muito maior importância
para ele.
Richard finalmente voltou seus olhos cinzentos para Nicci.
— Você não estava com Victor e os homens dele?
Em uma súbita explosão de compreens ão, Nicci percebeu porque o
assunto dos soldados e seu comboio de suprimento s era importante para ele : isso

29
era um simples elemento de uma equação maior . Ele estava tentando descobrir
como e se o comboio figurava na ilusão à qual ele continuava agarrando -se. Era
esse cálculo que ele estava trabalhando para resolver .
— Não. — falou Nicci. — Não tínhamos notícias e não sabíamos o que
tinha acontecido com você . Em minha ausência, Victor partiu para começar a
procurá-lo. Não muito tempo depois , eu retornei para Altur'Rang. Descobri para
onde Victor foi e parti para juntar -me a ele. Eu ainda estava a uma certa distância
atrás no final do meu segundo dia de viagem , então no terceiro dia eu saí antes
do amanhecer, esperando alcançá -lo. Estava viajando durante quase duas horas
quando cheguei nas proximidades e ouvi a batalha. Alcancei a luta bem no final .
Richard assentiu pensativo. — Acordei e Kahlan tinha sumido. Uma vez
que estávamos perto de Altur'Rang, meu primeiro pensam ento foi que se eu
conseguisse encontrar você, então talvez você pudesse me ajudar a encontrar
Kahlan. Foi quando ouvi os soldado chegando através da floresta .
Richard apontou para uma elevação . — Ouvi eles vindo entre aquelas
árvores, ali . Eu tinha a escuridão do meu lado . Eles ainda não tinham me visto ,
então consegui surpreendê -los.
— Porque você não se escondeu ? — perguntou Victor.
— Mais homens estavam descendo por aquele caminho , e outros estavam
chegando daquela direção . Não sabia quantos havia, mas a forma como eles
estavam espalhados sugeriu a mim que estavam fazendo uma busca na floresta .
Isso tornava esconder -se uma coisa arriscada . Enquanto houvesse qualquer
possibilidade de que Kahlan pudesse estar perto e talvez ferida, eu não poderia
correr. Se me escondesse e esperasse até que os soldados tivessem chance de m e
encontrar então eu perderia o elemento surpresa. Pior ainda, o amanhecer estava
aproximando -se. A escuridão e a surpresa funcionaram em minha vantagem . Com
Kahlan desaparecida eu não tinha um momento a pe rder. Se eles estivessem com
ela, eu tinha que detê-los.
Ninguém comentou.
Em seguida, Richard virou para Cara. — E onde estava você?
Cara piscou, surpresa. Ela teve que pensar durante um momento antes
que pudesse responder . — Eu... eu não tenho certeza.
Richard franziu a testa. — Não tem certeza? Do que você lembra?
— Estava de vigia. Estava checando a uma certa distância do nosso
acampamento. Acho que alguma coisa deve ter causado minha preocupação e
então eu estava me certificando de que a área estava l impa. Senti um cheiro e
fumaça e estava começando a investigar aquilo quando ouvi gritos de batalha .
— Então você correu de volta ?
Cara jogou a trança para frente por cima do ombro . Ela parecia sentir
dificuldade para lembrar com clareza . — Não... — ela fez uma careta procurando
lembrar. — Não, eu sabia o que estava acontecendo... que vocês estavam sendo
atacados... porque ouvi o som de aço e homens morrendo . Tinha acabado de
perceber que eram Victor e os homens dele acampados naquela direção , que era o
cheiro da fumaça do acampamento deles que eu senti . Sabia que estava muito mais
perto deles do que de você , então pensei que a coisa mais inteligente a fazer seria
acordá-los e trazer comigo a ajuda deles.
— Isso faz sentido. — Richard falou. Ele removeu gotas de água da
chuva do rosto .
— Isso mesmo, — disse Victor. — Cara estava ali perto quando eu
também ouvi o barulho de aço . Lembro porque eu estava deitado acordado no
silêncio.

30
Richard ergueu as sobrancelhas . Ele levantou os olhos . — Você estava
acordado?
— Sim. O uivo de um lobo me acordou .

31
C A P Í T U L O 5

Com súbita intensidade Richard inclinou um pouco em direção ao


ferreiro. — Você ouviu lobos uivando ?
— Não, — Victor disse enquanto franzia a testa, recordando. — só havia
um.
Os três aguardaram em silêncio enquanto Richard olhava para longe ,
como se estivesse tentando juntar mentalmente as peças de algum enorme quebra
cabeças. Nicci olhou por cima do ombro para os homens lá atrás perto da árvore
de bordo. Alguns bocejaram enquanto esperavam. Alguns encontraram assentos
sobre uma tora caída . Alguns estavam engajados em apressada conversa. Outros,
com os braços cruzados , encostavam-se contra os troncos de árvores e observavam
a floresta ao redor enquanto aguardavam .
— Isso não aconteceu esta manhã, — Richard sussurrou para si mesmo .
— Quando eu estava acordando esta manhã , quando eu ainda estava meio
adormecido , na verdade eu estava lembrando o que aconteceu na manhã em que
Kahlan desapareceu .
— Na manhã da batalha. — Nicci falou suavemente, corrigindo .
Perdido em pensamentos , Richard pareceu não ouvir a correção dela . —
Devia estar me lembrando , por alguma razão, o que aconteceu quando acordei
naquela manhã. — de repente ele virou e segurou o braço dela . — Um galo cantou
quando eu estava sendo carregado de volta até a casa da fazenda .
Surpresa com a repentina mudança de assunto , e não sabendo aonde ele
estava querendo chegar, Nicci sacudiu os ombros. — Suponho que isso pode ter
acontecido . Eu não lembro. Porque?
— Não tinha vento. Lembro de ouvir o galo cantar, olhar para cima e ver
galhos e árvores imóveis acima e mim . Não tinha vento. Lembro de como tudo
estava parado .
— Você está certo, Lorde Rahl, — falou Cara. — eu lembro quando
entrei correndo no acampamento de Victor de ver a fumaça da fogueira subindo
reta porque o ar estava muito calmo . Acho que foi por isso que conseguimos ouvir
o barulho do aço e os gritos de tão longe... porque não havia ao menos o sopro de
uma brisa para impedir que o som se espalhasse.
— Se isso ajuda, — disse o ferreiro. — havia algumas galinhas
perambulando por ali quando levamos você até a fazenda . E você tem razão , tinha
um galo e ele cantou. Para dizer a verdade, estávamos tentando não sermos
encontrados para que Nicci pudesse ter o tempo para cur á-lo, e eu estava com
medo de que o galo pudesse atrair atenção indesejada , então falei aos homens para
cortarem a garganta dele .
Depois e ouvir o relato de Victor, Richard voltou a ficar pensativo . Ele
ficou batendo um dedo contra o lábio inferior enquant o considerava outra peça do
seu quebra cabeças. Nicci pensou que ele podia ter esquecido que eles estavam
em pé ali.
Ela inclinou um pouco mais perto dele . — Então?
Ele piscou e finalmente olhou para ela . — Quando acordei esta manhã
eu tinha que estar rea lmente lembrando daquela manhã... lembrando por uma
razão. Às vezes você faz isso... lembra porque havia alguma parte que não faz
sentido, lembra por alguma razão .

32
— Que razão? — Nicci perguntou.
— O vento. Não havia vento naquela manhã . Mas lembro que quando eu
acordei naquela manhã, na fraca luz do falso amanhecer , vi três galhos movendo -
se, como em uma brisa.
Nicci não estava apenas confusa com a preocupação dele sobre o vento ,
mas preocupada também com o seu estado mental . — Richard, você estava
dormindo e estava acabando de acordar . Estava escuro . Provavelmente você
apenas pensou que viu os três galhos movendo -se.
— Talvez. — foi tudo que ele disse.
— Talvez fossem os soldados vindo. — Cara sugeriu.
— Não, — ela falou, desconsiderando a sugestão dela com um
movimento irritado da mão. — isso foi um pouco mais tarde , depois que eu
descobri que Kahlan estava desaparecida.
Vendo que nem Victor nem Cara discutiriam esse ponto , Nicci decidiu
segurar a língua também . Richard pareceu afastar o enigma de sua m ente. Ele
virou uma expressão mortalmente séria para os três .
— Vejam, tenho que mostrar uma coisa a vocês todos . Mas precisam
perceber, independente do quanto vocês conseguem distinguir pouco , que eu sei
do que estou falando . Não espero que aceitem a minh a palavra, mas precisam
entender que eu tenho uma vida de experiência nisso e usei rotineiramente essa
habilidade. Confio em cada um de vocês em sua área de experiência . Essa é a
minha. Não fechem as suas mentes para aquilo que eu tenho para mostrar a vocês.
Nicci, Cara, e Victor trocaram um olhar.
Assentindo para Richard, Victor colocou as suas reservas de lado e virou
para os homens . — Agora, vocês rapazes mantenham os olhos abertos . — ele
moveu um dedo fazendo um círculo no ar . — Pode haver soldados nas redondezas,
então vamos manter silêncio e ficar alertas . Ferran, cheque duas vezes a área .
Os homens assentiram . Alguns ficaram de pé, aparentemente contentes
em terem algo a fazer além de apenas ficarem sentados molhados e com frio .
Quatro homens fora m para o meio das árvores para montar guarda .
Ferran entregou sua mochila e o colchonete para que um dos outros
homens tomasse conta dele antes de preparar uma flecha e deslizar suavemente
dentro dos arbustos . O jovem estava aprendendo a profissão de ferre iro com
Victor. Criado em uma fazenda, ele também tinha um talento natural para fazer
reconhecimento sem ser visto na floresta . Ele idolatrava Victor. Nicci sabia que
Victor também gostava muito do jovem , mas por gostar dele provavelmente ele
era mais rígido com ele do que com os outros homens . Uma vez Victor tinha falado
para ela, referindo-se a suas duras exigências com seu aprendiz , que você tinha
que remover as imperfeições do ferro e trabalhá -lo arduamente se queria moldá -
lo em algo que realmente valesse à pena .
Desde a batalha, Victor tinha sentinelas e olheiros em constante vigília
enquanto Ferran e vários dos outros faziam reconhecimento da floresta ao redor .
Nenhum deles queria arriscar que soldados inimigos inesperadamente surgiss em
sobre eles enquanto Nicci estava tentando salvar a vida de Richard. Depois que
ela havia feito tudo que podia por Richard, Nicci tinha curado um ferimento
horrível na perna de um homem e cuidado de alguns outros ferimentos menos
sérios sofridos por uma meia dúzia de outros homens .
Desde a manhã da batalha e de Richard ser ferido, ela dormiu pouco. Ela
estava exausta.
Depois de observar os homens partirem para cuidar das tarefas
designadas, Victor deu um tapinha no ombro de Richard. — Então, mostre para

33
nós.
Richard conduziu Cara, Victor, e Nicci passando pela clareira com os
homens mortos e então para dentro da floresta . Ele tomou uma rota entre árvores
onde o terreno era mais aberto . No topo de uma suave elevação , ele parou e
agachou.
Vendo Richard sobre o joelho, sua capa sobre a costa, sua espada em
uma bainha cintilante no quadril , seu capuz puxado para trás expondo fios de
cabelo molhados contra o pescoço musculoso , seu arco e aljava presos sobre o
ombro esquerdo , imediatamente ele parecia régio... um Rei guerreiro... e ao
mesmo tempo como nada mais do que o guia florestal de uma terra distante que
um dia ele foi . Com íntima familiaridade , seus dedos tocaram as agulhas de
pinheiro, brotos, restos de folhas, casca, e barro. Nicci conseguiu sentir, só por
aquele toque, a amplitude da compreensão dele das coisas aparentemente simples
espalhadas diante deles , ainda assim, para ele aquelas coisas revelavam outro
mundo.
Então Richard relembrou seu objetivo e gesticulou , pedindo que eles
agachassem perto ao lado dele.
— Aqui. — ele disse, apontando. — Estão vendo isso? — os dedos dele
traçaram uma vaga depressão no denso emaranhado d e detritos da floresta. — Essa
é a pegada de Cara.
— Bem, isso não é surpresa. — falou Cara. — Esse é o caminho pelo
qual viemos da estrada em nosso caminho até onde montamos acampamento .
— Isso mesmo. — Richard inclinou um pouco, apontando enquanto ele
prosseguia. — Estão vendo aqui , e então ali? Esses são mais dos seus rastros ,
Cara. Está vendo como eles entram aqui em uma linha m ostrando onde você estava
caminhando?
Cara balançou os ombros, desconfiada . — Certamente.
Richard moveu-se para a direita . Eles todos seguiram . Novamente ele
traçou cuidadosamente uma depressão para que eles pudessem perceber . Nicci não
conseguia enxergar qualquer coisa no solo da floresta até que ele desenhasse
cuidadosamente o cont orno com um dedo pouco acima o chão . Ao fazer isso, ele
parecia fazer a pegada surgir magicamente para eles . depois que ele indicou , Nicci
conseguia dizer o que era .
— Esses são meus rastros. — ele disse, observando como se temesse
que, se olhasse para oura direção , aquilo pudesse desaparecer . — A chuva trabalha
para apagá-los... em alguns lugares mais do que em outros... mas ela não fez todos
eles desaparecerem . — com o indicado r e o dedão, ele ergueu cuidadosamente
uma folha molhada marrom de carvalho do centro de uma pegada . — Olhem, vocês
conseguem ver aqui embaixo como a pressão do meu peso sob o meu calcanhar
quebrou esses pequenos gravetos . Estão vendo? A chuva não consegue apagar
coisas como essas.
Ele olhou para eles para certificar -se de que todos estavam prestando
atenção e então apontou dentro da neblina . — Podem ver meus rastros vindo nessa
direção, para nós, exatamente como os de Cara. — ele esticou -se e rapidamente
traçou mais duas vagas depressões no chão emaranhado da floresta para mostrar
a eles o que estava querendo dizer . — Estão vendo? Vocês ainda podem distinguir.
— O que isso significa? — perguntou Victor.
Richard olhou para trás por cima do ombro novamente antes de apontar
entre os conjuntos de rastros . — Estão vendo a distância entre os rastros de Cara
e os meus? Quando caminhamos entrando aqui eu estava na esquerda e Cara estava
à minha direita. Estão vendo o quanto nossos rastros estão afastados ?

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— O que tem isso? — Nicci perguntou quando puxou o capuz de sua
capa para a frente , tentando proteger o rosto do chuvisco frio . Ela colocou as
mãos de volta sob a capa e enfiou -as nas axilas para aquecê -las. — Eles estão tão
afastados, — Richard disse. — porque quando nós caminhamos por aqui Kahlan
estava no meio, entre nós.
Nicci ficou olhando para o chão outra vez . Ela não era uma perita, então
ela não estava especialmente surpresa que não conseguisse ver quaisquer outros
rastros. Mas dessa vez , ela não achava que Richard conseguisse.
— E você consegue nos mostrar os rastros de Kahlan? — ela perguntou .
Richard virou um olhar para ela com tal intensidade que que isso fez
parar a respiração dela momentaneamente .
— Essa é a questão. — ele levantou um dedo com o mesmo cuidado
deliberado com o qual ele erguia sua lâmina . — Os rastros dela desapareceram .
Não foram lavados pela chuva , eles desaparecem... desapareceram como se jamais
estivessem ali.
Victor soltou um suspiro bastante suave e preocupado . Se ela estava
chocada, Cara escondeu isso muito bem . Nicci sabia que ele não tinha falado para
eles tudo o que tinha a dizer , então ela permaneceu cautelosa em sua pergunta .
— Está nos mostrando que não há rastros dessa mulher ?
— Isso mesmo . Eu procurei. Encontrei meus rastro s e os rastros de Cara
em vários lugares, mas onde os rastros de Kahlan deviam estar não havia qualquer
um.
Em meio ao desconfortável silêncio ninguém quis dizer qualquer coisa .
Nicci finalmente assumiu a tarefa de fazê -lo.
— Richard, você tem que saber porque isso acontece. Não está vendo
agora? É apenas o seu sonho . Não há rastros porque essa mulher não existe .
Com ele ali de joelhos diante dela, olhando para ela , pareceu que ela
podia ver a alma dele em seus olhos cinzentos . Ela teria dado quase qualqu er coisa
nesse momento para ser capaz de simplesmente confortá -lo. Mas ela não podia
fazer isso. Nicci teve que fazer um esforço para continuar .
— Você mesmo disse que tem conhecimento sobre rastrear e mesmo
assim não consegue achar quaisquer rastros deixa dos por essa mulher. Isso deveria
encerrar o assunto. Isso deveria finalmente convencê -lo de que ela simplesmente
não existe... que ela nunca existiu . — ela tirou uma das mãos de baixo da capa ,
do seu caloroso local de repouso , e colocou-a gentilmente sobr e o ombro dele em
um esforço para suavizar suas palavras . — Tem que esquecer isso , Richard.
Ele desviou o olhar dos olhos dela enquanto deslizava o lábio inferior
pelos dentes. — A coisa não é tão simples como a imagem que você está pintando ,
— ele falou com uma voz calma. — estou pedindo a rodos vocês para olharem...
apenas olharem... e tentarem entender o significado daquilo que estou mostrando
a vocês. Vejam como os rastros de Cara e os meus estão afastados . Não conseguem
ver que havia uma terceira pesso a ali, entre nós, enquanto nós caminhávamos ?
Nicci esfregou os olhos de forma cansada . — Richard, as pessoas nem
sempre caminham perto. Talvez você e Cara estivessem procurando algum sinal
de ameaça quando caminhavam por aqui , ou talvez estivessem apenas cansados e
não prestassem atenção . Poderia haver um grande número de explicações simples
para o porque vocês não estavam caminhando bem próximos .
— Quando apenas duas pessoas caminham juntas normalmente elas não
andam tão afastadas . — ele apontou para trás deles. — Olhem os rastros que
deixamos vindo até aqui . Novamente Cara andou à minha direita. Vejam como os
rastros estão muito mais próximos . Isso é típico de duas pessoas caminhando lado

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a lado. Você e Victor estavam atrás de nós . Vejam como os rastros d e vocês estão
próximos .
— Esses rastros são diferentes . Não conseguem ver pela natureza deles
que eles estão tão afastados porque havia outra pessoa caminhando entre nós ?
— Richard...
Nicci fez uma pausa . Não queria discutir . Ela estava inclinada a ficar
quieta e deixar ele agir como desejasse , deixar ele acreditar naquilo em que ele
queria acreditar. E ainda assim, o silêncio estaria alimentando uma mentira ,
fornecendo vida a uma ilusão . Embora ela sofresse com a dificuldade dele e
quisesse ficar do lado dele, não poderia deixar ele iludir a si mesmo ou estaria
causando a ele um dano maior . Ele jamais poderia ficar melhor, jamais poderia
recuperar-se completamente, até que encarasse a verdade do mundo real . Ajudar
ele a enxergar a realidade era a única man eira pela qual ela poderia realmente
ajudá-lo.
— Richard, — ela falou suavemente, tentando apresentar essa verdade
para ele sem parecer severa ou condescendente. — os seus rastros estão ali , e os
rastros de Cara estão ali. Podemos ver isso... você nos most rou. Não há qualquer
outro. Você nos mostrou isso também . Se ela estava ali, entre você e Cara, então
porque os rastros dela não estão ?
Todos encolheram os ombros no molhado e no frio enquanto
aguardavam. Richard finalmente recuperou sua compostura e falou com voz clara
e firme.
— Acho que os rastros de Kahlan foram apagados com magia .
— Magia? — Cara perguntou, repentinamente alerta e com humor
sombrio.
— Sim. Acho que seja lá quem for que levou Kahlan apagou os rastros
dela com magia.
Nicci estava estupef ata e não fez qualquer tentativa de esconder isso.
O olhar de Victor desviou entre Nicci e Richard. — Isso pode ser feito ?
— Sim. — Richard insistiu. — Quando encontrei Kahlan pela primeira
vez, Darken Rahl estava atrás de nós . Ele estava perto em nosso rastro. Zedd,
Kahlan, e eu tivemos que fugir. Se Darken Rahl tivesse nos capturado estaríamos
acabados. Zedd é um mago mas não é tão poderoso quanto Darken Rahl era, então
Zedd lançou algum pó mágico pela trilha para esconder nossos rastros . Deve ter
sido isso que aconteceu aqui . Aquele que levou Kahlan cobriu os rastros deles
com o uso de magia.
Victor e Cara olharam para Nicci buscando confirmação . Como um
ferreiro, Victor não estava familiarizado com magia . Mord-Sith não gostavam de
magia e notavelmente evitavam os detalhes do seu funcionamento ; o instinto delas
era simplesmente eliminar violentamente qualquer um com maia se ele
representasse ao menos uma ameaça em potencial ao Lorde Rahl. Victor e Cara
esperavam para ouvir o que Nicci tinha a dizer sobre a possibilidade de usar magia
para cobrir rastros .
Nicci hesitou. Ser uma feiticeira não significava que ela sabia tudo que
havia para saber a respeito de magia . Mas assim mesmo...
— Suponho que tal uso da magia seja possível em teoria , mas nunca ouvi
falar sobre isso ter sido feito . — Nicci fez um esforço para contemplar o olhar
ansioso de Richard. — Acho que a explicação do porque não há rastros é bem
mais simples e acho que você sabe disso , Richard.
Richard não conseguiu mascarar seu d esapontamento. — Olhando apenas
para isso, e não possuindo familiaridade com a natureza de rastros e o que eles

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revelam, acredito que deve ser difícil ver o que estou dizendo . Mas isso não é
tudo. Tenho algo mais para mostrar a vocês que pode ajudá -los a enxergar o
quadro todo. Vamos lá.
— Lorde Rahl, — Cara disse quando enfiava um tufo de cabelo molhado
de volta para baixo do capuz de sua capa escura e evitava olhar para ele. — não
deveríamos estar cuidando de outros assuntos importantes ?
— Tenho algo importante para mostrar a vocês três . Está dizendo que
você quer esperar aqui enquanto eu mostro a Victor e Nicci?
Os olhos azuis dela voltaram -se para ele. — Claro que não .
— Certo. Vamos lá.
Sem qualquer outro protesto , eles o seguiram em um passo rápido
enquanto ele seguia em uma direção norte, mais fundo dentro da floresta . Eles
andaram na ponta dos pés de rocha em rocha para cruzar uma larga ravina com
redemoinhos escuros de água turva fluindo através dela . Quando Nicci quase
escorregou e caiu, Richard segurou a mão dela e ajudou -a a atravessar. A mão
grande dele estava quente , mas não febril , pelo menos. Ela gostaria que ele
reduzisse o passo e não desgastasse a sua frágil saúde .
A suave ladeira do outro lado revelou -se apenas gradualmente conforme
eles escalavam mais alto através do chuvisco e faixas de baixas nuvens . À
esquerda erguia-se a sombra escura de uma elevação rochosa . Nicci podia ouvir o
som borbulhante de água caindo por aquela elevação .
Enquanto eles mergulhava m mais fundo dentro da neblina cinzenta e
densa vegetação, aves enormes saíram de seus poleiros. Asas bem abertas, as
criaturas cautelosas planaram lentamente para longe além da vista . Guinchos
roucos de animais invisíveis ecoaram pela floresta sombria . Com a massa de
galhos de abetos e bálsamo sobrepostos e os galhos mortos emaranhados de
antigos carvalhos drapeados com finas cortinas de musgo , sem falar do chuvisco
lúgubre, videiras, e denso trançado de árvores jovens lutando para alcançar a luz
ilusiva, não era fácil enxergar muito longe . Somente mais baixo no chão da
floresta, onde a luz do sol raramente chegava , era mais aberto .
Mais distante dentro da floresta úmida , troncos escuros de árvores
agigantavam-se livres dos arbustos e espessa folhagem como sentinelas
observando as três pessoas movendo -se entre o seu exército reunido . O solo onde
Richard as conduzia era mais fácil de cruzar uma vez que era mais aberto e coberto
com macios amontoados de agulhas de pinheiro . Nicci imagin ou que mesmo no
mais ensolarado dos dias , apenas pequenas feixes de luz solar penetravam todo o
caminho descendo até o chão da floresta . Dos lados aqui e ali ela viu emaranhados
de arbustos quase impenetráveis e paredes enroladas de jovens coníferas . A área
sob os enormes pinheir os formava um caminho natural mas não marcado .
Finalmente Richard parou, erguendo os braços para os lados para que
eles não caminhassem passando por ele . Espalhada diante deles estava mais da
mesma vegetação esparsa brotando entre a espessa camada de agulh as marrom .
Seguindo a orientação dele , eles agacharam ao lado dele .
Richard apontou por cima do ombro direito . — De volta por aquele
caminho foi por onde Cara, Kahlan, e eu viemos na noite em que acampamos...
perto de onde a batalha aconteceu . Em vários lugares em volta do nosso
acampamento estão meus rastros de quando eu assumi o segundo turno de vigia ,
e os rastros de Cara do terceiro turno . Kahlan fez o primeiro turno de vigia naquela
noite. Não há rastros do turno dela .
O olhar dele para cada um foi u m pedido silencioso para que o
escutassem antes de começarem a discutir .

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— Voltando por aquele caminho , — ele disse, apontando enquanto
prosseguia. — foi por onde os soldados estavam subindo através da floresta . Mais
além naquela direção , Victor, você e seus homens vieram para entrar na batalha .
Quase no mesmo lugar estão os seus rastros de quando me carregaram de volta até
a casa da fazenda. Naquela direção , onde eu já mostrei a vocês , estão os rastros
de outros soldados que chegaram e encontraram seus col egas soldados mortos .
— Nenhum de nós ou qualquer um dos soldados esteve aqui subindo por
esse caminho.
— Aqui, onde estamos agora , não há rastros . Olhem em volta. Verão
apenas os meus rastros recentes dessa manhã quando eu estava procurando . Além
disso, não há pegadas de mais ninguém vindo por aqui... de fato , não há qualquer
sinal de que alguém já tenha estado aqui. Pelo menos, parece que ninguém esteve
aqui anteriormente.
Victor esfregou distraidamente o dedão no corpo de aço da maça
pendurada no cinto . — Mas você pensa o contrário ?
— Sim. Mesmo que não exista rastros , alguém veio por esse caminho .
E, essa pessoa deixou evidência . — Richard curvou-se e com um dedo tocou em
uma pedra lisa com aproximadamente o tamanho de um pão . — Quando passou
apressada, tropeçou nessa pedra .
Victor pareceu envolvido na história . — Como você consegue afirmar
isso?
— Olhe atentamente para as marcas na pedra . — quando Victor inclinou-
se um pouco, Richard apontou. — Está vendo aqui, o modo como o topo da pedra ,
onde ela estav a exposta ao ar e ao clima , tem a pálida descoloração marrom
amarelada de líquen e coisas assim ? E aqui... como o casco de um barco abaixo
da linha do mar... você consegue ver a marca marrom escura que mostra onde a
barriga da pedra estivera abaixo do solo .
— Mas agora ela não está posicionada daquele jeito . Ela não está
encaixada em seu espaço no chão , no seu local recente de descanso . Agora ela
está um pouco erguida para fora daquele espaço e virada parcialmente . Está vendo
como agora uma seção do fundo e scuro está exposto? Se ela estivesse para fora
do chão por mais tempo, a cor escura seria removida e o líquen começaria a crescer
ali também . Mas ainda não passou tanto tempo ainda . Isso é recente.
Richard balançou o dedo para frente e para trás . — Olhe no chão, aqui,
nesse lado da pedra . Você pode ver o buraco onde a pedra repousava
originalmente, mas agora a pedra foi movida um pouco , deixando um vazio entre
esse lado da pedra e a parede da cavidade . Na parte de trás , em direção oposta a
nós, uma vez que a pedra foi perturbada recentemente , você ainda pode ver um
montinho de terra e detritos que foi empurrado .
— O espaço aberto desse lado e o montinho do outro lado mostram que
a pessoa que tropeçou nessa pedra e moveu -a estava movendo-se para longe de
nosso acampamento, indo para o norte.
— Mas então onde est ão os rastros dela? — Victor perguntou . — Suas
pegadas?
Richard alisou o cabelo molhado para trás . — Os rastros foram apagados
com magia. Eu procurei ; não há rastros.
— Olhe para a pedra. Ela foi perturbada, chutada parcialmente para fora
do seu local de repouso no solo . Mas não há marca de pisada nela . Ainda que a
pedra não tenha sido movida muito , ela foi movida. Uma bota roçando nessa pedra
o suficiente para movê -la desse jeito teria que deixar uma marca. Mesmo assim
não há marca, assim como não há outras pegadas .

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Nicci empurrou o capuz para trás . — Você está distorcendo tudo que
encontra ao redor para que encaixe com aquilo que você quer acreditar , Richard.
Você não pode ter as duas coisas . Se magia foi usada para apagar os rastros , então
porque você consegue detectar o rastro dela através dessa pedra ?
— Provavelmente porque a magia usada apaga pegadas . A pessoa que
usou essa magia não deve conhecer muito sobre rastros ou rastrear . Acho que ela
não tinha familiaridade com florestas . Quando usou magia para apagar as pegadas ,
provavelmente não pensou em colocar pedras movidas de volta no lugar .
— Richard, certamente...
— Olhem ao redor. — ele falou quando abria os braços esticados . —
Olhem como o chão da floresta está perfeito .
— O que você quer dizer? — perguntou Victor.
— Está perfeito demais . Gravetos, folhas, cascas estão distribuídos de
forma muito uniforme. A natureza é mais errática .
Nicci, Victor, e Cara olharam para o chão . Nicci viu apenas um chão de
floresta de aparência normal . Aqui e ali pequenas coisas... mudas de pinheiro ,
finas ervas daninhas , um carvalho jovem com apenas três grandes folhas...
brotando através do amontoado de ramos , musgo, cascas, e folhas caídas
espalhadas sobre o tapete de agulhas de pinheiro . Ela não sabia muito sobre
rastros ou rastrear , ou florestas, para dizer a verdade, Richard sempre deixava
marcas em árvores quando queria que ela fosse capaz de encontrar e seguir o
rastro dele... mas não parecia que alguém t ivesse passado pelo lugar , nem el e
parecia tão perfeito, como Richard sugeriu. Quando ela olhou ao redor , ele parecia
do mesmo jeito que outros lugares que ela viu em comparação . Victor e Cara
pareciam igualmente confusos .
— Richard, — Nicci falou com paci ência controlada. — tenho certeza
de que poderia haver um grande número de explicações para porque a pedra parece
ter sido movida para você . Pelo que eu sei , ela poderia ter sido perturbada , como
você sugere. Mas talvez em alce ou um veado chutou-a quando passou e com o
passar do tempo os seus rastros foram apagados .
Richard estava balançando a cabeça . — Não. Olhe para a cavidade. Ela
ainda está bem formada. Você pode ver através do quanto as bordas foram
degradadas que isso aconteceu faz apenas alguns dias . O tempo... especialmente
na chuva... faz erodir essas bordas e trabalha para preencher o espaço . Qualquer
veado ou alce que chutasse essa pedra teria deixado rastros que seriam recentes .
Não apenas isso, mas um casco teria arranhado ela , do mesmo jeito que uma bota.
Estou dizendo, três dias atrás alguém tropeçou nessa pedra .
Nicci gesticulou . — Bem, aquele galho morto ali em cima poderia ter
caído sobre ela e movido.
— Se fosse isso, então o líquen que cresce na pedra mostraria a marca
do impacto e o galh o mostraria evidência de que tinha atingido algo com força .
Isso não acontece... eu já olhei .
Cara jogou as mãos para cima . — Talvez um esquilo tenha pulado de
uma árvore e caiu sobre ela .
— Não tem o peso suficiente para ter movido essa pedra. — falou
Richard.
Nicci soltou um suspiro de cansaço . — Então o que você está dizendo é
que o fato de que não há rastros dessa mulher , Kahlan, prov a que ela existe.
— Não, não é isso que estou dizendo , pelo menos, não da forma como
você está colocando . Mas realmente confirma isso se você olhar para tudo junto...
se colocar tudo isso em contexto .

39
Nicci colocou os punhos nos quadris . Havia assuntos importantes que
precisavam ser tratados . Eles estavam ficando sem tempo . Ao invés de lidar com
questões urgentes que pre cisavam da atenção deles , eles estavam no meio da
floresta olhando para uma pedra . Ela podia sentir o sangue indo para o rosto .
— Isso é ridículo . Tudo que você nos mostrou , Richard, é prova de que
essa mulher que você imaginou é apenas isso , imaginada. Ela não existe. Ela não
deixou rastros... porque você apenas sonhou com ela ! Não há nada de misterioso
nisso! Não é magia! É simplesmente um sonho !
Richard levantou repentinamente diante dela . Ele mudou em um piscar
de olhos de um homem com uma calma intensi dade para uma figura de grande
presença, poder, e fúria.
Mas ao invés de confrontá -la, ele deu um passo, passando por ela , de
volta em direção ao caminho pelo qual eles vieram , e parou. Imóvel e tenso ,
Richard ficou olhando fixamente para a floresta.
— Tem alguma coisa errada. — ele falou como um aviso em voz baixa .
O Agiel de Cara girou para seu punho . A testa de Victor franziu quando
seus dedos encontraram a maça pendurada no cinto .
Ao longe, retornando através da floresta gotejante , Nicci ouviu o súbito
grito de corvos.
Os gritos que vieram em seguida fizeram ela lembrar de nada mais além
dos sons de um assassinato sangrento .

40
C A P Í T U L O 6

Richard correu de volta através da floresta , de volta em direção aos


homens que aguardavam , de volta em direção aos gritos. Ele disparou entre o
borrão e árvores, galhos, arbustos, samambaias , e trepadeiras. Ele saltou sobre
toras apodrecidas e usou uma bota bem plantada para pular por cima de uma rocha .
Desviou entre jovens pinheiros e um grupo de Cornisos floridos. Sem reduzir a
velocidade, ele empurrou para o lado galhos de lariço e agachou por baixo de
galhos de bálsamo. Teias de galhos mortos nos troncos mais baixos de jovens
árvores de abeto engatavam em suas roupas quando ele passava . Mais de uma vez ,
galhos mortos projetados , como lanças , de árvores largas quase o empalaram antes
que ele desviasse no último instante .
Correr assim em uma velocidade descuidada através da floresta densa ,
ainda mais na chuva , era traiçoeiro. Era difícil reconhecer os perig os em tempo
de evitá-los. Qualquer um de vários galhos protuberantes poderia facilmente
perfurar um olho. Uma escorregada em folhas molhadas, musgo ou pedras poderia
causar uma queda rachadora de crânio . Enfiar um pé em um buraco ou fissura no
meio de uma corrida acelerada provavelmente quebraria uma perna . Uma vez
Richard conheceu um jovem que tinha feito justamente isso . Sua perna e o
tornozelo quebrados jamais emendaram direito , deixando ele parcialmente
aleijado para o resto da vida.
Richard focou sua concentração no caminho pretendido , tomando o
máximo de cuidado possível sem reduzir o passo . Ele não ousava reduzir .
Durante todo o caminho enquanto corria , ele escutou os gritos terríveis ,
os gemidos, e os sons perturbadores de ossos partindo . Ele também conseguia
ouvir Cara, Victor, e Nicci passando entre os arbustos atrás dele . Não esperou que
eles o alcançassem . Cada longo passo, cada salto, o levava mais longe na frente
deles.
Correndo o mais rápido que podia , arfando por ar, Richard estava
surpreso por encontrar -se sem fôlego antes do que deveria . Desconcertado no
início, então ele lembrou a razão . Nicci tinha falado que ele ainda não estava
recuperado e que, por ter perdido muito sangue , precisaria descansar para
recuperar suas forças . Continuou correndo . Teria que fazer o melhor com a força
que lhe restava. Não estava muito longe .
Mais do que isso, porém, ele continuava correndo porque os homens
precisavam de ajuda . Esses eram homens que vieram em seu auxílio quando ele
estava com problemas . Não sabia o que estava acontecendo , mas estava claro para
Richard que eles enfrentavam algum tipo de perigo .
Na manhã do ataque , se ele soubesse mais sobre como invocar o seu
Dom, poderia ter sido capaz de usar essa habilidade para deter os soldados antes
que Victor e os homens dele tivessem chegado . Se tivesse sido capaz de fazer
isso, três daqueles homens não teriam morrido na luta . É claro, se Richard não
estivesse onde estivera e não agisse para impedir os soldados , então Victor e os
homens dele podiam muito bem ter acabado mortos no acampamento , a maioria
enquanto dormia.
Richard não conseguia evitar a sensação de que devia ter feito mais . Não
queria ver qualquer um desses homens fer ido; ele continuou correndo com todas
as suas forças , não parando por nada . Usaria qualquer força que tinha . Poderia

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recuperar sua força. Vidas não podiam ser recuperadas .
Houve momentos como esse quando ele desejou que soubesse mais sobre
como invocar o seu Dom, mas infelizmente a sua habilidade funcionava de forma
diferente dos outros . Ao invés de trabalhar através de direcionamento do
conhecimento, como o poder de Nicci, a habilidade de Richard trabalhava através
da fúria e da necessidade . Na manhã em qu e os soldados da Ordem Imperial o
cercaram ele sacou a espada com o propósito de sua sobrevivência e fazendo isso
transmitiu sua fúria para a arma . Diferente do seu próprio Dom , ele sabia que
podia contar com o poder da sua espada .
Outros com o Dom aprendi am a usar sua habilidade desde uma idade
jovem. Richard nunca aprendeu. Havia sido uma criação na paz e segurança que
deu a ele uma chance na vida ; de crescer para valorizar profundamente a vida . O
problema é que uma criação assim também o havia deixado al heio e ignorante de
seu próprio talento .
Agora que Richard crescera, porém, aprender a usar a sua habilidade
latente estava provando ser mais do que difícil , não apenas por causa de sua
criação, mas porque sua forma de Dom em particular também era
extraordinariamente rara . Nem Zedd, nem as Irmãs da Luz tiveram qualquer
sucesso em ensiná -lo como direcionar conscientemente seu poder .
Ele sabia pouco mais do que Nathan Rahl, o Profeta, tinha falado para
ele, que seu poder com mais frequência era invoc ado através da fúria e um
particular, específico tipo de necessidade desesperada , que Richard não foi capaz
de identificar ou isolar . Até onde ele foi capaz de determinar , a característica da
necessidade requerida para ativar seu poder era específica a cad a circunstância .
Richard também sabia que usar a magia não envolvia capricho . Nenhuma
quantidade de desejo ou esforço jamais poderia produzir resultados . A iniciação
e uso da magia exigia condições específicas ; ele apenas não entendia como
produzir ou fornecer essas condições .
Até mesmo magos de grande habilidade às vezes tinham que usar livros
para garantir que executassem os detalhes corretamente para que a magia
específica que eles queriam funcionasse . Em uma tenra idade, Richard havia
memorizado um daqueles livros, O Livro das Sombras Contadas . Aquele era o
livro que Darken Rahl estivera procurando depois que ele colocou as Caixas de
Orden em ação.
Na manhã em que Kahlan tinha desaparecido, para encarar a ameaça das
fileiras aparentemente infinitas de soldados avançando sobre ele , Richard teve
que depender de sua espada e não de seus próprios poderes inatos . A luta frenética
o levara ao limite da exaustão . Ao mesmo tempo, sua preocupação com Kahlan o
deixou distraído ao ponto em que sua mente não estava completamente na batalha .
Ele sabia que permitir que uma distração como essa ofuscasse a sua atenção era
perigoso e uma tolice ... mas era Kahlan. Ele ficou incontrolavelmente preocupado
com ela.
Se a sua necessidade não tivesse invocado o seu Dom quando o fizera, a
saraivada de flechas caindo repentinamente sobre ele teria sido fatal uma dúzia
de vezes mais.
Ele não viu a flecha atirada de uma besta . Quando ela dispara em direção
ao seu coração, ele só reconheceu a ameaça no último instante possível e , por
causa da necessidade crucial de deter também os três soldados correndo até ele ao
mesmo tempo, só foi capaz de desviar a trajetória do voo da flecha , não de pará-
la.
Parecia que já tinha reavaliado a lembrança mil vezes e pensado em

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diversas possibilidades sobre o que poderia e o que deveria ter acontecido , que
no julgamento severo de sua mente , poderia ter evitado o que tinha acontecido .
Entretanto, Como Nicci falou, ele não era invencível .
Enquanto ele saltava entre as árvores , a floresta ficou inesperad amente
silenciosa. Os gritos ecoantes morreram . A imensidão verde nebulosa foi deixada
outra vez ao sussurro abafado da suave chuva caindo através da cobertura de
folhas. No mundo externamente pacífico e mais uma vez silencioso ao redor dele ,
quase pareceu como se ele tivesse apenas imaginado os sons terríveis que ouvira .
A despeito de sua fadiga , Richard não reduziu o passo . Enquanto corria,
ele procurou escutar qualquer sinal dos homens , mas conseguia ouvir pouco mais
do que sua própria respiração esforçada, seu coração pulsando nos ouvidos , e suas
pisadas rápidas . Ocasionalmente ele também ouviu galhos atrás dele quebrando
enquanto os outros três tentavam alcançá -lo, mas eles ainda estavam ficando para
trás.
Por alguma razão , a estranha calmaria era de algum modo ainda mais
assustadora do que foram os gritos . O que tinha começado soando como corvos...
gralhados roucos elevando -se até os tipos de gritos aterrorizados que um animal
emite apenas quando está sendo morto... havia, em algum lugar do caminho ,
começado a soar humano . E agora existia somente o ameaçador silêncio .
Richard t entou convencer a si mesmo de que só tinha imaginado que os
gritos tornaram -se humanos. Assustadores como os gritos foram , era a
fantasmagórica, não natural, calmaria depois que eles pararam , que causava
arrepios fazendo eriçar os cabelos da nuca dele .
Pouco antes que ele chegasse até a clareira , Richard finalmente sacou
sua espada. O barulho singular da espada sendo liberada espalhou o som do aço
através do ambiente úmido , acabando com o silêncio.
Instantaneamente, o calor da fúria da espada inundou cada fibra do ser
dele, para ser respondida da mesma forma pela sua própria fúria . Mais uma vez,
Richard com prometia-se com a magia que conhecia , e com a qual podia contar .
Cheio do poder da espada, ele queria encontrar a fonte da ameaça , e
desejava acabar com ela .
Houve um tempo em que o medo e a incerteza o tornavam relutante em
render-se diante da crescente tempestade invocada pela antiga espada criada por
magia, hesitant e em respond er ao chamado com sua própria fúria, mas ele havia
aprendido fazia muito tempo a deixar -se levar pelo êxtase da fúria . Era esse ódio
justificado que aprendera a dominar conforme sua vontade . Era esse poder que
direcionava seu propósito .
Houve aqueles que no passado cobiçaram o poder da espada , mas em seu
desejo cego por aquilo que pertencia a outros , ignoraram os perigos sombrios com
os quais estavam mexendo ao usar uma arma como essa. Ao invés de serem os
mestres da magia, tornaram-se escravos da lâmina, de sua fúria, e da sua própria
ganância voraz. Houve aqueles que usaram o poder da espada com fins malignos.
Isso não foi culpa da lâmina . O uso da espada , para o bem ou para o mal , era a
escolha consciente feita pela pessoa que a empunhava e toda a respon sabilidade
recaía sobre ela.
Disparando através da parede de galhos de árvore , arbustos, e
trepadeiras , Richard parou na margem da clareira onde os soldados tinham caído
na batalha vários dias antes . De espada em punho, ele arfou procurando ar...
independente do quanto o ar estivesse pútrido... lutando para recuperar o fôlego .
No início, enquanto ele observava a cena bizarra diante dele , sentiu
dificuldade em compreender o que estava vendo .

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Corvos mortos jaziam por toda parte . Não apenas mortos, mas
despedaçados. Asas, cabeças, e partes de carcaças estavam espalhadas pela
clareira. Milhares de penas estavam caídas como neve negra sobre os cadáveres
em decomposição dos soldados .
Congelado pelo choque durante apenas um instante , e ainda sem fôlego,
Richard sabia que isso não era o que procurava . Cruzando o campo da batalha , ele
correu sobre o pequeno banco de terra , através das aberturas entre as árvores , e
sobre vegetação pisoteada , em direção ao local onde os homens estavam
aguardando.
A fúria da espada on dulava através dele enquanto corria , fazendo ele
esquecer que estava cansado , que estava sem fôlego , que ainda não estava
totalmente recuperado , preparando -o para a batalha que estava por vir . Naquele
momento, a única coisa que importava para Richard era chegar até os homens , ou,
mais precisamente, chegar até aquilo que ameaçava os homens .
Havia um êxtase sem igual em matar aqueles que serviam ao mal . O mal
não desafiado era o mal sancionado . Destruir o mal era realmente uma celebração
do valor da vida , tornado real ao destruir aqueles que existiam para negarem aos
outros suas vidas.
Nisto jazia o propósito fundamental por trás da essencial, indispensável,
exigência da espada pela fúria . A fúria apagava o horror da matança , removia a
relutância natural em ma tar, deixando apenas sua necessidade pura para que
houvesse a verdadeira justiça .
Quando Richard saiu correndo do meio de um grupo de bétulas , a
primeira coisa que chamou sua atenção foi a árvore bordo onde os homens
estiveram esperando. Os galhos mais baixos estavam sem as folhas . Parecia com o
se uma tempestade tivesse descido para rasgar através da floresta . Onde pouco
tempo atrás cresciam pequenas árvores , agora tudo que restavam eram tocos
despedaçados. Galhos grossos com folhas molhadas brilhantes o u agulhas de
pinheiro estavam espalhados ao redor . Enormes pedaços de troncos de árvores
projetavam -se do solo como lanças usadas após uma batalha .
Sob o bordo, espalhada pelo chão da floresta , estava uma cena que , no
início, Richard não conseguia entender . Quase tudo que antes tinha alguma
sombra de verde, quer fosse Sálvia suja, amarelada, ou de um rico esmeralda ,
agora estava manchad o de vermelho.
Richard ficou parado ofegante, seu coração batendo acelerado , lutando
para focar a sua fúria em uma ameaça q ue ele não conseguia identificar . Ele
observou as sombras e a escuridão entre as árvores , procurando qualquer
movimento. Ao mesmo tempo ele lutou para ordenar a confusão daquilo que estava
enxergando no chão diante dele.
Cara parou derrapando à esquerda de le, pronta para um combate. Um
instante depois , Victor parou à direita dele, sua maça em um punho firme . Nicci
chegou correndo lago atrás , sem arma evidente , mas Richard podia sentir o ar ao
redor dela virtualmente estalando com o poder pronto para ser liberado.
— Queridos espíritos , — o ferreiro sussurrou . Sua maça de seis lâminas ,
uma arma mortal que o próprio homem tinha feito , ergueu-se no seu punho
enquanto ele começava a andar adiante .
Richard levantou sua espada na frente de Victor para impedir que ele
fosse mais longe . Com o peito contra a lâmina , o ferreiro acatou de forma relutant e
o comando silencioso e parou .
Aquilo que, no início , fora uma visão desconcertante finalmente tornou -
se bastante clara. O antebraço de um homem , sem a mão mas ainda coberto por

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uma manga de camisa de flanela marrom , jazia sobre um tapete de samambaias
aos pés de Richard. Não muito longe estava uma bota amarrada com uma tíbia
branca sem tendão e músculo projetando -se do topo. Em um emaranhado de
ásperas folhas de Corniso logo ao lado estava uma parte de um torso , sua carne
despedaçada exibindo uma seção da espinha e ossos d e costelas. Tiras de vísceras
rosadas jaziam sobre a tora onde os homens estiveram sentados . Pedaços de
escalpos e pele sobre rocha e espalhados por toda parte pela grama e arbustos .
Richard não conseguia imaginar que poder poderia ter causado uma cena
tão chocante.
Um pensamento lhe ocorreu . Ele olhou para trás por cima do ombro, para
Nicci. — Irmãs do Escuro?
Nicci balançou a cabeça lentamente enquan to estudava a carnificina . —
Tem algumas características similares , mas em comparação essa não é a forma
como elas matam.
Richard não sabia se isso era uma notícia confortadora ou não .
Lentamente, cuidadosamente, ele avançou caminhando entre os restos
ainda sangrentos. Para ele não parecia que isso foi uma batalha ; não havia cortes
de espadas ou machados , nenhuma flecha ou lança para marcar o campo de
batalha. Nenhum dos galhos ou pedaços de músculos pareciam ter sido cortados .
Cada pedaço parecia como se t ivesse sido arrancado do lugar ao qual pertencia .
Era uma visão tão horrível , tão incompreensível , que estava além do
nauseante. Richard estava achando desorientador tentar conceber o que poderia
ter criado tal devastação... não apenas dos homens , mas da paisagem onde eles
estiveram. De algum lugar além da efervescente fúria da magia da espada , ele
sentiu uma agonizante tristeza por causa daquilo que não foi capaz de impedir , e
ele sabia que essa tristeza apenas cresceria . Mas nesse momento, ele não queria
nada mais do que botar as mãos em quem, ou no quê, tinha feito isso .
— Richard, — Nicci sussurrou bem perto lá atrás. — acho que seria
melhor sairmos daqui .
O tom calmo e direto da voz dela não podia ter sido um alerta mais
convincente.
Inundado com a fúria da espada em seu punho , e com sua própria fúria
por causa daquilo que estava vendo , ele ignorou -a. Se houvesse alguém vivo , tinha
que encontrá-lo.
— Não restou qualquer um. — Nicci murmurou, como se respondesse
aos pensamentos dele.
Se a ameaça ainda estivesse espreitando nas proximidades , ele precisava
saber.
— Quem poderia ter feito isso ? — Victor sussurrou, claramente sem
interesse de partir até que tivesse os culpados em suas garras .
— Isso não parece qualquer coisa humana. — Cara respondeu em cla ra
acusação.
Conforme Richard caminhava cuidadosamente através dos restos , o
silêncio da floresta ao redor o pressionava como um grande peso . Nenhuma ave
cantou, nenhum inseto zumbiu , nenhum esquilo chiou . O efeito silenciador do
pesado céu nublado e do chuvisco apenas servia para agravar a situação .
Sangue pingava de folhas , galhos, e da ponta d a vegetação curvada. Os
troncos de árvores estavam manchados por ele . A casca grossa de um freixo estava
melada com tecido úmido. Uma mão, com os dedos abertos e moles, sem qualquer
arma, jazia com a palma para cima sobre o cascalho em uma ladeira sob as largas
folhas de um bordo.

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Richard avistou as pegadas do lugar por onde todos eles tinham entrado
na área e algumas de suas próprias pegadas onde ele havia partido fazia pouco
tempo com Nicci, Cara, e Victor. Grande parte dos restos estava em floresta
virgem onde nenhum deles tinha caminhado . Não havia quaisquer pegadas
peculiares no meio da carnificina , embora houvesse lugares inexplicáveis onde o
solo foi aberto. Algumas dessas fendas cortavam através de grossas raízes .
Olhando mais atentamente , Richard percebeu que as valas estavam em
lugares onde homens foram esmagados contra o solo com tanta violência que isso
rasgou o chão da floresta . Em alguns pontos, carne ainda estava pendurada nas
pontas expostas de raízes despedaçadas .
Cara agarrou no ombro da camisa dele , tentando fazer ele recuar . —
Lorde Rahl, quero você longe daqui .
Richard soltou o ombro do punho dela . — Quieta.
Enquanto ele caminhava silenciosamente em meio aos restos , as
incontáveis vozes daqueles que usaram a espada no passado sussurraram no fundo
de sua mente.
Não foque naquilo que está vendo , naquilo que está feito . Procure por
aquilo que causou isso e que ainda pode vir . Agora é o momento para se r vigilante.
Dificilmente Richard precisava de um alerta como esse. Ele estava
segurando o cabo com fios trançados da espada com tanta força que podia sentir
as letras em alto -relevo da palavra “VERDADE” formada por fios de outro
trançados com fios de prata. Essa palavra dourada pressionava a carne de sua
palma de um lado e as pontas de seus dedos na outra .
Aos pés dele a cabeça de um homem olhava para cima em direção a ele
do meio de um matagal . Um grito mudo distorcia a expressão fixa no rosto .
Richard conhecia ele. Seu nome era Nuri. Tudo que esse jovem aprendera , tudo
que ele havia experimentado , tudo que ele planejara, o mundo que começara a
criar para si mesmo , havia terminado . Para todos esses homens , o mundo estava
acabado; a única vida que eles tinham estava acabada para sempre .
A agonia daquela perda terrível, aquela finalidade sinistra , ameaçava
extinguir a fúria da espada e mergulhar ele na tristeza . Todos esses homens eram
amados e queridos por aqueles que aguardavam o seu retorno. A falta de cada um
desses indivíduos seria sentida com um sofrimento que sem dúvida marcaria os
vivos.
Richard fez um esforço para prosseguir . Agora não era o momento para
lamentar. Agora era o momento para encontrar os culpados e lançar sobre eles a
retribuição e a justiça antes que tivessem tempo de fazer isso com outros . Somente
então os vivos poderiam lamentar aquelas preciosas almas perdidas .
Independente do quanto procurasse , Richard não viu qualquer corpo, não
um corpo no sentido de uma pessoa completa, reconh ecível, ainda que toda a área
onde os homens estiveram esperando estivesse cheia com os restos deles . A
floresta ao redor também revelava partes daqueles restos , como se alguns dos
homens tivessem tentado fugir. Se esse foi o caso, nenhum deles havia chegado
longe. Enquanto Richard movia-se entre as árvores , procurando quaisquer rastros
que pudessem ajudá -lo a identificar quem matou esses homens , ele mantinha um
olho nas sombras no meio da névoa . Viu rastros de homens que correram , mas não
viu rastros de perseguição atrás deles .
Quando fez a curva em um antigo pinheiro , ele confrontou -se com a
metade superior do peito de um homem pendurado de cabeça para baixo em um
galho quebrado . Os restos pendiam logo acima da cabeça de Richard. O que
restava do torso sem braços havia sido empalado no toco de um galho quebrado

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como se ele fosse um gancho para carne . O rosto estava fixo com expressão de
enorme terror. Estando de cabeça para baixo , o cabelo, pingando sangue ,
projetava-se do escalpo como se estivesse con gelado de medo.
— Queridos espíritos . — Victor sussurrou. A fúria distorcendo seu rosto .
— Esse é Ferran.
Richard observou a área , mas não viu qualquer coisa mover -se nas
sombras. — Seja lá o que tenha acontecido aqui , não acho que alguém escapou .
— ele notou que no chão onde o sangue de Ferran pingava não havia rastros .
Os rastros de Kahlan também tinham sumido .
A dor, o horror, de imaginar se isso podia ser a mesma coisa que
aconteceu com Kahlan quase fez ele cair de joelhos . Nem mesmo a fúria da espada
foi suficiente para protegê -lo da agonia dessa dor.
Nicci, logo atrás dele, inclinou-se, chegando mais perto . — Richard, —
ela falou quase em um sussurro. — precisamos sair daqui .
Cara inclinou-se ao lado de Nicci. — Eu concordo.
Victor ergueu a sua maça. — Quero aqueles que fizeram isso . — as
articulações de seus dedos estavam brancas em volta do cabo de aço . — Consegue
rastreá-los? — ele perguntou a Richard.
— Não acho que isso seria uma boa ideia. — falou Nicci.
— Boa ideia ou não , — Richard disse a el es. — não vejo quaisquer
rastros. — ele olhou dentro dos olhos azuis de Nicci. — Talvez você gostasse de
tentar me convencer de que estou imaginando isso tamb ém?
Ela não rompeu o contato visual com ele , mas também não respondeu ao
desafio.
Victor olhou para Ferran. — Falei para a mãe dele que tomaria conta
dele. O que vou dizer para a família dele agora ? — lágrimas de raiva e dor
brilharam nos olhos dele quando apontou para trás com a maça, para os outros
restos. — O que direi para as mães, esp osas e crianças deles?
— Que o mal os assassinou, — disse Richard. — que você não descansará
até saber que a justiça foi feita. Que haverá vingança .
Victor assentiu, sua fúria reduzindo, o sofrimento agora dominando sua
voz. — Temos que enterrá -los.
— Não. — Nicci falou com autoridade. — Ainda que eu entenda o seu
desejo de cuidar deles , seus amigos não estão mais aqui, entre esses pedaços de
corpos. Os seus amigos agora estão com os bons espíritos , Depende de nós não
nos juntarmos a eles .
A raiva de Victor retornou. — Mas nós devemos...
— Não. — Nicci disparou. — olhe ao redor. Isso foi um frenesi
sangrento. Não queremos ser pegos no meio disso . Não podemos ajudar esses
homens. Precisamo s dar o fora daqui .
Antes que Victor pudesse discutir , Richard inclinou-se perto da
feiticeira. — O que você sabe a respeito disso ?
— Eu já falei pera você, Richard, que precisamos conversar. Mas esse
não é o momento n em o lugar para fazer isso.
— Concordo, — Cara rosnou. — temos que cair fora daq ui.
Olhando para os restos de Ferran e depois de volta p ara a massa
sangrenta sob o bordo, Richard s entiu repentinamente u ma sensação de solidão .
Queria tanto Kahlan que estava doendo. Queria o conforto dela. Queria que ela
estivesse em segurança, A agonia de não saber se ela estava viva e bem era
insuportável .
— Cara tem razão. — Nicci segurou o braço de Richard rapidamente. —

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Não sabemos o bastante sobre aquilo que estamos enfrentando , mas seja lá o que
tenha feito tudo isso, eu temo que fraco como você está a sua espada não consiga
nos proteger disso... e nesse momento, nem eu posso. Se essa coisa ainda estiver
nessa floresta, agora não é hora p ara confrontá-la. A justiça e a vingança precisam
que nós garantamos que elas sejam feitas . Para fazermos isso, devemos estar
vivos.
Com a costa de uma das mãos, Victor enxugou lágrimas de tristeza e
raiva da bochecha. — Odeio admitir isso, mas acho que Nicci está certa.
— Seja lá o que está procurando por você , Lorde Rahl, — falou Cara. —
não quero você aqui caso acont eça dessa coisa voltar.
Richard notou o modo como Cara, em sua roupa vermelha de couro , não
parecia mais deslocada na floresta . Ela combinava muito bem com todo o sangue .
Ainda não estando pronto para abandonar a busca por aquilo que matou
esses homens , e com uma sombria sensação de alarme crescendo dentro dele ,
Richard fez uma careta para a Mord-Sith. — O que faz você pensar que isso estava
atrás de mim?
— Eu disse, — Nicci falou entre dentes cerrados , respondendo no lugar
de Cara. — agora não é o momento e esse não é o lugar para falar sobre isso . Não
podemos ter esperança de realizar alguma coisa aqui . Esses homens estão além da
nossa ajuda.
Além da ajuda. Será que Kahlan também estava além da ajuda ? Ele não
conseguia acreditar nisso .
Ele olhou para o norte. Richard não sabia onde procurar por ela . Só
porque a pedra que foi chutada para fora de seu local de repouso tinha sido
encontrada ao norte do acampamento deles , isso não significava que seja lá quem
for que levou Kahlan seguiu por aquele caminho . Podiam simplesmente ter ido
para o norte, tentando evitar contato com Victor e os homens dele e com os
soldados que guardavam o comboio de suprimentos. Podiam estar apenas tentando
evitar serem avistado até saírem das imediações. Depois disso, podiam ter seguido
para qualquer lugar.
Mas para onde?
Richard sabia que precisava de ajuda .
Tentou pensar em quem poderia ajudá -lo em algo como isso . Quem
acreditaria nele? Zedd poderia acreditar nele, mas Richard não achava que seu
avô poderia oferecer o tipo espec ífico de ajuda que precisava nesta circunstância .
Era uma distância longa demais para acabar descobrindo que as habilidade de
Zedd não se encaixavam nesse tipo de problema em particular .
Quem poderia estar disposto a ajudá -lo, e podia saber alguma coisa ?
Subitamente Richard virou para Victor. — Onde posso conseguir
cavalos? Preciso de cavalos . Onde fica o lugar mais próximo ? — Victor foi pego
de surpresa pela pergunta . Ele deixou a pesada maça pendurada e com sua outra
mão enxugou água da chuva da testa enq uanto pensava na pergunta . Sua testa
franziu.
— Altur'Rang provavelmente seria o lugar mais próximo. — ele disse
após pensar durante um momento .
Richard enfiou sua espada de volta na bainha . — Vamos lá. Precisamos
nos apressar.
Contente com a decisão de partir, Cara aplicou um leve empurrão nele
na direção de Altur'Rang. A suspeita espreitou nos olhos de Nicci, mas ela estava
tão aliviada que ele estivesse afastando -se do local de tantas mortes que não
perguntou porque ele queria cavalos .

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Com a fadiga esq uecida, os quatro afastaram-se velozmente dos homens
que estavam além de qualquer ajuda . Independente do quanto sentiam -se tristes
em partir, cada um deles entendeu que seria perigoso demais ficar para tentar
enterrar esses homens . Um enterro dos mortos não valia o risco para suas vidas .
Com sua espada guardada , a fúria extinguiu-se. Em seu lugar brotou a
esmagadora dor do pesar pelos mortos . A floresta pareceu chorar junto com eles .
Pior ainda era o horror de imaginar o que podia ter acontecido a Kahlan.
Se ela estava nas mãos desses ...
Pense na solução, Richard lembrou a si mesmo .
Se queria encontrá -la, precisaria de ajuda. Para conseguir ajuda,
precisava de cavalos . Esse era o problema imediato . Eles ainda tinham metade de
um dia de luz do sol . Pretendia não desperdiçar um momento dele .
Richard os conduziu através da floresta fechada em um passo exaustivo.
Ninguém reclamou.

49
C A P Í T U L O 7

No profundo escurecimento da aproximação do anoitecer , Richard e Cara


usaram finas raízes de pinheiro que arrancaram do solo esponjoso para unir
troncos de pequenas árvores . Victor e Nicci vasculharam o subosque através da
base da ladeira com densa vegetação , cortando e coletando galhos de abeto .
Enquanto Richard segurava as toras juntas , Cara amarrava a raiz semelhante a
uma corda. Richard cortou o excedente para usar em outra parte qualquer e enfiou
sua faca de volta na bainha em seu cinto . Assim que tinha a armação de toras
firme no lugar contra uma projeção rochosa , ele começou a posicionar os galhos
de abeto no fundo . Cara amarrou galhos aleatórios do lado de dentro para mantê -
los todos no lugar durante a noite enquanto Richard continu ava a arrumar mais
galhos. Victor e Nicci traziam braços cheios de galhos para manter o suprimento
enquanto ele trabalh ava.
A área sob o rochoso teto projetado era suficientemente seca , ela só não
era grande o bastante. A estrutura expandiria o abrigo para fornecer um local
cômodo para dormir. Sem uma fogueira ele não ficaria especialmente quente, mas
pelo menos ficaria se co.
Durante o dia, o chuvisco havia se transformado em uma lenta chuva
constante. Enquanto estiveram em movimento estavam suficientemente aquecidos
por causa do cansaço , mas agora que tinham parado para passarem a noite , o
inexorável abraço do frio começara. Mesmo na água fria que não estava realmente
gelada, estar molhado removia o calor necessário de uma pessoa e desse modo a
sua força. Richard sabia que, com o passar do tempo , a exposição constante até
mesmo ao mais leve clima úmido poderia roubar calor vital suficiente do corpo
para debilitar severamente e às vezes até matar uma pessoa .
Sabendo como Nicci e Cara dormiram pouco nos últimos três dias , e em
sua própria condição enfraquecida , Richard reco nheceu que eles precisavam de
um lugar seco, quente, para descansarem um pouco ou todos estariam com
problemas. Ele não podia permitir que alguma coisa o atrasasse.
Durante toda a tarde e o anoitecer eles seguiram em um passo firme,
veloz, em sua marcha em direção a Altur'Rang. Após o assassinato bruta l dos
homens, os quatro não estavam exatamente com fome , mas sabiam que precisavam
comer se queiram ter forças para a jornada , então beliscaram carnes secas e
biscoitos de viagem enquanto avançavam através das terras ermas não trilhadas .
Richard estava tão exausto que mal conseguia ficar de pé . Tanto para
cortar a distância quanto para evitar serem avistados por alguém , ele guiou os
outros por densa floresta , a maior parte difícil de cruzar e todas sem trilhas . Foi
um dia de viagem extenuante . A cabeça dele estava doendo. Suas costas estavam
doendo. Suas pernas estavam doendo . Porém, se eles iniciassem cedo e
mantivessem o passo firme , talvez conseguissem chegar até Altur'Rang em mais
um dia de viagem . Depois que eles conseguissem cavalos , a viagem seria mais
fácil assim como mais rápida .
Ele gostaria de não precisar ir tão longe , mas não sabia que outra coisa
poderia fazer . Não poderia passar uma eternidade vasculhando a vasta floresta ao
redor, na esperança de encontrar outra pedra que tivesse sido movid a para que
então ele pudesse ter uma ideia em qual direção Kahlan havia seguido. Poderia
jamais encontrar outra pedra assim , e mesmo se encontrasse, não havia razão para

50
acreditar que se continuasse naquela direção encontraria Kahlan. Aquele que a
levou poderia mudar de direção sem ao menos perturbar uma pedra do jeito que
ele perceberia.
Os rastros comuns deles desapareceram . Richard não conhecia um jeito
de rastrear alguém quando a magia fizera seus rastros desaparecerem . O Dom de
Nicci não era capaz de ajudar. Perambular por aí cegamente não resolveria coisa
alguma. A despeito do quanto estava relutante em deixar a área onde tinha visto
Kahlan pela última vez , Richard não achava que tivesse qualquer outra escolha a
não ser buscar ajuda .
Ele prosseguiu na construção do abrigo sem pensar muito no trabalho .
Na luz que enfraquecia, Cara, preocupa com o bem estar dele , ficava observando -
o com o canto dos olhos . Parecia que ela estava esperando que ele caísse a
qualquer momento e se isso ocorresse ela o pegaria .
Enquanto trabalhava, Richard ficou pensando na remota mas real
possibilidade de que os soldados da Ordem Imperial pudessem estar fazendo
buscas na floresta atrás deles . Ao mesmo tempo ele imaginava o que poderia ter
morto todos os homens de Victor... e agora podia estar perseguindo eles . Avaliou
quais outras precauções poderia tomar , e pensou em como enfrentaria aquilo que
podia ter cometido tal violência .
Em meio a tudo isso , continuou tentando pensar onde Kahlan podia estar.
Pensou em tudo que conseguia lembrar . Refletiu se ela estava ou não estar
machucada. Sentiu agonia por causa daquilo que podia ter feito errado . Imaginou
que ela podia estar cheia de medo e dúvida , pensando em porquê ele não estava
chegando para ajudá -la a escapar, porque ainda não tinha encontrado ela , e se a
encontraria antes que seus captores a matassem .
Lutou para afastar de sua mente o pavoroso medo de que ela já podia
estar morta.
Tentou não pensar no que poderia ser feito a ela como cativa que poderia
ser infinitamente mais horrível do que uma simples execução . Jagang tinha amplas
razões para querer que ela vivesse um longo tempo ; somente os vivos podiam
sentir dor.
Desde o início, Kahlan esteve ali para frustrar as ambições de Jagang e
às vezes até reverter o sucesso d ele. A primeira força expedicionária da Ordem
Imperial no Mundo Novo , entre outras coisas , assassinou todos os habitantes da
grande cidade Galeana de Ebinissia. Kahlan encontrou a visão horrenda pouco
depois que uma tropa de jovens recrutas Galeanos a descobrira. Em sua fúria cega ,
a despeito de estarem em desvantagem de dez para um , aqueles jovens foram
banhados na glória da vingança e da vitória , ao encontrarem no campo de batalha
os soldados que torturaram , estupraram , e assassinaram todos os seus entes
queridos.
Kahlan encontrou com aqueles recrutas , liderados pelo Capitão Bradley
Ryan, pouco antes deles marcharem para uma batalha que, ela percebeu,
significaria suas mortes . Em sua audaciosa inexperiência , eles foram convencidos
de que poderiam fazer táticas funcionarem e obter a vitória , independente de
estarem em menor número .
Kahlan sabia como os soldados experientes da Ordem Imperial lutavam .
Sabia que se permitisse que aqueles jovens recrutas fizessem o que planejavam ,
estariam marchando para dent ro de um moedor de carne impiedoso e todos eles
morreriam. Os resultados de suas míopes noções de justa glória no combate fariam
com que então, aqueles soldados da Ordem Imperial prosseguissem , sem oposição ,
até outras cidades e continua ssem a assassinar e pilhar pessoas inocentes .

51
Kahlan assumiu o comando dos jovens recrutas e tratou de dissuadi-los
de suas noções ignorantes de uma luta justa . Fez com que eles entendessem
completamente que o seu objetivo era matar os invasores . Não importava como os
Galeanos pisariam sobre os cadáveres dos brutos , só importava que eles fizessem
isso. Na execução da matança, não havia glória, havia simplesmente a
sobrevivência. Eles estavam matando para que pudesse haver vida . Kahlan
ensinou para aqueles recrutas o que eles precisavam saber a respeito de
combaterem uma força que superava em muito os seus números , e ela os moldou
em homens que poderiam realizar a sinistra tarefa .
Na noite antes de conduzir aqueles jovens ao combate , Kahlan foi
sozinha ao acampamento inimigo e matou o mago deles junto com alguns dos
oficiais. No dia seguinte, aqueles cinco mil jovem lutaram ao lado dela , seguiram
suas instruções, aprenderam com ela, e durante o caminho sofreram baixas
terríveis, mas eventualmente eles mataram até o último dos cinquenta mil homens
da força avançada da Ordem Imperial . Foi um feito raramente igualado na história .
Aquele foi o primeiro de muitos golpes que Kahlan aplicou em Jagang.
Em resposta, ele enviou assassinos atrás dela . Eles falharam .
Na ausência de Richard, depois que Nicci levou ele embora para o
coração do Mundo Antigo , Kahlan foi juntar-se a Zedd e as forças do Império
D’Haraniano. Ela os encontrou desanimados e em retirada após terem perdido uma
batalha de três dias . No lugar de Richard, carr egando a Espada da Verdade, a
Madre Confessora colocou de volta o exército nos trilhos e contra -atacou
imediatamente, surpreendendo o inimigo e fazendo eles sangrarem . Ela trouxe a
determinação e o fogo para as forças D’Haranian as. Inspirou eles diante do
desafio. Os homens do Capitão R yan chegaram para juntarem -se a ela na batalha
contra a horda invasora de Jagang. Durante quase um ano, Kahlan liderou as forças
do Império D’Haraniano enquanto eles frustravam os esforços de Jagang para
subjugar rapidamente o Mundo Novo . Ela afrontou e exauriu ele sem pausa .
Ajudou diretamente em planos que resultaram na perda de centenas de milhares
de homens do exército de Jagang.
Kahlan havia sangrada o exército da Ordem Imperial , e ajudou a mant ê-
los do lado de fora de Aydindril. No inverno, ela evacuou o povo de Aydindril, e
fez o exército assumir posição nas passagem para dentro de D'Hara. Então as
forças D’Haranianas selaram aquelas passagens e , dali em diante, impediram que
a Ordem Imperial c onseguisse seu objetivo de conquistar D'Hara e finalmente
colocar o Mundo Novo sob o governo brutal da Sociedade da Ordem .
O ódio de Jagang contra Kahlan só era superado pelo seu ódio por
Richard. Mais recentemente , o Andarilho dos Sonhos enviara um mago
extremamente perigoso chamado Nicholas atrás deles. Richard e Kahlan
escaparam por pouco da captura .
Richard sabia que a Ordem adorava garantir que inimigos capturados
sofressem abuso monstruoso , e não havia outro, além de Richard, que o Imperador
Jagang queria torturar mais do que a Madre Confessora.
Não havia limites até onde ele iria para colocar as mãos nela . O
Imperador Jagang reservaria para Kahlan a tortura mais indescritível .
Richard percebeu que estava parado , tremendo, seus dedos segurando
forte um punhados de galhos de bálsamo. Cara observava ele silenciosamente . Ele
ajoelhou e novamente começou a arrumar os galhos no lugar enquanto lutava para
afastar os pensamentos terríveis de sua mente . Cara voltou ao seu trabalho . Ele
colocou todo seu esforço em concentrar -se na tarefa de completar o abrigo deles .
Quanto mais cedo eles dormissem , mais descansados estariam quando acordassem ,

52
e mais rápido poderiam viajar .
Ainda que eles não estivessem perto de quaisquer estradas e a uma
grande distância das tr ilhas, Richard ainda não queria fazer uma fogueira com
medo de que soldados batedores pudessem avistá -la. Embora eles não fossem
capazes de ver a fumaça da fogueira através de todo o chuvisco e da neblina , um
clima como esse tendia a manter a fumaça baixa, próxima ao solo, espalhando-se
para um lado e para outro dentro da floresta , então qualquer patrulha da Ordem
Imperial conseguiria sentir o cheiro dela . Era uma possibilidade suficientemente
real de que nenhum dos outros pedisse uma fogueira . Ficar com frio era muito
melhor do que ter de lutar por suas vidas .
Nicci arrastou um punhado de galhos de bálsamo para perto enquanto
Richard continu ava a amarrá-los. Nenhum dos outros falou , aparent emente
absortos na preocupação de que seja lá o que tenha morto os h omens pudesse estar
nas proximidades, entre as sombras profundas , caçando os quatro enquanto eles
preparavam -se para dormir em uma fortaleza feita com nada mais além de galhos
de bálsamo.
O primeiro dia de jornada deles em direção a Altur'Rang tinha parecido
menos com uma viagem e mais como uma corrida para salvarem suas vidas . Mas,
seja lá o que tenha assassinado os homens de Victor, aquilo não os tinha
perseguido. Pelo menos, Richard achava que não. Ele não podia realmente
imaginar que, seja lá o qu e tivesse o poder para matar tantos homens de uma forma
tão brutal, não conseguiria alcançá -los se estivesse no rastro deles . Especialmente
não uma coisa cheia de um frenesi sangrento , como Nicci havia descrito .
Além disso , quando estava na floresta Richard geralmente sabia quando
havia animais nas proximidades e onde eles geralmente estavam , e, como regra,
ele sabia quando pessoas estavam perto . Se Victor e os homens dele não
estivessem acampados bem longe de Richard, Kahlan, e o acampamento de Cara,
ele saberia que eles estavam ali . Ele também tinha um forte pressentimento a
respeito de quando estava sendo perseguido e se alguém estava seguindo seu
rastro. Como um guia, às vezes ele rastreava pessoas perdidas na floresta . Ele e
outros guias às vezes fazia m disputas rastreando uns aos outros . Richard sabia
como perceber que alguém o estava rastreando .
Isso, porém, era menos uma questão de suspeitar que alguém os estava
seguindo e mais uma sensação de frio temor , como se eles estivessem sendo
perseguidos por um fantasma assassino em um frenesi sangrento . Esse medo
constantemente os estimulava a correr . Ele também sabia que correr geralmente
era o gatilho que fazia um predador atacar .
Porém, Richard percebeu que era apenas sua imaginação fazendo ele
sentir a respiração quente de perseguidores . Zedd o ensinara que sempre era
importante entender porque você tinha uma sensação específica para que pudesse
decidir se essa sensação era causada por algo que exigia atenção, ou algo que não.
Além do medo palpável causad o pela brutalidade da chacina , Richard não tinha
evidência de que eles estavam sendo perseguidos , então ele tentou manter a
emoção em uma perspectiva adequada .
O medo em si frequentemente provava ser a maior ameaça . O medo fazia
as pessoas realizarem ações impensadas que geralmente causava problemas . O
medo fazia as pessoas pararem de pensar . Quando elas param de pensar , na
maioria das vezes fazem escolhas tolas .
Diversas vezes, quando estava crescendo , Richard rastreou pessoas que
perderam-se nas vastas fl orestas em volta de Hartland. Um garoto que Richard
rastreou durante dois dias continuou correndo no escuro até que ele eventualmente

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caiu de um penhasco . Por sorte não foi uma queda longa . Richard encontrou-o no
fundo do banco íngreme com um tornozelo tor cido que estava esfolado mas não
quebrado. O garoto estava apenas com frio , cansado, e apavorado . Poderia ter sido
muito pior e ele sabia disso . Ele ficou muito feliz em ver Richard aparecer e
segurá-lo com força no pescoço durante todo o caminho até sua c asa.
Havia diversas maneiras de morrer na floresta . Richard ouviu falar de
pessoas atacadas por um urso , ou um puma, ou picadas por uma cobra . Mas não
conseguia imaginar o que matou os homens de Victor. Nunca tinha visto algo
assim. Sabia que não foram soldados. Supôs que podia ter sido um dotado usando
algum tipo de poder terrível para assassinar os homens , mas simplesmente não
achava que essa era a explicação.
Então ele percebeu que já estava pensando n aquilo como uma besta.
Seja lá o que tenha morto o s homens, Richard havia tomado precauções
quando eles partiram . Ele seguiu por riachos rasos até que eles estavam a uma boa
distância do local do massacre . Ele foi cuidadoso em conduzi-los para fora da
água e para longe d a corrente por terreno no qual seri a muito mais difícil rastreá -
los. Mais de uma vez durante o dia ele os guiou sobre rochas ou através de água
para que fosse gasto um tempo extremo caso alguém bom em rastrear os estivesse
seguindo. O abrigo também foi construído para fundir -se com a floresta ao redor.
Seria difícil avistá -lo a não ser que alguém estivesse passando muito perto dele.
Victor arrastou uma pesada carga de galhos de bálsamo para perto e
depositou -a aos pés de Richard. — Precisa de mais?
Com a ponta da bota , Richard mexeu na pilha, julgando por sua
densidade o quanto e como ela cobriria as estacas restantes . — Não, acho que
esses e aqueles que Nicci está trazendo devem ser suficientes.
Nicci despejou a sua carga ao lado da carga de Victor. Parecia estranho
para ele ver Nicci fazendo esse tipo de trabalho . Até mesmo arrastando galhos de
bálsamo ela possuía uma aparência majestosa . Embora Cara também fosse uma
mulher arrebatadoramente bela , seu comportamento audacioso fazia parecer
bastante natural para ela estar construindo um abrigo... ou fazer um mangual com
espinhos para matar intrusos . Nicci, porém, não parecia combinar com o trabalho
na floresta... como se ela fosse reclamar a respeito de estar com as mãos sujas ,
ainda que jamais o tenha feito . Não era que ela não estivesse disposta a fazer
qualquer coisa que Richard precisasse que ela fizesse , era apenas que ela parecia
completamente deslocada fazendo isso . Ela simplesmente tinha um porte nobre
que parecia imponente demais para a tarefa de carregar galhos para fazer um
abrigo na floresta.
Agora que ela trouxera todos os galhos de bálsamo de que Richard
precisava, Nicci ficou parada sob as árvores gotejantes , abraçando o próprio corpo
enquanto tremia. Os dedos de Richard estavam dormentes de frio enquanto ele
rapidamente amar rava os galhos restantes . Ele viu Cara, enquanto ela trabalhava
para firmar os galhos , colocar ocasionalmente as mãos sob as axilas . Somente
Victor não mostrava qualquer sinal externo de estar com frio . Richard imagin ou
que o fogo no olhar feroz do ferreiro era suficiente para aquecê -lo durante a maior
parte do tempo.
— Porque vocês três não dormem um pouco , — Victor falou quando
Richard colocou o último dos galhos sobre o abrigo . — eu ficarei de vigia por
enquanto se ninguém for contra . Não estou com muito sono.
Pela fúria controlada na voz do homem , Richard imaginou que Victor
poderia não sentir sono durante um longo tempo . Certamente ele podia entender
a tristeza de Victor. Sem dúvida o homem passaria seu turno de vigília tentando

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pensar no que diria para a mãe de Ferran e para os parentes dos outros homens .
Richard pousou a mão confortadora no ombro de Victor. — Não sabemos
o que estamos enfrentando . Não hesite em me acordar se ouvir ou enxergar
qualquer coisa fora do normal . E não esqueça de entrar e aproveitar a sua cota de
sono; amanhã será um longo dia de viagem . Todos nós precisamos ser fortes .
Victor assentiu. Richard observou quando o ferreiro pegou sua capa e
jogou por cima dos ombros antes de agarrar raízes e escalar trepadeiras para subir
na rocha acima do abrigo , até o local onde ele montaria guarda . Richard imaginou
se talvez o resultado podia ter sido diferente se Victor estivesse com os homens .
Então ele pensou nas árvores despedaçadas , profundos sulcos no chão feitos com
tanta força qu e virou rochas e quebrou grossas raízes . Lembrou das armaduras de
curo rasgadas, dos ossos estilhaçados , dos corpos partidos, e ficou feliz que Victor
não estivesse com os homens quando o ataque aconteceu . Mesmo uma pesada maça
empunhada com fúria pelos braços poderosos do mestre ferreiro não teria d etido
seja lá o que tenha surgido naquela clareira .
Nicci encostou uma das mãos contra a testa de Richard, verificando s e
havia febre. — Você precisa descansar . Nada de vigília para você esta noite . Cada
um de nós três fará um turno .
Richard quis argumentar, mas sabia que ela estava certa . Essa não era
uma batalha que ele podia encarar , então não discutiu e ao invés disso assentiu
concordando. Cara, obvi amente preparada para ficar ao lado de Nicci se ele
discutisse, parou de observá -los através de uma pequena abertura entre os galhos .
Vindo da escuridão que se formava ao redor um som de raspadas tinha
começado a crescer transformando -se em um forte chiado . Agora que acabaram
com o esforço de construir o abrigo , era difícil ignorar o ruído . Ele fazia toda a
floresta parecer viva com estridente atividade . Finalmente Nicci notou isso e
parou olhando em volta.
Ela franziu a testa . — Que som é esse?
Richard arrancou uma pele vazia do tronco de uma árvore . Por toda parte
através da floresta as árvores estavam cobertas com as pálidas cascas do tamanho
de um dedão.
— Cigarras. — Richard sorriu enquanto fazia o diáfano fantasma da
criatura que um dia vivera ali dentro girar em sua palma . — Isso é o que resta
depois que elas mudam.
Nicci olhou para a pele vazia na mão dele e olhou brevemente para
algumas das outras agarradas nas árvores . — Embora eu tenha passado a maior
parte da minha vida em cidades e vilas , em ambientes internos , passei bastante
tempo ao ar livre desde que deixei o Palácio dos Profetas . Esses insetos devem
ser exclusivos dessa floresta ; não lembro de tê -los visto antes... ou ouvir .
— Você não teria visto . Eu era um garoto na última vez em que os vi .
Esse tipo de cigarra emerge do solo a cada dezessete an os. Hoje é o primeiro dia
em que todos eles começaram a emergir . Eles ficarão por aqui durante algumas
semanas enquanto acasalam e colocam seus ovos . Então não os veremos outra vez
por mais dezessete anos .
— É mesmo? — Cara perguntou quando colocou sua cab eça para fora
outra vez. — A cada dezessete anos ? — ela pensou naquilo durante um momento
e então fez uma careta para Richard. — É melhor que eles não façam com que
fiquemos acordados .
— Por causa da sua quantidade eles criam um som inesquecível . Com
incontáveis cigarras todas zunindo juntas , às vezes você pode ouvir o harmônico
elevar e baixar da canção delas movendo -se através da floresta em uma onda. Na

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quietude da noite, a estridulação delas pode parecer ensurdecedora no início , mas,
acredite ou não, na verdade ela vai ninar você até que durma .
Satisfeita em saber que os insetos barulhentos não manteriam seu
protegido acordado, Cara desapareceu retornando para dentro .
Richard relembrou de sua admiração quando Zedd caminhara com ele
pela floresta, mostrando-lhe as criaturas recém emergidas, falando para ele tudo
sobre o ciclo de vida de dezessete anos delas . Para Richard, sendo um garoto, isso
foi uma maravilha marcante . Zedd disse a ele como ele teria crescido quando elas
viessem novamente , que ele as tinha visto pela primeira vez quando era um garoto ,
e na próxima vez ele as veria como um homem crescido . Richard lembrou de ter
ficado maravilhado durante o evento e de ter prometido a si mesmo que, quando
elas viessem outra vez , ele certamente passaria mais tempo observando as raras
criaturas quando elas surgissem do solo .
Richard sentiu uma onda de profunda tristeza pela perda daquela época
inocente da vida. Quando garoto, o emergir das cigarras simplesmente pareceu o
fenômeno mais incrível que ele p odia imaginar, e aguardar dezessete anos até que
elas retornassem pareceu a coisa mais difícil que ele teria que fazer . E agora elas
estavam de volta .
E agora ele era um homem . Ele jogou fora a pele vazia .
Depois que Richard remove u sua capa molhada e rast ejou entrando logo
atrás de Nicci, ele amontoou galhos para cobrir a abertura do abrigo . Os galhos
espessos abafaram o som da canção das cigarras . O som incessante o estava
deixando sonolento .
Ele estava feliz em ver que os galhos de bálsamo conseguiram bloquear
a chuva, deixando seco o refúgio parecido com uma caverna , mesmo que não
ficasse aquecido. Eles colocaram um tapete de galhos sobre o solo exposto para
que tivessem uma plataforma relativamente macia e seca sobre a qual dormir .
Porém, mesmo sem a chuva pingando em cima deles , a humidade e a neblina ainda
umedeciam tudo . A respiração deles acontecia em pequenas nuvens .
Richard estava cansado de ficar molhado . Manipular árvores o deixara
coberto por cascas, agulhas e terra . Suas mãos estavam pegajosa s por causa da
seiva de árvore. Não conseguia lembrar de quando esteve tão miserável com
sujeira e cascalhos grudando em sua pele e roupas molhadas . Pelo menos o odor
de pinheiro e bálsamo deixava o abrigo com cheiro agradável .
Ele gostaria de poder tomar um banho quente. Espera que Kahlan
estivesse aquecida, seca e ilesa .
Independente do quanto estava cansado , e de como estava sonolento com
o som das cigarras, havia coisas que Richard precisava saber . Havia assuntos
muito mais importantes para ele do que d ormir, ou do que seu fascínio da infância .
Ele precisava descobrir o que Nicci sabia a respeito do que matou os
homens de Victor. Havia conexões demais para ignorar . O ataque tinha acontecido
bem perto de onde Richard, Kahlan, e Cara estiveram acampados fazia alguns
dias. Mais importante, seja lá o que tenha morto os homens, aquilo parecia não
ter deixado quaisquer rastros , pelo menos nenhum que ele tivesse sido capaz de
encontrar em sua rápida busca , e, além daquela pedra deslocada , Richard não
conseguiu encontrar qualquer rastro de Kahlan ou do seu raptor.
Richard pretendia, antes de dormir , descobrir o que Nicci sabia sobre o
que matou os homens .

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C A P Í T U L O 8

Richard desamarrou as tiras de couro sob a sua mochila e abriu s eu


colchonete, esticando-o no estreito espaço deixado entre as duas .
— Nicci, lá no lugar onde os homens foram mortos você disse que tinha
sido um frenesi sangrento . — ele recostou contra a parede rochosa embaixo da
projeção. — O que você quis dizer?
Nicci colocou-se em posição sentada ao lado direito dele , sobre o
colchonete dela. — O que vimos lá não foi uma simples matança . Isso não está
óbvio?
Ele imaginou que ela estava certa . Ele nunca testemunhara uma cena tão
definida pela fúria . Entretanto, ele estava ciente de que ela sabia muito mais a
respeito disso.
Cara sentou à esquerda dele. — Estou disse para você, — ela falou para
Nicci. — acho que ele não sabe.
Richard lançou um olhar desconfiado para a Mord-Sith e então para a
feiticeira. — Sabe do quê?
Nicci deslizou os dedos no cabelo molhado , afastando fios do seu rosto .
Ela parecia um pouco confusa . — Você disse que recebeu a carta que enviei .
— Recebi. — isso já fazia bastante tempo . Ele tentou lembrar através da
névoa da fadiga e preocupação tudo qu e a carta de Nicci havia dito... algo sobre
Jagang criar armas usando pessoas . — A sua carta foi valiosa para ajudar a
descobrir o que estava acontecendo naquele momento . E eu realmente gostei do
seu alerta sobre as sombrias tentativas de Jagang em criar armas usando os
dotados; Nicholas, o Deslizador, foi uma amostra terrível .
— Nicholas. — Nicci cuspiu o nome antes de enrolar um cobertor em
volta dos ombros . — Ele é apenas uma pulga no couro do lobo .
Se Nicholas era a pulga, Richard esperava jamais encont rar o lobo.
Nicholas, o Deslizador, foi um mago que as Irmãs do Escuro alteraram para que
ele tivesse habilidades que estavam muito além de qua isquer atributos humanos.
Era considerado que realizar tal conjuração com pessoas não era apenas uma arte
perdida mas também uma coisa impossível porque , entre outras coisas , um
trabalho nefasto como esse requeria o uso não somente de Magia Aditiva, mas
também de Subtrativa. Ainda que algumas raras pessoas tivessem aprendido a
manipulá-la, até o nascimento de Richard não havia qualquer pessoa nascida com
o verdadeiro Dom para a Magia Subtrativa em milhares de anos .
Mas houve aqueles que, embora não tivessem nascido com aquele lado
do Dom, ainda conseguiram obter o uso da Magia Subtrativa . Darken Rahl foi uma
pessoa assim. Diziam que ele havia entregue as puras almas de crianças ao
Guardião do Submundo em troca de indulgências nefastas , incluindo a habilidade
de usar Magia Subtrativa.
Richard supôs que também poderia ter sido através de mórbidas
promessas ao Guardião qu e as primeiras Irmãs do Escuro conseguiram obter o
conhecimento sobre como usar Magia Subtrativa , em seguida passando adiante em
segredo para suas discípulas .
Quando o Palácio dos Profetas caiu , Jagang capturou muitas das Irmãs ,
tanto Irmãs da Luz quanto Irmãs do Escuro, mas o número delas estava reduzindo .
De acordo com o que Richard aprendeu, a habilidade do Andarilho dos Sonhos

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permitia a ele entrar em cada parte da mente de uma pessoa e desse modo a
controlar. Não havia pensamento privado que ele não so ubesse ou feito íntimo que
ele não pudesse testemunhar . Era uma violação interior tão completa que nenhum
canto escondido da mente estava seguro do escrutínio direto do Andarilho dos
Sonhos. E o que era pior , a vítima nem sempre sabia se Jagang estava espreitando
ali, em sua mente, observando seus pensamentos mais secretos .
Nicci dissera que a possessão assombrosa do Andarilho dos Sonhos
deixou algumas das Irmãs loucas . Richard também sabia que através daquela
conexão Jagang podia causar dor excruciante e , se desejasse, a morte. Com tal
controle, o Andarilho dos Sonhos podia obrigar as Irmãs a fazerem qualquer coisa
que ele quisesse.
Através de uma magia antiga criad a por um dos ancestrais de Richard
para proteger seu povo dos Andarilhos dos Sonhos daquela é poca, aqueles que
juraram fidelidade ao Lorde Rahl estavam protegidos. Junto com o resto do seu
Dom, Richard havia herdado aquela ligação e, com um Andarilho dos Sonhos
nascido outra vez no mundo , agora isso protegia aqueles leais a ele impedindo
que Jagang entrasse em suas mentes e os escravizasse. Ainda que uma devoção
formal ao seu Lorde Rahl fosse proferida pelo povo de D'Hara, a proteção que a
ligação fornecia na verdade era invocada através da convicção da pessoa ligada...
através da execução do que p ensavam ser direcionado por sua fidelidade.
Tanto Ann, a Prelada das Irmãs da Luz , e Verna, a mulher que Ann tinha
nomeado como sua sucessora , entraram no acampamento da Ordem Imperial e
tentaram resgatar suas Irmãs . Para as Irmãs cativas foi oferecida a proteção da
ligação... tudo o que elas precisavam fazer era aceitar em em seus corações sua
lealdade a Richard, mas a maioria estava com tanto medo de Jagang que mais de
uma vez recusaram sua chance de liberdade . Nem todos estavam dispostos a
abraçar a liberdade; liberdade exigia não apenas esforço , mas risco. Algumas
pessoas escolheram iludirem a si mesmas e enxergar suas correntes como uma
armadura protetora.
Uma vez Nicci esteve à serviço da Sociedade da Ordem , das Irmãs da
Luz, e então das Irmãs do Escuro, e finalmente de Jagang. Ela não estava mais ;
ao invés disso ela abraçou o amor pela vida de Richard. Sua firme lealdade a ele
e com o que ele acreditava libertou -a das garras do Andarilho dos Sonhos , mas
muito além disso, havia libertado ela do jugo da servidão que suportara durante
toda sua vida. Agora sua vida pertencia somente a ela . Ele pensou que talvez isso
pudesse ter algo a ver com a resoluta nobreza na postura dela .
— Eu não li toda a carta. — Richard admitiu. — Antes que eu
conseguisse ter miná-la, fomos atacados por homens que Nicholas enviou para nos
capturar. Falei sobre isso para você , aconteceu quando Sabar foi morto. Durante
aquela luta a carta caiu no fogo .
Nicci endireitou o corpo. — Queridos espíritos , — ela murmurou. —
pensei que você soubesse.
Richard estava cansado e no final de sua paciência . — Soubesse o quê?
Nicci deixou os braços deslizarem para os lados . Olhou para ele na luz
fraca e soltou um suspiro .
— Jagang encontrou um jeito para que as Irmãs do Escuro que ele
mantém cativas usem suas habilidades para começarem a criar armas usando
pessoas, como foi feito durante a grande guerra . De muitas formas, ele é um
homem brilhante. Ele considera aprender o seu negócio . Coleta livros dos lugares
que saqueia. Eu vi alguns desses li vros. Entre todos os tipos de tomos , ele tem
livros antigos de magia do tempo da Grande Guerra .

58
— O problema é que, embora ele seja um Andarilho dos Sonhos e
brilhante em certas áreas , ele não possui o Dom então sua compreensão dele , do
quê exatamente é o Han e como essa força da vida funciona , é rudimentar na
melhor das hipóteses . Não é fácil para alguém sem magia compreender essas
coisas. Você tem o Dom e assim mesmo nem você realmente o entende ou sabe
muita coisa a respeito de como ele funciona . Mas pelo fato de Jagang não saber
como trabalhar com magia , ele fica exigindo que coisas sejam feitas simplesmente
porque ele sonhou com elas , porque ele é o grande Imperador e quer que as suas
visões sejam realizadas .
Richard esfregou os dedos para frente e para trás na testa , removendo a
sujeira. — Não menospreze ele desse jeito . É possível que ele saiba mais sobre o
que está fazendo do que você imagina .
— O que você quer dizer?
— Posso não saber muito sobre magia , mas uma das coisas que aprendi
é que a magia também pode ser considerada como uma forma de arte . Através da
expressão artística... por falta de um termo melhor... a magia que jamais existiu
pode ser criada.
Nicci ficou olhando fixamente com admirada descrença . — Richard, não
sei onde você pode ter ou vido tal coisa, mas simplesmente não funciona desse
jeito.
— Eu sei, eu sei. Kahlan também acha que eu sou o único com essa ideia .
Tendo crescido entre magos , ela sabe muito sobre magia e no passado ela insistiu
que eu estou errado . Mas não estou. Já fiz i sso. Usar o Dom dessa forma , de
formas novas e originais , me salvou daquilo que, de outra maneira, teriam sido
armadilhas insuperáveis .
Nicci estava olhando para ele daquele jeito analítico dela . De repente
ele percebeu porque . Não foi apenas o que ele fal ou sobre a magia. Estava falando
sobre Kahlan novamente. A mulher que não existia , a mulher com quem ele tinha
sonhado. A expressão de Cara traiu sua preocupação muda .
— De qualquer modo , — disse Richard, retornando ao ponto do assunto.
— só porque Jagang não tem o Dom , isso não significa que ele ainda não possa
sonhar com as coisas... imaginar pesadelos... como Nicholas. É através dessa
original conceitualização que as coisas mais mortais , para as quais pode não haver
qualquer contramedida convencional, são criadas. Suspeito que esse pode ter sido
o método que aqueles magos nos tempos antigos usaram para criar armas usando
pessoas.
Nicci estava tensa com agitação contida .
— Richard, a magia simplesmente não funciona assim . Você não pode
sonhar com seja lá o que você queira ter , desejar o que você quer . A magia
funciona através das leis de sua natureza , exatamente como todas as outras coisas
no mundo. O capricho não vai obter tábuas de árvores ; você deve cortar a árvore
na forma desejada . Se você quer uma cas a, não pode desejar que tijolos e tábuas
empilhem-se sozinhos criando uma moradia ; tem que usar as suas mãos para
construir a estrutura.
Richard inclinou em direção a feiticeira . — Sim, mas é a imaginação
humana que torna essas ações não apenas possíveis , mas efetivas . A maioria dos
construtores pensam em termos de casas ou celeiros ; eles fazem que foi feito
antes simplesmente porque isso é o que era feito . Na maior parte do tempo eles
não querem pensar , então nunca visu alizam algo mais. Eles limitam-se na
repetição e como desculpa insistem que isso deve ser feito desse jeito porque
sempre foi feito desse jeito . A maioria da magia é assim... os dotados

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simplesmente repetindo o que já foi feito , acreditando que isso deve ser feito
desse jeito sem mais justificativa do que o fato disso sempre ter sido feito desse
jeito.
— Antes que um grande Palácio possa ser construído , primeiro ele tem
que ser imaginado por alguém audacioso o bastante para ter uma visão daquilo
que poderia ser . Um Palácio não vai surgir esp ontaneamente para a surpresa de
todos enquanto os homens estão tentando construir um celeiro . Somente o ato
consciente da conceitualização pode criar a realidade.
— Para que esse ato de imaginação criativa faça surgir a existência de
um Palácio , ele não pode violar qualquer uma das leis da natureza das coisas que
são usadas. Caso contrário , a pessoa que imagina um grande Palácio com o
objetivo de vê -lo construído deve estar intimamente consciente da natureza de
todas as coisas que ele usará na construção . Se não estiver, o Palácio cairá. Ele
deve conhecer a natureza dos materiais melhor do que o homem que os utiliza
para construir um simples celeiro . Não é uma questão de desejar que algo
transcenda as leis da natureza , mas uma questão de pensamento original baseado
nessas leis da natureza.
— Eu cresci na floresta ao redor de Hartland, nunca tendo visto um
Palácio. — Richard abriu os braços, como que para mostrar a ela as coisas que
tinha visto desde o dia em que deixou sua terra natal . — Até que eu visse o castelo
em Tamarang, a Fortaleza do Mago e o Palácio das Confessoras em Aydindril, ou
o Palácio do Povo em D'Hara, nunca imaginei que lugares assim existissem... ou
ao menos que eles pudessem existir . Eles estavam além do escopo do meu
pensamento na época .
— E assim mesmo, ainda que eu jamais imaginasse que lugares assim
pudessem ser construídos , outros homens pensaram neles , e eles foram
construídos. Acho que uma das importantes funções das grandes criações é que
elas inspiram as pessoas .
Nicci parecia não a penas estar envolvida pela explicação dele , mas
também considerando suas palavras com sério interesse . — Então, está querendo
dizer que acha que uma forma de arte também pode moldar coisas importantes
como a função da magia?
Richard sorriu. — Nicci, você não conseguiu captar a importância da
vida até que eu esculpi a estátua em Altur'Rang. Quando viu o conceito em uma
forma tangível você finalmente foi capaz de juntar todas as coisas que aprendera
durante sua vida e finalmente captar o seu significado . Uma criação artística tocou
sua alma. Era isso que eu estava querendo dizer sobre uma função importante de
grandes trabalhos ser o fato de que eles inspiram as pessoas .
— Porque isso inspirou você com a beleza da vida , com a nobreza do
homem, você agiu para tornar-se livre... algo que você nunca pensou ser possível .
Porque o povo de Altur'Rang também conseguiu ver naquela estátua o que poderia
e deveria ser, eles foram estimulados a enfrentar a tirania que esmagava suas
vidas. Isso não foi conseguido copiando outras estátuas , fazendo o que era aceito
como normal para estátuas no Mundo Antigo ao mostrar o homem como fraco e
ineficaz, mas através de uma ideia de beleza , uma visão de nobreza , que deu forma
para aquilo que eu esculpi .
— Eu não violei a natureza do mármore que usei , mas ao invés disso
usei a natureza da rocha para realizar algo diferente do que os outros
rotineiramente faziam com ela . Estudei as propriedades da rocha , aprendi como
trabalhá-la, e busquei entender o que mais poderia fazer com ela para alcançar
meu objetivo. Pedi a Victor para fazer as ferramentas mais finas que permitiriam

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fazer o trabalho da maneira que ele precisava ser feito . Desse jeito eu trouxe à
realidade o que eu queria criar , o que nunca tinha sido feito .
— Acredito que a magi a pode trabalhar desse jeito também . Acredito
que ideias originais assim tiveram seu papel na forma como um dia foram criadas
armas a partir de pessoas . Afinal de contas, quando esse tipo de armas foram
criadas, eram eficazes em grande parte porque eram originais, porque jamais
tinham sido pensadas ou vistas . Em muitas instâncias , o outro lado da guerra então
teve que trabalhar para criar coisas inteiramente novas na magia que eram capazes
de combater essas armas . Em muitos casos eles foram capazes de tor nar a arma
obsoleta ao criar uma contra magia, e então alguém do outro lado imediatamente
começou a trabalhar pensando em algum outro novo horror . Se usar magia
criativamente não fosse possível , então como os magos da antiguidade criaram
armas com ela? Você não pode dizer que eles simplesmente obtiveram o
conhecimento de um livro , ou de experiência passada ; de onde e como as primeiras
armas desse tipo surgiram se não de uma ideia original ? Alguém teve que usar a
magia de forma criativa .
— Acho que Jagang está fazendo exatamente isso outra vez com a magia .
Ele estudou uma parte do que foi feito na Grande Guerra , quais armas foram
criadas, e aprendeu com isso . Às vezes ele pode fazer com que aquilo que um dia
foi criado seja criado novamente , como no caso de Nicholas, mas em outras
instâncias acredito que ele imagina o que nunca existiu , o que vai além do que foi
feito antes , e faz com que isso seja trazido à realidade por aqueles que sabem
como usar a magia para construir o que ele deseja .
— Nesses atos de criação o aspecto mais notável não é o trabalho , mas
a ideia e a visão que torna o trabalho efetivo , exatamente como carpinteiros e
pedreiros que constroem casas e celeiros podem ser empregados para construir um
Palácio. Não era tanto o trabalho deles que era extraordinário na criação de
Palácios, mas o ato da visão e da criação que os direcionava .
Nicci assentiu levemente em concentração enquanto pesava as palavras
dele. — Posso ver que a sua noção não é mesmo a ideia louca que eu imaginava
no início. Essa é uma linha de raciocínio que eu nunca encontrei . Terei que pensar
a respeito das possibilidades . Você pode ser o primeiro a realmente entender o
mecanismo por trás do esquema de Jagang... ou, para dizer a verdade, por trás das
criações de magos nos tempo s antigos. Isso explicaria muitas coisas que me
incomodaram durante anos .
As palavras de Nicci foram pronunciadas com intelectual respeito diante
de um conceito novo para ela , mas um conceito que ela capt ou totalmente.
Ninguém que havia conversado com Richard sobre magia tinha tratado suas ideias
com uma compreensão tão perceptiva assim . Ele sentiu como se essa fosse a
primeira vez que alguém realmente entendeu o que ele viu .
— Bem, — disse ele. — eu tive que lidar com a criação de Jagang. Como
eu disse, Nicholas deu bastante trabalho .
Na luz fraca, Nicci estudou o rosto dele durante um momento .
— Richard, de acordo com o que eu consegui descobrir , — ela falou com
voz suave. — na verdade Nicholas não era o objetivo de Jagang. Nicholas foi
meramente um treino .
— Treino! — Richard encostou de volta sua cabeça contra a parede . —
Eu não sei , Nicci. Não tenho certeza disso . Nicholas, o Deslizador, foi uma
criação formidável e uma criatura terrível . Você não sabe os problemas que ele
nos causou.
Nicci balançou os o mbros. — Você derrotou ele.

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Richard piscou surpreso para ela . — Você faz parecer como se ele fosse
apenas uma depressão na estrada . Não era. Estou dizendo , ele foi uma criação
assustadora que quase nos matou .
Nicci balançou a cabeça lentamente . — E eu estou dizendo a você,
independente do quanto ele pode ter sido formidável , Nicholas não era aquilo
atrás do que Jagang estava. Você disse para não subestimar o Andarilho dos
Sonhos... agora não faça a mesma coisa . Nunca pensei que Nicholas fosse páreo
para você.
— O que você diz sobre o processo de imaginação ao criar coisas novas
na verdade faz sentido , especial mente nesse caso. Isso pode até explicar algumas
coisas. Pelo pouco que consegui aprender , acredito que desde o início Nicholas
era destinado apenas a expandir as habilidades das Irmãs que Jagang escolheu
para a tarefa de criar armas . Nicholas não era o objetivo de Jagang, mas apenas
um treino no caminho para esse objetivo .
— Com a crescente redução do número de Irmãs dele esse tre ino ganhou
uma nova urgência. Entretanto, aparentemente ele tem Irmãs suficientes para o
trabalho de criar suas armas .
Richard sentiu calafrios em seus braços quando começava a imaginar
todas as implicações daquilo que Nicci estava falando .
— Está querendo dizer que ao criar Nicholas, foi como se Jagang
estivesse apenas fazendo seus carpinteiros construírem uma casa como treino
antes de mandar eles construírem algo muito mais complexo , como um Palácio?
Nicci olhou para ele e sorriu . — Sim, exatamente isso .
— Mas ele enviou Nicholas com tropas para governar uma terra assim
como para nos capturar.
— Uma simples questão de conveniência . Jagang plantou em Nicholas
uma necessidade de caçar você, mas apenas como parte do teste para seus
objetivos maiores. Ele realmente não esperava que o Deslizador fosse capaz de
realizar as ambições transcendentes dele . O Imperador pode odiar você por
atrapalhar o progresso dele na conquista do Mundo Novo , pode considerá -lo
indigno como oponente, e pode julgá-lo como um pagão imoral que merece apenas
a morte, mas ele é suficientemente esperto para dar crédito a você por sua
habilidade. É como quando você disse que enviou aquele soldado capturado para
assassinar Jagang. Realmente não esperava que aquele soldado solitário tivesse
sucesso na difícil tarefa de assassinar um Imperador bem guardado , mas o soldado
não tinha outro valor para você e uma vez que pensou que havia ao menos uma
chance de que ele poderia conseguir realizar algo , poderia muito bem enviá -lo na
missão enquanto t rabalhava em ideias muito melhores nas quais esperava ter uma
chance mais razoável de sucesso . E se o soldado fosse morto , então estava tudo
bem para você porque ele simplesmente recebera o que merecia de qualquer jeito .
— Nicholas era assim. Ele foi uma criação conjurada, treino durante o
caminho para algo muito superior . No esquema das coisas , Nicholas não era tão
valioso assim para Jagang, então Jagang, ao invés de mandar matá-lo, direcionou
ele. Se Nicholas tivesse sucesso, então Jagang estaria na frent e dos dois, e se você
o matasse, então faria um favor para ele . — Richard passou a mão sobre o cabelo .
Ele sentiu -se desorientado com as implicações . Havia criticado Nicci por não estar
disposta a enxergar o quadro mais amplo , e aqui estava ele justamente sendo
culpado de fazer a mesma coisa .
— Bem, então... — ele perguntou a ela. — o quê você acha que Jagang
pode conjurar que é pior do que Nicholas, o Deslizador?
O som das cigarras pareceu opressivo , invasivo, nesse momento, como

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se elas fossem os inimigos cercando ele.
— Acredito que ele trabalhou adiantado e já criou essa obra -prima. —
disse Nicci com tranquila finalidade . Ela colocou o cobertor em volta dos ombros
e segurou-o bem perto da garganta . — Acho que foi isso que os homens lá na
floresta enfrent aram.
Richard observou a expressão dela na quase escuridão . — O que sabe a
respeito do que Jagang tem feito?
— Não muita coisa , — Nicci admitiu. — apenas algumas palavras
sussurradas quando uma das minhas antigas colegas Irmãs estava partindo em uma
jornada.
— Uma jornada?
— Para o mundo dos mortos .
Pelo tom de voz dela e o modo como olhava para o vazio , Richard não
quis perguntar o que tinha definido os planos de viagem da mulher . — Então, o
que ela falou para você ?
Nicci soltou um suspiro de cansaço . — Que Jagang, estivera criando
coisas a partir das vidas de cativos e voluntários . Alguns desses jovens magos
realmente pensam que estão sacrificando -se em prol de um bem maior . — Nicci
balançou a cabeça diante dessa triste ilusão . — A Irmã foi quem disse que
Nicholas era apenas um degrau para os verdadeiros e nobres fins de Sua
Excelência. — Nicci levantou os olhos outra vez para certificar -se de que Richard
estava prestando atenção . — Ela disse que Jagang estava prestes a criar uma
criatura similar a uma que ele encontrara em antigas escrituras , mas muito melhor,
muito mais mortal , e invencível .
Os cabelos na nuca de Richard ficaram eriçados. — Uma criatura? Que
tipo de criatura?
— Uma besta. Uma besta invencível .
Richard engoliu em seco com o som sinistro da palavra. — O que essa
criatura faz? Você conseguiu descobrir ? Qual é a natureza dela?
Por alguma razão, ele simplesmente não conseguia usar a mesma palavra
em voz alta nesse momento , como se falar isso pudesse fazer ela surgir da noite
ao redor.
Os olhos preocupados de Nicci desviaram . — Enquanto a Irmã deslizava
dentro dos braços da morte , ela sorriu como o próprio Guardião em uma pilhagem
de almas, e falou. “Assim que ele usar seu poder , a besta finalmente conhecerá
Richard Rahl. Então ela o encontrará, e o matará. A vida dele, como a minha,
finalmente está chegando ao fim .
Richard piscou. — Ela falou mais alguma coisa ?
Nicci balançou a cabeça . — Naquele ponto, ela convulsionou na agonia
da morte. A sala escureceu quando o Guardião pegou a alm a dela em pagamento
pelas barganhas que um dia ela firmou .
— A única coisa que está me incomodando é como essa criatura nos
encontrou. Assim mesmo, não acho que a situação seja tão desesperadora quanto
pode parecer. Realmente não há qualquer evidência conc lusiva para nos fazer
acreditar que foi mesmo essa besta que atacou os homens . Afinal de contas , você
não usou o seu poder, então não poderia ter qualquer jeito para que a besta de
Jagang encontrasse você.
Richard olhou para suas botas . — Quando os soldados atacaram, — ele
disse em voz baixa enquanto esfregava um dedo pela borda da sola de couro. —
usei meu Dom para desviar as flechas . Não fiz isso muito bem com a última .
— Lorde Rahl, — falou Cara. — não acho que isso seja verdade . Acho

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que usou a sua espada para desviar as flechas .
— Você não estava lá no momento então não viu o que estava
acontecendo , — Richard disse enquanto balançava a cabeça . — eu estava usando
minha espada nos soldados ; não podia usá-la para desviar as dúzias de flechas
também. Desviei as flechas com o meu Dom .
Agora Nicci estava sentada ereta . — Usou o seu Dom? Como você o
invocou?
Richard balançou os ombros . Ele gostaria de saber mais a respeito do
que tinha feito. — Através da necessidade, eu acho. Eu não sabia que acabaria
sendo responsável...
Ela tocou o braço dele gentilmente . — Não culpe a si mesmo tolamente .
Você não tinha como saber . Se não tivesse feito o que fez você teria sido morto .
Estava agindo para salvar a sua vida . Não sabia nada sobre a besta . Porém, mais
do que isso, você pode não ser inteiramente responsável .
Richard fez uma careta para ela . — O que você quer dizer?
Nicci recostou de volta contra a parede de rocha . — Temo que eu tenha
contribuído para que ela nos encontrasse .
— Você? Mas como?
— Usei Magia Subtrativa para me livrar do seu sangue, para poder curá -
lo. Ainda que a Irmã não tenha falado nada específico que eu pudesse considerar
nesse sentido, continuo com a inquietante sensação de que essa criatura de alguma
forma pode estar conectada com o Submundo. Se isso for verdade, então quando
eu me livrei do seu sangue com o uso da Magia Subtrativa posso ter
inadvertidamente dado a ela uma prova do seu sangue , por assim dizer.
— Você fez a coisa certa. — disse Cara. — Fez a única coisa que podia
fazer. Deixar Lorde Rahl morrer teria sido entregar a Jagang o que ele buscava.
Nicci assentiu agradecendo as palavras de Cara.
Richard soltou o suspiro que estava segurando. — O que mais pode me
dizer sobre essa coisa?
— Nada de muita importância , eu temo. A Irmã diss e a mim que as Irmãs
que estavam experimentando a criação de armas a partir de pessoas criaram
Nicholas somente para checar alguns dos detalhes preliminares antes de seguirem
adiante com seu importante trabalho . Mesmo assim, algumas delas morreram na
tarefa de conjurar o Deslizador e , com a quantidade que já morreu , Jagang está
chegando ao ponto onde pode dispor de poucas . Ele tem usado aquelas que ainda
possui, enquanto ainda tem o bastante , para alcançar seu objetivo . Aparentemente,
criar a besta foi vast amente mais complexo e difícil do que criar um Deslizador ,
mas dizem que os resultados fizeram valer à pena . Suspeito que durante o caminho
ele pode ter ordenado que atalhos fossem tomados , atalhos que envolvem o
Submundo.
— Se vamos lutar com essa coisa , precisamos descobrir tudo que
pudermos sobre essa besta . E precisamos descobrir antes que ela nos alcance . Por
causa daquilo que aconteceu com os homens , acho que não temos muito tempo .
Richard sabia que o que ela queria dizer , mas não tinha pronunciado , era
que desejava que ele esquecesse aquilo que ela considerava como sonhos sem
sentido a respeito de Kahlan e direcionasse a sua concentração e esforços em
direção a essa perigosa criação de Jagang.
— Tenho que encontrar Kahlan. — ele falou em um tom suave destinado
a reforçar sua convicção .
— Não pode fazer qualquer coisa se estiver morto. — disse Nicci.
Richard levantou o boldrié sobre a cabeça . Ele descansou a bainha polida

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que guardava a Espada da Verdade contra a rocha.
— Olhe, nem temos certeza de que seja lá o que matou aqueles homens
realmente é essa besta da qual você está falando .
— O que você quer dizer? — Nicci perguntou.
— Bem, se ela pode me encontrar quando eu uso o meu Dom , então
porque atacou os homens ? Certamente, esse foi o lugar onde usei minha
habilidade, mas o ataque foi três dias depois do fato . Se ela supostamente saberia
a meu respeito depois que usei o meu poder então porque atacar os homens ?
— Talvez apenas tenha pensado que você estava entre eles. — Cara
sugeriu.
Nicci assentiu. — Cara pode estar certa .
— Talvez. — falou Richard. — Mas se ela me reconheceu quando usei
o meu Dom e além disso você deu a ela uma prova do meu sangue , então ela não
saberia que eu não estava entre os homens ?
Nicci balançou os ombros . — Não sei. Poderia muito ser que ao usar o
seu Dom você apenas atraiu ela para uma área geral , mas quando parou de usar
sua habilidade então a besta ficou cega em relação a você , por assim dizer. Talvez
estivesse tão furiosa por ter perdido você e entrou em um frenesi matando todos
que estavam ali. Se isso for verdade, então eu suspeitaria que ela precisa que você
use o seu Dom novamente , agora que está próxima, para finalmente conseguir
pegá-lo.
— Mas ela disse que assim que eu usasse o meu Dom ela me conheceria .
Para mim isso não parece dizer que ela precise que eu use ele outra vez para que
ela me encontre.
— Talvez ela realmente conheça você , — Nicci disse. — mas talvez ela
ainda precise encontrá -lo. Uma vez que ela conhece você , agora, talvez tudo que
a besta precise é que você use o seu Dom mais uma vez para que ela possa atacar .
Isso tem uma espécie de lógica assustadora . — Acho que é bom que eu
não dependa do meu Dom .
— É melhor certificar-se de permitir que protejamos você , — falou Cara.
— acho que seria melhor não fazer qualquer coisa que possa obrigá-lo a usar sua
magia mesmo sem querer .
— Acho que concordo com Cara. — disse Nicci. — Não tenho certeza
sobre a ter sentido uma prova do seu sangue , mas a única coisa que sabemos com
certeza é aquilo que a Irmã falou para mim... que se você usar o seu Dom ela o
encontrará. Enquanto a besta estiver caçando você , e até conseguirmos aprender
mais a respeito dela e neutralizar a ameaça , você não deve usar o seu Dom em
hipótese alguma.
Richard con cordou assentindo. Ele não sabia se aquilo era possível .
Ainda que não soubesse como invocar o seu Dom , também não tinha certeza de
que sabia como evitar que ele viesse à tona . Ele era despertado pela fúria e
respondia a um certo tipo de necessidade . Ele não tinha consciência das condições
específicas que invocavam a sua habilidade ; isso simplesmente acontecia . Embora
a teoria deles sobre não usar o seu Dom fizesse sentido , ele não tinha certeza se
realmente poderia ter controle suficiente para evitá -lo se as condições fizessem
com que ele ganhasse vida .
Outro pensamento assustador ocorreu -lhe. Era possível que a besta o
tivesse encontrado , e soubesse precisamente onde ele estava , e só tivesse morto
os homens por causa do prazer pelo sangue . Pelo que ele sabi a, a besta podia estar
na floresta observando , usando o ruído das cigarras para cobrir o som de seus
passos enquanto aproximava -se do abrigo deles.

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Na luz fraca Nicci observou ele. Enquanto ele ponderava as
possibilidades sombrias , ela esticou o braço outr a vez e sentiu a testa dele .
Afastando a mão , ela disse. — É melhor descansarmos um pouco . Você
está tremendo de frio . Temo que em sua condição você possa ter febre . Deite-se.
Todos teremos que manter uns aos outros aquecidos . Mas primeiro, você precisa
ficar seco ou jamais ficará aquecido .
Cara inclinou-se passando por Richard, em direção a Nicci. — Como
acha que você pode fazer ele ficar seco sem uma fogueira ?
Nicci gesticulou. — Vocês dois, deitem.
Richard deitou; Cara obedeceu hesitante. Nicci curvou-se sobre eles,
colocando as mãos logo acima das suas cabeças . Richard sentiu o caloroso toque
da magi a, mas não uma sensação desconfortável como da última vez . Ele
conseguiu ver o suave brilho sobre Cara também. Ele pensou em como era incrível
que Nicci confiasse em Cara o bastante para usar magia nela . Usar magi a em uma
Mord-Sith dava a ela a oportunidade de capturar aquela magia para controlar a
pessoa dotada. Richard achou mais in crível ainda que Cara confiasse o bastante
em Nicci para permitir que usasse magia nela. Mord-Sith não gostavam de magia.
As mãos de Nicci moveram-se descendo lentamente, pouco acima do s
corpos deles. No momento em que el a chegou até as botas de Richard, ele percebeu
que sentia-se seco. Ele passou a mão na camisa , então nas calças, e descobriu que
ambas estavam secas .
— Que tal isso? — Nicci perguntou.
Cara estava fazendo uma careta . — Eu preferia estar molhada .
Nicci ergueu uma sobrancelha. — Posso providenciar isso , se você
desejar.
Cara colocou as mãos embaixo dos braços p ara aquecê-las e permaneceu
em silêncio . Satisfeita que Richard estivesse contente , Nicci fez a mesma coisa
consigo, movendo as duas mãos descendo pelo vestido como se estivesse
expulsando lentamente a água .
Quanto terminou , ela estava tremendo e seus dentes estavam batendo ,
mas ela e sua roupa negra estavam secas .
Preocupado que ela pudesse desmaiar pela forma como ela balançava ,
Richard sentou e segurou o braço dela gentilmente. — Você está bem?
— Só estou exausta. — ela admitiu. — Não tenho dormido m uito faz
dias, além do esforço de curá -lo e do cansaço da viagem que fizemos depois do
ataque hoje. Temo que isso tudo esteja pesando sobre mim . Essa pequena magia
consumiu a força e o calor que me rest avam. Só preciso dormir um pouco , apenas
isso. Mas mesmo que não perceba , Richard, você precisa ainda mais disso . Agora
deite-se e durma. Por favor. Se todos deitarmos bem perto podemos manter uns
aos outros aquecidos .
Seco, mas cansado e ainda com frio , Richard enrolou-se sobre o seu
colchonete. Ela estava certa; ele precisava descansar. Não poderia conseguir ajuda
para Kahlan se não estivesse descansado .
Sem hesitar, Cara encostou do lado esquerdo dele para deixá -lo
aquecido. Nicci encostou do outro lado . O calor era um alívio . Não tinha
percebido o quanto estava com frio até que os três estivessem bem próximos . Pela
forma como sentia-se ele sabia que Nicci tinha razão , que ele ainda não estava
completamente bem. Pelo menos ele só precisava descansar e não de magia .
— Você acha que essa besta poderia ter levado Kahlan para chegar até
mim? — ele perguntou dentro do abrigo escuro e tranquilo .
Nicci levou um momento para responder . — Uma criatura como essa não

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precisa de qualquer método perverso para chegar até você , Richard. De acordo
com o que a Irmã falou , e com o que temo que eu posso ter feito , sem falar no
fato de você ter usado o seu Dom , a besta será capaz de encontrá -lo. Considerando
todos aqueles homens mortos lá atrás , acho que ela já encontrou .
Richard sentiu o peso da culpa cair sobre ele . Se não fosse por causa
dele, aqueles homens estariam vivos .
Sentiu dificuldade para engolir o nó em sua garganta . Ele gostaria que
houvesse algum jeito de desfazer o que estava feito , alguma forma de devolver a
eles suas vidas e seus futuros .
— Lorde Rahl? — Cara sussurrou. — Eu gostaria de fazer uma confissão ,
se você jurar nunca repeti-la.
Richard nunca tinha ouvido ela falar uma coisa tão estranha . — Está
certo. O que você quer confessar ?
A resposta dela demorou algum tempo para surgir, e então ela foi tão
suave que ele não teria conseguido ouvir se ela não estivesse tão próxima . —
Estou com medo.
Quase agindo contra seu bom senso , Richard passou o braço em volt a
dos ombros dela e abraçou -a. — Não fique com medo. Essa coisa está vindo atrás
de mim, não de você.
Ela ergueu a cabeça e olhou séria para ele . — É por isso que estou com
medo. Depois de ver o que aquilo fez com aqueles homens , tenho medo que esteja
vindo atrás de você e eu não possa fazer algo para protegê -lo.
— Oh. — disse Richard. — Bem, se isso faz você sentir -se melhor, eu
também estou com medo .
Cara encostou novamente a cabeça no ombro dele , contente em ficar sob
o conforto protetor do braço dele . De alguma forma o barulho das cigarras ao
redor fazia ele sentir -se mais vulnerável . O ciclo de dezessete anos dos insetos
era inevitável , inexorável, impossível de impedir . E assim também era a besta de
Jagang. Como ele poderia esconder -se de uma coisa assim ?
— Então, — Nicci perguntou, aparentemente tentando suavizar o clima
sombrio no abrigo. — onde você conheceu essa mulher dos seus sonhos ?
Richard não sabia se ela estava tentando suavizar a pergunta com um
pouco de humor, ou se ela estava sendo sarcástica . Se ele não a conhecesse bem
teria pensado que aquilo soara c omo ciúme.
Ele ficou olhando fixamente dentro da escuridão enquanto pensava
naquele dia. — Eu estava na floresta, procurando pistas sobre quem havia
assassinado meu pai... o homem que eu cresci pensando que era meu pai , George
Cypher, o homem que me criou . Foi quando avistei Kahlan seguindo por uma
trilha ao redor do Lago Trunt.
— Quatro homens a estavam seguindo . Eram assassinos enviados por
Darken Rahl para matá-la. Ele já havia morto todas as outras Confessoras . Ela é
a última.
— Então você resgatou -a? — perguntou Cara.
— Ajudei ela. Juntos conseguimos matar os assassinos .
— Ela veio para Westland procurando um mago perdido fazia muito
tempo. Acabou que Zedd era o grande mago atrás do qual ela foi enviada... ele
ainda ocupa a posição de Primeiro Mago , ainda que ele tenha desistido de
Midlands e partido para Westland antes que eu tivesse nascido . O tempo todo
enquanto eu crescia eu nunca soube que Zedd era um mago, ou meu avô. Só
conhecia ele como o meu melhor amigo no mundo .
Ele podia sentir Nicci observando-o, e sentir a suave, calorosa ,

67
respiração dela contra o lado do seu rosto . — Porque ela procurava esse grande
mago?
— Darken Rahl havia ativado as Caixas de Orden . Esse era o pior
pesadelo de todas as pessoas . — Richard lembrou claramente do seu pavor ao
ouvir aquela notícia. — Ele tinha que ser detido antes que abrisse a caixa certa .
Kahlan foi enviada para pedir a esse Primeiro Mago desaparecido que nomeasse
um Seeker. Após aquele primeiro dia em que avistei ela perto do Lago Trunt,
minha vida n unca mais foi a mesma.
Em meio ao silêncio , Cara perguntou. — Então, foi amor à primeira
vista?
Elas estavam tentando animá -lo, tentando afastar os pensamentos dele
sobre os homens que foram assassinados por uma besta enviada por Jagang para
matá-lo, tentando desviar a mente dele do monstro que agora o caçava .
Ocorreu a ele o pensamento de que talvez em algum lugar na floresta ao
redor do lugar onde eles acamparam , em algum lugar em um local não descoberto
onde ele não tinha procurado , jaziam os restos de Kahlan.
Tal pensamento era tão doloroso que pareceu como se isso estivesse
esmagando o coração dele .
Richard não levantou a mão para enxugar a lágrima que desceu por sua
bochecha. Mas com um toque gentil , Nicci o fez. A mão dela acariciou a bochecha
dele brevemente, suavemente.
— Acho que seria melhor tentarmos dormir um pouco . — disse ele.
Nicci afastou a mão e encostou sua cabeça contra o braço dele .
Na escuridão, Richard parecia não conseguir fechar seus olhos ardentes .
Em pouco tempo ele conseguiu ouvir a respiração cadenciada de Cara quando ela
rendeu-se ao sono. Nicci pressionou a bochecha suavemente contra o ombro dele
enquanto aninhava -se no calor compartilhado deles .
— Nicci? — ele sussurrou .
— Sim?
— Que tipo de tortura Jagang use nos prisioneiros?
Ele conseguiu sentir Nicci inspirar profundamente e soltar lentamente .
— Richard, não vou responder essa pergunta . Tenho certeza de que você está
ciente de que Jagang é um homem que precisa matar .
Richard tinha que fazer a pergunta. Ficou aliviado que Nicci fosse gentil
o bastante para não respondê -la.
— Quando Zedd entregou-me a espada, eu disse a ele que não seria um
assassino . Desde então eu passei a entender o valor do princípio moral de
preservar a vida através da ta refa de matar homens malignos . Gostaria que repelir
a Ordem Imperial para fora do Mundo Novo fosse tão simples quanto matar
Jagang.
— Não posso dizer a você quantas vezes desejei ter morto ele quando
tive chance, mesmo que você esteja certa a respeito disso não acabar com a guerra .
Queria poder parar de pensar em todas as oportunidades que perdi . Queria
conseguir parar de pensar em todas as coisas que devia ter feito .
Richard passou o braço ao redor dela e abraçou os seus ombros trêmulos .
Ele sentiu os músculos dela relaxarem lentamente . Sua respiração
finalmente reduziu a velocidade enquanto ela mergulhava no sono .
Se queria encontrar Kahlan, Richard precisava ter o descanso de que
precisava. Ele fechou os olhos quando outra lágrima escapava . Sentia tanta falta
dela.
Seus pensamentos permaneceram naquele primeiro dia em que viu

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Kahlan no macio vestido branco de seda que, apenas muito mais tarde, ele
descobriu que a destacava como a Madre Confessora. Lembrou do modo como ele
destacava as formas dela, do modo como ele a fazia parecer tão nobre . Lembrou
do modo como o longo cabelo dela descia em cascata em volta de seus ombros ,
emoldurando-a na luz da floresta. Lembrou de olhar dentro dos lindos olhos
verdes dela e enxergar o brilho da inteligência olhando de volta para ele. Lembrou
de ter sentido, a partir daquele primeiro instante , daquele primeiro olhar trocado ,
como se ele sempre a tivesse conhecido .
Falou para ela que havia quatro homens seguindo -a. Ela perguntou , —
Você escolhe me ajudar ?
Antes que sua mente pudesse formar um pensamento , ouviu a si mesmo
dizendo, — Sim.
Jamais ele arrependera -se mesmo que por um instante de ter falado sim .
Ela precisava de ajuda agora .
Seus últimos pensamentos quando entrava em um sono atormentado
foram em Kahlan.

69
C A P Í T U L O 9

Ann pendurou apressadamente a simples lanterna no gancho do lado de


fora da porta. Ela concentrou seu Han em um botão de calor e ele desabrochou em
uma pequena chama no ar acima de sua palma virada para cima . Enquanto
caminhava dentro da pequena sala, ela lançou suavemente a pequena chama até o
pavio de uma vela sobre a mesa . Quando a vela ganhou vida ela fechou a porta .
Fazia um bom tempo desde que recebera uma mensagem em seu Livro
de Jornada. Estava impaciente para checá-la.
A sala era pequena. As paredes engessadas não tinham janela. Uma
pequena mesa e um a cadeira de madeira com encosto reto que ela pedira para
serem colocadas ali quase preenchiam o espaço que não era usado pela cama .
Além do seu uso como um quarto , a sala também fornecia um santuário adequado ,
um lugar onde Ann podia ficar sozinha, onde podia pensar, refletir, e rezar. Ela
também fornecia privacidade para quando usava o Livro de Jornada .
Um pequeno prato com queijo e frutas cortadas aguardava por ela sobre
a mesa. Provavelmente Jennsen havia deixado o prato antes de sair com Tom para
observar a lua.
Não importava o quanto Ann ficava idosa, invariavelmente causava -lhe
uma sensação de calor interior quando via o brilho do amor nos olhos de um casal .
Eles sempre pareciam achar que faziam um bom trabalho em esconder seus
sentimentos dos outros , mas, tão óbvio quanto isso geralmente ficava , eles podiam
muito bem estar pintados de púrpura .
Às vezes, Ann se arrependia isoladamente por jamais ter desfrutado de
um período como esse com N athan, um tempo para satisfazer uma completa,
comum, atração extravagante . Porém, expressões de sentimentos , eram
consideradas inadequadas para a Prelada .
Ann fez uma pausa. Ficou imaginando quando exatamente passou a ter
essa crença. Quando era Noviça não teve aulas nas quais diziam especificamente ,
“Se quiser ser nomeada Prelada , sempre deve esconder os seus sentimentos ”. A
não ser a desaprovação , é claro. Uma boa Prelada, sem usar mais do que um olhar ,
devia ser capaz de fazer os joe lhos das pessoas tremerem incontrolavelmente .
Também não sabia onde aprendera isso , mas sempre pareceu ter o jeito .
Talvez o tempo todo fosse o plano do Criador que ela virasse Prelada e
Ele deu a ela a disposição apropriada para o trabalho . Como ela senti a falta disso
às vezes.
Mais do que isso , entretanto, ela nunca permitira -se considerar de forma
consciente os seus sentimentos em relação a Nathan.
Ele era um Profeta. Quando ela era a Prelada das Irmãs da Luz e
autoridade soberana no Palácio ; dos Profetas, ele foi prisioneiro dela... ainda que
elas declarassem isso em termos menos rudes , tentando colocar uma aparência
mais humana no fato, mas não havia sido menos complicado . Sempre existiu a
crença de que Profetas eram perigosos demais para terem permissã o de andarem
livres no mundo, entre as pessoas normais .
Ao confinarem ele desde uma idade jovem elas negaram a existência do
livre arbítrio , determinando previamente que ele causaria danos mesmo que jamais
tivesse recebido chance de fazer uma escolha consciente em suas próprias ações .
Elas o consideraram culpado sem o cometimento de um crime . Foi uma crença

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irracional que Ann abraçou sem pensar durante a maior parte de sua vida . Às
vezes, não gostava de considerar o que isso dizia a respeito dela .
Agora que ela e Nathan estavam idosos e encontravam -se juntos,
independente do quão improvável isso pudesse ter parecido um dia , seu
relacionamento não poderia ser descrito como atração extravagante . Na verdade,
ela passara a maior parte de sua vida suportando o desgosto com as bobagens do
homem e providenciando que ele jamais escapasse de sua coleira e de seu
confinamento no Palácio , fomentando assim o comportamento intragável dele ,
desse modo causando a ira das Irmãs , o que fazia ele ficar ainda mais
indisciplinado, girando e girando em um círculo vicioso .
Não importava a confusão que ele havia sido capaz de iniciar ,
aparentemente de forma proposital , sempre houve alguma coisa no homem que
fazia Ann sorrir, internamente. Às vezes ele era como uma criança . Uma criança
que tinha quase mil anos de idade . Uma criança que era um Mago . Uma criança
que carregava o Dom para a profecia . Um Profeta só precisava abrir sua boca ,
apenas declarar profecia para massas não educadas , e isso causaria tumultos na
melhor das hipóteses, e guerra na pior . Pelo menos, este sempre foi o temor .
Ainda que estivesse com fome , Ann empurrou o prato com queijo e frutas
para o lado. Isso poderia esperar. Seu coração disparava com a ansiedade sobre o
que uma nova mensagem de Verna poderia trazer.
Ann sentou e arrastou sua cadeira para mais perto da mesa simples de
madeira. Pegou o pequeno Livro de Jornada coberto por couro e folheou as páginas
até que avistou novamente as inscrições . A sala era pequena e escura . Ela forçou
os olhos para ajudar a distinguir melhor as palavras . Finalmente ela precisou
aproximar um pouco mais a grossa vela.

— Minha querida Ann, — começava a mensagem de Verna escrita no


livro. — espero que esta mensagem encontre você e o Profeta bem . Sei que você
falou que Nathan estava mostrando ser uma contribuição valiosa para nossa
causa, mas ainda fico preocupada por você estar com esse homem . Espero que a
cooperação dele não tenha cessado desde a última vez em que tive notícias de
você. Admito que considero difícil imaginá -lo sendo cooperativo sem uma coleira
em volta do pescoço dele . Espero que esteja sendo cautelosa . Nunca ouvi falar
que o Profeta fosse inteiramente sincero... especialmente quando ele sorri !

Ann teve que sorrir. Entendeu aquilo muito bem , mas Verna não
conhecia Nathan do jeito que Ann conhecia. Às vezes ele podia colocá -la em
problemas mais rápido do que garotos que traziam sapos para o jantar , e ainda
assim, depois de tudo que tinha sido dito e feito , após tantos séculos conhecendo
o Profeta, realmente não havia outra pessoa com quem ela tivesse mais coisas em
comum.
Ann suspirou e voltou sua atenção outra vez para a mensagem no Livro
de Jornada.

— Estivemos bastante ocupados enfrentando o cerco de Jagang das


passagens para dentro de D'Hara, — Verna escreveu. — mas pelo menos
estivemos obtendo sucesso . Talvez sucesso demais . Se estiver aí Prelada, por
favor, responda .

Ann franziu a testa . Como alguém podia ter sucesso demais em impedir
as hordas saqueadoras de romperem suas defesas , assassinar seus defensores, e

71
escravizar um povo livre ? Com impaciência ela puxou a vela para mais perto
ainda. Na verdade ela estava bastante preocupada com o que Jagang estava
fazendo, agora que o inverno acabara e a lama da primavera era passado .
O Andarilho dos Sonhos era um inimigo paciente . Seus homens eram de
longe ao sul, no Mundo Antigo, e não estavam acostumados aos invernos subindo
ao norte no Mundo Novo . Embora muitos tivessem caído vítimas das condições
árduas, vastos números tenham morrido com doenças q ue espalharam -se pelo
acampamento de inverno dele , independente de ter perdido homens em batalhas ,
para doenças , e por uma variedade de outras causas , mais dos invasores seguiam
ao norte o tempo todo de forma que , a despeito de tudo, o exército de Jagang
continuava a crescer inexoravelmente. Mesmo assim, o homem não desperdiçava
quaisquer dos seus vastos números em campanhas de inverno sem sentido e fúteis .
Ele não se importava com as vidas dos seus soldados , mas importava-se em
conquistar o Mundo Novo , então ele movia-se apenas quando o clima não era um
fator. Jagang não corria riscos desnecessários . Ele simplesmente,
caprichosamente, transformava resolutamente seus inimigos em pó . Deixar o
mundo de joelhos era tudo que importava para ele , não quanto tempo demorava.
Ele enxergava seu mundo através do prisma das crenças da Sociedade da Ordem .
O indivíduo, incluindo ele mesmo , não tinha importância ; somente a contribuição
que a vida de uma pessoa podia fazer para a Ordem tinha significado .
Com esse vasto exército dentro do Mundo Novo, as forças do Império
D’Haraniano agora estavam a mercê daquilo que o Andarilho dos Sonhos fazia em
seguida. Certamente, as forças D’Haranianas eram formidáveis , mas elas não eram
o bastante para conter , muito menos repelir, todo o peso dos aparentemente
infinitos números das tropas da Ordem Imperial . Pelo menos , não até Richard
fazer seja lá o que ele pudesse para gerar alguma mudança na maré da guerra .
A profecia dizia que Richard era a “pedra no lago” , significando que ele
causava ondulações que espalhavam -se por toda parte, afetando tudo . A profecia
também dizia, de muitas formas diferentes e em muitos textos diferentes , que
Richard os liderava na batalha final se eles tivessem chance de triunfar .
Se ele não os liderasse naquela batalha final , a profecia era clara e não
ambígua; ela dizia que tudo estaria perdido .
Ann pressionou o punho sobre a dor em seu estômago e então tirou a
pena da lombada do livro que era o gêmeo daquele que Verna tinha .

— Estou aqui, Verna, — ela escreveu. — mas agora você é a Prelada .


O Profeta e eu estamos mortos e enterrados faz muito tempo .

Esse foi um truque que havia permitido que eles salvassem muitas vidas .
Havia momentos em que Ann sentia falta de ser Prelada e sentia falta das Irmãs.
Ela adorava muitas delas , pelo menos aquelas que não acabaram sendo na verdade
Irmãs do Escuro. A dor ardente daquela traição , não apenas contra ela mas ao
Criador, nunca reduziu.
Ainda assim , estar livre de tão grande responsabilidade p ermitia que ela
tivesse melhor capacidade de concentrar sua mente em outro trabalho mais
importante. Mesmo que odiasse ter perdido seu antigo estilo de vida , de ser
Prelada e comandar o Palácio dos Profetas , sua tarefa tinha um propósito mais
elevado, não com paredes e a administração de todo um Palácio com Irmãs,
Noviças e jovens magos em treinamento . A verdadeira vocação dela era ajudar a
preservar o mundo dos vivos . Para que ela fizesse isso , era melhor que as Irmãs
da Luz e todos os outros acreditassem que ela e Nathan estavam mortos .

72
Ann sentou mais ereta quando a esc rita de Verna começou a surgir na
página.

— Ann, sinto conforto por ter você comigo , mesmo que seja apenas no
Livro de Jornada. Sobraram tão poucos de nós . Confesso que às vezes sinto
saudade dos dias de paz no Palácio , dos momentos quando tudo parecia ser tão
mais fácil e fazer muito mais sentido e eu apenas pensava que tudo era tão difícil .
O mundo certamente mudou desde que Richard nasceu.

Ann não podia negar aquilo . Ela enfiou um pedaço de queijo na boca e
então inclinou -se e começou a escrever .

— Rezo todos os dias para que essa ordem e paz possa mais uma vez ser
estabelecida no mundo e nós possamos voltar a reclamar do clima .
— Verna, estou confusa. O que você queria dizer qua ndo falou que
talvez vocês estivessem obtendo sucesso demais defendendo as passagens ? Por
favor, explique. Aguardo sua resposta .

Ann recostou em sua cadeira de encosto reto e mastigou um a fatia de


pêra enquanto esperava. Uma vez que seu Livro de Jornada era gêmeo daquele
que Verna tinha, tudo que era escrito em um aparecia ao mesmo tempo no outro .
Esse era um dos poucos antigos itens de magia que restaram do Palácio dos
Profetas.
As palavras de Verna começaram novamente a mover-se na página em
branco.

— Nossos batedores e rastreadores reportam que Jagang iniciou seu


movimento. Uma vez que ele não conseguiu abrir caminho através das passagens ,
o Imperador dividiu suas forças e está levando um exército para o sul . O General
Meiffert temia que ele fizesse algo assim .
— Não é difícil imaginar sua estratégia . Jagang sem dúvida planeja
conduzir uma grande força de suas tropas descendo através do Vale Kern e então
para o sul ao redor das montanhas . Logo que finalmente estiver livr e de todas as
barreiras ele vai dar a volta dentro dos limites mais ao sul de D 'Hara e então
seguirá para o norte .
— Essa é a pior notícia possível para nós . Não podemos abandonar a
proteção das passagens , não enquanto parte do exército dele aguarda do outro
lado. E mesmo assim , não podemos permitir que as forças de Jagang caiam sobre
nós vindo pelo sul . O General Meiffert diz que teremos que deixar forças
suficientes aqui para guardar as passagens enquanto o grosso de nosso exército
segue para o sul par a encontrar com os invasores .
— Não temos escolha. Com a metade da força de Jagang ao norte, do
outro lado das passagens , e metade descendo para dar a volta nas montanhas e
avançar do sul, isso deixa o Palácio do Povo bem no meio . Sem dúvida Jagang
está lambendo os lábios diante de uma perspectiva assim .
— Ann, eu temo não ter muito tempo . O acampamento todo está
fervilhando, Acabamos de receber notícias de que Jagang dividiu seu exército e
estamos correndo para levantar acampamento e partir para o sul .
— Eu também devo dividir as Irmãs . Tantas foram perdidas que não
restaram muitas para dividir . Às vezes eu sinto como se estivéssemos em uma
disputa com Jagang para ver quem será aquele que ter minará com uma Irmã. Eu

73
temo o que acontecerá com essas boas pess oas se nenhuma de nós sobreviver . Se
não fosse por isso, eu estaria satisfeita em deixar esse mundo para trás e me
juntar a Warren no mundo espiritual .
— O General Meiffert diz que não podemos perder um momento e
devemos partir durante a primeira luz da ma nhã. Ficarei acordada durante a
noite toda com os preparativos , providenciando para que tenhamos homens e
Irmãs suficientes aqui para defender cada uma das passagens , e inspecionar os
escudos para ter certeza de que eles estão bem . Se o exército da Ordem a o nort e
seguisse através daqui , seria uma morte muito mais rápida para nós .
— A não ser que você tenha algo importante que deva ser discutido nesse
momento, acho que devo partir .

Ann cobriu a boca com uma das mãos enquanto lia . As notícias
certamente eram desanimadoras . Ela escreveu uma resposta imediata , para não
atrapalhar Verna.

— Não, minha querida, nada importante nesse momento . Você sabe que
está sempre em meu coração .

Uma mensagem retornou quase imediatamente .

— As passagens são estreitas então t ivemos sucesso em defendê -las. A


Ordem Imperial não pode usar o seu poder superior em lugares estreitos assim .
Sinto confiança de que as passagens aguentarão . Uma vez que Jagang está
bloqueado não sendo capaz de cruzar as montanhas , isso nos fornece tempo
enquanto ele é forçado a levar um exército por todo o caminho ao sul e então de
volta para dentro de D 'Hara, agora que ele tem o clima a seu favor . Já que esse
é o maior perigo e ameaça , seguirei para o sul com o exército .
— Isso pode funcionar para nós . Eventualmente seremos forçados a
encontrar com a horda de Jagang nas planícies onde ele tem espaço para lançar
todo o peso de suas forças contra nós . Eu temo que, a não ser que algo mude , não
tenhamos chance de sobreviver a uma batalha como essa .
— Só posso ter esperança de que Richard cumpra a profecia antes que
todos nós estejamos mortos .

Ann engoliu em seco antes de responder .

— Verna, você tem minha palavra de que farei o que devo para
providenciar isso . Saiba que Nathan e eu estaremos dedicados na tarefa de
garantir que a profecia seja cumprida . Talvez ninguém a não ser você realmente
conseguisse entender que foi para isso que me devotei por mais de meio milênio .
Não abandonarei minha causa ; farei o que puder para garantir que Richard faça
aquilo que apenas ele pode fazer . Que o Criador esteja com você e todos os nossos
bravos defensores . Todos vocês estarão em minhas orações todos os dias . Tenha
fé no Criador, Verna. Agora você é a Prelada. Transmita essa fé para todos que
estão com você.

Em um momento, uma mensagem começou a aparecer .

— Obrigada, Ann. Checarei meu Livro de Jornada todas as noites


enquanto viajamos para ver se você tem alguma notícia de Richard. Sinto saudade

74
de você. Espero que possamos estar reunidas novamente ne ssa vida.

Ann escreveu cuidadosamente sua última resposta .

— Eu também, criança. Boa jornada .

Ann curvou-se sobre os cotovelos e esfregou as têmporas . Essas não


eram boas notícias , mas não eram todas ruins . Jagang queria cruzar as passagens
e acabar com isso rapidamente , mas as passagens resistiram e ele finalmente havia
sido forçado a dividir seu exército e iniciar uma longa e árdua marcha . Ela tentou
enxergar o lado bom . Eles ainda tinham tempo . Havia muitas coisas que eles ainda
poderiam ten tar. Pensariam em alguma coisa . Richard pensaria em alguma coisa .
A profecia tinha prometido que ele guardava consigo a chance para a salvação
deles.
Ela não permitiria a si mesma acreditar que o mal escureceria o mundo .
Uma batida na porta fez ela pular . Ela pressionou a mão sobre o coração
acelerado. Seu Han não alertara que alguém estava nas proximidades .
— Sim?
— Ann, sou eu, Jennsen. — surgiu a voz abafada do outro lado da porta .
Ann colocou de volta a pena e enfiou o Livro de Jornada no cinto quando
empurrou a cadeira para trás . Alisou o vestido e inspirou profundamente para
tentar reduzir a velocidade do coração de volta ao normal .
— Entre, querida. — ela disse quando abria a porta , sorrindo para a irmã
de Richard. — Obrigada pelo prato com a comida . — ela esticou um braço para
trás em direção a mesa. — Gostaria de compartilhá -lo comigo ?
Jennsen balançou a cabeça . — Não, obrigada. — o rosto dela,
emoldurado por cachos vermelhos , era uma imagem de preocupação . — Ann,
Nathan me enviou . Ele quer falar com você. Ele mostrou bastante urgência nisso .
Você sabe como Nathan fica. Sabe como os olhos dele ficam arregalados quando
ele está nervoso com alguma coisa .
— Sim, — Ann falou lentamente. — ele realmente tende a ficar desse
jeito quando está aprontando al go.
Jennsen piscou, parecendo um pouco assustada . — Acho que você pode
ter razão, ele pediu em termos decididos para vir chamá -la e levá-la
imediatamente.
— Nathan sempre espera que as pessoas saiam correndo quando ele
chama. — Ann gesticulou pedindo que a mulher indicasse o caminho . — Acho que
seria melhor eu cuidar disso . Então, onde está o Profeta ?
Jennsen levantou a lanterna para iluminar o caminho quando começou a
sair da pequena sala. — Ele está em um cemitério .
Ann segurou a manga do vestido de Jennsen. — Um cemitério? E ele
quer que eu vá até esse cemitério ? — Jennsen olhou para trás por cima do ombro
e assentiu. — O que ele está fazendo em um cemitério ?
Jennsen engoliu em seco. — Quando perguntei isso , ele disse que estava
desenterrando os mortos.

75
C A P Í T U L O 1 0

Em um largo salgueiro crescendo na ladeira gramada descendo até o


cemitério, um tordo estava passando a sua noite repetindo uma variedade de gritos
estridentes destinados a defender seu território contra intrusos . Normalmente, o
som de um tordo , ainda que transmitisse ameaças para outros de sua espécie , para
os ouvidos de Ann podiam parecer bastante adoráveis , mas no meio da calmaria
da noite, esses assovios estridentes , chilreados e ruídos estavam mexendo com
seus nervos. Ela podia ouvir outro tordo ao longe fazendo ameaças similares . Nem
mesmo os pássaros conseguiam alcançar a paz .
Caminhando pela longa extensão gramada , Jennsen apontou enquanto
mantinha a lanterna erguida com a outra mão para que Ann pudesse enxergar o
caminho. — Tom falou que nós o s encontraríamos bem ali .
Suando por causa da longa caminhada , Ann espiou dentro da escuridão .
Ela não conseguia imaginar o que o Profeta pretendia . Em todo o tempo em que
ela conhecera o homem ele nunca tinha feito uma cois a estranha como essa.
Certamente ele tinha feito muitas coisas estranhas , mas essa não era uma delas.
Idoso como ele estava, alguém pensaria que ele desejaria evitar passar algum
tempo em um cemitério mais cedo do que fosse obrigado.
Ann seguiu a irmã mais jovem de Richard enquanto ela descia a colina ,
tentando acompanhá-la sem correr. Parecia como se elas já tivessem caminhado
metade da noite e ela estava sem fôlego . Ann não sabia a respeito desse cemitério ,
esquecido em uma distante extensão desabitada . Ela desejou ter pensado em trazer
um pouco daquela comida que estava no prato em sua sala .
— Tem certeza de que Tom ainda está aqui embaixo ?
Jennsen olhou por cima do ombro . — Deveria estar. Nathan queria que
ele montasse guarda .
— Para quê? Para afastar os outros ladrões de corpos ?
— Não sei... talvez. — falou Jennsen s em mostrar ao menos um sinal de
uma risada.
Ann não era muito boa em fazer as pessoas rirem . Era boa em fazer os
joelhos delas tremerem , mas não era tão boa assim com piadas . Ela imaginou que
um cemitério em uma noite escura não era um bom lugar para piadas . Certamente
era um bom lugar para fazer os joelhos tremerem .
— Talvez Nathan só desejasse companhia. — Ann sugeriu.
— Não acho que fosse isso . — Jennsen encontrou uma parte caída na
cerca que cercava o lugar dos mortos e passou os pés por cima . — Nathan pediu
para trazer você aqui e ele queria que Tom ficasse e montasse guarda no cemitério ,
acho que para garantir que não houvesse alguém por perto do qual ele não
soubesse.
Nathan gostava de estar no comando; Ann concluiu que sendo um Rahl
dotado ele não poderia fazer menos do que isso . Sempre era possível que a coisa
toda fosse apenas uma desculpa para fazer Jennsen, Tom, e Ann atenderem as
vontades dele. O Profeta era dado a um senso de drama e um cemitério certamente
tendia a fornecer um clima .
Na verdade, nesse momento, Ann teria ficado muito feliz se isso não
fosse mais do que alguma forma de diversão idiossincrática de Nathan.
Infelizmente, ela estava com a perturbadora sensação de que não era algo tão

76
simples, ou tão inócuo, quanto uma certa quantia de teatralidade .
Em todos os séculos que ela o conhecera, às vezes Nathan havia sido
reservado, enganador, e ocasionalmente perigoso , mas nunca com fins malignos...
embora isso nem sempre fosse aparente na época . Durante a maior parte de seu
cativeiro no Palácio dos Profetas ele testara a paciência das Irmãs até que elas
estavam prestes a gritar e arrancar os cabelos , ainda que ele não fosse
maliciosamente determinado ou desdenhoso com pessoas boas . Ele sentia um
eterno ódio contra a tirania e uma alegria quase infantil com a vida . Não importava
o quão irritante o homem podia ser às vezes , e ele podia ser irritante ao extremo ,
Nathan tinha um bom c oração.
Quase desde o início , a despeito das circunstâncias , ele foi o confidente
de Ann e aliado para impedir que o Guardião colocasse as garras no mundo dos
vivos e que pessoas más dominassem os inocentes . Ele trabalhara arduamente para
ajudar a deter Jagang. Afinal de contas, foi ele quem primeiro mostrou a ela uma
profecia sobre Richard, quinhentos anos antes que ele tivesse nascido.
Ann percebeu que estava desejando que não estivesse escuro , e que não
estivessem em um cemitério . E que Jennsen não tivesse pernas tão longas .
De repente ocorreu -lhe porque Nathan precisaria que Tom montasse
guarda e "garantisse que não houvesse alguém por perto do qual eles não
soubessem”, como Jennsen havia colocado. Assim como Jennsen, as pessoas em
Haiulakar eram completamente não dotados . Eles eram desprovidos daquela
centelha infinitesimal do Dom do Criador carregada por todos os outros no mundo .
Essa conexão essencial tornava todos os outros sujeitos a realidade e a natureza
da magia. Mas para essas pessoas a mag ia não existia.
A ausência de tal núcleo elemental do Dom inerente não apenas tornava
os completamente não dotados imunes a magia , mas já que eles não podiam
interagir com aquilo que para eles não existia , isso também os deixava invisíveis
ao poder do Dom.
Se ao menos um dos pais tivesse a característica de completamente não
dotado, então isso era transmitido ao descendente . Essas pessoas haviam
originalmente sido banidas para preservar o Dom na natureza da humanidade . Foi
uma solução terrível , certamente, mas como resultado o Dom sobrevivera na raça
humana. Se uma solução como essa não fosse aplicada , a magia teria cessado de
existir há muito tempo .
Uma vez que a profecia era magia , ela também estava cega em relação a
essas pessoas. Nenhum livro de profecia jamais teve qualquer coisa a dizer sobre
os completamente não dotados , ou a respeito do futuro da humanidade e da magia
agora que Richard havia descoberto essas pessoas e acabado com o banimento . O
que aconteceria agora era completamente desconhec ido.
Ann supôs que Richard não teria aceito que fosse de outr o jeito. Ele não
aceitou a profecia exatamente de forma entusiástica . Independente daquilo que a
profecia tinha a dizer sobre ele , Richard a desconsiderou . Ele acreditava no livre
arbítrio. Ele obteve uma limitada visão da noção de que havia coisas sobre ele
mesmo que estavam predestinadas .
Em todas as coisas na vida , e na magia especialmente , tinha que existir
equilíbrio. De certo modo, as ações de livre arbítrio de Richard eram o equilíbrio
da profecia. Ele era o centro de um vórtice de forças . Com Richard, a profecia
estava tentando prever o imprevisível . E mesmo assim , ela precisava fazer isso .
O mais preocupante era que o livre arbítrio de Richard o tornava um
curinga na profecia, até mesmo naquelas profecias onde ele era o centro . Ele era
o caos em meio aos padrões , a desordem no meio da organização , e tão caprichoso

77
quanto um raio. E ainda assim, ele era guiado pela verdade e movido pela razão ,
não pelo capricho ou impulso , e ele também não era arbitrário. O fato de que ele
podia ser o caos no meio da profecia e ao mesmo tempo ser completament e
racional era um enigma para ela .
Ann preocupava-se muito com Richard porque tais aspectos
contraditórios dos dotados ocasionalmente eram um prelúdio p ara o
comportamento descontrolado . A última coisa que eles desejariam era um líder
descontrolado .
Mas tudo isso era acadêmico . O problema central era que enquanto ainda
havia tempo eles precisavam encontrar alguma forma de garantir que ele se
engajasse na causa associada a ele nas profecias e cumprisse com seu destino . Se
falhassem, se ele fosse morto, então tudo estava perdido .
A mensagem de Verna permanecia como uma sombra da morte no fundo
da mente de Ann.
Tendo avistado a luz delas , Tom emergiu da escuridão, correndo através
da grama para encontrá -las. — Aí está você. — ele disse para Ann. — Nathan
ficará feliz que finalmente você esteja aqui . Venha e eu mostrarei o caminho .
Com o rápido relance que ela obteve na fraca luz amarela da lanterna , o
rosto de Tom pareceu preocupado.
O grande D’Haraniano conduziu-as mais fundo dentro do cemitério ,
onde em algumas áreas havia fileiras de túmulos delineados com lápides. Esses
deviam ser mais recentes , porque a maioria dos que Ann conseguia ver não
passavam de mato alto que com o tempo cobriram rochas e os túmulos que elas
marcavam. Em uma área havia algumas pequenas lápides de granito . Elas estavam
tão desgastadas que isso só podia indicar que eram muito antigas . Alguns dos
túmulos estavam marcados com tábuas s imples com nomes entalhados nas
mesmas. A maioria desses marcadores tinham virado pó fazia muito tempo ,
fazendo grande parte do cemitério parecer como nada mais do que um campo
gramado.
— Você sabe que insetos gordos são esses que estão fazendo todo esse
barulho? — Jennsen perguntou a Tom.
— Não tenho certeza. — disse Tom. — Nunca tinha visto eles . De
repente parece que estão por todo o lugar .
Ann sorriu. — São cigarras .
Jennsen fez uma careta olhando por cima do ombro . — São o quê?
— Cigarras. Você não s aberia o que elas são . Na última muda
provavelmente você ainda era bebê , jovem demais para lembrar . O ciclo de vida
dessas cigarras com olhos vermelhos é de dezessete anos .
— Dezessete anos ! — Jennsen falou, surpresa . — Quer dizer que elas
aparecem a cada dezessete anos?
— Sem falha. Depois que as fêmeas acasalam com esses colegas
barulhentos , elas depositam seus ovos em galhos . Quando eles eclodem , as ninfas
cairão das árvores e enterram -se no solo, para não emergirem durante dezessete
anos onde suas vidas adultas será breve.
Jennsen e Tom murmuraram seu espanto enquanto avançavam no
cemitério. Ann não conseguia enxergar muito mais coisas com a luz que vinha da
lanterna de Jennsen, exceto as formas escuras de moscas movendo -se na brisa
úmida ocasional. Conforme os três caminhavam silenciosamente pelo cemitério ,
cigarras zuniam incessantemente da escuridão ao redor . Ann usou o seu Han para
tentar checar se alguém mais estava nos arredores , mas não sentiu qualquer outro
além de Tom e uma outra pessoa em algum lugar a uma certa distância , sem dúvida

78
Nathan. Uma vez que Jennsen era uma dos completamente não dotados , ela era
invisível para o Han de Ann.
Como Richard, Jennsen ha via sido gerada por Darken Rahl. Nascimentos
de completamente não dotados , como Jennsen, eram um efeito colateral
inesperado e aleatório da magia de ligação carregada por todo Lorde Rahl dotado.
Em tempos antigos, quando essa característica começou a espalhar -se, a solução
foi banir os completamente não dotados , isolando-os na terra esqueci da de
Bandakar. Após isso, todo descendente não dotado do Lorde Rahl era condenado
à morte.
Diferente de qualquer Lorde Rahl anterior, Richard ficara alegre em
descobrir que tinha uma irmã . Ele jamais permitiria que ela fosse condenada a
morte por causa da natureza de seu nascimento , nem permitiria que ela e aqueles
como ela fossem banidos .
Ainda que Ann já estivesse perto dessas pessoas fazia algum tempo , ela
ainda não estava acostumada com o quanto isso poderia ser desorientador . Mesmo
quando um deles est ava parado bem na frente dela , a habilidade de Ann dizia que
não havia qualquer pessoa ali . Era uma assombrosa espécie de cegueira , uma perda
de um dos sentidos dela no qual sempre confiou .
Jennsen teve que dar passos largos para acompanhar Tom. Para
acompanhar os dois , Ann teve que trotar.
E então, quando eles faziam a volta ao redor de uma pequena elevação ,
um monumento de pedra entrou no campo de visão . A luz da lanterna iluminou
um lado de uma base de pedra retangular que era um pouco mais alta do que Ann,
mas não tão alta quanto Jennsen. A pedra grosseira estava bastante desgastada e
danificada, com molduras de pedra esculpidas em volta de nichos quadrados nos
lados. Se algum dia ela já foi polida , a pedra não mostrava mais qualquer
evidência disso. Quando a luz da lanterna passou sobre a superfície , ela revelou
camadas de descoloração de sujeira bastante antigas assim como líquen de cor
mostarda. Sobre a base imponente estava uma grande urna esculpida com uvas de
pedra penduradas sobre um lado . Uvas eram as frutas favoritas de Nathan.
Quando Tom as conduzia contornando a frente do monumento de pedra ,
Ann ficou surpresa em ver que o retângulo de pedra estava em boas condições .
Na outra extremidade, uma luz fraca brotava vindo de baixo dele .
Parecia que todo o monumento tinha sido girado para um lado , revelando
degraus de pedra que desciam dentro do chão , para dentro do suave brilho de luz .
Tom lançou um olhar para as duas . — Ele está lá embaixo .
Jennsen inclinou um pouco e espiou dentro da cavidade í ngreme. —
Nathan está lá embaixo? Descendo esses degraus ?
— Eu temo que sim. — Tom falou para ela.
— Que lugar é esse? — Ann perguntou.
Tom sacudiu os ombros desculpando -se. — Não faço ideia . Nem sei se
isso estava aqui até pouco tempo atrás quando Nathan mostrou onde eu poderia
encontrá-lo. Ele disse para mandar vocês descerem assim que chegassem aqui . Foi
bastante insistente quanto a isso . Ele não quer que ninguém saiba que esse lugar
está aqui. Queria que eu montasse guarda e mantivesse qualquer pessoa l onge do
cemitério, ainda que eu realmente não ache que alguém ainda vem aqui ,
especialmente durante a noite . O povo Bandakaraniano não é o tipo de gente que
procura por aventura .
— Diferente de Nathan. — Ann murmurou. Ela deu um tapinha no braço
musculoso de Tom. — Obrigada, meu rapaz. Melhor fazer como Nathan disse e
montar guarda. Eu descerei e verei do que se trata .

79
— Nós duas iremos. — falou Jennsen.

80
C A P Í T U L O 1 1

Movida por preocupada curiosidade , imediatamente Ann começou a


descer os degraus empoeirados . Jennsen seguiu logo atrás dela. Um patamar fez
elas virarem para a direita e descer outro lance . Em um terceiro patamar , um longo
conjunto de degraus virava para a esquerda . As paredes de pedra empoeiradas
estavam desconfortavelmente próximas. O teto pendia baixo, até mesmo para Ann;
Jennsen teve que agachar -se. Para Ann parecia que ela estava sendo engolida
através de um túnel decadente direto para a barriga do cemitério .
Na base dos degraus ela parou para observar com descrença . Jennsen
soltou um assovio baixo . Adiante não estava uma masmorra , mas uma estranha
sala serpenteante diferente de qualquer outra que Ann já tinha visto. As paredes
de pedra faziam zigue -zague em ângulos esquisitos , cada uma com seu próprio
design e independent e das outras. Gesso cobria algumas das paredes de pedra . Em
uma série dos ângulos convolutos , a sala toda serpenteava por uma grande
distância, desaparecendo em volta de projeções e cantos .
O lugar tinha uma estranha desordem ordenada que Ann considerou de
certa forma algo perturbador . Nichos escuros aqui e ali nas paredes engessadas
estavam cercados por símbolos azuis desbotados e adornos que haviam descascado
em alguns pontos. Também havia palavras , mas estavam velhas e apagadas demais
para serem legíveis sem um estudo cuidadoso . Prateleiras assim como antigas
mesas de madeira, todas cobertas de poeira , estavam encostadas em vários locais
nas paredes .
Teias de aranha, pesadas de poeira , pendiam por toda parte como
cortinas destinadas a decorar a sala embai xo dos túmulos. Dúzias de velas estavam
posicionadas sobre mesas e em alguns dos nichos vazios , transmitindo ao lugar
todo um brilho suave , de outro mundo, como se os mortos acima da cabeça de Ann
viessem periodicamente até esse lugar para discutirem assun tos importantes
apenas para os falecidos , e para darem as boas vindas aos novos membros de sua
ordem eterna.
Além das cortinas diáfanas de teias de aranha carregadas de poeira , entre
quatro mesas massivas que foram colocadas juntas , estava Nathan. Colunas
desordenadas de livros estavam empilhadas ao redor dele sobre a mesa .
— Ah, aí está você. — Nathan falou do meio dos seus livros .
Ann lançou um olhar com o canto dos olhos para Jennsen.
— Não fazia ideia de que esse lugar estava aqui embaixo. — a jovem
disse em resposta para a pergunta que permaneceu não pronunciada na língua de
Ann. Pontos de luz da lanterna dançaram nos olhos azuis dela . — Nem sabia que
esse lugar existia .
Ann olhou em volta novamente . — Duvido que alguém nos últimos mil
anos soubesse que esse lugar existia. Fico imaginando como ele encontrou isso .
Nathan fechou um livro e colocou -o sobre uma pilha atrás dele . Seu
cabelo branco liso deslizou nos ombros largos quando ele virou . Seus olhos azuis
escuros sob o capuz fixaram -se em Ann.
Ann captou a mensagem não pronunciada no olhar de Nathan. Ela virou
para Jennsen. — Porque não sobe e espera com Tom, minha querida. Pode ser um
trabalho solitário montar guarda em um cemitério.
Jennsen pareceu desapontada, mas pareceu entender a necessidade dele s

81
de serem deixados a sós para tratarem de seus assuntos . Ela mostrou um sorriso .
— Certo. Estarei logo ali em cima se precisarem de alguma coisa .
Enquanto os sons dos passos de Jennsen nos degraus de pedra
desapareciam, com sussurros que ecoavam , Ann efetuou um curso decidido
através das teias de aranha .
— Nathan, que lugar é esse?
— Não precisa sussurrar. — disse ele. — Está vendo como as paredes
fazem curvas em todos esses ângulos estranhos ? Isso corta o eco.
Ann ficou um pouco surpresa em perceber que e le tinha razão.
Geralmente, o eco em salas de pedra era irritante , mas esta estranha sala
serpenteante tinha o sopro dos mortos .
— Tem algo estranhamente familiar no formato desse lugar .
— Feitiço de Ocultação. — falou o profeta, distraidamente.
Ann franziu a testa . — O quê?
— A configuração da coisa toda está na forma de um Feitiço de
Ocultação. — ele gesticulou para cada um dos lados quando viu o olhar de
confusão que ela exibiu . — Não é o layout do lugar todo , o posicionamento das
salas e o curso dos vários corredores e passagens... como no Palácio do Povo...
que é a forma do feitiço , mas ao invés disso o preciso alinhamento das paredes
em si que formam a forma do feitiço , como se alguém desenhasse o feitiço bem
grande no chão e então simplesmente con struísse as paredes tocando exatamente
contra essa linha antes de chegar ao meio . Uma vez que as paredes possuem uma
espessura uniforme, isso significa que do lado de fora das paredes também existe
a forma do feitiço , então isso serve para reforçar a coisa toda. Bastante
inteligente, na verdade.
Para que um feitiço como esse funcione , provavelmente ele seria
desenhado com sangue e com a ajuda de ossos humanos . Haveria um amplo
suprimento desses ao alcance .
— Alguém certamente teve um bocado de trabalho . — Ann disse
enquanto observava o espaço outra vez . Dessa vez ela começou a reconhecer
algumas das formas e ângulos em oposição . — Para o que exatamente esse lugar
é utilizado?
— Não tenho certeza. — ele admitiu soltando um suspiro . — Não sei se
esses livros estavam destinados a ficarem enterrados com os mortos para sempre ,
se eles estavam sendo escondidos , ou se havia algum outro propósito . — Nathan
apontou com a mão. — Por aqui . Permita que eu mostre uma coisa .
Ann seguiu ele através de vários zigue-zagues, curvas, e passando por
mais prateleiras alinhadas com livros empoeirados , até que chegaram a uma área
com nichos de até três vezes a altura de cada lado .
Nathan encostou um cotovelo na parede . — Olhe aqui. — ele falou
enquanto apontava um longo dedo para baixo, indicando uma das baixas aberturas
arqueadas na parede de pedra .
Ann inclinou-se e espiou lá dentro . Ela continha um corpo .
Tudo o que restara foram ossos envoltos por manto esfarrapado . Um
cinto de couro circulava a cintura enquanto uma faixa cruzava sobre um dos
ombros. Braços esqueléticos estavam cruzados sobre o peito . Correntes douradas
pendiam em volta do pescoço . Ann conseguiu ver pelo reluzir de luz em um
medalhão em uma das correntes que Nathan devia ter erguido ele para dar uma
olhada, e ao fazer isso, seus dedos removeram a poeira .
— Alguma ideia de quem ele seja? — ela perguntou quando endireitou
o corpo e cruzou os braços sobre o peito .

82
Nathan inclinou-se chegando mais perto dela .
— Acredito que ele era um Profeta .
— Pensei que não havia necessidade de sussurrar .
Ele levantou uma sobrancelha quando ergueu o corpo com sua altura
considerável . — Tem várias outras pessoas enterradas aqui . — ele balançou uma
das mão em direção a escuridão . — Naquela direção .
Ann imaginou se todos eles ta mbém poderiam ser Profetas . — E os
livros?
Nathan curvou-se novamente, e sussurrou outra vez . — Profecia.
Ela fez uma careta e olhou de volta para o caminho pelo qual eles vieram .
— Profecia? Quer dizer... todos eles ? Todos esses são livros de Profecia ?
— A maioria deles.
O excitamento espalhou -se através dela. Li vros de Profecia tinham valor
inestimável. Eram as mais raras das joias. Esses livros podiam oferecer
orientação, fornecer as respostas que eles precisavam , poupá-los de esforços
fúteis, preencher as lacunas no conhecimento . Talvez mais do que em qualquer
outra época na história , eles caçavam essas respostas . Precisavam saber mais
sobre a batalha final na qual Richard deveria liderá -los.
Eles ainda não tinham descoberto quando essa batalha acontecer ia.
Com a frustrante imprecisão da Profecia, ainda poderiam faltar muitos
anos.
Até onde eles sabiam , podia ser possível até mesmo que isso não
ocorresse até que Richard fosse um homem idoso . Com todas as dificuldades que
enfrentaram nos últimos anos , eles só podiam ter esperança de que isso ainda
estivesse longe muitos anos e que teriam tempo para prepararem -se. A Profecia
poderia ajudar nisso .
As câmaras no Palácio dos Profetas estavam cheios com milhares de
volumes de profecias , mas todos foram destruído s junto com o Palácio para evitar
que eles caíssem nas mãos do Imperador Jagang. Melhor perder esses trabalhos
para sempre do que permitir que o mal veja suas páginas.
Mas ninguém sabia a respeito desse lugar . Esse local estava escondido
sob um Feitiço de Ocultação. As possibilidades estonteantes giravam na cabeça
de Ann.
— Nathan... isso é maravilhoso.
Ela virou e olhou para o homem . Ele a estava observando de uma forma
que fez ela sentir -se inquieta. Ela esticou um braço e colocou a mão no braço
dele.
— Nathan, isso é mais do que jamais poderíamos ter esperado .
— É algo mais do que isso . — ele falou de modo crítico enquanto olhava
para ela. — Tem livros aqui que me fazem duvidar da minha sanidade. — declarou
ele fazendo um largo floreio com um braço .
— Ah, — Ann gracejou quando seguiu no rastro dele. — uma
confirmação disso.
Ele parou e virou para olhar com seriedade para ela . — Não há nada de
engraçado nisso.
Ann sentiu arrepios em seus braços . — Então, mostre para mim. — ela
falou com um tom sério . — O que você encontrou?
Ele balançou a cabeça, aparentemente perdendo sua momentânea
explosão de mau humor. — Nem mesmo tenho certeza. — seu exibicionismo usual
não estava em evidência enquanto ele movia -se entre as mesas que havia reunido .
Seu humor sombrio ficou sob controle. — Estive organizando os livros .

83
Ann queria correr e chegar até o ponto central da descoberta dele , mas
sabia que quando ele estava preocupado era melhor deixar Nathan explicar as
coisas do seu próprio jeito , especial mente quando havia espe culação arcana
envolvida.
— Organizando eles ?
Ele assentiu . — Estes aqui nessa pilha não parecem possuir qualquer
utilidade real para nós . A maioria são de Profecias ultrapassadas faz muito tempo ,
contém apenas registros irrelevantes , ou estão em línguas desconhecidas... coisas
assim.
Ele virou e bateu com a mão sobre o topo de outra pilha . Poeira levantou .
— Estes aqui todos são livros que nós tínhamos lá no Palácio . — ele moveu a mão
para frente e para trás na frente das pilhas de livros sobre a mesa atrás dele. —
Todos eles. Toda essa mesa cheia.
De olhos arregalados , Ann olhou para as prateleiras e nichos que corriam
ao longo de toda a estranha sala . — Há muito mais livros do que esses que você
tem aqui sobre as mesas . Isso é apenas uma fração deles .
— Realmente. Não tive chance de ao menos começar a olhar todos eles .
Finalmente decidi que seria melhor enviar Tom para buscar você. Queria que você
visse o que eu descobri . Isso, e tem um monte de leitura a ser feita . Estive
retirando um livro por vez , checando ele, e colocando em uma das pilhas sobre
essas mesas.
Ann imaginou quantos livros ainda podiam ser viáveis , ainda podiam ser
utilizáveis, após milhares de anos sob a terra . Havia encontrado antes livros que
foram arruinados pelos efeitos do tempo e dos elementos , especial mente mofo e
água. Ela espiou ao redor, inspecionando as paredes e o teto , mas não avistou
evidência de água atravessando .
— À primeira vista, nenhum desses livros parece estar danificado por
água. Como esse lugar no subsolo pode estar tão seco? Pareceria que a água
penetraria através da juntas na rocha e deixaria tudo aqui embaixo molhado e
mofado. Mal posso acreditar que os livros parecem estar em tão boas condições .
— Parece ser a palavra operativa. — disse Nathan entre os dentes.
Ela virou lançando um olhar sério para ele . — O que você quer dizer?
Ele balançou uma das mãos com irritação . — Em um momento. Em um
momento. A coisa interessante é que o teto e as paredes estão protegidas por couro
para ajudar a bloquear a água . O lugar também tem um escudo de magia ao redor
dele para ter ainda mais proteção . A entrada também estava protegida com escudo .
— Mas o povo Bandakar não possui magia e a terra deles estava selada .
Não havia qualquer pessoa com magia contra o qual colocar escudo s.
— Porém, aquele selo para a terra banida deles finalmente falhou. —
Nathan lembrou a ela.
— Sim, isso mesmo , ele falhou. — Ann bateu algumas vezes um dedo
contra o queixo. — Fico imaginando como isso aconteceu .
Nathan sacudiu os ombros. — Como não é tão importante nesse
momento, embora eu esteja preocupado com isso .
Ele sacudiu uma das mãos , como se estivesse colocando o assunto de
lado. — No momento, que isso tenha acontecido é o que importa . Seja lá quem
for que tenha colocado esses livros aqui, queria que eles ficassem escondidos e
protegidos... e teve bastante trabalho para garantir que eles continuassem desse
jeito. As pessoas não dotadas aqui não seriam impedidas por escudos , o peso do
próprio monumento de pedra seria um obstáculo , mas em primeiro l ugar eles não
teriam razão para querer movê -lo a não ser que tivessem um bom motivo para

84
acreditar que havia alguma coisa embaixo . O que faria com que eles suspeitassem
de uma coisa assim ? O fato desse lugar ter permanecido intocado durante milhares
de anos prova que eles nunca perceberam que esse lugar estava aqui embaixo .
Acredito que os escudos foram colocados para afastar quaisquer invasores que
pudessem eventualmente conseguir entrar em Bandakar, como os homens de
Jagang fizeram.
— Isso faz sentido , eu suponho. — ela murmurou enquanto pensava
naquilo. — Sem realmente esperar que o selo para Bandakar algum dia seria
rompido, os escudos eram um simples ato de precaução .
— Ou Profecia. — adicionou Nathan.
Ann levantou os olhos. — Também poderia ser isso . — seria necessário
um mago com a habilidade de Nathan para cruzar escudos como esses . Nem mesmo
Ann tinha a habilidade necessária para alguns escudos . Ela também sabia que
havia escudos colocados em épocas antigas que só podiam ser atravessados com
ajuda de Magia Subtrativa.
— Também é possível que esses livros simplesmente tenham sido
colocados aqui como uma forma de salvaguardar trabalhos tão valiosos... caso
algo acontecesse a outros como eles .
— Você realmente acha que eles teriam tanto trabalho para faz er uma
coisa assim? — ela perguntou .
— Bem, todos os livros no Palácio dos Profetas estavam perdidos agora ,
não estavam? Livros de Profecia estão sempre em risco . Alguns foram destruídos,
alguns caíram em mãos inimigas , e alguns simplesmente desapareceram . Lugares
como esse fornecem um abrigo para outros trabalhos... especialmente se a profecia
prevê a necessidade de tal contingência .
— Acho que você pode ter razão . Ouvi falar de raras descobertas de
profecias que foram escondidas para preservá -las, ou para impedir que olhos
inocentes as vissem . — ela balançou a cabeça enquanto seu olhar vasculhava a
sala. — Mesmo assim, nunca ouvi falar de qualquer descoberta que chegasse perto
de uma como essa.
Nathan entregou a ela um livro . Sua antiga capa vermelha de co uro
estava quase marrom . Ainda assim, havia algo familiar nele , nas faixas douradas
desbotadas sobre a lombada dele. Ela abriu a capa e a primeira página em branco .
— Ora, ora, ora. — Ann murmurou suavemente quando viu o título . —
O Livro Glendhill de Teoria dos Desvios . Que maravilha ter isso em minha mãos
novamente. — ela fechou a capa e abraçou o livro contra o peito . — É como se
um velho amigo voltasse dos mortos .
O livro fora um dos seus volumes favoritos sobre a profecia bifurcada .
Uma vez que ele era um volume crucial que tinha informações valiosas a respeito
de Richard, ela o estudara e consultara com tanta frequência durante os séculos
enquanto aguardava que ele nascesse que praticamente o conhecia de cor . Ela
ficou muito triste que ele tivesse sido destruído junto com todo o resto dos livros
nas câmaras no Palácio dos Profetas . Ainda havia muita informação nele sobre as
possibilidades daquilo que ainda estava por vir .
Nathan tirou outro volume de uma pilha e balançou ele diante dela
enquanto levantava uma sobrancelha. — Precedência e Inversões Binárias .
— Não! — ela arrancou o livro da mão dele . — Não pode ser.
Nenhum dos registros jamais poderia dizer com certeza que o volume de
fato algum dia já existira . A própria Ann tinha procurado ele, por causa de um
pedido de Nathan, sempre que ela viajava. Ela também pediu a Irmãs de confiança
que procurassem por ele sempre partiam em uma jornada . Houve pistas , mas

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nenhuma delas resultou em outra coisa a não ser becos sem saída .
Ela olhou para o alto Prof eta. — Ele é verdadeiro? Muitos registros
negam que ele algum dia realmente existiu .
— Desaparecido, de acordo com alguns . Um simples mito , de acordo
com outros . Li um pouco dele e de acordo com as ramificações de profecia que
preenche, ele só pode ser genuíno... ou uma falsificação brilhante . Eu teria que
estudá-lo mais para dizer qual das duas opções , mas pelo que tenho visto , até
agora, sou levado a crer que ele é genuíno . Além disso, que propósito haveria em
esconder uma falsificação ? Falsificações geralmente são criadas para trocá-las
por ouro.
Isso era bem verdade. — E aqui estava ele todo esse tempo . Enterrado
sob os ossos.
— Junto com aquilo que eu suspeito podem ser, muitos outros volumes
tão valiosos quanto ele.
Ann estalou a língua enquanto olhava novamente ao redor para todos os
livros, sua sensação de surpresa aumentando a cada momento. — Nathan, você
descobriu um tesouro . Um tesouro de valor incalculável .
— Talvez. — ele disse. Quando ela exibiu uma expressão de confusão ,
ele ergueu um pes ado tomo do topo de outra pilha . — Você nem vai acreditar no
que é isso. Aqui. Abra e leia o título você mesma .
Com relutância Ann colocou de lado Precedência e Inversões Binárias
para pegar o pesado livro da mão de Nathan. Colocou-o sobre a mesa também e
curvou-se chegando mais perto . Com grande cuidado, ela abriu a capa. Ela piscou,
e então endireitou o corpo.
— A Sétima Tarefa de Selleron. — ela olhou de boca aberta para o
Profeta. — Mas eu pensava que havia somente uma cópia e que tivesse sido
destruída.
Um lado da boca de Nathan levantou em um leve sorriso . Ele pegou outro
livro — Doze Palavras Restantes para a Razão . Encontrei também Os Gêmeos do
Destino. — ele balançou um dedo em direção a uma pilha . — Está em algum lugar
ali.
A mandíbula de Ann moveu-se durante um momento até que as palavras
finalmente saíram. — Pensei que tínhamos perdido essas profecias para sempre .
— com o estranho sorriso ainda nos lábios , ele apenas observava. Ela esticou-se
e segurou o braço dele. — Poderíamos ter tanta sorte de que cópias realmente
tenham sido feitas?
Nathan assentiu, confirmando o pensamento dela. O sorriso desapareceu .
— Ann, — ele falou quando entregava a ela Doze Palavras Restantes
para a Razão — dê uma olhada nesse trecho e diga -me o que você acha.
Confusa com a expressão sombria que dominara o rosto dele , ela colocou
o livro em um local livre e começou a folhear as páginas cuidadosamente . As
inscrições estavam um pouco desbotadas , mas não muito mais do que qualquer
livro dessa idade. Tão antigo quanto era , ele ainda estava em boas condições e
bastante legível.
Doze Palavras Restantes para a Razão era um livro contendo doze
profecias principais e várias ramificações auxiliares . Essas ramificações
auxiliares, quando tinham suas referências cruzadas cuidadosame nte, conectavam
eventos atuais a um grande número de outros livros de profecias que, de outra
forma, seriam impossíveis de organizar cronologicamente . Na verdade as doze
profecias principais não eram tão importantes . Eram as ramificações auxiliares
que serviam para ligar outros troncos e galhos na árvore de profecias que

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tornavam Doze Palavras Restantes para a Razão tão valioso .
Cronologia geralmente era o problema mais desafiador encarado por
aqueles que trabalhavam com profecia . Frequentemente era impossí vel dizer se
uma profecia aconteceria no dia seguinte , ou no século seguinte. Eventos estavam
em constante estado de fluxo . O estabelecimento da profecia no contexto temporal
era essencial, não apenas para saber quando uma profecia em particular tornar-
se-ia viável, mas porque o que era de avassaladora importância no ano seguinte
poderia não ser mais do que um evento menor sem importância se fosse definido
no ambiente do ano passado. A não ser que soubessem em que ano a profecia
tomava lugar, eles não saberiam se ela previa perigo ou simplesmente uma questão
de nota.
A maioria dos Profetas , quando declaravam suas profecias , deixavam
para aqueles que viriam depois a tarefa de colocá -las em seus lugares adequados
nos eventos do mundo real. Não havia um cl aro consenso se isso havia sido feito
deliberadamente, por falta de cuidado , ou porque o Profeta, durante o processo
quando tinha suas visões , nunca percebeu o quanto seria importante, e difícil ,
posicionar cronologicamente sua visão depois . Muitas vezes ela observou com
Nathan que uma profecia era tão clara para o próprio Profeta que ele simplesmente
não compreendia que tarefa formidável seria para outros ler e encaixá -la no
quebra cabeças da vida.
— Espere. — Nathan falou enquanto ela folheava as páginas . — Volte
uma página.
Ann levantou os olhos para ele e então retornou uma página .
— Aqui, — disse Nathan enquanto batia com um dedo na página. — olhe
aqui. Tem várias linhas faltando .
Ann espiou a pequena lacuna nas escrituras , mas não viu o que seria tão
significativo naquilo . Livros geralmente tinham espaços em branco deixados por
uma variedade de razões .
— Então?
Ao invés de responder , ele balançou a mão, pedindo que ela
prosseguisse. Ela começou a folhear as páginas . Nathan esticou a mão para fazer
ela parar e bateu com o dedo em outro ponto em branco , para que ela notasse.
Então ele fez sinal para que ela continuasse .
Ann notou que os espaços em branco tornavam -se mais frequentes .
Finalmente, ela chegou a páginas inteiras que estavam em branco . Porém, até
mesmo isso não era algo do qual nunca tivesse ouvido falar . Havia diversos livros
que simplesmente terminavam no meio . Acreditava-se que o Profeta que estivera
trabalhando nesses livros provavelmente tinha morrido e aqueles que vinham
depois não quiseram interferir naquilo que um predecessor fizera , ou talvez eles
desejassem trabalhar em ramificações da profecia que eram mais interessantes ou
relevantes para eles .
— Doze Palavras Restantes para a Razão é um dos poucos livros de
profecia que é cronológico . — ele fez ela lembrar com uma voz suave .
Ela sabia disso, é claro . Isso era o que tornava o livro uma ferramenta
tão valiosa. Entretanto, ela não conseguia imaginar , porque ele achou importante
destacar isso.
— Bem, — disse Ann com um suspiro quando cheg ou ao final. — isso é
estranho, eu suponho . O que você acha das páginas em branco ?
Ao invés de responder diretamente , ele entregou a ela outro livro . —
Subdivisão da Raiz de Burkett. Dê uma olhada.
Ann virou as páginas de outro achado sem preço , procurando algo fora

87
do comum. Ela encontrou três páginas em branco seguidas por mais profecias .
Ela estava ficando impaciente com o jogo de Nathan. — O que eu deveria
ver?
Nathan levou um momento para responder . Quando finalmente o fez , sua
voz tinha aquela qualidade que tendia a causar calafrios na espinha dela .
— Ann, nós tínhamos esse livro nas câmaras .
Ela ainda não estava captando o que obviamente era de importância
crítica para ele. — Sim, nós tínhamos. Lembro muito bem dele.
— A cópia que nós ti vemos não possuía essas páginas em branco .
Ela franziu a testa e então virou de volta para o livro . Folheou as páginas
outra vez até que encontrou o ponto vazio .
— Bem, — disse ela quando estudou o lugar onde a profecia terminava
e então onde uma ramificaç ão completamente nova da profecia continuava após
as páginas vazias. — talvez quem fez essa cópia , por alguma razão, decidiu não
incluir uma parte dela. Talvez tivesse uma boa razão para acreditar que a
ramificação em particular havia sido um beco sem saída e, ao invés de incluir
madeira morta na árvore da profecia , simplesmente deixou de fora . Esse tipo de
poda não é incomum . Então, uma vez que não queria fazer parecer que estava
tentando enganar alguém , seguiu adiante e deixou o espaço em branco aprop riado
para indicar a exclusão .
Ela levantou os olhos . Os olhos azuis do Profeta estavam fixos nela . Ann
sentiu suor escorrer entre suas espáduas .
— Dê uma olhada no Livro Glendhill de Teoria dos Desvios . — ele falou
com uma voz tranquila sem afastar seu ol har penetrante dela.
Ann rompeu o contato visual com aquele olhar e puxou a cópia do Livro
Glendhill de Teoria dos Desvios mais perto. Folheou as páginas como fizera com
o livro anterior , apenas um pouco mais rápido .
Havia páginas em branco , só que mais de las.
Ela balançou os ombros . — Não é uma cópia muito precisa , eu diria.
Nathan esticou um longo braço com impaciência e virou a pilha de
páginas de volta até a frente .
Ali, em uma página no início , sozinha, estava a assinatura do autor .
— Querido Criador. — Ann sussurrou quando viu o pequeno símbolo .
Ele ainda brilhava com a magia que o autor tinha investido em sua assinatura . Ela
sentiu calafrios . — Isso não é uma cópia. É o original .
— Isso mesmo. Se você recorda , aquele que tínhamos nas câmaras era
uma cópia.
— Sim, eu lembro que o nosso era uma cópia .
Ela havia assumido que esse também era uma de várias cópias . Muitos
dos livros de profecias eram cópias , mas isso não reduzia o seu valor . Eles eram
checados e marcados por respeitados estudiosos que então deixavam sua própria
assinatura para atestar a exatidão da cópia . Um livro de profecia era valorizado
pela precisão e veracidade de seu conteúdo , não porque era o original . Era a
profecia em si que era valiosa , não a mão que a escrevia .
Ainda assim , ver o original de um livro que ela adorava tanto como esse
volume em particular era uma experiência memorável . Esse era o livro verdadeiro ,
escrito pelas mãos do Profeta que tinha fornecido essas preciosas profecias .
— Nathan... o que posso dizer. Esse é um deleite pessoal para mim . Você
sabe o quanto esse livro significa para mim .
Nathan soltou um suspiro paciente . — E as páginas em branco ?
Ann balançou um dos ombros . — Não sei. Não estou realmente preparada

88
para arriscar um palpite . Aonde você quer chegar?
— Olhe para os locais onde os espaços em branco encaixam no texto .
Ann desviou sua atenção para o livro novamente . Ela leu um pouco do
texto antes de uma das áreas em branco , então leu um pouco do que vinha em
seguida. Era uma profecia sobre Richard. Ela escolheu aleatoriamente outro
espaço em branco, lendo antes da área em branco e após . Era outro trecho sobre
Richard.
— Parece... — ela disse enquanto estudava um terceiro local. — que os
espaços em branco surgem nos lugares onde fala a respeito de Richard.
Nathan estava com aparência mais inquieta nesse momento . — Isso
apenas porque a maior parte do Livro Glendhill de Teoria dos Desvios é sobre
Richard. Esse padrão de páginas em branco associadas a ele não guarda a verdade
quando você começa a olhar para os outros livros .
Ann ergueu os braços e deixou eles caírem. — Então eu desisto. Não
enxergo o que você vê.
— É o que nós não estamos vendo . O problema são os espaços em branco .
— O que faz você afirmar isso ?
— Porque, — ele falou com um pouco mais de força na voz. — tem algo
bastante estranho a respeito desses trechos em branco .
Ann enfiou uma mecha de cabelo grisalho de volta para dentro do coque
que sempre usava atrás da cabeça . Ela estava ficando cansada .
— Como o quê?
— Diga-me você. — falou ele. — Eu apostaria que você conseguiria
praticamente citar de cor o Livro Glendhill de Teoria dos Desvios .
Ann sacudiu os ombro. — Talvez.
— Bem, eu posso citar. Pelo menos, a cópia que tínhamos nas câmaras .
Eu folheei esse livro , verificando-o conforme a minha memória. — por alguma
razão, o estômago de Ann estava revirando de ansiedade . Ela começou a temer
que a cópia que eles tinham nas câmaras no Palácio pudesse ter profecias
fraudulentas preenchendo aquilo que o autor original deixara em branco . Essa era
uma decepção quase grandiosa demais para considerar .
— E o que você descobriu ? — ela perguntou.
— Que eu consigo citar esse original exatamente . Nem mais, nem menos .
Ann suspirou aliviada. — Nathan, isso é maravilhoso. Isso significa que
nossa cópia não estava preenchida com profecias fabricadas . Porque você ficaria
preocupado em não conseguir lembrar dos espaços em branco ? Eles estão em
branco, não há nada ali. Não há nada para lembrar .
— A cópia que tínhamos no Palácio não continha quaisquer espaços em
branco.
Ann piscou enquanto pensava naquilo . — Não, não tinha. Lembro disso
muito bem. — ela exibiu um caloroso sorriso para o Profeta . — Mas não percebe?
Se você consegue citar esse aqui , nem mais, nem menos , e você aprendeu com
nossa cópia, então isso signific a que seja lá quem tenha feito a cópia simplesmente
uniu o texto ao invés de incluir os locais em branco sem significado deixados pelo
Profeta original. O Profeta provavelmente deixou espaços em branco como
precaução caso ele tivesse quaisquer outras visõe s posteriores a respeito das
profecias e precisasse adicionar naquilo que já tinha escrito . Aparent emente, ele
nunca precisou , então as páginas em branco permanecem .
— Eu sei que havia mais páginas em nossa cópia .
— Então eu não estou acompanhando seu raciocínio .
Dessa vez foi Nathan quem jogou os braços para o alto . — Ann, não está

89
vendo? Eu dei uma olhada no livro . — ele virou-o em direção a ela . — Olhe para
essa ramificação de profecia perto do final . Tem uma página e depois seis páginas
em branco. Você lembra de uma ramificação de profecia em nossa cópia do Livro
Glendhill de Teoria dos Desvios que tinha apenas uma página ? Não. Nenhuma era
tão curta. Elas eram complexas demais . Você sabe que tem mais coisas na
profecia, eu sei que tem mais na profeci a, mas a minha mente está tão vazia quanto
essas páginas . O que estava ali não está faltando apenas no livro, mas está faltando
na minha mente também . A não ser que você possa citar para mim o resto da
profecia que você sabe que devia estar ali , então ela sumiu da sua mente também .
— Nathan, isso simplesmente não... quero dizer , eu não vejo como... —
Ann gaguejou, confusa.
— Aqui, — disse ele quando pegou um livro que estava atrás dele . —
Origens Reunidas. Você deve lembrar desse .
Ann pegou o livro das mãos dele com reverência . — Oh, Nathan, é claro
que lembro dele . Como poderia esquecer de um livro tão curto mas tão belo .
Origens Reunidas era uma profecia extremamente rara que estava escrita
inteiramente em forma de história . Ann adorava a história. Tinha uma fraqueza
por romances , embora jamais admitisse isso para qualquer pessoa . Uma vez que
essa história de romance era na verdade uma profecia , isso tornava um requisito
oficial que estivesse familiarizada com ela .
Ela sorriu quando abria a capa do pequeno livro.
As páginas estavam em branco .
Todas elas.
— Diga-me, — Nathan falou com aquela voz de comando suave de um
Rahl. — sobre o que Origens Reunidas fala?
Ann abriu a boca, mas palavra alguma saiu .
— Diga-me, então, — Nathan prosseguiu com aquela voz tranquila e
poderosa dele que parecia como se tivesse a capacidade de partir rocha. — uma
simples linha desse adorado volume . Diga-me sobre quem ele fala. Diga-me como
ele começava, como terminava, ou qualquer coisa no meio .
A mente dela estava completamen te vazia.
Quando ela olhou fixamente dentro dos olhos penetrantes de Nathan, ele
curvou-se chegando mais perto . — Diga-me apenas uma coisa que você lembra
desse livro .
— Nathan, — finalmente ela conseguiu sussurrar , com seus olhos
arregalados. — você costumava manter esse livro em seus aposentos . Conhece ele
melhor do que eu . O que você lembra de Origens Reunidas?
— Nem... uma... coisinha.

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C A P Í T U L O 1 2

Ann engoliu em seco. — Nathan, como nós dois podemos não lembrar
qualquer coisa de um livro que adoramos tanto como esse ? E porque as partes
específicas que nós dois não lembramos correspondem com os trechos em branco ?
— Agora, essa é uma pergunta muito boa .
Uma ideia ocorreu a ela, de repente . Ela engasgou e soltou um suspiro .
— Um feitiço. Esses livros foram enfeitiçados, tem que ser isso .
Nathan fez uma careta. — O quê?
— Muitos livros são enfeitiçados para proteger a informação . Não
encontrei isso em qualquer livro de profecia mas é bastante comum em livros de
instrução sobre magi a. Esse lugar foi providenciado com objetivo de ocultação .
Talvez tenha sido que aconteceu com a informação protegida aqui .
Um feitiço assim seria ativado quando alguém que não fosse a pessoa
certa com o poder requerido o abrisse . Feitiços dessa natureza à s vezes eram
conectados a indivíduos específicos . O método usual de proteção se a pessoa
errada visse o livro era apagar da memória dela tudo que tinha visto nele . Ela
veria isso e ao mesmo tempo esqueceria . O efeito na mente de alguém era fazer o
texto ficar em branco.
Nathan não respondeu , mas sua expressão suavizou conforme ele
considerava a ideia. Ela podia afirmar pela expressão dele que ele duvidava que
sua teoria fosse a resposta mas aparentemente ele simplesmente não queria
discutir o assunto nesse momento, provavelmente confuso por ter algo mais
importante com o qual desejava prosseguir .
Decidido, ele bateu com um dedo sobre o topo de uma pequena pilha de
livros que estavam separados . — Esses livros, — ele disse com um tom sério. —
são predominantemente sobre Richard. Nunca tinha visto a maioria deles .
Considero isso alarmante , que livros como esses estivessem escondidos em um
lugar assim. A maioria tem grandes extensões de páginas em branco .
O fato de que tantos livros de profecia , especialmente sobre Richard,
não estivessem no Palácio dos Profetas certamente era alarmante . Durante cinco
séculos ela havia vasculhado o mundo atrás de cópias de quaisquer livros que
pudesse encontrar que contivesse qualquer coisa a respeito de Richard.
Ann coçou uma sobrancelha enquanto avaliava as implicações . — Você
conseguiu aprender alguma coisa ?
Nathan pegou o volume no topo e abriu o livro . — Bem, para citar uma
coisa, esse símbolo aqui , me incomoda bastante . É uma forma incrivelmente rara
de profecia, ocorrida enquanto o Profeta estava preso em uma tempestade de
revelação. Esse tipo de Profecias gráficas são desenhadas no calor de uma visão
poderosa, quando escrever levaria tempo demais e interromperia o fluxo daquilo
que estava fluindo através da mente dele.
Ann estava apenas vagamente consciente desse tipo de profecia
representacional. Ela lembrava de algumas nas câmaras do Palácio . Nathan nunca
tinha mencionado para ela o que elas seriam , e ninguém mais sabia. Outro dos
pequenos segredos com mil anos de Nathan.
Ela inclinou -se chegando mais perto e estudou o complexo desenho que
tomava mais de uma página . Não havia qualquer linha reta nele , somente traços
curvados e arcos que margeavam ao redor em um padrão circular que de alguma

91
forma parecia qua se vivo. Aqui e ali a pena havia mergulhado violentamente na
superfície do papel velino , sulcando linhas paralelas de fibras onde as duas
metades da ponta da pena haviam se afastado sob a pressão. Ann ergueu o livro
mais perto de uma vela e examinou cuidadosamente um lugar curioso que estava
particularmente áspero . Ela viu na antiga marca de tinta seca um fino , pontudo,
fragmento de metal : um lado da ponta da pena quebrara no local onde estava
fincada na página . Ele ainda estava preso ali . Logo depois, as marcas mais limpas
de uma nova pena reiniciara , ainda que não menos forçosamente .
Nada no desenho com tinta representava qualquer assunto
identificável... aquilo parecia ser completamente sem objetivo... e ainda assim
era, por algum motivo, tão gravem ente perturbador que fez uma temor aflorar .
Parecia como se o desenho fosse quase reconhecível mas o seu significado
estivesse fora de sua percepção consciente .
— O que é isso? — ela pousou o livro sobre a mesa , aberto no desenho.
— O que significa?
Nathan esfregou um dedo em sua forte mandíbula . — É meio difícil
explicar. Não há palavras precisas para descrever o que vem como uma imagem
em minha mente quando eu visualizo isso .
— Você acha... — Ann perguntou com exagerada paciência enquanto
cruzava as mãos. — que conseguiria fazer um esforço e descrever para mim da
melhor forma que puder?
Nathan olhou para ela de soslaio . — As únicas palavras em que consigo
pensar que enquadram -se nisso são “a besta está vindo”.
— A besta?
— Sim. Não sei o que a impressão significa. A profecia está
parcialmente encoberta , seja deliberadamente ou talvez porque o seu significado
representa algo que eu jamais tenha encontrado , ou talvez até mesmo porque está
conectada com as páginas em branco e se m o seu texto associ ado o desenho não
estará completamente compreensível para mim .
— O que essa besta vem fazer ?
Nathan fechou a capa para que ela pudesse ver o título : Uma Pedra no
Lago.
Suor frio irrompeu na testa dela .
— O símbolo é um alerta gráfico. — disse ele.
A profecia geralmente referia-se a Richard como a “pedra no lago ”. O
texto desse volume provavelmente seria de valor incalculável . Se ao menos ele
não estivesse faltando .
— Você quer dizer... que é um alerta para Richard de que algum tipo de
besta está chegando?
Nathan assentiu. — Isso foi o que pude concluir a partir disso... isso e
uma vaga impressão da aura terrível em volta da coisa .
— Em volta da besta .
— Sim. O texto de apoio que precedia o desenho teria sido crítico para
entendê-lo melhor, para ser capaz de compreender a natureza da besta , mas esse
texto está ausente. As ramificações depois também estão em branco então não há
como encaixar o alerta contextualmente ou cronologicamente . De acordo com o
que sei, poderia ser alguma coisa que ele já enfrentou e de rrotou, ou algo que na
velhice dele poderá derrotá-lo. Sem ao menos uma parte da profecia de apoio ou
um contexto simplesmente não há como dizer .
A cronologia era vital para entender a profecia , mas apenas o temor que
ela sentia quando via o desenho já fazia com que Ann não acreditasse que isso

92
fosse algo que Richard já tinha encarado.
— Talvez o significado seja uma metáfora . O exército de Jagang
comporta-se como uma besta e certamente eles poderiam ser descritos como
terríveis. Eles matam tudo em seu cami nho. Para as pessoas livres , e para Richard
especialmente, a Ordem Imperial é uma besta chegando para destruí -los e tudo
que eles valorizam .
Nathan balançou os ombros . — Essa poderia muito bem ser a explicação .
Eu simplesmente não sei.
Ele fez uma pausa durante um momento antes de continuar. — Tem mais
um pequeno conselho indireto a ser encontrado não apenas nesse livro mas em
vários dos outros livros. — ele lançou um olhar sério para ela. — Livros que eu
nunca tinha visto.
Por toda uma variedade de razõe s, Ann também achou perturbador
descobrir que havia todos esses livros escondidos em uma estranha sala de
cemitério subterrânea.
Nathan apontou novamente para os livros empilhados sobre as quatro
mesas largas . — Ainda que certamente houvesse cópias de vári os dos livros que
temos visto, e mostrei esses para você , a maioria desses livros são novos para
mim. Que alguma biblioteca se desfizesse a esse nível de obras primas clássicas
é algo sem precedentes . Cada biblioteca tem seus próprios volumes únicos ,
certamente, mas esse lugar é como outro mundo . Quase todos os volumes aqui são
uma descoberta surpreendente .
A cautela de Ann despertou. Ela estava com a estranha sensação de que
Nathan finalmente tinha chegado ao centro do labirinto através do qual a mente
dele viajava. Uma coisa que ele acabara de falar destacou -se no fundo da mente
dela.
— Conselho? — ela fez uma careta, desconfiada . — Que tipo de
conselho?
— Ele avisa ao leitor que se o interesse dele não for de natureza geral
e, ao invés disso , ele tiver motivo para buscar um conhecimento mais extenso e
específico nos assuntos envolvidos , então ele deveria consultar os volumes
pertinentes guardados junto com os ossos .
A testa de Ann franziu ainda mais. — Guardados com os ossos ?
— Sim. Ele refere-se a esses lugares como “locais centrais” . — Nathan
inclinou-se chegando mais perto outra vez , como uma lavadeira com muita fofoca .
— Os “locais centrais” são mencionados em vários pontos, mas até agora só fui
capaz de descobrir onde um desses pontos estava indicado : as catacumbas sob as
câmaras no Palácio dos Profetas .
Ann ficou de boca aberta . — Catacumbas... isso é um despropósito . Não
havia um lugar assim embaixo do Palácio dos Profetas .
— Não que nós soubéssemos. — Nathan falou com um tom sério . — Isso
não significa que ele não existia .
— Mas, mas... — Ann gaguejou. — isso simplesmente não é possível .
Simplesmente não é . Uma coisa como essa não poderia passar despercebida . Em
todo aquele tempo que as Irmãs viveram lá nós saberíamos .
Nathan balançou os ombros. — Durante todo esse tempo ninguém sabia
a respeito desse lugar , aqui, embaixo dos ossos .
— Mas ninguém vivia logo em cima daqui .
— E se a presença de catacumbas sob o Palácio não fosse de
conhecimento comum ? Afinal de contas, sabemos pouco sobr e os magos daquela
época, e não sabemos muita coisa sobre as pessoas específicas envolvidas na

93
construção do Palácio dos Profetas . Poderia ser que eles tivessem alguma razão
para esconder um lugar assim, do mesmo jeito como esse lugar estava escondido .
Nathan ergueu uma sobrancelha. — E se parte do propósito do Palácio,
o treino de jovens magos, fosse parte de um elaborado ardil para esconder a
existência de um lugar secreto como esse ?
Ann conseguiu sentir seu rosto ficando vermelho . — Você está sugerindo
que o nosso trabalho não tinha significado ? Como ousa ao menos sugerir que todas
as nossas vidas foram devotadas a nada mais do que um engodo , e que as vidas
daqueles com o Dom não seriam preservadas .
— Não estou sugerindo nada desse tipo . Não estou dizendo que as Irmãs
estavam sendo ludibriadas ou que o que elas faziam não poupava as vidas de
garotos com o Dom e ajudava a preservá -las. Só estou dizendo que esses livros
sugerem que podia haver mais coisa nisso . E se não houvesse apenas a intenção
de ter um lugar para que as Irmãs praticassem a sua útil vocação , e houvesse em
parte um propósito maior por trás do lugar onde elas praticavam essa vocação ?
Afinal de contas, pense no cemitério acima de nós; ele tem uma razão válida para
existir, mas também fornece convenientemente uma forma de esconder esse local .
— Talvez catacumbas assim fossem deliberadamente encobertas há
milhares de anos com a intenção de escondê -las? Se foi assim, então nós nunca
teríamos conhecimento da existência delas . Se esse era um local secreto não
existiria qualquer registro dele .
— De acordo com a impressão que eu tenho a partir das referências
nesses livros, tenho razão para acreditar que algum dia houve livros que eram
considerados tão perturbadores e em alguns casos continham feitiç os tão
perigosos que foi decidido que eles precisavam ser confinados em alguns “locais
centrais” escondidos como precaução , para que eles não acabassem entrando em
circulação, onde seriam copiados , como é a prática com a maioria das profecias .
Que forma melhor de “restringir o acesso ”. Uma vez que essas referências falam
dos “livros guardados com os ossos” , eu suspeito que esses outros “locais
centrais” podem ser catacumbas como aquela indicada sob o Palácio dos Profetas .
Ann balançou a cabeça lentamente en quanto tentava absorver tudo
aquilo, enquanto tentava imaginar se havia qualquer possibilidade de que isso
pudesse ser verdade. Ela olhou novamente para a mesa com as pilhas de livros
que eram em maior parte sobre Richard, e que eles nunca tinham visto .
Ann gesticulou. — E esses aqui?
— O que está ali eu quase desejava não ter lido .
Ann agarrou a manga dele . — Porquê? O que você leu?
Ele pareceu recompor-se. Balançou a mão , sorriu brevemente, e mudou
de assunto.
— O que eu considero mais perturbador a respeito dos trechos em branco
nos livros é o seu assunto em comum. Ainda que nem todos os textos que estão
faltando sejam da profecia sobre Richard, cheguei à conclusão de que todos eles
possuem uma coisa em comum .
— E que coisa seria essa?
Nathan ergueu um dedo para enfatizar sua declaração . — Cada um dos
trechos que faltam estão em profecias que pertencem a um tempo após o
nascimento de Richard. Nenhuma das profecias que pertencem a um tempo antes
do nascimento de Richard, ou próximo disso, estão com trechos faltando .
Ann cruzou as mãos cuidadosamente enquanto considerava o mistério e
como solucionar o quebra cabeças .
— Bem, — ela falou finalmente. — tem uma coisa que poderíamos

94
checar. Eu poderia pedir que Verna enviasse uma mensagem para a Fortaleza do
Mago em Aydindril. Zedd está lá protegendo o lugar para que não caia nas mãos
de Jagang. Poderíamos pedir a Verna que envie uma mensagem e peça para Zedd
verificar os lugares específicos nas cópias dele de livros que temos aqui e
verificar se o mesmo text o está faltando neles.
— Isso é uma boa ideia. — disse Nathan.
— Com a extensão das bibliotecas na Fortaleza , ele deve ter vários dos
livros clássicos de profecia que reconhecemos e temos aqui.
O rosto de Nathan iluminou-se. — Para dizer a verdade, seria melhor
ainda se pedíssemos a Verna que envie alguém até o Palácio do Povo em D'Hara.
Quando eu estava lá passei bastante tempo nas bibliotecas do Palácio . Lembro
claramente de ver cópias de vários desses livros . Se alguém checasse eles para
nós, isso nos diria se os livros aqui estão enfeitiçados , como você sugeriu, e o
problema está confinado a essas edições , ou se isso é algum tipo de fenômeno
mais amplo. Precisamos que Verna mande alguém até o Palácio do Povo
imediatamente.
— Isso seria bastante fá cil. Verna está prestes a partir para o sul . No
caminho sem dúvida eles seguirão viagem perto do Palácio do Povo .
Nathan franziu a testa para ela. — Teve notícias de Verna? E ela disse
que está seguindo para o sul ? Porquê?
A alegria de Ann sumiu. — Recebi uma mensagem dela mais cedo esta
noite... pouco antes de vir aqui .
— E o que a sua jovem Prelada tem a dizer ? Porque ela está viajando
para o sul?
Com resignação , Ann soltou um profundo suspiro . — Temo que as
notícias não sejam das melhores . Ela disse que Jagang dividiu seu exército . Ele
está levando parte de sua horda descendo ao redor das montanhas para entrar em
D'Hara a partir do sul. Verna está partindo com um grande contingente das forças
D’Haranianas para eventualmente encarar o exército da Ordem .
O sangue foi drenado do rosto de Nathan.
— O que você disse? — ele sussurrou .
Ann ficou confusa com a expressão de espan to dele. — Você está
querendo dizer, que Jagang dividiu seu exército ?
Ela não achou que fosse possível , mas o rosto do Profeta ficou mai s
pálido ainda.
— Que os queridos espíritos nos protejam. — ele sussurrou. — Está cedo
demais. Não estamos prontos .
Ann sentiu um calafrio de pavor começar em seus dedos dos pés e
começar a subir nas pernas . Sua coxas começaram a tremer . — Nathan, do que
você está falando? Qual é o problema?
Ele virou e procurou freneticamente nas lombadas dos livros empilhados
sobre as mesas. Finalmente encontrou o que queria no meio da pilha e retirou -o,
deixando o resto da pilha cair . Folheou apressadamente no livro , murmurando
para si mesmo enquanto procurava .
— Aqui está. — ele falou enquanto pressionava um dedo sobre uma
página. — Tem várias profecias aqui embaixo que encontrei em livros que eu
nunca tinha visto . Essas profecias que cercam a batalha final estão ocultas para
mim... não consigo enxergá -las em visões... mas as palavras já são assustadoras o
bastante. Essa resume todas tão claramente quanto qualquer outra .
Ele curvou -se chegando mais perto e sob a luz da vela leu um trecho do
livro para ela. — “No ano das cigarras, quando o campeão do sacrifício e

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sofrimento, sob a bandeira tanto da humanidade quanto da Luz , finalmente dividir
o seu enxame, então será o sinal de que a profecia foi despertada e que a batalha
final e decisiva está sobre nós . Tenha cuidado, pois todas as ramificações
verdadeiras e suas derivações estão entrelaçadas nessa raiz mântica. Somente um
tronco provém dessa origem primal conjugada . Se Fuer grissa ost drauka não
liderar essa batalha final, então o mundo, já permanecendo n o limiar das trevas,
cairá sob essa terrível sombra”.
Fuer grissa ost drauka era um dos nomes proféticos para Richard. Era
de uma profecia bem conhecida na língua antiga do Alto D’Haraniano. Sua
tradução era aquele que traz a morte . Chamá-lo por esse nome aqui nessa profecia
era uma forma de conectar as duas profecias em uma ramificação conjugada .
— Se as cigarras surgirem esse ano , — falou Nathan. — então isso
confirmará que essa profecia não está apenas autêntica mas também ativa .
Os joelhos de Ann fraquejaram. — As cigarras começaram a emergir
hoje.
Nathan olhou para ela fixamente como se o Criador em pessoa
pronunciasse o julgamento . — Então a cronologia está fixada . Todas as profecias
encaixaram -se. Os eventos estão marcados . O fim está sobre nós .
— Que o querido Criador nos proteja. — Ann sussurrou.
Nathan enfiou o livro no bolso . — Devemos chegar até Richard.
Ela já estava assentindo . — Sim, você tem razão. Não há tempo a perder.
Nathan olhou ao redor. — Certamente não podemos levar todos esses
livros conosco e não há tempo para ler . Devemos selar esse lugar , como ele estava,
e partir imediatamente.
Antes que Ann pudesse afirmar que concordava , Nathan balançou um
braço. Todas as velas apagaram . Somente a lanterna no canto de uma das mesas
permaneceu acesa. Quando passava, ele pegou-a com sua grande mão .
— Vamos lá. — disse ele.
Ann correu para alcançá-lo, tentando ficar no pequeno círculo de luz
agora que a estranha sala havia sido mergulhada na escuridão . — Tem certeza de
que não deveríamos levar algum dess es livros?
O profeta avançou apressado na estreita escadaria , a luz junto com ele.
— Não podemos nos atrasar carregando eles . Além disso, qual deveríamos pegar?
— ele fez uma pausa olhando para trás por cima do ombro . Seus rosto estava cheio
de ângulos e l inhas na luz bruxuleante da lanterna . — Já sabemos o que a profecia
diz e agora, pela primeira vez , conhecemos a cronologia. Temos que chegar até
Richard. Ele tem que estar lá na batalha quando os exércitos lutarem ou tudo
estará perdido .
— Sim, e teremos que nos certificar de que ele esteja lá para completar
as palavras da profecia.
— Então nós estamos de acordo. — falou ele quando virou e subiu
rapidamente os degraus . A escadaria ondulada era tão estreita e baixa que ele teve
dificuldade para subir.
No topo, eles emergiram na noite , em meio ao zunido da canção das
cigarras. Nathan chamou Tom e Jennsen. As árvores balançavam suavemente na
brisa húmida enquanto eles aguardavam uma resposta . Pareceu uma eternidade ,
mas na verdade levou apenas um momento até Tom e Jennsen surgirem correndo
da escuridão.
— O que foi? — Jennsen perguntou, sem fôlego .
A sombra escura de Tom agigantava-se ao lado dela . — Algum
problema?

96
— Sério problema. — Nathan confirmou.
Ann pensou que ele podia ser um pouco mais discreto a respeito disso ,
mas séria como a situação era , provavelmente a discrição não fazia sentido . Ele
tirou do bolso o livro que havia pego da biblioteca . Abriu em uma página em
branco onde a profecia estava faltando .
— Diga-me o que isso diz. — ele pediu, segurando-o para Jennsen.
Ela fez uma careta . — O que diz? Nathan, está em branco .
Ele resmungou seu descontentamento . — Isso significa que Magia
Subtrativa estava envolvida de alguma forma . Subtrativa é a magia do Submundo,
o poder da morte, então afeta ela do mesmo jeito que nos afeta .
Nathan virou novamente para Jennsen. — Encontramos profecia que tem
relação com Richard. Devemos encontrá-lo ou Jagang vencerá a guerra .
Jennsen engasgou. Tom soltou um assovio baixo .
— Sabe onde ele está? — Nathan perguntou.
Sem hesitar, Tom virou e ergueu um braço para apontar dentro da noite .
Sua ligação disse a ele o que o Dom deles não conseguia . — Ele está naquela
direção. Não está a uma grande distância , mas também não está perto .
Ann espiou dentro da escuridão . — Teremos que juntar nossas coisas e
partir ao amanhecer .
— Ele está em movimento. — falou Tom. — Duvido que vocês o
encontrem lá naquele lugar no momento em que chegarem .
Nathan soltou uma praga. — Não há como afirmar para onde aquele
garoto está seguindo .
— Eu diria que ele está retornando para Altur'Rang. — falou Ann.
— Sim, mas e se ele não ficar lá ? — ele colocou uma das mãos no ombro
de Tom. — Precisaremos que você venha conosco . Você é um dos protetores
secretos de Lorde Rahl. Isso é importante .
Ann viu a mão de Tom segurando firme a faca no cinto . O cabo prateado
daquela faca tinha a letra “ R” ornamentada gravada, indicando a Casa de Rahl.
Era uma faca rara carregada por raros indivíduos que trabalhavam ocultos para
proteger a vida do Lorde Rahl.
— É claro. — disse Tom.
— Eu também vou. — Jennsen adicionou rapidamente . — Só tenho que
pegar...
— Não. — falou Nathan, silenci ando-a. — Precisamos que você fique
aqui.
— Porquê?
— Porque, — Ann falou com um tom mais simpático do que aquele que
Nathan usara. — você é a conexão de Richard com essas pessoas . Eles precisam
de ajuda para entenderem o mundo mais amplo que acabou de ser aberto para eles .
Eles estão vulneráveis diante da Ordem Imperial e vulneráveis para serem usados
contra nós. Eles acabaram de fazer a escolha de tornarem-se parte de nossa causa
e parte do Império D’Haraniano. Richard precisa que você fique aqui por
enquanto, e nesse momento o lugar de Tom e conosco e com seu dever a Richard.
Com pânico nos olhos , ela olhou para Tom. — Mas eu...
— Jennsen, — Nathan disse, seu braço envolvendo os ombros dela. —
olhe ali. — ele apontou descendo as escadas . — Você sabe o que tem lá embaixo .
Se alguma coisa acontecer a nós , Richard pode precisar saber também . Você deve
ficar aqui para guardar esse lug ar para ele. Isso é importante, tão importante
quanto Tom vir conosco . Não estamos tentando poupá -la do perigo ; na verdade,
isso pode ser ainda mais perigoso do que vir conosco .

97
Jennsen olhou dos olhos Nathan para os de Ann e com relutância
reconheceu o quanto a situação era séria . — Se vocês acham que Richard pode
precisar de mim aqui , então eu devo ficar.
Ann encostou as pontas dos dedos na parte de baixo do queixo da jovem .
— Obrigada, criança, por entender a importância disso .
— Devemos fechar esse luga r, como ele estava quando eu o encontrei.
— Nathan falou, agitando os braços apressadamente. — Mostrarei a você o
mecanismo e como fazer ele funcionar . Então devemos voltar para a cidade e
juntar nossas coisas . Conseguiremos dormir apenas algumas horas ant es do nascer
do sol, mas isso não pode ser evitado .
— É uma longa caminhada para fora de Bandakar. — disse Tom. —
Depois que cruzarmos a passagem na montanha teremos que arrumar alguns
cavalos se quisermos alcançar Lorde Rahl.
— Então, está decidido. — falou o profeta. — Vamos fechar essa tumba
de novo e seguir nosso caminho .
Ann franziu a testa. — Nathan, esse depósito de livros esteve escondido
sob essa lápide durante milhares de anos . Durante todo esse tempo ninguém
descobriu que isso estava ali ... como você conseguiu encontrar ?
Nathan levantou uma sobrancelha . — Na verdade, não achei que isso foi
tão difícil. — ele caminhou dando a volta na frente do enorme monumento de
rocha e esperou que Ann chegasse mais perto. Logo que ela parou, ele ergueu a
lanterna.
Ali, esculpido no rosto da rocha antiga estavam apenas duas palavras :
NATHAN RAHL.

98
C A P Í T U L O 1 3

Já era no final da tarde quando Victor, Nicci, Cara, e Richard passaram


através das longas sombras entre as oliveiras que cobriam as colinas ao sul do
lado de fora de Altur'Rang. Richard não havia reduzido o passo e todos estavam
cansados da árdua, mesmo que relativamente curta , jornada. A chuva fria tinha
seguido adiante, empurrada para longe pelo opressivo peso do calor e humidade .
Da forma como todos estavam suando , ainda podia muito bem estar chovendo .
Ainda que ele estivesse cansado , Richard sentia-se melhor do que dois
dias atrás. A despeito de sua exaustão , sua força estava retornando gradualmente .
Ele também estava aliviado q ue não tivessem encontrado qualquer sinal
da besta. Diversas vezes ele pediu aos outros que prosseguissem enquanto ele
recuava checando para ver se estavam sendo seguidos . Ele não avistara qualquer
sinal de alguém ou alguma coisa seguindo atrás deles e ent ão estava começando a
respirar com mais tranquilidade . Ele também teve que considerar a possibilidade
de que a informação de Nicci sobre Jagang criar um monstro como ess e não fosse
a explicação para aquilo que matou os homens de Victor. Mesmo se, como Nicci
dissera, Jagang tivesse obtido sucesso em criar tal besta , isso não significava que
isso fosse a explicação para o ataque violento e mortal ou até mesmo que essa
besta já tinha começado a caçar Richard. Mas se não fosse isso , então ele não
conseguia ao menos imaginar o que poderia ter sido .
Carrinhos , carroças, e pessoas moviam -se em um passo veloz pelas
estradas tumultuadas ao redor da cidade . O comércio parecia estar florescendo
ainda mais do que na última vez em que Richard estivera em Altur'Rang. Algumas
das pessoas reconheceram Victor, e algumas Nicci. Desde a revolta , os dois
executaram papéis importantes em Altur'Rang. Um bom número de pessoas
reconheceu Richard, fosse porque estiveram lá, na noite em que a revolução pela
sua liberdade tinha começado, ou porque reconheceram sua espada . Era uma arma
única e a bainha polida em prata e ouro era difícil de não ser notada , especialmente
no Mundo Antigo sob o sombrio governo da Ordem .
Conforme eles passavam, p essoas sorriam para os quatro , tiravam o
chapéu, ou faziam um amigável aceno com a cabeça . Cara observava cada sorriso
que passava com desconfiança .
Richard teria ficado feliz em ver a vitalidade emergente em Altur'Rang,
se a sua mente não estivesse focada em coisas muito mais importantes para e le. E
para lidar com esses assuntos importantes , ele precisava de cavalos . Uma vez que
já era tão tarde, estaria escuro antes que ele pudesse esperar ter cavalos e
suprimentos reunidos e prontos para uma jornada . Ele estava relutantemente
conformado em pas sar a noite em Altur'Rang.
Muitas das pessoas nas movimentadas ruas e estradas ao redor da viela
pareciam estar viajando de e para cidades nas redondezas , ou possivelmente até
para lugares mais distantes . Um dia as pessoas vinham para a cidade em uma
desesperada esperança de encontrar trabalho na construção do Palácio do
Imperador, agora elas chegavam cheias de otimismo de que conseguiriam
encontrar uma nova vida , uma vida boa.
Cada uma das pessoas viajando para longe da cidade , além de carregar
comida para negociar, também transportava notícias das profundas mudanças
desde a revolta. Elas eram um exército carregando a cintilante arma de uma ideia .

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Em Altur'Rang elas não moldavam mais suas vidas em torno do medo da Ordem ;
agora podiam formatar suas vidas de acordo com suas próprias necessidades e
aspirações tornadas possíveis pela liberdade pessoal e seu próprio
empreendedorismo. Suas vidas não pertenciam a qualquer outra pessoa . Espadas
podiam sustentar a tirania , mas apenas se elas esmagassem de forma impla cável
essas ideias.
Ultimamente, somente a brutalidade podia reforçar a irracionalidade e
o beco sem saída do auto sacrifício .
Era por isso que a Ordem teria que enviar suas tropas mais selvagens
para esmagar a mera ideia da liberdade . Se eles não fizessem isso, então a
liberdade se espalharia e as pessoas prosperariam . Se isso acontecesse, então a
liberdade triunfaria.
Richard notou que novas bancas pareciam ter surgido em locais que um
dia foram pouco mais do que caminhos e becos esburacados e que agora eram ruas
ativas. As bancas vendiam artigos de todo tipo , desde uma variedade de vegetais,
pilhas de lenha, até peças de joalheria. Mercadores nas periferias da cidade
ofereciam com entusiasmo aos viajantes uma variedade de queijos , linguiças, e
pães. Mais perto da cidade , as pessoas andavam de um lado para outro , observando
tecidos ou inspecionando a qualidade de um conjunto de itens de couro .
Richard lembrou de como, quando Nicci o trouxe para Altur'Rang, elas
tinham que ficar em filas durante todo o dia para pegar um pedaço de pão e
geralmente tudo acabava antes que chegassem perto do início da fila . Para que
todos pudessem comprar pão , padarias estavam sendo regulad as de forma rigorosa
e preços eram fixados por uma grande variedade de comitês, bancadas, e camadas
de regulamentações . Não havia qualquer consideração com o custo dos
ingredientes ou o trabalho , apenas com aquilo que era julgado ser o preço que as
pessoas podiam pagar . O preço do pão parecia barato , mas nunca havia pão
suficiente, nem qualquer outra comida. Richard consider ava uma lógica perversa
chamar algo que não estava disponível de barato . Leis definindo que os famintos
deviam ser alimentados só tinham resultado na disseminação da fome que
assombrava as ruas e os lares sombrios da cidade . O verdadeiro custo das ideias
altruísticas que geravam essas leis eram a fome e a morte . Aqueles que apoiavam
as noções elevadas da Ordem estavam cegos para a miséria sem fim e a morte que
causavam.
Agora, em bancas em cada esquina , o pão era abundante e a fome parecia
ter sido transformada em nada mais do que uma horrível lembrança . Era
maravilhoso ver como a liberdade havia tornado tudo tão farto . Era maravilhoso
ver tantas pessoas em Altur'Rang sorrindo.
A revolta foi combatida por um bom número de pesso as que apoiavam a
Ordem Imperial, que desejavam que as coisas continuassem como estavam . Havia
muitos que acreditavam que as pessoas eram más e mereciam nada mais em suas
vidas do que a miséria . Esse tipo de pessoas acreditavam que a felicidade e a
realização eram pecaminosas , que os indivíduos , sozinhos, não podiam tornar suas
próprias vidas melhores sem causar em danos aos outros. Esse tipo de pessoas
desprezavam a simples ideia da liberdade individual .
Em sua maior parte , essas pessoas foram derrotadas... foram mortas na
luta ou foram expulsas. Aqueles que lutaram e conquistaram sua liberdade tinham
fortes razões para valorizar isso . Richard esperava que eles tivessem a força de
vontade para manter aquilo que conquistaram .
Enquanto passavam nas áreas mais antigas da cidade , ele notou que
muitas das construções de tijolos encardidas foram lavadas de forma que elas

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quase pareciam novas . Janelas estavam pintadas com cores claras que realmente
pareciam alegres no meio do tempo n ublado do final da tarde . Diversas das
construções que foram queimadas na revolta já estavam sendo reconstruídas .
Richard achou incrível , depois do jeito como aquilo costumava ser , que
Altur'Rang pudesse parecer alegre . Ver um lugar tão vivo causava nele u ma onda
de animação.
Ele também sabia que era a simples e sincera felicidade das pessoas
buscando seus próprios interesses e vivendo suas vidas pelo bem de si mesmas
que afastaria o ódio e a mesquinharia de alguns . Os seguidores da Ordem
acreditavam que a humanidade era inerentemente vil. Pessoas assim não
descansariam até sufocarem a blasfêmia da felicidade .
Quando fizeram a curva entrando em uma rua mais larga que conduzia
mais fundo dentro da cidade , Victor parou em uma esquina da rua principal.
— Preciso ver a família de Ferrari e as famílias de alguns dos outros . Se
estiver tudo bem para você , Richard, acho que eu deveria falar com eles , pelo
menos agora. O luto de uma perda súbita e visitantes importantes é uma mistura
confusa.
Richard sentiu-se estranho sendo enxergado como um visitante
importante, especialmente para pessoas que acabaram de perder entes queridos ,
mas no meio de notícias tão ruins não era o momento para que ele tentasse
suavizar essa visão .
— Eu entendo, Victor.
— Mas eu gostari a que talvez mais tarde você pudesse dizer algumas
palavras a eles. Seria um conforto se você falasse para eles o quanto foram bravos
seus homens. As suas palavras honrariam os entes queridos deles .
— Farei o melhor que puder .
— Tem outros que precisarão s aber que eu voltei . Eles ficarão ansiosos
para verem você.
Richard apontou para Cara e Nicci. — Quero mostrar uma coisa para
elas. — ele apontou em direção ao centro da cidade. — Descendo nessa direção .
— Quer dizer, a Praça da Liberdade ?
Richard assentiu.
— Então encontrarei com você o mais cedo que eu puder .
Richard observou enquanto Victor desaparecia descendo à direita por
uma rua estreita pavimentada com bloquetes .
— O que você quer nos mostrar ? — Cara perguntou.
— Algo que, eu espero, talvez ajude a c larear a memória de vocês .
A primeira visão da majestosa estátua esculpida no mais fino mármore
branco de Cavatura, brilhando na luz âmbar do sol ao final da tarde, quase fez
Richard cair de joelhos.
Ele conhecia cada curva da figura , cada dobra do manto esvoaçante. Ele
conhecia porque tinha esculpido a original .
— Richard? — Nicci falou quando segurou o braço dele . — Você está
bem?
Ele mal conseguiu soltar um sussurro enquanto olhava fixamente a
estátua do outro lado do gramado . — Estou bem.
A vasta extensão aberta tinha sido o local da construção do Palácio que
seria o assento da Ordem Imperial , foi onde Nicci trouxe Richard até a glória
maior da causa da Ordem na esperança de que ele aprendesse a importância do
auto sacrifício e a natureza corrupta da hu manidade. Ao invés disso , no processo,
ela aprendera o valor da vida .

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Mas enquanto ainda era prisioneiro de Nicci, ele trabalhou durante
meses na construção do Palácio do Imperador . Agora aquele Palácio havia
desaparecido, apagado da face do solo . Apenas um semicírculo de colunas da
entrada principal permaneceu para montar vigília ao redor da orgulhosa estátua
em mármore branco que marcava o lugar onde a chama da liberdade surgira pela
primeira vez no coração das trevas .
Após a revolta contra o governo da Ordem, a estátua foi esculpida e
dedicada ao povo livre de Altur'Rang e à memória daqueles que deram suas vidas
por aquela liberdade. Esse local, onde as pessoas derramaram sangue pela
primeira vez para ganharem sua liberdade , agora era um solo sagrado . Victor dera
ao lugar o nome de Praça da Liberdade .
Iluminada pela calorosa luz do sol baixo , a estátua brilhava como um
farol.
— O que vocês duas estão vendo ? — Richard perguntou.
Cara também estava com uma das mãos no braço dele . — Lorde Rahl, é
a mesma est átua que vimos na última vez em que estivemos aqui .
Nicci assentiu, concordando . — A estátua que os escultores criaram
depois da revolta.
A visão da estátua fez Richard sofrer. A feminilidade de sua forma
primorosa, as curvas, os ossos e músculos , estavam claramente evidentes sob o
manto de rocha esvoaçante. A mulher em mármore quase parecia viva .
— E onde os escultores conseguiram o modelo para essa estátua ? —
Richard perguntou para as duas mulheres .
Ambas lançaram um olhar vazio para ele .
Com um dedo curvado, Nicci afastou uma mecha de cabelo que a brisa
húmida tinha jogado em seu rosto . — O que você quer dizer?
— Para esculpir uma estátua como essa , escultores experientes
normalmente fazem isso em escala partindo de um modelo . O que vocês lembram
sobre esse modelo?
— Sim, — Cara falou enquanto seu rosto iluminava -se com a recordação.
— foi algo que você esculpiu .
— Isso mesmo. — ele disse para Cara. — Você e eu procuramos juntos
a madeira para a pequena estátua . Foi você quem encontrou a nogueira que e u
usei. Ela cresceu em uma encosta logo acima de um largo vale . A árvore tinha
sido derrubada por um abeto soprado pelo vento . Você estava lá quando eu cortei
a madeira daquela nogueira caída . Você estava lá quando eu esculpi aquela
pequena estátua . Nós sentamos juntos nos bancos do rio e conversamos durante
horas enquanto eu trabalhava nela .
— Sim, eu lembro de você esculpindo enquanto estávamos sentados no
campo. — um leve esboço de sorriso surgiu no rosto de Cara. — E daí?
— Nós estávamos na casa que eu construí nas montanhas . Porque nós
estávamos lá?
Kara olhou para ele , confusa com a pergunta, como se parecesse óbvio
demais para fazer o esforço de contar novamente . — Depois que o povo de
Anderith votou para ficarem do lado da Ordem Imperial , ao invés de com você e
D'Hara, Victor desistiu de tentar liderar as pessoas contra a Ordem . Você disse
que não poderia forçar as pessoas a desejarem ser livres , mas que elas deviam
escolher isso por si mesmas antes que você pudesse liderá-las.
Era difícil para Richard falar as coisas calmamente para uma mulher que
deveria conhecê-las tão bem quanto ele, mas ele sabia que repreendê -la não
ajudaria a refrescar sua memória . Além disso, seja lá o que estivesse acontecendo ,

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ele sabia que não era um truque proposital da pa rte de Nicci e Cara.
— Isso foi uma parte , — disse ele. — mas havia uma razão muito mais
importante para que nós estivéssemos naquelas montanhas sem trilhas .
— Uma razão muito mais importante ?
— Kahlan foi espancada quase até a morte . Eu a levei até lá par a que ela
ficasse em segurança enquanto recuperava -se. Você e eu passamos meses
cuidando dela, tentando fazer ela recuperar a saúde .
— Mas ela não estava melhorando . Ela mergulhou em um profundo
abatimento. Sentiu desespero com o temor de jamais recuperar-se, de jamais ficar
completa novamente .
Ele não conseguiu dizer que parte da razão pela qual Kahlan quase havi a
desistido foi porque quando aqueles homens a espancaram quase até a morte , isso
fizera com que ela perdesse sua criança .
— E então você esculpiu essa estátua dela ? — Cara perguntou.
— Não exatamente .
Ele ficou olhando a figura orgulhosa em rocha branca elevando -se contra
o profundo céu azul . Ele não pretendia que a pequena estátua que esculpiu ficasse
parecida com Kahlan. Através dessa figura, de seu manto esvoaçando enquanto
ela encarava o vento , enquanto mantinha sua cabeça jogada para trás , seu peito
estufado, suas mãos pressionadas contra o vestido , sua costa arqueada e forte
como se estivesse fazendo oposição a um poder invisível que tentava subjugá -la,
Richard tinha exprimido não a forma como Kahlan parecia, mas ao invés disso
uma projeção da natureza interior dela .
Essa não era uma estátua de Kahlan, mas de suas força de vida , de sua
alma. A magnífica estátua diante deles era o espí rito dela envolto em rocha .
— É a coragem de Kahlan, seu coração, seu valor, sua determinação. Foi
por isso que dei a essa estátua o nome de Espírito .
— Quando ela viu, entendeu o que estava contemplando . Isso fez ela
desejar ficar boa novamente , ficar forte e independente outra vez . Fez ela querer
estar viva por completo novamente . Foi quando ela começou a melhorar .
As duas mulheres estavam mais do que simplesmente duvidando , mas
não contestaram a história dele .
— O fato é que... — Richard falou quando começou a caminhar pela
larga extensão gramada. — se você perguntasse para os homens que esculpiram
essa estátua onde está a estátua pequena , a estátua que eu esculpi e que eles
usaram como modelo para construírem essa, eles não conseguiriam encontrá -la ou
dizer o que aconteceu a ela .
Nicci acelerou para alcançá -lo. — Então onde ela está?
— Aquela pequena estátua que eu esculpi para ela na madeira naquele
verão nas montanhas significava muito para Kahlan. Ela estava ansiosa para tê -la
de volta depois que os homens terminassem . Kahlan está com ela.
Nicci soltou um suspiro quando desviou seu olhar para onde estava
caminhando. — É claro que está.
Ele fez uma careta para a feiticeira . — E o que isso significa?
— Richard, quando uma pessoa está sofrendo um delírio, sua mente
trabalha para arrumar coisas que preencham os espaços vazios , para costurar os
retalhos desse delírio . É uma forma de tentar criar um sentido para sua confusão .
— Então onde está a estátua ? — ele perguntou para as duas mulheres .
Cara sacudiu os ombros . — Não sei. Não lembro do que aconteceu com
ela. Agora existe esse grande , em mármore. Essa é a que parece importante .
— Eu também não sei , Richard. — Nicci falou quando ele olhou em sua

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direção. — Talvez se os escultores começarem a procura r eles consigam encontrá -
la.
Parecia como se ela estivesse esquecendo o objetivo da história dele e
que elas só achavam que ele estava interessado em encontrar sua escultura .
— Não, eles não conseguirão encontrá -la. Esse é o ponto. É isso que
estou tentando fazer vocês entenderem . Kahlan está com ela. Lembro do prazer
dela no dia em que recebeu -a de volta. Não estão vendo? Ninguém conseguirá
encontrá-la ou lembrar o que aconteceu a ela . Não estão vendo como as coisas não
se encaixam? Não estão vendo que alg o estranho está acontecendo ? Não percebem
que alguma coisa está errada ?
Elas fizeram uma pausa na base da larga extensão de degraus .
— Quer a verdade? Na verdade, não. — Nicci apontou para a estátua
posicionada diante do semicírculo de pilares. — Depois que essa estátua
finalmente foi concluída e o modelo não era mais necessário provavelmente ele
foi perdido ou destruído . Como Cara falou, agora nós temos a estátua aqui na
rocha.
— Mas não percebem a importância da pequena escultura ? Não enxergam
a importância daquilo que estou dizendo ? Eu lembro do que aconteceu a ela , mas
nenhuma outra pessoa lembrará . Estou tentando provar um ponto... mostrar algo
a vocês, mostrar que não estou sonhando com Kahlan, mostrar que as coisas
simplesmente não batem e que precisam acreditar em mim .
Nicci deslizou um dedão sob a alça da mochila em um esforço para
aliviar a dor causada pelo fardo do seu peso .
— Richard, provavelmente o seu subconsciente lembra o que aconteceu
com a escultura... que ela foi perdida ou destruída depois que essa estátua foi
concluída... e então ele usa esse pequeno detalhe para tentar tapar um dos furos
na história insubstancial com a qual você sonhou em seu delírio . É apenas a sua
mente tentando fazer com que essas coisas todas façam sentid o para você.
Então era isso. Não era que elas não tivessem entendido , o fato era que
entenderam muito bem e simplesmente não acreditavam . Richard soltou um forte
suspiro. Ele ainda esperava ser capaz de convencê -las que elas estavam
enganadas , que não estavam levando tudo em consideração .
— Mas porque eu inventaria uma história como essa ?
— Richard, — Nicci disse quando segurou gentilmente o braço dele. —
por favor, vamos deixar isso de lado . Eu já falei o bastante. Só estou deixando
você com raiva.
— Eu fiz uma pergunta. Que possível razão eu teria para criar uma
história assim?
Nicci lançou um olhar para Cara antes de finalmente desistir. — Se quer
saber a verdade, Richard, acredito que você lembrou dessa estátua aqui...
parcialmente porque ela só foi esculpida recentemente depois da revolta e ela
estava fresca em sua memória... e quando você foi ferido , quando estava à beira
da morte, uma vez que ela estava fresca em sua memória, você adicionou -a ao seu
sonho. Ela tornou-se parte dessa mulher com quem você sonhou... uma parte da
história. Você conectou tudo e usou isso para ajudar a criar algo significativo
para si mesmo, algo ao qual você poderia agarrar -se. A sua mente usou essa
estátua porque ela serve para ligar o seu sonho a algo no mundo real . Dessa forma,
ela serve para ajudar a tornar o seu sonho mais real para você .
— O quê! — Richard estava surpreso. — Porque...
— Porque, — disse Nicci, com os punhos encostados ao corpo. — isso
faz parecer como se você pudesse apontar para algo sólido no mundo real e falar

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“essa é ela”.
Richard piscou, incapaz de falar .
Nicci desviou o olhar. Sua voz perdeu o calor e reduziu para quase um
sussurro. — Perdoe-me, Richard.
Ele afastou o olhar dela . Como poderia perdoá-la por algo em que ela
acreditava sinceramente ? Como poderia perdoar a si mesmo por não ser capaz de
fazer ela entender?
Temendo testar a sua voz nesse momento , ele começou a subir os
degraus. Não conseguia olhar dentro dos olhos dela , não conseguia olhar dentro
dos olhos de alguém que pensava que ele estava louco . Ele mal estava consciente
do esforço de subir o lance de degraus .
No topo, enquanto caminhava pela plataforma de mármore ele conseguia
ouvir Nicci e Cara subindo rapidamente os degraus atrás dele . Pela primeira vez ,
ele notou que parecia hav er poucas pessoas no terreno do antigo Palácio . Da altura
da plataforma ele podia ver o rio que cortava através da cidade . Bandos de aves
rodopiavam acima da água agitada . Além das grandes colunas atrás da estátua ,
colinas verdes e árvores ondulavam no cal or.
A orgulhosa figura de Espírito erguia -se diante dele, gloriosa na luz
dourada do sol. Ele colocou uma das mãos contra a rocha fria para obter apoio .
Mal conseguia suportar a dor do que sentia nesse momento .
Quando Cara aproximou-se ele olhou dentro dos olhos azuis dela. — É
nisso que você acredita também ? Que estou apenas inventando em minha cabeça
que Kahlan estava ferida e você e eu cuidamos dela ? Essa estátua não traz
qualquer lembrança? Ela não ajuda a lembrar alguma coisa ?
Cara observou a estátua muda. — Agora que você falou nisso , Lorde
Rahl, eu lembro quando encontrei a árvore . Lembro de você sorrindo para mim
quando mostrei ela . Lembro que você estava contente comigo. Também lembro
algumas das histórias que você me contou quando esculpia , e lembro que você
escutou algumas das minhas histórias . Mas você esculpiu um monte de coisas
naquele verão .
— Naquele verão antes que Nicci surgisse e me levasse embora. — ele
adicionou.
— Sim.
— E se estou apenas sonhando , e Kahlan não existe, então como Nicci
conseguiu me capturar e me levar se você estava lá para me proteger ?
Cara fez uma pausa , pega de surpresa pelo tom da pergunta . — Ela usou
magia.
— Magia. As Mord-Sith são armas contra a magia , lembre-se. Essa é a
razão para a existência delas... proteger o Lorde Rahl daqueles que possuem magia
e fariam mal a ele . No dia em que Nicci apareceu ela pretendia fazer mal contra
mim. Você estava lá. Porque não impediu ela?
O terror espalhou-se de forma crescente nos olhos azuis de Cara. —
Porque eu falhei com você. Eu devia ter impedido ela , mas falhei. Não passa um
só dia sem que eu deseje que você me punisse por falhar em meu dever de protegê -
lo. — o rosto dela destacou -se vermelho contra seu cabelo loiro quando a súbita
confissão emergiu. — Por eu ter falhad o com você, você foi capturado por Nicci
e levado por quase um ano... tudo por minha causa . Se fosse com o seu pai que eu
tivesse falhado desse jeito ele teria ordenado minha execução , mas somente após
fazer com que eu implorasse pela morte até ficar rouca . E ele estaria certo em
fazer isso; eu não mereço menos . Falhei com você.
Richard estava olhando em choque . — Cara... não foi uma falha sua.

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Esse é o ponto da minha pergunta . Você devia lembrar que não podia ter feito
qualquer coisa para deter Nicci.
As mãos de Cara ficaram cerradas. — Eu devia ter feito , mas não fiz.
Falhei com você.
— Cara, isso não é verdade . Nicci us ou um feitiço em Kahlan. Se algum
de nós dois tivesse feito qualquer coisa para detê-la, Nicci mataria Kahlan.
— O quê! — Nicci fez objeção. — Do que você está falando ?
— Você capturou Kahlan com um feitiço. Aquele feitiço conectou você
a Kahlan e era diretamente controlado por sua vontade . Se eu não tivesse partido
com você, você poderia ter morto Kahlan a qualquer momento com apenas um
pensamento. Isso, em maior parte , foi o motivo pelo qual Cara e eu não pudemos
fazer algo .
Nicci plant ou as mãos nos quadris . — E exatamente que tipo de feitiço
você acha que poderia fazer uma coisa assim ?
— Um Feitiço Maternidade.
Nicci observou ele c om um olhar vazio . — Um o quê?
— Um Feitiço Maternidade. Ele criou uma conexão que fazia tudo que
acontecesse a você acontecer com ela . Se Cara ou eu tivesse ferido ou morto você ,
o mesmo destino teria caído sobre Kahlan. Estávamos impotentes . Eu tive que
fazer o que você queria . Tive que ir com você ou Kahlan teria morrido. Tive que
fazer o que você desejava ou você poderia ter tirado a vida dela através da conexão
daquele feitiço. Tive que garantir que nada acontecesse a você ou o mesmo destino
cairia sob re Kahlan.
Nicci balançou a cabeça com incredulidade e então , sem comentar , virou
para contemplar as colinas além da estátua .
— Não foi culpa sua , Cara. — ele ergueu o queixo dela para fazer com
que seus olhos úmidos olhassem para ele . — nenhum de nós podia ter feito
qualquer coisa. Você não falhou comigo .
— Não acha que eu gostaria de acreditar em você ? Não acha que eu
acreditaria, se isso fosse verdade?
— Se não lembra daquilo que estou dizendo a você que realmente
aconteceu, — falou Richard. — então como você acha que Nicci conseguiu me
capturar?
— Ela usou magia.
— Que tipo de magia ?
— Não sei que tipo de magia foi... não sou especialista sobre como a
magia funciona. Ela simplesmente usou magia , foi isso.
Ele virou para. — Que magia? Como você me capturou? Que feitiço você
usou? Porque eu não impedi você ? Porque Cara não impediu você?
— Richard, isso faz ... o quê, um ano e meio? Não lembro exatamente
que feitiço usei naquele dia para capturá -lo. Não foi assim tão difícil . Você não
tem habilidade para controlar o seu Dom ou montar uma defesa contra alguém
experiente nisso . Eu poderia ter amarrado você com nós de magia e jogado sobre
um cavalo sem muito esforço .
— E porque Cara não tentou deter você ?
— Porque, — falou Nicci, gesticulando exasperada por s er obrigada a
tentar lembrar os detalhes. — eu estava com você preso com minha habilidade e
ela sabia que se fizesse um movimento eu mataria você primeiro . Não é mais
complicado do que isso .
— Isso mesmo. — disse Cara. — Nicci enfeitiçou você, exatamente como
ela diz . Não pude fazer qualquer coisa porque foi você quem ela atacou . Se ela

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tivesse usado seu poder contra mim eu poderia ter voltado o seu Dom contra ela ,
mas ao invés disso ela usou em você , então eu não pude fazer algo.
Com um dedo , Richard enxugou suor da testa. — Você é treinada para
matar com as suas mãos nuas . Se não tivesse outro jeito, porque não teria pelo
menos batido na cabeça dela com uma pedra ?
— Eu teria ferido você, — falou Nicci, respondendo por Cara. — ou
possivelmente até mesmo morto você, se ela ao menos demonstrasse que tentaria
alguma coisa.
— E então Cara mataria você. — Richard fez a feiticeira lembrar desse
detalhe.
— Naquele momento eu estava disposta a entregar minha vida... eu
simplesmente não me importava . Você sabe disso.
Richard realmente sabia que aquilo era verdade . Naquela época.
Nicci não valorizava a vida, nem mesmo a sua. Isso a tornava perigosa
ao extremo.
— O meu erro foi não atacar Nicci antes que ela conseguisse chegar até
você. — Cara disse. — Se eu tivesse feito ela me atacar com magia , eu a teria
ferido. Isso é o que uma Mord-Sith deve fazer. Mas falhei com você .
— Você não podia. — falou Nicci. — Eu surpreendi vocês dois . Você
não falhou, Cara. Às vezes simplesmente não há chance de obter sucesso . Às vezes
não há solução. Para vocês dois, aquela foi uma dessas situações . Eu estava no
controle.
Era inútil. Toda vez que ele as encurralava em um canto elas pareciam
ter a capacidade de escapulir sem esforço .
Richard encostou uma das mãos contra o mármore liso enquanto sua
mente disparava, tentando pensar em como isso podia estar acontecendo... o que
poderia ter feito elas esquecerem . Ele concluiu que talvez conseguisse resolver o
problema se ele pelo menos soubesse o que estava causando isso .
E então, alguma coisa; a respeito daquela história que ele contou para
elas no abrigo fazia umas duas noites, repentinamente surgiu em sua mente .

107
C A P Í T U L O 1 4

Richard estalou os dedos.


— Magia. — disse ele. — É isso. Lembra quando eu disse a você que
Kahlan apareceu na floresta de Hartland perto do lugar onde eu morava , e que ela
veio porque estava procurando pelo grande mago perdido há muito tempo ?
— O tem isso? — Nicci perguntou.
— Kahlan estava procurando o grande mago porque Zedd havia partido
para Midlands antes que eu tivesse nascido . Darken tinha estuprado minha mãe e
Zedd queria levar ela para longe por segurança .
Cara fez uma careta, desconfiada . — Parecido com o modo que você diz
ter levado essa mulher , sua esposa, até aquelas montanhas remotas para que ela
ficasse em segurança depois que foi atacada ?
— Bem, mais ou menos, mas...
— Está vendo o que está fazendo , Richard? — perguntou Nicci. — Está
pegando coisas que ouviu e colocando -as no seu sonho. Está vendo o fio que passa
através das duas histórias ? Esse é um fenômeno comum quando as pessoas
sonham. A mente usa aquilo que conhece ou sobre o qual ouviu .
— Não, não é isso. Só escute.
Nicci concordou acenando com a cabeça mas cruzou as mãos atrás das
costas e ergueu o queixo do mesmo jeito que uma professora intransigente lidando
com um aluno obstinado .
— Acho que havia similaridades , — Richard finalmente admitiu ,
desconfortável com o modo que Nicci o fitava com seu olhar superior. — mas de
certo modo esse é o ponto . Veja bem, Zedd estava descontente com o Conselho
de Midlands, de forma parecida como eu desisti de tentar ajudar pessoas que
acreditavam nas mentiras da Ordem. A diferença é que Zedd quis deixar que eles
sofressem as consequências de suas ações . Ele não queria que eles pudessem
buscar seu auxílio para livrá-los do problema que eles mesmos estavam criando .
Quando partiu de Midlands e foi para Westland ele lançou uma Teia de Mago para
fazer todos esquecerem dele .
Ele achou que elas entenderiam , mas ficaram apenas olhando para ele .
— Zedd lançou um feitiço específico para fazer todos esquecerem o seu nome ,
esquecerem quem ele era , para que não pudessem procurá -lo. Deve ter sido isso
que aconteceu com Kahlan. Alguém levou -a e usou magia não apenas para apagar
os rastros, mas para apagar a lembrança de todos a respeito dela . É por isso que
vocês não conseguem lembrar dela . É por isso que ninguém lembra dela .
Cara pareceu surpresa com a ideia . Ela olhou para Nicci. Nicci lambeu
os lábios e suspirou pesada mente.
— Tem que ser isso. — Richard insistiu. — Essa tem que ser a resposta .
— Richard, — Nicci falou com voz calma. — não é isso que está
acontecendo aqui , isso não faz sentido nem remotamente .
Richard não conseguia entender como Nicci, sendo uma feiticeira, não
conseguia enxergar isso . — Sim, isso faz . A magia fez todos esquecerem Zedd.
Após Kahlan encontrar comigo na floresta naquele dia , ela falou para mim como
estava procurando pelo Grande Mago , mas que ninguém conseguia lembrar do
nome do velho porque ele lançou uma teia de magia para fazer eles esquecerem .
Magia deve ter sido usada para fazer todos esquecerem de Kahlan do mesmo jeito.

108
— Exceto você? — Nicci disse quando levantou uma sobrancelha . —
Essa magia parece ter falhado em relação a voc ê, já que você não tem dificuldade
para lembrar dela .
Richard estava esperando justamente um argumento assim . — É possível
que, uma vez que somente eu tenho uma forma diferente do Dom , o feitiço não
tenha funcionado em mim .
Nicci soltou novamente outro sus piro. — Você diz que essa mulher ,
Kahlan, veio procurar o mago desaparecido, o “velho”, certo?
— Certo.
— Não está vendo o problema , Richard? Ela sabia que estava procurando
esse velho, o mago desaparecido .
Richard estava concordando com a cabeça . — Isso mesmo.
Nicci inclinou-se em direção a ele . — Esse tipo de feitiço é bastante
difícil de criar , e ele possui diversas complicações que devem ser levadas em
conta, mas independente disso, ele não é tão extraordinário . Difícil, sim,
extraordinário, não.
— Então deve ter sido isso que fizeram com Kahlan. Alguém... talvez
um dos magos da Ordem viajando com o comboio de suprimentos... levou -a e
lançou um feitiço para tentar fazer todos nós esquecermos dela para que não
fôssemos atrás deles .
— Porque alguém ter ia tanto trabalho para fazer algo assim ? —
perguntou Cara. — Porque não matá-la simplesmente? Qual o propósito de
capturá-la e então fazer todos esquecerem dela ?
— Não tenho certeza . Talvez eles simplesmente quisessem um jeito de
escapar sem que fossem seguidos. Talvez tivessem a intenção de levá -la para
longe e então , no momento de sua escolha , exibir sua prisioneira diante de seus
súditos para exibir seu poder , mostrar que podem capturar qualquer um que se
oponha a eles . Permanece o fato de que ela desapa receu e ninguém além de mim
lembra dela. Para mim faz sentido que um feitiço deve ter sido usado , como o
feitiço que Zedd usou para fazer as pessoas esquecerem dele .
Nicci segurou a sua ponte nasal de uma forma que de algum modo fez
Richard sentir-se um pouco estúpido, como se a ideia dele fosse tão tola que
estivesse causando nela uma dor de cabeça. — Todos estavam procurando por esse
velho, esse grande mago . Eles lembravam que ele era o grande mago , que ele era
um homem importante, considerado , mesmo que ele fosse de Midlands. Eles
apenas não conseguiam lembrar seu nome e provavelmente da aparência dele .
Então, sem o nome ou uma descrição dele, estavam enfrentando grande
dificuldade para encontrá -lo.
Richard assentiu. — Isso mesmo .
— Não está vendo, Richard? Eles sabiam que ele existia , sabiam que ele
era o velho mago, e provavelmente tinham grandes lembranças das coisas que ele
tinha feito, mas simplesmente não conseguiam lembrar do seu nome... por causa
do feitiço. Só isso, o nome dele. Não conseguiam lembrar do nome dele mesmo
que lembrassem que o homem existia .
— Mas essa sua esposa não é lembrada por qualquer um a não ser você .
Não sabemos o nome dela ou qualquer outra coisa a respeito dela . Não temos
lembrança dela ou de qualquer coisa que el a supostamente fez conosco . Não temos
qualquer conhecimento de coisa alguma sobre ela . Nadinha. Ela não existe na
mente de qualquer outro a não ser na sua .
Richard enxergou a distinção mas não estava pronto para desistir da
ideia. — Mas talvez esse fosse a penas um feitiço mais forte , ou alguma coisa

109
assim. Deve ter sido parecido , mas apenas mais poderoso de forma que todos não
apenas esquecessem o nome dela , mas esquecessem dela também .
Nicci segurou os ombros dele gentilmente de um jeito quase
dolorosament e solidário.
— Richard, eu admito que para alguém como você, que cresceu sem
entender a magia , isso possa parecer fazer sentido... e isso é muito criativo ,
realmente é, mas a coisa simplesmente não funciona desse jeito no mundo real.
Para alguém sem uma compreensão de como poderes assim funcionam isso pode
parecer inteiramente lógico , pelo menos na superfície . Mas quando você olha mais
fundo a diferença entre um feitiço para fazer todos esquecerem o nome de uma
pessoa e um feitiço que faz todos esquecerem que uma pessoa existiu , é a
diferença entre acender uma fogueira em um acampamento e acender um segundo
sol no céu.
Frustrado, Richard jogou os braços para cima . — Mas porquê?
— Porque o primeiro altera apenas uma coisa , a lembrança do nome de
uma pessoa, e eu devo adicionar que tal coisa , simples como possa parecer , é
profundamente difícil e além da habilidade de todos a não ser alguns dos
indivíduos mais dotados e , até mesmo eles, devem ter extenso conhecimento .
Ainda assim, todos sabem o que esqueceram, o nome do grande mago, então
mesmo que ele execute o trabalho de fazer as pessoas esquecerem esse nome , o
feitiço só tem que realizar essa tarefa claramente definida e limitada . A
dificuldade com feitiços dessa natureza é quão amplamente a tarefa é aplica da,
mas para o propósito desse exemplo isso está fora do ponto .
— Onde o primeiro exemplo altera apenas uma coisa , o nome do mago
desaparecido, o segundo altera quase tudo . Isso é o que torna a coisa além do
difícil; torna ela impossível .
— Ainda não entendo. — Richard caminhou da estátua parte do caminho
pela plataforma e de volta , gesticulando enquanto falava . — Para mim, parece que
ele faz basicamente a mesma coisa.
— Pense em todas as maneira que uma pessoa , especialmente uma pessoa
importante como a Madre Confessora, influencia n a vida de quase todos . Queridos
espíritos, Richard, ela gerenciava o Conselho Central de Midlands. Ela tomou
decisões que afetaram todas as terras .
Richard reduziu a distância até a feiticeira . — Que diferença isso faz ?
Zedd era Primeiro Mago . Ele também era importante , e influenciava muitas vidas.
— E as pessoas esqueceram apenas o nome dele ; não esqueceram o
homem em si. Tente, por um momento, imaginar qual seria o resultado se um
feitiço fizesse todos esquecerem de um hom em simples . — Nicci afastou-se alguns
passos e então, virou -se abruptamente. — Digamos, Faval, o fazedor de carvão .
Não esqueça apenas o nome dele , mas esqueça o homem completamente . Esqueça
que ele existe ou que existiu algum dia , exatamente como sugere que aconteceu
com essa mulher, Kahlan.
— O que aconteceria ? O que a família de Faval faria? Quem as crianças
dele pensariam que era o pai delas ? Quem a esposa dele pensaria que a deixou
grávida e deu a ela duas crianças se ela não conseguisse lembrar de Faval? Onde
estaria esse homem misterioso que formou uma família ? Será que a mente dela
inventaria outro homem para aliviar o pânico dela e preencher o vazio ? Em quê
os amigos dela acreditariam e como todos os pensamentos deles combinariam com
os dela? O que todos pensariam sem a verdade para dar suporte aos pensamentos
deles? O que aconteceria quando as mentes das pessoas fabricassem remendos
preenchendo as lacunas nas memórias delas , e esses remendos não combinassem?

110
Com o carvão ao redor da casa , como a esposa dele e as crianças achariam que
eles chegaram ali e como todo o carvão foi feito ? O que aconteceria na Fundição
quando Faval vendia todo o carvão dele ? O que Priska pensaria... que de alguma
forma uma cesta de carvão tinha aparecido magicamente nas caixas no depósito
da Fundição dele?
— Não estou ao menos começando a arranhar a superfície das
complicações sempre crescentes que um simples feitiço de esquecimento lançado
sobre Faval causaria... o montante em dinheiro , a alocação do trabalho , os acordos
com madeireiros e outros trabalhadores , os documentos, as promessas que ele
fizera e todo o resto . Pense em toda a confusão e desarranjo que uma coisa assim
causaria, e isso com um homem pouco conhecido morando em uma pequena casa
descendo a rua solit ária.
Nicci levantou um braço como se fizesse uma grande apresentação. —
Mas com uma mulher como a Madre Confessora? — ela deixou o braço cair . —
Não consigo ao menos começar a imaginar o emaranhado de consequências
deixado no rastro de um evento incompree nsível como esse.
A cabeleira loira de Nicci destacava-se contra o fundo escuro de árvores
nas colinas além da larga extensão plana gramada . O comprimento de seu cabelo
e suas curvas pareciam casuais, até mesmo confortavelmente familiares , e
complementavam suas belas formas no vestido preto , mas o poder da presença
dela não devia ser menosprezado . Nesse momento, enquanto ela ficava iluminada
por um raio de luz do sol poente , ela era uma figura de astuta percepção e
reconhecida autoridade de tirar o fôlego , uma força que parecia além de
repreensão. Richard ficou mudo e imóvel enquanto ela prosseguia em um tom
instrucional.
— É a cascata de conexões com todos esses incidentes específicos que
tornaria um feitiço como esse impossível . Cada coisinha que a Madre Confessora
já tivesse feito formariam uma bola de neve com circunstâncias conectadas nas
quais ela podia nem mesmo estar pessoalmente envolvida , ampliando o número de
eventos que se tornariam maculados por um feitiço desse tipo. O poder, a
complexidade, a magnitude cisalhante disso está além da compreensão .
— Essas complicações devem sugar poder do feitiço para contrabalançar
o potencial disruptivo de tais complicações . Essas energias drenam o poder do
feitiço que procura comandar a natureza do feitiço . Em certo ponto , um feitiço
sem o poder para compensar um crescimento no vórt ice de tais eventos
dissipativos simplesmente falharia e morreria como uma chama em um a
tempestade.
Nicci aproximou -se e encostou um dedo no peito dele . — E isso não é
tudo levando em conta a mais cegante inconsistência do seu sonho . Em seu delírio
você sonhou com uma situação ainda mais complexa . Sonhou não apenas com ess a
mulher, essa esposa, que não é lembrada por mais ninguém , a não ser no seu estado
irracional de sonho em que você foi muito, muito mais adiante , sem perceber as
terríveis consequências . Você percebe, ela não era uma simples garota do campo ,
que ninguém conhecia, com a qual você sonhou para si . Não, você a criou como
uma pessoa conhecida. No contexto de um sonho isso pode até parecer uma coisa
simples, mas no mundo real uma pessoa conhecida cria um dilema de congruência.
— E você foi ainda mais longe ! Até mesmo uma pessoa conhecida não
seria algo tão complicado quanto o que você fez .
— Em seu estado de delírio você esc olheu a Madre Confessora , uma
pessoa quase mítica, uma pessoa de grande importância , mas ao mesmo tempo
uma pessoa distante, uma pessoa que nem Cara, eu ou Victor conheceria. Nenhum

111
de nós é da distante Midlands, então não teríamos como facilmente oferecer fatos
que são inconsistentes com o seu sonho . Essa distância pode ter feito sentido no
seu sonho porque ela pareceu também resolver o problema dos fatos
contraditórios, mas no mundo real isso ainda cria para você um problema de
magnitude insuperável : uma mulher como essa é amplamente conhecida . É apenas
uma questão de tempo até que o seu mundo construído cuidadosamente colida com
o mundo real e comece a desmoronar . Ao escolher uma pessoa conhecida , você
condenou o seu sonho idílico a destruição .
Nicci ergueu o queixo dele e fez ele olhar nos olhos dela . — No seu
estado mental perturbado , Richard, você sonhou com alguém confortadora . Estava
encarando o abismo da morte ; quis desesperadamente alguém para amá -lo, alguém
que o fizesse sentir -se menos assustado , menos aterrorizado, menos sozinho . Isso
é completamente compreensível , realmente é. Não tenho menor consideração por
você. Eu não poderia... porque você criou a sua própria solução quando estava
com tanto medo e tão sozinho , mas isso acabou e você tem que aceitar.
— Se fosse uma mulher desconhecida que você tivesse imaginado , então
o sonho não seria mais do que uma abstração etérea . Mas você o conectou
inadvertidamente com a realidade porque a Madre Confessora é conhecida por
muitas pessoas . Se algum dia vo cê voltar para Midlands, ou encontrar com pessoas
de Midlands, o seu sonho ficará cara a cara com a indiscutível realidade . Para
você, cada uma dessas pessoas é uma sombra sorrateira pronta para lançar uma
flecha, mas dessa vez uma flecha que não falhará e m perfurar o seu coração .
— Poderia ser ainda pior . E se a Madre Confessora real estiver morta ?
Richard recuou. — Ela não está.
— Lorde Rahl, — falou Cara. — eu lembro que há muitos Darken Rahl
enviou os Quads para matar todas as Confessoras. Os Quads não falham na tarefa
de assassinato .
Richard olhou fixamente para a Mord-Sith. — Mas eles falharam em
pegar ela.
— Richard, — Nicci disse com um tom gentil , atraindo o olhar dele de
volta para ela. — e se algum dia você for até Midlands e descobrir que a Madre
Confessora real não era o que você imaginava , mas que de fato era uma idosa ?
Afinal de contas, as Confessoras não nomeavam mulheres tão jovens quanto esse
seu amor seria para ser a Madre Confessora . E se você descobrisse que a mulher
real era idosa , e pior, que ela está morta faz muito tempo ? A verdade, agora. O
que você faria então , se fosse confrontado por isso e isso fosse real ?
A boca de Richard estava tão seca que ele teve que usar a língua para
conseguir molhar os lábios o bastante para falar. — Não sei.
Nicci sorriu de forma triste. — Uma resposta honesta, finalmente. — até
mesmo aquele sorriso era mais do que ela conseguia exibir , e ele desapareceu . —
Tenho medo por você, Richard, medo por tudo que acontecerá com o seu estado
mental se continuar agarrando-se a isso, se deixar isso tomar conta de sua vida , e
então finalmente acontecer algo assim , e isso acontecerá. Mais cedo ou mais tarde
você ficará cara a cara com a fria realidade da situação .
— Nicci, só porque você não consegue visualizar...
— Richard, — ela falou, interrompendo ele. — eu sou uma feiticeira.
Fui uma Irmã da Luz e uma Irmã do Escuro . Sei uma coisa ou duas sobre magia .
Estou dizendo a você que uma coisa como o que você sugere simplesmente está
além do poder de qualquer magia que c onheço. Não está além do poder de um
homem sonhar, mas é impraticável no mundo real . Você não pode nem começar a
imaginar as terríveis consequências caso algo assim ao menos fosse previsto ,

112
muito menos possível .
— Nicci, reconheço o seu grande conhecimento no assunto, mas você
não sabe tudo . Só porque você não sabe como fazer algo , isso não significa que
seja impossível. Significa apenas que você não sabe como é feito . Você apenas
não quer admitir que pode estar errada .
Os punhos dela ficaram cerrados enquanto ela piscava . — Acha que eu
contestaria você nisso ? É isso que você pensa? Acha que eu gosto de tentar fazer
você enxergar a verdade ? Acha que eu gosto de ficar contra você em tudo?
— O que eu sei é que de algum jeito , de alguma forma, alguém fez todos
vocês esquecerem que Kahlan existe. Sei que ela é real , e pretendo encontrá -la.
Mesmo que você não goste disso .
Nicci, seus olhos azuis brilhando com lágrimas , virou as costas para ele
e observou brevemente a estátua que erguia -se acima dela. — Richard, eu
realizaria alegremente para você o seu sonho se estivesse dentro do meu poder
torná-lo real. Você não consegue imaginar o que eu daria para que você tivesse o
que deseja... para fazer você feliz .
Richard contemplou as nuvens violeta fican do escuras no horizonte . De
alguma forma isso parecia pacífico demais para ser real . Nicci ficou parada com
os braços cruzados , olhando na direção oposta , observando a escuridão que
aproximava-se. Cara permaneceu ali perto , de olho em todas as pessoas que
transitavam no antigo terreno do Palácio .
— Nicci, — finalmente Richard falou em meio ao desconfortável
silêncio sobre o vasto círculo de mármore. — você tem alguma outra explicação
além de que isso seja um sonho? Tem alguma coisa dentro do seu conheciment o
que possui alguma chance de ser a causa disso ? Existe alguma coisa, qualquer
tipo de magia, na qual você consiga pensar que ajudaria a resolver esse enigma ?
Ele observou as costas dela , imaginando se ela responderia . Uma
comprida sombra espalhava -se através do disco plano de bronze curvado que
envolvia a orgulhosa figura . Indicando a ele o que ele sabia , que o dia estava
morrendo, aquela valiosa linha estava afastando -se. Finalmente, Nicci virou para
ele. O fogo parecia ter desaparecido dela.
— Richard, sinto muito não poder tornar isso real para você . — ela
enxugou uma lágrima quando ela deslizou por sua bochecha. — Sinto muito
desapontá-lo.
Com uma expressão sombria , Cara visualizou o olhar de Nicci. — Acho
que temos algo em comum .
Richard encostou suavemente as pontas dos dedos na estátua de Espírito .
O rosto erguido, seu olhar orgulhoso definido em mármore branco , perdeu o brilho
quando os últimos raios do sol poente mergulharam atrás das colinas .
— Nenhuma de vocês me desapontou. — ele disse. — Vocês duas estão
dizendo aquilo em que acreditam . Mas Kahlan não é um sonho. Ela é tão real
quanto seu espírito esculpido nessa rocha .

113
C A P Í T U L O 1 5

Richard virou em direção a uma grande comoção e avistou um grupo de


pessoas seguindo até o monumento . Do alto da proeminência ele podia ver mais
pessoas logo atrás, talvez atraídas pela atividade , ou talvez por causa da
aparência decidida do grupo de homens enquanto eles avançavam na extensão
aberta de terreno. Na dianteira da pequena multidão de homens estava Ishaq o
homem que Richard queria ver.
Ainda um pouco distante , o homem sacudiu um braço . — Richard!
A despeito de tudo , Richard não conseguiu evitar um sorriso para o
familiar colega robusto usando seu costumeiro e curioso chapéu vermelho com
aba estreita. Quando o homem viu que Richard o avistara, acelerou o passo,
trotando pela grama.
— Richard. — ele gritou novamente. — Você voltou... exatamente como
prometeu!
Quando o grupo de pessoas espalhou -se nos degraus, Richard começou
a descer para encontrar com eles . Foi então que Richard viu também que Victor
estava abrindo caminho através da multidão . Em um largo patamar de mármore ,
Ishaq correu e agarrou a mão de Richard, apertando-a com grande alegria.
— Richard, estou tão feliz em vê -lo de volta a Altur'Rang. Você veio
para conduzir uma carroça na minha companhia de transporte , certo? Tenho
pedidos acumulados. Como eu fui me meter nessa bagunça ? Preciso que você
volte. Pode começar amanhã?
— Também estou feliz em vê-lo, Ishaq.
Ishaq ainda estava apertando a mão de Richard. — Então você voltará?
Farei de você o meu sócio . Dividiremos tudo de forma igual , você e eu.
— Ishaq, com todo aquele dinheiro que você me deve...
— Dinheiro. — Ishaq brincou. — Que conversa é essa de dinheiro?
Tenho tanto trabalho agora e mais o tempo todo que não há tempo para preocupar -
se com dinheiro. Esqueça o dinheiro. Podemos ganhar todo o dinheiro que você
quiser. Preciso de um homem com uma boa cabeça . Farei de você um sócio . Se
quiser, pode fazer de mim o seu sócio... conseguiremos mais trabalho desse jeito .
Todos perguntam por você , “onde está Richard? ” todos eles falam. Estou dizendo ,
Richard, se você...
— Ishaq, eu não posso. Estou tentando encontrar Kahlan.
Ishaq piscou. — Kahlan?
— A esposa dele. — falou um Victor sério quando caminhava entre os
homens atrás de Ishaq.
Ishaq virou para olhar assustado para Victor. Ele virou de volta para
Richard.
— Esposa? — ele tirou o chapéu vermelho da cabeça . — Esposa? Mas
isso é maravilhoso! — ele abriu os braços . — Maravilhoso ! — ele jogou os braços
em volta de Richard e abraçou -o enquanto ria e balançava para trás e para frente
sobre os calcanhares . — Você arrumou uma esposa ! Isso é uma notícia
maravilhosa. Teremos um banquete e...
— Ela está desaparecida. — disse Richard, afastando um pouco Ishaq.
— Estou procurando ela. Não sabemos o que aconteceu .
— Desaparecida? — Ishaq alisou para trás seu cabelo escuro e recolocou

114
o seu chapéu vermelho . — Eu ajudarei . Irei com você. — os olhos escuros dele
ficaram sérios . — Diga o que posso fazer.
Essa não era uma oferta vazia que Ishaq fazia apenas por cortesia . Ele
estava sendo sincero . Era reconfortante saber que esse homem largaria tudo para
ajudar.
Porém, Richard não achou que essa era a hora ou o lu gar para explicar.
— Não é tão simples .
— Richard, — Victor falou quando inclinou -se chegando mais perto. —
temos problema.
Ishaq franziu a testa para Victor, gesticulando com irritação . — A esposa
de Richard está desaparecida . Porque você traz mais preocupações para ele além
disso?
— Tudo bem, Ishaq. Victor já sabe sobre Kahlan. — Richard descansou
a mão esquerda sobre o pom o de sua espada. — Que tipo de problema? — ele
perguntou a Victor.
— Batedores acabaram de retornar para relatar que tropas da O rdem
Imperial estão vindo para esse lado .
Ishaq tirou o chapéu da cabeça outra vez . — Tropas?
— Outro comboio de suprimentos ? — perguntou Richard.
— Não. — Victor disse com um firme balanço da cabeça . — Esses
homens são tropas de combate e estão vindo ness a direção.
Os olhos de Ishaq ficaram arregalados . — Soldados estão vindo ? Quanto
tempo levarão?
Vozes carregaram as notícias preocupantes através da multidão que
crescia.
— Na velocidade em que estão marchando , eles estão alguns dias de
distância. Temos al gum tempo para organizarmos nossas defesas . Mas não muito.
Nicci caminhou ficando ao lado de Richard. Com a costa ereta, sua
cabeça erguida, e seu olhar penetrante, ela atraiu todos os olhares . Vozes calaram -
se enquanto eles a observavam . Mesmo pessoas que não sabiam quem era Nicci
tendiam a ficar em silêncio em sua presença . Algumas por causa da aparência
estonteante dela, algumas porque simplesmente havia algo perigoso na presença
dominante dela, além de sua beleza física , que fazia elas perderem a calma junto
com as vozes .
— E os batedores estão certos de que eles estão seguindo nessa direção ?
— ela perguntou . — Eles não poderiam estar apenas passando perto em seu
caminho para o norte ?
— Eles não estão seguindo para o norte . — Victor ergueu uma
sobrancelha. — Estão vindo do norte.
Os dedos de Richard apertaram em volta do cabo da espada . — Eles estão
descendo do norte... você tem certeza ?
Victor assentiu. — Eles são tropas de combate experientes . Pior ainda,
eles pegaram um daqueles sacerd otes em algum lugar pelo caminho .
Os homens reunidos arfaram . Sussurros das notícias espalharam -se
através da multidão . Alguns dos homens começaram a fazer perguntas , cada um
tentando ser ouvido acima dos outros .
Nicci levantou uma das mãos , pedindo silêncio. Sem maior esforço do
que isso, os degraus de mármore na colina que escurecia ficaram quietos . EM
meio ao tenso silêncio , ela inclinou em direção ao ferreiro sisudo . As sobrancelhas
de Nicci baixaram como um falcão que acabara de avistar o jantar .
— Tem um mago com eles ? — ela sibilou.

115
Victor não recuou, um dos poucos que não recuaram . — Dizem que ele
é um Alto Sacerdote da Sociedade da Ordem .
— Todos os Irmãos na Sociedade são magos. — Ishaq observou. — Isso
não é uma boa notícia. Não é mesmo.
— Não posso negar isso. — falou Victor. — De acordo com os relatórios
trazidos pelos homens , não há dúvida de que esse é um mago .
Uma conversação preocupada espalhou -se novamente pela multidão .
Alguns juraram que um acontecimento como esse não faria diferença , que
combateriam qualquer tentativa da Ordem para tomar de volta Altur'Rang. Outros
não tinham tanta certeza sobre o que deveria ser feito .
Nicci, contemplando o vazio enquanto avaliava o que ouvira , finalmente
voltou seu olhar para Victor. — Os batedores sabem o nome dele ou qualquer
coisa a respeito dele que possa ajudar a identificá -lo?
Victor enfiou os dedões atrás do cinto quando acenou com a cabeça para
ela. — O nome do Alto Sacerdote é Kronos.
— Kronos... — ela murmurou, pensativa.
— Os batedores que avistaram as tropas usaram suas cabeças. — Victor
falou para ela. — Eles não tinham sido avistados , então seguiram na frente dos
soldados, infiltraram -se em uma cidade no caminho da legião e aguardaram que
eles chegassem. Os soldados acamparam do lado de fora da cidade durante
algumas noites para descansarem e obterem suprimentos . Aparent emente eles
depenaram a cidade durante o processo. Quando ficaram bêbados falaram o
bastante para que meus homens captassem o básico sobre o que eles pretendem , e
o que eles pretendem fazer não é apenas colocar um fim na insurreição em
Altur'Rang. As ordens deles são para esmagarem a revolta e não serem gentis ao
fazerem isso. Disseram que eles deviam fazer do povo dali um exemplo . Parece
que eles não consideram essa com o uma grande tarefa , e estão ansiosos pela
diversão que terão após a vitória .
Um manto de silêncio caiu sobre a multidão .
— E quanto ao mago ? — perguntou Ishaq.
— Os homens dizem que esse Kronos é um tipo devoto. Tem estatura
média com olhos azuis . Ele não bebeu junto com os soldados . Ao invés disso, ele
palestrou ao povo da cidade por um longo tempo e geralmente sobre a necessidade
de seguir os verdadeiros caminhos do Criador sacrificando o que eles tinham pelo
bem dos seus colegas homens , a Ordem Imperial, e do seu amado Imperador .
— Mas, no final das contas , quando não está palestrando ele é um
pervertido , e aparentemente não importa muito para ele quem é a mulher ou se ela
concorda com isso ou não . Depois que um homem furioso fez confusão a respeito
da filha dele ter sido raptada na rua por ordem de Kronos, o bom Irmão apareceu
e com um disparo de seu poder arrancou a pele do pai . O devoto mago deixou o
homem gritando e contorcendo como uma lição e entrou novamente para finalizar
o seu assunto com a filh a. O pobre sujeito levou horas para morrer . Meus homens
dizem que foi a coisa mais horrível que eles já viram . Depois disso, ninguém mais
tinha muita coisa a dizer quando alguma mulher atraía os olhos de Kronos.
Um burburinho irrompeu na multidão . Muitas das pessoas estavam
chocadas e furiosas com a história . Alguns estavam assustados que esse homem
estivesse vindo não apenas atrás deles mas sob as ordens de transformá -los em
exemplo.
Nicci não pareceu surpresa com o relato de tal brutalidade . Após longa
avaliação, finalmente ela balançou a cabeça .
— Não conheço esse Irmão da Ordem , mas há vários deles que não

116
conheço.
Os olhos escuros de Ishaq dardejavam entre Richard e Nicci. — O que
faremos? Tropas e um mago. Isso não é bom. Mas vocês têm ideias , não é?
Alguns na multidão expressaram que concordavam com Ishaq, querendo
saber o que Richard pensava. Ele realmente não enxergava o que havia para
discutir.
— Todos vocês lutaram por sua liberdade e a conquistaram, — Richard
disse. — eu sugiro que não desistam .
Alguns homens assentiram . Eles sabiam muito bem como era viver sob
o jugo da Ordem. Eles também aprenderam o que significava serem livres para
viverem suas próprias vidas . De qualquer modo, o medo parecia estar dominando
o ânimo da multidão .
— Mas agora vo cê está aqui para nos liderar , Lorde Rahl, — falou um
dos homens. — tenho certeza de que você encarou coisa pior do que isso . Com a
sua ajuda podemos derrotar esses soldados.
Na escuridão que se avizinhava Richard observou os rostos ansioso que
olhavam para ele.
— Temo que eu não possa ficar . Tenho algo de importância crítica que
devo fazer. Terei que partir na primeira luz da manhã .
Um silêncio de pavor foi o que ele recebeu.
— Mas os soldados estão há apenas alguns dias de distância. —
finalmente um dos h omens falou. — Certamente, Lorde Rahl, você pode esperar
esse tempo.
— Se eu pudesse, ficaria aqui com vocês para enfrentar esses soldados ,
exatamente como fiquei com vocês antes , mas nesse momento não posso demorar
tanto. Devo levar a batalha para outro lugar. Isso faz parte da mesma luta , então
eu estarei com vocês em espírito .
Os homens pareceram surpresos . — Mas só alguns dias ...
— Não enxergam que é muito mais do que isso ? Se eu ficar, e
derrotarmos aqueles homens que estão vindo para matar vocês , então,
eventualmente, mais virão. Vocês devem ser capazes de defenderem -se sozinhos .
Não podem contar que eu fique aqui indefinidamente e ajude vocês a manterem
sua liberdade toda vez que Jagang mandar soldados para tomar de volta
Altur'Rang. O mundo está che io de lugares como Altur'Rang, todos encarando o
mesmo desafio. Mais cedo ou mais tarde vocês terão que aceitar a
responsabilidade de enfrentarem isso sozinhos . Agora é um momento tão bom
quanto qualquer outro .
— Então está nos abandonando quando mais prec isamos de você? — uma
voz mais distante gritou .
A multidão não falou para concordar com o sentimento , mas estava claro
que mais de uma pessoa tinha o mesmo pensamento . Cara avançou. Antes que ela
pudesse ficar na frente dele , Richard ergueu uma das mãos su tilmente, tocando na
perna dela como um aviso para que ela ficasse onde estava .
— Agora, olhem aqui , — Victor rosnou. — Richard não está
abandonando nada, e não vou escutar mais nada desse tipo de conversa . — homens
recuaram diante da ameaça na voz dele . Só o olhar furioso de Victor já era
suficiente para deixar pálidos homens que tinham duas vezes o seu tamanho . —
Ele fez mais por nós do que qualquer um já fez . Mostrou que cada um de nós pode
conduzir a sua própria vida e foi isso que mudou tudo . Todos vocês viveram aqui
toda sua vida sob o governo da Ordem . Richard nos mostrou do que realmente
somos feitos, mostrou que somos homens orgulhosos e podemos cuidar de nós

117
mesmos com coragem . Fomos nós quem assumimos responsabilidade por nossas
próprias vidas e conquistamos nossa liberdade . Ele não veio até aqui para nos dar
qualquer coisa. Nós conquistamos isso .
A maioria dos homens sobre os degraus e espalhados pelos gramados
ficaram em silêncio. Alguns, sentindo-se envergonhados, lançaram olhares ao
redor para os outros . Finalmente alguns dos homens falaram que concordavam
com Victor.
Quando os homens começaram a debater entre si o que deviam fazer ,
Nicci segurou o braço de Richard por trás e puxou -o até onde podia falar em
particular. — Richard, essa luta aqui é mais importante.
— Não posso ficar .
Os olhos azuis dela brilharam com fúria contida . — Aqui é onde você
deveria estar, liderando esses homens . Você é o Lorde Rahl. Eles contam com
você.
— Não sou responsável pelas vidas deles . Eles já fizeram sua esco lha a
respeito de como viverão quando iniciaram a revolta . Fizeram isso sozinhos e
venceram a batalha . Todos nós estamos lutando por aquilo em que acreditamos .
Todos estamos lutando pela mesma coisa... o direito de viver a vida que queremos
para nós mesmos. Estou fazendo aquilo que acredito que devo fazer .
— Está fugindo da luta para perseguir fantasmas .
A ferroada das palavras dela ficaram no ar , sem resposta. Ao invés disso,
Richard caminhou afastando-se da feiticeira e dirigiu -se aos homens.
— O Mundo Antigo e o Mundo Novo estão em guerra . — lentamente a
multidão ficou em silêncio , as pessoas esticaram os pescoços para escutarem
Richard e ouvirem suas palavras. — As tropas a caminho daqui são homens
calejados em combate provenientes dessa guerra . Conforme cruzam as terras,
usam suas espadas, machados, e maças tanto contra as pessoas armadas quanto
contra as desarmadas ao norte , o povo do Mundo Novo . Essas tropas possuem
experiência em dominar cidades e assassinar os habitantes . Quando chegarem
aqui, irão torturar, estuprar, e matar as pessoas dessa cidade , do mesmo jeito que
fizeram com as pessoas em cidades ao norte ... a não ser que vocês as detenham
antes.
— Mas até mesmo se vocês as detiverem , isso não será o fim . A Ordem
enviará mais soldados . Se vocês os derrotarem , eventualmente eles mandarão
ainda mais na próxima vez .
— Richard, o que você está dizendo ? — Ishaq perguntou no ar parado
do anoitecer. — Está dizendo que é inútil... que deveríamos desistir ?
— Não. Estou dizendo que precisam encarar a verdadeira dimensão do
que significa lutar contra a Ordem Imperial, a verdadeira natureza da tarefa . Se
querem ser livres, então precisam fazer mais do que ficar aqui nesse lugar e
defender a sua cidade.
— Guerra alguma já foi travada defensivamente .
— Se desejam ser verdadeiramente livres , então devem lutar para deter
aqueles que buscam extinguir a liberdade . Se querem ser verdadeiramente livres ,
então devem fazer parte da causa de livrar o mundo da Ordem Imperial . O Império
D’Haraniano, a terra que eu gov erno, é tudo que opõe -se contra a Ordem . —
Richard balançou a cabeça lentamente . — Mas sozinhos eles não possuem chance
de vencer. Assim que o Império D’Haraniano cair, o Imperador Jagang estará livre
do esforço daquela guerra e então ele vai enviar toda a sua força para cuidar de
quaisquer bolsões de resistência contra as crenças da Ordem .
— No topo da lista dele estará Altur'Rang. Essa é a cidade natal dele .

118
Ele não permitirá que a mancha negra da liberdade mantenha -se contra suas
crenças. Lançará sobre v ocês os seus guerreiros mais ferozes... os filhos do
Mundo Antigo. Vocês serão isolados e destruídos pelo exército de Jagang dos seus
companheiros. Vocês morrerão por causa de um homem , seus filhos homens serão
assassinados, suas esposas e irmãs serão usadas como recompensa para os brutos
que impõem a autoridade da Ordem .
A multidão ficou em silêncio . Agora eles estavam nas garras do medo .
Esse não era o discurso corajoso e vaidoso que eles esperavam ouvir tão próximo
da batalha.
Victor limpou a gargant a. — Está tentando dizer alguma coisa para nós ,
Richard?
Richard assentiu enquanto olhava por cima da multidão que o observava
abaixo do patamar onde ele estava . — Sim. Estou tentando dizer que vocês
deveriam, precisam fazer mais do que manter posição e il udir a si mesmos quando
esses homens vierem . Não podem vencer esse tipo de guerra . Devem atacar a
Ordem Imperial e ajudar a derrubá -los.
Ishaq levantou uma das mãos . — Derrubá-los? De que forma?
— Como todos vocês sabem , a vida sob a Ordem não oferece outr a coisa
a não ser decadência e ruína . Há pouco trabalho, pouca comida, pouca coisa a
esperar... a não ser a promessa de glória em alguma vida após a morte... mas
somente em troca pelo seu serviço altruísta nesta vida. Os sacerdotes da Sociedade
da Ordem não possuem nada a oferecer a não ser miséria , então proclamam o
sofrimento como uma virtude e em troca generosamente oferecem a vocês
recompensas extravagantes, eternas, em algum outro mundo . Recompensas que
não podem ser conferidas de antemão , recompensas em um mundo que não pode
ser conhecido, excet o, eles alegam, por eles. Nenhum de vocês seria ingênuo o
bastante para trocar até mesmo um cão por esse tipo de promessas vazias , e ainda
assim legiões tem sido induzidas a oferecerem avidamente suas próprias vidas, a
única vida que possuem , na troca injusta.
— Jagang invoca a causa do Criador , a luta pelo futuro da humanidade ,
e a eliminação daqueles com o Dom como uma das nobres razões para que o Mundo
Antigo invada o Mundo Novo . Ele diz aos seus súditos que as pessoas longe ao
norte são imortais infiéis e , como um dever para com o Criador , elas devem ser
eliminadas.
— Na verdade, Jagang está fazendo nada mais do que produzir uma
distração para encobrir a pobreza e desemprego amplamente disseminados criados
pelas doutrinas da Ordem Imperial . Então a falha do Mundo Antigo em acabar
com a pobreza e a morte crescente é indicada como culpa de traidores entre o
povo... esses seriam vocês... e de seus supostamente malignos irmãos do norte .
Jagang dá aos jovens desam parados um objeto de ódio sobre o qual obter vingança
pela miséria deles .
— Ao fazer isso, das fileiras de jovens do Mundo Antigo , Jagang criou
um exército de fanáticos . Vocês mesmos conhecem os grupos de jovens assim que
partiram de Altur'Rang para juntarem-se à “nobre” causa . Esses homens têm pouco
a esperar da vida e agarraram -se desesperadamente aos ensinamentos da Ordem .
Jagang deu a eles alguém para culpar por todos os seus desgostos : aqueles que
não submetem-se aos ensinamentos da Ordem . Esses homens foram doutrinados
em uma cultura de morte e lançados sobre aqueles que possuem liberdade ,
prosperidade, e a coisa mais odiada de todas , felicidade. A maioria estão além da
razão ou redenção.
— Lutando longe de casa, Jagang permite que esses selvagen s façam

119
pilhagens em seu caminho através da terra, esperando que eles esqueçam o futuro
miserável que os aguarda de volta ao lar . Em nome do Criador e da Ordem eles
matam toda oposição e tomam vastos territórios . Com seus vastos números eles
exterminam todos que os enfrentam . Aterrorizam todos em seu caminho . O pânico
de aguardar que a horda assassina chegue é demais para muitos , e com esperança
de serem poupados do pior daquilo que os homens de Jagang fariam, alguns
lugares rendem -se e pedem para unirem -se à causa da Ordem Imperial .
— Está dizendo que é inútil lutar contra eles ? — alguém perguntou em
meio ao tenso silêncio do anoitecer .
— Estou dizendo a vocês a verdadeira natureza daquilo que todos nós
encaramos, — falou Richard. — mas não tem que ser inút il se vocês entenderem
a essência da luta.
— Por um lado, a Ordem Imperial ainda não percebeu completamente o
efeito corrosivo da distância de sua terra natal . Não importa o quanto pilhem , eles
ainda precisam de vastas quantidades de todo tipo de suprimento, desde farinha
para fazer pão até penas para fazerem flechas . Eles não conseguem obter comida
suficiente para alimentar os seus números . Precisam de artesãos e trabalhadores
para darem suporte aos seus guerreiros e precisam de uma cadeia constan te de
novos soldados para substituir os vastos números perdidos nas batalhas da
campanha. É difícil lutar em uma terra estranha e distante . Somente as perdas
deles por causa de doenças têm sido assombrosas . Ainda assim, com reforços
chegando sempre, eles e stiveram conseguindo repor mais do que perdem . O
exército deles cresce constantemente , tornando-se mais formidável a cada dia que
passa. Mas isso também significa que eles possuem mais necessidades a cada dia.
— Aqueles comboios de suprimentos que estão se guindo constantemente
ao norte são vitais para os esforços da Ordem Imperial em conquistar o Mundo
Novo. O Mundo Novo pode parecer um problema distante para vocês , mas é um
problema de vocês tanto quanto aquelas tropas que estão vindo nessa direção em
poucos dias. Uma vez que aqueles brutos ao norte terminarem de assassinar o meu
povo, eles retornarão aqui para matar vocês . Se a Ordem vencer , todos nós
perdemos . Não importa onde estivermos . Não haverá lugar para esconder -se.
— Se querem viver , não apenas am anhã, ou até o dia após derrotarem
aquelas tropas que seguem para esse lado , mas viver até a próxima estação , o
próximo ano, e no ano seguinte; se querem constituir uma família , manter o que
ganham, e melhorar a si mesmos e as vidas de suas crianças ; então vocês precisam
ajudar a destruir a capacidade de sobreviver da Ordem .
— Victor e seus homens já estiveram fazendo isso , mas eles só
conseguem sussurrar quando precisam rugir de fúria . Eles necessitam que muito
mais pessoas juntem -se a eles nesse esforço . Vocês precisam ajudar em um esforço
determinado para atingir os comboios de suprimentos da Ordem e destruí-los.
Matar os homens deles que seguem para a luta . Acabar com a capacidade deles de
prosseguir. Vocês devem privar a Ordem de farinha, penas e reforç os. Cada
homem que morre de fome nas montanhas ao norte é um homem que a Ordem não
pode mandar de volta para o Mundo Antigo para enterrar a faca dele em sua
barriga.
— Além disso, há outras maneiras de prevalecer . — Richard apontou
para Cara e Nicci. — Essas duas que agora estão comigo um dia estiveram contra
mim. Eram inimigas daquilo no qual eu acredito... daqu ilo no qual vocês passaram
a acreditar... mas quando eu as ajudei a entender que luto pela vida , pelos valores
da vida, elas começaram a perceber a verdade e tornaram -se guerreiras nessa
mesma causa.

120
Richard l evantou uma das mãos para a multidão espalhada sobre os
degraus e pelos gramados . — Olhem para todos vocês . Não faz muito tempo vocês
eram os inimigos do Mundo Novo . Muitos de vocês durante gran de parte de suas
vidas podem ter acreditado nas mentiras da Ordem . Mas quando tiveram um
vislumbre da luminosa chama daquilo que a vida pode e deveria ser , vocês tiveram
a presença de mente para escolherem a vida . Agora eu estou com antigos inimigos ,
no coração do território inimigo , entre um povo que um dia foi meu inimigo . E
ainda assim agora acreditamos na mesma causa : que a vida vale a pena ser vivida
por seu próprio mérito . Muitos de nós tornaram -se grandes amigos. Agora estamos
todos do mesmo lado n a maior batalha de nossas vidas .
— É possível fazer algumas pessoas que estão trabalhando pelo sucesso
da Ordem enxergarem a maravilha e a beleza nesta vida . Se conseguir fazer isso ,
então você terá menos uma pessoa que deseja matá -lo. Seria minha escolha
conquistar todos eles com a verdade e ter um mundo de pessoas vivendo em paz .
— Mas há aqueles que estão perdidos diante da verdade , perdidos diante
da razão. Eles odeiam que vocês abracem o que é bom na vida . Se não conseguirem
trazer esses seguidores da Ordem para o nosso lado , então devem matá -los, pois
certamente, se tiverem chance , eles os matarão e destruirão tudo que vocês
valorizam. Vocês devem espalhar a luta por toda parte... não deixem qualquer
lugar seguro para aqueles que veneram a morte . Sim, terão que matar os fanáticos
que lutam avidamente na causa da Ordem, mas o que é mais importante do que
isso, é que devem atacar todas as raízes e matar aqueles que pregam as doutrinas
da Ordem Imperial .
— São esses que corrompem e envenenam mentes simplórias e, se não
forem detidos , criarão um suprimento infinito de novos brutos para virem atrás
de vocês e de suas famílias . Homens com tal ódio em seus corações não possuem
limites. Eles jamais permitirão que vocês existam porque a prosperidade e a
felicidade de vocês transformam em mentira aquilo que eles pregam .
— Se querem viver livres , então devem garantir que esses discípulos do
ódio saibam que não existe lugar seguro para eles, que seus costumes não serão
tolerados por homens civilizados , e que vocês não descansarão até que todos eles
sejam caçados e mortos porque vocês entendem que eles não querem menos do
que acabar com a civilização . Não podem deixar que eles tenham aquilo que
buscam.
— Todos vocês bravamente deram o primeiro passo e arrancaram suas
algemas. Nenhum de vocês precisa provar algo a mim . Mas isso não é sobre apenas
uma batalha vencida. Trata-se do futuro a respeito de como viverão suas vidas de
agora em diante... como seus filhos e seus netos viverão suas vidas . Vocês lutaram
bravamente. Muitos já perderam suas vidas perseguindo nosso objetivo comum e
muitos mais ainda perderão . Mas a vitória sobre o mal é possível e está dentro de
nosso alcance. Vocês venceram uma batalha por algo profundo : suas próprias
vidas para viverem como acha rem melhor. Mas agora não falhem em perceber que
a guerra por esse ideal está a um longo caminho de ser finalizada .
— Hoje vocês ganharam o direito de viverem livres . Agora devem
possuir a força de lutar para viverem livres para sempre .
— Nunca é fácil manter a liberdade e facilmente ela pode ser perdida .
Tudo que é necessário para isso é a indiferença .
Richard ergueu um braço para trás, em direção a estátua posicionada
orgulhosamente no brilho do sol poente . — Essa força de vontade para valorizar
a vida, para ser livre , é o espírito dessa estátua que todos nós tanto admiramos .
— Mas Lorde Rahl, — alguém reclamou. — essa é uma tarefa grande

121
demais para nós . Somos um povo simples , não guerreiros. Talvez se você nos
liderasse isso fosse diferente .
Richard colocou uma das mãos no peito . — Eu era um simples guia
florestal quando percebi que precisava encarar os desafios que estavam diante de
mim. Eu também não queria encarar o mal aparentemente invencível que lançava -
se sobre mim . Mas uma sábia mulher... a mul her a partir da qual essa estátua foi
modelada... fez com que eu enxergasse que precisava fazer isso . Não sou melhor
do que vocês, nem mais forte que vocês . Sou um simples homem que passou a
entender a necessidade de enfrentar a tirania. Eu aderi a essa causa porque não
queria mais viver com medo , e sim viver a minha própria vida .
— Aquelas pessoas no Mundo Novo ao norte estão lutando e morrendo
a cada dia. São pessoas simples como vocês . Nenhum deles deseja lutar , mas
precisam ou certamente morrerão . O destino deles hoje é o destino de vocês
amanhã. Eles não podem continuar sozinhos e esperar vencer . Quando a hora de
vocês chegar, vocês também não poderão . Eles precisam que vocês façam parte
de um mundo livre, que ataquem aqueles que atiram a sombra da era das trevas
sobre todo o mundo .
Um homem perto da frente falou. — Mas você não está dizendo a mesma
coisa que a Ordem, que devemos nos sacrificar pelo bem maior da humanidade ?
Richard sorriu diante daquela ideia . — Aqueles que desejam impor uma
ideia de um bem maior simplesmente são odiadores do bem . É o esclarecido
interesse próprio que faz com que eu erga uma espada contra a Ordem Imperial .
É puramente pelo interesse próprio de vocês , e pelo interesse próprio naqueles
que vocês amam , que eu acredito que vo cês deveriam lutar, do jeito que acharem
que podem conseguir ajudar melhor em nosso objetivo comum . Não estou
forçando vocês a lutarem pelo bem maior da humanidade , mas tentando fazer
enxergarem que essa é uma luta por suas próprias vidas .
— Jamais cometam o erro de pensar que o interesse próprio é errado . O
interesse próprio é sobrevivência . O interesse próprio é a substância da vida .
— No interesse próprio de vocês , eu sugiro que levantem -se e derrubem
a Ordem . Somente então vocês realmente poderão ter a verdadeira liberdade.
— Os olhos do Mundo Antigo estão sobre vocês .
As figuras escuras de todas as pessoas na luz que desaparecia esticavam -
se tão longe quanto Richard conseguia enxergar . Ele ficou aliviado em ver
diversas cabeças assentindo .
O olhar de Victor correu sobre os homens antes que ele virasse de volta
para Richard. — Acho que concordamos , Lorde Rahl. Farei o que puder para
providenciar isso.
Richard trocou um aperto nos braços com Victor enquanto a multidão
ovacionava. Finalmente, quando homens por toda a Praça da Liberdade
começaram a falar entre si a respeito de qual seria a melhor forma de enfrentar o
desafio, Richard virou e levou Nicci. Cara seguiu logo atrás dele.
— Richard, sei o valor do que você acabou de fazer , mas essas pessoas
ainda precisam de você para...
— Nicci, — disse ele, interrompendo -a. — eu tenho que partir de manhã .
Cara vai comigo. Não vou dizer a você o que fazer , mas acho que seria uma boa
ideia se você escolhesse ficar e ajudar essas pessoas . Eles já estão encarando um
desafio terrível o bastante apenas contra os soldados , mas ainda terão que
enfrentar um mago . Você sabe muito melhor do que eu como combater esse tipo
de ameaça. Você poderia ser uma tremenda ajuda para essas pessoas .
Ela observou durante um longo tempo d entro dos olhos dele antes de

122
olhar para a multidão não muito longe atrás dele, descendo os degraus .
— Preciso ficar com você. — ela falou em um tom controlado , mas ainda
soou como um pedido .
— Como eu disse , a vida é sua e não vou dizer a você o que fazer ,
exatamente como gostaria que você não tentasse dizer a mim o que devo fazer .
— Você deveria ficar e ajudar , — ela falou. Ela quebrou o contato visual
e olhou para outro lado . — mas é a sua vida e deve fazer o que achar melhor . Eu
acho, afinal de contas você é o Seeker. — ela olhou novamente para os homens
reunindo-se perto de Victor, fazendo planos. — Essas pessoas podem não fazer
objeções ao que você tinha a dizer nesse momento , mas eles pensarão nisso e
podem muito bem decidir mais tarde , depois que en frentarem os soldados , após
uma luta terrível e sangrenta , que não desejam fazer mais .
— Eu estava esperando que se você ficasse e ajudasse eles a derrotarem
esse mago e as tropas que estão vindo nessa direção , que então você pudesse
somar o seu peso a min has palavras e ajudar a convencê -los daquilo que precisam
fazer. Muitos deles sabem muito bem o quanto você conhece a respeito da natureza
da Ordem. Eles valorizarão aquilo que disser a eles , especialmente se tiver
acabado de ajudar a salvar a cidade deles e a manter suas famílias seguras. —
Richard esperou até que ela olhasse para ele antes de prosseguir . — Depois disso,
então você poderia juntar -se a Cara e a mim.
Ela avaliou os olhos dele enquanto cruzava os braços sobre os seios . —
Está dizendo que se eu ajudar a deter a força da Ordem que está vindo para matar
todas essas pessoas , então permitiria que eu me juntasse a vocês ?
— Só estou dizendo a você o que acho que seria a coisa mais benéfica
para você fazer em nosso esforço para eliminar a Ordem. Não estou dizendo o que
fazer.
Ela desviou o olhar outra vez . — Mas se eu fizesse como você sugere e
ficasse para ajudar essas pessoas isso o deixaria feliz .
Richard sacudiu os ombros. — Eu admito isso.
Nicci suspirou, irritada. — Então eu ficarei , como você sugere, e os
ajudarei a derrotar a ameaça que aproxima -se a alguns dias de distância . Mas se
eu fizer isso... derrotar as tropas e eliminar o mago... então você permitiria que
eu me juntasse a vocês?
— Eu disse que faria isso .
Ela finalmente, com relutância, assentiu. — Concordo.
Richard virou. — Ishaq?
O homem aproximou -se rapidamente. — Sim?
— Preciso de seis cavalos .
— Seis? Levará outras pessoas com você?
— Não, só Cara e eu. Precisaremos de montarias descansadas pelo
caminho para que assim possamos trocar de cavalos enquanto cavalgamos para
mantê-los fortes o bastante para a jornada . Precisamos de cavalos velozes , não os
cavalos de carga das suas carroças . E arreios. — Richard adicionou.
— Cavalos velozes... — Ishaq levantou o chapéu e com a mesma mão
coçou a cabeça. Ele levantou os olhos . — Quando?
— Preciso partir tão logo exista luz suficiente .
Ishaq olhou desconfiado para Richard. — Suponho que isso seja parte
do pagamento pelo que devo a você ?
— Queria aliviar a sua consciência sobre quando poderia começar a me
pagar.
Ishaq rendeu-se a uma breve risada. — Terá o que precisa . Também

123
providenciarei para que tenha suprimentos .
Richard colocou uma das mãos no ombro de Ishaq. — Obrigado, meu
amigo. Fico agradecido. Espero que algum dia eu possa voltar aqui e transportar
uma carga ou duas para você , só pelos velhos tempos .
Isso iluminou a expressão de Ishaq. — Depois que todos estivermos
livres definitivamente?
Richard assentiu. — Livres definitivamente. — ele olhou para as estrelas
começando a pontilhar o céu . — Você sabe algum lugar perto onde possamos
conseguir um pouco de comida e um lugar para dormir ?
Ishaq apontou além da grande extensão do antigo terreno do palácio em
direção à colina onde costumavam estar os barracões de traba lho. — Agora temos
hospedarias, desde que você esteve aqui na última vez . As pessoas aparecem para
ver a Praça da Liberdade e então elas precisam de quartos . Eu construí um lugar
lá em cima onde eu alugo quartos . Eles estão entre os melhores disponíveis . —
ele ergueu um dedo . — Tenho uma reputação de manter a oferta do melhor em
tudo, quer sejam carroças para carregar mercadorias , ou quartos para viajantes
cansados.
— Tenho uma sensação de que aquilo que você me deve vai ser quitado
rapidamente.
Ishaq sorriu enquanto balançava os ombros . — Muitas pessoas querem
ver essa estátua memorável. É difícil conseguir quartos , então eles não são
baratos.
— Eu não podia esperar que fossem .
— Mas eles são razoáveis. — insistiu Ishaq. — Um bom investimento
pelo preço, e eu tenho um estábulo ao lado , então posso trazer os seus cavalos
assim que eu os reunir. Farei isso agora.
— Está certo. — Richard ergueu a mochila e pendurou -a sobre um dos
ombros. — Pelo menos não é longe, mesmo que seja caro .
Ishaq abriu os braços expan sivamente. — E a vista ao nascer do sol vale
o preço. — ele sorriu. Mas para você, Richard, Senhora Cara, e Senhora Nicci,
sem custo .
— Não, não. — erguendo uma das mãos , Richard impediu qualquer
discussão . — É justo que você deva ser capaz de obter retorn o em seu
investimento. Deduza isso daquilo que você me deve . Com o interesse, tenho
certeza de que o montante cresceu bastante.
— Interesse?
— É claro. — Richard falou quando começava a andar em direção às
construções distantes . — Você usou o meu dinheiro . É justo que eu seja
compensado por esse uso . O interesse não é barato , mas é justo e um bom
investimento.

124
C A P Í T U L O 1 6

Quando entrou no quarto , Richard ficou feliz em ver a bacia com água .
Não era um banho , mas ao menos ele podia lavar -se antes de ir para cama . Ele
fechou o trinco na porta , trancando-se lá dentro, mesmo que sentisse estar
perfeitamente seguro na hospedaria. Cara estava no quarto ao lado do dele . Nicci
estava em um quarto descendo as escadas no primeiro andar perto da en trada e
logo ao lado da única escada para o segundo andar . Homens montavam guarda do
lado de dentro e do lado de fora da hospedaria enquanto mais homens patrulhavam
as ruas na área em volta da construção . Richard não achava que tantos homens
fossem necessários , mas Victor e os homens foram insistentes a respeito de
fornecer a proteção uma vez que tropas inimigas estavam na área . No final,
apreciando a oportunidade por uma noite de sono segura e pacífica , Richard não
fizera objeções .
Estava tão cansad o que mal conseguia ficar de pé mais tempo . Seus
quadris estavam doendo por causa do longo dia de caminhada sobre terreno
acidentado. Além da jornada , a conversa inflamada com as pessoas na Praça da
Liberdade havia tomado sua energia restante .
Richard deslizou sua mochila, deixando ela cair ao chão aos pés da
pequena cama, antes de caminhar até a bacia e jogar água no rosto . Ele não sabia
que a água podia causar uma sensação tão boa .
Nicci, Cara, e Richard tinham feito uma rápida refeição de cozido de
carneiro na pequena sala de jantar . Jamila, a mulher que tomava conta do lugar
para Ishaq... outra sócia... foi instruída por Ishaq para tratá-los como realeza. A
mulher de rosto arredondado ofereceu-se para cozinhar qualquer coisa que eles
desejassem . Richard não queria causar agitação , e além disso, a sobra do cozido
de carneiro significou que não haveria espera e que poderiam dormir muito mais
cedo. Jamila pareceu um pouco desapontada por não ter chance de cozinhar algo
especial para eles . Porém, com o tipo d e refeições que eles tiveram nos últimos
dias, a tigela de cozido de carneiro e pão assado fresco com muita manteiga foram
a melhor comida que Richard conseguia lembrar ter comido . Se não fosse por
causa de tantas coisas perturbadoras em sua mente ele teria saboreado muito mais .
Sabia que Cara e Nicci precisavam do descanso tanto quanto ele e então
insistiu que cada uma ficasse em um quarto . As duas mulheres queriam ficar no
mesmo quarto que Richard para que pudessem estar perto e tomar conta dele . Ele
teve visões com as duas em pé de braços cruzados ao pé da sua cama enquanto ele
dormia. Ele sustentou que nada chegaria até ele no segundo andar , e além disso ,
havia muitos homens para montar guarda . Elas haviam cedido , mas com relutância
e somente depois que ele as lembrou que as duas o ajudariam mais se estivessem
bem descansadas e alertas . Era um luxo para todos eles não terem que montar
guarda, pelo menos uma vez , e poderem ter o descanso de que precisavam .
Victor tinha prometido despedir-se de Richard e Cara de manhã. Ishaq
prometeu que os cavalos estariam prontos esperando no estábulo . Tanto Victor
quanto Ishaq sentiam muito que ele estivesse partindo , mas entenderam que ele
tinha suas razões. Nenhum deles perguntara para onde ele iria , provavelmente
porque sentiam-se desconfortáveis conversando sobre a mulher que nenhum deles
acreditava existir. Ele havia começado a sentir a distância que isso criava nas
pessoas quando ele mencionava Kahlan.

125
De sua grande janela no andar superior , Richard teve uma vista de tirar
o fôlego de Espírito através do terreno abaixo da elevação onde a hospedaria
ficava. Com o pavio da lamparina baixo n o quarto, ele não teve dificuldade em
enxergar a estátua em mármore branco iluminada por um anel de tochas em altos
postes de ferro. Ele lembrou distraidamente da s muitas vezes em que estivera
sobre esta mesma colina olhando para o Palácio do Imperador sendo construído .
Mal parecia o mesmo mundo . Ele sentiu como se tivesse sido lançado em alguma
outra vida que não conhecia e todas as regras fossem diferentes . Às vezes ficava
imaginando se realmente estava ficando louco .
Nicci, em um quarto no andar inferior perto da porta da frente,
provavelmente não conseguia ver a estátua , mas Cara tinha o quarto perto do dele
então sem dúvida tinha a mesma vista. Ele pensou se ela estava aproveitando isso ,
e se estava, o que ela achava da estátua que via . Richard não conseguia imaginar
como ela não conseguia lembrar claramente de tudo que aquilo significava para
ele... para Kahlan. Imaginou se ela também sentia como se estivesse vivendo a
vida de outra pessoa ... ou se ela achava que ele estava enlouquecendo .
Richard não conseguia pensar no que podia ter acontecido para fazer
com que todos esquecessem que Kahlan existiu. Ele guardava alguma leve
esperança de que as pessoas em Altur'Rang lembrariam dela, que apenas as
pessoas que estavam nas proximidades quando ela desapareceu haviam sido
afetadas. Agora essa esperança estava eliminada . Seja lá qual fosse a causa , o
problema estava espalhado.
Richard encostou contra o armário com a bacia e jogou a cabeça para
trás enquanto fechava os olhos por um instante . Seu pescoço e ombros estavam
doloridos dos dias carregando sua pesada mochila enquanto eles caminhavam com
dificuldade por florestas densas e aparentemente infinitas . Durante a jornada
veloz e árdua até mesmo a conversa tinha , em sua maior parte , exigido muito
esforço. Era uma sensação boa não ter que caminhar durante algum tempo , mesmo
se quando ele fechasse os olhos parecesse que tudo que po dia ver fosse um desfile
de florestas sem fim . Com os olhos fechados , pareceu como se as suas pernas
ainda estivessem em movimento .
Richard bocejou quando passou o boldrié por cima da cabeça e colocou
a Espada da Verdade encostada em uma cadeira ao lado d o lavatório . Tirou sua
camisa e jogou sobre a cama . Ocorreu-lhe que esse seria um bom momento para
lavar algumas de suas roupas , mas ele estava cansado demais . Só queria lavar -se
e então cair na cama e dormir .
Ele foi até a janela novamente enquanto lavava -se com um pano
ensaboado. A noite estava quieta a não ser pelo incessante som das cigarras . Ele
não conseguia evitar olhar para a estátua . Havia tanto de Kahlan nela que isso o
fazia sofrer. Tinha que fazer esforço para não pensar nos horrores que ela podia
estar encarando, que dor ela podia estar suportando . A ansiedade dificultou a sua
respiração . Em um esforço para colocar de lado sua preocupação durante algum
tempo, ele fez o melhor que pôde para lembrar do sorriso de Kahlan, os olhos
verdes dela, seus braços em volta dele , o suave gemido que ela fazia às vezes
quando o beijava.
Precisava encontrá -la.
Ele mergulhou o pano na água e o torceu , observando a água suja correr
dentro da bacia, e viu que suas mãos estavam tremendo .
Precisava encontrá -la.
Em outra tentativa para concentrar sua mente em outras coisas , ele
descansou o olhar na bacia , observando deliberadamente as vinhas pintadas em

126
toda extensão da borda. As vinhas eram azuis , não verdes, provavelmente para
combinar com as flores azuis pintadas nas paredes e as flores azuis nas cortinas
simples e a coberta decorativa na cama . Ishaq fizera um trabalho admirável em
construir uma hospedaria acolhedora e convidadora .
A água na bacia , parada como uma poça em um bosque , de repente
tremeu sem nenhuma r azão aparente.
Richard ficou imóvel , olhando para ela.
Abruptamente a superfície formou ondas perfeitamente simétricas , quase
como os pelos ficando eriçados nas costas de um gato .
E então toda a construção estremeceu com um forte barulho, como se
tivesse sido atingida por algo enorme . Um dos painéis de vidro na janela rachou
com um leve estalo . Quase instantaneamente , do outro lado do prédio , veio o som
de madeira despedaçando .
Richard agachou, congelado, olhos arregalados , incapaz de distinguir o
que havia causado o som incompreensível .
Seu primeiro pensamento foi que uma grande árvore tinha caído sobre o
lugar, mas então lembrou que não havia árvores grandes nas proximidades .
Num piscar de olhos após o primeiro tremor , veio um segundo impacto,
mais alto, dessa vez, mais próximo . A construção sacudiu em meio ao som de
madeira partida. Ele olhou para cima , temendo que o telhado pudesse desabar .
Na metade de um piscar de olhos veio outro impacto que sacudiu o
prédio. Despedaçando, madeira estilhaçada emitiu u m som alto como se estivesse
gritando de agonia enquanto estava sendo partida .
Tum... Crash... Mais alto, mais perto .
Richard encostou os dedos de uma das mãos no chão para manter o
equilíbrio enquanto a construção tremia sob o golpe causado pelo forte imp acto.
O que havia iniciado do outro lado da construção estava chegando mais perto
rapidamente.
Tum... Crash... Mais perto ainda.
Chiados rugiam através do ar noturno enquanto madeira era despedaçada
violentamente. O prédio balançou. Água derramou da bacia , espirrando sobre a
borda de metal enrolado com as vinhas azuis pintadas . Os sons de paredes
quebrando e tábuas despedaçando fundiram -se em um rugido contínuo .
De repente, a parede à esquerda dele , a parede entre o quarto dele e o de
Cara, explodiu em direção a ele. Nuvens de poeira espalharam -se. O barulho foi
ensurdecedor.
Algo enorme e negro , quase do tamanho do quarto , mergulhou através
da parede, quebrando ripas, fazendo chover gesso e detritos através do ar .
A força da concussão arrancou a porta de s uas dobradiças e quebrou
violentamente o vidro e as fasquias da janela .
Longos fragmentos de tábuas voaram pelo quarto . Uma esmagou a
cadeira que apoiava a espada dele , outra perfurou a parede mais distante . Sua
espada caiu fora de alcance . Um pedaço atingiu a perna de Richard forte o bastante
para fazer ele cair sobre um joelho .
A escuridão animada arrastou destroços diante de si , fazendo tudo voar,
envelopando a luz e lançando detritos voadores dentro de uma obscuridade
rodopiante.
O medo gélido espalhou -se através das veias de Richard.
Ele viu uma nuvem fria de sua respiração quando grunhia com o esforço
de levantar.
A escuridão, como a própria morte, atirou-se em direção a ele . Richard

127
arfou buscando ar. O ar gelado espetou como ag ulhas frias dentro de seus pulmões .
O choque com a dor do frio cortante fechou a garganta dele .
Richard sabia que a vida e a morte balançavam no fio de uma lâmina em
apenas um instante.
Com cada fração de sua força impulsionando -o, ele mergulhou através
da janela como se estivesse mergulhando em um lago . O lado de seu corpo
esfregou na escuridão que descia . Sua carne estremeceu com a sensação de um
frio tão intenso que queimava .
No meio do ar , saindo pela janela dentro da noite , temendo a longa
queda, Richard tentou agarrar a moldura da janela e só conseguiu segurá -la com
a mão esquerda. Ele segurou firme para salvar a vida . Seu peso em queda girou
tão rápido que bateu no lado da construção com força suficiente para expulsar o
ar de seus pulmões. Ficou pendurado por sua mão , tonto por causa do choque
contra a parede externa, tentando recuperar o fôlego .
O ar húmido da noite somado ao impacto contra a parede , logo após a
gélida sensação no quarto pouco antes de pular pela janela , pareceu conspirar para
fazer o melhor que podia para sufocá -lo. Com o canto dos olhos ele viu a estátua
na luz bruxuleante de tochas . Com a cabeça jogada para trás , os punhos contra os
lados do corpo , e sua costa arqueada, a figura projetava-se orgulhosa contra o
poder invisível que tentava dominá-la. Essa visão, a força daquilo, fez com que
Richard finalmente conseguisse respirar . Ele tossiu e inspirou outra vez , lutando
para obter ar enquanto seus pés buscavam qualquer ponto de apoio . Eles não
encontraram . Ele olhou para baixo e viu que o solo estava terrivelmente longe .
Parecia como se ele pudesse ter arrancado o ombro do corpo . Pendurando
por uma das mãos, ele não ousou largar. Temia que uma queda como essa
quebrasse pelo menos suas pernas .
Acima, pela janela, surgiu um grito tão agudo que fez todos os cabelos
em seu corpo ficarem eriçados e cada nervo gritar de dor . Foi um som tão sombrio ,
tão venenoso, tão horrível que Richard pensou que, certamente , o Véu para o
Submundo havia sido rasgado e o Guardião dos Mortos ficara solt o entre os vivos .
O gemido selvagem no quarto acima dele transformou -se em um guincho
agudo furioso. Era um som de puro ódio ganhando vida .
Richard olhou para cima e quase largou . A queda, pensou ele, podia ser
preferível ao invés da coisa no quarto que ag ora projetava-se para fora na janela.
Uma mancha escura, incorpórea, saiu através da janela despedaçada
como a exalação do mal .
Embora não tivesse forma , de algum modo estava bastante claro para
Richard que isso era algo além da mera perversidade . Isso era uma praga, como a
própria morte, caçando.
Enquanto a sombra deslizava para dentro da noite através da janela ,
subitamente ela começou a desintegrar em mil formas flutuantes que espalharam -
se em todas as direções , a escuridão fria decompondo -se, mesclando-se com a
noite, dissolvendo dentro do coração das sombras mais escuras .
Richard ficou pendurado por um braço , ofegante, incapaz de mover -se,
observando , esperando que a coisa aglutinasse repentinamente diante do seu rosto
e o rasgasse em pedaços .
O lado da colina caiu sob o feitiço de uma grande calmaria . A sombra
da morte havia aparentemente se tornado parte da noite . As cigarras, até então
silenciosas, começaram o barulho outra vez . Conforme elas iniciavam sua canção
aguda, o som crescente movia-se em uma onda pela vasta extensão do terreno em
direção da distante estátua .

128
— Lorde Rahl! — um homem abaixo gritou . — Aguente firme !
O homem, usando um chapéu com aba pequena semelhante ao de Ishaq,
correu ao redor do prédio , seguindo até a porta. Richard não achava que
conseguiria ficar pendurado apenas por um braço até que alguém viesse ajudá -lo.
Ele grunhiu de dor mas conseguiu girar o corpo o bastante para impulsionar -se e
com a sua outra mão segurar no parapeito da janela , suas pernas balançando par a
frente e para trás acima de uma queda assustadora . Ele ficou aliviado em descobrir
que apenas tirando uma parte do peso de seu braço ajudou a aliviar a dor .
Ele acabava de enfiar o tórax através da janela estilhaçada quando ouviu
pessoas entrando no quarto. A lanterna sumiu, provavelmente enterrada, então era
difícil enxergar. Homens caminharam sobre os detritos que cobriam o chão , suas
botas esmagando pedaços da parede , partindo fragmentos de móveis de madeira
quebrados. Mãos poderosas o agarraram po r baixo dos braços enquanto outras
agarraram seu cinto para ajudar a puxá -lo de volta para dentro . No quarto quase
totalmente escuro era difícil recompor -se.
— Vocês viram aquilo? — Richard perguntou aos homens enquanto
ainda lutava para recuperar o fôlego . — Viram a coisa que saiu pela janela ?
Alguns dos homens tossiram por causa da poeira enquanto outros
falavam que não tinham visto .
— Ouvimos o barulho, o estalo, e a janela quebrando. — um deles falou .
— Pensei que o prédio todo estivesse desabando .
Alguém apareceu com uma vela e acendeu uma lanterna . O brilho
alaranjado iluminou uma visão assustadora . Um segundo homem , e então um
terceiro, ergueu uma lanterna para que fosse acesa . No meio da poeira , o quarto
estava uma bagunça , com a cama virada , o lavatório enterrado até a metade na
parede do outro lado , e um amontoado de entulhos pelo chão .
Na luz ondulante, Richard conseguiu ver melhor o buraco
grosseiramente arredondado que foi aberto na parede. As madeiras partidas ao
redor das bordas projetavam -se todas para dentro do quarto , indicando a direção
da intrusão. Isso não era uma surpresa . Porém, o tamanho do buraco era
surpreendente: estendia-se por quase toda a distância do chão até o teto . A maior
parte daquilo que uma vez tinha sido a parede agor a jazia espalhado no chão .
Longas tábuas estilhaçadas cruzavam com seções de ripas e pedaços de
gesso. Ele não conseguia imaginar como algo que tinha feito um buraco tão grande
podia ter saído por uma janela .
Richard avistou sua espada e retirou -a de baixo de tábuas partidas . Ele
encostou-a contra o parapeito da janela onde ela estaria ao alcance caso ele
precisasse dela, ainda que não tivesse certeza do que sua espada poderia ter feito
contra seja lá o que for que viera através da parede apenas para dissol ver-se na
noite.
Homens tossiam com a espessa poeira ainda flutuando no ar . Richard viu
na luz da lanterna que todos eles estavam cobertos com a poeira branca , fazendo
parecerem fantasmas reunidos . Ele viu que também estava coberto pelo gesso
branco. A única diferença era que ele estava sangrando por dúzias de pequenos
cortes. O sangue parecia ainda mais destacado contra o pó branco. Ele removeu
rapidamente uma parte do gesso do cabelo, rosto e braços .
Preocupado com outros que podiam ter sido enterrados ou feridos,
Richard pegou uma das lanternas de um homem que estava perto e então caminhou
até o topo dos destroços . Ele ergueu a lanterna, olhando dentro da escuridão além
do buraco. A visão era surpreendente , ainda que não fosse inesperada por causa
daquilo que ele ouviu e sentiu , cada uma daquelas paredes sendo atravessada

129
violentamente.
Cada parede, em uma linha reta através do prédio , tinha um buraco.
Todos os buracos eram similares ao buraco na parede do quarto dele . No final,
Richard podia ver estrelas através da abertura arredondada na distante parede
externa.
Ele caminhou cuidadosamente sobre longos pedaços de madeira
amontoados. Alguns dos pedaços afundavam com o peso dele e libertar o pé era
um esforço . Além de uma tosse esporádica , os homens estavam em sua maior parte
em silêncio enquanto observavam ao redor surpresos com os danos causados por
algo desconhecido, algo poderoso que havia desaparecido dentro da noite .
Então, através da poeira, Richard viu Cara parada no meio do quarto
dela olhando para a mesma direção que ele , em direção ao buraco para o lado de
fora. A costa dela estava voltada para ele , seus pés afastados em uma posição
defensiva. Seu Agiel estava firme no punho direito .
Nicci, com uma chama dançando acima de sua palma virada para cima ,
entrou correndo no quarto de Richard pelo portal quebrado .
— Richard! Você está bem?
De cima dos destroços , Richard esfregou o braço esquerdo enquanto
movia o braço . — Acho que sim .
Nicci murmurou algo furiosamente quando caminhava com muito
cuidado sobre os detritos .
— Alguma ideia do que está acontecendo ? — um dos homens perguntou .
— Não tenho certeza. — falou Richard. — Alguém ficou ferido ?
Todos os homens olharam ao redor uns para os outros . Alguns disseram
que achavam que não, que todos que conheciam foram conferidos e estavam
seguros. Outro homem falou que os outros quartos no andar superior estavam
desocupados.
— Cara? — Richard gritou quando inclinou o corpo dentro do buraco
escuro. — Cara, você está bem?
Cara não respondeu , nem moveu-se. Ela continuou fixa na mesma
posição.
Com sua ansiedade crescendo , Richard cruzou o resto do caminho sobre
as tábuas espalhadas e gesso quebrado. Usando uma das mãos para ajudar a
equilibrar-se sobre os detritos instáveis , ele passou pelo buraco entrando no
quarto de Cara. A destruição era muito parecida com a do quarto dele . Duas
paredes, ao invés de apenas uma, estavam furadas, mas o impacto havia lançado
o material da segunda parede para dentro do quarto de Richard. O vidro da janela
dela também foi estourado , mas a porta pendia , mesmo que torta, em seu lugar.
Cara estava diretamente na linha central entre os dois buracos , mas
estava com as costas mais perto da abertura na parede para dentro do quarto de
Richard. Destroços jaziam em volta dela . Sua roupa de couro parecia ter evitado
que ela fosse cortada pelos detritos voadores .
— Cara? — Richard gritou outra vez enquanto seguia descendo na pilha
de destroços.
Cara permaneceu imóvel no quarto escuro , ainda olhando para longe .
Nicci caminhou com dificuldade sobr e as tábuas quebradas e gesso e passou pelo
buraco na parede. Ela segurou o braço de Richard brevemente para ter apoio
quando alcançou ele.
— Cara? — Nicci disse quando colocava a mão com a chama na frente
do rosto de Cara.
Richard ergueu a lanterna. Os olhos de Cara estavam arregalados ,

130
olhando fixamente, e ainda assim sem enxergar . Lágrimas haviam deixado trilhas
escuras através da poeira no rosto dela . Ela ainda não havia modificado sua
posição defensiva, mas agora que ele estava perto , Richard conseguia ver que todo
o corpo dela estava tremendo .
Ele segurou no braço dela mas , assustado, recuou.
Ela estava fria como gelo .
— Cara? Consegue nos ouvir? — Nicci tocou no ombro de Cara e com a
mesma surpresa que Richard, recuou.
Cara não reagiu . Era como se ela realmente estivesse congelada no lugar .
Nicci colocou a chama bem perto do rosto da Mord-Sith. A pele dela parecia quase
azul clara, mas do jeito que ela estava coberta por uma camada de poeira branca,
ele não tinha certeza se isso era realmente verdade o u não.
Richard passou um braço em volta da cintura de Cara. Era como colocar
seu braço em volta de um bloco de gelo . O instinto dele era o de afastá -lo, mas
recusou-se a fazer isso. Pelo modo como seu ombro estava doendo ele percebeu
que não seria facilmen te capaz de carregá-la sozinho.
Ele olhou para trás, para os rostos concentrados no buraco arredondado
na parede. — Alguns de vocês poderiam me ajudar com ela?
Homens caminharam sobre os destroços , entrando no quarto de Cara ,
fazendo ainda mais poeira leva ntar. Com outras pessoas trazendo a luz mais perto ,
Nicci deixou a chama apagar quando caminhava próxima da Mord-Sith. Os homens
reuniram-se em um cordão enquanto observavam a feiticeira silenciosamente .
Franzindo a testa em concentração , ela pressionou as mãos nas têmporas
de Cara.
Soltando um grito Nicci cambaleou para trás . Richard esticou o braço
livre e segurou o cotovelo dela para evitar que ela caísse para trás sobre os
detritos.
— Queridos espíritos. — Nicci sussurrou, ofegando para recuperar o
fôlego como se estivesse com uma dor inesperada .
— O que foi? — Richard perguntou. — O que foi?
A feiticeira colocou as mãos sobre o coração , ainda buscando ar
enquanto recuperava -se do inesperado . — Ela mal está viva.
Com o queixo, Richard apontou para a porta. — Vamos tirar ela daqui .
Nicci assentiu. — Descendo as escadas... meu quarto .
Richard, sem pensar, tomou Cara nos braços . Felizmente, os homens
estavam perto para ajudar quando viram ele gemer de dor .
— Querido Criador, — um dos homens exclamou quan do erguia a perna
dela. — ela está fria como o coração do Guardião .
— Vamos lá, — disse Richard. — ajudem-me a levá-la escada abaixo.
Assim que levantaram ela , os membros de Cara eram movimentados
facilmente, embora não ficassem moles . Os homens que ajudavam Richard a
carregar Cara cambalearam pelos destroços . Um dos homens chutou a porta
quebrada para fora do caminho .
Eles carregaram -na descendo o primeiro lance de degraus . Richard
segurava os ombros dela .
Ao pé da escada , Nicci direcionou-os para dentro do quarto dela e até a
cama. Eles deitaram Cara gentilmente enquanto primeiro Nicci afastou as cobertas
de baixo da mulher. Assim que Cara estava na cama , Nicci cobriu-a imediatamente
com os cobertores .
Os olhos azuis de Cara ainda estav am arregalados, contemplando ,
parecia, algum nada distante. Ocasional mente, uma lágrima descia do canto de

131
seu olho em uma lenta jornada por sua bochecha . Seu queixo, ombros, braços,
tremiam.
Richard abriu os dedos de Cara, fazendo-a largar o Agiel que ain da tinha
em uma pegada firme. Os olhos dela não exibiram reação . Ele suportou a dor
excruciante de tocar no Agiel dela até conseguir libertá -lo e deixar ele ficar
pendurado pela corrente em volta do pulso dela .
— Porque todos vocês não esperam lá fora ? — Nicci falou com uma voz
suave. — Forneçam algum tempo para que eu veja o que posso fazer ?
Os homens saíram , dizendo que voltariam à patrulha , ou a montar
guarda, caso eles fossem necessários .
— Se aquela coisa voltar , — Richard disse a eles. — não tentem detê-
la. Venham me chamar .
Um dos homens inclinou a cabeça, confuso . — Que coisa, Lorde Rahl?
O que nós deveríamos estar procurando ?
— Não tenho certeza . Tudo que eu consegui ver foi uma sombra enorme
quando ela veio através da parede e então saiu pela jan ela.
Os homens olharam para cima . — Se ela fez aquele buraco na parede
para atravessar, então como ela conseguiu sair por uma janela pequena ?
— Não sei. — Richard admitiu. — Acho que na verdade eu não dei uma
boa olhada nela.
Os homens olharam para cima ou tra vez, como se conseguissem ver os
destroços acima. — Manteremos os nossos olhos bem abertos . Pode ter certeza
disso.
Foi então que Richard lembrou ter deixado sua espada lá em cima no
quarto dele. Estar sem ela o deixou inquieto . Queria ir buscá -la, mas não queria
sair do lado de Cara.
Depois que o último homem tinha saído , Nicci sentou no lado da cama
enquanto mantinha uma das mãos sobre a testa de Cara. Richard ajoelhou bem
perto.
— O que você acha que está errado ? — ele perguntou.
Nicci deixou a mão repousar sobre a testa de Cara. — Não faço ideia.
— Mas pode fazer alguma coisa para que ela melhore ?
A resposta de Nicci levou um bom tempo para surgir . — Não tenho
certeza. Porém, o que eu puder fazer, eu farei .
Richard segurou a mão fria de Cara que ainda tremia. — Acha que
deveríamos fechar os olhos dela ? Ela ainda não piscou .
Nicci assentiu. — Provavelmente não é uma má ideia . Acho que é a
poeira que está fazendo as lágrimas descerem .
Um de cada vez , Nicci fechou os olhos de Cara cuidadosamente . De
alguma forma o fato de Cara não estar olhando para o nada fez Richard sentir-se
melhor.
Nicci colocou a mão de volta sobre a testa de Cara enquanto posicionava
a outra sobre o peito dela . Enquanto Nicci segurava um pulso, um tornozelo, e
enfiava uma das mã os por baixo da parte traseira do pescoço de Cara, Richard foi
até a bacia e voltou com um pano molhado . Ele lavou cuidadosamente o rosto de
Cara e removeu uma parte da poeira e pedaços de gesso do cabelo dela . Através
do pano molhado , ele podia sentir o frio da carne dela.
Do jeito como estava quente e úmido , Richard não conseguia entender
como ela podia estar tão fria . Então ele lembrou o modo como, quando a coisa
negra invadiu o seu quarto, o ar repentinamente tinha ficado gelado como gelo.
Ele lembrou do toque dolorosamente frio quando ele encostou nela quando saltava

132
para fora pela janela .
— Não tem qualquer ideia do que há de errado com ela ? — Richard
perguntou.
Nicci balançou a cabeça lentamente enquanto concentrava -se em
pressionar as palmas das dua s mãos contra as têmporas de Cara.
— Alguma ideia do que era aquela coisa que veio através das paredes ?
Nicci virou para olhar ele. — O quê?
— Perguntei se tem alguma ideia do que poderia ter feito isso ? Do que
atravessou as paredes ?
Nicci pareceu nervosa com a pergunta. — Richard, vá esperar lá fora .
Por favor.
— Mas eu quero ficar aqui , com ela.
Nicci segurou o pulso dele gentilmente e afastou a mão dele da mão de
Cara. — Você está interferindo . Por favor, Richard, você permite que eu faça isso
sozinha? É mais fácil sem você olhando por cima do meu ombro .
Richard sentiu-se estranho estando no caminho . — Se isso vai ajudar
Cara.
— Ajudará. — ela disse quando virou para a mulher sobre a cama .
Ele levantou e observou durante um momento . Nicci já estava
concentrada colocando uma das mãos sob as costas de Cara.
— Vá. — a feiticeira murmurou .
— A coisa que entrou em nossos quartos era fria .
Nicci olhou para trás por cima do ombro . — Fria?
Richard assentiu. — Era tão fria que eu podia ver a minha respiração .
Pareceu dolorosamente frio estar perto dela .
Nicci considerou as palavras dele brevemente antes de virar de volta
para Cara. — Obrigada pela informação . Quando eu puder, sairei e informarei a
você como ela está. Eu prometo.
Richard sentiu-se impotente. Ficou no portal durante um momento
observando o quase imperceptível movimento da leve respiração de Cara . A luz
da lanterna iluminou o cabelo loiro de Nicci enquanto ela inclinava sobre a Mord-
Sith, trabalhando para descobrir qual era o problema .
Richard teve a horrível sensação de que sabia o que havia de errado com
Cara. Ele temia que ela tivesse sido tocada pela própria morte .

133
C A P Í T U L O 1 7

Após retirar sua mochila dos entulhos , Richard limpou-se rapidamente e


vestiu uma camisa . Ele também pegou a sua espada .
Não sabia o que entrou no prédio , mas parecia que tinha vindo atrás dele .
Não tinha ideia se a sua espada o ajudaria a combater uma coisa assim , mas
realmente fazia ele sentir -se melhor estar com ela ao alcance .
Do lado de fora o ar da noite estava parado e morno . Um dos homens viu
ele emergir da porta e aproximou -se.
— Como está a Senhora Cara?
— Ainda não sabemos. Ela está viva, pelo menos isso é encorajador .
O homem assentiu.
Richard reconheceu o chapéu do homem . — Foi você que me viu
pendurado na janela?
— Isso mesmo.
— Você deu uma olhada na coisa que nos atacou ?
— Temo que não . Ouvi toda a comoção, olhei para cima , e lá estava você
pendurado por um braço . Pensei que você poderia cair . Isso foi tudo que vi .
— Nenhuma coisa escura sai ndo pela janela?
O homem cruzou as mãos atrás das costas enquanto pensava a respeito
por um momento. — Não... exceto que talvez eu possa ter visto a sombra de
alguma coisa. No máximo, isso é tudo que posso ter visto , o relance de uma
sombra. Eu estava mais preocupado em subir até lá antes que você caísse.
Depois de agradecer o homem , Richard caminhou por algum tempo sem
realmente pensar em para onde estava indo . Ele sentiu como se estivesse
atordoado, seus pensamentos tão pesados e escuros qua nto a noite úmida e quente .
Tudo que ele conhecia e valorizava parecia estar desintegrando -se. Sentiu-se
impotente.
A umidade quente obscurecia as estrelas e a lua ainda não tinha
aparecido, mas as luzes ardendo por toda a cidade refletindo providenciavam luz
suficiente para que ele seguisse caminho até a borda da colina . Ele sentiu -se
inútil, não sendo capaz de ajudar Cara. Ela estivera lá tantas vezes para ajudá -lo.
Dessa vez ela havia enfrentado algo que era mais do que podia encarar .
Quando estava prest es a cair, Richard ficou durante algum tempo
contemplando a estátua de Espírito ao longe . Victor tinha feito o anel de ferro
com postes segurando as tochas . Kahlan, fascinada com o processo , ficou a maior
parte do dia na oficina escaldante do ferreiro obse rvando ele moldar o aço quente .
Victor não tinha feito careta uma vez naquele dia , mas havia sorrido com o
interesse dela enquanto mostrava a ela como trabalhava o metal para alcançar o
que ele queria.
Richard também lembrou da admiração de Kahlan ao ver aquela
escultura dela sendo reproduzida no enorme mármore branco . Ele lembrou quando
aquela pequena estátua da aromática nogueira finalmente foi devolvida a ela e ela
abraçou-a contra o peito. Ele tinha observado o jeito como os dedos dela
deslizaram carinhosamente sobre o manto esvoaçante . Richard lembrou também
do modo como então os olhos verdes dela olharam dentro dos olhos dele .
Ninguém acreditar nele a respeito de Kahlan fez ele sentir-se
completamente sozinho e isolado . Nunca esteve em uma sit uação como essa, onde

134
as pessoas... pessoas que importavam -se sinceramente com ele... pensavam que
ele estava apenas imaginando as coisas que dissera a elas . Era uma sensação
assustadora as pessoas pensarem que ele estava fora do alcance da realidade .
Mas nem mesmo isso era tão assustador quanto sua preocupação a
respeito do que poderia ter acontecido com Kahlan.
Ele não sabia o que fazer para encontrá -la. Tudo o que sabia com certeza
era que precisava conseguir ajuda . Não sabia se essa ajuda estaria dispon ível, mas
pretendia fazer tudo que fosse necessário para certificar -se de conseguir.
Após algum tempo, ele retornou até a hospedaria . Jamila estava na base
dos degraus limpando poeira e pedaços de gesso .
Ela olhou para ele quando ele entrou . — Você deve pagar por isso.
— O que você quer dizer?
Com o cabo da vassoura, ela apontou para cima, subindo os degraus . —
Os danos. Eu vi o lugar lá em cima . Você deve pagar o conserto .
Richard foi pego de surpresa. — Mas eu não fiz isso .
— A culpa é sua.
— Minha culpa? Eu estava no meu quarto. Não causei os danos e não sei
o que causou.
— Você e a mulher eram os únicos em quartos lá em cima . Os quartos
estavam bons quando você os alugou . Agora eles estão uma bagunça . Vai custar
muito dinheiro para consertá -los. Eu não causei os danos... porque eu deveria
pagar? Os danos são culpa sua então você deve pagar... incluindo a perda do
aluguel enquanto eles estão sendo reparados .
Ela exigiu que ele pagasse o conserto dos quartos sem primeiro
perguntar como Cara estava , ou ao menos expressar preocupação com ela .
— Darei a Ishaq minha permissão para deduzir o custo daquilo que el e
me deve. — Richard lançou um olhar furioso para a mulher . — Agora, se você me
dá licença.
Com a costa da mão ele empurrou a mulher para o lado qua ndo passava
por ela no corredor escuro . Ela bufou para ele antes de voltar à sua limpeza. Sem
saber para onde mais ir , ele caminhou lentamente subindo e descendo o corredor .
Jamila finalmente acabou de remover os detritos do primeiro andar e partiu para
cuidar de outros assuntos enquanto ele continuava a andar de um lado para outro .
Ele finalmente sentou com as costas contra a parede oposta à porta do quarto de
Nicci. Não sabia o que mais fazer , para onde mais ir. Ele queria ver Cara.
Richard levantou os joelhos e entrelaçou os dedos sobre eles . Descansou
o queixo sobre as costas das mãos enquanto pensava no que Jamila dissera.
De certo modo, ela estava com razão . A coisa tinha vindo atrás dele . Se
ele não estivesse ali isso não teria acontecido . Se alguma outra pessoa tivesse
sido ferida ou morta ele realmente seria o culpado por trazer o perigo até elas. Se
não fosse por causa dele , Cara não estaria ferida .
Ele avisou a si mesmo para colocar a culpa nos culpados . Esses eram
Jagang e aqueles que trabalhava m em prol dos objetivos dele . Foi Jagang quem
ordenou a criação da besta que estava vindo atrás de Richard. Cara simplesmente
estava no caminho. Cara estivera tentando protegê -lo daquilo que Jagang e as
Irmãs do Escuro haviam criado .
Quando Richard pensou nos homens de Victor que foram mortos fazia
alguns dias , provavelmente por aquela mesma besta , ele não conseguia evitar
sentir o terrível peso da culpa .
E ainda assim , a coisa que entrou na hospedaria não tinha ferido ele .
Richard não tinha dúvida de que ela o teria feito, mas então ela simplesmente

135
desaparecera antes que o seu trabalho sinistro estivesse concluído . Ele não
conseguia imaginar porque ela faria uma coisa como essa . Ou porque ela veio
através das paredes do jeito que veio . Afinal de contas, se ela saiu pela janela,
porque ela simplesmente não invadiu pela janela ? Seja lá o que fosse, tinha
demonstrado consciência ao seguir direto para o quarto dele . Se ela tivesse
entrado pela janela o teria pego antes que ele soubesse o que estava acontecendo .
A coisa que matou os homens de Victor comportou-se de forma diferente. Cara
não foi rasgada em pedaços do jeito que eles foram , embora estivesse claro que
ela estivesse seriamente ferida .
Ele começou a questionar se realmente foi a mesma criatura que mat ou
os homens de Victor. E se Jagang tivesse criado mais de uma besta , mais de uma
arma para vir atrás dele ? E se as Irmãs do Escuro tivessem gerado um exército de
criaturas para caçá-lo? Todas as perguntas pareciam rodopiar na mente dele ,
incapazes de transformarem -se em respostas.
Richard deu um pulo quando Nicci sacudiu seu ombro. Ele percebeu que
devia ter caído no sono .
— O que foi? — ele perguntou, esfregando os olhos . — Que horas são?
Quanto tempo ...
— Passaram-se algumas horas. — Nicci disse com uma voz baixa,
cansada. — Estamos no meio da noite .
Richard levantou ansioso. — Então, Cara está bem ? Você a curou?
Nicci ficou olhando para ele durante o que pareceu uma eternidade . Para
Richard pareceu, enquanto ele olhava dentro dos olhos de Nicci, como se o
coração dele estivesse subindo na garganta .
— Richard, — finalmente ela falou em uma voz tão suave e piedosa que
isso fez o coração dele parar. — Cara não vai conseguir.
Richard piscou diante das palavras , tentando certificar -se de que
entendera o que Nicci realmente estava dizendo .
— Eu não entendo . — ele limpou a garganta. — O que você quer dizer?
Nicci pousou uma das mãos gentilmente no braço dele . — Acho que você
devia entrar e vê -la enquanto ela ainda está conosco .
Richard agarrou os ombros dela. — Do que você está falando ?
— Richard... — o olhar de Nicci desviou para o chão. — Cara não vai
resistir. Ela está morrendo . Ela não viverá além desta noite .
Richard tentou afastar -se da feiticeira, mas suas costas encontraram a
parede. — Contra o quê? O que há de errado com ela?
— Não sei, exatamente. Ela foi tocada por algo que ... que colocou a
morte dentro dela . Não sei como explicar porque realmente não sei exatamente do
quê ela está morrendo . Tudo que sei é que isso sobrepujou as defesas do corpo
dela e m omento a momento ela está escapulindo .
— Mas Cara é forte. Vai lutar contra isso . Ela vai conseguir .
Nicci estava balançando a cabeça . — Não, Richard, ela não vai . Não
quero dar a você falsas esperanças . Ela está morrendo. Acho que ela pode até
mesmo querer morrer.
Richard afastou-se da parede. — O quê? Isso é loucura. Ela não tem
razão para querer morrer .
— Você não pode afirmar isso , Richard. Não sabe o que ela está
passando. Não conhece as razões dela . Talvez o sofrimento seja demais para ela .
Talvez ela não consiga suportar a dor e só queira que isso acabe .
— Se não for por vontade dela , Cara faria qualquer coisa para continuar
viva para me proteger.

136
Nicci lambeu os lábios enquanto dava um aperto confortador no braço
dele. — Talvez você esteja certo , Richard.
Richard não estava gostando de ser confortado. Ele olhou da porta para
a feiticeira novamente. — Nicci, você pode salvá -la. Você sabe como fazer esse
tipo de coisa.
— Olhe, seria melhor você ir vê-la antes...
— Você tem que fazer alguma coisa . Tem que fazer.
Nicci abraçou a si mesma. Ela desviou o olhar, seus olhos cintilando
com lágrimas.
— Eu juro, Richard, eu tentei tudo que sei ou em que consegui pensar .
Nada ajudou. A morte já tem o espírito dela e eu não posso mais alcançar tão
longe. Ela está respirando , mas malmente. Seu coração está fraco e quase se foi .
Todo o corpo dela está desligando conforme ela se vai . Nem mesmo tenho certeza
se ela realmente ainda está viva no sentido em que acreditamos que uma pessoa
está viva. Ela só está aqui por um fio, e esse fio não vai aguentar muito tempo.
— Mas, não... — ele não conseguiu pensar em quaisquer palavras para
conter o peso da tristeza que começava a tomar conta dele .
— Por favor, Richard, — Nicci sussurrou. — visite-a antes que ela se
vá. Diga o que gostaria de dizer a ela enquanto tem chance . Odiará a si mesmo
para sempre se não fizer isso .
Richard sentiu-se anestesiado enquanto Nicci o conduzia até o quarto .
Isso não podia estar acontecendo . Simplesmente não podia. Essa era Cara. Cara
era como o sol, ela não poderia morrer . Ela era... era sua amiga . Não podia morrer .

137
C A P Í T U L O 1 8

O fraco brilho de duas lanternas falharam em fazer muita coisa para


iluminar o quarto sombrio . A menor estava sobre uma mesa no canto , como se
estivesse encolhendo -se na presença da própria morte . A outra estava sobre uma
mesinha peto da cama ao lado de um copo com água e um pano úmido , lutando
para manter afastadas as sombras . Uma colcha de cama de brocado com borda
dourada luxuriante estava sob re Cara, seus braços flácidos sobre ela , uma de suas
pontas pendia por sobre o lado da cama para roçar no chão .
Cara não parecia como Cara. Parecia cadavérica. Mesmo sob a luz
dourada da lanterna , o rosto dela parecia pálido . Richard não enxergava a
respiração dela .
Ele mesmo mal conseguia respirar . Podia sentir seus joelhos tremendo .
Parecia que o nó em sua garganta poderia sufocá -lo. Ele queria cair sobre ela e
implorar que ela acordasse .
Nicci inclinou aproximando -se, tocando gentilmente o rosto de Cara.
Seus dedos deslizaram para cada um dos lados do pescoço dela . Richard notou
que a tremedeira horrível de Cara finalmente havia cessado . Ele não achava que
esse seria o bom indício que poderia parecer ser .
— Ela está... ela está...
Nicci olhou para trás por cima do ombro . — Ainda está respirando , mas
temo que isso esteja ficando mais lento .
Richard moveu a língua , molhando o céu da boca para que conseguisse
formar palavras . — Você sabe, Cara tem um homem de quem ela gosta .
— Tem? É mesmo?
Richard assentiu. — A maioria das pessoas não acham que Mord-Sith
podem gostar de alguém , mas elas podem. Cara gosta de um soldado . O General
Meiffert. Benjamin também gosta dela .
— Você o conhece?
— Sim. Ele é um bom homem . — Richard ficou olhando para a trança
loira jogada por cima do ombro de Cara e sobre a colcha de cama com brocado .
— Não o vejo faz muito tempo . Ele está com o exército D’Haraniano.
Nicci pareceu cética . — E Cara admitiu para você que ela gosta desse
homem.
Richard balançou a cabeça enquanto contemplava o rosto familiar de
Cara. Seu belo rosto agora magro e pálido parecia apenas uma representação
fantasmagórica da antiga Cara .
— Não. Kahlan falou para mim. As duas tornaram-se bastante próximas
durante o passar do ano em que estiveram com o exército D’Haraniano enquanto
você estava comigo aqui em Altur'Rang.
Nicci desviou o olhar e remexeu nas cobertas sobre Cara . Quando
Richard chegou mais perto, Nicci foi para uma cadeira ao lado da mesa para ficar
fora do caminho. Ele sentiu como se estivesse fora do próprio corpo , observando
de algum lugar acima , observando a si mesmo caindo sobre um joelho , observando
a si mesmo segurar a mão fria de Cara , observando a si mesmo segurá -la contra
sua bochecha.
— Queridos espíritos , não façam isso com ela. — ele sussurrou. — Por
favor, — ele adicionou com um soluço. — não levem ela.

138
Ele olhou para Nicci. — Ela queria morrer como uma Mord-Sith, lutando
em nossa causa, não na cama.
Nicci exibiu o mais leve dos sorrisos . — Ela teve o seu desejo satisfeito .
As palavras, fazendo parecer como se Cara já estivesse morta , atingiram -
no como um raio. Não podia deixar isso acontecer . Simplesmente não podia.
Kahlan se foi, e agora isso. Ele simplesmente não podia deixar isso acontecer .
Ele colocou uma das mãos no rosto gelado de Cara. Pareceu como se
estivesse tocando um morto . Richard lutou contra as lágrimas . — Nicci, você é
uma feiticeira. Você me salvou quando eu estava perto da morte . Ninguém mais
além de você poderia ser capaz de encontrar um a solução. Ninguém além de você
poderia ter me salvado . Não há mesmo nada em que você consiga pensar para
fazer por C ara?
Nicci deslizou para frente saindo da cadeira para ajoelhar ao lado dele .
Ela segurou a mão dele e levou -a até os lábios. Ele sentiu uma lágrima cair na
costa da mão que ela segurava com tanta ternura , como se ela fosse um humilde
súdito implorando o perdão de seu Rei .
— Eu sinto tanto, Richard, mas não há. Espero que você saiba que eu
faria tudo que fosse necessário se eu pudesse salvá-la, mas não posso. Isso está
além da minha habilidade . Chegará uma hora em que todos nós temos que morrer .
A hora dela chegou e eu não posso mudar isso .
Richard piscou diante da cena de morte , o quarto malmente estava
iluminado pela fraca luz das dua s pequenas chamas. A cama onde estava Cara
pareceu flutuar naquela luz , com a escuridão aguardando ao redor dela .
Ele assentiu . — Nicci, por favor, poderia me deixar sozinho com ela ?
Gostaria de estar sozinho com ela quando chegar o momento ... não é nada contra
você. É que eu apenas acho que deveria estar sozinho com ela .
— Eu entendo, Richard. — os dedos de Nicci tocaram a costa dele
quando ela levantou e então , como se estivessem relutantes em quebrar aquele
contato com os vivos , deslizaram pelo ombro del e enquanto ela afastava-se. —
Estarei perto se precisar de mim. — ela disse quando o toque terminou .
A porta fechou suavemente atrás dela , deixando o quarto em silêncio .
Ainda que as pesadas cortinas estivessem fechadas sobre a janela , Richard podia
ouvir o coro incessante da cigarras do lado de fora .
Ele não conseguiu mais conter as lágrimas . Encostou a cabeça sobre o
estômago de Cara enquanto soluçava , agarrando a mão flácida dela .
— Cara, eu sinto muito. A culpa é minha . Ela estava atrás de mim , não
de você. Eu sinto tanto. Por favor, Cara, não me deixe. Preciso tanto de você.
Cara era a única que o seguia porque acreditava nele . Podia ter
concordado com Nicci que ele estava sonhando com Kahlan, mas ela ainda
acreditava nele. Com Cara, isso não era uma contradição. Mais tarde, mais e mais
parecia que a fé dela nele era tudo que o estava sustentando e mantendo ele focado
naquilo que precisava fazer . Houve momentos assustadores em que ele não sabia
mais se acreditava em si mesmo . Era tão difícil encarar tod o um mundo que
pensava que ele estava delirando . Era tão difícil fazer aquilo em que ele acreditava
quando quase ninguém acreditava nele . Mas Cara acreditava nele mesmo se não
tivesse acreditado na existência de Kahlan. Havia algo único naquele sentimento ,
alguma coisa diferente até mesmo do respeito de Nicci ou Victor por ele.
Ele segurou o rosto de Cara com as duas mãos quando beijava sua testa .
Ele esperava que ela não estivesse sofrendo . Esperava que esse fosse um
fim pacífico de uma vida que não tivera nada de pacífica.
Ela estava tão pálida , sua respiração tão fraca .

139
A carne dela parecia tão fria quanto a morte .
Odiando que ela estivesse tão fria , Richard empurrou a coberta da cama
para o lado quando inclinava -se e passava os braços em volta dela , esperando que
o seu calor ajudasse ela .
— Pegue o meu calor. — ele sussurrou no ouvido dela . — Pegue tudo
que precisar. Por favor, Cara, pegue o meu calor .
Deitado ali abraçando -a, Richard mergulhou em um nevoeiro de agonia .
Sabia o quanto essa mulher sofrera . Sabia como tinha sido a vida dela , sabia o
quanto ela foi machucada , tinha passado por algumas das coisas que ela passou
sob o governo louco do pai dele , Darken Rahl. Ele havia sofrido parte da dor e
desespero . Talvez mais do que qualquer outra pessoa , ele verdadeiramente podia
sentir empatia com ela. Ele sabia como estranhos a lançaram em um mundo de dor
e loucura. Richard sabia porque ele também esteve lá. Havia desejado tanto trazê -
la de volta daquele lugar escuro e terrível .
— Pegue meu calor, Cara. Estou aqui para você .
Ele abriu-se para ela, abriu sua necessidade a ela , abriu a si mesmo para
a necessidade dela.
Agarrou-a com força em seus braços enquanto chorava contra o ombro
dela. Ele quase sentiu que se conseguisse segurá -la firme o bastante , ela não
deslizaria para a morte.
Richard podia sentir enquanto a segurava nos braços que ela ainda estava
viva e ele não conseguia suportar que isso terminasse . Queria tanto que Nicci
pudesse ter feito algo . Se alguém merecia ser curada , era Cara. Nesse momento,
mais do que tudo , ele queria que ela fosse curada .
Richard abriu a si mesmo , sua alma, a esse propósito.
Liberou a si mesmo dentro de sua empatia por essa mulher que havia
dado tanto a ele . Mais de uma vez ela arriscou sua vida para seguir as ordens de le.
Muitas vezes ela arriscou sua vida por ele em aberto desafio de suas ordens . Ela
o seguira através do mundo . Incontáveis vezes ela colocara -se entre o perigo e as
vidas dele e de Kahlan. Cara merecia a vida, merecia tudo de bom na vida . Ele
não queria outra coisa a não ser torná -la inteira novamente. Ele entregou tudo de
si a esse desejo. Não ofereceu restrições em sua concentrada necessidade de fazer
Cara permanecer entre os vivos .
Para esse fim , nesse desejo desesperado , ele buscou conscientemente a
vida dentro dela enquanto ela mergulhava na rodopiante corrente de sua agonia .
Tão rápido quanto esse pensamento , ele juntou sua mente com a dela , com a dor
agonizante dela. Segurou-a bem forte nos braços enquanto chorava com o
sofrimento desolado dela .
Ele cerrou os dentes , prendeu a respiração , e puxou a dor dela para
dentro de si. Não queria outra coisa mais do que afastar aquela dor dela . Não
poupou nada para proteger -se do impacto que subitamente inundou-o. Sentiu tudo
que ela sentiu. Sofreu tudo que ela sofreu. Ele pressionou a boca aberta contra o
ombro dela, abafando o seu grito quando a dor cortou através dele .
Eles estavam em um lugar vazio, escuro e sem esperança ... um lugar sem
vida.
Ele tremeu com o sofrimento dela enquanto removia uma parte do fardo
dela. Ela agarrou-se com a dor, recusando soltá -la, especialmente para ele. Mas
fraca como estava, ele conseguiu absorvê -la de qualquer jeito, e então ele
absorveu ainda mais .
Erguendo e descobrindo as camadas do sofrimento , ele sentiu o toque
gélido da morte dentro dela .

140
O pavor diante de tal encontro foi mais devastador do que qualquer coisa
que ele havia confrontado . Cara estava mergulhada naquela sensação sombria e
fria. Ele sentiu o sofrimento que compartilhava com ela , o medo que juntos eles
guardavam. A mente dele contorceu com a dor esmagadora até que essa fosse uma
terrível e aparentemente imensurável luta apenas para manter a sua própria
vontade de continuar .
Richard foi lançado em uma corrente fria de desesperadora miséria que
o consumia. Pareceu mais do que ele podia suportar , e ainda assim ele suportou e
absorveu mais. Ele queria que ela tomasse a sua força , seu calor vital. Mas para
fazer isso, primeiro ele teria que sobreviver sugando aquele veneno sombrio para
dentro de si enquanto ao mesmo tempo entregava a ela sua força .
O tempo perdeu todo o significado . A dor em si era a personificação da
eternidade.
— A morte virá com frequência , oferecendo-se para levá-la... querendo
levá-la. — ele sussurrou contra o ouvido dela . — Não aceite a o ferta, Cara. Fique.
Não aceite a morte .
— Eu quero morrer .
Aquele pensamento surgiu espiralando através da agonizante desolação .
Isso chocou e aterrorizou ele . E se agarrar-se à vida fosse mais do que ela
conseguia suportar? E se isso fosse mais do que ela podia encarar? E se ele
estivesse pedindo a ela mais do que ela podia dar ? Mais do que ele tinha o direito
de pedir?
— Cara, — ele sussurrou no ouvido dela. — preciso que você viva. Por
favor, preciso que você viva .
— Não consigo .
— Cara, você não está sozinha. Estou aqui com você . Aguente firme.
Por mim, aguente firme e permita que eu ajude .
— Por favor, me deixe partir. Deixe que eu morra . Estou implorando ,
se você gosta de mim , então deixe... deixe que eu morra .
Ela começou a escapulir . Ele segurou -a com mais força . Absorveu mais
do sofrimento dela para dentro de si . O eu interior dela contorceu em agonia
enquanto ela lutava contra ele .
— Cara, por favor. — ele arfou com a torrente de dor espalhando -se
através dele. — Deixe-me ajudá-la. Por favor, não me abandone.
— Não quero viver . Eu falhei com você . Devia ter salvado você quando
Nicci veio capturá -lo. Sei disso agora... você me fez enxergar isso . Eu morreria
por você, mas falhei em meu dever , em minha promessa para mim mesma . Não há
razão para que eu viva. Não sou digna de ser sua protetora . Por favor, deixe que
eu vá.
Richard ficou surpreso em perceber o desespero no pedido dela , porém,
mais do que isso , ele ficou apavorado .
Ele reuniu aquela dor também, e sugou -a dela. Absorveu-a mesmo
enquanto ela tentava segurá -la, tentava afastar -se dele.
— Cara, eu te amo. Por favor, não me abandone . Preciso de você.
Ele lutou para sugar mais da agonia dela para dentro de si . Ele
sobrepujou a resistência dela e absorveu mais ainda . Ela não era capaz de impedir .
Ele removeu o manto pálido da morte que arrastava ela . Richard segurou-a firme
nos braços enquanto abria o coração dele , sua necessidade , sua alma.
Ela gemeu com o sofrimento . Ele entendia a solidão esmagadora .
— Eu estou com você, Cara. Você não está sozinha.
Richard a tranquilizava mesmo enquanto batalhava para suportar a

141
surpreendente agonia do mal que a tocara . Não era simplesmente a dor daquilo ,
mas o pavor sombrio que a estava matando , e agora aquela fria desolação estava
esmagando-o lentamente... e ao mesmo tempo o sofrimento cegante dela impedia
que o poder de cura dele fluísse dentro dela .
De repente ele sentiu como se tivesse mergulhado para salvar uma pessoa
que afogava-se e agora os dois estavam presos na mesma torrente selvagem e
ambos se afogariam nas águas negras da morte .
Se fosse para ele ter uma chance... se fosse para ela ter... primeiro ele
teria que extrair o bastante do sofrimento dela . Ele teria que suportar o peso
daquilo por ela . Ele absorveu a dor, sem preocupar -se com ela, recebendo-a de
bom grado, sugando-a com toda sua força .
Quando ele sentiu aquele peso completo da miséria e angústia reunido
dentro de si, teve que lutar bastante para manter a sua própria vida ao mesmo
tempo em que deixava fluir o seu poder , sua força de cura, seu coração . Richard
nunca foi ensinado sobre como curar , como direcionar o seu poder , ele só
conseguia deixar o calor dele fluir para dentro dela .
— Não quero viver . Eu falhei com você . Por favor, deixe que eu morra .
— Porque você quer me abandonar ? Porque?
— Porque somente desse jeito posso servi-lo, porque então poderá ter
outra pessoa que não falhará com você .
— Cara, isso não é verdade . Tem alguma coisa errada. Alguma coisa que
nenhum de nós entende. — através da dor, Richard lutou para soltar as palavras.
— Você não falhou comigo . Tem que acreditar em mim . Você deve acreditar em
mim. É por isso que preciso de você mais do que tudo... que você esteja comigo
e acredite em mim . É de você que preciso , não dos seus serviços . Por favor, eu
preciso de vo cê. Preciso que você viva. Esse é o motivo... a sua vida torna a minha
melhor.
Ele lutou com toda sua força para continuar... para segurar Cara com
ele... mas o peso da escuridão interior parecia sem fim . Quando as barreiras de
sua contenção colapsaram , ele sentiu como se estivesse sendo atirado em um vazio
líquido, espiralando sempre para baixo dentro daquela sombra escura que tinha
vindo através da parede atrás dele . Ele viu relances dela como ela tinha visto , viu
o terror paralisante daquilo abatendo -se sobre ela.
Aquele era o núcleo do pavor dela , aquela coisa vil, aquela morte
encarnada, que vinha atrás dele , através dela. Esse não era a suave dissolução da
consciência dentro do vazio da não existência . Isso era cada pesadelo ganhando
vida, vindo arrancar a vida dos vivos . Isso era a morte sombria descendo sobre
ela, sozinha e indefesa, aquele ceifador de almas impiedoso vindo para tirar a
vida dela enquanto ela gritava .
Quando ela ficou diante daquilo , bloqueando seu caminho , ela havia
recebido seu toque mortal.
Ele entendeu, então, que Cara sentiu que havia falhado com ele antes ,
com Nicci, e dessa vez ela estava determinada a morrer para cumprir o seu
juramento. A loucura ainda residia dentro dela .
Ela acreditava que a morte caindo sobre ela seri a a sua redenção aos
olhos dele e assim recusava -se a recuar diante dela.
Ela queria morrer por ele para provar o seu valor .
Quando aquilo atravessou a parede e cruzava o quarto dela , Cara havia
tentado roubar o poder da própria morte .
Richard sentiu aquele toque torturante envolvê -lo em toda sua agonia
consumidora. Era um toque tão frio que começou a congelar o coração dele .

142
O mundo começou a deslizar para longe dele , como tinha começado a
deslizar para longe dela .
Ele estava perdido na dor esmagadora daquele toque mortal .

143
C A P Í T U L O 1 9

Para Richard parecia como se ele estivesse preso sob o gelo nas águas
escuras de um rio congelado . A sombra do pânico girava cada vez mais perto dele .
Ele estava exausto e não tinha qualquer reserva de força restante.
Quando o espectro do fracasso surgiu , e a completa percepção do que
significaria para ele uma falha como essa , ele concentrou sua força de vontade e
exerceu um esforço ainda maior para abrir caminho em direção à luz remota da
consciênci a. Ainda que estivesse consciente de que havia conseguido acordar
parcialmente, ele ainda estava em algum lugar distante, profundo, e tendo
dificuldade em completar a jornada . Ele lutou para erguer -se, lutou pela vida
acima, mas não conseguia atravessar .
Mesmo quando Richard tentou elevar-se com mais força, pareceu difícil
demais, longe demais. Pela primeira vez , ele considerou a paz da rendição ...
realmente considerou , como ela fizera antes que aquilo a arrastasse para o fundo .
As presas mortais do fracass o pairavam mais perto .
Impulsionado pelo medo da total percepção de tudo que uma derrota
assim significaria, ele juntou as forças , concentrou sua vontade, e com paixão
desesperada esticou-se em direção ao mundo dos vivos .
Com um suspiro, os olhos dele abriram.
A dor tinha sido esmagadora . Sentia-se tonto e com náuseas por causa
do encontro com tal malevolência . Ele ainda tremia com o poder daquilo . Após
uma violência interior como aquela , ele temeu que cada batida de seu coração
pudesse ser a última. O breve toque da depravação havia deixado nele uma
lembrança repugnante do sufocante fedor de cadáveres apodrecendo , tornando
quase impossível respirar profundamente como ele precisava .
Ele projetara-se dentro da alma de Cara e sentiu um mal alienígena
espreitando ali, junto com ela, sugando a vida dela , empurrando-a para dentro da
escuridão sombria da morte . Foi um pavor debilitante além de qualquer coisa que
ele já havia sentido , além do simples medo do abismo negro da eternidade .
Ele foi a testemunha sor ridente de horrores inimagináveis que
rastejavam atrás dele .
No início ele havia sentido que tocara a face gelada da própria morte ,
mas agora ele sabia que não . A despeito de sua repulsa , sabia que era alguma
outra coisa ao invés de simplesmente a morte .
A morte era apenas uma parte da sua arquitetura venenosa .
A morte era inanimada. Isso não era.
Ele sentia tanta dor que no momento não tinha certeza se teria forças
para ficar em pé outra vez , a força necessária para viver . Seus ossos estavam
doendo. A medula em seus ossos estavam doendo . Ele parecia não conseguir parar
de tremer. Porém a dor era mais do que mera agonia física ; era uma miséria
abominável que infiltrara -se em sua alma e tocara cada aspecto da existência dele .
O quarto silencioso finalmente começou a entrar em foco ao redor dele .
As lanternas ainda mantinham afastado o véu de escuridão . Além das cortinas as
cigarras cantavam a sua canção da vida .
Deitado sobre a cama, ainda segurando Cara de forma protetora em seus
braços, Richard finalmente conseguiu respirar profundamente como tão
desesperadamente necessitava . Quando o fez, ele sentiu a fragrância do cabelo

144
dela, o aroma da pele calorosa por toda a curva do pescoço dela , e ao fazer isso a
agonia começou a recuar .
Sentiu os braços de Cara abraçando-o com firmeza. O suave cabelo
macio por trás da orelha dela acariciou o lado do rosto dele .
— Cara? — ele sussurrou .
Ela levantou o braço e deslizou uma das mãos carinhosamente descendo
pela nuca dele, enquanto apertava -o contra ela sem timidez . — Shh... — ela
pronunciou suavemente no ouvido dele . — Está tudo bem .
Ele estava sentindo dificuldade em entender o sentido das coisas .
Estava de certo modo desorientado por encontrar-se abraçando Cara, por
encontrá-la segurando ele com tanta ternura nos braços dela, ao perceber que eles
estavam unidos em um abraço tão íntimo . Ele podia sentir todo o corpo dela
pressionado contra ele. Mas nada podia ser mais íntimo do que aquilo que eles
compartilharam naquele lugar sombrio quando os dois encararam o mal q ue havia
dominado ela.
Ele passou a língua por seus lábios rachados e sentiu o gosto salgado de
lágrimas.
— Cara...
Ela assentiu contra o lado do rosto dele . — Shh... — ela disse
suavemente outra vez . — Está tudo bem . Eu estou com você. Não vou abandoná -
lo.
Ele afastou -se apenas o bastante para olhar nos olhos dela . Eles estavam
azuis e vivos, revelando uma profundidade que ele jamais tinha visto . Ela estudou
o rosto dele com uma espécie de carinhosa simpatia .
Naquele momento, ele viu claramente nos olhos d ela que essa era Cara
e nada mais. Naquele momento, ele viu que a denominação de Mord-Sith havia
sido removida de sua alma . Naquele momento, ela era Cara, a mulher, a única, e
nada mais.
Essa foi a visão dela mais reveladora e profunda que ele já tinha visto.
Foi algo surpreendentemente belo .
— Você é uma pessoa rara, Richard Rahl.
O suave sopro das palavras dela contra o rosto dele suavizou uma parte
da dor residual de forma tão sedutora quanto os braços dela , quanto os olhos dela ,
quanto as palavras , quanto o calor vivo dela.
Ainda assim, a agonia que ele removera dela ainda fluía através dele,
procurando puxá-lo de volta para a escuridão e para a morte . Em algum lugar no
fundo de sua mente, ele combateu isso com seu amor pela vida , e com sua alegria
por Cara estar viva .
— Eu sou um mago. — ele sussurrou em resposta .
Ela ficou olhando nos olhos dele enquanto balançava a cabeça
lentamente, admirada.
— Nunca houve um Lorde Rahl como você. Eu juro, nunca houve.
Com os braços em volta do pescoço dele , ela puxou a cabeça dele e
beijou-o na bochecha . — Obrigada, Lorde Rahl, por me trazer de volta. Obrigada
por me salvar. Você me fez enxergar novamente que eu quero viver . Sou eu quem
devia estar protegendo a sua vida , e é você quem arrisca a sua para me salvar .
Mais uma vez ela observou os olhos dele com alegre satisfação . Foi uma
forma completamente diferente do modo como uma Mord-Sith olhava através de
uma pessoa, de enxergar dentro da alma dela . Essa era uma emoção de estima
nascida da valorização do valor dele para ela. No sentido mais puro , era amor.
Ela não mostrou absolutamente qualquer reserva ao deixar que ele visse os

145
sentimentos dela expostos .
Ele imaginou que, depois do que eles tinham acabado de compartilhar ,
qualquer modéstia não faria sentido . Porém, ele sabia que isso era mais , que isso
era Cara; sincera, sem medo e sem timidez .
— Nunca houve um Lorde Rahl como você.
— Cara, não sabe o quanto estou feliz por ter você de volta comigo .
Ela segurou a cabeça dele nas duas mãos e beijou sua testa . — Oh, mas
eu sei. Eu sei o que você sofreu por minha causa esta noite . Sei muito bem o
quanto você me queria de volta . Sei muito bem o que você fez por mim . — ela
passou os braços ao redor do pescoço dele novamente e abraçou -o bem apertado.
— Nunca senti tanto medo daquele jeito , nem mesmo quando pela primeira vez eu
fui...
Ele encostou os dedos nos lábios dela para silenciar o que ela estava
prestes a dizer com medo que isso quebrasse o feitiço , que isso logo trouxesse a
armadura de Mord-Sith de volta aos lindos olhos azuis dela. Ele sabia o que ela
estava prestes a falar . Conhecia aquela loucura .
— Obrigada, Lorde Rahl. — ela sussurrou surpresa quando ele afastou
os dedos . — Obrigada por tudo, e por não deixar que eu falasse o que eu estava
quase para dize r. — com o franzir de sua testa , a dor assombrou o rosto dela . —
É por isso que nunca houve um Lorde Rahl como você. Todos eles criaram Mord-
Sith. Todos trouxeram a dor. Você acabou com ela.
Richard não conseguiu forçar as palavras através do nó em sua garganta,
então ele simplesmente afastou uma mecha de cabelo loiro da testa dela e sorriu .
Ele estava tão feliz em ter ela de volta que não conseguiria expressar isso em
palavras.
Então, ele olhou ao redor do quarto , tentando julgar que horas seriam .
— Não sei quanto tempo levou para você me curar, — ela disse enquanto
observava ele olhar para as cortinas procurando qualquer sinal da aproximação do
amanhecer. — mas depois do que você fez , estava tão exausto que pareceu ter
desmaiado de sono. Eu não podia ac ordar você... não queria acordá -lo. — com
seus braços ainda frouxamente em volta do pescoço dele , ela olhou para ele com
um sorriso alegre, parecendo como se ela jamais desejasse mover -se. — Eu estava
tão fraca que dormi também .
— Cara, temos que sair daqui.
— O que você quer dizer?
Richard levantou-se, a urgência da situação tornando -se clara demais. A
cabeça dele girou de forma nauseante . — Usei magia para curar você .
Ela assentiu, parecendo incaracteristicamente contente diante da menção
da magia e dela na mesma frase. Havia sido a magia que mostrara a ela a maravilha
da vida.
Repentinamente tornou -se claro para ela aonde ele queria chegar . Ela
sentou rapidamente, mas teve que colocar uma das mãos para trás para equilibrar -
se.
Richard estava em pé sobre pernas trêmulas . Então ele percebeu que
ainda estava carregando sua espada . Estava feliz em tê-la ao alcance. — Se a besta
de Jagang estiver por perto, então ela pode ter sentido que usei meu Dom . Não sei
onde ela pode estar , mas não gostaria de estar deitado aqui quando ela voltar .
— Nem eu. Uma vez já foi o bastante para uma vida .
Ele esticou um braço e ajudou -a a levantar. Ela balançou em uma postura
rígida durante um momento antes de recompor -se e soltar o corpo . De alguma
forma pareceu surpreendent e para ele que ela estivesse vestida em sua roupa de

146
couro vermelha. Após estar tão próxima dela , após estar dentro dela, em um certo
sentido, aquela roupa parecia de algum jeito alienígena .
De alguma forma inexplicável , Cara emanava a aura de Mord-Sith em
volta de si.
Ela sorriu . A confiança exibida naquele sorriso alegrou o coração dele .
— Estou bem. — ela falou como se estivesse dizendo para ele parar de preocupar -
se. — Estou de volta com você .
O aço estava de volta aos olhos dela . Cara realmente estava de volta.
Richard assentiu. — Eu também. Estou me sentindo melhor agora que
acordei. — ele apontou para a mochila dela . — Vamos juntar nossas coisas e
vamos andando .

147
C A P Í T U L O 2 0

Nicci estava em pé na beira da colina , as mãos cruzadas, contemplando


o terreno da estátua de mármore branco iluminada por tochas . O povo de
Altur'Rang achou que uma figura tão nobre , um símbolo de liberdade para eles ,
jamais devia ficar no escuro e então ela estava sempre iluminada .
Nicci ficara andando de um lado para outro no corredor sombrio na
hospedaria durante a maior parte da noite , triste por causa da vida que desaparecia
do outro lado da porta. Ela tentou tudo que sabia para salvar Cara, mas foi inútil.
Nicci não conhecia Cara tão bem, mas certamente conhecia Richard.
Provavelmente ela o conhecia melhor do que qualquer pessoa , exceto, talvez, o
avô dele Zedd. Não conhecia o passado dele tão bem , as histórias sobre a infância
dele ou esse tipo de coisa ; ela conhecia Richard, o homem. Conhecia ele bem
fundo até sua alma. Não havia outra pessoa que ela conhecesse melhor .
Entendia a profundidade da tristeza dele em perder Cara. Durante a
vigília, o Dom de Nicci, espontaneamente, havia trazido até ela os sons de uma
parte daquele sofrimento . Partia o coração de Nicci que Richard sofresse tal perda .
Ela teria feito qualquer coisa para poupá -lo disso.
Em certo ponto ela pensou em entrar e aliviar a tristeza de Richard,
aliviar uma parte dela poupando -o ao menos de um pouco da solidão daquilo . A
porta não abriu .
Embora isso fosse intrigante , o que ela conseguia sentir dizia que havia
apenas duas pessoas lá dentro e o que podia ouvir dizia que não havia algo mais
do que simples tristeza do outro lado , então ela não tentou forçar a abertura da
porta emperrada. Incapaz de suportar a dor de escutar as súplicas de Richard para
Cara enquanto ela jazia moribunda , eventualmente Nicci foi para o lado de fora,
finalmente acabando olhando através do abismo negro da noite para a estátua que
ele havia criado .
Além de estar com Richard, havia poucas coisas que Nicci acharia
melhor fazer do que contemplar a coisa majestosa que ele havia criado .
Às vezes a morte de alguém próximo tinha um jeito de fazer as pessoas
enxergarem o mundo sob uma nova luz , um jeito de f azer com que elas se
voltassem para aquelas coisas que eram mais importantes na vida . Ficou
imaginando o que Richard faria assim que Cara morresse, se isso o faria retornar
à realidade e finalmente ele abandonaria a caça por fantasmas, e permaneceria
com as pessoas que queriam ficar livres da Ordem Imperial .
Escutando passos, e então o seu nome ser chamado , Nicci virou.
Era Richard, com mais alguém , aproximando -se através das sombras . O
coração de Nicci murchou. Isso só podia significar que a luta de Cara finalmente
terminara.
Quando Richard chegou mais perto, Nicci viu quem estava com ele .
— Queridos espíritos , Richard, — ela sussurrou, seus olhos ficando
arregalados. — o que você fez ?
Na luz fraca das tochas distantes Cara parecia perfeitamente viva e bem .
— Lorde Rahl me curou. — ela falou, de forma casual , como se um feito
como aquele fosse uma tarefa sem maior importância do que se ele a tivesse
ajudado a buscar água.
Nicci ficou olhando em choque . — Como? — foi tudo que ela conseguiu

148
falar.
Richard parecia tão cansado quanto se tivesse passado por uma batalha .
Ela quase esperou vê -lo coberto de sangue.
— Não consegui suportar o pensamento de não fazer algo para tentar
ajudá-la. — disse ele. — Suponho que a necessidade foi forte o suficiente para
que eu conseguisse de algum jeito fazer o que precisava fazer para curá -la.
O motivo do porque aquela porta não abria de repente tornou -se bem
claro. Ele realmente passou por uma batalha , e ele estava, de certo modo, coberto
de sangue, só que não do tipo que algu ém conseguiria ver.
Nicci inclinou em direção a ele . — Você usou o seu Dom . — aquilo foi
uma acusação, não uma pergunta. De qualquer modo, ele respondeu.
— Acho que sim .
— Você acha que sim . — Nicci gostaria de conseguir não soar como se
estivesse zombando dele. — Tentei tudo que eu conhecia . Nada que eu fiz foi
capaz de alcançá -la. Eu não consegui curá-la. O que você fez ? E como você
conseguiu tocar o seu Han?
Richard balançou os ombros. — Não tenho exatamente certeza de tudo .
Eu a segurei e consegui sentir que ela estava morrendo . Consegui sentir que ela
estava deslizando para mais e mais longe. Eu meio que deixei... minha mente...
mergulhar dentro dela, descendo até o núcleo de quem ela é , descendo até onde
ela precisava de ajuda. Assim que alcancei aquele lugar de união com ela , transferi
a dor dela para dentro de mim para que ela pudesse ter força suficiente de aceitar
o calor da vida que eu oferecia a ela .
Nicci entendeu muito bem o elaborado fenômeno que ele estava
descrevendo, mas estava surpresa em ouvir isso explicado em termos tão comuns .
Era como se ela tivesse perguntado como ele esculpiu uma estátua em mármore
que mostrava tanta vida e ele tivesse falado que para sua obra prima ele
simplesmente removera toda a rocha que não pertencia a ela . Embora fosse
acurada, tal explicação era casual ao ponto do absurdo .
— Você pegou para si mesmo o que estava matando ela ?
— Tive que fazer isso .
Nicci pressionou a ponta dos dedos nas têmporas . Até mesmo ela, com
todos os poderes que tinha à sua disposiçã o, e ela possuía um poder considerável ,
sem falar no treinamento , experiência, e conhecimento, não conseguiria realizar
tal feito. Ela teve que fazer um esforço para reduzir a velocidade do seu coração .
— Você tem alguma ideia do perigo envolvido em um emp reendimento
como esse?
Richard pareceu um pouco desconfortável com o tom inflamado das
perguntas dela. — Foi o único jeito, Nicci. — falou ele de forma resumida .
— Foi o único jeito. — ela repetiu, admirada. Ela não conseguia
acreditar no que estava ouvindo. — Tem ideia de quanto poder é necessário para
embarcar em uma viagem da alma assim , muito menos para voltar de tal lugar ?
Ou do perigo de ir até lá ?
Ele enfiou as mãos nos bolsos como se fosse uma criança sendo
censurada por mal comportamento . — Tudo que sei é que foi o único jeito de
trazer Cara de volta .
— E ele conseguiu. — falou Cara, apontando um dedo para Nicci não
apenas para enfatizar mas para declarar sua defesa em nome dele . — Lorde Rahl
foi me buscar.
Nicci olhou fixamente para a Mord-Sith. — Richard foi ao limiar do
mundo dos mortos por você ... e talvez além.

149
Cara lançou um olhar para Richard. — Ele foi?
Nicci assentiu lentamente. — O seu espírito já tinha deslizado para
dentro de um reino crepuscular. Você estava além do meu alcance . Foi por isso
que eu não consegui curar você .
— Bem, Lorde Rahl conseguiu.
— Sim, ele conseguiu. — Nicci levantou o braço e com um dedo ergueu
o queixo de Cara. — Espero que enquanto você viver jamais esqueça daquilo que
esse homem acabou de fazer por você . Duvido que exista alguém vivo que
poderia... que tentaria algo assim .
— Ele teve que fazer isso . — Cara mostrou um sorriso audacioso para
Nicci. — Lorde Rahl não pode viver sem mim e ele sabe disso .
Richard virou para o lado enquanto sorria .
Nicci mal podia acreditar em uma atitude tão casual após um evento
monumental como aquele . Ela deu um suspiro em uma tentativa de controlar a voz
e não transmitir a impressão errada , uma impressão de que ela não tivesse gostado
que ele curasse Ca ra.
— Você usou o seu Dom, Richard. A besta já está nas proximidades e
você usou o seu Dom .
— Tive que usar ou nós a teríamos perdido .
Para Richard, tudo isso parecia simples e claro. Pelo menos ele teve o
bom senso de não parecer tão convencido quanto Cara. Nicci plantou os punh os
nos quadris quando inclinou aproximando -se dele.
— Não compreende o que fez ? Usou o seu Dom outra vez . Alertei você
que não devia fazer isso . A besta já está em algum lugar perto e usando o seu Dom
você disse a ela exatamente onde está .
— O que esperava que eu fizesse, deixar Cara morrer?
— Sim! Ela jurou protegê -lo com sua vida. Esse é o trabalho dela... seu
dever por juramento . Não ajudá-lo a trazer a besta para mais perto de você .
Poderíamos facilmente ter perdido você em uma tentativa como essa , sem falar na
profunda ameaça que você acabou de despertar . Colocou em risco tudo o que você
significa para o povo de D'Hara e o seu valor para nossa causa apenas para salvar
uma pessoa. Devia ter deixado ela partir . Salvando-a você apenas permitiu que
ela cham asse a morte para vocês dois porque a agora besta será capaz de encontrá -
lo. O que acabou de acontecer agora acontecerá novamente , só que desta vez não
haverá como escapar . Você acabou de salvar a vida de Cara pagando o preço com
a sua própria vida, e sem dúvida com a dela também na barganha.
Mesmo enquanto falava Nicci sabia pela fúria nos olhos dele que ela não
estava realizando um bom trabalho em fazer ele enxergar o que ela queria dizer .
Os olhos de Cara, por outro lado, revelavam um súbito alarme beira ndo o pânico.
Richard colocou uma das mãos atrás do pescoço dela e deu um leve aperto
confortador, como se estivesse dizendo a ela para ignorar aquela suposição .
— Isso não é certo, Nicci. — os músculos na mandíbula dele flexionaram
enquanto ele cerrava os dentes. — Pode ser uma possibilidade , mas não e certo...
e além disso, não deixaria alguém com quem eu me importo morrer simplesmente
porque isso poderia fazer com que eu ficasse um pouco mais seguro . Já estou
sendo caçado. Deixar Cara morrer não teria mudado isso.
Nicci deixou as mãos caírem encostando contra as coxas . Ele não estava
com humor para ouvir qualquer pessoa falar contra salvar a vida de uma mulher
com quem ele preocupava -se profundamente.
Nicci não tinha ideia de como poderia explicar a ele de um jeito que
fizesse ele entender a magnitude das forças que tinha invocado ou o grave perigo

150
que liberou. Como poderia falar qualquer coisa e ele não interpretar mal o que ela
queria dizer? No final, ela sabia que não poderia .
Nicci colocou uma das mãos no ombro dele. — Acho que não posso
culpá-lo, Richard. Acho que no seu lugar, eu teria feito a mesma coisa . Algum
dia, quando tivermos o luxo do tempo teremos que conversar a respeito disso .
Quando pudermos, gostaria que você falasse para mim tudo o que fez. Talvez eu
possa ajudá-lo a aprender a controlar melhor aquilo que você foi capaz de fazer
sozinho. No mínimo talvez eu possa ao menos tornar as coisas que você faz
espontaneamente um pouco mais focadas e um pouco menos perigosas .
Richard assentiu agradecendo, se foi a oferta dela ou o seu tom mais
suave ela não tinha certeza .
Nicci podia ver nos olhos de Richard e de Cara que a experiência havia
aproximado ainda mais os dois . Quando ela percebeu que em breve ele partiria , o
breve lampejo de alegria de Nicci em ver Cara viva e bem desapareceu .
— Além disso, — Richard falou enquanto observava a escuridão. — nem
ao menos sabemos se isso tinha algo a ver com a coisa lá da floresta .
— Bem, é claro que tinha. — disse Nicci.
O olhar dele retornou para ela . — Como você sabe? Aquela coisa rasgou
aqueles homens em pedaços . Esse foi um tipo de ataque diferente . Para dizer a
verdade, nem ao menos sabemos com certeza que ambos os ataques foram
realizados pela besta que Jagang ordenou que fosse criada.
— Do que você está falando? O que mais poderia ser ? Tem que ser a
arma que Jagang ordenou que as Irmãs conjurassem .
— Não estou dizendo que não é... poderia muito bem ter sido... mas
muita coisa nisso não faz sentido para mim .
— Como o quê?
Richard deslizou os dedos através dos cabelos . — A coisa na florest a
atacou os homens... ela não me atacou mesmo que eu não estivesse muito longe .
Aqui, ela não preocupou -se em despedaçar Cara como fez com os homens . Se
fosse a mesma coisa , então sabemos que poderia ter me matado f acilmente. Então
quando ela estava bem aqui e teve a chance , porque não aproveitou a
oportunidade?
— Talvez porque eu tenha tentado capturar o poder dela. — Cara
sugeriu. — Talvez apenas tenha passado por mim porque eu era uma ameaça ou
talvez tenha ficado distraída o bastante e decidiu fugir .
Richard balançou a cabeça. — Você não era uma ameaça . Ela passou
direto por você, e além do mais, o toque dela foi suficiente para eliminar a sua
interferência. Então, ela atravessou a parede atrás de mim , mas quando chegou ao
meu quarto ela não fugiu , ela simplesmente desapareceu .
De repente Nicci ficou desconfiada. Ela não tinha ouvido toda a história .
— Você estava no quarto e ela simplesmente desapareceu ?
— Não exatamente. Eu pulei pela janela para escapar quando ela cruzou
a parede para dentro do meu quarto . Quando eu estava pendurado lá algum tipo
de coisa escura, como uma sombra em movimento , saiu pela janela e quando fez
isso ela pareceu evaporar dentro da noite.
Nicci passou distraidamente a ponta do cordão de seu corpete entre os
dedos enquanto considerava o que ele havia dito. Ela tentou encaixar as peças
junto com tudo mais que sabia , mas nada combinava. Nada do que a besta fizera
parecia fazer sentido... se realmente fosse a mesma besta . Richard estava certo no
fato de que tudo isso parecia desafiar a lógica .
— Talvez não tenha visto você. — ela murmurou para si mesma enquanto

151
avaliava o quebra cabeças .
Richard exibiu um expressão cética . — Então você está dizendo que ela
conseguiu me encontrar, durante a noite, dentro da hospedaria , e ela atravessou
várias paredes enquanto vinha atrás de mim , mas quando eu consegui por pouco
saltar pela única janela , ela ficou confusa e então partiu ?
Nicci observou os olhos dele durante um momento . — Os dois ataques
possuem algo importante em comum . Ambos mostraram incrível poder...
despedaçando árvores como se fossem gravetos e atravessando paredes como se
elas fossem como papel .
Richard suspirou, infeliz . — Suponho que isso seja verdade .
— O que eu gostaria de saber , — Nicci adicionou quando cruzou os
braços. — é porque ela não matou Cara .
Ela captou o leve tremor nos olhos dele e então ela soube que ele sabia
de algo mais além do que tinha falado . Nicci inclinou a cabeça quando observava
ele enquanto aguardava.
— Quando eu estava lá na mente de Cara, absorvendo a dor do toque
daquela coisa maligna, havia algo mais que ela deixou para trás . — ele admitiu
com uma voz lenta . — Acho que ela queria deixar uma mensagem para que eu
encontrasse, uma mensagem avisando que ela está vi ndo atrás de mim , que ela me
encontrará, e que durante toda a eternidade ela transformará a minha morte em
um luxo além alcance.
O olhar de Nicci desviou para Cara.
— Não escolhi que ele fosse atrás de mim até aquele lugar crepuscular,
como você o chamou. Não pedi a ele e não queria que ele fosse . — as mãos da
Mord-Sith fecharam-se bem apertado. — Mas não posso mentir e dizer que
preferia estar morta.
Nicci não conseguiu evitar um sorriso diante de uma honestidade tão
simples.
— Cara, estou feliz que você não esteja morta... realmente estou . Que
tipo de homem estaríamos seguindo se ele facilmente deixasse um amigo morrer
sem tentar fazer o melhor que pudesse para salvá -lo?
A expressão de Cara suavizou quando Nicci olhou para Richard outra
vez.
— Ainda estou perplexa com o porque dela não ter morto Cara. Afinal
de contas , uma mensagem como essa poderia ter sido entregue facilmente
diretamente a você assim que ela o tivesse em suas garras . Se a ameaça é real... e
eu certamente não duvido que seja... então a be sta teria todo o tempo que desejasse
para fazer você sofrer se ela o tivesse capturado naquele momento . Uma
mensagem como essa não serve a um propósito real . E mais, não faz sentido que
a besta esteja bem ali e então desapareça .
Richard tamborilou os dedos na guarda de sua espada enquanto pensava
nisso. — Todas são boas perguntas , Nicci, mas eu simplesmente não tenho boas
respostas.
Com a palma da mão esquerda repousando sobre o cabo da espada , ele
observou a escuridão novamente , verificando qualquer ameaça . — Acho que seria
melhor Cara e eu seguirmos nosso caminho . Considerando o que aconteceu aos
homens de Victor, estou preocupado com o que acontecerá se aquela coisa voltar
aqui atrás de mim . Não gostaria de ter aquele tipo de besta cruzando a cidade em
uma frenesi sangrento. Não quero que qualquer outra pessoa seja ferida ou morta
sem necessidade. Seja lá o que for aquela coisa... a besta que Jagang fez as Irmãs
conjurarem, ou algo sobre o qual não sabemos... para mim parece que terei um a

152
chance melhor de continuar vivo se eu continuar em movimento . Ficar parado em
um lugar parece o mesmo que esperar a chegada do executor .
— Não acho que você esteja necessariamente fazendo suposições
lógicas. — falou Nicci.
— De qualquer modo eu preciso par tir mesmo, e eu me sentiria melhor
se fosse mais cedo do que tarde... por várias razões . — ele pendurou a mochil a
bem alto sobre as costas . — Tenho que encontrar Victor e Ishaq.
Resignada, Nicci apontou para trás dela . — Depois do ataque eu fui
buscar eles. Os dois estão nos estábulos , lá atrás. Ishaq está com os cavalos que
você pediu. Alguns dos homens ajudaram a juntar suprimentos para você . — el a
colocou uma das mãos no braço dele . — Alguns dos parentes dos homens de
Victor, aqueles que foram mortos , estão lá também . Eles querem ouvir você .
Richard assentiu enquanto soltava um forte suspiro . — Espero que eu
consiga oferecer a eles algum conforto . O pesar está fresco em minha mente . —
ele deu um rápido aperto no ombro de Cara. — Mas o meu desapareceu.
Richard prendeu o arco mais alto no ombro quando começou a caminhar .
Em pouco mais do que um piscar de olhos ele desapareceu na escuridão .

153
C A P Í T U L O 2 1

Quando Cara passava, seguindo o rastro de Richard, Nicci segurou o


braço da Mord-Sith, mantendo-a para trás até que pudesse falar sem que Richard
ouvisse.
— Como você está, Cara? De verdade?
Cara recebeu o olhar direto de Nicci com um olhar firme. — Estou
cansada, mas estou bem agora. Lorde Rahl trabalhou bem.
Nicci assentiu mostrando sua satisfação. — Cara, posso fazer uma
pergunta pessoal?
— Contanto que eu não tenha que prometer respondê -la.
— Você tem alguém com quem preocupa -se muito chamado Benjamin
Meiffert?
Mesmo na luz fraca , Nicci conseguiu ver o rosto de Cara ficar tão
vermelho quanto sua roupa vermelha de couro . — Quem falou uma coisa como
essa para você?
— Então, você quer dizer que é um segredo e ninguém sabe ?
— Bem, não é isso que estou dizendo , exatamente. — Cara gaguejou. —
Quer dizer... você está tentando fazer com que eu diga algo que não pretendo .
— Não estou tentando fazer você falar algo , especial mente uma coisa
que não seja verdade . Só perguntei a respeito de Benjamin Meiffert.
A testa de Cara franziu. — Quem falou a você tal coisa ?
— Richard. — Nicci ergueu uma sobrancelha. — É verdade?
Cara pressionou bem forte os lábios . Finalmente ela desviou os olhos de
Nicci para observar a noite. — Sim.
— Então você contou a Richard tudo sobre como você gosta muito desse
soldado?
— Você está louca? Eu jamais teria falado uma coisa como essa para
Lorde Rahl. Onde ele poderia ter ouvido isso ?
Durante um momento, Nicci escutou as cigarras cantando suas
incessantes canções de acasalamento enquanto avaliava a Mord-Sith.
— Richard disse que Kahlan contou a ele tudo sobre isso.
Cara ficou imóvel com a boca aberta . Ela finalmente encostou os dedos
em sua testa enquanto procurava recompor -se.
— Bem, isso simplesmente é u ma loucura... eu, eu mesma devo ter
contado a ele. Acho que simplesmente esqueci . Nós conversamos sobre tanta
coisa. É difícil lembrar de tudo que falei para ele... mas agora que você falou
nisso, acho que lembro de ter mencionado isso uma noite quando nós dois
estávamos conversando sobre esse tipo de coisas sentimentais . Acho que deve ter
sido quando falei para ele sobre Benjamin Meiffert. Acho que joguei esse tipo de
conversa pessoal para o fundo de minha mente . Parece que ele não fez isso . Tenho
que aprender a manter minha boca fechada .
— Não precisa ter medo de qualquer coisa que contar para Richard. Você
não tem um amigo melhor no mundo . E não precisa ter medo que eu saiba desse
tipo de coisa também . Ele falou sobre isso durante o profundo pesar por você
porque desejava que eu soubesse que você é mais do que apenas uma Mord-Sith,
que você é uma pessoa com uma vida e desejos, e que você passou a valorizar um
homem bom. Ele estava honrando você ao me contar . Mas guardarei isso comigo .

154
Os seus sentimentos estão em segurança comigo , Cara.
Cara remexeu distraidamente em mechas de cabelo na ponta de sua
trança. — Acho que nunca olhei para isso desse jeito... quero dizer... sobre ele
me honrar ao contar para você . Isso parece... legal.
— O amor é uma paixão pela vida compartilhada com outra pessoa . Você
apaixona-se por uma pessoa que você considera m aravilhosa. É a sua mais
profunda apreciação do valor desse indivíduo , e esse indivíduo é o reflexo daquilo
que você mais valoriza na vida . O amor, por boas razões, pode ser uma das maiores
recompensas da vida . Você não deveria ficar envergonhada ou constr angida por
estar apaixonada . Quer dizer, se você realmente ama Benjamin.
Cara pensou naquilo por um momento . — Não tenho vergonha disso ; eu
sou Mord-Sith. — uma parte da tensão desapareceu dos ombros dela . — Mas eu
também não sei se estou apaixonada por ele. Não tenho certeza do que penso a
respeito disso . Sei que gosto muito dele . Porém, não tenho certeza se é amor .
Talvez seja apenas o primeiro passo durante o caminho até o amor . Para mim é
meio difícil falar sobre esse tipo de coisa . Não estou acostumada que aquilo que
eu penso ou sinto tenha importância .
Nicci assentiu quando começou a caminhar lentamente através das
sombras. — Durante grande parte da minha vida eu também não entendia o que
era o amor. Às vezes Jagang pensava que estava apaixonado por mim.
— Jagang? É sério? Ele está apaixonado por você ?
— Não, ele não está apaixonado por mim de verdade; ele só pensa que
está. Mesmo naquela época eu sabia que não era amor , ainda que eu não
entendesse porque. A medida de valor de Jagang vai do ódio até a luxúria. Ele
despreza e corrompe tudo que é bom na vida , então ele não conseguiria
experimentar o verdadeiro amor . Só consegue discernir isso como a leve
fragrância de algo tentador e misterioso além do seu alcance e ele deseja possuí -
lo.
— Ele imaginou que podia experimentar o amor me agarrando pelo
cabelo e me forçando a ficar embaixo dele . Ele interpretou o seu prazer enquanto
observava como sentimentos de amor . Achou que eu devia ficar agradecida que
ele tivesse esses poderosos sentimentos por mim que o enchiam de desejo
excluindo quaisquer outras coisas . Uma vez que ele acreditava que me possuir
forçadamente era uma expressão do seu amor , ele achava que eu devia aceitar isso
como uma honra.
— Ele teria gostado de Darken Rahl . — Cara murmurou. — Eles se
entenderiam de forma esplêndida. — ela olhou de repente, confusa. — Você é uma
feiticeira. Porque não usou o seu poder para incinerar o bastardo ?
Nicci soltou um forte suspiro . Como conseguiria explicar simplesmente
toda uma vida de doutrinação ?
— Não penso que passe um dia em que eu não deseje ter morto aquele
homem vil. Mas, envolvida como eu estava sob os ensinamentos da Sociedade da
Ordem, da mesma forma que ele, eu acreditava que a virtude moral só era
alcançada através do auto sacrifício. De acordo com os princípios deles , o seu
dever é com aqueles em necessidade . Esse tipo de determinações são impostas sob
a bandeira do bem comum , o aperfeiçoamento da humanidade , ou obediência ao
Criador.
— Pela ideologia da Ordem nós deveríamos nos devotar não para com
aqueles que consideramos como os melhores entre a humanidade , mas para com
aqueles que consideramos os piores entre os homens... não porque eles mereceram
isso, mas precisamente porque não o fizeram . Isso, a Ordem clama, é o coração

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da moralidade e o único meio pelo qual podemos conquistar nossa entrada na luz
eterna do Criador na vida seguinte . É o sacrifício do virtuoso em servidão ao vil .
Isso jamais é feito sob a bandeira daquilo que realmente é : pura cobiça daquilo
que não foi merecido .
— As necessidades de Jagang giram em torno de sua genitália . Eu tinha
aquilo que ele acreditava necessitar , então eu estava sob a exigência moral de
sacrificar-me diante da necessidade dele . Especialmente uma vez que ele é o líder
que leva os ensinamentos morais da Ordem até os infiéis do mundo .
— Quando Jagang me espancava até que eu estivesse semiconsciente e
então me jogava em sua cama para me possuir , eu só estava fazendo o que tinha
sido ensinada que era não apenas correto , mas o meu altruísta dever moral .
Pensava que eu era vil por odiar isso .
— Já que eu acreditava que era vil por tal interesse próprio , eu sentia
que merecia toda a dor que recebia nesse mundo e punição eterna no próximo . Eu
não poderia matar um homem que era , sob a crença que me foi ensinada pe la
Sociedade da Ordem , moralmente superior a mim pela virtude de sua necessidade .
Como eu poderia ferir alguém a quem fui ensinada a servir ? Como poderia negar
o dano causado a mim quando eu merecia tudo que recebia e muito mais ? Para
quem eu poderia reclamar? Para a justiça? Essa é a infinita armadilha miserável
dos ensinamentos sobre o deu dever com o bem maior .
Elas caminharam em silêncio enquanto Nicci suportava uma gama de
lembranças fantasmagóricas .
— O que mudou? — finalmente Cara perguntou.
— Richard, — Nicci falou suavemente . Nesse momento , ela estava
agradecida pela escuridão . A despeito de suas lágrimas , ela ergueu sua cabeça
com orgulho. — Os ensinamentos da Ordem Imperial só podem durar através da
brutalidade. Richard mostrou-me que ninguém tem direito sobre minha vida , quer
seja toda ela, ou partes dela. Ele mostrou que minha vida pertence a mim para ser
vivida, com meus próprios objetivos , e não pertence a outros .
Cara observou com uma espécie de profunda simpatia . — Acho que você
teve muito em comum com as Mord-Sith sob o governo de Darken Rahl. Um dia
D'Hara foi um lugar de escuridão , como a vida agora sob a Ordem Imperial .
Richard não apenas matou Darken Rahl, ele acabou com aquele tipo de doutrina
doentia em D'Hara. Deu a nós a mesma coisa que deu a você; ele nos devolveu
nossas vidas .
— Acho que Lorde Rahl conseguiu nos entender porque foi tratado de
forma muito parecida.
Nicci não tinha certeza daquilo que Cara estava falando. — De forma
parecida?
— Uma vez ele foi cativo de uma Mord-Sith chamada Denna. Naquele
tempo era nosso dever torturar até a morte os inimigos de Darken Rahl. Denna era
a melhor das melhores . Darken Rahl selecionou -a pessoalmente para capturar
Richard e cuidar do treinamento dele . Darken Rahl estivera caçando Richard fazia
bastante tempo porque ele sabia algo importante a respeito das Caixas de Orden.
Darken Rahl queria aquela informação . Foi o trabalho de Denna torturar Richard
para que ele ficasse ansioso em responder qualquer pergunta que Darken Rahl
fizesse.
Nicci olhou e viu lágrimas brilhando nos olhos de Cara quando ela foi
parando lentamente. Ela ergueu seu Agiel, olhando fixamente para ele enquanto
o girava entre os dedos . Nicci sabia tudo sobre Denna e o que ela fizera com
Richard, mas decidiu que ness e momento podia ser melhor permanecer em silêncio

156
e simplesmente escutar . Às vezes as pessoas precisam falar coisas para si mesmas
mais do que precisam falar para outras . Nicci pensou que talvez após chegar tão
perto de morrer, esse fosse um daqueles momen tos para Cara.
— Eu estava lá. — Cara disse quase em um sussurro enquanto olhava
para seu Agiel. — Ele não lembra porque Denna o havia torturado até que ele
ficasse em delírio e apenas parcialmente consciente , mas eu o vi lá, no Palácio do
Povo, e vi parte daquilo que ela fez com ele ... ou do que todas nós fizemos .
A respiração de Nicci fez uma pausa. Cautelosamente ela olhou para
Cara. — Do que todas vocês fizeram? O que você quer dizer?
— Era um procedimento comum para as Mord-Sith fazer uma
rotatividade com seus cativos. Isso tornava mais difícil que eles aprendessem a
suportar qualquer padrão em particular de tortura de um indivíduo . Ajuda a mantê-
los confusos e com medo . O medo é uma parte integrante da tortura . Isso é uma
coisa que uma Mord-Sith aprende desde o primeiro momento em que ela é levada
para ser treinada e tornar -se uma Mord-Sith... esse medo e o desconhecido
transformam qualquer dor em algo infinitamente pior . A maior parte do tempo
Denna deixou uma Mord-Sith chamada Constance compartilhar o treinamento de
Richard. Mas às vezes Denna quis usar outras, além de Constance.
Cara estava imóvel como rocha enquanto olhava para seu Agiel. — Isso
não foi muito tempo depois que ele chegou ao Palácio do Povo . Richard não
lembra... acho que ele não sabia ao menos o seu nome naquela época porque Denna
o deixava em uma névoa de delírio, em um estado de loucura com as coisas que
tinha feito com ele ... mas ele passou um dia comigo .
Isso, Nicci não sabia. Ela permaneceu parada , com medo de falar
qualquer coisa. Não tinha ideia do que ela poderia dizer .
— Denna tomou Richard como seu companheiro . — disse Cara. — Não
penso que ela entendia o amor melhor do que Jagang ou Darken Rahl. Porém, no
final, ela passou a sentir um profundo e genuíno amor por Richard. Eu vi a
mudança acontecendo nela . Como você descreveu , ela passou a valorizá -lo como
um indivíduo. Passou a sentir sincera paixão por ele . Ela o amou tanto que no fim
permitiu que ele a matasse para que pudesse escapar .
— Mas antes disso, quando Denna ainda estava torturando ele , eu o vi
ali mais de uma vez , pendurado indefeso , coberto de sangue e implorando pela
libertação da morte. — uma lágrima desceu pela bochecha de Cara. — Queridos
espíritos, eu também o fiz implorar pela morte quando estava sobre ele .
Cara pareceu perceber de repente o que acabara de falar em voz alta . O
pânico surgiu em seus olhos . — Por favor não fale para ele . Faz tanto tempo...
acabou e tudo mudou agora . Não quero que ele saiba. .. sobre eu estar lá com ele
daquele jeito. — lágrimas desceram pelo rosto dela . — Por favor...
Nicci segurou uma das mãos de Cara em suas duas mãos. — É claro que
eu não falaria nada a respeito disso . Eu, de todas as pessoas, entendo como você
está sentindo; eu também , uma vez fiz coisas terríveis a ele, só que muito mais
tempo do que qualquer outra pessoa . Como você diz, acabou. — Nicci soltou um
forte suspiro . — Acho que nós três sabemos um pouco sobre o que é o amor , e o
que não é.
Cara assentiu não apenas por causa de seu alívio , mas por sua sincera
apreciação com o fato de Nicci entender. — É melhor alcançarmos Lorde Rahl.
Nicci apontou casualmente em direção aos estábulos . — Richard está
falando com os parentes dos homens de Victor que foram mortos. — ela bateu
levemente no lado de sua testa . — Só consigo ouvi-lo levemente com o meu Dom .
— ela esticou o braço e gentilmente enxugou uma lágrima da bochecha de Cara.

157
— Temos tempo para nos recompormos antes de chegarmos lá .
Quando elas começaram a caminhar lentamente para o estábulo , Cara
disse. — Nicci, então, eu poderia falar a você algo... algo pessoal ?
Em uma noite com tantas surpresas , essa foi outra. — É claro.
— Bem... — Cara começou enquanto franzia a testa , tentando encontrar
as palavras. — Quando Lorde Rahl veio até mim... para me curar... ele estava bem
perto de mim .
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que ele estava deitado ali comigo , na cama comigo, com
os braços ao meu redor... você sabe , me protegendo e mantendo aquecida . — ela
esfregou os braços como se a lembrança tivesse trazido o frio de volta . — Eu
estava com tanto frio . — Cara lançou um rápido olhar para Nicci. — Acho que,
bem, acho que em minha condição , e tudo mais , de certo modo eu estava abraçando
ele também.
Nicci ergueu uma sobrancelha. — Entendo.
— E o negócio é que... eu senti coisas quando ele entrou em mim... e se
contar isso para ele vou matar você, juro que matarei .
Nicci sorriu quando assentiu . — Nós duas gostamos muito dele . Eu
considero que o que você está me dizendo é somente porque está preocupada com
ele.
— Isso mesmo. — ela esfregou os braços outra vez enquanto prosseguia .
— Quando ele... me puxou de volta , ou seja lá o que ele tenha feito , foi como se
ele estivesse dentro de mim , dentro da minha cabeça, quero dizer. Foi um tipo de
intimidade diferente de qu alquer outra.
— Lorde Rahl curou-me uma vez quando fui seriamente ferida, mas isso
foi diferente. Partes eram do mesmo jeito , algumas das sensações eram as mesmas ,
o cuidado sincero e coisas assim que eu senti dele , mas isso foi diferente, de
algum jeito... realmente diferente. Daquela vez ele estava curando o meu
ferimento físico. — Cara inclinou aproximando -se em uma tentativa de enfatizar
seu pensamento. — Dessa vez foi mais ; dessa vez o toque daquela coisa maligna
estava dentro de mim , como se estivesse me envenenando , envenenando minha
existência, minha vontade de viver .
Então ela endireitou o corpo , aparentemente frustrada por ser incapaz de
pensar em como explicar melhor .
— Sei a diferença que você está tentando definir. — Nicci sugeriu. —
Dessa vez foi uma conexão mais pessoal entre vocês.
Cara assentiu como se estivesse aliviado por Nicci parecer entender.
— Sim, isso mesmo, foi mais pessoal. Muito mais pessoal. — ela
adicionou com os dentes semicerrados. — Foi como se a minha alma estivesse
exposta para ele. Foi como se... bem, deixa pra lá.
Cara ficou em silêncio. Nicci imaginou se a mulher havia dito tudo que
realmente queria dizer e teria decidido parar ali , mas então ela continuou .
— O caso é que ele sentiu tanto de mim , de meus pensamentos inter nos
e tudo. Ninguém nunca...
Cara ficou em silêncio outra vez , mas dessa vez com aparente frustração
ao tentar encontrar as palavras para explicar o que estava querendo dizer .
— Eu entendo, Cara, — Nicci garantiu. — realmente entendo. Eu curei
pessoas e então conheço as sensações que você experimentou , mesmo que não tão
profundamente. Jamais fui capaz de obter sucesso na extensão em que Richard
atingiu com você, mas já experimentei mais ou menos os mesmos tipos de
condições quando curo pessoas , especialmente quando curei Richard.

158
— É bom ouvir... que você sabe do que estou falando . — Cara chutou
uma pedra de forma casual enquanto andava . — Bem, acho que Lorde Rahl não
está ciente disso, mas quando estávamos juntos daquele jeito ele não apenas...
experimentou a mim , experimentou meus sentimentos e pensamentos , por assim
dizer; eu também experimentei ele . — ela grunhiu para si mesma . — Não devia
estar falando isso . — ela balançou uma das mãos . — Esqueça que eu disse alguma
coisa.
Nicci não tinha certeza de onde a mulher queria chegar . — Cara, se não
está confortável em falar para mim , então não fale. Você sabe o quanto me importo
com Richard, mas ainda assim , se acha que não devia falar qualquer coisa , ou que
está passando dos limites em seu relacion amento com ele, então talvez você deva
confiar nesse instinto .
Cara suspirou. — Talvez você tenha razão .
Nicci não conseguia lembrar de algum dia em que Cara pareceu tão
frustrada. Se havia uma coisa certa sobre a mulher era sua resoluta confiança . Ela
sempre foi decidida a respeito do que devia fazer em qualquer circunstância . Nicci
nem sempre achava que Cara estava certa , e ela sabia que Richard também não,
mas eles sempre podiam contar com a determinação de Cara em fazer o melhor
para Richard não importava o quanto isso a colocasse em perigo... ou os deixasse
furiosos. Se ela sentisse que suas ações eram necessárias para protegê -lo, ela
simplesmente seguia em frente , desconsiderando as consequências para si mesma ,
incluindo a desaprovação dele .
Enquanto elas caminhavam em silêncio pelo beco escuro , Nicci, com a
ajuda de seu Dom , podia ouvir pessoas a uma certa distância falando em vozes
baixas. Ela não tentou distinguir as palavras ; não fez mais do que notar a natureza
geral da conversa. Eram homens e mulheres reunidos no s estábulos, alguns
falando em turnos. Nicci conseguia perceber Richard falando gentilmente com
eles, respondendo perguntas . Ela podia ouvir pessoas chorando .
Na esquina da hospedaria onde a estrada para a direita seguia descendo
algumas portas até o s estábulos, Cara segurou repentinamente no braço de Nicci
e fez ela parar enquanto ainda estavam nas sombras profundas .
— Olhe, você e eu, bem, nós duas começamos nisso tudo determinadas
a matar Lorde Rahl.
De certa forma pega de surpresa, Nicci não achou que esse fosse o
momento para fazer distinções desnecessárias . — Acho que você está certa .
— Talvez mais do que qualquer outra pessoa , você e eu temos uma
perspectiva única sobre Lorde Rahl. Acredito que quando você começa querend o
causar algum dano a alguém e ele faz você ver o quanto você estava errado e como
a sua própria vida vale mais do que isso , bem, de certo modo isso faz você
importar-se ainda mais com essa pessoa.
— Acredito que eu teria que concordar com você .
Cara apontou para trás, para o caminho pelo qual elas tinham vindo , em
direção ao terreno do Palácio que agora era a Praça da Liberdade . — Lá atrás,
quando a revolta começou , quando Lorde Rahl foi ferido e estava perto da morte ,
as pessoas não queriam deixar você te ntar curá-lo. Estavam com medo de que ao
invés disso você causasse algum mal a ele . Fui eu quem disse a elas para confiarem
em você. Eu entendi o despertar pelo qual você passou porque passei por coisa
muito parecida. Eu fui a única que sabia o que você pa ssou a sentir a respeito
dele. Falei para eles deixarem você fazer isso . Elas estavam com medo de que
você podia usar a oportunidade para tirar a vida dele . Sabia que você não faria
isso. Sabia que você o salvaria .

159
— Você está certa , Cara. Nós duas nos preocupamos profundamente com
ele. Nós duas temos uma ligação especial com ele .
— Sim, é isso. Uma ligação especial . Diferent e, eu acho, de outras
pessoas.
Surpresa com onde Cara podia querer chegar , Nicci abriu os braços. —
Então você quer falar alguma co isa para mim?
Cara olhou para suas botas quando assentiu . — Quando Lorde Rahl e eu
compartilhamos aquela intimidade , senti um pouco das emoções internas dele .
Dentro dele ele tem uma terrível solidão ardente . Acho que toda essa coisa sobre
essa mulher... essa Kahlan... é por causa da solidão dele .
Nicci inspirou profundamente e deixou sair lentamente enquanto
imaginava a natureza precisa daquilo que Cara havia sentido nele. — Suponho
que isso pode ser uma parte.
Cara limpou a garganta . — Nicci, quando você segura um homem em
seus braços daquele jeito , e vocês estiveram ... bem, juntos de uma forma tão
pessoal, você começa a sentir realmente o que está dentro dele .
Nicci enterrou seus sentimentos de volta para dentro das sombras . —
Não duvido que você tenha razão, Cara.
— Quer dizer, eu só queria abraçá -lo para sempre, confortá-lo, impedir
que ele ficasse sentindo -se tão sozinho.
Nicci lançou um olhar atravessado para a Mord-Sith. Ela estava torcendo
a boca enquanto observava o chão . Nicci nada falou, esperando ao invés disso
Cara prosseguir .
— Mas acho que simplesmente não sou a pessoa para fazer uma coisa
assim por Lorde Rahl.
Nicci fez sua pergunta de forma cautelosa . — Está querendo dizer, que
acha que você não é a mulher que pode satisfazer ... a solidão d ele?
— Acho que não sou .
— Benjamin?
A mulher sacudiu os ombros . — Isso é uma parte da coisa . — ela
levantou os olhos e encarou o olhar de Nicci. — Eu amo Lorde Rahl. Daria minha
vida por ele. E tenho que admitir que estar deitada ali e ter ele em meus braços
daquele jeito me fez sentir ... sentir que talvez eu pudesse ser mais do que apenas
sua guarda-costas e amiga. Enquanto estava deitada ali naquela cama , segurando
ele bem perto de mim , imaginei como seria ser a sua ... — a voz dela desapareceu .
Nicci engoliu em seco. — Entendo.
— Mas simplesmente não acho que eu seja essa pessoa . Não sei porque .
Não sou exatamente uma especialista em assuntos do coração , mas não sinto que
eu seja aquela de quem ele precisa . Simplesmente não acho que poderia ser . Se
ele pedisse isso para mim , eu o faria num piscar de olhos ... mas não porque eu
queria, exatamente. Entende o que eu quero dizer ?
— Quer dizer que faria isso por seu profundo respeito e carinho por ele ,
não por seu desejo pessoal de ser amante dele .
— Isso mesmo. — disse Cara com um suspiro de alívio , aparentemente
porque outra pessoa falou aquilo em voz alta . — Além disso, simplesmente não
acho que Lorde Rahl sinta-se desse jeito a meu respeito . Quando estava sentindo
os sentimentos dele, quando estávamos nos braços um do outro , acho que eu
saberia se ele sentisse isso por mim , mas ele não sente. Ele me ama, sei disso,
mas não dessa maneira .
Nicci reduziu cuidadosamente a velocidade de sua respiração . —
Então... era isso que você queria que eu soubesse ? Que você acha que a solidão

160
dele é a origem da mulher fantasiosa dele ?
Cara assentiu. — Sim... mas também mais uma coisa .
Nicci olhou para a rua, observando homens seguindo até o estábulo . —
E o que seria isso?
— Acho que talvez você pudesse ser essa pesso a.
O coração de Nicci subiu até sua garganta quando ela virou para ver
Cara olhando fixamente para ela . — O quê?
— Acho que você poderia ser a pessoa para Lorde Rahl. — ela ergueu
as mãos para impedir qualquer argumento . — Não diga qualquer coisa . Não quero
que você fale que estou louca . Não fale por enquanto . Apenas pense nisso. Nós
partiremos em breve e levará algum tempo até que você possa encontrar conosco ,
então você tem tempo e poderia pensar no assunto . Não estou pedindo a você para
sacrificar-se por ele ou qualquer coisa tola assim .
— Só estou dizendo que acho que Lorde Rahl precisa de alguém e você
poderia ser essa mulher... quer dizer, se você sentir -se bem com isso.
— Eu não sou aquela de quem ele precisa . Sou Mord-Sith, e Lorde Rahl
é um mago. Queridos espíritos , eu odeio magia e ele tem magia . Simplesmente
não somos a pessoa certa um para o outro de todas as menores maneiras . Mas você
tem tanto em comum com ele . Você é uma feiticeira . Quem poderia entendê-lo
melhor do que você? Quem poderia aju dá-lo em cada aspecto da sua vida melhor
do que você?
— Eu lembro daquela noite no acampamento , no abrigo , quando vocês
dois estavam conversando sobre a dimensão criativa da magia . Não entendi
metade daquilo, mas então me ocorreu como vocês dois conseguiam conversar tão
facilmente um com o outro e entender os pensamentos um do outro , ideias, e o
sentido como ninguém mais pod eria. Lembro de ter ficado surpresa com a forma
que vocês dois , bem, pareceram tão certos juntos .
— E lembro de ter pensado também , quando nós deitamos bem perto dele
para nos mantermos aquecidos , como você parecia bem perto dele daquele jeito .
Como uma mulher ficaria perto de um homem do qual gostava . Eu lembro, por
alguma razão, de ter meio que esperado ele beijar você . Isso teria parecido natural.
Nicci não conseguia fazer o coração desacelerar . — Cara, eu... — as
palavras fugiram dela.
Cara remexeu em uma tira de tinta descascando na tábua do canto da
construção. — Além disso , você é a mulher mais bonita que eu já vi . Lorde Rahl
devia ter uma esposa que esteja à altura dele e não consigo pensar em alguém
melhor do que você .
— Esposa... ?
— Não percebe como isso faz sentido ? Isso preencheria o vazio que eu
senti dentro dele . Isso daria alegria a ele e faria a felicidade substituir s ua miséria.
Ele teria alguém para compartilhar do seu Dom e de sua conexão com a magia .
Não ficaria solitário . Apenas pense nisso.
— Mas, Cara, Richard não me ama.
Cara observou-a por um longo e desconfortável momento. Então Nicci
lembrou de Richard uma vez ter falado a ela como era a sensação paralisante de
estar sob o escrutínio de uma Mord-Sith quando ela olhava para você dentro de
seus olhos, realmente olhava dentro deles . Agora Nicci entendeu o que ele queria
dizer.
— Talvez ele não sinta isso agora , mas talvez quando você for juntar -se
a nós pudesse fazer um pouco mais para que ele saiba que você está aberta a esse
tipo de ideia a respeito de vocês dois... quero dizer , se você quiser , se você estiver

161
aberta a essa ideia . Às vezes as pessoas só precisa m ficar conscientes de algo para
que considerem isso seriamente. É por isso que eu senti que precisava dizer algo
a você. Talvez se ele pensar que você pode estar aberta a esse tipo de coisa então
ele pudesse ficar interessado e começasse a olhar para você nesse ângulo .
— Você sabe, as pessoas que estão apaixonadas tiveram que apaixonar -
se em algum momento. Elas não nasceram apaixonadas por seus companheiros.
Talvez você só tenha que ajudá -lo a chegar nesse ponto onde ele começará a
pensar em você dentro de ssa luz.
Poderia até ser que ele pense que uma mulher linda e inteligente como
você jamais poderia gostar dele com seriedade . Às vezes os homens são tímidos
desse jeito em relação a uma mulher que acham extraordinariamente bela .
— Cara, simplesmente não ac ho que ele...
Cara aproximou-se falando de forma confidencial. — Poderia até ser que
ele ache que você jamais estaria interessada nele e então ele sonhou com essa
outra mulher para preencher o vazio .
Nicci lambeu os lábios. — Acho que seria melhor irmos at é o estábulo
ou ele poderá partir sem você . Ele parece bastante decidido em partir .
Cara mostrou um sorriso. — Você tem razão. Olhe, Nicci, se preferir,
você poderia apenas esquecer que eu disse alguma coisa . Posso ver que estou
deixando você desconfortável. De qualquer modo, não tenho exatamente certeza
se eu devia falar qualquer coisa .
— Então porque falou?
Cara desviou o olhar com tristeza . — Acho que foi porque quando eu
estava abraçando ele, e senti a profundidade da sua solidão, isso partiu meu
coração. — o olhar dela retornou para Nicci. — E Mord-Sith não ficam com o
coração partido com muita frequência .
Nicci quase falou que feiticeiras também não ficavam .

162
C A P Í T U L O 2 2

Lanternas penduradas em grossos postes tra nsmitiam uma luminosidade


acolhedora ao estábulo . O cheiro poeirento de palha fresca pairava na larga
passagem que seguia em frente aos cercados e baias . Homens e mulheres , alguns
com suas crianças , haviam preenchido a passagem e em alguns locais espalhavam -
se por cercados vazios , mas agora, depois que Richard tinha falado com os
parentes dos homens que foram mortos , muitos desejaram a ele uma jornada
segura e retornavam para seus lares .
Faltavam duas horas para o amanhecer . A despeito da hora, houve um
certo número de pessoas além dos parentes tristes que vieram para fazerem
perguntas sobre a batalha iminente pela cidade deles . Mais pessoas, sentadas em
fardos de palha, observavam dos palheiros mas agora muitos começavam a descer
as escadas. Richard imaginou que elas voltariam para a cama para dormirem mais
um pouco. Ele sabia que o sono deles seria perturbado por preocupações a respeito
dos soldados marchando em direção à cidade deles .
Victor, em pé ali perto, parecia sombrio após falar sobre a bra vura de
seus homens e como sentiria falta de cada um deles .
Muitas pessoas choravam abertamente enquanto ouviam . Richard sabia
que nada que ele pudesse ter dito acabaria com o pesar delas . Tinha feito o melhor
que podia para fazê -las entender que bons home ns ele achava que eles foram , e o
quanto gostava deles . No final, tudo que realmente conseguiu fazer foi mostrar
empatia com a perda del as. Sentiu-se desamparado e inútil , mesmo que elas
tivessem parecido apreciar as coisas que ele dissera .
Com o canto dos olhos, Richard avistou Nicci e Cara quando elas
entraram pelo grande portal do outro lado do estábulo . Elas tiveram que andar
devagar entre as pessoas que partiam . Ele estivera imaginando para onde as duas
foram, mas, cercado por todas as pessoas querendo falar com ele, não teve chance
de ir checar. Ele concluiu que ou elas quiseram dar tempo a ele para falar com as
pessoas, ou Cara quis dar uma olhada do lado de fora para certificar -se de que
tudo estava bem. De qualquer modo, ele estava feliz em ver os r ostos delas.
— Então é isso que você acha , que essa coisa, essa besta, que atravessou
as paredes da hospedaria de Ishaq estava atrás de você? — um homem mais velho
de nome Henden perguntou quando parou ao lado de Richard. Ele segurava um
cachimbo com um lo ngo corpo curvo em uma das mãos , o cotovelo dele apoiou -
se em um corrimão enquanto ele falava .
A pele em sua face castigada com o peso dos anos estava enrugada . Pelo
fato de que ele era mais velho, e possuía um comportamento calmo, prudente,
muitos na multidão tinham apoiado o interrogatório que ele fez a Richard mais
cedo. Henden sugou ar através de seu cachimbo e liberou nuvens aromáticas de
fumaça com o outro canto da boca enquanto aguardava que Richard respondesse.
— Como eu disse , a evidência parece apontar para isso então eu penso
que provavelmente ela estava . Mas seja lá o que isso for , parece que estava vindo
atrás de mim, então vocês podem ver porque eu penso que é melhor eu partir agora
e não arriscar que aquela coisa venha atrás de mim outra vez dentro da cidade e
talvez cause danos para muitas pessoas aqui .
O homem retirou o cachimbo da boca e apontou para Richard com ele.
— Está querendo dizer que aqueles homens com Victor foram machucados como

163
resultado de você estar perto ?
Victor deu um passo adiante. — Agora preste atenção , Henden, não é
culpa de Lorde Rahl que pessoas malignas estejam tentando matá -lo. Aquelas
mesmas pessoas malignas querem vir até aqui e nos matar também... com besta ou
sem besta. Você teria culpa se os soldados de Jagang viessem matá-lo e ferissem
Lorde Rahl no caminho para pegar você ?
— Meus homens estavam lutando contra a Ordem Imperial quando foram
derrubados por algo vil . Esse mal foi criado pela Ordem . Eles estavam lutando
por um mundo para si mesmos e suas famílias no qual pudessem viver suas vidas
livres e em segurança . Eles escolheram fazer isso ao invés de viverem subjugados .
Henden mastigou a ponta do cachimbo durante um momento enquanto
seus olhos plácidos aval iavam Victor. — Só estava perguntando . Só acho que é
sensato saber qual é a situação e o que estamos enfrentando .
Richard viu cabeças entre os homens e mulheres assentindo .
— Você está certo, isso é sensato. — ele falou para o homem antes que
Victor pudesse ficar com mais raiva . — Não critico um homem por fazer
perguntas, especialmente quando vidas estão envolvidas . Mas Victor também está
certo. Jagang pretende matar todos nós e , como eu disse, a Ordem tem que ser
detida ou nenhum de nós , não importa onde estivermos , será capaz de descansar
em paz.
Richard viu Nicci deslizando com esforço entre as pessoas que partiam .
Seu cabelo louro ondulado deslizava em cascata sobre os ombros de um vestido
negro. O vestido, de corte baixo com um corpete com laço , exibia suas belas
formas. Mas era a presença imponente dela que a fazia destacar -se como uma
Rainha no meio da multidão . Cara, em seu couro vermelho , poderia ter sido a
escolta real.
Richard sentiu-se um pouco desconfortável com o jeito que as duas
olhavam para ele como se não o tivessem visto durante um mês .
Inesperadamente Henden deu um tapinha atrás do ombro de Richard,
fazendo ele retornar de seus pensamentos . O homem falou com o cachimbo preso
entre os dentes .
— Faça uma viagem segura, Lorde Rahl. Obrigado por tudo que fez por
nós. Estamos ansiosos para que você retorne para libertar a cidade de Altur'Rang.
— Obrigado. — Richard falou para o homem com um sorriso.
Henden afastou-se com o fluxo dos outros que estavam engajados em
uma conversa enquanto segu iam na passagem estreita e saiam pela porta . Richard
estava aliviado em ver que essas pessoas entenderam o que significava a liberdade
deles, e queriam mantê-la.
Ishaq, parado perto de Richard, balançou seu chapéu vermelho para
Nicci e Cara quando avistou-as. — Aí estão vocês. — ele gritou. — Você está
bem, Senhora Cara? Richard disse que você estava em segurança , mas fico
agradecido em ver isso com meus próprios olhos .
Richard seguiu Ishaq quando ele correu para encontrar com as duas
mulheres, exibindo seu prazer em ver as duas .
— Estamos bem . — disse Cara. — Sinto muito pelos danos em sua
hospedaria.
Ishaq balançou uma das mãos , como se o assunto fosse trivial . — Não é
nada. Tábuas e gesso. Nada mesmo . Pessoas não podem ser consertadas tão
facilmente.
— Você tem razão nisso. — Cara falou quando seu olhar encontrou o de
Richard.

164
Richard viu Jamila, parada do outro lado da passagem , mostrar expressão
zangada por Ishaq desconsiderar a importância dos danos na hospedaria , mas ela
não falou. Ela segurava a mão d e uma garotinha enquanto apoiava as costas contra
a parede perto da grande porta , observando. Pelo rosto arredondado da garota ,
Richard imaginou que devia ser filha de Jamila. A garota exibiu um sorriso
contagiante para ele e ele não conseguiu evitar sorri r de volta.
— Ishaq, eu disse que você deveria deduzir o dano daquilo que você me
deve, e eu estava falando sério .
Ishaq recolocou o chapéu . — Porque preocupa -se tanto? Eu falei, eu
conserto.
Antes que Richard pudesse responder, ele ouviu uma agitação do lado
de fora. Alguns dos homens que estavam patrulhando a vizinhança cruzaram a
porta arrastando dois grandes homens com eles . Os dois homens, um com mechas
de cabelo escuro sujo desgrenhado e o segundo com seu cabelo cortado curto ,
estavam vestidos com ma ntos marrons parecidas com aquelas usadas por muitas
das pessoas da cidade.
Victor inclinou chegando mais perto de Richard e falou baixo. —
Espiões.
Richard não duvidou. Podia ver os largos cintos embaixo dos mantos que
provavelmente continham armas. Com os soldados da Ordem Imperial
aproximando-se, eles enviariam batedores na frente para checar o que iriam
enfrentar. Agora que eram prisioneiros , era possível que eles pudessem fornecer
informação valiosa sobre a natureza do ataque iminente .
Independente da tentativa deles de camuflarem -se, os dois pareciam
deslocados entre a população da cidade . As roupas lisas que vestiam não eram
largas o bastante para conter seus volumes . Nenhum deles era enorme , nem eram
muito musculosos, mas tinham um comportamento tranquilo, habilidoso . Os dois
homens mantinham-se em silêncio, mas seus olhos estavam sempre em
movimento, observando tudo ao redor deles . Eles pareciam perigosos como lobos
entre ovelhas.
Enquanto os guardas puxavam os dois homens para dentro da passage m
no interior do estábulo , Richard ergueu sua espada algumas polegadas de forma
instintiva, certificando-se de que ela estava livre na bainha , antes de deixá -la cair
de volta.
Quando um dos guardas virou para olhar alguma coisa , o prisioneiro com
o cabelo longo repentinamente e de forma selvagem chutou a tíbia do homem que
o segurava por trás . O guarda gritou de dor e espanto quando desabava ao chão .
O homem livrou -se violentamente das mãos dos homens que seguravam seus
braços girando e empurrando -os. Algumas das pessoas próximas caíram ao chão.
Guardas saltaram sobre o homem livre . Na confusão , vários desabaram no solo
ensanguentados e outro rebolou para trás por cima de um corrimão .
Em um instante , o clima tranquilo no estábulo mudou quando o lugar
todo explodiu em pânico. Mulheres gritavam. Crianças, quando suas mães
gritavam, choravam . Crianças mais velhas começaram a gemer . Homens gritavam .
Os guardas gritavam ordens . A confusão e o medo espalharam -se pela multidão.
O espião inimigo livre , um homem poderoso que sabia como lidar com
adversários e como criar uma abertura para si mesmo em um espaço relativamente
confinado onde eles não podiam aplicar o número necessário para usar força
maior, pulou soltando um rugido .
Ele pegou a garotinha de Jamila pelo cabelo .
De algum jeito , na confusão, o homem tinha conseguido pegar uma faca

165
de alguém e agora estava com ela pressionada contra a garganta da garota . A
criança gemeu de horror . Jamila saltou até a garota, apenas para levar um chute
no lado da cabeça. O golpe poderoso derrubou -a. Outro guarda no chão do outro
lado também recebeu um chute na cabeça quando tentava aproveitar a
oportunidade para chegar perto .
Richard já estava avançando metodicamente, sua atenção focada na
ameaça.
— Todos para trás ! — o homem rosnou para todas as pessoas perto ao
redor dele.
Ele jogou a cabeça para trás para tirar o cabelo gorduroso do rosto . Seus
olhos disparavam de um lado para outro em direção às pessoas que tentavam sai r
do caminho. Ele ainda ofegava com o esforço da breve luta. Suor escorria em seu
rosto marcado por catapora .
— Afastem-se todos ou cortarei a garganta dela !
A garota, um punho carnudo segurando -a pendurada pelo cabelo , gritou
de terror outra vez . Ele segurou -a rapidamente contra o estômago . Os pés dela
chutaram no ar enquanto ela tentava em vão escapar .
— Deixem ele ir! — o homem ordenou aos guardas que seguravam seu
companheiro. — Agora! Ou ela morre!
Richard já estava perdido em uma fúria liberada . Não haveria
compromisso, negociações, nem piedade.
Ele ficou de lado, levemente agachado, seu lado direito em direção ao
homem que segurava a garota , evitando que ele enxergasse a sua espada . O homem
continuou olhando para os guardas à sua esquerda que estavam segurando o outro
homem. Ele não estava prestando atenção em particular para Richard.
O homem corpulento segurando a garota que gritava não sabia disso ,
mas na mente de Richard o feito já havia sido realizado . Na mente de Richard o
homem já estava morto .
A fúria da magia da espada de Richard foi liberada antes que sua mão
ao menos tocasse no cabo. Quando tocou , a tempestade trovejou sem restrições
através dele, energizando seus músculos , unindo-se com o avassalador desejo de
consumar o pensamento mortal .
Em um instante, a calmaria foi varrida para longe por uma terrível
avalanche de necessidade da ação .
Naquele instante , não havia nada que Richard quisesse mais do que o
sangue do homem . Nada além disso o faria parar . A convicção eliminou toda
incerteza. A Espada da Verdade era uma ferramenta pa ra o intento do Seeker, e
esse intento agora era simples e claro . Agora que a mão de Richard estava no cabo
de sua espada, nada mais existia a não ser o seu propósito , e o propósito singular
dele era levar a morte até o homem diante dele.
Sua visão concent rou-se no alvo. Toda a vida dele foi dirigida naquele
singular compromisso letal .
O homem com a faca só precisava deslizá -la pela carne macia e a garot a
morreria. Mas isso levaria tempo , um tempo curto certamente , mas o tempo não
importava porque primeiro ele teria que decidir fazer isso. Nesse momento , a vida
do homem estava dependendo da vida da garota ; se ela morresse, o seu escudo
teria perdido o valor. Ele teria que pesar essa escolha e decidir matá -la antes que
estivesse comprometido a fazê -lo. Essa decisão levaria um pequeno fragmento de
tempo.
Richard já havia tomado sua decisão e atirava -se completamente naquela
tarefa. Agora ele tinha uma fração de tempo que dava a ele uma oportunidade de

166
alterar a natureza da situação , de ser aquele que controlav a o resultado. Ele não
deixaria essa pequena fatia de tempo escapar .
Mas até mesmo isso para ele não importava mais .
Agora, impulsionado pela fúria letal , tanto sua quanto da espada , ele
queria o sangue do homem . Nada mais o satisfaria , nada mais o deteria, ele não
aceitaria menos do que isso .
Richard girou desviando da direção da ameaça , colocando a parte de trás
dos ombros para o homem com a garota , fingindo que estava afastando -se, que
estava retirando -se como o homem tinha exigido . Fazendo isso , Richard sabia que,
com tantas coisas atraindo sua atenção , o homem deixaria Richard e direcionaria
sua preocupação para a ameaça mais óbvia dos homens que estavam aos lados dele
e atrás.
Com o punho segurando firmemente o cabo com fios trançados de sua
espada, Richard inspirou. O mundo ao redor dele pareceu ficar silencioso e
estático.
Quando atingiu o limite de sua torsão para trás , ele parou.
Richard sentiu o coração iniciar um batimento .
Com todo o seu poder , enquanto as pessoas permaneciam congeladas ,
enquanto o homem com a faca permanecia no limiar do assassinato , enquanto o
grito agudo da garota fluía em um som que preenchia o vazio no tempo , Richard
agiu em um movimento explosivo .
Com toda sua força que concentrara , a lâmina dele irrompeu da bainha
totalmente carregada não apenas com sua própria fúria mas também com a
determinação mortal de Richard.
Ao mesmo tempo em que a Espada da Verdade emitiu o som
inconfundível de sua liberação , Richard soltou um grito de fúria . Quando girou ,
ele esvaziou toda sua raiva naquele rugido. Com cada fragmento de esforço que
tinha, ele moveu a espada com todo a velocidade e poder que conseguia aplicar .
Em um instante no tempo claro como cristal , a visão de Richard
concentrou-se no homem com a faca rígido com a surpresa . Naquele espaço de
tempo Richard usou todo seu esforço , toda sua musculatura , toda sua fúria, toda
sua necessidade. Aquele instante pertencia somente a ele e usou -o para seu
propósito singular.
Ele conseguiu ver as gotas de suor deixando o rosto do homem quando
a cabeça dele virou em direção a Richard.
Luz laranja-amarelada das lanternas refletiu em pequeninos pontos
daquelas gotas enquanto elas voavam sem peso no ar . Richard podia contar cada
ponto de luz de cada lanterna em cada gota de suor enquanto sua espada girava
tão lentamente. Ele podia contar cada fio gorduroso do cabelo do homem conforme
eles chicoteavam, flutuando no ar com as gotas .
Richard sabia que olhos ao redor de todo o estábulo estavam observando ,
que os olhos da garota também estavam observando , mas isso não fez diferença .
Os únicos olhos que importavam para ele eram os olhos escuros que finalmente
encontraram o seu olhar .
Naqueles olhos escuros Richard conseguiu ver o início de um
pensamento. A ponta da espada de Richard assoviou através do ar e mpoeirado. A
luz de lanterna cintilou contra o aço afiado da lâmina . Ele conseguiu ver a lâmina
refletida nos olhos escuros do homem . Aqueles olhos refletiram o reconhecimento
da completa dimensão da ameaça .
Adiante surgiu a espada , deslizando como o estalar de um chicote em
direção àqueles olhos , girando em direção ao alvo que Richard mantinha em sua

167
própria visão .
Naquele instante, o homem completou seu pensamento e tomou a decisão
de agir. Mas mesmo no fragmento infinitesimal de tempo que levou para chegar
até a conclusão daquele pensamento , o arco veloz da lâmina cobriu a maior parte
da distância. Mesmo quando a decisão do homem estava sendo tomada , o medo
gerado pelo grito de batalha de Richard fez o homem ficar tenso .
Durante aquele instante no tempo, os músculos dos braços do homem
fizeram uma pausa enquanto o medo combatia o intento.
Aquilo tornou -se uma corrida para ver qual lâmina cortaria a carne
primeiro.
Perder essa corrida seria algo irrevogável .
Com seu olhar fixo nos olhos do homem , Richard finalmente viu sua
espada, voando em uma velocidade assustadora , entrar no seu campo de visão .
Ver aquela lâmina outra vez o encheu de euforia .
Conduzida pela fúria trovejante , a lâmina tocou no lado da cabeça do
homem bem ao nível de seus olhos escur os, exatamente onde Richard pretendia.
Naquele instante, o momento claro como cristal no tempo que havia sido
esticado até o ponto limite fragmentou -se em som e fúria. O mundo ficou vermelho
na visão de Richard quando a cabeça do homem partiu -se onde a lâmina atravessou
o seu crânio . O som como o de um martelo ecoou pelo estábulo .
Ossos estilhaçados . Gotas vermelhas foram lançadas para cima e para
longe. Todo o topo do crânio ergueu -se quando a lâmina atravessou tecido vivo .
Em uma longa trilha na parede , osso, tecido, e sangue traçou a rota do movimento
da espada.
Naquele instante de esmagadora violência , a vida do homem
desaparecera. A ira sem remorso de Richard impediu que ele sentisse a dor de
qualquer p ena.
A força do impacto da espada fez com que o braço com a faca caísse
longe da garota mesmo antes que o giro da espada de R ichard estivesse completo.
O corpo do homem , parecendo nada mais do que carne sem ossos , começou a
desabar.
O homem decidira matar a garota , mas depois que ele tomou aquela
decisão, não teve tempo suficiente para fazer com que sua lâmina efetuasse a sua
vontade.
Richard teve.
Ele sentiu o coração completar o batimento que havia iniciado quando
moveu-se naquela estreita janela de tempo .
O corpo do homem ganhou velocidade conforme de scia até atingir o chão
pesadamente, levantando uma pequena nuvem de poeira . A porção superior da
cabeça dele, com a maior parte de seu escalpo ainda preso nela , pousou com um
som abafado do lado de fora das portas abertas do estábulo , quicando e rolando
para longe dentro da noite , deixando uma trilha de sangue para marcar sua rota
desordenada.
Richard ouviu pessoas arfando em choque . Outras gritaram.
A garotinha, gritando de horror, cambaleou até os braços esticados de
sua mãe.
Enquanto ele segurava a lâmi na agachado, pronto para qualquer outra
ameaça, Richard encontrou o olhar dos olhos arregalados do segundo homem ,
ainda parado no lugar, seguro pelos homens de Victor. O homem não fez qualquer
tentativa de fugir ou lutar .
Victor avançou por uma brecha entre os espectadores , sua pesada maça

168
erguida e pronta. De algum lugar Cara havia aparecido atrás de Richard, seu Agiel
no punho.
Richard avistou Nicci pela primeira vez . Ela correu através da passagem ,
seus braços levantados .
— Não! — ela gritou. — Pare!
Victor esticou o corpo, surpreso . Nicci segurou o pulso erguido dele
como se ela acreditasse que ele estava prestes a matar o prisioneiro .
— Fique parado, ferreiro!
Surpreso, Victor parou e abaixou o braço .
Nicci direcionou um olhar furioso para Richard. — Você também,
carpinteiro! Você fará o que eu digo e ficará parado . Está me ouvindo? ! — ela
gritou com raiva .
Richard piscou. — Carpinteiro?

169
C A P Í T U L O 2 3

No meio da sensação causada pela fúria da espada fluindo através dele,


Richard percebeu que Nicci devia estar planejando algo . Não sabia qual era a
intenção dela, mas ao chamar Victor e ele por uma profissão ao invés de seus
nomes verdadeiros ela estava enviando a eles um sinal que era óbvio demais para
não perceber. Ela estava fazendo um pedido enfático para que eles aderissem ao
seu esforço e seguissem a orientação dela.
Provavelmente porque as pessoas frequentemente o chamavam de
“ferreiro”, Victor pareceu não pegar a deixa . Ele começou a abrir a boca para
falar algo. Nicci deu um tapa no rosto dele .
— Silêncio! Não ouvirei qualquer uma de suas desculpas .
Chocado, Victor deu um passo para trás . O choque rapidamente
transformou -se em uma expressão raivosa mas ele ficou em silêncio .
Vendo que Victor recebera a mensagem para ficar quieto , Nicci voltou
sua ira para Richard. Ela balançou o dedo para ele . — Você terá que responder
por isso, carpinteiro.
Richard não tinha ideia do que ela pretendia , mas quando seus olhos
encontraram -se ele fez um leve aceno com a cabeça . Teve medo de fazer algo mais
do que isso para não entregar fosse lá o que ela estivesse fazendo .
Nicci parecia estar bastante zangada . — Qual é o problema com você ?
— ela gritou para ele . — De onde você tirou a inaceitável ideia de que pode agir
por sua própria vontade desse jeito?
Richard não sabia o que ela queria que ele falasse então ele mostrou
apenas um balanço dos ombros , como se estivesse envergonhado demais para
falar.
— Ele estava salvando a minha criança ! — gritou Jamila. — Aquele
homem cortaria a gargant a dela.
Nicci girou com indignação para a mulher . — Como ousa mostrar tão
pouco respeito com nosso colega homem ! Como ousa julgar o que está no coração
de outro homem! Esse direito é exclusivo do Criador , não seu. Você é uma Bruxa
que consegue ver o futuro ? Se não, então não pode dizer o que ele teria feito .
Acha que ele devia ser assassinado por causa daquilo que você achava que ele
poderia fazer? Mesmo se ele tivesse agido , nenhum de nós tem autoridade para
julgar o certo ou errado de qualquer coisa que e le fizesse.
Nicci virou novamente para Richard. — O que você esperava que o pobre
homem fizesse? Os dois foram arrastados até aqui por uma multidão , sem qualquer
acusação, julgamento, ou até mesmo terem chance de explicarem -se. Você trata
um homem como um animal e então fica surpres o quando ele age por causa da
confusão e do medo?
— Como espera que Jagang, o Justo, decida dar ao nosso povo outra
chance de fazer o que é certo e apropriado quando agimos dessa maneira ? O
homem tinha o direito de temer por sua vida quando estava no meio de uma turba
desmiolada como a que viu ao redor dele .
— Como a esposa do Prefeito , não permitirei tal comportamento ! Está
me ouvindo? ! O Prefeito não vai gostar de ouvir como alguns de nossos colegas
cidadãos agiram vergonhosamen te esta noite. Na ausência do Prefeito , eu
providenciarei que nossos costumes sejam defendidos . Agora, guarde a sua

170
espada.
Começando a entender o que ela estava fazendo , Richard não fez
qualquer tentativa de responder e ao invés disso embainhou sua espada , como foi
instruído.
Quando tirou a mão do cabo , a fúria da arma extinguiu -se. Os joelhos de
Richard quase dobraram . Não importava a justificativa , a necessidade , o número
de vezes em que de forma justa ele usou a espada, matar continuava sendo um
feito terrível.
Não querendo estragar a encenação de Nicci, Richard abaixou a cabeça.
Ela voltou um olhar feroz para a multidão . Todos deram um passo para
trás. — Somos um povo pacífico . Todos vocês esqueceram do seu dever com
nossos colegas? Com os costumes do Criador? Como podemos esperar que o
Imperador algum dia nos aceite de volta nos braços da Ordem Imperial se nos
comportarmos como animais sub-humanos?
A multidão permaneceu muda . Richard cert amente esperava que eles
também percebessem que Nicci tinha um propósito e que não deviam entregar o
que ela estava tentando fazer .
— Como esposa do Prefeito , não permitirei que violência sem sentido
envenene o nosso povo e o nosso futuro .
Uma mulher mais jovem na multidão colocou as mãos nos quadris e deu
um passo adiante. — Mas eles estavam...
— Devemos manter o tempo todo em mente o nosso dever com nossos
colegas, — falou Nicci em um tom ameaçador , interrompendo -a. — não os nossos
desejos egoístas.
Com uma olhadela sub -reptícia para Victor, ele entendeu o que ela
queria dizer e puxou a mulher de volta para certificar -se de que ela manteria sua
boca fechada.
Nicci olhou ao redor para os guardas . — É nossa responsabilidade guiar
o nosso colega, não matá-lo.
Um homem foi morto esta noite . As autoridades do povo terão que ouvir
esse caso e decidir o que será feito com esse carpinteiro. Alguns de vocês
providenciarão para que ele fique confinado até lá .
— Enquanto nisso, como esposa do Prefeito , não permitirei que esse
outro homem receba um d estino injusto similar. Sei que meu marido gostaria de
corrigir as coisas mas também sei que ele não iria querer que isso tivesse que
esperar até amanhã só para que ele falasse isso . Ele desejaria que isso fosse
corrigido imediatamente , então vocês levarão esse outro cidadão para fora da
cidade e o libertarão . Deixem ele seguir seu caminho em paz . Não causaremos mal
a ele. O carpinteiro, como eu disse, terá que ser mantido preso até que possa ser
levado perante as autoridades apropriadas para responder por seu feito
abominável.
Victor fez uma reverência. — Muito sábio, madame. Tenho certeza que
seu marido, o Prefeito, ficaria contente por você intervir em nome dele .
Nicci olhou para o topo da cabeça dele durante um momento enquanto
ele estava curvado diante dela. Então ela virou para ficar diante do segundo espião
cativo. Ela curvou -se para ele.
Richard notou que em algum ponto os fios do corpete de Nicci ficaram
desamarrados. Isso não passou despercebido pelo homem também . A grande
inclinação dela forneceu a ele uma boa e longa visão do seu decote. Assim que
ela levantou o corpo , foi um momento antes que ele finalmente olhasse nos olhos
dela.

171
— Espero que você aceite nossas desculpas pelo seu tratamento
desumano. Não foi desse jeito que fomos ensinados a respeitar todas as pessoas
como nossos irmãos e iguais .
O homem fez uma careta , como se estivesse dizendo que podia ser capaz
de perdoar o tratamento recebido . — Posso entender porque vocês estão tão
desconfiados, depois da sua insurreição contra a Ordem Imperial e tudo mais .
— Insurreição? — Nicci balançou uma das mãos menosprezando o
assunto. — Bobagem. Foi pouco mais do que um mal entendido. Alguns dos
trabalhadores... — ela apontou para Richard sem olhar. — como esse homem
ignorante egoísta aqui , queriam falar em proveito próprio e pagamentos maiores .
Não foi algo além disso . Como o meu marido costuma dizer , isso foi mal
interpretado e encarado fora de proporção . Homens egoístas causaram um pânico
desafortunado que ficou fora de controle . Foi algo parecido com essa tragédia
aqui esta noite... um mal entendido que resultou em dano a uma das crianças
inocentes do Criador .
O homem direcionou a ela um longo e inde cifrável olhar antes de falar .
— E toda Altur'Rang considera assim?
Nicci suspirou. — Bem, junto com a maioria do ovo de Altur'Rang, m eu
marido, o Prefeito, certamente considera. Ele esteve trabalhando para punir os
esquentados e baderneiros . Com os representantes do povo ele tem trabalhado para
fazer esses poucos tipo s reacionários enxergarem que erro cometeram e que
grande mal eles causaram a todos nós . Eles agiram sem levar em conta o bem
maior. Meu marido levou os líderes da confusão perante o Conselho do Povo e
eles decretaram a punição apropriada . A maioria arrepe ndeu-se. Ao mesmo tempo,
ele trabalha para reformar e reeducar os menos inteligentes do bando .
O homem inclinou a cabeça para ela em uma leve reverência . — Por
favor diga ao seu marido que ele é um homem sábio e tem uma esposa sábia que
sabe que seu lugar é no serviço apropriado para o bem maior .
Nicci assentiu em resposta. — Sim, exatamente, o bem maior. Meu
marido diz com frequência que , a despeito de nossos desejos pessoais ou
sentimentos , devemos sempre considerar o bem maior acima de tudo ; que
independente de qualquer sacrifício pessoal devemos pensar apenas no
melhoramento de todas as pessoas e não nos agarrar a os costumes pecaminosos
dos desejos individuais e cobiça. ninguém tem o direito de colocar -se acima do
bem estar dos outros .
As palavras de Nicci pareceram atingir uma corda no homem ; essas
noções eram os ensinamentos fundamentais e crenças da Ordem Imperial . Ela
sabia precisamente como tocar aquelas cordas .
— Isso é verdade. — ele falou enquanto observava ela , dando outra longa
espiada na abertu ra do vestido dela . — Acho que é melhor eu seguir meu caminho .
— E para onde você vai ? — Nicci perguntou. Sua mão subindo para
conter de forma modesta o movimento da frente de seu vestido .
Ele olhou de volta para o rosto dela . — Oh, nós estávamos apenas de
passagem em viagem , seguindo para bem longe ao sul até onde temos família .
Esperávamos conseguir algum trabalho lá . Não conhecia muito bem esse colega .
Apenas estivemos viajando juntos durante os últimos dias.
— Bem, — disse Nicci. — considerando o que aconteceu aqui, tenho
certeza de que meu marido faria a sugestão de que , para a sua própria segurança ,
continue em sua jornada e , levando em conta os poucos tipos reacionários que
ainda estão nas cercanias , seria melhor se você fizesse isso imediatamente . Já
houve uma tragédia esta noite ; não gostaríamos de arriscar outra .

172
O homem direcionou um olhar assassino para a multidão reunida . Seu
olhar pousou em Richard, mas Richard manteve os olhos voltados para o chão .
— Sim, é claro, madame. Por favor agradeça ao Prefeito por tentar levar
os causadores de problemas de volta aos costumes do Criador .
Nicci balançou a mão em direção a alguns dos guardas . — Vocês,
homens, conduzam esse cidadão em segurança para fora da cidade . Levem homens
suficientes para garantirem que não haverá problema . E não preciso lembrar a
vocês como o Prefeito e o Conselho do Povo ficariam desgostosos caso
descobrissem que qualquer mal aconteceu a esse homem . Ele deve ter permissão
de seguir seu caminho .
Os homens fizeram reverência e murmuraram que cuidariam disso. Pela
forma como eles agiram , Richard podia dizer que eles sabiam como entrar no
papel de como a vida teria sido sob a Ordem Imperial . Todas as pessoas no
estábulo observaram em silêncio enquant o os homens desapareciam dentro da
noite com sua carga. Bastante tempo depois que eles se foram , todos ainda
estavam em tenso silêncio , observando o portal vazio , temendo falar até que o
homem estivesse longe o bastante , para que ele não ouvisse algo .
— Bem, — finalmente Nicci falou com um suspiro , — espero que ele
consiga voltar até seus colegas soldados . Se ele voltar, então teremos conseguido
um bom avanço em espalhar um pouco de confusão antes da batalha .
— Oh, ele fará isso. — Victor disse. — Estará ansioso para transmitir
essas novidades que você deu a ele esta noite . Com sorte, eles ficarão tão
confiantes que conseguiremos dar a eles uma surpresa de verdade .
— Vamos torcer. — Nicci falou.
Algumas das pessoas que ainda permaneciam no estábulo começar am a
conversar, satisfeitos com o aparente estratagema de Nicci para confundir o
inimigo. Algumas deram boa noite e foram embora . Algumas ficaram ao redor do
cadáver, observando .
Nicci mostrou a Victor um breve sorriso . — Sinto muito ter que bater
em você.
Victor sacudiu os ombros. — Bem, foi por um bom motivo.
Quando Nicci virou para Richard, ela parecia inquieta, como se temesse
um sermão ou uma repreensão .
— Quero que as tropas que estão vindo nessa direção pensem que não
terão problemas para nos esmagar . — ela explicou . — Confiança demais pode
causar erros .
— Ainda t em mais. — disse Richard.
Nicci lançou um rápido olhar para as pessoas que ainda estavam no
estábulo e então aproximou -se dele para que outros não conseguissem ouvir . —
Você disse que eu poderia me juntar a vocês assim que as tropas que estão vindo
para esmagar o povo de Altur'Rang estiverem destruídas .
— E... ?
Os olhos azuis dela ficaram duros como ferro. — E eu pretendo garantir
que isso aconteça .
Richard avaliou-a por algum tempo, finalmente decidindo deixar ela
fazer o que pudesse para ajudar o povo de Altur'Rang e não interferir no modo
como ela planejava fazer isso . Além disso, ele estava mais do que um pouquinho
preocupado a respeito de qual poderia ser o plano d ela. Nesse momento, ele
realmente não queria saber o que ela pretendia ; já tinha coisas o bastante com as
quais preocupar-se.
Richard pegou as pontas soltas dos fios do corpete dela , puxou-as bem

173
firme, e refez o laço .
Ela ficou com as mãos abaixadas , observando os olhos dele durante todo
o tempo em que ele fazia aquilo . — Obrigada. — ela disse quando ele terminou .
— Acho que o laço deve ter desfeito no meio de toda aquela agitação .
Richard ignorou a mentira dela e olhou para o lado e viu que Jamila
estava ali, atrás de algumas das outras pessoas . A mulher, com a bochecha inchada
e vermelha, estava ajoelhada , abraçando a garotinha assustada .
Richard caminhou chegando mais perto . — Como ela está?
Jamila olhou para ele. — Segura. Obrigada, Lorde Rahl. Você salvou a
vida preciosa dela. Obrigada.
Enquanto a garotinha fungava e agarrava sua mãe, ela olhou para
Richard com uma expressão de horror , como se tivesse medo de que ele pudesse
matá-la em seguida. Ela havia testemunhado algo terrível através das mãos de
Richard.
— Fico feliz que ela esteja segura e não esteja ferida. — ele falou para
Jamila.
Richard sorriu para a garota , mas recebeu apenas um olhar furioso em
resposta.
Nicci segurou o braço dele mostrando empatia , mas nada falou.
As pessoas que ainda res tavam no estábulo finalmente falaram
parabenizando -o por salvar a criança . Parecia que todas elas imaginaram que a
palavras de Nicci ao homem foram algum tipo de truque . Então muitas disseram
a ela que consideravam seu plano algo inteligente .
— Isso deve afastá-los. — um dos homens falou.
Richard sabia que ela tinha mais planejado do que simplesmente “afastá -
los”. Ele estava preocupado com o que ela pretendia fazer .
Ele observou brevemente quando alguns dos homens arrastaram para
longe o espião morto . Sob a orientação de Ishaq, outros começaram a limpar o
sangue rapidamente . O cheiro de sangue deixava os cavalos nervosos e quanto
mais cedo eles estivessem livres daquilo melhor seria .
O resto das pessoas desejaram uma viagem segura para Richard e então
partiram para seus lares . Não demorou muito até que todos tivessem partido . Os
homens limpando os restos terminaram e foram embora . Apenas Nicci, Cara,
Ishaq, e Victor ficaram para trás. O estábulo tornou -se um lugar quieto e vazio .

174
C A P Í T U L O 2 4

Richard verificou cuidadosamente as sombras antes de ir ver os cavalos


que Ishaq tinha reunido para ele . O estábulo parecia tranquilo demais . Ele lembrou
da calmaria no quarto da hospedaria antes que a coisa surgisse atravessando a
parede. Era difícil não achar a repentina quietude ameaçadora . Ele gostaria de ter
um jeito de saber se a coisa estava perto , ou se estava prestes a atacar . Gostaria
de saber como lutar contra uma coisa assim . Seus dedos tocaram o pom o de sua
espada. No mínimo, ao menos ele tinha a espada e o poder que acompanhava ela .
Ele lembrava muito bem de todas as promessas inumanas de sofrimento
e tormento que foram deixadas espreitando dentro de Cara para que ele
encontrasse. Só lembrar dos sussurros sem palavras daquelas promessa s o deixava
com náuseas e tonto . Ele teve que fazer uma pausa e colocar uma das mãos sobre
o corrimão para manter o equilíbrio durante um momento .
Quando olhou para ver Cara, ele ainda sentia a alegria por ela estar viva
e bem. Apenas ver ela olhar de volt a para ele encheu seu coração de felicidade .
Ele sentiu uma profunda conexão com ela como resultado da experiência de curá -
la. Sentiu como se conhecesse a mulher por baixo da armadura de Mord-Sith um
pouco melhor.
Agora ele precisava ajudar Kahlan, ver ela viva e bem.
Dois dos cavalos já estavam selados e aguardando , com os suprimentos
carregados nos outros . Ishaq sempre foi tão bom quanto sua palavra . Richard
passou a mão pelo flanco da égua baia maior quando entrou na baia dela , sentindo
os músculos dela e fazendo com que soubesse que ele estava atrás dela para que
não ficasse assustada . Uma orelha virou em direção a ele .
Com tudo que acontecera , sem falar no cheiro de sangue no ar , todos os
cavalos estavam inquietos . A égua balançou a cabeça e bateu a pat a no chão
nervosamente por ter um estranho perto . Antes de aproximar -se pendurando seu
arco na sela, primeiro ele acariciou o pescoço da égua e falou suavemente com
ela. Esticou o braço e coçou gentilmente a orelha dela . Ele ficou feliz porque ela
acalmou-se após um pouco de conforto.
Quando ele saiu da baia , Nicci estava observando ele , esperando por ele.
Ela parecia perdida e solitária .
— Você tomará cuidado ? — ela perguntou.
— Não fique preocupada. — disse Cara quando passava carregando
algumas das coisas dela . Seguindo seu caminho até a baia que guardava a menor
das duas éguas seladas ela falou. — Darei a ele um longo sermão a respeito da
tolice das ações impensadas dele esta noite .
— Que ações impensadas ? — perguntou Victor.
Cara descansou um braço sobre o ombro do cavalo dela , movendo os
dedos distraidamente através da crina quando virou para trás em direção ao
ferreiro.
— Temos um ditado em D'Hara. Nós somos o aço contra o aço para que
Lorde Rahl seja capaz de ser a m agia contra a magia. O que isso quer dizer é que
seria uma tolice o Lorde Rahl arriscar sua vida desnecessariamente em coisas
como batalhas com lâminas. Nós podemos fazer isso . Mas não podemos combater
a magia. Somente ele é aquele que deve fazer isso . Para fazer isso , ele precisa
estar vivo. Nosso trabalho é manter Lorde Rahl seguro contra armas de aço para

175
que ele possa nos proteger contra magia . Esse é o dever do Lorde Rahl. Isso é
parte da ligação .
Victor apontou para a espada de Richard. — Eu diria que ele trabalha
muito bem com uma lâmina .
Cara levantou uma sobrancelha . — Às vezes ele tem sorte . Preciso
lembrar a você que ele quase morreu ao ser atingido por uma simples flecha ? Sem
uma Mord-Sith, ele estaria indefeso. — ela adicionou para enfatizar .
Richard girou os olhos silenciosamente quando V ictor lançou um olhar
preocupado em direção a ele . Ishaq também pareceu preocupado quando olhou
para Richard como se ele fosse um estranho que estava vendo pela primeira vez.
Os dois homens o conheciam por quase um ano simplesmente como Richard, um
homem que carregava carroças na companhia de transporte de Ishaq e entregava
ferro para a oficina do ferreiro Victor. Eles haviam pensado que ele estava casado
com Nicci. Não sabiam que na verdade ele era prisioneiro d e Nicci naquela época .
Descobrir que de fato ele era o Lorde Rahl, o quase mítico guerreiro da
liberdade de longe ao norte , ainda era algo meio desorientador para os dois
homens. Eles tendiam a enxergá-lo como um deles que havia levantado para
combater a tirania junto com eles . Foi assim que eles o conheceram . Sempre que
essa coisa de Lorde Rahl surgia, eles ficavam nervosos , como se de repente não
soubessem como deveriam comportar -se perto dele.
Enquanto Cara continuava carregando o resto de suas coisas nos bolsos
da sela, Nicci colocou uma das mãos no ombro de Ishaq. — Se você não se
importar, preciso falar com Richard a sós por um momento antes que ele vá .
Ishaq assentiu. — Victor e eu estaremos lá fora . Temos assuntos para
discutir.
Quando os dois homens seguiram até a porta , Nicci lançou um breve
olhar para Cara. Cara deu um rápido tapinha no lado de seu cavalo e então seguiu
os dois homens para fora do estábulo , fechando a grande porta atrás dela . Richard
estava surpreso, e só um pouco preocupado , em ver Cara partir sem qualquer
objeção.
Nicci ficou parada diante dele sob a luz suave da lanterna entrelaçando
os dedos e parecendo bastante inquieta , ele pensou .
— Richard, estou preocupada com você . Eu deveria ficar com você .
— Você iniciou algo esta noite que eu acho que só você poderá finalizar .
Ela suspirou . — Nisso você tem razão .
Richard imaginou o que seria que ela havia iniciado , o que ela teria em
mente, mas estava com pressa para partir . Ainda que estivesse preocupado com a
segurança de Nicci, estava muito mais preocupado com Kahlan. Ele queria partir
logo.
— Mas eu ainda...
— Quando terminar de ajudar essas pessoas a acabar com a ameaça
imediata dos soldados que estão vindo para cá , você pode juntar -se a mim. —
Richard disse a ela. — Com esse mago, Kronos, liderando eles, as pessoas aqui
certamente precisarão da sua ajuda .
— Eu sei. — ela estava assentindo , já tendo discutido todo esse assunto .
— Acredite em mim , pretendo eliminar a ameaça que desce sobre Altur'Rang. Não
quero que isso d esperdice muito do meu tempo e então possa partir para alcançar
você.
Uma onda de frio temor espalhou -se através dele quando ele finalmente
captou o núcleo do plano dela . Ele quis dizer a ela para esquecer aquilo em que
estava pensando, mas fez um esforço para ficar em silêncio . Ele tinha seu próprio

176
trabalho importante e perigoso do qual tinha que cuidar . Não gostaria que ela
falasse para ele que não poderia fazer o que planejava .
Além disso , ela era uma feiticeira que sabia muito bem o que estava
fazendo. Ela foi uma Irmã do Escuro... uma das seis daquelas mulheres que
conseguiram ser suas professoras no Palácio dos Profetas . Quando uma delas
tentou matá-lo para roubar o seu Dom , ao invés disso Richard matou-a. Aquele
tinha sido o início da batalha que resultou na destruição do Palácio . Jagang
eventualmente capturou o resto delas , incluindo Irmã Ulicia, a líder delas. Para
salvar a vida de Kahlan, um dia Richard havia permitido que cinco delas jurassem
uma ligação com ele para que pudessem escapar do con trole do Andarilho dos
Sonhos sobre elas. Nicci não estava com elas naquele momento . Mais tarde outra
morreu na Sliph, deixando somente essas quatro Irmãs do Escuro , além de Nicci,
que não estavam nas garras de Jagang.
Certamente Nicci era uma ameaça formi dável contra qualquer um que a
enfrentasse. Ele só esperava que ela não estivesse arriscando -se apenas para
conseguir retornar mais rápido para protegê -lo.
Richard enfiou os dedões atrás do cinto , sem saber direito o que ele
queria. — Você será bem vinda p ara juntar-se a mim assim que puder . Eu disse
isso para você.
— Eu sei.
— Um pequeno conselho . — ele esperou até que o olhar dela virasse
encontrando o dele. — Não importa o quanto você pensa que é poderosa , algo tão
simples como uma flecha ainda pode mat á-la.
Um leve sorriso visitou o rosto dela . — Esse conselho serve para nós
dois, mago.
Um pensamento ocorreu a ele . — Como você vai me encontrar ?
Ela levantou o braço e segurou na gola da camisa dele quando inclinava -
se perto dele. — É por isso que eu queria ficar sozinha com você . Precisarei tocá-
lo com magia para que eu possa encontrá -lo.
A desconfiança de Richard aumentou. — Que tipo de magia?
— Acho que você poderia dizer que é um pouco parecida com a sua
ligação com o povo D’Haraniano que permite a eles encontrá -lo. Agora não é o
momento para fazer uma explicação sobre isso .
Richard começou a ficar preocupado com porque ela precisava ficar
sozinha com ele para fazer uma coisa assim . Ainda segurando a camisa dele , ela
pressionou o corpo contra ele , os olhos dela parcialmente cerrados .
— Apenas fique parado. — ela sussurrou .
Ela pareceu meio hesitante e relutante a respeito de seja lá o que havia
planejado. Ela parecia e soava como se estivesse entrando em um tipo de transe .
Richard podia ter jurado qu e antes as lanternas estavam mais brilhantes .
Agora o estábulo estava levemente iluminado com um suave brilho alaranjado. O
feno parecia mais doce . O ar parecia mais quente .
Richard pensou que talvez não devesse permitir que ela fizesse fosse lá
o que pretendia fazer . Porém, no final, ele decidiu que confiava nela .
A mão esquerda de Nicci soltou da camisa dele e deslizou subindo pelo
ombro até a parte de trás do pescoço dele . Seus dedos moveram -se em volta do
pescoço dele. A mão dela fechou, segurando o cabelo na nuca dele para mantê -lo
imóvel.
O nível de alarme de Richard cresceu. De repente não tinha certeza de
que ele queria que ela o tocasse com seu poder . Havia sentido a magia dela várias
vezes e não foi algo que ele estava exatamente ansioso para experimentar

177
novamente.
Ele queria afastar-se, mas, de alguma forma, não o fez.
Nicci inclinou-se ainda mais e beijou a bochecha dele gentilmente .
Foi mais do que um beijo.
O mundo ao redor dele dissolveu . Os estábulos , o ar húmido, o doce
aroma de feno, tudo parecer deixar de existir . A única coisa que existia era sua
conexão com Nicci, como se ela fosse tudo que o impedia de evaporar também .
Ele foi lançado em um reino de grandioso prazer com tudo da vida . Era
uma sensação avassaladora , desorientadora, magnífica . Tudo, desde a sensação de
uma conexão com ela, o calor e a vida dela, até toda a beleza do mundo , parecia
fluir através dele, preenchendo-a até saturar s ua mente, deixando ele tonto com o
surpreendente êxtase daquilo.
Todo tipo de prazer que ele já conhecera correu através dele com força
surpreendente, de forma amplificada além de qualquer coisa que ele já tinha
experimentado, engolfando ele em uma felicidade tão intensa que a satisfação
causou comoção e lágrimas .
Quando Nicci encerrou o beijo na bochecha dele o mundo dentro do
estábulo voltou rodopiando em volta dele , e ainda assim pareceu mais intenso do
que parecia antes, as visões e cheiros mais vibrantes do que ele lembrava . Estava
quieto a não ser pelo chiado de uma lanterna próxima e o suave relincho de um
dos cavalos . As mãos de Richard tremiam com a sensação residual do beijo dela .
Ele não sabia se aquilo que Nicci fizera tinha durado por um segundo ou
uma hora. Foi uma magia completamente diferente de qualquer outra que Richard
já sentira. Deixou ele tão sem fôlego que ele precisou lembrar de respirar outra
vez.
Ele piscou para ela. — O que... o que você fez ?
O mais leve sorriso brotou na cur va dos lábios dela e em seus olhos
azuis. — Toquei você com um pequeno traço de minha magia para que consiga
encontrá-lo. Eu reconheço meu poder . Serei capaz de seguir ele até você . Não
tenha medo, o efeito vai durar tempo suficiente para que eu consiga encontrá-lo.
— Acho que você fez alguma coisa mais , Nicci.
O sorriso dela desapareceu . A testa dela franziu com sua preocupação .
Levou um momento até que ela encontrasse as palavras . Finalmente ela olhou para
ele com uma intensidade que indicou a ele que e ra importante que ele entendesse .
— Em todas as vezes, antes, Richard, machuquei você com magia...
quando o levei embora; quando fiz de você prisioneiro ; até mesmo quando curei
você. Sempre foi doloroso . Perdoe-me, mas eu queria, só uma vez, dar a você um
toque de magia que não permitiria que você ficasse magoado comigo , ou que me
odiasse.
O olhar dela afastou -se do olhar dele. — Queria que você tivesse uma
lembrança melhor de mim do que daquelas vezes quando o toquei com a dor da
magia. Queria, só uma vez , ao invés disso dar a você uma pequena amostra de
algo agradável.
Ele não conseguia imaginar como teria sido algo maior do que “uma
pequena amostra” .
Ele levantou o queixo dela , fazendo ela olhar nos olhos dele . — Não
odeio você, Nicci. Sabe disso . E eu sei que nas vezes em que você me curou você
estava dando a minha vida para mim . Isso era o que importava .
Finalmente, foi ele quem teve que desviar o olhar dos olhos azuis dela .
Ocorreu-lhe que Nicci provavelmente era a mulher mais bonita que ele já
conhecera. Além de Kahlan.

178
— Obrigado, de qualquer forma. — ele conseguiu falar , ainda sentindo
os efeitos daquela sensação .
Ela segurou o braço dele gentilmente . — Você fez uma coisa boa esta
noite, Richard. Imaginei que um pouco de magia agradável devolv eria um pouco
das suas forças.
— Tenho visto muitas pessoas sofrerem e morrerem . Não conseguiria
suportar o pensamento de ver aquela garotinha morrendo também .
— Estava falando de você ter salvo a vida de Cara.
— Oh. Bem, eu também não conseguiria suportar o pensamento de ver
aquela garotona morrendo .
Nicci sorriu com aquilo.
Ele apontou para os cavalos . — Preciso partir .
Ela assentiu e afastou -se para juntar os cavalos e checar os equipamentos
deles. Nicci foi abrir a porta do estábulo . Depois que ela fez isso, Cara entrou
para buscar seu cavalo .
Ainda levaria cerca de duas horas para o amanhecer . Richard percebeu
que estava terrivelmente cansado , especialmente depois da tensão emocional de
ter usado a sua espada, mas realmente sentiu -se melhor depois daqui lo que Nicci
acabara de fazer. Ele sabia, porém, que não dormiriam muito durante um longo
tempo. Tinham um grande caminho para viajar e ele pretendia cruzá-lo o mais
rápido que pudesse . Levando cavalos descansados eles conseguiriam cavalgar
firme, trocar montarias, e então continuar a cavalgar firme de novo para fazerem
um bom tempo. Ele pretendia cavalgar mais do que firme .
Nicci segurou o freio do cavalo dele quando ele enfiava a bota no estribo
e saltava para cima da sela . O cavalo sacudiu a cauda e dançou um pouco , ansioso
em sair do estábulo mesmo que ainda fosse noite . Richard deu tapinhas no ombro
dela para acalmá -la; ela teria bastante tempo para mostrar a ele seu espírito .
Cara, assim que estava em sua sela , virou franzindo a testa para ele . —
A propósito, Lorde Rahl, para onde estamos viajando com tanta pressa ?
— Preciso ver Shota.
— Shota! — Cara ficou de boca aberta . — Vamos falar com a Bruxa?
Você está ficando maluco?
Nicci, repentinamente mortificada , correu até o lado dele . — Ir até a
Bruxa é loucura... sem falar nas tropas da Ordem Imperial por todo o caminho de
volta através do Mundo Novo . Não pode fazer isso.
— Tenho que fazer . Acredito que Shota pode ser capaz de me ajudar a
encontrar Kahlan.
— Richard, ela é uma Bruxa! — Nicci estava extremamente agitada . —
Ela não vai ajudar você !
— Ela me ajudou antes . Deu para mim e Kahlan um presente de
casamento. Acho que ela pode lembrar disso .
— Um presente de casamento ? — Cara perguntou. — Você está louco?
Shota mataria você.
Havia mais verdade naquilo do que Cara sabia . O relacionamento dele
com Shota sempre foi conturbado .
Nicci colocou uma das mãos sobre a perna dele . — Que presente de
casamento? Do que você está falando ?
— Shota queria que Kahlan morresse porque temia que juntos nós
conceberíamos o que Shota acreditava seria uma criança monstro : um Confessor
dotado. Em nosso casamento, como um sinal de trégua, ela deu a Kahlan um colar
com uma pequena pedra escura . É algum tipo de magia que impede Kahlan de

179
engravidar. Kahlan e eu decidimos que por enquanto, com tudo que está
acontecendo e tudo com que temos de nos preocupar , aceitaríamos a trégua de
Shota.
Aquela foi uma época, quando as Notas foram liberadas , em que magia
de todo tipo tinha falhado . Durante algum tempo eles não souberam sob re as
Notas, e que a magia do colar havia falhado . Então Kahlan estava gerando uma
criança. Os homens que espancaram ela naquela noite terrível acabaram com
aquilo.
Também era possível que por causa daquela breve falha da magia , a
natureza do mundo tivesse sofrido uma mudança fundamental, irrevogável, que
eventualmente levaria ao fim de toda a magia . Kahlan certamente acreditava que
isso estava acontecendo . Houve um certo número de eventos estranhos que de
outra forma seriam inexplicáveis . Zedd chamou isso de efeito cascata . Ele disse
que uma vez iniciado uma coisa assim não podia ser detida . Richard não sabia se
era verdade ou não que a magia estivesse falhando .
— Shota lembraria do colar que deu a Kahlan. Ela lembraria de sua
magia, exatamente como você le mbrará da sua para que consiga me encontrar . Se
alguém vai lembrar de Kahlan, será Shota. Eu tive meus desentendimentos com a
Bruxa, mas no passado eu também ajudei -a inadvertidamente. Ela está me
devendo. Vai me ajudar. Tem que ajudar.
Nicci jogou os braços para cima. — É claro que tal coisa tem que ser um
colar que Kahlan usaria, e não algo que você teria . Não vê o que está fazendo ?
Mais uma vez a sua mente inventou algo que convenientemente não pode ser
provado. Tudo aquilo sobre o qual você fala está em outro lugar ou não podemos
ver. Esse colar é apenas mais um sonho . — Nicci botou a mão em sua testa . —
Richard, essa Bruxa não vai lembrar de Kahlan porque Kahlan não existe.
— Shota pode me ajudar. Sei que ela pode . Sei que vai ajudar. Não
consigo pensar em uma oportunidade melhor para conseguir respostas . O tempo
está escapulindo . Quanto mais tempo Kahlan ficar com seja lá quem for que esteja
com ela, maior o perigo para sua vida e menor a chance de ajudá -la a voltar. Tenho
que falar com Shota.
— E se você estiver errado? — Nicci perguntou. — E se essa Bruxa
recusar prestar ajuda a você ?
— Farei o que for preciso para obrigá -la a me ajudar.
— Richard, por favor, esqueça isso pelo menos por um dia ou dois .
Podemos conversar sobre isso . Deixe que eu ajude v ocê a considerar
adequadamente as suas opções .
Richard moveu as rédeas, deixando seu cavalo e os que estavam presos
a ele começarem a andar em direção à porta . — Ir até Shota é a minha melhor
chance de conseguir respostas . Estou saindo.
Richard abaixou o corpo sob o grande portal quando eles cavalgavam
saindo na noite . Através da extensão de terras as cigarras cantavam.
Ele virou o cavalo para ver Nicci parada no portal, iluminada por trás
pela luz de lanterna. — Tenha cuidado. — ele falou para ela . — Se não for por
você mesma, então por mim.
Isso, pelo menos, fez ela sorrir. Ela balançou a cabeça, resignada . — Ao
seu comando, Lorde Rahl.
Ele acenou despedindo -se de Victor e Ishaq.
— Tenha uma jornada segura. — Ishaq disse enquanto tirava o chapéu .
Victor fez uma saudação com o punho sobre o coração . — Retorne para
nós quando puder , Richard.

180
Richard prometeu a eles que voltaria .
Quando começaram a descer a estrada , Cara balançou a cabeça. — Não
sei porque incomodou -se em ter tanto trabalho para salvar minha vida. Nós vamos
morrer, você sabe.
— Achei que você vinha comigo para impedir que isso aconteça .
— Lorde Rahl, não sei se consigo protegê -lo contra uma Bruxa. Nunca
enfrentei o poder delas , nem ouvi falar de qualquer Mord-Sith que tenha feito
isso. O poder de uma Confessora costumava ser mortal para uma Mord-Sith;
poderia ser que o poder de uma Bruxa também seja fatal assim . Farei o melhor
que puder, mas só acho que você devia saber que talvez eu não seja capaz de
protegê-lo de uma Bruxa.
— Oh, eu não me preocuparia com isso , Cara. — Richard falou enquanto
apertava suas pernas e movia o corpo , fazendo seu cavalo seguir em um meio
galope. — Se eu conheço Shota, ela não vai deixar você chegar muito perto
mesmo.

181
C A P Í T U L O 2 5

Enquanto ela marchava descendo pelo lado de uma larga rua que
conduzia até um pequeno grupo de homens , Nicci pensou que certa forma era
como se o sol tivesse desaparecido desde que Richard havia partido. Ela sentia
falta apenas de poder olhar nos olhos dele , para a centelha de vida neles . Durante
dois dias ela estivera envolvida incansavelmente nos urgentes preparativos contra
o ataque iminente, mas, sem Richard por perto, a vida parecia vazia , menos
luminosa, menos... menos tudo.
Ao mesmo tempo, quando ele estava perto, a firme determinação dele
em encontrar seu amor imaginário era desgastante . De fato, às vezes ela queria
estrangulá-lo. Ela tentou tudo desde a paciência até a raiva em uma tentativa de
fazer ele enxergar a verdade , mas era como tentar empurrar uma montanha. No
final, nada que ela fizera ou dissera fez qualquer diferença .
Para o próprio bem dele ela sinceramente queria ajudá -lo a retornar para
a realidade. Para fazer isso ela o desafiara em um esforço para tentar fazer ele
recuperar o bom senso antes que algo terrível ocorresse , mas ao mesmo tempo
tentando fazer ele enxergar a verdade de algum modo sempre parecia transformá -
la em uma vilã trabalhando contra ele . Ela odiava estar nessa posição .
Nicci esperava que no momento em que acabasse de ajudar a livrar
Altur'Rang da ameaça da aproximação das tropas da Ordem Imperial e do mago
deles, Kronos, ela conseguisse rapidamente encontrar com Richard e Cara. Com
cavalos reserva e tão rápido quanto ela sabia que ele cavalgaria , Nicci percebeu
que não consegui ria alcançá-lo antes que ele chegasse até a Bruxa. Se ele ao
menos conseguisse chegar tão longe . Se Shota não o matasse assim que ele
chegasse.
De acordo com o que Nicci sabia de Bruxas, as chances de Richard sair
do covil dela vivo eram muito pequenas . Ele teria que encarar a Bruxa sem a ajuda
e a proteção de Nicci. De qualquer modo , ele conhecia a mulher, e ela era uma
mulher em todos os sentidos , pelo que Nicci tinha ouvido falar dela, então talvez
Richard ao menos fosse civilizado . Não era sábio ser m al educado com Bruxas.
Mas mesmo sobrevivendo a um encontro com uma Bruxa ele ainda
ficaria devastado se ela não o ajudasse e Nicci sabia que ela não poderia porque
não havia mulher desaparecida para Richard encontrar. Às vezes o fato de que ele
era tão ob stinado com algo que obviamente não era mais do que uma ilusão a
deixava furiosa . Outras vezes ela ficava preocupada que ele realmente estivesse
enlouquecendo. Esse era um pensamento assustador demais para enfrentar .
Nicci parou ao lado da estrada com uma súbita percepção terrível .
Os homens que a seguiam fizeram uma parada quando ela fez isso ,
trazendo-a de volta de seus pensamentos . Todos eles estavam com ela para
receberem as instruções dela a respeito de algumas das defesas da cidade ou para
levar mens agens quando necessário . Agora eles estavam silenciosos e nervosos ,
sem saber porque ela havia parado.
— Ali em cima. — ela disse aos homens , apontando para uma construção
de tijolos com três andares na esquina do outro lado da rua . — Certifiquem -se de
que possamos usar aquele lugar para termos uma boa vantagem e coloquem ao
menos umas duas dúzias de arqueiros nas janelas . Providenciem para que eles
tenham um grande suprimento de flechas .

182
— Eu vou dar uma olhada. — um dos homens falou antes de correr pela
rua, desviando de carroças , cavalos, e carrinhos de mão.
Pessoas passavam rapidamente pelo lado da rua ao redor de Nicci e os
homens como se eles fossem uma rocha em um rio veloz em movimento .
Transeuntes falavam em tons apressados entre si enquanto cruzava m entre grupos
de camelôs gritando ou tentando vender seus produtos , ou pessoas reunidas para
discutir de forma urgente a iminente batalha pela cidade e o que fariam para
protegerem-se. Carroças de todos os tipos , desde grandes carroças de carga
puxadas por seis cavalos até carroças pequenas puxadas por um cavalo , passavam
velozmente para completar em a estocagem de provisões ou executarem outro
trabalho necessário enquanto ainda podiam .
Independente do barulho dos cavalos , carroças, e pessoas, Nicci
realmente não ouvia nada daquilo ; ela estava pensando a respeito da Bruxa.
De repente Nicci percebeu que Shota poderia não apenas não querer
ajudar Richard, mas ela poderia não falar isso para ele . Bruxas tinham o seu
próprio jeito de fazerem as coisas , e seus próprios fins.
Se essa mulher considerasse que Richard estava sendo insistente demais
ou agressivo, poderia muito bem decidir livrar -se dele enviando-o em uma busca
inútil até os confins do mundo . Ela poderia muito bem fazer algo assim apenas
para divertir-se, ou condená-lo a uma morte lenta em uma marcha sem fim através
de algum deserto distante . Uma Bruxa seria capaz de fazer tal coisa só porque
podia. Richard, em sua urgência para encontrar sua mulher fantasiosa, não levaria
em conta essas possib ilidades. Ele prontamente seguiria para onde ela apontasse .
Nicci estava furiosa consigo mesma por deixar ele partir para encontrar
com uma mulher tão perigosa . Mas o que podia fazer? Não poderia proibir ele de
partir.
Sua única chance era livrar -se do Irm ão Kronos e suas tropas o mais
rápido possível e então ir atrás de Richard, e fazer o que pudesse para protegê -lo.
Ela avistou o homem que enviara para checar a construção de tijolos
esquivando-se entre as carroças e cavalos enquanto corria de volta pela e strada.
Nicci notou que mesmo com todas as pessoas viajando nas estradas da cidade , ela
ainda estava muito menos movimentada do que em um dia comum . Pessoas por
toda parte estavam fazendo preparativos ; algumas já haviam entrado em lugares
onde achavam que poderiam ficar seguras . Nicci esteve com a Ordem quando eles
entravam em uma cidade; não havia local seguro .
O homem desviou de uma carroça vazia que passou saltitando e
finalmente chegou ao lado de Nicci. Ele ficou em silêncio aguardando . Estava
com medo de falar antes que ela requisitasse o seu relatório . Estava com medo
dela.
Todos estavam com medo dela . Ela não era apenas uma feiticeira ; era
uma feiticeira de mau humor e todos eles sabiam disso .
Ninguém entendia porque ela parecia tão irritada , mas durante dois dias
todos caminharam sobre ovos quando estavam perto dela . Isso não tinha nada a
ver com eles, e até mesmo nada a ver com Richard ter corrido em sua busca louca
por uma mulher que não existia , mas nenhum deles sabia disso . Nicci estava
mentalmente imersa em preparar -se para a ferocidade da violência que estava por
vir, ensaiando em sua mente as várias coisas que poderia precisar fazer , e
fortalecendo-se para tudo aquilo .
Quando estava prestes a liberar uma selvageria quase inconcebível , uma
pessoa não cantarolava uma música alegre e comentava sobre o dia adorável . Uma
pessoa mantinha pensamentos sombrios .

183
Nicci jamais preocupou -se em tentar explicar seu humor ; fazer esse
esforço drenaria parte do seu estoque de energia . Preparar sua mente para reunir
cada pedaço de habilidade , conhecimento, sabedoria, e poder que tinha a seu
dispor requeria um certo tipo de isolamento . Havia forças violentas e mortais que
essas pessoas jamais conseguiriam compreender que ela precisava estar pronta
para liberar em um instante. Não poderia explicar tudo isso para todos . Eles
simplesmente teriam que lidar com isso .
— Bem? — ela perguntou tranquilamente ao homem enquanto ele ficava
em silêncio recuperando seu fôlego .
— Vai funcionar. — ele falou. — Eles fazem tricô e roupas ali. Todos
os três andares estão bem abertos então os arqueiros poderão mover -se
rapidamente e facilmente de janela em janela para fazerem o melhor disparo .
Nicci assentiu. Ela colocou uma das mãos sobre a testa para proteger os
olhos do sol baixo quando olhou para trás, para oeste, através do larga rua . Ela
estudou a disposição das estradas e os ângulos em que elas cruzavam -se.
Finalmente ela decidiu que o cruzamento onde eles estavam , com os prédios de
tijolos pelo caminho , era o melhor ponto. Tão largas como as ruas eram ,
provavelmente essas estradas seriam a escolha da cavalaria inimiga na parte leste
da cidade. Ela conhecia a forma como a Ordem conduzia seus ataques . Eles
gostavam de espaço parta apresentar a frente mais forte , o golpe mais pode roso
para desmantelar o inimigo . Ela acreditava que eles enviariam a cavalaria por esse
caminho se entrassem vindo do leste , como ela esperava.
— Bom. — ela disse ao homem . — Providencie para que sejam colocados
arqueiros aqui com um grande suprimento de f lechas. Seja rápido com isso... acho
que não temos muito tempo .
Quando ele correu para cuidar daquilo , Nicci avistou Ishaq ao longe
subindo a estrada em uma carroça puxada por dois dos seus grandes cavalos de
carga. Parecia que ele estava com pressa . Ela estava com uma boa ideia do motivo
pelo qual ele estava vindo chamá -la, mas tentou não pensar nisso . Ela virou para
outro dos homens com ela .
— Ali atrás, logo depois do prédio de tijolos onde posicionaremos os
arqueiros, quero que espetos sejam posicionados . A estrada está ladeada por
construções nos dois lados . — ela apontou para a estrada que que cruzava a via
pública principal antes do prédio de tijolos . — Descendo a rua por ambos os lados ,
para que se os homens que estavam avançando restantes tentarem tomar qualquer
uma das rotas para escapar eles recebam o mesmo .
Assim que os inimigos avançassem pela rota principal de entrada em
Altur'Rang, eles acionariam abruptamente os espetos que os empalariam . Então
os arqueiros derrubariam aqueles preso s no gargalo entre os espetos e os homens
que ainda estavam avançando da retaguarda .
O homem assentiu e partiu para executar as ordens dela . Ela já havia
instruído todos nos espetos. Victor estava com sua ferraria e vários outros
profissionais trabalhando fervorosamente para fabricarem as armadilhas simples
mas mortais . Eram pouco mais do que barras de ferro afiadas conectadas , quase
como uma cerca , mas com correntes de tamanhos diferentes entre a barra superior
e a parte de cima dos espetos .
Seções desses espetos conectados eram deitadas nas estradas por t oda a
cidade. Deitadas elas não impediam o tráfego na estrada , mas quando a cavalaria
avançasse os lados pontudos de toda a seção eram levantados e um suporte de
ferro era travado no lugar . Os diferentes tamanhos das correntes que conectavam
os espeto s na barra permitia que os espetos mortais ficassem pendurados em

184
distâncias variadas da barra , assim fazendo com que eles apontassem em
diferentes ângulos . Fazer eles levantarem em ângulos irregulares permitia que
fossem ainda mais traiçoeiros do que uma simples linha reta de espetos . Se isso
fosse feito da forma correta , a cavalaria inimiga correria inesperadamente com
seus cavalos direto sobre as pontas afiadas . Mesmo se tentassem pular os cavalos
seriam rasgados. Isso era algo simples mas altamente efetivo .
Havia armadilhas feitas com as seções de ferro por toda a cidade ,
geralmente em cruzamentos . Assim que as seções eram erguidas não podiam ser
abaixadas com facilidade . Os cavalos em pânico seriam perfurado s nos espetos ou
pelo menos não conseguiriam escapar do confinamento criado pelo obstáculo .
Quando a cavalaria avançava sobre os espetos , os soldados seriam atirados de seus
cavalos e provavelmente seriam feridos ou mortos , ou teriam que desmontar para
tentar lidar com a obstrução . De um jeito ou de outro , então os arqueiros teriam
uma chance muito melhor de acertá -los do que se eles estivessem apenas passando .
Os homens manuseando as seções de espetos foram instruídos a julgar a
situação e não necessariame nte erguer os espetos quando a cavalaria correr para
cima deles. Em alguns casos seria melhor esperar que alguns dos homens já
tivessem passado. Se houvesse um grande número na cavalaria isso permitiria que
os defensores dividissem a força inimiga , não apenas espalhando confusão no
meio do ataque, mas desmembrando ele, cortando as linhas de comando , acabando
com sua vantagem de unidade , e tornando mais fácil lidar coma força fragmentada .
Eliminar de forma decisiva a cavalaria era essencial para deter a invasão.
Porém, Nicci sabia que, no pânico de enfrentar uma assustadora parede
de soldados inimigos avançando gritando por sangue, esses tipos de planos
cuidadosos tendiam a serem esquecidos . Ela sabia que ao avistarem soldados tão
terríveis com armas ergu idas, alguns dos homens fugiriam , deixando de erguer os
espetos antes que fizessem isso . Nicci já tinha visto esse tipo de terror . Foi por
isso que ela colocara seções de espetos redundantes .
Quase todos na cidade estavam comprometidos com sua defesa . Alguns
seriam mais eficazes do que outros . Até mulheres em casa com crianças tinham
suprimentos de coisas , desde rochas para ferver óleo , que elas pretendiam jogar
sobre qualquer soldados invasor . Não houve muito tempo para fazer armas
extravagantes, mas havia homens por toda parte com pilhas de lanças . Uma vara
afiada não era sofisticada , mas se derrubasse um cavalo de cavalaria ou empalasse
um homem, era sofisticada o bastante . Não importava se eram soldados de
cavalaria ou soldados a pé , todos deviam ser der rotados, então eles tinham homens
da cidade ao milhares com arcos . Com um arco , até mesmo um velho poderia
matar um jovem soldado vigoroso, musculoso, grande .
Uma flecha podia derrub ar até mesmo um mago.
Seria fútil fazer os homens da cidade tentarem comba ter soldados
experientes em uma batalha tradicional . Tinham que negar aos soldados da Ordem
tudo que eles estavam acostumados a usar .
O objetivo de Nicci era fazer da cidade uma grande armadilha . Agora
ela precisava atrair a Ordem para dentro dessa armadilha.
Para esse fim , ela viu a carroça de Ishaq que chacoalhava em direção a
ela. Pessoas saíam do caminho rapidamente . Ishaq puxou as rédeas e fez com que
os grandes cavalos parassem . Uma nuvem de poeira levantou .
Ele puxou o freio e saltou da carroça, algo que ela não teria esperado
que ele conseguisse fazer com tamanha agilidade . Ele segurava o chapéu com uma
das mãos enquanto corria . Estava segurando alguma outra coisa na outra .
— Nicci! Nicci!

185
Ela virou para os homens com ela . — Seria melhor vocês cuidarem das
coisas que discutimos . Acho que não temos mais do que algumas horas .
Os homens pareceram surpresos e alarmados .
— Você não acha que ele aguardarão até o amanhecer ? — um perguntou .
— Não. Acredito que eles atacarão hoje ao anoitecer . — ela não disse a
eles porque pensava assim .
Os homens assentiram e correram para cuidarem de suas tarefas .
Ishaq parou ofegando. Seu rosto estava quase tão vermelho quanto o
chapéu.
— Nicci, uma mensagem. — ele sacudia o papel diante dela . — Uma
mensagem para o Prefeito.
As entranhas de Nicci ficaram rígidas.
— Um grupo de homens entrou cavalgando. — disse ele. — Estavam
carregando uma bandeira branca , exatamente como você disse que fariam .
Trouxeram uma mensagem para o “Prefeito” . Como você sabia?
Ela ignorou a pergunta. — Você já leu?
O rosto dele ficou vermelho . — Sim. Victor também. Ele está com muita
raiva. Não é uma coisa boa deixar o ferreiro com raiva .
— Você tem um cavalo, como eu pedi ?
— Sim, sim, eu tenho um cavalo . — ele entregou a ela o papel . — Mas
acho que é melhor você ler isso .
Nicci desdobrou o papel e leu silenciosamente .

Cidadão Prefeito,

Recebi notícias de que o povo de Altur'Rang, sob a sua direção, deseja


renunciar aos seus costumes pecaminosos e reverenciar novamente a sábia,
piedosa e soberana autoridade da Ordem Imperial .
Se é verdade que você quer poupar o povo de Altur'Rang da total
destruição que reservamos para insurrecionistas e infiéis, então como mostra de
sua boa intenção e submissão voluntária para com a jurisdição da Ordem
Imperial, você atará as mãos de sua adorável e leal esposa e enviará ela para
mim como seu humilde presente . Negue-se a entregar sua esposa como instruído
e todos em Altur'Rang morrerão.

A serviço do piedoso Criador ,

Irmão Kronos,

Comandante da força de reunificação de Sua Excelência .

Nicci esmagou a mensagem . — Vamos lá.


Ishaq recolocou o chapéu e correu para alcançá -la enquanto ela
marchava em direção à carroça. — Você não pretende seriamente fazer o que esse
bruto exige, pretende?
Nicci botou um dos pés no degrau de ferro e subiu até o assento de
madeira da carroça. — Vamos lá, Ishaq.
Ele resmungou algo para si mesmo quando subia na carroça ficando ao
lado dela. Ele soltou o freio e sacudiu as rédeas , gritando para que as pessoas
saíssem do caminho enquanto fazia o retorno na carroça . Terra e poeira espiralou
saindo das rodas quando ele dava meia volta na carroça pela estrada . Ele estalou

186
o chicote acima do flanco dos cavalos , gritando para fazer eles avançarem . A
carroça girou e fin almente ficou em posição quando os cavalos moveram-se.
Nicci segurou no corrimão lateral com uma das mãos quando a carroça
sacudiu avançando, deixando sua mão, com a mensagem esmagada em seu punho ,
descansar sobre o colo do vestido vermelho dela . Ela observava sem ver enquanto
eles seguiam pelas ruas de Altur'Rang, passando por construções , frentes de lojas,
outras carroças, cavalos, e pessoas a pé. A luz do sol baixa cintilou através de
fileiras de árvores à esquerda conforme eles seguiam para norte na rua larga. Em
bancas com vegetais , queijo, pão, e bancas de açougueiros embaixo de toldos ,
alguns sombrios e alguns rasgados , várias pessoas estavam comprando toda
comida que podiam antes da tempestade iminente .
A estrada estreitou quando entrou em seções antigas da cidade,
tornando-se congestionada por carroças , cavalos e pessoas . Sem reduzir muito a
velocidade, Ishaq tirou seus dois grandes cavalos de carga da estrada principal e
tomou atalhos através de becos por trás de colunas de construções amontoadas
onde famílias inteiras viviam em apenas um quarto . A lavanderia que estendia-se
em linha que cruzavam pequenos jardins e vários locais , presa entre apartamentos
opostos com dois andares , cruzava sobre o beco acima de suas cabeças . Quase
cada pedacinho nos fundos de construções eram usados para cultivar alimentos ou
criar galinhas. Asas sacudiram e penas voaram quando os pássaros entraram em
pânico com a visão da carreta passando .
Ishaq conduziu habilmente os cavalos enquanto eles corriam a uma
velocidade assustadora, guiando-os ao redor de obstáculos como cabanas , cercas,
muros, e árvores aleatórias . Ele soltava gritos de alerta quando avançava por ruas
cheias. Assustadas, as pessoas afastavam -se, deixando ele passar .
A carroça virou subindo em uma rua que Nicci lembrava muito bem ,
seguindo ao lado de um muro baixo que eventualmente fazia uma curva pela
estrada de entrada até as portas do armazém da companhia de transporte de Ishaq.
A carroça sacolejou no jardim esburacado de uma construção e parou torta na
sombra de enormes carvalhos que erguiam -se acima do muro .
Nicci desceu quando viu uma das portas duplas abrindo . Aparentemente
tendo ouvido o barulho Victor emergiu da construção, com olhar de alguém que
pretendia a próxima pessoa em que pudesse colocar s uas mãos .
— Você viu a mensagem ? — ele perguntou.
— Sim, eu vi. Onde está o cavalo que pedi ?
Ele apontou um dedão para trás, por cima do ombro, em direção a porta
aberta. — Bem, o que faremos agora? Provavelmente o ataque virá ao amanhecer .
Não podemos deixar aqueles soldados levarem você com eles até o exército . Não
podemos deixar eles partirem e reportar que não faremos como Kronos exige. O
que diremos a eles ?
Nicci inclinou a cabeça em direção ao prédio . — Ishaq, poderia buscar
o cavalo, por favor?
Ele fez uma careta. — Você devia casar com Richard. Vocês formam um
bom par. Os dois são louco .
Assustada, Nicci só conseguiu olhar para o homem .
Finalmente ela encontrou sua voz . — Ishaq, por favor, não temos muito
tempo. Não queremos que esses colegas reto rnem de mãos vazias .
— Sim, Vossa Alteza, — ele zombou. — permita que eu vá buscar a sua
montaria real.
— Nunca vi Ishaq agir desse jeito. — ela falou para Victor enquanto
observava o homem caminhando até a porta , resmungando pragas baixinho .

187
— Ele acha que você está louca . Eu também. — Victor plantou os punhos
nos quadris. — Aquele truque com o espião nos estábulos deu errado ? Ou era isso
que você planejava o tempo todo ?
Sem humor para discutir com o homem , Nicci devolveu o olhar da mesma
forma. — Meu plano, — ela disse entre os dentes semicerrados. — é acabar com
isso o mais rápido possível e impedir que o povo de Altur'Rang seja assassinado.
— O que isso tem a ver com entregá -la para o Irmão Kronos como um
presente?
— Se deixarmos que eles ataquem ao am anhecer, eles terão a vantagem .
Precisamos que eles ataquem hoje .
— Hoje! — Victor olhou para oeste, em direção ao sol baixo . — Mas
logo estará escuro.
— Exatamente. — ela falou quando inclinava -se nos fundos da carroça
e pegava um pedaço de corda.
Victor ficou olhando para o coração da cidade enquanto pensava nisso .
— Bem, consideradas todas as coisas , acho que seria melhor não enfrentá -los
durante o dia, nos termos deles. Se de algum jeito conseguíssemos fazer eles
atacarem hoje, logo eles ficariam sem a luz do dia. Isso funcionaria em nossa
vantagem .
— Vou trazer eles para você. — disse ela. — Apenas esteja pronto .
A testa de Victor ficou franzida. — Não sei como fará eles atacarem
hoje, mas estaremos prontos se fizerem isso .
Ishaq saiu do armazém conduzindo um garanhão branco coberto por
pintas negras. A crina, cauda, e pernas abaixo dos jarretes eram pretos . O cavalo
parecia não apenas elegante , mas tinha uma postura firme , como se tivesse
resistência sem limite. Ainda assim, não era o que ela est ava esperando .
— Ele não parece tão grande. — ela falou para Ishaq.
Ishaq acariciou a face branca do cavalo . — Você não disse grande, disse
que queria um cavalo firme que não ficaria assustado facilmente , um que tivesse
um espírito destemido .
Nicci deu outra olhada no cavalo . — Eu só imaginei que um cavalo assim
seria grande.
— Ela é uma mulher louca. — Ishaq sussurrou para Victor.
— Ela será uma mulher louca morta. — disse Victor.
Nicci entregou a Victor a corda. — Isso será mais fácil se você ficar
sobre o muro, depois que eu estiver montada .
Ela acariciou o cavalo sob a mandíbula e então coçou as orelhas dele . O
animal balançou a cabeça mostrando sua apreciação e encostou -a contra a dela.
Nicci segurou a cabeça dele e colocou uma fina linha do Han dela dentro da
criatura, fornecendo a ele uma apresentação calmante . Ela deslizou uma das mãos
sobre o ombro dele e então pelo lado da barriga dele enquanto o inspecionava .
Sem comentar, Victor subiu no muro e aguardou até que ela
impulsionasse o corpo e estive sse sentada na sela. Nicci arrumou a saia do vestido
vermelho e então desabotoou ele até a cintura . Ela tirou os braços das mangas um
de cada vez, segurando a frente do vestido contra o peito e então mantendo -a
levantada com os cotovelos enquanto levantava as mão em direção a Victor, com
os pulsos unidos.
O rosto de Victor ficou tão vermelho quanto o vestido dela . — Agora o
que você está fazendo ?
— Esses homens são de tropas experientes da Ordem Imperial . Alguns
serão oficiais. Passei muito tempo no acampam ento da Ordem. Eu era amplamente

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conhecida por alguns como a “Rainha Escrava”, e por outros como a Senhora da
Morte. É possível que alguns desses homens tenham servido no exército de Jagang
durante aquela época e então talvez possam me reconhecer , especialmente se eu
usasse um vestido preto . Só para garantir, estou usando um vestido vermelho .
— Também preciso dar a esses homens algo para olhar em e mantê-los
de guarda baixa e com sorte não me reconhecerem . Isso vai prejudicar o
julgamento calculado usual de soldados como esses. Também vai chamar a atenção
de Kronos e fazer ele pensar que o “Prefeito” está desesperado para acalmá -lo.
Nada aumenta mais o prazer desse tipo de homens do que a fraqueza .
— Isso vai causar problemas a você antes mesmo que chegue até Kronos.
— Sou uma feiticeira. Posso tomar conta de mim.
— Para mim parece que Richard é um mago e carrega uma espada cheia
de antiga magia e assim mesmo teve problemas quando estava cercado por um
número muito grande . Ele foi subjugado e quase morto.
Nikki levantou outra vez as mão em direção a V ictor, os pulsos unidos .
— Amarre-os.
Victor olhou com raiva para ela durante um momento antes de finalmente
desistir. Com um rosnado ele começou a amarrar os pulsos dela . Ishaq segurou as
rédeas logo abaixo do freio do cavalo enquanto ele aguardava .
— Esse cavalo é veloz ? — ela perguntou enquanto observava Victor
enrolar a corda em volta dos seus pulsos .
— Sa'din é veloz. — Ishaq disse a ela.
— Sa'din? Isso não significa “o vento” na língua antiga ?
Ishaq assentiu. — Você conhece a língua antiga ?
— Um pouco. — ela falou. — Hoje, Sa'din precisará ser tão rápido
quanto o vento. Agora escutem, vocês dois. Não pretendo ser morta.
— Poucas pessoas pretendem. — Victor disparou.
— Vocês não entendem; essa será a minha melhor chance de chegar
próximo de Kronos. Logo que o ataque começar seria difícil não apenas encontrá -
lo, mas, até mesmo se nós soubéssemos onde ele estava , seria quase impossível
chegar perto dele . Ele estaria lançando a morte contra os inocentes de formas que
vocês não conseguem ao menos imaginar , espalhando o medo, pânico, e morte.
Isso o torna valioso para eles . Na batalha os soldados deles estarão procurando
por qualquer um que esteja tentando derrubar o mago deles . Tenho que fazer isso
agora. Pretendo colocar um fim nisso esta noite .
Victor e Ishaq trocaram um olhar.
— Quero que todos estejam prontos. — disse ela. — Quando eu voltar
acredito que haverá algumas pessoas muito zangadas atrás de mim .
Victor ergueu os olhos depois de apertar o nó . — Quantas pessoas
zangadas?
— Planejo trazer toda a força deles logo atrás dos meus calcanhares .
Ishaq acariciou gentilmente a face de Sa'din. — Porque elas estarão
zangadas? Se posso perguntar .
— Além de tentar acabar com o mago deles , pretendo aplicar uma boa
sacudida no ninho de vespas .
Victor s uspirou com irritação . — Estaremos prontos para eles quando
atacarem, mas uma vez que você entrar lá eu não tenho tanta certeza de que
conseguirá escapar.
Nicci também não tinha . Ela lembrou de uma época quando executava
seus planos sem importar -se se viveria ou morreria . Agora ela importava -se com
isso.

189
— Se eu não voltar , então vocês terão que fazer o melhor que puderem .
Com sorte, mesmo que eles me matem , conseguirei levar Kronos comigo. De um
jeito ou de outro, faremos muitas surpresas para eles .
— Richard sabe o que você planejou ? — Ishaq perguntou quando olhava
de lado para ela.
— Espero que ele tenha percebido . Porém, ele teve o bom senso de não
fazer com que eu me sentisse mais temerosa discutindo comigo a respeito d aquilo
que eu sei que devo fazer . Isso não é um jogo. Todos nós estamos lutando por
nossas vidas. Se falharmos , os inocentes, pessoas decentes serão mortas em
números que surpreendem a imaginação . Estive do outro lado em ataques como
esse. Sei o que está por vir. Estou tentando evitar isso . Se não querem ajudar ,
então simplesmente saiam do meu caminho .
Nicci olhou para cada um deles . Envergonhados, ambos ficaram em
silêncio.
Victor voltou a seu trabalho e rapidamente terminou de amarrar os
pulsos dela. Ele tirou uma faca de sua bota e cortou o excesso de corda .
— Quem você quer que a leve até os soldados que estão esperando ? —
perguntou Ishaq.
— Acho que seria melhor você me levar , Ishaq. Enquanto Victor alert a
todos e cuida dos preparativos , você será um representante do Prefeito .
— Está certo. — ele falou enquanto coçava a m açã da bochecha.
— Bom. — disse ela quando pegava as rédeas .
Antes que ela pudesse falar mais alguma coisa , Victor limpou a garganta.
— Tem mais um assunto sobre o qual venho querendo falar para você . Mas nós
dois estivemos ocupados ...
De forma não característica Victor desviou os olhos dela.
— O que foi? — ela perguntou a ele .
— Bem, normalmente eu não falaria algo , mas acho que talvez você deva
saber.
— Saber o quê?
— Pessoas estão começando a questionar Richard.
Nicci franziu a testa. — Questionar ele? O que você quer dizer?
Questionar ele de que maneira?
— Uma conversa tem circulado a respeito do porque ele partiu . Pessoas
estão preocupadas que ele as esteja abandonando e abandonando sua causa para
caçar fantasmas . Elas questionam se deveriam estar seguindo um homem como
esse. Há uma conversa de que ele está ... de que ele está, você sabe, perturbado ou
algo assim . O que eu deveria dizer a elas ?
Nicci inspirou profundamente enquanto organizava os pensamentos . Isso
era o que ela temia. Essa era uma das razões pelas quais ela considerava
importante que ele não partisse... especialmente do jeito que fez , pouco antes do
ataque.
— Faça elas lembrarem , — ela disse enquanto inclinava -se em direção
a ele. — que Lorde Rahl é um mago, e um mago consegue ver coisas... coisas
como ameaças distantes escondidas... que elas não conseguem . Um mago não fica
explicando suas ações para as pessoas.
— O Lorde Rahl tem muitas responsabilidades além desse lu gar apenas.
Se as pessoas aqui querem viver livres , viver suas próprias vidas como desejarem ,
então elas devem escolher fazer isso para o seu próprio bem . Elas devem confiar
que Richard, como Lorde Rahl e como um mago , está partindo para fazer o que é
melhor para nossa causa .

190
— Então você acredita nisso ? — o ferreiro perguntou .
— Não. Mas existe uma diferença. Posso seguir os ideais que ele mostrou
a mim enquanto ao mesmo tempo trabalho para trazer Richard de volta à razão .
As duas coisas não são incompatíveis . Mas as pessoas devem confiar eu seu líder .
Se acharem que ele é um homem louco podem recuar com medo e desistir . Nesse
momento não podemos correr esse risco .
— Quer Richard esteja são ou não isso não muda a validade da causa . A
verdade é a verdade... com Richard ou sem Richard.
— Aquelas tropas que estão vindo para nos assassinar são reais . Se elas
vencerem, então aqueles que não forem mortos serão escravizados mais uma vez
sob o jugo da Ordem Imperial . Se Richard está vivo, morto, são, ou louco, isso
não muda o fato.
Victor, com os braços cruzados , assentiu.
Nicci moveu sua perna para trás e pressionou o calcanhar no lado de
Sa'din, direcionando a anca dele para mais perto do muro .
Ela virou a parte de trás dos ombros para o fe rreiro parado sobre aquele
muro ao lado dela. — Abaixe o meu vestido até a cintura , e seja rápido... logo o
sol descerá.
Ishaq virou para outro lado , balançando a cabeça.
Victor hesitou durante um momento , então suspirou resignado e fez o
que ela pediu .
— Muito bem, Ishaq, vamos lá. Mostre o caminho . — ela olhou para
trás, por cima do ombro, para Victor. — Trarei o inimigo , correndo ao sol poente.
— O que devo dizer aos homens ? — perguntou Victor.
Nicci cercou-se do frio exterior que usara com tanta frequência durante
sua vida, a fria calma da Senhora da Morte.
— Diga a eles para manterem em suas mentes pensamentos sombrios e
violentos.
Pela primeira vez , a expressão carrancuda de Victor transformou-se em
um sorriso sinistro .

191
C A P Í T U L O 2 6

Os soldados sobre enormes cavalos de guerra olharam para Nicci quando


Ishaq fez o cavalo dela parar ao lado do poço da comunidade na pequena praça na
fronteira ao leste da cidade . O garanhão dela, Sa'din, parecia pequeno na presença
de bestas grandes como essas. O metal da armadura na frente de suas cabeças
transmitia a elas uma aparência ameaçadora . Esses eram cavalos de cavalaria e a
armadura ajudava a protegê -los de flechas quando eles avançavam nas linhas
inimigas. Eles batiam com as patas no solo e bufavam mostrando seu desdém
perante o cavalo menor perto deles . Sa'din recuou um passo, fora do alcance dos
dentes de um dos cavalos de guerra quando ele mordeu , mas não demonstrou
pânico.
Se os cavalos pareciam animais assustadores , os homens claramente
eram seus mestres. Usando armadura de couro escuras e cotas de malha, e
carregando um conjunto de armas sinistras , esses homens não possuíam apenas
aparência brutal, mas também eram maiores do que qualquer um dos homens que
defendiam a cidade. Nicci sabia que eles teriam sido escolhidos para a missão por
causa da sua aparência. A Ordem gostava de enviar essas mensagens intimidadoras
para incutir o medo nos corações de seus inimigos .
De janelas escuras , portais recuados, ruas estreitas, e das sombras em
becos pessoas que tinham saído do espaço aberto observavam a mulher nua até a
cintura, seus pulsos amarrados , sendo entregue aos soldados . Nicci suportara a
cavalgada através da cidade não pensando nisso e ao invés disso concentrando -se
em sua necessidade de acabar com isso para que pudesse alcançar Richard. Isso
era o que importava. Então as pessoas estavam olhando para ela... que diferença
isso fazia? Ela teve que suportar coisa muito pior nas mãos dos homens da Ordem .
— Eu sou um assistente do Pre feito. — Ishaq falou com um tom
subserviente ao homem poderosamente constitu ído sobre um alto garanhão
castrado castanho de pescoço grosso como um touro . A parte inferior da lança
com a bandeira branca repousava sobre a sela do homem entre suas pernas , seu
punho carnudo segurando -a a cerca da metade da extensão da haste resistente . O
homem continuou sentado mudo , aguardando. Ishaq lambeu os lábios quando fez
uma reverência antes de prosseguir . — Ele me enviou em seu lugar com sua
mulher, sua esposa... como um presente ao grande Kronos, para mostrar nossa
sinceridade em concordar com os desejos dele .
O soldado, algum tipo de oficial de nível médio , sorriu para Nicci após
dar uma longa e deliberada olhada nos seios dela . Largos cintos de couro
guardavam diversas facas, um mangual , uma espada curta, e um machado com
lâmina em forma de arco . A cota de malha e anéis de metal em faixas grossas
cruzadas sobre o seu largo peito retiniram quando o cavalo dele bateu os cascos .
Ela estava aliviada por não reconhece r o homem e manteve a cabeça voltada para
baixo para esconder seu rosto dos homens com ele .
Mesmo assim, o oficial nada falou .
Com uma das mãos Ishaq tirou o chapéu da cabeça . — Por favor,
transmita nossa mensagem de paz ao...
O oficial jogou a lança com a bandeira branca para Ishaq. Rapidamente
Ishaq recolocou o chapéu para pegar a lança com uma das mãos , a outra ainda
segurava firme as rédeas logo abaixo do freio de Sa'din. A lança parecia pesada,

192
mas Ishaq estivera carregando carroças durante a maior parte de sua vida e não
teve problema.
— Kronos avisará a vocês se a oferenda for satisfatória. — rosnou o
oficial.
Ishaq limpou a garganta , ao invés de falar qualquer outra coisa , e
novamente fez uma reverência educadamente . Todos os soldados riram para e le
antes de lançarem outro olhar para a condição exposta de Nicci. Eles obviamente
adoravam exercer o seu domínio sobre os outros.
A maioria deles tinha anéis de metal ou rebites de metal pontudos
cravados em seus narizes , orelhas, e bochechas em uma tenta tiva de fazer com
que eles parecessem mais ferozes . Nicci pensou que isso apenas os fazia parecer
idiotas. Vários dos homens tinham figuras escuras tatuadas em seus rostos ,
também com objetivo de intimidar . Esses eram homens que atingiram seu mais
elevado ideal na vida : serem selvagens.
De certa forma era comum que muitas das mulheres nas cidades que
rendiam-se a tropas da Ordem Imperial surgissem nuas até a cintura como um
pedido de indulgência. Uma vez que isso era uma forma tão comum de submissão ,
os soldados não ficaram surpresos com a forma em que a esposa do Prefeito estava
sendo entregue. Isso, é claro, era uma das razões pelas quais Nicci tinha feito
isso. Tais pedidos por misericórdia e tratamento gentil nunca eram honrados , mas
as mulheres que o fereciam-se dessa forma não sabiam disso .
Nicci sabia porque muitas vezes estivera com as tropas da Ordem quando
eles pegavam mulheres assim como prisioneiras . Pessoas servis assim imaginavam
que render-se de uma maneira subserviente estimularia um tratame nto razoável.
Elas não tinham ideia de que estavam entregando -se de bom grado a horrores
incompreensíveis . O tratamento que os soldados forneciam para as mulheres
cativas era considerado pelos intelectuais da Ordem como um assunto trivial
comparado ao bem maior que a Ordem estava levando aos ateus.
Às vezes Nicci desejava a morte ao invés de continuar a viver com tais
lembranças e o conhecimento de que um dia fizera parte de tamanhos horrores .
Entretanto, o que ela queria agora , era corrigir as coisas da ún ica forma que
pudesse. Queria participar na erradicação da praga da Ordem .
O soldado carrancudo que carregava a bandeira branca até Altur'Rang
curvou-se e pegou as rédeas do cavalo dela da mão de Ishaq. Ele chegou com sua
montaria bem perto dela . Quando abaixava em direção a ela ele segurou de forma
casual o mamilo esquerdo dela , torcendo-o enquanto falava de forma reservada
com ela.
— O Irmão Kronos cansa rapidamente de uma mulher , não importa o
quanto ela seja bonita. Espero que não seja diferente com você. Quando ele segue
adiante para a próxima entrega para nós aquela com a qual terminou . Saiba que
eu serei o primeiro .
Os homens com ele riram . Ele mostrou a ela um sorriso . Seus olhos
escuros brilharam com ameaça . Ele torceu com mais força até ela arfa r com a dor
e lágrimas brotarem em seus olhos . Satisfeito consigo e com a reação tímida dela ,
ele soltou-a. Nicci fechou os olhos bem apertado enquanto pressionava a parte de
trás de seus pulsos atados contra si tentando aliviar a dor pulsante .
Quando ele afastou os braços dela dos seios , ela deu um pulinho de
surpresa, então abaixou os olhos em submissão . Quantas vezes ela viu mulheres
fazerem coisas similares tentando acalmar homens como esses , rezando
silenciosamente para serem libertadas enquanto o faziam? Para aquelas mulheres ,
a libertação nunca chegou . Nicci lembrou de ter pensado na época que os

193
ensinamentos da Ordem deviam estar certos , que o Criador realmente estava do
lado deles , pois ele tolerava facilmente esse tipo de comportamento de seus
campeões.
Nicci não importou -se em rezar por libertação ; pretendia criar a sua
própria libertação.
Quando o homem virou seu cavalo e conduziu -a, Nicci lançou um último
olhar por cima do ombro para Ishaq, parado com seu chapéu vermelho nas duas
mãos, girando e girando a aba em seus dedos . Os olhos dele cintilavam com
lágrimas. Ela esperava que essa não fosse a última vez em que ela o veria ou aos
outros, mas sabia que uma possibilidade como essa era bem real .
O oficial segurava firme as rédeas , então ela cavalga va segurando na
cabeça da sela . Enquanto eles cavalgavam para leste , a companhia de homens a
rodeava bem perto... mais para dar uma boa olhada nela , ela pensou , do que por
preocupação de que ela pudesse fugir . Pelo modo como eles balançavam
suavemente nas selas e conduziam habilmente suas montarias , esses eram
cavaleiros experientes que passaram a maior parte de suas horas deslocando -se na
sela. Não tinham medo de que ela escapasse deles .
Conforme eles cavalgavam para leste em uma estrada poeirenta , todos
os homens sorriam fazendo suas promessas silenciosas sempre que olhavam para
ela. Ela sabia, porém, que nenhum deles tinha posto ou estatura suficiente para
ousar arrastá-la para fora do cavalo e praticar um pouco de treino durante o
caminho. Homens como Kronos não gostavam que suas conquistas fossem
estupradas antes e esses homens sabiam disso . Além disso, eles certamente
estavam imaginando que em breve teriam a sua vez em cima dela... e se não fosse
com ela, então com aquela que pegassem assim que invadiss em Altur'Rang.
Nicci tentou ignorar os olhares dos homens concentrando -se naquilo que
tinha de fazer. Ela sabia que tal comportamento era parte da rotina deles . Eles não
conseguiam pensar em nada mais inteligente do que a simples malícia e
intimidação, então eles usavam isso como uma pedrinha que giravam e giravam
nos dedos . Enquanto cavalgava, sua determinação tornou -se o seu refúgio.
Ainda levaria algum tempo até que o sol atrás das costas dela abaixasse
totalmente, mas as cigarras já tinham iniciado s ua canção interminável . Elas a
fizeram lembrar de Richard e da noite em que ele explicara sobre as criaturas que
emergiam do solo a cada dezessete anos. Parecia notável que as cigarras tivessem
aparecido dez vezes durante a sua vida e Nicci nunca ao menos percebera isso. A
vida sob o feitiço no Palácio dos Profetas não tinha apenas sido bastante longa ,
mas fora isolada de formas que ela jamais notou. Enquanto o mundo seguia ao
redor dela, ela estivera devotando seu tempo a outros mundos . Outras, como as
Irmãs do Escuro que foram professoras de Richard lá, sucumbiram às sedutoras
promessas daqueles outros mundos . Nicci também, mas não por causa daquelas
promessas. Simplesmente acreditava que esse mundo não guardava qualquer coisa
de valor para ela .
Até um dia, quando Richard havia surgido.
O ar estava morno e húmido então ao menos Nicci não sentia frio
enquanto cavalgava , mas os mosquitos estavam começando a sair e estavam
tornando-se irritantes. Ela estava feliz que suas mãos não estavam amarradas atrás
das costas então pelo menos ela podia afastar os insetos do rosto . As colinas
cobertas de trigo pelas quais eles passaram seguindo para leste da cidade
cintilaram com um dourado esverdeado na luz do final de tarde , quase como
bronze polido. Ela não viu qualquer pessoa trabalhando no campo e as estradas
permaneciam vazias . Todos fugiram antes da chegada iminente do exército , como

194
animais antes de um incêndio .
Subindo uma colina, Nicci finalmente os avistou, homens e cavalos da
Ordem Imperial espalhados pelo largo vale abaixo dela como uma inundação
escura. Parecia que eles não estiveram ali há muito tempo pois parecia que
estavam começando a montar o acampamento . Aparentemente, eles queriam estar
perto da cidade para que no momento em que iniciassem o seu ataque a o
amanhecer não tivessem que ir muito longe .
O solo estava apenas começando a ser pisoteado por todos os homens ,
cavalos, mulas, e carroças. Um território individual havia sido demarcado e
pequenas tendas erguidas . Anéis de sentinelas e postos avançados guardavam o
mar de homens. Cada topo de colina tinha vigias observando todos que
aproximavam-se.
As tendas projetavam longas sombras através do trigo pisoteado . Uma
nuvem de fumaça de todas as fogueiras já pairava sobre o vale . Nicci conseguiu
ver que um dos bosques com oliveiras ali perto havia sido desprovido de suas
valiosas árvores frutíferas para que elas fossem usadas como lenha . Homens
cozinhavam para si ou em pequenos grupos... coisas simples , cozido, arroz e
feijões, pão, e frituras. O aroma da madei ra queimando e da comida misturava -se
com o cheiro de todos os animais , homens, e esterco.
Sua escolta manteve uma formação cerrada ao redor dela enquanto
trotavam dentro do acampamento por algo que rapidamente estava transformando -
se em uma estrada tempor ária no meio da multidão fervorosa. Nicci esperava vê-
los em estado de animação , bebendo e celebrando na véspera de uma grande
batalha. Eles não estavam fazendo isso . Estavam tratando dos preparativos com
seriedade para o trabalho adiante ; amolando armas, trabalhando em selas e outros
equipamentos , cuidando de cavalos . Lanças e piques já estavam afiados e
empilhados cuidadosamente por todo o acampamento . Ferreiros em uma forja
portátil trabalhavam com tenazes e martelos enquanto ajudantes manuseavam
foles fervorosamente. Homens de estábulo ferravam cavalos enquanto outros
homens remendavam equipamentos de couro . Cavalos de cavalaria estavam sendo
alimentados, recebendo cuidados e escovados.
Esse não era um típico acampamento da Ordem Imperial onde o caos
reinava. O exército ao norte era quase inacreditavelmente vasto . Muitas partes
dele eram pouco mais do que uma turba que periodicamente era liberada sobre
civis indefesos e tinham permissão para saquear a vontade . Essa força, por outro
lado, era muito meno r, consistindo de menos do que vinte mil homens . Esse era o
acampamento de uma máquina de guerra bem lubrificada .
No acampamento principal do exército da Ordem Imperial , uma mulher
com os seios expostos como os de Nicci estavam já teria sido arrastada do s eu
cavalo por uma multidão e estuprada . Esses homens não eram menos lascivos , mas
eram muito melhor disciplinados . Esses não eram apenas quaisquer soldados
enviados para realizar algum trabalho sujo ; eram tropas experientes , dedicadas,
escolhidas a dedo, enviadas para derramar a fúria do Imperador em resposta ao
insulto de sua terra natal rejeitar tudo aquilo que ele defendia .
Nicci sentiu um calafrio de temor por estar outra vez entre homens como
esses. Esses eram os melhores representantes da colheita da Ordem. Esses eram
homens que alegremente matavam todos aqueles que opunham -se a eles. Eram
brutos que sentiam prazer na violência para impor suas crenças . Esses eram a
personificação do termo “sede de sangue” . Esses homens eram os agentes das
doutrinas da Ordem.
Enquanto Nicci e sua escolta cavalgavam através do acampamento , todos

195
os soldados espiavam ela . A cada passo do caminho , vaias, berros, e gritos de
alegria a seguiam. Promessas obscenas eram proferidas com risadas quando ela
passava. Nada era deixad o para a imaginação de qualquer um ao alcance dos
ouvidos. Ela ouviu ser descrita em todos os termos devassos que já escutara , e
entre os homens de Jagang ela escutara todos eles . Agora todos eram direcionados
a ela.
Ela manteve os olhos voltados para fren te enquanto cavalgava, pensando
no modo como Richard tratou-a e como o respeito tinha tanto significado .
Perto de um canal com algodoeiros seguindo no banco de um córrego
através do vale, Nicci avistou tendas de pele de cordeiro que eram um pouco
maiores do que as outras . Ainda que não fossem acomodações tão elaboradas
quanto as tendas da comitiva do Imperador Jagang, essas ainda eram luxuosas de
acordo com os padrões do exército . O pequeno grupo de tendas de comando estava
sobre um outeiro que fornecia aos oficiais a oportunidade de observar o resto do
acampamento abaixo. Diferente do acampamento principal do exército , aqui não
havia anel de guardas protegendo as forças de elite e oficiais dos soldados
comuns. Do lado de fora da tenda principal , pedaços de carne estavam sendo
giradas em espetos por escravos que sempre atendiam aos oficiais de patente mais
alta... ou Altos Sacerdotes da Sociedade da Ordem . Para uma força como essa ,
apenas os escravos mais leais teriam sido trazidos .
Quando eles reduziram e pa raram, o homem que segurava as rédeas do
cavalo de Nicci inclinou a cabeça , ordenando que um dos seus homens fosse
anunciá-los. O homem jogou a perna por cima do pescoço do seu cavalo e saltou
ao chão. A cada passo, poeira voava de suas calças enquanto ele caminhava em
direção à tenda principal .
Nicci notou que ao redor homens curiosos começaram a perambular mais
perto, chegando para ver a mulher sendo trazida como um presente para seu líder .
Ela podia ouvir eles rindo e fazendo piadas entre si enquanto olh avam com o canto
dos olhos para ela. Os olhos deles eram tão frios e assustadores quanto quaisquer
outros que ela já tinha visto .
O que mais a preocupava , porém, era que muitos dos homens seguravam
lanças ou tinham flechas preparadas em seus arcos . Esses não eram homens que
avaliavam qualquer coisa de forma casual . Mesmo enquanto zombavam dela eles
estavam preparados para qualquer tipo de ameaça que a aparência dela podia
esconder.
O homem enviado para anunciá -la foi conduzido para dentro da tenda
principal por um criado. Um momento depois ele reapareceu , seguido por um
homem alto com manto esvoaçante tingido com hena . Sua maneira de vestir
destacava-se na cena sombria como sangue coagulado . A despeito do calor e da
humidade o capuz do seu manto estava sobre a sua cabeça, um sinal de devota
autoridade.
Ele caminhou até a borda da elevação , mais perto dela, e assumiu uma
pose arrogante. Ele observou -a sem pressa... inspecionando a mercadoria.
O homem que segurava as rédeas do cavalo dela fez uma reverência em
sua sela.
— Um humilde presente do povo de Altur'Rang. — ele explicou com
zombeteira educação .
Homens longe riram baixinho daquilo , comentando uns com os outros
sobre os específicos prazeres que Kronos desfrutaria com seu presente . Oficiais
saíram de tendas próximas para ver o que estava acontecendo .
Um sorriso libidinoso surgiu no rosto de Kronos. — Traga ela para

196
dentro. Terei que desembrulhar o presente e dar uma olhada mais detalhada .
Os homens riram mais alto ainda . O sorriso de Kronos aumentou,
satisfeito que eles tivessem considerado sua piada divertida .
Nicci percebeu que o estado de seu vestido era uma distração , mas esse
era o risco. Ela havia julgado o risco necessário . Esses homens eram brutos e
achavam a situação dela algo de seu agrado .
O Irmão Kronos observou-a enquanto esperava que ela fosse levada para
dentro. Seu olhar firme era vibrante. Ela encontrou -se olhando fixamente dentro
daqueles olhos escuros .
Homens aproximavam -se ao redor dela .
Nicci sabia que não podia permitir que eles a removessem do seu cavalo .
Tinha que ser agora.
Havia mil coisas que ela queria dizer ao Irmão Kronos. Queria dizer o
que pensava dele , o que faria com ele, o que Richard faria com toda a Ordem
Imperial.
Uma morte simples pareceu fácil demais para Kronos. Ela queria que ele
sofresse antes de morrer . Queria que ele soubesse muito bem o que tinha reservado
para ele. Queria que ele sentisse , que tremesse de dor e agonia , que implorasse
por misericórdia, que provasse o amargo sabor da derrota . Ela queria que ele
sofresse pela miséria que espalhava em seu rastro . Queria que ele pagasse o preço
por tudo que já tinha feito a pessoas inocentes .
Ela queria que ele soubesse que toda sua vida havia sido um desperdício
e que ela estava prestes a terminar .
Mas ela sabia que essa não era sua tarefa . Arriscaria falhar caso ao
menos tentasse realizar uma pequena parte daquilo .
Ao invés disso, sem fazer cerimônia Nicci ergueu seus punhos só um
pouco em direção ao homem enquanto invocava o seu Han . Temendo dar algum
sinal para Kronos daquilo que estava por vir, ela evitou demorar ao menos um
segundo extra para conjurar alguma coisa elaborada . Ela abriu as comportas ,
usando nada mais complexo do que um jato de ar direcionado ao homem... mas
ele estava concentrado além de qualquer coisa que ele poderia esperar mesmo se
ele suspeitasse que ela podia ser uma feiticeira .
Em um instante cegante o acampamento foi iluminado por um clarão de
descargas criadas pelo intenso calor gerado por uma compressão de ar
concentrada. Fios de luz chicotearam ao redor da convergente liberação de força .
Uma vez que o menor deslize poderia concebivelmente dar a ele uma
oportunidade de atacar antes de morrer , Nicci nem ao menos arriscou a satisfação
de sorrir quando a lança de ar rígida como ferro disp arou em direção à cabeça
dele.
Antes que o Irmão Kronos percebesse que algo estava acontecendo , a
súbita liberação e poder de Nicci abriu um buraco do tamanho de um punho através
da testa dele. Sangue e massa cerebral espalharam -se na parede de pele de cor deiro
da tenda atrás dele . Ele caiu como um saco de areia , sua vida já encerrada . Ele
não teve chance de responder a altura .
Nicci us ou um pouco de poder para finalmente cortar as cordas que
prendiam os seus pulsos . Elas chiaram com o calor quando foram co rtadas e então
caíram.
Sem pausa ela lançou uma onda do seu Han em uma linha de poder
concentrada que girou em volta dela como uma lâmina manuseada por um mestre
espadachim . O oficial que havia conduzido o cavalo dela e olhava para ela durante
todo o caminho grunhiu quando aquela borda quente passou através dele ,

197
cortando-o em dois abaixo da caixa torácica. A boca dele abriu mas grito algum
escapou enquanto sua metade superior descia em direção ao solo , pousando com
um som abafado.
Com um baque suave o segu ndo homem não conseguiu fazer mais do que
arfar quando foi atingido pelo mesmo poder e rasgado em dois . Tiras enroladas
de seu intestino esparramaram sobre o pescoço do cavalo dele . Nicci girou na sela
enquanto chicoteava a lâmina conjurada em volta de si em um arco . Com
velocidade assustadora e um brilho que iluminou as folhas brilhantes dos
algodoeiros próximos , a borda do poder mortal chiava quando deslizava através
do ar. Antes que alguém conseguisse começar a reagir , aquilo cortou todos os
homens sobre cavalos em volta dela enquanto eles ainda estavam sentados em suas
selas.
O ar ficou cheio do fedor de carne queimada , sangue, e o conteúdo de
vísceras despedaçadas . Cavalos empinaram ou correram , tentando livrar-se das
pernas sem corpo. Normalmente, cavalos de batalha estavam acostumados com a
confusão da batalha intensa... mas isso em grande parte porque tinham cavaleiros
familiares para controlá -los e direcioná-los. Agora estavam por conta própria e
estavam assustados . Um bom número de homens que aproxi mavam-se correndo
foram derrubados e pisoteados pelos cavalos em pânico , aumentando a desordem .
Quando o pandemônio começou a irromper ao redor dela , enquanto
homens avançavam em direção a ela , Nicci reuniu sua força de vontade ,
preparando -se para lançar um ataque de forte destruição .
Justo quando estava iniciando a liberação daquele ataque mortal ,
inesperadamente ela foi projetada para frente . Ao mesmo tempo sentiu a
estonteante dor de algo pesado golpeando -a nas costas. Isso foi realizado com
uma força tão surpreendente que tirou o seu fôlego com um grito . Ela viu passar
voando os pedaços de uma pesada lança que havia sido suada como uma clava .
Tonta, Nicci percebeu que acabara de atingir o solo com o rosto . Tentou
desesperadamente recompor -se. Seu rosto parecia estranhamente dormente . Sentiu
o gosto de sangue quente . Viu gotas dele pingando do seu queixo enquanto erguia -
se sobre braços cambaleantes .
Então ela percebeu, quando não conseguiu respirar , que o ar havia sido
removido violentamente de seus pulmões. Tentou outra vez freneticamente, mas,
a despeito de seus esforços desesperados , não conseguiu respirar.
O mundo mergulhou em estonteante confusão em volta dela . Sa'din
estava acima dela , movendo-se de um lado para outro mas incapaz de afastar -se.
Mesmo que Nicci temesse que o cavalo pudesse pisar nela acidentalmente , ela não
conseguia sair do caminho . Homens por todo lado finalmente afastaram o cavalo .
Outros homens caíram de joelhos ao lado dela . Um joelho sobre as costas dela
pressionou-a contra o chão novamente. Mãos poderosas agarraram os braços dela ,
pernas, cabelo, segurando -a contra o chão... como se ela conseguisse levantar
sozinha.
Esses homens aparentemente tinham medo que se ela levantasse pudesse
conjurar seu poder , como se o dotado prec isasse estar e pé e eles só tivessem que
mantê-la contra o chão para ficarem em segurança . Mas o dotado realmente
precisava ter o pensamento claro se desejasse invocar seu poder , e ela não tinha .
Alguns dos homens fizeram ela virar sobre as costas . Uma bot a na
garganta dela a manteve presa ao chão . Armas ao redor apontavam para ela .
E então um pensamento terrível ocorreu a ela ... olhos escuros .
O mago que ela acabara de matar tinha olhos escuros .
Kronos não tinha olhos escuros .

198
Kronos devia ter olhos azuis .
Ela estava sentindo dificuldade em organizar tudo isso em sua mente .
Havia morto o Alto Sacerdote . Isso não fazia sentido .
A não ser que houvesse mais de um Irmão .
Os homens que a seguravam no chão afastaram -se.
Olhos azuis cruéis olharam para ela . Era um homem usando manto longo .
O capuz estava levantado . Um Alto Sacerdote.
— Bem, feiticeira, você acabou de conseguir matar o Irmão Byron, um
leal servo da Sociedade da Ordem .
Ela podia afirmar pelo tom dele que ele ainda não tinha começado a
declarar sua fúria crescente.
Com o choque, Nicci ainda não conseguia respirar . A dor em suas costas
irradiava em ondas paralisantes . Ela imaginou se o homem que golpeou -a havia
quebrado suas costelas . Ela imaginou se a sua costa estava quebrada . Concluiu
que agora isso não importava .
— Permita que eu me apresente. — disse o homem de rosto vermelho
acima dela. Ele puxou para trás o capuz do seu manto . — Eu sou o Irmão Kronos.
Agora você pertence a mim . Pretendo fazer você pagar um longo e doloroso preço
pelo assassinato d e um bom homem que estava executando o nobre trabalho do
Criador.

199
C A P Í T U L O 2 7

Nicci não conseguia, simplesmente não conseguia , respirar para salvar


sua vida, muito menos falar qualquer coisa . A dor de não ser capaz de respirar a
envolvia em um apertado manto de pânico que a impedia de pensar . A tensão de
precisar de ar e não ser capaz de obtê -lo ficava mais aterrorizante a cada segundo
que passava.
Ela não sabia o que fazer .
Lembrou de quando Richard foi atingido pela flecha e não conseguia
respirar. Lembrou de como a pele dele ficara pálida , e então tinha começado a
ficar azul. Ela ficou com tanto medo ao ver que ele não conseguia respirar . Agora
ela não conseguia.
O sorriso de Kronos não tinha humor e era tão maligno quanto outro s
que ela já vira, mas isso parecia não importar para ela .
— Um grande feito... para uma feiticeira... matar um mago . Mas na
verdade, você só conseguiu tal feito através de um truque covarde , então não foi
realmente um grande feito, afinal de contas . Não foi mais do que um simples ardil
de baixo nível .
Ele não sabia. Nicci percebeu que ele ainda não sabia quem ela era ... ou
o quê ela era. Ela não era uma simples feiticeira .
Mas ela precisava respirar para ser qualquer coisa .
Sua visão estava estreitando em um túnel negro com o rosto do mago
Kronos contorcendo de ódio no outro extremo . Ela tentou com todas as suas forças
respirar. Parecia como se o corpo dela tivesse esquecido como respirar .
Ela ficou surpresa que a falta de ar fizesse suas costelas latejarem e
doerem. Ela não teria esperado isso . A despeito de seu frenético esforço para levar
o ar para dentro de seus pulmões , o ar que fornecia vida simplesmente não entrava .
Ela só conseguia assumir que fosse lá quem havia golpe ado ela tinha causado
algum tipo de dano sério , e ela nunca mais conseguiria respirar .
E então Kronos cerrou os dentes e agarrou o seio dela com um aperto
poderoso cruel com espinhos de magia destinados a infligir tormento excruciante .
O repentino choque com a dor fez ela respirar antes que percebesse que
estava fazendo isso .
O ar pareceu quente com a vida quando inundava seus pulmões . Sem
pensamento consciente, instintivamente ela atacou com o seu Han a causa da dor
lancinante.
Kronos gritou e cambaleou recuando, sacudindo a mão que estivera sobre
ela e aplicando sua vingança . Sangue escorria descendo pelo pulso dele e por
baixo da manga do seu manto .
Embora ela tivesse sido capaz de fazer com que ele a soltasse , e até
mesmo feri-lo, ela ainda estava desori entada demais para reunir a força necessária
para superar as defesas formidáveis de um mago para matá -lo. Ela ofegou,
engolindo ar, mesmo que cada respiração machucasse . Porém, ela sabia que
machucava muito mais não conseguir respirar .
— Sua vadia suja ! — ele gritou. — Como ousa usar o seu poder contra
mim! Você não pode esperar ser páreo para mim com o Dom . Logo você aprenderá
qual é o seu lugar .
O rosto dele ficou vermelho de fúria . Com uma fina linha do seu Han

200
Nicci podia sentir os poderosos escudos que o homem tinha erguido diante de si .
Entretanto, antes que ele tivesse feito isso , ela havia queimado a carne dos dedos
dele. Ele segurava a mão trêmula contra o peito . Ela sabia muito bem que o
objetivo dele era aplicar uma prolongada e terrível retrib uição.
Ele gritou em direção a ela , proferindo pragas e chamando palavrões ,
dizendo o que pretendia fazer com ela e o que aconteceria assim que terminasse .
Os sorrisos dos homens que observavam cresceram quando eles ouviram a
natureza daqueles planos .
Ele pensava que ela era uma feiticeira e que podia superar o Dom dela
com o seu. Ele não sabia que ela era muito mais ; havia se tornado uma Irmã do
Escuro. Mesmo que ele soubesse disso, Kronos poderia não ter compreendido ,
como poucas pessoas compreendiam , o completo e terrível significado dessa
denominação. Uma Irmã do Escuro controlava não apenas o seu próprio Dom , mas
o Han de um mago também ; o Dom dele era tomado antes que ele cruzasse o Véu
até a morte.
Como se os dons combinados de uma feiticeira e de um mago já não
fossem formidáveis o bastante , somada a essa poderosa mistura estava a Magia
Subtrativa obtida enquanto o Véu estava partido no instante da morte do mago
doador. O próprio Han dele agia como o canal , e ela guardava dentro de si aquele
poder quando a essência Subtrativa deslizava através do Véu .
Havia pouca pessoas que conseguiam comandar a Magia Subtrativa :
Richard por nascimento, e as Irmãs do Escuro através do processo . Todas as Irmãs
do Escuro agora eram prisioneiras de Jagang exceto Nicci e quatro outras... três
das antigas professoras de Richard do Palácio dos Profetas e a líder delas , Irmã
Ulicia.
Kronos balançou o punho ensanguentado para Nicci. — As pessoas de
Altur'Rang são traidoras ! Elas corromperam um local sagrado ! Ao desviarem-se
dos costumes da Ordem elas desviaram -se do próprio Criador .
Através de nossas mãos , o Criador terá a sua vingança e esmagará essas
pessoas pecadoras. Livraremos Altur'Rang não apenas da carne e dos ossos delas
mas dos seus costumes não esclarecidos ! A Ordem Imperial mais uma vez
governará Altur'Rang e de lá Jagang, o Justo, governará o mundo sob os corretos
costumes do Criador !
Nicci quase riu. Kronos não fazia ideia de que estava falando com a
pessoa que dera a Jagang o título de “Jagang, o Justo”. Ela dissera ao Imperador
que esse tipo de pronunciamento de justiça sob o governo dele conquistaria um
grande número de pessoas sem que ele tivesse de lutar com elas . Ele estava
querendo lutar contra todos ; somente ela foi capaz de fazer ele enxergar que seria
um benefício para ele mesmo fazer com que pessoas fossem para seu lado por sua
própria vontade. Ela falou para Jagang que o nome que ela dera a ele traria as
pessoas até ele.
Ela realmente estava certa . Muitas pessoas tinham intenções
semelhantes ao que era d ivulgado. O título que ela dera a Jagang agora era
amplamente aceito por pessoas que não sabiam muito a respeito dele ou sobre a
Ordem. Ela nunca deixava de ficar surpresa como simplesmente dizer algo , não
importava o quanto isso era falso , era o bastante para convencer um grande
número de pessoas daquilo em que você queria que elas acreditassem . Ela
imaginou que era mais fácil para elas deixarem outra pessoa pensar por elas .
O discurso de Kronos forneceu a ela tempo para recuperar -se. Com sua
força retornando, Nicci não poderia dar -se ao luxo de esperar mais um instante .
Ela esticou o braço , apontando o punho para cima em direção a ele .

201
Queria extrair sua força pela extensão do braço para acumular e convergir ela até
um ponto logo além de seu punho . Embora isso não fosse realmente necessário ,
ela queria fazer isso dessa maneira simplesmente porque ficava feliz em deixar
Kronos ver sua clara ameaça.
Confiante na habilidade dele , e nos escudos de seu poder , a postura
hostil dela apenas serviu para deixá -lo com mais raiva. — Como você ousa
ameaçar...
Ela liberou um forte disparo de Magia Aditiva e Subtrativa entrelaçadas
em uma temível corda de destruição que arqueou através dos escudos do mago
como um raio através de papel , e abriu um buraco do tamanho de um melão no
meio do peito dele.
Os olhos de Kronos ficaram arregalados . Sua boca pendia aberta em um
choque mudo quando sua mente registrou o irremediável .
Através daquele buraco , Nicci conseguiu ver o céu . Quase
instantan eamente a pressão interna forçou o que restava dos seus órgãos ao redor
para dentro do vazio e então para fora da abertura quando o corpo mortalmente
ferido de Kronos caiu para trás.
O homem não sabia que seu poder não era páreo para o dela . Ele só podia
conjurar escudos de Magia Aditiva . Tais escudos eram de uso limitado contra
Magia Subtrativa.
Em volta dela armas já estavam sendo erguidas . Músculos poderosos
esticavam cordas de arcos até as bochechas . Braços com lanças assumiam posição
de ataque, as pontas de ferro todas apontando para ela junto com espadas ,
machados, e piques.
Sem fazer pausa Nicci soltou um jato de magia opositora reunida em
uma ignição fragmentadora que , com fúria avassaladora, varreu as tendas dos
oficiais e explodiu através dos homen s ao redor. A concussão devastadora irradiou
em um círculo com velocidade surpreendente , arrancando carne de ossos . O solo
ficou lamacento com o súbito dilúvio de sangue .
O calor que havia sido concentrado no disparo foi tão intenso que as
árvores próximas explodiram em chamas . As roupas dos homens no acampamento
ao redor que estavam correndo para enfrentar a ameaça também pegaram fogo . A
carne daqueles um pouco mais próximos incendiou . Homens que estavam mais
perto ainda foram despedaçados pela descarga trovejante do poder de Nicci. A
força daquilo que ela havia liberado dissipou com a distância e homens mais
afastados apenas foram derrubados .
Um esforço tão extremo era arriscado porque era bastante extenuante ,
mas teve o efeito desejado . Em um instante a situação havia mudado de brutos
arrogantes comemorando sobre uma mulher cativa para uma grande confusão e
pânico.
Temendo perder a iniciativa , ela concentrou calor intenso dentro dos
troncos de árvores ao longo do banco do córrego atrás dos homens . Era uma
maneira de obter um grande retorno com um investimento menor de poder . A seiva
superaquecida ferveu instantaneamente transformando -se em vapor e os troncos
massivos das árvores explodir am, lançando pesados fragmentos de madeira
partida espiralando através das multidões de homens , derrubando dúzias deles .
Nicci rapidamente conjurou um fogo líquido e enviou o inferno
projetando -se pelo campo e no meio da confusão , incinerando homens , cavalos, e
equipamentos na terrível fúria de chamas . Os gritos de homens e bestas uniram -
se em um grito longo e terrível . O ar fedia a fumaça oleosa assim como cabelo e
carne queimados.

202
Finalmente, os homens não estavam mais avançando em direção a ela .
No breve intervalo, Nicci esforçou-se para lev antar do chão encharcado de sangue .
Ela cambaleou no meio da carnificina . Sa'din correu adiante através da espessa
neblina e tocou nela com a cabeça , ajudando-a a recuperar o equilíbrio. Ela jogou
um braço sobre o pescoço dele, aliviada por ter conseguido direcionar seu poder
ao redor dele e que el e estivesse bem .
Ela finalmente segurou as rédeas e , grunhindo com o esforço , conseguiu
subir no cavalo antes que homens pudessem atacá -lo com lanças, cortá-la, ou
lançar flechas neles . Ela girou Sa'din, o tempo todo lançando jatos de fogo
efervescente no meio dos homens quando novamente eles começavam a correr até
ela. Quando eles pegavam fogo , cambaleavam cegamente , gritando, agitando os
braços, batendo contra outros home ns ou em tendas, espalhando a conflagração
mortal.
De repente um homem sobre um dos grandes cavalos de batalha galopou
saindo da fumaça. O soldado levantou sua espada enquanto soltava um grito de
guerra. Antes que Nicci conseguisse fazer algo , Sa'din relinchou com fúria e
mordeu, arrancando a orelha do cavalo de batalha . O cavalo ferido gritou de terror
e dor quando girou e empinou . O soldado foi lançado voando sobre os corpos
ardentes.
Nicci direcionou uma teia de poder para homens que aproximavam -se
dela, um de cada vez... só por um instante , mas tempo suficiente para fazer os
corações deles pararem . Eles caíram, segurando o peito. De certo modo, era mais
assustador para os homens ver seus colegas arfarem e caírem de uma causa
misteriosa do que ver eles se rem derrubados pela violência . Do ponto de vista de
Nicci isso simplesmente era tão efetivo quanto e não tomava muito de suas forças ;
mesmo que exigisse uma precisão específica , parar um coração era mais fácil do
que conjurar chamas ou raios . Com tantos homens ao redor e todos correndo para
cima dela, ela sabia que precisaria de toda sua força se esperava sair viva do
acampamento.
Enquanto os homens na área próxima sabiam o que estava acontecendo ,
aqueles em locais mais distantes do acampamento não estavam totalmente cientes
do que estava acontecendo exatamente , embora soubessem agora que estavam sob
algum tipo de ataque . Sendo bem treinados , todos mobilizavam -se.
De todas as direções , flechas cortaram o ar. Lanças começaram a passar
voando. Uma flecha passou através do cabelo de Nicci. Outra tocou o ombro dela
apenas o suficiente para arranhá -la. Nicci bateu os calcanhares contra as costelas
de Sa'din e deitou para frente sobre a cernelha dele . Ela ficou surpresa diante do
poder com que o cav alo disparou . Ele galopou sem medo direto no meio de homens
que corriam até eles . Os cascos do garanhão emitiram um som apavorante quando
atingiam ossos. Homens caíram. Sa'din saltou sobre tendas e fogueiras . O ar
estava vivo com gritos terríveis . Conforme corria através do acampamento N icci
aproveitava cada oportunidade de infligir ainda mais morte e destruição .
Mas atrás dela, um crescente rugido furioso começou a surgir de
milhares e milhares de homens através do vale . O poder daquilo, a ferocidade, era
apavorante.
Nicci lembrou vividamente do aviso de Richard de que tudo que seria
necessário era uma flechada sortuda . Agora havia milhares . Nicci direcionou seu
poder do ataque para a proteção dela e de seu cavalo .
Quando Sa'din a carregava novamente entre homens, cavalos, carroças,
e tendas, Nicci baixava suas defesas e novamente concentrava uma foice com seu
Dom para cortar qualquer coisa viva que estivesse perto o bastante . O ar

203
intensamente concentrado e compactado cortava homens quando eles
aproximavam-se para interceptá -la. Quando seu cavalo saltava alguns obstáculos
e desviava de outros , aquela lâmina mortal do poder dela cortava os joelhos de
alguns homens e decapitava outros . Cavalos relinchavam quando suas pernas eram
removida e eles caí am ao solo. Gritos de horror e dor de homens feridos seguiam
no rastro dela. Mas havia gritos crescentes de fúria .
Enquanto ela avançava através do acampamento , Nicci podia ver homens
por toda parte selando seus cavalos rapidamente e montando . Lanças e piq ues
eram retirados do meio daqueles que estavam empilhados por toda parte através
do acampamento. Nicci gostaria de poder destruir as armas , mas tinha que
concentrar-se em segurar firme em Sa'din enquanto ele saltava por cima de
qualquer coisa em seu camin ho, incluindo uma carroça ocasional . O cavalo
parecia enlouquecido para afastá -la do perigo o mais rápido possível. Ainda
assim, homens em número crescente estavam unindo -se na perseguição , quer fosse
a cavalo ou a pé .
Quando ela passou pela última das ten das, Nicci olhou para trás, por
cima do ombro. O lugar estava um tumulto . Chamas ainda saltavam em direção ao
céu. Espirais de nuvens negras ascendiam em vários lugares . Ela não tinha ideia
de quantos homens havia derrubado, mas havia milhares deles vindo atrás dela. O
chacoalhar que ela estava enfrentando sobre um cavalo galopante estava fazendo
suas costas doerem bastante .
Finalmente ela eliminara Kronos. Eles tentaram enganá-la, mas no final
isso custou a eles um segundo mago que ela nem sabia que estava com eles e teria
sido um problema terrível para os defensores em Altur'Rang. Isso acabou
tornando-se um lance de sorte. Pelo menos, se eles não tivessem três magos .

204
C A P Í T U L O 2 8

Quando Nicci chegou ao topo de uma colina , o primeiro vislumbre da


vasta cidade ao longe foi uma bela visão . Uma rápida espiada por cima do ombro
dela revelou a cavalaria trovejante logo nos calcanhares dela. Nicci conseguiu ver
as espadas erguidas , machados, lanças, e piques cintilando na luz do sol poente
como espinhos de um imenso porco -espinho. A nuvem de poeira erguendo -se atrás
deles borrava o céu que escurecia ao leste . Os grito de guerra sedentos de sangue
eram apavorantes.
E essa era apenas a cavalaria . Ela sabia que mais atrás vinha a onda de
soldados à pé.
Mesmo se o sol não estivesse nos olhos dela , Nicci não acreditava que
conseguiria ter avistado qualquer pessoa na cidade . Era assim que devia ser . Ela
queria que as pessoas , em maior parte, ficassem escondidas . Mesmo assim, não
era reconfortante sentir -se sozinha com um enxame de vespas furioso perseguindo
ela.
Dissera a Victor e Ishaq a rota que tentaria tomar quando estivesse
retornando para que eles pudessem concentrar suas defesas com a melhor
vantagem. Esperava que eles estivessem prontos . Não houve muito tempo para os
preparativos . Porém, eles não conseguiriam mais tempo ; o tempo acabara.
Com a cidade ficando mais próxima , Nicci finalmente fez um esforço
para enfiar seu braço direito na manga do vestido , então esticou-se para trás e
enfiou o braço esquerdo na outra manga . Segurando as rédeas com uma das mãos ,
inclinando-se para frente sobre a cernelha do cavalo galopante , finalmente ela
conseguiu abotoar seu vestido às ceg as até em cima. Ela sorriu com a pequena
vitória.
As primeiras pequenas construções passaram velozes . Embora houvesse
um desvio da estrada principal que mais rapidamente a levaria até o interior da
cidade, Nicci mantivera-se na estrada principal descendo a s colinas. Entrando em
Altur'Rang, a estrada fazia uma curva para uma rua larga , a via principal leste -
oeste. Conforme as construções ficavam mais próximas , elas também ficavam
mais altas. Em alguns lugares pela estrada árvores ladeavam o caminho .
Ela cons eguia ver presas nas cascas daquelas árvores as cascas vazias
abertas de cigarras que tinham feito a muda . Isso trouxe para Nicci a fugaz
lembrança de estar deitada no abrigo , no calor do braço de Richard.
Sa'din estava suando profusamente e ela sabia que ele devia estar ficando
cansado, mas ele não mostrou qualquer sinal de querer reduzir a velocidade . Ela
precisava fazer ele reduzir o passo de qualquer modo para que a cavalaria pudesse
aproximar-se dela. Queria que eles acreditassem que estavam quase capturando
ela. Assim que um predador perseguindo uma presa estava chegando perto ele
tendia a perder de vista todo o resto . O instinto da perseguição era tão forte nos
soldados quanto era em lobos . Nicci queria que eles baixassem a guarda enquanto
aproximavam-se dela, então inclinou -se um pouco para o lado , fazendo parecer
como se pudesse estar ferida e prestes a cair .
Correndo p elo centro da estrada, levantando uma faixa de poeira , ela
começou a reconhecer grupos de prédios . Lembrou de padrões de janelas . Ela viu
uma construção de madeira cor de manteiga à esquerda e janelas vermelhas à
direita que reconhecia. Nas sombras descendo por uma viela logo além de uma

205
fileira de construções mais próximas umas das outras , que ela sabia serem casas
por causa das roupas penduradas em cordas entre elas , ela avistou alguns dos
homens escondidos . Todos tinham arcos . Ela sabia que não estava longe .
De repente ela chegou ao prédio de tijolos com três andares . Na luz fraca
do fim de tarde ela quase não o reconheceu . Os espetos deitados através da estrada
estavam cobertos com uma fina camada de terra para escondê -los dos soldados .
Quando ela passou galopando , avistou homens escondidos logo virando a esquina ,
prontos para levantarem os espetos assim que ela tivesse passado .
— Esperem até que a maioria passe ! — ela gritou para os homens que
aguardavam apenas alto o bastante para que eles ouvissem mas não tão alto para
que aqueles que a estavam seguindo pudessem ouvir .
Ela viu um deles acenar com a cabeça . Esperava que eles tivessem
entendido . Se os espetos fossem erguidos na cabeceira da cavalaria, travando
todos eles no gargalo , então somente aqueles que estavam na frente seriam
derrubados e a maioria dos que estavam na traseira escapariam de ferimentos e
reagrupariam. Se isso acontecesse então eles teriam perdido sua chance de acabar
com a cavalaria. Nicci precisava que os defensores manuseando os espetos
deixassem que a maioria cruzasse.
Nicci olhou para trás por cima do ombro para ver os grandes homens
com suas armas erguidas passarem trovejando pelo prédio de tijolos . A maioria já
tinha passado pela parte de trás do prédio , mas então, houve um súbito barulho
uivante quando cavalos de batalha avançando chocaram -se contra os espetos de
ferro. Cavalos que vinham atrás não conseg uiram parar e colidiram violentamente
com os animais que foram empalados .
Cavaleiros gritaram quando foram esmagados . Outros homens caíram
por cima das cabeças de seus cavalos .
Das janelas , flechas choveram enquanto soldados agora à pé tentavam
parar a cauda da cavalaria que ainda avançava . Homens reduziam
desesperadamente a velocidade de suas montarias . Enquanto faziam isso, eram
atingidos por flechas . Homens e cavalos foram atingidos por uma cortina de
flechas de várias direções . A maioria dos homens l evantavam um braço, apenas
para perceberem que haviam negligenciado usar algum tempo para pegarem seus
escudos.
Quando os últimos dos cavaleiros ainda estavam chocando -se contra o
súbito bloqueio , Nicci foi até a bifurcação na larga estrada . A cavalaria estava
logo nos calcanhares dela e espalharam -se na estrada atrás dela .
— Esperem até que a metade tenha passado! — ela falou para os homens
escondidos virando a esquina em um a alta parede de pedras quando passou
correndo.
Novamente ouviu-se o forte impacto e o terrível barulho de animais
gritando de dor e terror quando foram empalados ou rasgados inesperadamente .
Soldados gritaram quando foram derrubados violentamente dos cavalos . Homens
carregando lanças correram saindo da parte de trás da construção , perfurando os
soldados antes que eles tivessem chance de levantar e lutar . Machados, espadas,
e manguais que pertenciam a soldados caídos foram pegos por homens para serem
usados contra a Ordem .
Alguns da cavalaria , enganados uma segunda vez , não pretendiam ser
enganados novamente e a todo galope saíram da coluna principal , alguns tomando
outra rua à esquerda. Outros virando em uma rua estreita à direita .
Os cavaleiros seguindo ela não ganharam qualquer distância e não
tiveram chance de considerar se deveriam in terromper o avanço , quando Nicci

206
passou pela terceira barreira de espetos de ferro enquanto homens os levantavam
e travavam os postes no lugar . Os cavalos logo atrás dela bateram nos espetos .
Logo atrás surgiu o mais terrível som do imenso peso de carne de cavalo
chocando-se contra os animais na frente que já estavam presos nos espetos de
ferro e foram parados repentinamente . Um forte grito ergueu -se dos homens de
cavalaria quando eles foram capturados no violento desastre . Quase ao mesmo
tempo os cavaleiro s que tomaram estradas à direita e esquerda subitamente
encontraram -se pegos nas mesmas armadilhas de ferro . Os inimigos estavam em
um cânion de tijolos e ferro , ao invés de rochas .
O impacto dos cavalos correndo à toda velocidade batendo contra um
emaranhado de homens e animais quebrados bloqueando a estrada principal foi
horrível. Carne contra carne e ossos quebrando . Cavalos relinchando de dor. Tão
poderosa foi a força do impacto que isso quebrou a parede de espetos e abriu um
buraco através do ga rgalo de carcaças. Grandes cavalos de batalha , alguns com
suas armaduras faciais e outros sem , projetaram -se através da abertura,
escorregando e derrapando no sangue e vísceras de soldados partidos e outros
animais. No solo traiçoeiro, alguns dos cavalos e cavaleiros caíram . Outros
cruzando através da abertura a todo galope não tiveram para onde ir e pisotearam
eles.
Homens brandindo lanças correram de vielas nas laterais e entraram no
caminho da cavalaria para fechar a abertura na linha . Os cavalos , já em choque
com a carnificina e destruição terrível de tantos da sua espécie , agora encaravam
fileiras após fileiras de homens correndo até eles , soltando gritos de guerra ,
enfiando lanças em seus flancos . Os animais relincharam com apavorante
desespero enquant o eram mortos impiedosamente . Os animais caídos debatiam -se
contra aqueles que ainda estavam correndo em uma tentativa de fuga . O ar do final
de tarde parecia estar sendo cortado enquanto arqueiros lançavam uma chuva de
flechas sobre os homens de cavalaria lutando para escapar da carnificina .
Nicci duvidava que essas tropas da Ordem Imperial teriam atacado
deliberadamente dentro da cidade , usando a cavaleira dessa maneira , se não
tivessem sido ludibriados para fazerem isso . Esse tipo de cavalos não eram
apropriados para esse tipo de luta . Eles simplesmente não conseguiam manobrar
adequadamente nos espaços pequenos e os homens de cavalaria não conseguiam
cortar de forma efetiva seus opositores . Para tornar as coisas mais difíceis para
eles, os defensores tinham lugares demais para esconderem -se para que um ataque
de cavalaria fosse realmente efetivo . O propósito da cavalaria teria sido esmagar
velozmente qualquer resistência organizada em campo aberto que esperasse deter
a Ordem antes que ela chegasse até a ci dade, e então derrubar qualquer um que
tentasse escapar da cidade depois que as tropas fossem enviadas para dentro . Se
os comandantes estivessem corretamente no controle da situação e de seus
homens, Nicci duvidava que eles tivessem permitido que uma caval aria louca
entrasse nos espaços confinados de uma cidade . Nicci, é claro, sabia de tudo isso
quando foi agitar o ninho de vespas .
O disparate de um ataque de cavalaria dentro de uma cidade estava
tornando-se bastante aparente . A matança era tão rápida quan to brutal . A visão
sangrenta de tantos cavalos e homens rasgados de alguma forma parecia irreal . O
fedor de sangue era sufocante .
Quando ela viu uma coluna do inimigo virar em uma passagem para
fugir, Nicci lançou o seu Han , usando um espeto concentrado de força para
quebrar os ossos do cavalo na liderança . Quando as pernas do animal dobraram -
se embaixo dele os cavalos que vinham atrás chocaram -se contra ele a toda

207
velocidade, quebrando suas pernas quando o primeiro cavalo rolou embaixo deles
antes que eles conseguissem saltar para fora do caminho . Alguns cavalos que
vinham mais atrás , vendo o que estava acontecendo e tendo mais tempo para
reagir, conseguiram saltar. Nicci viu os homens na outra extremidade da rua
estreita bloquearem a rota de fuga deles .
Nicci deu a volta na esquina para chegar até o gargalo principal e ajudar
a evitar que qualquer cavalaria da Ordem Imperial escapasse da armadilha .
Quando ela fez a curva na última construção , ela encontrou um grupo de cavalaria
quando eles rompiam as linhas de homens com lanças . Nicci lançou uma bola
derretida de chamas rugindo em direção ao inimigo . Ela passou por cima das
cabeças dos defensores e atingiu a rua , lançando fogo líquido nos flancos dos
cavalos. Os animais, com suas peles em chamas , empinaram , permitindo que as
chamas atingissem os homens nas costas .
Nicci correu ao redor de prédios bem próximos uns dos outros para sair
atrás do final da cauda da armadilha central que havia aprisionado um grande
número dos inimigos . Os homens da cidade já estava m em cima deles . De uma
vez, os homens de cavalaria estavam em menor número , desorganizados , e
incapazes de fugir do massacre . Homens lutando por sua liberdade possuíam uma
fervorosa determinação que os soldados não tinham esperado encontrar . Suas
táticas de intimidação e simples matança caíram em pedaços .
Na fraca luz do anoitecer , Nicci avistou Victor brandindo uma pesada
maça sobre qualquer cabeça da Ordem Imperial que conseguia encontrar . Ela
conduziu rapidamente Sa'din através da carnificina .
— Victor!
O homem levantou os olhos com uma expressão assassina . — O que foi?
— ele gritou acima do som da batalha , sangue pingando das lâminas de aço da sua
arma.
Nicci aproximou o cavalo dela . — Os soldados estão vindo logo atrás da
cavalaria. Eles serão o verdadeiro teste . Não podemos ousar deixar que eles
mudem de ideia a respeito de atacar agora . Só para garantir que eles não pensem
duas vezes, darei a eles algo irresistível para perseguirem até o interior da cidade .
Victor exibiu um sorriso sinistro . — Bom. Estaremos prontos para eles .
Assim que o exército entrasse em Altur'Rang, não havia jeito deles
ficarem unidos. Dividiram -se para seguirem por diferentes ruas . Logo que eles
fizessem isso , cada um daqueles grupos poderia ser dividido ainda mais pelos
defensores. Quando cada grupo fugisse ou avançasse , enfrentariam arqueiros
escondidos e grupos de homens com lanças , sem falar nas numerosas armadilhas .
Altur'Rang era enorme. Conforme a escuridão cobrisse a cidade , muitos
dos invasores ficariam desorientad os e perdidos. Por causa das ruas estreitas eles
não conseguiriam permanecer juntos para efetuar um ataque coordenado . Eles não
teriam permissão de ir aonde quisessem , como quisessem, atacando pessoas
indefesas; eles seriam perseguidos implacavelmente e acossados. Cada grupo
ficaria menor o tempo todo , porque eles seriam separados enquanto estavam em
constante ataque , e porque alguns dos homens deles tentariam outras rotas para
encontrarem um caminho até a segurança . Nicci havia se certificado de que não
existisse lugar seguro na cidade .
— Tem sangue espalhado por toda frente do seu corpo . — Victor gritou
para ela. — Você está bem?
— Fiquei atrapalhada e caí do meu cavalo . Estou bem . Isso deve acabar
esta noite. — ela lembrou a Victor.
— Com pressa para ir atrás de Richard?

208
Ela sorriu mas não respondeu a pergunta dele . — Acho que é melhor eu
sacudir o ninho das vespas . Vou trazer eles atrás de mim .
Ele assentiu . — Nós estamos prontos .
Quando ela avistou três soldados ao longe tentando es capar sem os seus
cavalos, Nicci fez uma pausa para lançar um feitiço cintilante descendo por uma
rua estreita. Com três rápidos golpes , a lança de poder perfurou carne e ossos para
derrubar os três .
— E Victor, — ela falou virando de volta para o homem. — tem mais
uma última coisa.
— E qual seria?
— Ninguém escapa vivo . Ninguém.
Com os sons da batalha rugindo atrás dele , ele observou os olhos dela
durante um momento . — Entendo. Ishaq estará esperando por você ; tente levar o
ninho de vespas para lá o mais rápido que puder.
Nicci, checando as rédeas para manter Sa'din no lugar, assentiu. — Vou
trazer os soldados descendo...
Ela virou em direção a um repentino som de chamas . Grandes labaredas
ergueram-se ao leste. Ela sabia que isso só podia significar uma coisa.
Victor praguejou e subiu na carcaça de um cavalo de batalha morto
enquanto esticava o pescoço , tentando obter uma visão por cima dos telhados da
espessa fumaça que subia ao céu que escurecia .
Ele lançou um olhar com desconfiança para Nicci. — Você falhou em
matar Kronos?
— Eu matei Kronos, — ela rosnou com os dentes cerrados. — e outro
mago. Parece que ele possuem outro dotado com eles . Acho que eles vieram
preparados. — Nicci puxou as rédeas, virando Sa'din na direção dos distantes sons
de gritos. — Mas não vieram preparados para a Senhora da Morte .

209
C A P Í T U L O 2 9

— O que você acha que isso poderia significar ? — perguntou Berdine.


Verna olhou para os olhos azuis da Mord-Sith. — Ann não disse.
A biblioteca estava completamente silenciosa a não ser pelo suave
chiado de lanternas a óleo. Com as fileiras após fileiras de passagens estreitas
com trabalhos em madeira e prateleiras de nogueira escura , as lanternas e velas
faziam pouco para iluminar o vasto santuário interno . Se Verna tivesse acendido
todas as lanternas refletoras alinhadas pelas paredes e levantado as extremidades
de prateleiras, o lugar poderia ter ficado consideravelmente mais claro mas , para
o objetivo delas, ela não considerou necessário .
De certo modo, Verna sentiu que se acendessem lanternas demais ,
retirassem antigos volumes demais , perturbando o santuário em uma larga escala ,
isso poderia despertar os fantasmas de todos os Mestres Rahl que assombravam o
lugar.
Pesadas vigas dividiam os painéis em madeira e moldu ras escuras de
profundas covas no teto . Entalhes dourados de videiras e folhas subiam por
colunas ao lado que suportavam aquela madeira massiva. Símbolos estranhos
porém belos estavam pintados em ricas cores nas faces das vigas. Sob os pés
estavam espalhados luxuosos tapetes trançados com padrões elaborados em cores
suaves.
E por toda parte , ao redor das paredes externas em caixas atrás de portas
de vidro e prateleiras independentes marchando através da biblioteca em fileiras
após fileiras ordenadas , estavam livros aos milhares . Suas capas de couro , a maior
parte em cores profundas com ao menos alguma folha dourada ou prateada nas
lombadas, adicionavam uma rica textura ao local . Verna raramente tinha visto
bibliotecas tão grandiosas . As Câmaras no Palá cio dos Profetas onde ela passara
grande parte do tempo em estudo também guardavam milhares de livros , mas o
lugar havia sido utilitário , servindo apenas com a função de armazenar livros e
fornecer um local prático para ler os mesmos . Esse lugar revelava u ma reverência
pelos livros e o conhecimento que eles continham .
Conhecimento era poder , e através das eras cada Lorde Rahl teve esse
poder nas pontas dos dedos . Se ele usava esse conhecimento sabiamente ou não
era outra questão. O único problema com vastos montantes de informações como
esse seria acessar um item específico , ou ao menos saber se ele existia em uma
coleção tão imensa.
É claro, em épocas muito antigas teriam existido escribas que , além do
seu trabalho de fazer cópias de trabalhos importantes , cuidavam das bibliotecas e
eram responsáveis por seções específicas . O mestre poderia então facilmente fazer
algumas perguntas relevantes , estreitando a busca ao indivíduo dedicado na área
em particular de interesse , e ser orientado na direção correta . Agora, sem tais
especialistas cuidando das bibliotecas , as informações preciosas contidas nos
incontáveis volumes eram consideravelmente mais difíceis de recuperar . De certo
modo, a magnitude das informações tornava -se um estorvo ao seu próprio
objetivo, e, como um soldado carregando tantas armas que não conseguia mover -
se, algo quase inútil .
Os livros guardados apenas nessa biblioteca representavam um volume
de trabalho quase inimaginável de incontáveis estudiosos e de uma quantidade

210
muito grande de profetas. Uma breve caminhada pelos espaços revelou aqui
trabalhos em história , geografia, política, o mundo natural , e profecia que Verna
nunca tinha visto. Uma pessoa podia passar uma vida perdida no lugar , e ainda
assim, Berdine havia dito que o Palácio do Povo tinha um certo número de
bibliotecas assim, desde algumas que uma variedade de pessoas tinha permissão
para visitar, até algumas em que ninguém além d o Lorde Rahl, e, Verna concluiu,
os confidentes mais confiáveis dele , podiam entrar. Essa biblioteca era uma das
últimas.
Berdine havia dito que porque ela conhecia Alto D’Haraniano, Darken
Rahl às vezes a levava até a mais particular das bibliotecas para obter sua opinião
em traduções de passagens obscuras em textos antigos . Como resultado, Berdine
estava em uma posição única para saber pelo menos alguma coisa sobre a riqueza
do conhecimento potencialmente perigoso armazenado no local .
Porém, nem toda profecia era igualmente problemática . Muitas delas
acabavam sendo incidentais e bastante inofe nsivas. O que a maioria das pessoas
não percebia era que uma grande parte do espaço profético era tomado por pouco
mais do que assuntos vazios como fofoca s.
Mas de forma alguma todas as profecias eram tão simples ou frívolas , e
perambular através dos excit antes assuntos fúteis das vidas diárias tendia a
mergulhar alguém na complacência e então quando você menos esperava , coisas
sombrias saltavam das páginas para agarrar sua alma .
Embora houvesse volumes que eram completamente inofensivos , havia
outros que eram, para qualquer um além dos não treinados , perigosos desde as
primeiras palavras até a última . Essa biblioteca em particular continha alguns dos
livros de profecias mais perigosos que Verna conhecia, livros que no Palácio dos
Profetas eram considerados tão voláteis que não eram mantidos na Câmara
principal, mas em Câmaras menores fortemente protegidas por escudos restritas a
todos a não ser um grupo de pessoas no Palácio . A presença desses livros
provavelmente era a razão porque esta biblioteca em partic ular era um retiro muito
particular apenas para o Mestre Rahl; Verna duvidava seriamente que os guardas
teriam permitido sua entrada se uma Mord-Sith não a estivesse escoltando .
Verna poderia alegremente passar bastante tempo em um lugar tão
aconchegante, explorando incontáveis livros que nunca tinha visto . Infelizmente,
ela não possuía o luxo do tempo. Ela imaginou vagamente se Richard já tinha
visto o que agora era dele como Lorde Rahl.
Berdine bateu com um dedo na página em branco no “ Livro Glendhill de
Teoria dos Desvios ”. — Estou dizendo , Prelada, eu estudei esse livro com Lorde
Rahl na Fortaleza do Mago em Aydindril.
— Assim você disse .
Verna achou interessante, para dizer o mínimo, que Richard soubesse do
“Livro Glendhill de Teoria dos Desvios ”. Achou ainda mais curioso, considerando
o desgosto dele pela profecia e o fato de que esse livro de profecias era em maior
parte sobre ele, que ele o tivesse estudado .
Parecia não haver fim nas pequenas coisas curiosas que de tempos em
tempos Verna descobria a respeito de Richard. Parte do desgosto dele pela
profecia, ela sabia, era sua aversão a enigmas : ele os odiava. Porém, ela também
sabia que em grande medida seu humor em relação as profecias era devido à sua
crença no livre arbítrio , sua crença de que ele m esmo, e não a mão do destino ,
tornava sua própria vida o que ela era .
Ainda que enormemente complexa e com camadas de significados além
da compreensão da maioria das pessoas , a profecia certamente girava em torno de

211
elementos centrais do que estava preordenado em sua natureza, e até mesmo
Richard havia mais de uma vez cumprido a profecia enquanto ao mesmo tempo
provava que ela estava errada .
Verna suspeitava que , de uma forma perversa, a profecia havia previsto
o nascimento de Richard justamente para que el e pudesse vir ao mundo para
provar que o conceito da profecia era inválido .
As ações de Richard nunca foram fáceis de prever , até mesmo, ou talvez
especialmente, através d a profecia. No começo Verna ficara perplexa com as
coisas que ele faria e sempre era incapaz de prever como ele reagiria a situações
ou o que ele poderia fazer em seguida . Ela aprendeu , porém, que aquilo que
pensara ser a confusa mudança dele em um piscar de olhos de um assunto para
algo completamente não relacionado , era simplesmente, em sua essência , a
singular consistência dele .
A maioria das pessoas não era capaz de permanecer focad a em um
objetivo com tamanha determinação . Elas tendiam a tornarem -se distraídas por
uma variedade de outras questões urgentes que exigiam sua atenção . Richard,
como se estivesse em uma luta de espadas com vários oponentes ao mesmo tempo ,
priorizava aqueles eventos auxiliares , guardando-os em suspensão temporária ou
despachando -os quando fosse necessário , enquanto sempre mantinha seu objetivo
firme em sua mente. Às vezes isso dava às pessoas a falsa impressão de que ele
estava saltando de uma coisa não relacionada para outra , quando na verdade
estava, para ele, dançando inocentemente por rochas no rio de eventos ao redor
dele enquanto seguia seu caminho firmemente em direção até outra a outra
margem.
Às vezes ele era o homem mais maravilhoso que Verna já conhecera .
Outras vezes , o mais irritante. Fazia muito tempo que ela perdera a conta de
quantas vezes q uis estrangular ele. Além de ser o homem nascido para guiá -los
na batalha final, ele havia pela força de sua própria vontade se transformado no
líder deles, o Lorde Rahl, a chave de tudo por que ela lutara como uma Irmã da
Luz.
Justamente como a profecia previu.
Mas de forma alguma da maneira que ela havia indicado tão
cuidadosamente.
Talvez mais do que qualquer outra coisa que ele representava para todos
eles, Verna considerava Richard como um amigo. Queria que ele fosse feliz , do
jeito que um dia ela foi feliz com Warren. Seu tempo com Warren depois que eles
estavam casados e antes que ele fosse morto foi a época em que ela mais sentiu -
se viva. Desde então, ela sentia-se como uma morta viva , viva, mas não fazia parte
da vida.
Verna esperava que algum dia , talvez quando eles finalmente vencessem
a luta contra a Ordem , que Richard conseguisse encontrar alguém para amar . Ele
amava tanto a vida; precisava de alguém para compartilhar isso com ele .
Ela sorriu. Desde o primeiro dia em que ela o encontrara e coloc ou a
coleira no pescoço dele para levá -lo até o Palácio dos Profetas para ser treinado
sobre como usar o seu Dom , a vida dela pareceu ter sido arrastada em um turbilhão
que era Richard. Ela lembrava vividamente daquele dia nevado, no vilarejo do
Povo da Lama, quando ela o levou embora . Aquilo foi profundamente triste ,
porque foi contra a vontade dele , e ao mesmo tempo foi um alívio enorme depois
de ter procurado por ele durante vinte anos .
Para ser clara, ele não tinha entrado em um cativeiro de forma
benevolente. De fato, duas das Irmãs com Verna morreram no esforço para

212
fazerem Richard colocar a coleira que ele tanto odiou .
Verna fez uma careta ... colocar a coleira.
Isso era estranho. Ela tentou lembrar exatamente de como conseguiu
fazer com que ele colo casse a coleira, como tinha que ser feito . Richard odiava
coleiras... especialmente depois de uma vez ter sido cativo de uma Mord-Sith... e
ainda assim ele a colocara por sua própria vontade . Entretanto, por alguma razão
peculiar, ela não conseguia lembrar como havia conseguido fazer ele...
— Verna, isso é realmente estranho ... — o couro marrom da roupa de
Berdine rangeu quando ela inclinou -se um pouco mais, olhando atentamente para
o trecho final do texto no antigo volume aberto sobre a mesa diante dela . Ela virou
uma página cuidadosamente , checando, e então virou-a de volta. Ela levantou os
olhos. — Sei que esse livro tinha escrituras antes . Agora aquela escritura está
faltando.
Enquanto Verna observava a luz de velas dançar nos olhos azuis de
Berdine, ela colocou de lado lembranças de muito tempo e voltou sua total atenção
para os assuntos importantes no momento .
— Mas não era esse livro, era ? — quando Berdine franziu a testa, Verna
prosseguiu para explicar . — Pode ter sido o mesmo título , mas não era esse mesmo
livro. Você estava na Fortaleza ; era uma cópia diferente desse livro . Não era?
— Bem, certamente, acho que você tem razão em não ter sido esse
mesmo livro... — Berdine endireitou o corpo e coçou a cabeça de cabelos
castanhos ondulados . — Mas se é o mesmo título, então porque você acha que a
cópia na Fortaleza do Mago tem toda a escritura nele enquanto nesse aqui faltam
grandes trechos?
— Eu não disse que a cópia lá ainda tem todas as escrituras . Só estou
dizendo que a cópia na Fortaleza , não esta aqui, foi aquela que você estudou com
Richard. O fato de você lembrar de ter lido ela e não ter visto quaisquer páginas
em branco não prova qualquer coisa porque não era esse mesmo livro . Mas o que
é ainda mais importante , esse livro de fato pode ser idênt ico ao que contém todo
o texto, mas o escriba que fez essa duplicata simplesmente pode ter deixado
páginas em branco entre o texto por diversas razões .
Berdine parecia duvidar. — Que razões?
Verna sacudiu os ombros. — às vezes livros com profecias incompletas,
como esses aqui, possuem locais em branco para deixar espaço para que futuros
profetas completem a profecia .
Berdine plantou os punhos nos quadris . — Certo, mas responda uma
pergunta. Quando olho nesses livros eu lembro das coisas que estou le ndo. Posso
não entender a maior parte , mas lembro em um sentido geral , lembro de ter lido
essas passagens . Então porque não consigo lembrar de pelo menos uma coisa das
seções que estão faltando do livro ?
— A explicação simples é que você não recorda de coi sa alguma das
seções em branco porque elas são simples isso , espaços em branco , como eu disse,
que foram deixados no livro pela pessoa que fez a cópia .
— Não, não foi isso que eu quis dizer . Queria dizer que lembro da
natureza geral das profecias... da ext ensão delas. Como uma pessoa dotada você
teria maior noção daquilo que está lendo . Eu não. Já que eu realmente nunca
entendi essas profecias , ao invés disso eu lembro mais da aparência delas . Lembro
do quanto elas eram longas . Essas não estão mais completa s. Eu não as entendi, e
lembro do quanto elas pareciam longas e como era difícil compreender profecias
longas assim.
— Quando uma coisa é difícil de entender ela sempre parece mais longa

213
do que realmente é.
— Não. — Berdine fez uma careta com convicção . — Não é isso. — ela
virou para a última profecia e bateu com o dedo na página . — Essa aqui só tem
uma página seguida por várias páginas em branco . Não posso dizer que lembro
das outras tão bem , mas por alguma razão eu prestei mais atenção nessa última .
Estou dizendo, eu lembro que essa aqui com certeza era muito mais extensa . Não
posso jurar sobre qual era o tamanho das outras , ou qual devia ser a extensão
dessa aqui, mas com certeza sei que esta última , pelo menos, tinha mais de uma
página. Ela não estava in completa, como essa aqui está agora . Não importa o
quanto eu tente, parece que não consigo lembrar do tamanho dela , ou o que ela
dizia, mas sei que tinha mais de uma página .
Essa era a confirmação que Verna estivera esperando .
— Ainda que a maior parte dis so faça pouco sentido para mim , —
Berdine prosseguiu. — eu lembro dessa parte, esse início tem a ver com toda a
conversa sobre uma fonte bifurcada e o negócio confuso sobre retornar até uma
raiz da adivinhação , e então “dividindo a horda que vangloria -se da causa do
Criador” e essa parte soa como a Ordem Imperial... mas não consigo lembrar do
resto pois há um vazio depois de “a perda de confiança de um líder”.
— Não estou imaginando isso , Verna, não estou. Não consigo dizer
porque tenho tanta certeza de que o resto disso está faltando , mas eu tenho. E aí
está o que mais me incomoda... porque a parte que está faltando no livro
desapareceu da minha memória ?
Verna inclinou chegando mais perto e levantou uma sobrancelha . —
Agora, essa, minha querida, é a pergunt a que eu considero perturbadora .
Berdine pareceu assustada . — Está querendo dizer, que sabe do que eu
estou falando? Acredita em mim?
Verna assentiu. — Temo que sim . Não queria plantar a semente da
sugestão em sua mente. Queria que você confirmasse minhas próprias suspeitas .
— Então era com isso que Ann estava preocupada, o que ela queria que
nós verificássemos?
— Sim. — Verna remexeu no amontoado desordenado de livros sobre a
robusta mesa, finalmente retirando aquele ela queria . — Olhe aqui nesse livro .
Esse é aquele que talvez seja o mais perturbador para mim . Origens Reunidas é
uma profecia extremamente rara que foi escrita inteiramente na forma de uma
história. Estudei esse livro antes de partir do Palácio dos Profetas para procurar
Richard. Eu sabia a história praticamente de cor . — Verna folheou as páginas . —
Agora o livro está inteiramente em branco e não consigo lembrar de qualquer
coisa dele a não ser que ele tinha algo a ver com Richard... o que exatamente, eu
não tenho ideia.
Berdine estudou os olhos de Verna do jeito como somente uma Mord-
Sith poderia estudar os olhos de alguém . — Então isso é algum tipo de problema ,
e esse problema é uma ameaça para Lorde Rahl.
Verna soltou um profundo suspiro . As chamas de várias das velas mais
próximas bruxule aram quando ela fez isso .
— Eu estaria mentindo se falasse o contrário , Berdine. Ainda que o texto
faltando não tenha completamente a ver com Richard, todo ele pertence a um
tempo após o nascimento dele . Não tenho qualquer pista sobre a natureza do
problema, mas admito que isso me preocupa profundamente .
O comportamento de Berdine mudou. Geralmente a mulher era a mais
tranquila das Mord-Sith que Verna conhecia. Berdine possuía uma espécie de
alegria simplória, infantil, a respeito do mundo ao redor dela. Às vezes ela podia

214
ser tocantemente curiosa . Independente das adversidades sobre as quais outros
reclamavam, Berdine geralmente exibia um sorriso inabalável .
Mas diante da impressão de algum tipo de ameaça a Richard, ela mudou
ficando séria rapidamente . A agora ela tornara-se tão desconfiada e friamente
ameaçadora quanto qualquer Mord-Sith já foi.
— Qual poderia ser a causa disso ? — perguntou Berdine. — O que isso
significa?
Verna fechou o livro cheio de páginas em branco . — Não sei, Berdine,
realmente não sei. Ann e Nathan estão tão intrigados quanto nós... e Nathan é um
profeta.
— O que significa aquela parte sobre pessoas perderem a confiança em
seu líder?
Para uma pessoa não dotada , Berdine havia conseguido destacar a parte
mais crucial de uma profecia b astante oblíqua.
— Bem, — falou Verna, avaliando cuidadosamente sua resposta. —
poderia significar várias coisas . É difícil afirmar.
— Talvez difícil para mim , mas não para você.
Verna limpou a garganta. — Não sou uma especialista em profecia , você
entende, mas acho que tem alguma coisa a ver com Richard.
— Isso eu sei . Porque essa profecia falaria a respeito das pessoas
perderem a confiança nele ?
— Berdine, a profecia raramente é tão direta como parece . — Verna
gostaria que a mulher parasse de olhar fixame nte para ela. — O que ela parece
dizer geralmente não tem nada a ver com o verdadeiro evento envolvido no corpo
da profecia.
— Prelada, para mim essa profecia parece sugerir que uma questão de
solidez da mente ser á a causa da “perda de confiança de um líder”. Uma vez que
essa profecia indica o líder como aquele que se opõe à horda que vangloria -se da
causa do Criador... essa seria a Ordem Imperial... o que significa que ela deve
estar falando sobre Lorde Rahl. Então ela diz que Lorde Rahl é o líder em quem
o povo perderá a confiança . Isso vem depois da parte a respeito da divisão da
horda, aquilo que a Ordem fez agora . Isso torna a ameaça iminente .
Verna sentiu pena de qualquer um que algum dia cometeu o
desafortunado erro de subestimar Berdine.
— Em minha experiência sei que às vezes a profecia tende a exagerar no
cuidado a respeito de Richard como um avô amoroso .
— Para mim isso parece uma ameaça específica.
Verna cruzou as mãos na frente do corpo . — Berdine, você é uma mulher
muito inteligente, então espero que você consiga entender porque seria um grande
erro para mim especular ou ao menos discutir essa profecia com você . A profecia
está além da mente dos não dotados . Ela tem pouca relação com o quanto uma
pessoa é inteligente. A profecia é uma criação dos dotados e destinada somente
àqueles que são dotados do mesmo jeito . Elas não são destinadas até mesmo a
outros tipos de magos .
— Mesmo nós, Irmãs , talentosas feiticeiras que podemos ser , tivemos de
treinar durante anos antes de ao menos olhar para a profecia, muito menos
trabalhar com ela . É extremamente perigoso para os não treinados fazerem
suposições sobre o significado de profecias . Você pode reconhecer as palavras ,
mas não reconhece o significado dessas palavras .
— Isso é engraçado. Palavras são palavras . Elas possuem significado . É
assim que entendemos o mundo ao nosso redor . Porque a profecia pegaria palavras

215
que significam algo e as usariam para algum outro significado desconhecido ?
Verna sentiu como se estivesse pisando de forma c ambaleante por um
campo cheio de armadilhas de ursos . — Isso não era exatamente o que eu queria
dizer com o que falei . Palavras podem ser usadas para fazer pessoas entenderem ,
para explicar , para indicar, e para interpretar o mundo , mas elas também podem
ser usadas para explicar coisas que são apenas especulação . Se eu previsse que
tempos sombrios surgirão em sua vida , essas palavras podem ser verdadeiras , mas
poderia significar que sofrerá uma perda que entristecerá você , ou poderia
significar que você ser á assassinada. Embora as palavras sejam verdadeiras , o
significado exato delas ainda não é conhecido . Seria uma grave injustiça usar
essas palavras como motivo para começar a matar todos ao seu redor porque as
palavras fizeram você temer que seria assassin ada.
— Guerras começaram por causa desse tipo de interpre tação equivocada
sobre a profecia . Pessoas morreram como resultado de terem ouvido sem treino o
que pensavam ser as simples palavras da profecia . Foi por isso que os livros de
profecia eram guardados em Câmaras seguras abaixo do Palácio dos Profetas .
— Esses livros de profecia não estão guardados em Câmaras .
A testa de Verna franziu quando ela inclinou em direção a Mord-Sith.
— Talvez devessem estar .
— Está dizendo que estou errada naquilo que eu acre dito que essa
profecia diz?
Verna soltou outro suspiro . — É impossível discernir certo e errado
nesse caso. Não podemos ao menos começar a dissecar de forma inteligente essa
profecia porque ela está incompleta . Nós temos aqui só o começo dela e então
várias páginas em branco .
— Então?
— Então, poderia ser justamente como você diz , que isso é sobre Richard
e as pessoas irão questionar o julgamento dele e perderão sua fé nele , mas talvez
o texto faltando diga que o assunto será resolvido no dia seguinte por a lgum outro
evento em consequência e elas irão considerá -lo mais do que jamais haviam
considerado. Não apenas a profecia pode estar bifurcada , significando que ela
pode ser do tipo “isso” ou “aquilo” , mas a mesma profecia poderia significar
coisas opostas.
— Não vejo como isso poderia significar coisas opostas . E como algo
poderia acontecer no texto faltando dessa profecia para mudar a mente das
pessoas?
Verna balançou os ombros enquanto olhava ao redor da vasta biblioteca
fracamente iluminada, tentando pensar em um exemplo . — Bem, digamos que elas
achassem que o plano de batalha dele era loucura . Talvez os oficiais do exército
considerassem isso pouco recomendável . Isso poderia ser algo que resultaria nessa
profecia, nas pessoas perdendo a fé nele . Então, digamos que, a despeito do
conselho dos oficiais , Richard insista e assim , independente das dúvidas e falta
de fé deles, os soldados seguissem o plano dele como ordenado e obtivessem uma
vitória que jamais pensaram que poderiam conseguir . A fé deles em Richard como
seu líder seria restaurada e provavelmente eles teriam mais respeito pelo
julgamento dele do que já tiveram antes .
— Mas se a profecia fosse considerada sem a compreensão do seu
verdadeiro significado , aquelas ações poderiam muito bem contraord enar o resto
do evento como ele teria ocorrido naturalmente e dar a ilusão de que a profecia
havia sido cumprida, mas na verdade os eventos reais e verdadeiramente
profetizados teriam sido contornados ao invocar tolamente uma interpretação

216
errada da profecia verdadeira .
Berdine, observando Verna o tempo todo, deslizou a trança castanha
através de um punho frouxo . — Acho que isso poderia fazer sentido .
— Está vendo, Berdine, porque a profecia é tão confusa , mesmo para
aqueles de nós treinados para isso ? Mas para tornar as coisas piores , sem a
profecia completa não ousamos ao menos começar a tentar entendê -la ou conferir
qualquer significância a ela . O texto completo é indispensável se alguém deseja
começar a tentar entender a profecia . Sem todo o texto essa é uma profecia cega.
Essa é uma razão porque isso é tão perturbador .
— Uma razão? — Berdine levantou os olhos outra vez , ainda deslizando
a trança no punho . — Qual é a outra razão?
— Já é bastante ruim estar sem o texto que antes estivera ali , mas a causa
por traz de um evento sem precedentes como esse... o texto de uma profecia
desaparecer... é perturbador ao extremo .
— Pensei que você tinha falado que não deveríamos apressar conclusões
quando tratava-se de profecia.
Verna limpou a garganta , sentindo como s e uma daquelas armadilhas
para ursos tivesse acabado de fechar em sua perna . — Bem, isso é verdade, mas é
óbvio que alguma coisa está acontecendo .
Berdine cruzou os braços enquanto ponderava o problema . — O que você
acha que poderia estar acontecendo ?
Verna balançou a cabeça . — Não consigo ao menos imaginar . Uma coisa
assim, pelo meu conhecimento , nunca aconteceu . Não tenho ideia do porquê isso
está acontecendo agora .
— Mas você acha que é um problema que envolve Lorde Rahl.
Verna lançou um olhar atrave ssado para Berdine. — O simples fato de
que tantas profecias envolvem ele torna essa conclusão impossível de evitar .
Richard nasceu para encarar problemas . Ele está no centro disso .
Berdine pareceu não gostar nem um pouco daquilo . — É por isso que ele
precisa de nós.
— Jamais falei que ele não precisava .
Berdine relax ou, mesmo que somente um pouquinho , e jogou sua trança
de volta para trás por cima do ombro . — Não, você não falou.
— Ann está procurando ele . Vamos torcer para que ela consiga encontrá -
lo, e logo. Precisamos que ele nos lidere na batalha que está por vir .
Enquanto Verna falava, Berdine tirou um livro de uma das caixas de
vidro e começou a folheá -lo. — Lorde Rahl deve ser a magia contra a magia , não
o aço contra o aço .
— Isso é um provérbio D’Haraniano. A profecia diz que ele deve nos
liderar na batalha final .
— Suponho que sim. — Berdine murmurou sem olhar enquanto virava
as páginas lentamente.
— Com parte das forças de Jagang seguindo para o sul ao redor das
montanhas, só podemos torcer que Ann o encontre em tempo e traga ele até nós .
Berdine estava olhando para o livro, confusa . — O que é isso que está
enterrado com os ossos ?
— O quê?
Berdine ainda estava com a testa franzida enquanto tentava entender
algo no livro. — Esse livro chamou a m inha atenção antes porque está escrito
“Fuer Grissa Ost Drauka ” na capa. Isso é Alto D’Haraniano . Significa...
— Aquele que traz a morte.

217
Berdine levantou os olhos . — Sim. Como você sabia?
— Havia uma profecia amplamente conhecida que as Irmãs no Palácio
dos Profetas costumavam debater. Para dizer a verdade, ela tinha sido debatida
fervorosamente durante séculos . No primeiro dia em que levei Richard até o
Palácio ele declarou ser aquele que traz a morte e assim indicou que era a pessoa
da profecia. Isso criou uma grande comoção entre as Irmãs , posso afirmar a você.
Um dia, lá embaixo nas Câmaras , Warren mostrou para Richard a profecia e o
próprio Richard solucionou o enigma dela , ainda que para Richard não fosse um
enigma. Ele entendeu aquilo porque tinha vivido partes da profecia .
— Esse livre tem muitas páginas em branco .
— Sem dúvida. Parece que é sobre Richard. Provavelmente há um grande
número de livros aqui que são a respeito dele .
Berdine estava lendo novamente. — Isso é Alto D’Haraniano. Como eu
falei, conheço Alto D’Haraniano. Eu teria que trabalhar nele para conseguir
traduzir de forma mais apurada , e ajudaria se não estivesse faltando tanto texto ,
mas esse trecho aparentemente está falando a respeito de Lorde Rahl. Diz algo
como, “o que ele procura está enterrado com os ossos ”, ou talvez até mesmo “o
que ele procura são ossos enterrados ”... algo assim .
Berdine olhou para Verna. — Alguma ideia do que se trata ? Do que isso
poderia significar?
— O que ele procura está enterrado com os ossos ? — Verna balançou a
cabeça com tristeza. — Não faço ideia. Provavelmente há incontáveis volumes
aqui que possuem algo interessante , intrigante, ou coisas assustadoras para dizer
a respeito de Richard. Porém, como eu falei , com o texto faltando, o que está al i
é quase inútil.
— Entendo. — Berdine disse, desapontada. — E quanto a “locais
centrais ”?
— Locais centrais?
— Sim. Esse livro menciona lugares chamados “ locais centrais ”. —
Berdine ficou olhando para o vazio como se estivesse ponderando algo . — Locais
centrais. Kolo mencionou alguma coisa sobre locais centrais .
— Kolo?
Berdine assentiu. — Foi um diário escrito há muitas eras... durante a
Grande Guerra. Lorde Rahl encontrou o livro na Fortaleza do Mago , na sala com
a Sliph. O homem que guardava o diário era chamado Koloblicin . Em Alto
D’Haraniano o nome significa “grande conselheiro ”. Lorde Rahl e eu o chamamos
de Kolo, para facilitar.
— O que esse Kolo tinha a dizer sobre esses lugares , esses “locais
centrais ”? O que eles são?
Berdine folheou as páginas do livro que ela segurava . — Não lembro.
Não era algo que eu tivesse entendido naquele momento então não devotei muito
esforço nisso . Eu teria que estudá-lo novamente para refrescar minha memória .
— ela cerrou os olhos, procur ando recordar. — Parecia que tinha alguma coisa
enterrada nos lugares chamados “ locais centrais ”. Não consigo lembrar se dizia
o que estava enterrado .
A Mord-Sith permaneceu congelada na mesma posição enquanto
estudava o pequeno livro . — Eu tinha esperança de que isto pudesse me dar uma
pista.
Verna soltou um forte suspiro enquanto olhava ao redor para a
biblioteca.
— Berdine, eu adoraria ficar e passar algum tempo procurando em todos

218
esses livros. Eu realmente gostaria de saber o que esta biblioteca e as o utras aqui
no Palácio guardam , mas tenho assuntos mais urgentes no momento . Precisamos
voltar até o exército e até minhas Irmãs .
Verna deu uma última olhada ao redor . — Porém, antes que eu vá , tem
mais uma coisa aqui no Palácio do Povo que eu gostaria de c hecar. Talvez você
possa me ajudar .
Berdine fechou o livro relutantemente e recolocou -o na prateleira. Ela
fechou a porta de vidro cuidadosamente .
— Está certo, Prelada. O que você quer ver?

219
C A P Í T U L O 3 0

Verna fez uma pausa ao escuta r o longo retinir de um sino .


— O que foi isso?
— Devoção. — falou Berdine, parando para olhar para trás, para Verna,
enquanto o forte som do sino reverberava através dos vastos corredores de
mármore e granito do Palácio do Povo .
As pessoas, não importava para onde elas pareciam seguir , viravam e ao
invés disso moviam -se em direção da larga passagem de onde o profundo som
ressoante do sino viera . Nenhuma delas parecia estar com pressa , mas todas
caminhavam decididas em direção ao som do sino que morria lent amente.
Verna fez uma careta para Berdine. — O quê?
— Devoção. Você sabe o que é uma devoção .
— Está querendo dizer uma devoção aa Lorde Rahl? Essa devoção?
Berdine assentiu. — O sino anuncia que está na hora da devoção . —
Pensativa, ela olhou na direção do corredor para onde as pessoas caminhavam .
Muitas das pessoas na multidão estavam vestidas com mantos de
diversas cores . Verna assumiu que manto branco com faixas douradas ou prateadas
eram a marca de algum tipo de oficiais ou outras pessoas que moravam e
trabalhavam no Palácio . Certamente elas tinham o jeito e o comportamento de
oficiais. Todos desde administradores até mensageiros em mantos decorados na
cor verde e carregando sacolas de couro com uma letra ornamentada “ R” nelas,
indicando a Casa de Rahl, continuaram suas conversas casuais mesmo enquanto
seguiam até o cruzamento de largos corredores . Outras pessoas que trabalhavam
em qualquer uma das incontáveis variedades de lojas estavam vestidas de forma
mais apropriada de acordo com sua profissão , quer fosse trabalhando com couro ,
prata, olaria, pavimentação, ou alfaiataria, fornecendo as muitas comidas e
serviços , ou executando qualquer um dos vários trabalhos no Palácio desde a
manutenção até a limpeza .
Vários estavam vestidos com as roupas simples de fazendeiros ,
comerciantes, e mercadores, muitos com suas esposas e alguns com crianças .
Como aquel es que Verna tinha visto nos níveis inferiores dentro do grande platô
sobre o qual estava o Palácio do Povo ou nos mercados do lado de fora , eles
pareciam visitantes que vieram negociar ou fazer compras . Outros, porém,
estavam usando roupas finas para sua estadia no Palácio . Segundo aquilo que
Verna aprendera com Berdine, havia quartos que convidados podiam alugar se
desejassem ficar durante um período mai s extenso. Também havia alojamentos
para as muitas pessoas que moravam e trabalhavam no Palácio .
A maioria das pessoas com mantos caminhava tranquilamente , como se
isso fosse apenas outra parte do seu dia . Aquelas que estavam vestidas com roupas
finas tent avam parecer calmas também e não observar fixamente a arquitetura
primorosa do Palácio , mas Verna via os olhos arregalados deles vagando . Os
visitantes vestidos de maneira simples , enquanto seguiam junto com o fluxo de
todas as pessoas em direção ao local que os conduziria até a passagem com o sino ,
espiavam tudo abertamente , as enormes estátuas de homens e mulheres em poses
orgulhosas esculpidas em rocha variegada , colunas polidas de dois níveis
elevando-se além de sacadas , os pisos espetaculares de granito negro e cor de mel .
Verna sabia que tais padrões precisos e complexos nos pisos de rocha ,

220
instalados com juntas rebocadas bem unidas , poderiam ter sido criados apenas
pelos mestres artesãos mais talentosos em todo o Mundo Novo . Servindo como
Prelada no Palácio dos Profetas durante algum tempo , ela teve que lidar com o
assunto da troca de uma seção de um piso lindamente trabalhado que no passado
foi danificado por jovens magos em treinamento . Os eventos precisos que levaram
ao dano e quem, exatamente, havia sido a parte culpada que permaneceu oculta
em juramentos para não tagarelar , mas o resultado foi que o pequeno montante de
magia travessa havia em um instante deslocado uma longa seção de piso de
mármore caprichosamente assentado . Ainda que os detritos e os pedaços soltos
tivessem sido removidos fazia muito tempo , o piso ficou danificado durante
décadas, preenchido com pedra calcária utilitária mas de aparência ruim , enquanto
a vida no Palácio dos Profetas seguiu adiante . A atitude no Palácio em rel ação
aos rapazes foi de indulgência , em parte por causa de uma sensação de pesar por
ter que manter aqueles homens jovens contra a vontade deles.
Verna sempre ficara preocupada que o dano nunca tivesse sido
consertado... em p arte porque não consertá-lo para ela representava uma atitude
que permitia aquele tipo de péssimo comportamento . Sempre pareceu como se ela
fosse a única... a não ser até Richard aparecer... que ficava incomodada em ver
tal beleza danificada. Richard esperava que os rapazes ali assumiss em a
responsabilidade por suas ações . Ainda que ele fosse mantido contra sua vontade ,
ele nunca tolerou esse tipo de comportamento destrutivo insensível .
Warren enxergava as coisas da mesma maneira que Richard. Talvez isso
tenha sido um pouco da razão pela qual eles tornaram -se amigos tão rapidamente .
Warren sempre foi sério e dedicado a respeito de tudo . Depois que Richard saiu
do Palácio, Warren lembrou a Verna que como a nova Prelada ela não precisava
mais reclamar sobre o comportamento ou o piso ; ele encorajou-a a agir de acordo
com suas convicções . Então, como Prelada, ela definiu novas regras e
providenciou a conclusão dos reparos no piso .
Foi quando ela aprendeu uma coisa ou duas sobre esse tipo de pisos e
que embora houvesse grande número de homens q ue declaravam fervorosamente
serem mestres artesãos , na verdade poucos eram . Aqueles que deixavam seu
trabalho tornavam clara a distinção . Os anteriores faziam da tarefa um pesadelo ,
os últimos, uma alegria .
Ela lembrou do quanto Warren havia ficado orgulh oso dela por
providenciar que a tarefa fosse realizada e por não aceitar qualquer coisa menor
do que o melhor. Ela sentia tanta falta dele .
Verna olhou ao redor do Palácio espetacular , para o intricado trabalho
em rocha, e ainda assim agora tanta beleza fa lhava em tocá-la. Desde que Warren
morreu tudo parecia fraco , desinteressante , e sem importância para ela . Desde que
Warren morreu, a própria vida parecia um estorvo .
Por toda parte através do Palácio , soldados atentos patrulhavam ,
provavelmente sem ao menos perceber , ou mesmo considerar, o surpreendente
montante de imaginação humana , habilidade, e esforço que foram aplicados na
criação de um lugar como o Palácio do Povo . Agora, eles eram uma parte disso ,
uma parte daquilo que o mantinha viável , como milhares de homens exatamente
como eles que durante séculos caminharam por estes mesmos corredores e os
mantiveram seguros .
Verna not ou que alguns dos guardas moviam -se pelos corredores em
pares, enquanto outros patrulhavam em grupos maiores . Os jovens musculosos
vestiam uniformes com ombreira e armadura peitoral de couro moldadas e todos
carregavam pelo menos uma espada . Muitos dos soldados também carregavam

221
piques com pontas cintilantes de metal . Verna notou guardas especiais que usavam
luvas negras e carreg avam bestas penduradas sobre os ombros . As aljavas nos
cintos deles continham flechas com penas vermelhas . Os olhos dos soldados
estavam sempre em movimento , observando tudo .
— Parece que eu lembro de Richard mencionar a devoção. — Verna
falou. — mas eu achava que eles não faziam isso quando o Lorde Rahl não estava
no Palácio. E especialmente não desde que Richard tornou-se o Lorde Rahl.
Verna não queria exatamente que isso soasse condescendente , embora
tenha percebido após falar que deve ter parecido desse jeito. O fato era apenas
que Richard era... bem, Richard.
Berdine olhou de soslaio para Verna. — Ele ainda é o Lorde Rahl. Não
estamos menos ligados a ele porque está longe . A devoção sempre é feita no
Palácio, quer Lorde Rahl esteja aqui ou não . E independe da forma como você
possa enxergá-lo, ele é o Lorde Rahl em todos os sentidos . Nunca tivemos um
Lorde R ahl que respeitamos tanto quanto o respeitamos . Isso faz com que a
devoção tenha mais significado , e mais importância, do que jamais teve .
Verna manteve a boca fechada, mas lançou um olhar para Berdine que
saiu tão facilmente para ela como uma Irmã da Luz e agora como Prelada
Embora ela compreendesse as razões por trás disso , ela era a Prelada das
Irmãs da Luz, devotada a garantir que a vontade do Criad or seja cumprida. Como
uma Irmã da Luz , vivendo no Palácio dos Profetas sob o feitiço que reduzia a
velocidade do envelhecimento , tinha visto governantes surgirem e partirem . As
Irmãs da Luz jamais reverenciaram qualquer um deles .
Ela lembrou a si mesma qu e o Palácio dos Profetas não existia mais .
Agora a Ordem Imperial controlava muitas das Irmãs .
Berdine ergueu um braço indicando o Palácio ao redor delas . — O Lorde
Rahl torna tudo isso possível . Ele nos fornece uma terra natal. Ele é a magia
contra a magia. O governo dele nos mantém seguros . Enquanto no passado
tínhamos mestres que consideravam a Devoção como uma demonstração de
servidão, sua origem na verdade nada mais é do que um ato de respeito .
A irritação de Verna fervia logo abaixo da superfície . Esse do qual
Berdine estava falando não era algum líder mítico , algum antigo Rei ; era Richard.
Independente do quanto Verna o respeitava e valorizava , ele ainda era Richard. O
guia florestal Richard.
Rapidamente na esteira do seu relance de indignação surgiu o
arrependimento por tais pensamentos rudes .
Richard sempre lutou por aquilo que era certo . Ele havia colocado sua
vida em perigo valentemente por suas nobres crenças .
Ele também era aquele indicado na profecia .
Ele também era o Seeker.
Ele também era Lorde Rahl, aquele que traz a morte, que tinha virado o
mundo de cabeça para baixo . Por causa de Richard, Verna era Prelada. Ela não
tinha certeza se isso era uma bênção ou uma maldição .
Richard também era a última esperança deles .
— Bem, se ele não se apressar e juntar -se a nós para liderar o exército
D’Haraniano na batalha final não restará nenhum de nós para respeitá -lo.
Berdine afastou seu olhar fixo de reprovação e inesperadamente
começou a andar em direção a passagem que virava à esqu erda... aquele onde o
sino havia tocado. — Nós somos o aço contra o aço . Lorde Rahl é a magia contra
a magia. Se ele não vier lutar com o exército é somente por causa do seu dever de
nos proteger de todas as forças sombrias da magia .

222
— Bobagem de mentes si mplórias. — Verna murmurou para si mesma
enquanto apressava -se para alcançar a Mord-Sith.
— Para onde você vai ? — ela gritou atrás da mulher .
— Para a Devoção. No Palácio todos vão para a Devoção .
— Berdine, — Verna rosnou quando segurou o braço de Berdine. — não
temos tempo para isso .
— É a Devoção. É parte de nossa ligação com Lorde Rahl. Seria sábio
da sua parte ir para a Devoção e então talvez você lembre disso .
Verna ficou imóvel no vasto corredor , surpresa, observando a Mord-Sith
afastar-se. Verna tinha uma vívida lembrança do tempo em que a ligação com
Richard havia sido cortada. Não foi por muito tempo , mas na ausência de Richard
do mundo dos vivos a proteção da ligação com Lorde Rahl cessou de existir.
Naquela breve janela no tempo , quando Richard e a ligação
desapareceram de todos eles , Jagang entrou nos sonhos de Verna para capturar a
mente dela. Ele também capturou Warren. Foi algo além do horror ter o Andarilho
dos Sonhos no controle da consciência dela , mas foi ainda pior saber que Warren
estava tão indefeso da mesma forma . A presença brutal de Jagang havia dominado
cada aspecto da existência deles , desde o que podiam pensar , até o que tinham
que fazer. Eles não possuíam mais o controle de sua própria vontade ; a vontade
de Jagang era tudo que importava. Só a lembrança da dor cortante que foi enviada
através daquela conexão para dentro dela... e para dentro de Warren...
inesperadamente causou a dor das lágrimas nos olhos de Verna.
Ela enxugou rapidamente as lágrimas e correu atrás de Berdine. Verna
tinha coisas importantes a fazer , mas perderia um tempo incontável tentando
encontrar o caminho sozinha no vasto interior do Palácio do Povo . Precisava da
Mord-Sith para mostrar o caminho . Se Verna tivesse o controle do seu Dom isso
poderia ajudá-la a encontrar o que buscava, mas no Palácio o seu Han era
virtualmente inútil . Simplesmente teria que ir junto com Berdine e torcer para que
então elas pudessem voltar ao trabalho sem perder tempo demais .
A passagem à esquerda conduzia por baixo de uma ponte i nterior com
um corrimão e balaústres feitos com mármore cinza cheios de nervuras brancas .
Em um cruzamento de quatro passagens , o corredor expandia em uma praça a céu
aberto. No centro da praça estava um lago quadrado com um pequeno assento de
granito cinza polido por todo o caminho ao redor que mantinha a água dentro.
Uma larga rocha furada estava na água um pouco afastada do centro . Sobre a rocha
estava o sino... aparentemente aquele que havia tocado chamando o povo para a
Devoção.
A multidão tinha começa do a espalhar -se através do teto aberto . A
superfície do lago dançava com as gotas . Verna viu que o piso por toda parte da
praça estava suavemente inclinado em direção a drenos para escoar qualquer água
da chuva. As lajotas de argila ajudavam a reforçar a percepção de que a praça
estava realmente em uma área externa .
Por todos os lados as pessoas ficavam de joelhos , encostando a testa
sobre o piso com lajotas de argila , voltadas para o lago que guardava o agora
silencioso sino de bronze .
O descontentamento sombrio de Berdine evaporou ao ver que Verna
vinha junto com ela. Ela sorriu para trás alegremente e então fez a coisa mais
estranha. Esticou o braço e segurou a mão de Verna.
— Vamos lá, deixe que eu a leve até o lago . Ele tem peixes.
— Peixes?
O sorriso de Berdine aumentou. — Sim. Adoro as praças com peixe s.

223
Realmente, depois que elas passaram no meio de todas as pessoas
ajoelhadas no chão e chegaram até a frente da multidão perto do lago , Verna viu
que havia grupos de peixes alaranjado s deslizando através da água . Mal havia
espaço suficiente para elas ficarem em pé entre todas as pessoas curvadas sobre
o piso.
— Eles não são bonitos ? — perguntou Berdine. Ela estava com um jeito
de garotinha outra vez .
Verna olhou séria para a jovem . — São peixes.
Berdine pareceu não ter ficado ofendida e ajoelhou em um local que
surgiu quando as pessoas abriram espaço para elas . Verna podia ver através dos
olhares com o canto dos olhos que todos tinham ao menos um saudável respeito
pela Mord-Sith, se não fosse medo escancarado . Ainda que nenhuma delas
estivesse assustada o bastante para ir embora , elas claramente não queriam estar
onde Berdine queria estar quando ela desejava estar ali . Elas também pareciam
mais do que um pouco preocupadas a respeito de q uem a Mord-Sith estava
arrastando com ela para a Devoção , como se pudesse ser uma pecadora
arrependida e a lição pudesse envolver derramamento de sangue .
Berdine olhou para Verna por cima do ombro antes de inclinar para
frente e colocar as mãos sobre o chã o lajotado. O breve olhar foi um sinal para
que Verna fizesse o mesmo. Verna viu que os guardas estavam observando ela .
Isso era loucura; ela era a Prelada da Irmãs da Luz , uma conselheira de Richard e
uma das amigas mais próximas dele .
Mas os guardas não sabiam disso.
Verna sabia muito bem que seu poder estava reduzido a quase nada
dentro do Palácio . Esse era o lar ancestral da Casa de Rahl. O Palácio todo havia
sido construído na forma de uma Forma de Feitiço projetada para aumentar o
poder deles e negar aos outros os deles .
Verna soltou um suspiro e finalmente ficou de joelhos , curvando-se para
frente sobre as mãos como todos os outros . Elas estavam perto do lago , mas a
abertura no teto era aproximadamente do tamanho do lago , então a chuva estava
confinada em maior parte ao lago e a qualquer chuva errante que a brisa suave
carregava além . As poucas gotas que alcançavam ela na verdade pareciam bastante
refrescantes , considerando o seu humor fervoroso .
— Estou velha demais para isso. — Verna reclamou em um sussurro para
sua parceira de Devoção .
— Prelada, você é uma mulher jovem e saudável. — Berdine disparou.
Verna soltou um suspiro . Não adiantava discutir a tolice de ajoelhar -se
no chão e pronunciar uma Devoção a um homem para o qual ela já era devota em
mais de uma forma. Mas era mais do que tolice . Era ridículo . E além disso, uma
perda de tempo.
— Mestre Rahl seja nosso guia . — a multidão toda começou , mesmo que
não em harmonia, enquanto ficavam abaixados e encostavam as testas contra o
solo.
— Mestre Rahl nos ensine. — todos disseram, entrando em maior
harmonia.
Berdine, sua testa contra as lajotas , ainda conseguiu lançar um olhar
feroz em direção a Verna. Verna girou os olhos e inclinou -se para frente,
colocando a testa contra as lajotas .
— Mestre Rahl nos proteja. — ela murmurou, finalmente unindo-se à
Devoção que conhecia e já tinha declarado a Richard em pessoa. — Em sua luz
prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos

224
humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
Verna considerou amargamente como Richard, se ele não se apressass e
e fosse até o exército D’Haraniano, não seria capaz de proteger qualquer pessoa.
Junta, a multidão reunida entoou suavemente a Devoção mais uma vez .
— Mestre Rahl seja nosso guia . Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
— Verna inclinou um pouco em direção a Berdine e sussurrou. — Quantas vezes
teremos que pronunciar a Devoção ?
Berdine, parecendo muito a antiga Mord-Sith, direcionou um olhar sério
para Verna. Ela nada falou . Ela não precisou falar. Verna reconheceu o mesmo
olhar que ela mesma usara incontáveis vezes quando olhava p ara as Noviças que
apresentavam mau comportamento ou jovens magos em treinamento que estavam
sendo extremamente teimosos . Verna desviou os olhos de volta para as lajotas
embaixo dela sentindo -se como uma Noviça outra vez enquanto falava suavemente
o canto junto com o resto das pessoas .
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
O murmúrio da Devoção cantada , na voz reunida de todas as pessoas na
praça, ecoou através dos corredores cavernosos .
Após o olhar que Berdine lançou para ela, Verna considerou que seria
melhor, pelo menos por enquanto , guardar suas objeções para si e pronunciou a
Devoção junto com todos os outros .
Ela falou as palavras com suavidade , pensando nelas, e em quantas vezes
elas provaram ser verdadeiras , pessoalmente. Richard tinha mudado tudo na vida
dela. Verna pensava que a missão mais importante das Irmãs fosse co locar uma
coleira nos pescoços de jovens dotados e treiná -los no uso de sua habilidade .
Richard fez ela sentir-se humilde ao abandonar aquela crença impensada. Ele
mudou tudo, fez ela repensar tudo .
Se não fosse Richard, Verna duvidava que algum dia teria sido reunida
a Warren e que o carinho de um pelo outro tivesse florescido transformando -se
em amor. Nisso, Richard deu a ela a coisa mais grandiosa que ela já teve na vida .
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
A cadência das palavras murmuradas de todas as vozes das pessoas
reunidas uniram-se em um som reverente que espalhou-se até preencher o grande
salão.
Verna sentiu-se tão sozinha, mesmo entre a multidão com tantas pessoas .
Sofreu por causa do quanto sentia falta de Warren. Havia construído um muro ao
redor de seus sentimentos e trancara -se afastando -se de tais pensamentos , assim
como daqueles em volta dela , esperando ser poupada da dor que sempre parecia
espreitar logo abaixo da superfície . Agora ela foi repentinamente dominada pela
tristeza do quanto sentia falta de Warren, do quanto o amara. Ele foi a melhor
coisa que já aconteceu em toda sua vida... e agora ele havia partido. Lágrimas de
sua dor brotaram. Ela sentia-se tão sozinha.
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua m isericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
Verna conteve um gemido quando lembrou de ter beijado Warren pela

225
última vez enquanto ele estava deitado morrendo . Aquele foi o momento mais
pavoroso em toda sua vida. A despeito do tempo que havia passado , parecia como
se tivesse acontecido ontem . Sentia tanta falta dele que isso fez os ossos del a
doerem.
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz pros peramos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
Verna pronunciou as palavras da Devoção junto com todos os outros ,
espalhando seus sentimentos entre eles , novamente e novamente, sem pressa. O
canto murmurado preencheu sua mente. Ela chorou enquanto lembrava do tempo
que teve com Warren.
Lembrou as últimas palavras dele para ela : Me dê um beijo , — Warren
tinha sussurrado — enquanto ainda est ou vivo. E não lamente o que termina, mas
valorize a vida boa que tivemos. Me beije, meu amor .
Dor e saudade torceram suas entranhas . O mundo dela virou cinzas . Nada
parecia valer à pena. Ela não queria mais viver .
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
Verna conteve os soluços enquanto entoava a Devoção . Ela nem ao
menos pensou se alguém estava notando .
Tudo isso não tinha feito sentido, um jovem sem qualquer habilidade
para algo que valesse à pena , sem qualquer interesse em quaisquer valores , sem
utilidade para qualquer um , inclusive para ele mesmo , assassinar Warren apenas
para provar sua lealdade na causa da Ordem Imperial, que era, em essência, que
pessoas como Warren não tinham o direito de viverem suas próprias vidas e ao
invés disso deveriam sacrificar -se de acordo com as vontades de seus assassinos .
Richard lutou para colocar um fim a esse tipo de loucura . Richard lutou
com tudo que tinha contra aqueles que trouxeram esse tipo de brutalidade sem
sentido ao mundo. Richard dedicou-se a acabar com isso para que outros não
tivessem que perder aqueles que amavam como Verna perdeu Warren. Richard
entendeu verdad eiramente a dor dela.
Verna mergulhou no ritmo do canto , permitindo que ele fluísse através
dela. Richard representava tudo por que ela lutava durante toda sua vida. Solidez ,
significado, propósito. Uma Devoção a um homem como esse , ao invés de ser uma
blasfêmia, pareceu algo totalmente correto . De certo modo, por causa de quem
Richard era e aquilo que ele defendia , essa era na verdade uma Devoção em nome
da própria vida ao invés de uma Devoção a um objetivo absurdo .
Richard foi um bom amigo de Warren, o primeiro amigo real dele .
Richard retirou Warren das Câmaras e levou ele para a luz do sol , para o mundo .
Warren adorava Richard.
O suave canto tornara-se um calmante refúgio.
Verna sentiu um caloroso feixe de luz do sol sobre ela quando ele
irrompeu atrav és das nuvens. Ela foi banhada no suave brilho dourado . Ele
envolveu-a em seu calor que pareceu mergulhar dentro dela e tocar sua alma .
Warren gostaria que ela recebesse toda a beleza da vida enquanto ela a
possuía.
No carinhoso toque da luz ela sentiu paz pela primeira vez após muito
tempo.
— Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em

226
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
O suave fluxo das palavras da Devoção , enquanto ela ficava ajoelhada
no caloroso feixe de luz do sol , preencheu-a com uma calma profunda , uma serena
sensação de pertencer a algo que ela jamais sentira . Ela sussurrou as palavras ,
deixando que elas carregassem para longe os fragmentos de dor . Enquanto estava
ajoelhada, sua cabeça contra as lajotas , colocando seu coração e alma na
declaração das palavras, ela sentiu-se livre de qualquer preocupação ; ela foi
imbuída com a simples alegria da vida , e com a reverência por ela. Enquanto
entoava o canto com todas as outras pessoas , ela gozou do gentil brilho de luz d o
sol. Pareceu tão acolhedor , tão protetor. Tão adorável.
Quase pareceu com o abraço caloroso de Warren.
Enquanto cantava junto com todos , de novo e de novo, sem pausa a não
ser para respirar, o tempo deslizou, incidental, despercebido , sem importância
dentro do núcleo de calmaria que ela sentia .
O sino tocou duas vezes , uma agradável, confortadora afirmação de que
a Devoção havia terminado , mas ao mesmo tempo continuaria sempre ali com ela .
Verna levantou os olhos quando sentiu a mão sobre o seu ombro . Era
Berdine sorrindo para ela. Verna olhou ao redor e viu que a maioria das pessoas
já tinha partido. Apenas ela ainda estava curvada para frente sobre as mãos e
joelhos no chão diante do lago . Berdine estava ajoelhada ao lado dela .
— Verna, você está bem?
Ela levantou o corpo ficando sobre os joelhos . — Sim... é que pareceu
tão bom estar na luz do sol .
Berdine fez uma careta. Ela olhou para as gotas de chuva dançando na
água do lago.
— Verna, esteve chovendo o tempo todo .
Verna olhou ao redor quando levantou . — Mas... eu senti. Eu vi o brilho
do feixe de luz ao meu redor .
Então Berdine pareceu compreender e colocou a mão confortadora nas
costas de Verna. — Entendo.
— Você entende?
Berdine assentiu com um sorriso compassivo . — Participar da Devoção
de certa maneira dá a você uma chance de avaliar sua vida e junto com isso traz
conforto em muitas formas . Talvez alguém que ame você venha confortá -lo.
Verna ficou olhando para o leve sorriso no rosto da Mord-Sith. —
Alguma vez isso aconteceu com você ?
Berdine engoliu em seco quando assentiu . Os olhos dela cintilando com
lágrimas disseram que aconteceu .

227
C A P Í T U L O 3 1

Elas seguiram o que parecia com um curso sinuoso, errante , confuso


através do Palácio do Povo , não porque estavam perdidas ou porque estavam
passando o tempo e escolhendo rotas aleatórias quando chegavam a cruzamentos
de corredores, mas porque não havia rota direta .
A complexa passagem confusa pelo labirinto era necessária porque o
lugar não tinha sido construído para acomodar uma facilidade de viagem através
do Palácio, mas, ao invés disso, porque foi construído na explícita forma de um
Feitiço de Poder desenhado sobre a face do solo. Verna achou surpreendente que
essa não fosse apenas uma forma de feitiço similar a feitiços que ela mesma havia
traçado, mas que na verdade ela estivesse dentro dos elementos que formavam o
feitiço. Essa era uma perspectiva inteiramente nova na conjuração e uma que
possuía escala imponente . Uma vez que o Feitiço de Poder para a Casa de Rahl
ainda estava ativo , ela sabia que a configuração da fundação provavelmente teria
sido desenhada com sangue ... sangue de Rahl.
Conforme as duas caminhavam por vastos corredores , Verna não
conseguia superar a sua admiração com a expressiva beleza do lugar , sem falar do
seu tamanho . Ela esteve em grandes lugares no passado , mas a absoluta magnitude
do Palácio do Povo era estonteante . Ele era menos um Palácio e mais uma cidade
na desolada Planície Azrith.
O Palácio sobre o imenso platô era apenas uma parte do vasto complexo .
O interior do platô era como um favo de mel com milhares de salas e passagens ,
e havia incontáveis escadas levando a diferentes rotas pelas câmaras do lado de
dentro. Um grande número de pessoas vendia mercadorias e serviços nos recantos
inferiores do platô. Era uma longa e cansativa escalada por infinitos lances de
escadas para alcançar o elaborado Palácio no topo , que a maioria dos visitant es
que vinham para vender ou fazer compras faziam seus negócios nesses recantos
inferiores, jamais reservando algum tempo para subirem todo o caminho até o
Palácio propriamente dito no topo . Mais pessoas ainda faziam seus negócios em
mercados ao ar livre em volta da base do platô .
Havia uma estrada serpenteante , interrompida por uma ponte , pelo lado
de fora do platô . Mesmo se ela não fosse fortemente defendida ainda seria
virtualmente impossível atacar o Palácio por aquela estrada . O interior do platô
oferecia muitas outras maneiras de subir... havia até rampas usadas por
cavaleiros... mas havia milhares de tropas guardando as passagens internas , e, se
fosse necessário, portas colossais que poderiam ser fechadas , isolando o platô e
o Palácio dentro .
Estátuas em rocha negra em pé de cada um dos lados de um largo
corredor em mármore branco observavam Verna e Berdine enquanto elas seguiam
pelo longo corredor . Luz de tochas refletiam no mármore negro polido das
enormes sentinelas, fazendo elas parecerem quase vivas . A cor contrastante da
rocha, o estatuário negro em um corredor de mármore branco , adicionava uma
sensação agourenta na passagem .
A maioria das escadarias que elas subiam eram bastante largos , algumas
com balaustradas de mármore polido com mais de um braço de comprimento .
Verna achou a variedade de rochas dentro do Palácio espetacular . Parecia como
se cada vasta sala, cada passagem, cada escadaria tivesse sua própria combinação

228
de cores. Algumas das áreas mais utilitárias ou de s erviço pelas quais Berdine as
conduziu eram feitas com calcário bege claro, enquanto as áreas públicas mais
importantes eram compostas por cores surpreendentemente vívidas em padrões
contrastantes que transmitiam uma animadora sensação de vida e exaltação ao
espaço. Alguns dos corredores privados que serviam como atalhos para oficiais
tinham painéis de madeira altamente polida iluminada por lanternas com
refletores prateados que adicionavam luz aconchegante .
Enquanto alguns daqueles corredores privados eram relativamente
pequenos, as passagens principais tinham vários andares de altura . Algumas das
maiores ramificações principais da Forma de Feitiço estavam iluminadas de cim a
por janelas no teto que deixavam os raios de luz entrar em. Fileiras de colunas de
cada um dos lados erguiam -se até o teto, longe acima. Sacadas, entre aqueles
pilares, contemplavam as pessoas que passavam abaixo . Em vários l ugares havia
passarelas que cruzavam acima da cabeça de Verna. Em um ponto , ela viu dois
níveis de passarelas , uma acima da outra.
Às vezes elas tinham que subir até alguns daqueles níveis mais altos ,
cruzar pontes sobre as passagens e então descer novamente dentro de uma
ramificação diferente de corredores , apenas para mais uma vez terem que subir
outra vez em outro l ocal. A despeito do sobe e desce da rota serpenteante , elas
seguiam caminho firmemente cada vez mais alto dentro do centro do Palácio .
— Por aqui. — falou Berdine quando alcançou um par de portas de
mogno.
As portas tinham duas vezes a altura de Verna. Entalhadas no rosto do
mogno escuro estavam um par de serpentes , uma em cada porta, suas caudas
enrolavam-se ao redor de galhos mais altos com seus corpos pendurados de forma
que as cabeças estavam ao nível dos olhos . Presas projetavam -se das bocas
abertas, como se as duas estivessem prestes a atacar . Os puxadores das portas,
não muito mais baix os do que as cabeças das serpentes , eram de bronze claro com
uma pátina que denunciava sua idade . Os puxadores eram crânios sorridentes em
tamanho real .
— Adorável. — Verna murmurou.
— Elas são um alerta. — disse Berdine. — Possuem o objetivo de avisar
para que as pessoas não entrem .
— Não podiam simplesmente ter pintado “Não entrem” na porta ?
— Nem todos conseguem ler . — Berdine ergueu uma sobrancelha. —
Nem todos que conseguem admitiriam isso quando fossem pegos abrindo a porta .
Isso não fornece a eles uma desculpa para cruzar a soleira inocentemente e faz
com que saibam que não terão um pretexto quando confrontados pelos guardas .
Com o calafrio que a vi são das portas causou nela , Verna podia imaginar
que quase todos prestariam bastante atenção . Berdine atirou seu peso no esforço
de abrir a pesada porta da direita .
Do lado de dentro de uma sala aconchegante, acarpetada, com painéis
do mesmo mogno que as a ltas portas, mas sem as serpentes entalhadas , quatro
grandes soldados montavam guarda . Eles pareciam mais ameaçadores do que os
crânios de bronze.
O soldado mais próximo entrou casualmente no caminho delas . — Essa
área é restrita.
Berdine, exibindo uma exp ressão sombria, desviou do homem . — Bom.
Providencie para que continue assim .
Lembrando muito bem que seu poder era quase inútil dentro do Palácio ,
Verna seguiu bem perto dos calcanhares de Berdine. O soldado , aparentemente

229
não estando ansioso para segurar a Mord-Sith, ao invés disso emitiu um assovio
que deixou sair um som agudo , sem dúvida usado porque tal som subiria as
escadarias até outros guardas em patrulha . Os dois soldados mais distantes ,
porém, caminharam para bloquear o caminho através da sala .
Um dos dois ergueu uma das mãos , como que educadamente , ordenando
que elas parassem. — Sinto muito , Senhora, mas como ele disse e como você
deveria saber muito bem , essa é uma área restrita .
Berdine colocou uma das mãos sobre um quadril . Seu Agiel girou pa ra
o seu outro punho. Ela gesticulou com ele enquanto falava .
— Uma vez que nós dois servimos a mesma causa , não vou matá-lo aqui
mesmo. Fique agradecido por eu não estar usando couro vermelho hoje , ou eu
poderia reservar um tempinho para ensinar você a te r um pouco de educação.
Como você deveria saber muito bem , Mord-Sith são guarda-costas pessoais do
próprio Lorde Rahl e para nós não existe restrições para qualquer lugar que
escolhemos ir.
O homem assentiu. — Estou bem ciente disso . Mas não tenho visto você
por aqui no Palácio faz bastante tempo...
— Eu estive com Lorde Rahl.
Ele limpou a garganta. — Seja como for, desde que você esteve longe o
General Comandante aumentou a segurança nessa área .
— Bom. Para falar a verdade , estou aqui para falar com o General
Comandante Trimack justamente sobre esse assunto .
O homem fez uma reverência . — Muito bem, Senhora. No topo das
escadas. Alguém vai atender o seu desejo .
Quando os dois guardas afastaram -se, Berdine mostrou um sorriso falso
e passou entre eles , Verna logo atrás.
Cruzando por espessos tapetes dourados e azuis , elas chegaram até uma
escadaria feita de um rico mármore cor de trigo cheio de nervuras cor de ferrugem .
Verna nunca tinha visto uma rocha como essa . Era surpreendentemente bela , com
balaústres polidos em forma de vaso e um largo corrimão que era liso e frio sob
os dedos dela.
Mudando a direção em um largo patamar , ela avistou no topo da
escadaria não apenas soldados em patrulha , mas o que parecia ser todo um exército
aguardando por elas . Esses não seriam homens pelos quais Berdine conseguiria
passar tão facilmente .
— O que você acha que todos esses soldados estão fazendo aqui ? —
Verna perguntou.
— Subindo ali e então descendo um corredor , — Berdine respondeu em
voz baixa. — está o Jardim da Vida. Tivemos problemas lá no passado .
Essa era justamente a razão pela qual Verna queria checar as coisas . Ela
podia ouvir ordens sendo passadas e o som de metal retinindo quando homens
vieram correndo.
Elas foram recebidas no topo da escadaria por dúzias dos guardas,
muitos com armas em punho . Verna not ou que havia muito mais dos homens
usando luvas pretas e carregando bestas . Porém, dessa vez as bestas estavam
armadas e carregadas com as flechas de penas vermelhas .
— Quem está no comando aqui ? — Berdine perguntou a todos os rostos
jovens que olhavam para ela .
— Eu estou. — um homem mais maduro gritou quando abria caminho
através de um anel de soldados . Ele tinha olhos azuis penetrantes , mas eram as
cicatrizes pálidas em sua bochecha e mandíbula que chamar am a atenção de Verna.

230
O rosto de Berdine iluminou-se ao ver o homem . — General Trimack!
Homens abriram caminho para ele enquanto ele caminhava até a frente .
Ele observou Verna deliberadamente antes de voltar sua atenção para Berdine.
Verna pensou ter detectado o mais leve sorriso .
— Benvinda de volta, Senhora Berdine. Não tenho visto você faz um
bom tempo.
— Parece uma eternidade. É bom estar em casa. — ela ergueu uma das
mãos para Verna fazendo uma apresentação . — Essa é Verna Sauventreen, a
Prelada das Irmãs da Luz . Ela é uma amiga pessoal de Lorde Rahl e está no
comando dos dotados com as forças D’Haranianas .
O homem baixou a cabeça mas manteve seu olhar cauteloso nela . —
Prelada.
— Verna, esse é o General Comandante Trimack da Primeira Fileira do
Palácio do Povo em D'Hara.
— Primeira Fileira?
— Quando ele está em seu Palácio , nós somos o anel de aço ao redor de
Lorde Rahl, Prelada. Caímos até o último homem antes que algum mal chegue
perto dele. — os olhos dele saltavam entre as duas . — Por causa da gr ande
distância, só conseguimos sentir que Lorde Rahl está em algum lugar longe a
oeste. Será que você saberia onde Lorde Rahl está, exatamente? Tem alguma ideia
de quando ele estará de volta conosco ?
— Tem muitas pessoas querendo saber a resposta para essa pergunta,
General Trimack . — disse Verna. — Sinto dizer que você terá que entrar no final
de uma fila bem longa.
O homem pareceu genuinamente desapontado . — E quanto a guerra?
Você tem alguma notícia ?
Verna assentiu. — A Ordem Imperial dividiu suas forças .
Os soldados olharam uns para os outros . O rosto de Trimack endureceu
de preocupação enquanto ele aguardava que ela explicasse melhor .
— A Ordem deixou uma considerável parte de sua força do outro lado
das montanhas , subindo perto de Aydindril em Midlands. Tivemos que deixar
homens e alguns dos dotados desse lado das montanhas para guardar as passagens
de forma que o inimigo não consiga atravessar e entrar em D'Hara. Um largo
contingente das melhores tropas da Ordem nesse momento estão seguindo de volta
através de Midlands. Acreditamos que o plano deles é levar sua força principal
para contornar as montanhas e então eventualmente fazer o retorno e subir para
atacar D'Hara do sul. Estamos levando nosso exército principal em direção ao sul
para encarar o inimigo.
Nenhum dos homens falou uma palavra . Eles permaneceram mudos , não
mostrando reação diante, provavelmente, das notícias mais alarmantes que eles já
receberam em suas vidas . Esses realmente eram homens de aço.
O General passou uma das mãos pelo rosto, como se toda a preocupação
deles estivesse concentrada nele . — Então nosso exército vindo ao sul está perto
do Palácio.
— Não. Eles ainda estão a uma certa distância ao norte . Exércitos não
movem-se rapidamente a não ser que seja necessário . Uma vez que não temos
tanta distância para cobrir quanto a Ordem , e Jagang move suas tropas em um
passo lento, concluímos que seria melhor mantermos nossos homens saudáveis e
fortes, ao invés de exaurir eles em uma longa corrida para o sul. Berdine e eu
cavalgamos na frente porque era urgente que eu examinasse alguns dos livros que
estão aqui... em assuntos relacionados com magia . Enquanto estou aqui , pensei

231
que deveria checar as coisas no Jardim da Vida para certificar-me de que tudo
está seguro.
O homem suspirou enquanto tamborilava com os dedos no cinto de
armas. — Gostaria de ajudar você , Prelada, mas tenho ordens de três magos para
manter todos longe de lá . Eles foram bastante específicos : ninguém, nem mesmo
a equipe de jardinagem , deve ter permissão de entrar lá.
A testa de Verna franziu. — Quais três magos?
— O Primeiro Mago Zorander, o Lorde Rahl em pessoa, e por último o
mago Nathan Rahl.
Nathan. Ela devia saber que ele estaria tentando fazer com que parecesse
importante no Palácio , sem dúvida fazendo o papel de ser um Rahl dotado , um
ancestral de Richard. Verna imaginou em que outros problemas o homem estivera
remexendo enquanto estava no Palácio do Povo .
— General Comandante, eu sou uma Irmã, e Prelada das Irmãs da Luz .
Estou lutando do mesmo lado que vocês.
— Irmã, — ele falou lançando um olhar acusador com o canto dos olhos
que somente um oficial do exército poderia exibir . — nós já recebemos a visita
de uma Irmã. Há dois anos. Vocês lembram, companheiros? — ela olhou ao redor
para os rostos séri os antes de virar novamente em direção a Verna. — De cabelo
castanho ondulado até a altura dos ombros , mais ou menos do seu tamanho ,
Prelada. Ela não tinha o dedinho da mão direita . Talvez você lembre dela ? Uma
das suas Irmãs, eu acredito .
— Odette. — Verna con firmou acenando com a cabeça . — Lorde Rahl
me contou sobre o problema que vocês tiveram com ela . Ela era uma Irmã perdida ,
você poderia dizer.
— Eu realmente não me importo em que lado da graça do Criador ela
estava no dia em que nos visitou . Só sei que ela matou quase trezentos homens
entrando no Jardim da Vida . Trezentos! Ela matou quase cem homens quando
estava saindo. Nós estávamos indefesos contra ela . — enquanto o rosto dele ficava
vermelho, suas cicatrizes destacaram -se mais ainda. — Você sabe como é ver
homens morrendo e não ser capaz de fazer alguma coisa a respeito ? Sabe como é
não apenas ser responsável pelas vidas deles mas saber que o seu dever é mantê -
la fora de lá... e não ser capaz de fazer qualquer coisa para deter a ameaça ?
O olhar de Verna desviou dos olhos azuis do homem . — Sinto muito,
General. Mas ela estava lutando contra Lorde Rahl. Eu não estou. Estou do lado
de vocês. Estou lutando para deter pessoas como ela .
— Isso pode ser verdade, mas as minhas ordens tanto de Zedd quanto do
Lorde Rahl em pessoa... depois que ele matou aquela mulher vil... são que
ninguém mais deve ter permissão de entrar lá . Ninguém. Se você fosse a minha
mãe eu não poderia deixar você entrar lá .
Algo não fazia sentido para ela .
Verna inclinou a cab eça. — Se a Irmã Odette conseguiu entrar lá , e você
e seus homens não conseguiram detê -la... — ela ergueu uma sobrancelha. — então
o que faz você pensar que pode me impedir ?
— Não gostaria que chegasse a esse ponto , mas, se for necessário, dessa
vez temos os meios para cumprir nossas ordens . Não estamos mais indefesos .
Verna franziu a testa . — Do que você está falando ?
O General Comandante Trimack tirou uma luva negra do cinto e colocou -
a, flexionando seus dedos para encaixar a luva completamente em sua mão . Com
o dedão e o indicador da sua mão enluvada , ele tirou cuidadosamente uma flecha
com pena vermelha do suporte para seis em uma aljava no cinto de um soldado ao

232
lado dele. O soldado já estava com uma das flechas preparada em sua besta ,
deixando quatro no suporte especial da aljava.
Segurando a flecha pela ponta traseira , o General Trimack levantou a
ponta de aço afiada diante do rosto de Verna para que ela pudesse ver bem de
perto. — A ponta dela tem mais do que aço . Sua ponta tem o poder para derrubar
aqueles que possuem magia .
— Ainda não sei do que você está falando .
— A ponta dela tem magia que dizer ser capaz de penetrar qualquer
escudo que um dotado pode erguer .
Verna moveu um braço e com um dedo tocou cautelosamente a ponta da
flecha. A dor espalhou-se por sua mão e o pulso antes que ela conseguisse recuar
o braço. A despeito de seu dom estar sendo reduzido dentro do Palácio , ela não
teve dificuldade para detectar a poderosa aura gerada pela teia de magia que havia
sido colocada em volta da ponta mortal. Essa realmente era uma arma potente .
Mesmo com todos os seus poderes , os dotados certamente estariam com problemas
se encontrassem com uma dessas flechas vindo em direção a eles .
— Se vocês possuem essas flechas , então porque não conseguiram deter
a Irmã Odette?
— Não tínhamos elas naquele momento .
A expressão de Verna ficou ainda mais sombria . — Então onde vocês as
conseguiram?
O General sorriu com a satisfação de um homem que sabia que não
ficaria indefeso novamente contra um inimigo dotado . — Quando o Mago Rahl
esteve aqui ele perguntou a respeito de nossas defesas . Falei para ele sobre o
ataque da feiticeira e como ficamos impotentes contra o poder dela . Ele procurou
no Palácio e encontrou essas armas . Aparent emente elas estavam em algum luga r
seguro onde somente um mago conseguiria pegá -las. Ele é quem abastece meus
homens com as flechas e as bestas para dispará -las.
— Que bondade do Mago Rahl.
— Sim, foi mesmo.
O General recolocou cuidadosamente a flecha no suporte especial da
aljava que mantinha as flechas separadas . Agora ela entendia porque aquilo era
necessário. Não havia como dizer o quão antigas essas armas realmente eram , mas
Verna suspeitou que eram relíquias da Grande Guerra .
— O Mago Rahl nos instruiu sobr e como manusear essas armas
perigosas. — ele levantou a mão e balançou os dedos enluvados . — Ele nos disse
que sempre devemos usar essas luvas especiais para manusear as flechas .
Ele removeu a luva e enfiou -a atrás do cinto junto com o par dela . Verna
cruzou as mãos diante de si , soltando um forte suspiro e com ele reunindo o
cuidado para colocar suas palavras .
— General, eu conheço Nathan Rahl desde um longo tempo antes que a
sua avó tivesse nascido . Nem sempre ele é cauteloso a respeito dos perigos
envolvidos nas coisas que ele faz . Se eu fosse você , manusearia essas armas com
o máximo cuidado, e trataria qualquer coisa que ele disse a respeito delas , mesmo
casualmente, como uma questão de vida ou morte .
— Está sugerindo que ele é descuidado?
— Não, não deliberadamente, mas ele geralmente tende a menosprezar
os assuntos que considera ... inconvenient es. Além disso, ele é muito idoso e muito
talentoso, então às vezes é fácil para ele esquecer justamente o quanto ele conhece
mais sobre alguns assuntos bastan te arcanos do que a maioria das pessoas , ou que
ele consegue fazer coisas com o Dom dele que elas não são capazes de fazer ,

233
muito menos compreender . Você pode dizer que ele é como uma homem idoso que
esquece de falar aos visitantes que o cachorro dele mord e.
Homens subindo e descendo o corredor trocaram olhares . Alguns deles
levantaram uma sobrancelha ou afastaram a mão das aljavas em seus cintos .
O General Trimack engatou o dedão no cabo da espada curta em sua
bainha no quadril esquerdo dele . — Ainda que eu considere com seriedade o seu
aviso, Prelada, espero que você entenda que eu também levo a sério as vidas das
centenas de meus homens que morreram na última vez em que uma Irmã apareceu
e nós estávamos indefesos contra a magia dela . Eu levo a sério as vi das desses
homens aqui . Não quero que qualquer coisa parecida com aquilo aconteça outra
vez.
Verna molhou os lábios e lembrou a si mesma que o homem estava
apenas fazendo seu trabalho . Com a forma que o Palácio drenava o Han dela , ela
sentia uma desconfortável empatia com a sensação dele a respeito de estar
impotente.
— Eu entendo, General Trimack. — ela moveu para trás uma mecha de
cabelo. — Eu também conheço o peso da responsabilidade com as vidas de outros .
É claro que as vidas dos seus homens são valiosas e qualquer coisa que impeça o
inimigo de tirar essas vidas vale à pena . É pensando assim que aconselho você a
ser cuidadoso com armas que estão imbuídas com magia . Coisas como essas
normalmente não são projetadas para o uso não supervisionado dos não dotados.
O homem assentiu uma vez . — Vamos considerar com seriedade o seu
conselho.
— Bom, então você também deveria saber que aquilo que está naquela
sala é perigoso ao extremo . É um perigo para todos nós . Seria do interesse de nós
todos se, enquanto estou aqui , eu apenas me certificasse de que aquilo está em
segurança.
— Prelada, eu entendo a sua preocupação , mas você deve compreender
que minhas ordens não permitem espaço para abrir exceções . Simplesmente não
posso permitir que você entre lá com a sua palavra de que você é quem diz ser ,
ou que sua intenção é somente nos ajudar . E se você fosse uma espiã ? Uma
traidora? O próprio Guardião em carne e osso ? Ainda que você possa ser uma
mulher de aparência sincera , eu não cheguei ao posto de Genera l Comandante
deixando mulheres atraentes me convencerem através da conversa a fazer coisas .
Verna ficou momentaneamente surpresa por ser chamada de uma “mulher
atraente” na frente de todas essas pessoas .
— Mas posso assegurar -lhe pessoalmente que ninguém e steve lá desde
que o próprio Lorde Rahl esteve ali por último . Nem mesmo Nathan Rahl entrou
lá. Tudo no Jardim da Vida permanece intocado .
— Eu entendo, General. — levaria um longo tempo antes que ela algum
dia retornasse ao Palácio . Não havia como dizer o nde Richard estava ou quando
ele retornaria . Ela esfregou os dedos na testa enquanto avaliava o dilema . —
Vamos fazer o seguinte , que tal se eu não entrar e ao invés disso apenas ficar no
portal... do lado de fora do Jardim da Vida... e olhar lá dentro para ter certeza de
que as três caixas guardadas lá estão seguras . Você pode até mandar uma dúzia
dos seus homens apontarem aquelas flechas mortais para as minhas costas .
Ele mastigou o lábio enquanto pensava . — Homens na sua frente,
homens dos lados, e homens atrás estarão com você sob as pontas de suas flechas
e os dedos deles estarão nos gatilhos . Você pode olhar entre meus homens , através
do portal, para dentro do Jardim da Vida , mas não pode cruzar a soleira sob pena
de morte.

234
Na realidade Verna não precisava chegar perto o bastante para tocar nas
caixas. Para falar a verdade , ela nem mesmo queria chegar perto delas . Tudo que
ela realmente queria fazer era certificar -se de que elas não foram tocadas por
qualquer outra pessoa. Ao mesmo tempo, não estava exatamente confortável com
a ideia de todos aqueles homens apenas um dedo de disparar uma daquelas flechas
mortais nela. Afinal de contas, a ideia de checar as Caixas de Orden surgiu apenas
depois, uma vez que ela já estava no Palácio . Ela não viera ao Palácio por causa
disso. Mesmo assim , ela estava tão perto .
— Barganha aceita, General. Só preciso ver que elas estão em segurança
para que todos possamos dormir um pouco mais tranquilos .
— Eu gostaria de dormir mais tranquilo .
Berdine e Verna, com um anel de guardas cercando-as, foram conduzidas
pelo General Comandante Trimack descendo por uma larga passagem de granito
polido. Colunas espaçadas contra a parede emolduravam grandes blocos de rocha
como se eles fossem obras de arte . Para Verna, eram uma evidê ncia visual da mão
do Criador, um trabalho de arte do Jardim que ele cultivara que era o mundo dos
vivos. O som de todos os homens movendo -se junto com elas ecoou subindo e
descendo o grande corredor enquanto eles passavam por uma série de cruzamentos
que eram braços da Forma de Feitiço todos seguindo de volta até o centro que era
o Jardim da Vida. Finalmente eles chegaram até um par de portas cobertas por
entalhes de colinas e florestas banhadas em ouro .
— Além está o Jardim da Vida. — o General disse a el a com um tom
sério.
Quando soldados cercaram -na, erguendo suas bestas , o General começou
a abrir uma das grandes portas . Alguns dos homens ao s lados e atrás apontaram
suas flechas para a cabeça dela . Os quatro homens que moviam -se na frente dela
apontaram suas bestas para o coração dela . Pelo menos ela estava aliviada que
aqueles na frente não apontavam suas flechas para seu rosto . Ela considerava que
a coisa toda era uma tolice , mas sabia muito bem que esses homens estavam agindo
com total seriedade, então ela tratou o assunto da mesma forma .
Quando a porta coberta por ouro ficou bem aberta , Verna, presa com seu
grupo de assassinos pessoais , inclinou-se até a abertura para que pudesse ver . Ela
teve que esticar o pescoço e finalmente empurrar gentilmente como uma das mãos
para que um dos homens afastasse um pouquinho para o lado e ela pudesse ter
uma visão clara dentro da grande sala .
Do corredor fracamente iluminado , Verna espiou ali dentro e viu que os
céu iluminavam o lugar em toda sua glória através de altas janelas acima. Ela
estava surpresa em ver que por todo o caminho subindo no centro do Palácio do
Povo, o Jardim da Vida parecia ... um jardim exuberante.
De acordo com o que ela conseguia ver , ao redor do lado de fora da sala
caminhos pavimentados seguiam através de camas de flores . O chão estava
coberto por pétalas , algumas ainda em cores vivas vermelha e amarela mas a
maioria há muito estavam secas e murchas . Além da flores cresciam pequenas
árvores e além delas estavam muros de pedra baixos cobertos por videiras . Dentro
dos muros havia uma variedade de arbustos e plantas ornamentais , ainda que
estivessem com má aparência devido a falta de cuidados . Muitas estavam
abarrotadas com ramos novos e longos e precisavam de poda . Outras estavam
infestadas por vinhas invasivas . Parecia que o General Trimack estava falando a
verdade de que ninguém , nem mesmo os jardineiros , tiveram permissão de entrar
no lugar.
No Palácio dos Profetas eles tinham um jardim interno , ainda que em

235
uma escala muito menor . Havia um sistema de canos vindos de um conjunto de
barris sobre o teto que mantinham o jardim abastecido com água . Reconhecendo
canos similares em um canto , Verna percebeu que a água da chuva coletada no
teto fornecia um suprimento constante de água nesse lu gar assim como em toda
parte no Jardim, que iluminado por uma luz tão maravilhosa , ficaria seco e morto .
No centro da gigantesca sala existia uma área com grama que espalhava-
se quase em um círculo, o anel de grama era interrompido por calçada de rocha
branca. Sobre aquela rocha estavam dois pedestais que guardavam um pedaço de
granito liso.
Sobre o altar de granito estavam três caixas , suas superfícies com uma
cor negra tão profunda que ela quase ficava surpresa que elas não sugass em
completamente a luz da sala e mergulhassem o mundo todo junto com ela dentro
de uma escuridão eterna do Submundo. Apenas a visão daquelas coisas sinistras
fez parecer que o coração dela subiria por sua garganta .
Verna conhecia as três cai xas com a denominação de “o portal ”, e elas
eram exatamente o que o nome sugeria. Nesse caso , juntas elas eram uma espécie
de portal entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos . O portal era construído
com a magia de ambos os mundos . Se aquela passagem entre os mundos a lgum dia
fosse desfeita, o Véu seria rasgado e o selo estaria aberto para O Sem Nome ... o
Guardião dos Mortos .
Uma vez que a informação estivera somente em livros altamente
restritos , apenas algumas pessoas no Palácio dos Profetas conheciam o portal por
seu antigo nome, as Caixas de Orden. As três caixas trabalhavam em conjunto , e
juntas elas constituíam o portal. Até onde qualquer um no Palácio dos Profetas
soubera, o portal estivera perdido por mais de três mil anos . Todos pensavam que
ele havia sumido, desaparecido definitivamente . Houve até mesmo especulação
durante séculos se um portal como esse realmente existia ou não . Se um portal
como esse poderia ao menos existir foi motivo de muito debate teológico
acalorado.
O portal... as Caixas de Orden... existiam mesmo, e Verna estava
sentindo dificuldade em desviar os olhos delas .
Ver tais coisas vis fez o coração dela disparar . Suor frio umedeceu o seu
vestido.
Foi uma coisa maravilhosa que os três magos tivessem ordenado ao
General que não permitisse a ent rada naquela sala . Verna reconsiderou sua
opinião a respeito de Nathan por equipar a Primeira Fileira com armas tão
perigosas.
A cobertura com joias havia sido removida, deixando as sinistras caixas
negras expostas , porque Darken Rahl havia colocado as cai xas em atividade e
tinha planejado usar o poder de Orden para reivindicar o domínio sobre o mundo
dos vivos. Felizmente, Richard deteve ele.
Porém, roubar as caixas agora não faria bem algum a um ladrão .
Informação extensa era requerida para entender como a magia de Orden
funcionava e como funcionava o portal. Parte daquela informação estava contida
em um livro que não existia mais a não ser na mente de Richard. Isso, de fato, foi
parte da maneira como ele havia derrotado Darken Rahl.
Além do vasto conhecimento e informação , qualquer ladrão também
precisaria ter a Magia Aditiva e a Magia Subtrativa para usar o portal ou invocar
o poder de Orden para si.
Provavelmente o verdadeiro perigo seria para qualquer pessoa tola o
bastante para manusear coisas tão traiçoeiras como essas.

236
Verna suspirou de alívio ao ver as três caixas intocadas , exatamente
onde Richard disse que as deixara . Por enquanto , não havia lugar mais seguro
para guardar esse tipo de magia perigo sa. Algum dia, talvez Verna pudesse ajudar
a encontrar uma maneira de destruir o portal... se uma coisa assim ao menos fosse
possível... mas por enquanto elas estavam seguras . — Obrigada, General Trimack.
Estou aliviada em ver que tudo está do jeito como d everia estar.
— E continuará desse jeito. — ele disse enquanto apoiava seu peso
contra a porta. Ela moveu-se fechando sem fazer barulho . — Ninguém entrará lá
a não ser Lorde Rahl.
Verna sorriu para o homem. — Bom. — ela olhou ao redor para o
magnífico Palácio em volta dela, a ilusão de permanência, paz, e segurança que
ele transmitia. Se ao menos fosse assim . — Bem, acho que precisamos seguir
nosso caminho . Tenho que retornar até nossas forças . Direi ao General Meiffert
que as coisas aqui no Palácio est ão em boas mãos. Vamos torcer para que Lorde
Rahl junte-se a nós em breve e que possamos deter a Ordem Imperial antes mesmo
que eles cheguem até esse ligar . A profecia diz que se ele unir -se a nós para a
batalha final, temos uma chance de esmagar a Ordem I mperial, ou pelo menos
expulsá-los de volta para o Mundo Antigo .
O General acenou com a cabeça de forma séria para ela . — Que os bons
espíritos estejam com você , Prelada.
Com Berdine ao lado dela, Verna seguiu o caminho de volta para fora
da área restrita e para longe do Jardim da Vida . Quando elas desceram as
escadarias mais uma vez , ela estava feliz por estar retornando ao exército , mesmo
que estivesse preocupada com a missão deles . Ela percebeu que desde a sua vinda
até o Palácio ela estava com uma sensação maior de comprometimento , e com uma
sensação maior de conexão com aquilo que tornara -se o Império D’Haraniano sob
o governo de Richard. Mais do que isso, ela parecia importar -se mais com a vida.
Mas se não encontrassem Richard e o fizessem liderar suas forças na
batalha que enfrentariam quando finalmente encontrassem com a Ordem Imperial ,
então a missão para deter o exército de Jagang era suicídio.
— Prelada? — Berdine falou quando fechou a porta com a serpente
entalhada nela.
Verna parou e esperou enquanto a mulher batia levemente com a palma
da mão sobre o puxador de bronze em forma de crânio da porta.
— O que foi , Berdine?
— Acho que eu deveria ficar aqui .
— Ficar? — Verna encarou o olhar da Mord-Sith. — Mas porquê?
— Se Ann encontrar Lorde Rahl e levá-lo até o exército , ele terá você e
outras Mord-Sith que estão lá para protegê -lo... e ele estará onde você diz que ele
precisa estar. Mas talvez ela não o encontre .
— Ela tem que encontrar. Richard também está ciente do peso da
profecia e sabe que deve estar lá na batalha final . Mesmo se Ann não encontrá-lo,
eu tenho fé que ele virá juntar -se a nós.
Berdine balançou os ombros com a dificuldade de encontrar as palavras
certas. — Talvez. Mas talvez não . Verna, eu passei bastante tempo com ele . Ele
não pensa desse jeito. A profecia não significa tanto para ele quanto significa
para você.
Verna soltou um suspiro . — Você falou bem, Berdine.
— Esse é o lar de Lorde Rahl, mesmo que ele nunca tenha realmente
morado aqui a não ser como cativo . Ainda assim , ele passou a importar -se conosco
como o povo dele , e seus amigos. Passei algum tempo com ele ; sei o quanto ele

237
preocupa-se conosco e sei que ele está ciente do quanto todos nós nos
preocupamos com ele. Talvez ele sinta necessidade de vir para casa .
— Se ele fizer isso, acredito que eu deveria estar aqui para ele . Ele
precisa de mim para ajudá -lo com livros , com traduções... pelo menos , eu gosto
de acreditar que ele precisa . De qualquer modo, ele faz com que eu me sinta
importante para ele. Não sei , só acho que eu deveria permanecer no Palácio caso
ele venha aqui. Se vier, ele precisará saber que você está tentando encontrá -lo
desesperadamente. Precisará saber da iminente batalha final .
— A sua ligação diz onde ele está ?
Berdine apontou para oeste. — Em algum lugar naquela direção , mas
muito distante.
— O General falou a mesma coisa . Isso só pode significar que pelo
menos Richard está no Mundo Novo outra vez . — Verna encontrou um motivo
para sorrir. — Após tanto tempo. É muito bom saber ao menos isso .
— Quanto mais perto estiverem aqueles que possuem a ligação com ele ,
melhor eles poderão ajudá -la a encontrá-lo.
Verna pensou naquilo durante um momento . — Bem, sentirei falta da
sua companhia, Berdine, mas acho que deve fazer o que achar mais adequado e
tenho que admitir que aquilo que você quer fazer tem algum sentido . Em quanto
mais lugares vigiarmos esperando que ele apareça , melhores são as chances de
encontrá-lo em tempo.
— Realmente acredito que a coisa certa para mim é permanecer aqui .
Além disso , quero estudar alguns dos livros e tentar encaixar algumas das coisas
que Kolo diz. Tem algumas coisas me incomodando . Talvez se eu descobrir isso ,
eu possa até ajudar Lorde Rahl a vencer aquela batalha final .
Verna assentiu com um sorriso triste . — Vai me acompanhar até a saída ?
— É claro.
As duas viraram em direção ao som de passos . Era outra Mord-Sith,
usando couro vermelho . Ela era loura , e mais alta do que Berdine. Os olhos azuis
penetrantes dela observaram Verna com o tipo de avaliação calculad a que
entregava sua destemida confiança.
— Nyda! — falou Berdine.
A mulher sorriu com um lado da boca quando chegou ao corredor . Ela
colocou uma das mãos no ombro de Berdine, um gesto que Verna reconheceu como
sendo algo o mais próximo possível de júbilo e ntre as Mord-Sith, exceto talvez
para Berdine.
Nyda olhou Berdine dos pés até a cabeça , seus olhos contemplando -a.
— Irmã Berdine, já faz algum tempo. D'Hara esteve solitária sem a sua presença .
Benvinda ao lar .
— É bom estar em casa e ver o seu rosto nov amente.
O olhar de Nyda desviou para Verna. De repente Berdine pareceu ter
lembrado.
— Irmã Nyda, essa é verna, a Prelada das Irmãs da Luz . Ela é uma amiga
e conselheira de Lorde Rahl.
— Ele está a caminho daqui ?
— Não, infelizmente. — disse Berdine.
— Então vocês duas são irmãs ? — perguntou Verna.
— Não. — Berdine falou, balançando a mão para descartar a ideia . — É
mais como você chamar as outras mulheres do seu grupo de “Irmã” . Nyda é uma
velha amiga.
Nyda olhou ao redor . — Onde está Raina?

238
O rosto de Berdine ficou pálido diante da menção inesperada daquele
nome. Sua voz transformou -se em um sussurro . — Raina morreu.
O rosto de Nyda estava ilegível. — Eu não sabia, Berdine. Ela morreu
bem, com seu Agiel na mão?
Berdine engoliu em seco enquanto olhava para o chão . — Ela morreu
com a praga. Lutou até o último suspiro ... mas no final aquilo levou -a. Ela morreu
nos braços de Lorde Rahl.
Verna achou que conseguiu detectar que os olhos azuis de Nyda estavam
um pouco mais umedecidos quando ela olhou para sua irmã Mord-Sith.
— Sinto muito, Berdine.
Berdine l evantou os olhos . — Lorde Rahl chorou quando ela morreu .
Pela expressão de surpresa no rosto de Nyda, Verna podia ver que não
era normal o Lorde Rahl preocupar-se se uma Mord-Sith vivia ou morria. De
acordo com a expressão de admiração que emergiu, tal reverência por uma delas
era uma homenagem de grandes proporções .
— Ouvi histórias assim a respeito desse Lorde Rahl. Então elas são
verdadeiras?
Berdine sorriu radiante. — Elas são verdadeiras .

239
C A P Í T U L O 3 2

— O que você está lendo que é tão interessante ? — Rikka perguntou


quando usou um ombro para fechar a grossa porta .
Zedd grunhiu com desgosto antes de levantar os olhos do livro aberto
diante dele. — Páginas em branco. — através da janela arredondada à esquerda
dele, ele podia ver os telhados da cidade de Aydindril espalhando-se bem distante
abaixo. Na luz dourada do sol poente a cidade parecia linda , mas aquela aparência
era uma ilusão . Depois que todas as pessoas se foram , fugindo para salvarem suas
vidas antes das hordas de invasores , a cidade não era mais do que uma casca vazia,
sem vida, como as peles descartadas das cigarras que haviam emergido
recentemente.
Rikka inclinou-se em direção a ele sobre a magnífica mesa polid a e
inclinou a cabeça para ver melhor enquanto espiava o livro . — Não está totalmente
em branco. — ela anunciou . — Você não pode ler algo que está em branco . Logo
você deve estar lendo o que está escrito , não os lugares em branco . Você deveria
tentar ser m ais preciso naquilo que diz , se não... pelo menos mais honesto .
A expressão de Zedd ficou mais sombria quando seu olhar encontrou
com o dela. — Às vezes aquilo que não é dito tem mais significado do que aquilo
que é. Alguma vez v ocê já pensou nisso ?
— Está pedindo para que eu fique calada ? — ela colocou sobre a mesa
uma larga tigela de madeira contendo o jantar dele . A fumaça subindo carregava
o aroma de cebolas, alho, vegetais e carne suculenta. Tinha um cheiro
distraidamente delicioso.
— Não. Exigindo.
Pela janela arredondada à direita dele , Zedd podia ver os muros escuros
da Fortaleza erguendo -se bem alto acima. Construída no lado da montanha que
fornecia uma vista panorâmica de Aydindril, a própria Fortaleza do Mago era
quase uma montanha . Como a cidade, ela estava vazia demais... com exceção de
Rikka, Chase, Rachel, e ele mesmo. Porém, levaria um longo tempo antes que
houvesse mais pessoas na Fortaleza . Pelo menos a Fortaleza teria novamente uma
família morando nela. Os corredores vazios ecoariam outra vez com risadas e
amor como havia sido um dia quando incontáveis pessoas cham avam a Fortaleza
de lar.
Rikka contentou-se em observar as prateleiras pela sala arredondada em
forma de torre. Elas estavam cheias de jarros e potes de variadas formas , e
delicados recipientes de vidro coloridos , alguns cheios de ingredientes para
feitiços, e, em um caso, polida para a mesa, a ornamentada cadeira de carvalho
com encosto reto , o baú baixo ao lado da cadeira dele , e as prateleiras para livros .
Livros em várias línguas ocupavam a maioria do espaço nas prateleiras . Os
armários nos cantos com portas de vidro guardavam mais dos tomos .
Rikka cruzou os braços enquanto inclinava aproximando -se e estudava
algumas das lombadas douradas . — Você realmente já leu todos esse s livros?
— É claro. — Zedd murmurou. — Muitas vezes .
— Deve ser entediante ser um mago. — disse ela. — Você tem que ler e
pensar demais. É mais fácil conseguir respostas fazendo as pessoas sangrarem .
Zedd deu uma risada. — Quando uma pessoa está em agonia ela pode
estar ansiosa para falar , mas tende a dizer a você aquilo que ela acha que você

240
quer ouvir, seja isso verdade ou não .
Ela retirou um volume e folheou -o antes de devolvê -lo para a prateleira.
— É por isso que somos treinadas para interrogar as pessoas usando os métodos
adequados. Mostramos a elas o quanto é muito mais doloroso para elas quando
mentem para nós. Se elas entenderem as consequências profundamente terríveis
de mentir, as pessoas falarão a verdade .
Zedd não estava realmente escutando ela . Ele estava concentrado em
tentar descobrir o que o fragmento de profecia poderia significar . Cada simples
possibilidade em que ele pensava servia apenas para estragar mais o seu apetite .
A tigela fumegante estava esperan do. Ele percebeu que ela provavelmente estava
enrolando, aguardando que ele comentasse sobre o jantar . Talvez ela estivesse
esperando um elogio .
— Então, o que tem para comer ?
— Cozido.
Zedd esticou um pouco o pescoço para olhar dentro da tigela de madeira .
— Onde estão os biscoitos ?
— Nada de biscoitos. Cozido.
— Eu sei, cozido. Posso ver que isso é cozido . O que eu queria dizer era
onde estão os biscoitos para acompanhar o cozido ?
Rikka sacudiu os ombros. — Posso buscar um pouco de pão fresco se
você quiser.
— Isso é cozido. — ele exclamou fazendo uma careta . — Cozido pede
biscoitos de verdade, não pão.
— Se eu soubesse que você queria biscoitos como jantar poderia ter feito
biscoitos ao invés do cozido . Você devia ter falado mais cedo .
— Não quero biscoitos ao invés do cozido. — Zedd rosnou.
— Você muda bastante de ideia quando está ranzinza , não é mesmo?
Zedd olhou para ela com o canto dos olhos . — Você realmente possui
talento para tortura .
Ela sorriu , girou sobre um calcanhar , e caminhou saindo triunfante da
pequena sala. Zedd imaginou que as Mord-Sith deviam pavonear -se mesmo
quando estavam sozinhas .
Ele voltou ao livro , tentando abordar o problema em um ângulo
diferente. Ele só teve tempo para ler a passagem novamente duas vezes quando o
trinco da porta levantou e Rachel entrou na sala carregando alguma coisa nas duas
mãos. Ela usou o pé para fechar a porta.
— Zedd, você deveria colocar esse livro de lado, agora, e fazer uma
refeição.
Zedd sorriu para a criança . Ela sempre fazia ele sorrir. Ela era
contagiante daquele jeito .
— O que você tem aí , Rachel?
Ela levantou os braços e colocou a tigela de metal sobre a mesa , então
esticou o braço quando empurrava ela pela mesa em direção a ele .
— Biscoitos.
Surpreso, Zedd levantou um pouco de sua cadeira para inclinar -se e dar
uma olhada dentro da tigela de metal .
— O que você está fazendo com biscoitos ?
Os grandes olhos de Rachel piscaram para ele como se aquela fosse a
pergunta mais estranha que ela já tinha ouvido . — Eles são para a sua ref eição.
Rikka pediu que eu os carregasse para ela . Ela estava com as mãos ocupadas com
uma tigela de cozido para você e uma para Chase.

241
— Você não devia ajudar aquela mulher. — Zedd falou com uma
expressão ameaçadora quando sentou novamente . — Ela é má.
Rachel soltou uma risadinha. — Você é bobo, Zedd. Rikka me conta
histórias sobre as estrelas . Ela forma figuras com elas e então conta histórias
sobre cada figura .
— É mesmo? Bem, parece uma coisa muito boa ela fazer isso .
Com a luz desaparecendo , estava ficando difícil ler. Zedd esticou uma
das mãos, lançando uma centelha do seu Dom sobre a dúzia de velas no elaborado
candelabro de ferro . A luz calorosa iluminou a pequena sala aconchegante ,
banhando com a luz as rochas bem alinhadas das paredes e as pesad as vigas de
carvalho no teto.
Rachel sorriu, seus olhos cintilando com os pontos refletidos de luz das
velas e com a admiração . Ela gostava de ver ele acender velas . — Você tem a
melhor das magias, Zedd.
Zedd suspirou. — Gostaria que você não estivesse me abandonando,
pequenina. Rikka não gosta muito do meu truque de acender velas .
— Vai sentir saudade de mim ?
— Não, na verdade não . Só não quero ser deixado sozinho com Rikka.
— disse ele enquanto lia a última parte outra vez .
— “Inicialmente eles irão contestá -lo antes de tramarem para curá -lo”.
O que isso poderia significar ?
— Talvez você possa fazer Rikka contar algumas histórias sobre as
estrelas. — Rachel começou a parecer triste quando deu a volta na mesa . — Vou
sentir saud ade demais de você, Zedd.
Zedd levantou os olhos do livro . Rachel esticou os braços , querendo um
abraço. Um sorriso tomou conta dele quando acolheu -a em seus braços . Havia
poucas coisas na vida que pareciam tão boas quanto um abraço de Rachel. Ela era
uma devota do abraço, jamais colocando menos do que todo o seu entusiasmo
nele.
— Você tem um abraço bom , Zedd. Richard também tem um abraço bom .
— Sim, ele tem .
Zedd lembrou de estar nessa mesma sala , fazia tanto tempo, quando sua
própria filha tinha aproximadamente a mesma idade de Rachel. Ela também teria
vindo visitar ele e pedir um abraço . Agora, tudo que lhe restara era Richard. Zedd
sentia terrivelmente a falta dele .
— Sinto saudade de você, pequenina, mas antes que você perceba estará
de volta aqui com o resto da sua família e então terá irmãos e irmãs com quem
brincar ao invés de apenas um velho . — Zedd sentou-a sobre os joelhos . — Será
bom ter todos vocês junto comigo na Fortaleza do Mago . A Fortaleza será um
lugar cheio de alegria, com vida nela outra vez .
— Rikka disse que ela jamais terá que cozinhar de novo assim que a
minha mãe vier para cá .
Zedd bebeu um gole de chá morno de uma xícara de estanho que estava
sobre o baú ao lado dele . — Ela disse.
Rachel assentiu. — E ela disse que a minha mãe provavelmente faria
você escovar o cabelo . — ela levantou as mãos , esperando tomar um gole da xícara
dele. Ele deixou-a beber chá.
Zedd inclinou a cabeça . — Escovar meu cabelo?
Rachel confirmou com a cabeça e uma expressão séria. — Ele fica todo
bagunçado. Mas eu gosto.
— Rachel, — falou Chase quando agachava passando pelo portal com

242
topo arredondado. — você está perturbando Zedd outra vez?
Rachel balançou a cabeça . — Eu trouxe biscoitos para ele . Rikka disse
que ele gosta de biscoitos com seu cozido e que eu deveria trazer para ele uma
tigela cheia.
Chase plant ou os punhos nos quadris . — E como ele vai comer os
biscoitos dele com uma criança feia sentada no colo ? Você pode acabar com o
apetite dele.
Rachel riu quando saltou para o chão.
Zedd olhou para o livro novamente . — Todos vocês já arrumaram as
coisas?
— Sim. — o grande homem disse. — quero sair cedo. Partiremos no
início da manhã, se ainda estiver tudo bem para você .
Zedd colocou a preocupação de lado com um balanço da mão enquanto
estudava a profecia. — Sim, sim. Quanto mais cedo você trouxer a sua família
para cá, melhor. Todos nós nos sentiremos melhor tendo eles aqui onde sabemos
que estarão seguros e todos vocês ficarão juntos .
As grossas sobrancelhas de Chase curvaram-se mais sobre os atentos
olhos castanhos dele. — Zedd, qual é o problema? O que está errado?
Zedd levantou os olhos franzindo a testa . — Errado? Nada. Nada está
errado.
— Ele só está ocupado lendo. — Rachel garantiu a Chase enquanto
abraçava a perna dele e encostava a cabeça contra o seu quadril .
— Zedd. — Chase falou com um tom lento que dizia que ele não
acreditava em uma palavra daquilo .
— O que faz você pensar que tem alguma coisa errada ?
— Você ainda não comeu . — Chase descansou uma das mãos sobre o
cabo de madeira de uma longa faca no cinto dele e com a outra acariciou a cabeça
com longos cabelos loiros dourados de Rachel. O homem provavelmente tinha
uma dúzia de facas de vários tamanhos presas ao redor de sua cintura e em suas
pernas. Quando partisse ao amanhecer ele adicionaria espadas e machados . — Isso
só pode significar que alguma coisa está errada .
Zedd enfiou um biscoito na boca . — Aí está. — ele murmurou com a
boca cheia. — Satisfeito?
Enquanto Zedd mastigava o b iscoito morno, Chase inclinou-se e ergueu
o queixo da garota. — Rachel, vá para seu quarto e termine de arrumar as suas
coisas. E eu espero que as suas facas estejam limpas e afiadas também .
Ela assentiu solenemente. — Elas estarão, Chase.
Rachel tivera uma vida dura para alguém tão jovem . Por razões que
sempre fizeram Zedd ficar desconfiado, ela estivera no centro de uma variedade
de situações importantes. Quando Chase levou a garota órfã para criá-la como sua
própria filha, o próprio Zedd tinha avisado para que o homem a ensinasse a
proteger a si mesma, a ensinasse a ser como ele para que ela pudesse defender -se
e ficar em segurança . Rachel adorava Chase e aprendia com avidez todas as lições
que ele ensinava. Com uma das menores facas que ela carregava, ela conseguiria
espetar uma mosca em uma cerca a dez passos .
— E quero você na cama cedo para que esteja descansada. — Chase falou
a ela. — Não vou carregá -la se você estiver cansada .
Rachel lançou um olhar surpreso para ele . — Você me carrega quando
digo que não estou cansada.
Chase direcionou a Zedd um olhar de sofrimento antes de mostrar para
ela uma expressão de raiva claramente fingida . — Bem, amanhã você

243
simplesmente terá que manter o ritmo sozinha .
Rachel assentiu com seriedade, imperturbável diante do homem que
agigantava-se. — Farei isso. — ela olhou para Zedd. — Você vai me dar um beijo
de boa noite?
— É claro. — Zedd disse com um sorriso . — Eu vou daqui a pouquinho
para dar uma olhada em você .
Ele imaginou se Rikka passaria no quarto dela para con tar uma história .
Era reconfortante pensar na Mord-Sith contando para uma criança histórias sobre
figuras formadas pelas estrelas no céu. Rachel parecia ter aquele efeito em todos .
Chase observou através do portal enquanto sua filha corria descendo
pela larga muralha. Zedd estava gratificado que ela estivesse acostumada com a
Fortaleza do Mago. Em pouco tempo ela a considerava sua e estava saltitando
alegremente por corredores que tinham milhares de anos. Ela tomava muito
cuidado e jamais perambulou em área s sobre as quais Zedd a alertara. Era uma
criança que entendia o perigo . Lá fora sobre a muralha , ela parecia completamente
à vontade enquanto fazia uma pausa momentaneamente para olhar através de uma
ameia para a cidade abaixo antes de correr outra vez . Para Zedd parecia algo
surpreendente que pernas finas como aquelas pudessem mover a criança tão
velozmente.
Depois que Chase tinha certeza de que ela estava seguindo seu caminho
em segurança, ele fechou a porta de carvalho e aproximou -se da mesa. O tamanho
dele fez com que a sala aconchegante , uma sala que Zedd sempre achara bastante
confortável, parecer consideravelmente pequena .
— Agora, qual é o problema?
O homem não ficaria satisfeito até saber mais . Zedd suspirou e usou um
dedo para girar o livro para o guarda de Fronteira ler .
— Dê uma olhada . Diga-me você.
Chase olhou para o livro antigo . Ele levantou uma página para cada lado
e deu uma olhada rápida antes de colocar cada página de volta .
— Como eu disse, qual é o problema? Parece que não tem muita coisa
aqui com o que preocupar-se.
Zedd ergueu uma sobrancelha . — Esse é o problema.
— O que você quer dizer?
— Esse é um livro de profecia . Deveria ter coisas escritas nele...
profecias . Você não pode ter um livro com nada escrito e afirmar que ele ainda é
propriamente um livro , não é mesmo? O texto desapareceu.
— Desapareceu? — Chase coçou uma têmpora. — Isso não faz qualquer
sentido. Como o texto pode ter desaparecido ? Não é como se alguém pudesse ter
roubado as palavras das página s.
Essa era uma maneira interessante de enxergar a situação... que alguém
tivesse roubado as palavras das páginas . Tendo sido um Guarda de Fronteira
durante a maior parte da sua vida, até que a Fronteira caiu fazia alguns anos,
Chase era o tipo de homem qu e suspeitaria de roubo antes de qualquer outra coisa .
Zedd não havia considerado essa possibilidade . Sua mente já estava acelerada na
estrada escura inexplorada da ponderação.
— Não sei como as palavras poderiam ter desaparecido. — ele
confidenciou quando tomava um gole de chá .
— Sobre o que é a profecia ? — Chase perguntou.
— Acontece que esse é um livro de profecias em maior parte sobre
Richard.
Chase pareceu completamente calmo , o que, é claro, significava que ele

244
não estava de modo algum. — Tem certeza que tinha coisas escritas nele ? — ele
perguntou. — Se ele é antigo , talvez você apenas tenha esquecido que ele possuía
páginas em branco. Afinal de contas , quando você lê um livro, tende a lembrar de
coisas que estavam escritas , não das páginas em branco .
— Isso é verdade . — ele colocou de lado a xícara de estanho . — Não
posso jurar ter certeza de que lembro de coisas escritas nele , mas simplesmente
não creio que ele estava em sua maior parte em branco . Agora ele está.
A expressão de Chase não deixava transparecer os seus sentimentos
enquanto ele pensava no mistério . — Bem, admito que isso realmente soa
estranho... mas isso é mesmo um problema ? Richard nunca gostou de profecias ;
de qualquer modo ele não teria prestado atenção nelas .
Zedd levantou e colocou um dedo sobre o livro , batendo com ele de
forma insistente. — Chase, esse livro esteve aqui na Fortaleza durante milhares
de anos. Durante milhares de anos profecias foram escritas nele . Tenho certeza
disso. Agora, de repente ele es tá em branco. Isso parece algo trivial para você?
Chase balançou os ombros quando enfiava os dedões nos bolsos
traseiros. — Não sei , Zedd. Não sou especialista nesse tipo de coisas . Acho que
no dia em que você me procurar para conseguir respostas a respei to de livros de
profecias será o dia em que estará com grandes problemas . Você é o mago, diga-
me você.
Zedd lançou o peso sobre as mão quando inclinava em direção ao
homem.
— Não consigo lembrar de qualquer coisa que costumava estar nesse
livro. Não consigo lembrar de qualquer coisa sobre os espaços em branco em todos
os outros livros de profecia que estão com textos faltando .
A expressão de Chase tornou-se sombria. — Tem outros com espaços em
branco?
Zedd assentiu enquanto alisava o cabelo para trás . Ele olhou para a
janela que escurecia, tentando enxergar a si mesmo refletido , mas não conseguiu ,
pois ainda havia bastante luz do lado de fora .
— O meu cabelo precisa ser escovado ? — ele olhou de volta para Chase.
— Ele está muito desgrenhado ?
Chase inclinou a cabeça. — O quê?
— Esqueça. — Zedd murmurou com um movimento da mão . — O fato é
que eu descobri espaços em branco em vários dos livros de profecia e estou
perplexo com isso .
Chase jogou o peso do corpo sobre a outra perna e cruzou os braços . Sua
testa franziu, ele estava começando a parecer seriamente preocupado , o que no
caso de Chase, significava que parecia como se ele estivesse pensando que poderia
precisar trucidar um grande número de pessoas .
— Talvez fosse melhor eu ficar por enquanto . Não temos que partir
amanhã. Podemos esperar até que você descubra se existe algum tipo de problema
iminente.
Zedd suspirou, começando a desejar não ter mencionado qualquer coisa .
Esse realmente não era um problema para Chase. Zedd não devia ter feito com
que o homem ficasse preocupado com algo que ele não entenderia ou a respeito
do qual nada poderia fazer . A questão era apenas que isso estava estranho demais .
— Isso não é necessário . Você não precisará ficar preso por causa dess e
tipo de problema. É um tipo de problema totalmente diferente . Esse é um problema
com livros. Não quero jogar sobre você o fardo dessa preocupação . Isso está na
minha área e tenho certeza de que vou descobrir mais cedo ou mais tarde . Eu só

245
fiquei imaginando o que você poderia pensar de uma coisa assim. Às vezes ajuda
ter um novo ponto de vista.
Chase sacudiu um dedo sobre o livro . — Bem, o que significa essa última
parte? Essa parte “Inicialmente eles irão contestá -lo antes de tramarem para
curá-lo”? Você falou que isso era profecia a respeito de Richard. Isso soa como
problema... como se alguém fosse tramar contra ele.
— Não, não necessariamente. — Zedd passou uma das mãos pela boca
enquanto tentava pensar em um jeito de explicar . — A palavra “tramar” em
profecia geralmente significa algo bem menos sinistro do que “ criar um plano” .
Como planejar um curso de ação , você poderia dizer. Nesse caso, a passagem
estava falando sobre aqueles que são os conselheiros mais próximos a ele , seus
aliados, então quando ela fala a respeito de “tramarem para curá-lo”, é mais
provável que signifique que eles devem primeiro convencê -lo de que ele precisa
da ajuda deles e então, assim que eles forem capazes de convencê -lo, esses
aliados... que provavelmente seriam alguns de nós... estarão planejando uma
forma de curá-lo.
— Curá-lo de quê?
— Isso não está declarado.
— Então isso não é grave?
Zedd lançou um olhar sério para o Guarda de Fronteira . — Acredito que
essa pode ser a parte que está em branco .
— Então é grave . Richard está com problemas . Ele precisa de ajuda .
Talvez ele esteja ferido .
Zedd balançou a cabeça, mostrando infelicidade . — Em minha
experiência a profecia raramente é tão clara.
— Mas esse poderia ser o caso .
Zedd observou o homem durante um momento . — Estamos a um longo
caminho da necessidade de sonhar com as coisas sobre as quais vamos nos
preocupar. Além disso, a cronologia da profecia sempre é um problema . De acordo
com o que sei, o trecho que estamos discutindo já poderia ter acontecido . Poderia,
por exemplo, estar falando sobre uma época em que Richard teve uma febre
quando criança e eu tive que achar as ervas adequadas para curá -lo.
— Então isso poderia muito bem ser uma história do passado?
Zedd virou as palmas para cima com frustração . — Poderia ser. Sem o
texto que está faltando... ou sem saber muito mais a respeito de profecia do que
eu sei... provavelmente é impossível encaixar isso no contexto da vida dele .
Chase assentiu mas então deu um passo para fora do caminho quando a
porta abriu e Rikka entrou na sala . Ela esticou os braços para pegar as tigelas ,
mas parou quando viu que elas ainda estavam cheias .
— Qual é o problema? Porque você não comeu ? — quando Zedd
balançou a mão como se tentasse descartar o assunto , ela olhou por cima do ombro
para Chase. — Ele está doente? Pensei que agora ele já teria raspado a tigela e
lambido o cheiro do teto . Talvez fosse melhor nós pensarmos em um jeito de fazer
ele comer.
— Lembra do que eu disse sobre tramar ? — Zedd falou para Chase. —
Poderia não ser algo mais sério do que isso .
Rikka avaliou o rosto de Zedd por um momento, como se estivesse
procurando por quaisquer sinais claros de insanidade , então voltou sua atenção
para Chase. — Sobre que bobagem ele está resmungando ?
— Alguma coisa sobre livros. — Chase disse a ela.
Ela direcionou um olhar feroz para Zedd. — Bem, depois de todo o

246
trabalho que eu tive preparando para você essa refeição , você vai sentar e vai
comer agora mesmo. Se não comer, então, ao invés disso, vou jog ar isso para os
vermes no monte de lixo. Depois, quando você ficar com fome mais tarde e vier
até mim reclamando, só poderá culpar a si mesmo . Não receberá qualquer simpatia
minha.
Surpreso, Zedd piscou para ela. — O quê? O que você disse?
— Vou jogar isso para os vermes se você não...
— Maldição! — Zedd estalou os dedos. — É isso! — ele esticou os
braços para ela. — Rikka, você é um gênio. Eu poderia abraçá -la.
Rikka assumiu uma pose desafiadora . — Prefiro aceitar sua adoração a
uma certa distância .
Zedd não estava escutando. Ele esfregou as mãos enquanto tentava
lembrar exatamente onde ele tinha visto a referência . Fazia muito tempo. Mas
quanto tempo , exatamente? E onde?
— O que foi? — perguntou Chase. — Você solucionou o enigma ?
A boca de Zedd contorceu com o esforço do pensamento . — Lembro de
ter lido uma referência a um evento como esse . Lembro de ver algum tipo de
exegese.
— O quê?
— Uma explicação . Uma análise desse assunto .
— Então isso é algum tipo de ... coisa de livro.
Zedd assentiu. — Sim, exatamente. Só preciso lembrar onde foi que eu
vi a passagem . Falava a respeito de vermes .
Chase lançou um olhar atravessado para Rikka antes de coçar a cabeça
de cabelos castanhos ficando grisalhos. — Vermes?
Zedd enxugou as mãos enquanto vagas lembranças vagavam por sua
mente. Aquelas memórias fantasmagóricas eram reais , ele tinha certeza disso , mas
independente de seus esforços frenéticos para captá -las e colocá-las sob a luz da
consciência, elas permaneciam fora de alcance .
— Zedd, do que você está falando? — perguntou Rikka. — O que você
disse? Vermes?
— O quê? Oh, sim, isso mesmo. Vermes. Vermes Proféticas. Era algum
tipo de avaliação , eu acho, verificando se uma coisa assim poderia ser capaz de
corroer a profecia.
Chase e Rikka ficaram olhan do fixamente para ele como se ele estivess e
louco mas nada disseram .
Zedd caminhou da mesa até a prateleiras de livros no canto e voltou . Ele
empurrou a pesada cadeira de carvalho para um lado com um pé enquanto andava
para frente e para trás , pensando. Ele pensou em uma lista de lugares que poderiam
ter um livro que conteria uma referência como essa . Havia bibliotecas por toda a
Fortaleza. Havia milhares de livros naquelas bibliotecas... talvez dezenas de
milhares. Se ao menos ele tivesse visto a referênci a na Fortaleza do Mago . Ele
visitara grande número de bibliotecas em outros lugares . Existia um grande
número de arquivos no Palácio das Confessoras , em Aydindril. Havia Palácios em
Kings Row, também em Aydindril, que continham extensas coleções de livros .
Havia várias cidades que Zedd visitara com depósitos e arquivos . Havia tantos
livros, como ele lembraria de um que não tinha visto fazia tanto tempo... talvez
desde que era jovem ?
— Do quê, exatamente, você está falando ? — Rikka perguntou quando
ficou cansada de ver ele andar de um lado para outro . — De qual explicação você
está falando?

247
— Não tenho certeza , ainda. Faz muito tempo. Tinha que ser . Tinha que
ser quando ele era jovem . Eu vou lembrar , tenho certeza. Só tenho que pensar um
pouco nisso. Mesmo que leve toda a noite, vou lembrar onde vi a passagem .
Gostaria de ter a minha cabeça de pensar. — ele murmurou quando virou para
outro lado.
Rikka fez uma careta para Chase enquanto mantinha os olhos sobre Zedd
enquanto ele andava. — A sua o quê?
— Lá em Westland, — Chase falou em voz baixa. — ele tinha uma
cadeira na varanda dele onde ele sentava e pensava... onde ele solucionaria os
problemas. Isso foi quando tudo começou , quando Darken Rahl apareceu e tentou
capturar ele e Richard. Eles partiram bem na hora. Eles vieram até mim e eu os
conduzi através de uma abertura na Fronteira .
— Para mim parece que tem cadeiras suficientes por aqui . Ele está
praticamente caindo por cima daquela ali . — a boca de Rikka torceu de irritação .
— Além disso, uma pessoa não precisa de uma cadeira para fazer o seu cérebro
funcionar. No mínimo, se ela precisar , ela tem problemas maiores .
— Imagino que sim. — junto com Rikka, Chase observou Zedd caminhar
de um lado para outro durante algum tempo . Finalmente, não sendo uma pessoa
que fica parado, ele segurou a manga do manto de Zedd . — Acho que é melhor eu
checar Rachel enquanto você trabalha na sua solução . Quero ter certeza de que
ela arrumou todas as coisas e que vá para cama .
Zedd balançou a mão , indicando para que o homem seg uisse adiante. —
Sim, você está certo. Vá em frente. Diga a ela que passarei para dar um beijo de
boa noite mais tarde. Só preciso pensar nisso um pouco .
Assim que ele se foi , Rikka apoiou um quadril coberto por couro contra
a pesada mesa e cruzou os braço s embaixo dos seios . — Você está dizendo que o
desaparecimento das palavras da profecia foi causado por algum tipo de verme ,
como um verme de livros que come a cola ou o papel?
— Não, ele come as palavras , não o papel .
— Então isso é... o quê? Algum tipo de verme pequenino que come tinta ?
Irritado com a interrupção , Zedd parou de andar e ficou olhando para
ela. — Come... ? Não, não, não desse jeito. Isso é alguma coisa de magia . Um
pequeno truquezinho de alguma coisa esperta . Se lembro corretamente isso fo i
referenciado como um Verme Profético porque ele poderia devorar as
ramificações da profecia , de forma muito parecida como vermes que furam
madeira devoram uma árvore . Começa com uma profecia relacionada , quer seja
em assunto ou em cronologia , como vermes da madeira podem infestar uma
ramificação em particular . Assim que esse tipo de verme se estabelece ele começa
a devorar a árvore da profecia . Nesse caso, a ramificação que tem a ver com a
época desde o nascimento de Richard.
Rikka pareceu genuinamente fa scinada e ao mesmo tempo consternada .
Ela endireitou o corpo e inclinou a cabeça em direção a ele . — É mesmo? A magia
pode fazer uma coisa assim ?
Zedd, segurando o cotovelo em uma das mãos e seu queixo nas pontas
dos dedos da outra, fez um ruído baixo na garganta. — Acredito que sim. Talvez.
Não tenho certeza. — ele soltou um suspiro de impaciência . — Estou tentando
lembrar. Só a referência uma vez . Não consigo lembrar se era uma teoria que eu
li ou se era o próprio feitiço , ou se era apenas uma sugestão em um livro de
registros , ou se... Espere um pouco...
Ele olhou para o teto enquanto cerrava parcialmente os olhos no esforço
para recordar. — Foi antes do nascimento de Richard, disso eu tenho certeza.

248
Lembro que eu era jovem . Isso significaria que deve ter sido quando eu estava
aqui. Isso faz muito sentido . E se eu estava aqui ...
A cabeça de Zedd baixou novamente . — Queridos espíritos .
Rikka inclinou-se. — O que foi? Queridos espíritos o quê ?
— Eu lembro . — Zedd sussurrou, seus olhos ficando arregalados . — Eu
lembro de onde eu vi isso .
— Onde?
Puxando as mangas nos braços magros , Zedd seguiu até a porta. — Não
se preocupe. Eu cuidarei disso. Você pode ir fazer a sua patrulha, ou algo assim .
Eu voltarei mais tarde.

249
C A P Í T U L O 3 3

Com o sol descendo, o ar estava começando a esfriar quando Zedd corria


pela larga muralha. As enormes rochas do muro com ameias irradiavam calor que
haviam armazenado do sol quente que as banhara durante todo o dia . A cidade
longe lá abaixo do lado da montanha estav a mergulhando em um mar de
obscuridade, enquanto raios rosados do sol que partia acariciavam os topos de
algumas das torres mais altas da Fortaleza bem acima. A luz fraca do final de
tarde havia trazido uma calmaria quebrada apenas pelo sussurro distante d a
cigarras.
Em um cruzamento de muralhas , Zedd fez a curva para a direita .
Diferente da muralha na borda da Fortaleza , que fornecia uma visão panorâmica
de uma queda com milhares de pés pelo rosto da montanha, a parede interior mais
estreita do bastião tinha quedas de ambos os lados, que mesmo dentro do massivo
complexo, davam uma clara visão de paredes quase sem janelas descendo dentro
da escuridão . Jardins distantes lá embaixo entregavam a refrescância do ar aberto
diretamente para alguns dos pisos inferiores dentro da Fortaleza . Zedd imaginou
que as pessoas que no passado trabalharam nos recantos inferiores da Fortaleza
devem ter apreciado poderem ficar em campo aberto de vez em quando .
Enquanto ele corria pel o estreito caminho do bastião , pontes para várias
torres cruzavam acima. Elevando-se diante dele no final do caminho estava uma
imensa, imponente, parede com diversas filas verticais de pedras angulares
projetando -se para pisos inferiores . Havia uma grande porta dupla de entrada na
base daquela parede gigante com figuras, acima, desenhos de colunas esculpidas
na parede sob o lintel de rocha arqueado , mas ao invés dela Zedd seguiu por uma
abertura lateral para tomar os degraus que desciam . O lance de escada
aparentemente eterno descia por uma longa rampa construída no lado do penhasco
parecido com uma parede do bastião .
Ele precisava descer até os recantos mais baixos da Fortaleza , fundo
dentro da montanha , até lugares aonde ninguém foi .
Até lugares que ninguém ao menos sabia que existiam .
O lado aberto da escada com corrimão de pedra não era muito alto e
como uma consequência disso, a descida direta da escadaria por centenas de pés,
sem quaisquer patamares , era uma experiência assustadora . À esquerda dele
erguiam -se os blocos de pedra cuidadosamente encaixados da imponente parede
do bastião, à direita dele havia uma queda que deixaria orgulhoso qualquer
penhasco de respeito . Descer por essas escadarias monumentais sempre faziam
Zedd sentir-se pequeno. Ele conseguia ver pouco mais no fundo do que a formação
acidentada de rochas escuras na base de uma das torres arredondadas subindo a
partir do pequeno jardim .
Na metade do caminho , Zedd percebeu estar ouvindo passos correndo
para alcançá-lo. Ele parou e virou. Era Rikka.
— O que você acha que está fazendo ? — ele gritou para ela.
O vento soprando pelo estreito cânion formado pelas paredes de pedra
ao redor agitavam os cabelos e o manto dele . Quase parecia como se o seu corpo
magro pudesse voar da escadaria e ser carregado para longe como uma folha seca
capturada em uma rajada de ar.
Rikka parou ofegante alguns passos acima dele . — O que parece que

250
estou fazendo?
— Parece que não está fazendo o que eu disse para você fazer .
— Vamos lá, — disse ela, sacudindo a mão para que ele seguisse em
frente. — eu irei com você.
— Falei que eu cuidaria disso . Falei para você fazer uma patrulha ou
algo assim .
— Esse é um problema que envolve Lorde Rahl.
— É apenas alguma informação em livros velhos que eu preciso checar.
— Chase e Rachel partirão cedo ao amanhecer . Você estaria lá com
Rachel, contando uma história para ela e confortando -a, a não ser que houvesse
alguma coisa acontecendo que o deixasse realmente preocupado . Isso está
relacionado com Lorde Rahl. Se deixou você preocupado , então isso me deixou
preocupada. Vou com você.
Zedd não queria ficar parado ali fora em espaço aberto discutindo com
ela, então ele não fez isso . Virou e acelerou descendo , segurando o manto com as
duas mãos para não tropeçar e cair . Além de parecerem continuar infinitamente ,
os degraus eram assustadoramente íngremes . Uma queda de tão alto sobre os
degraus poderia facilmente ser fatal .
Finalmente atingindo o fundo , Zedd parou no primeiro degrau de pedra
e virou para trás. — Fique em cima as pedras.
Rikka olhou ao redor pela extensão de terreno coberto por trepadeiras.
Além estavam paredes em dois lados que subiam por centenas de pés sem
interrupção. Atrás estava a escada e a parede do bastião . À direita havia uma
massa de alicerces rochosos a partir dos quais a torre erguia -se.
— Por que? — ela perguntou enquanto seguia Zedd através das pedras.
— Porque eu disse para fazer isso . — ele não estava com vontade de
perder tempo explicando armadilhas de magia . Se ela pisasse fora das pedra s, os
escudos não apenas a alertariam , mas impediriam que ela fosse aonde não deveria .
Ainda assim , para aqueles que não possuíam o poder adequado , sempre era melhor
ficar bem longe de escudos sempre que possível .
Se os escudos não conseguissem impedir os intrusos de passar por esse
jardim isolado, as trepadeiras os agarrariam . Enquanto a vítima lutava para
escapar, essas trepadeiras em particular se enrolariam em volta dos tornozelos .
Estimuladas pelo calor do corpo, as trepadeiras rapidamente projetavam espinhos
que penetravam nos ossos onde então elas ancoravam -se. Libertar alguém preso
nas trepadeiras era um trabalho doloroso, sangrento , e na maioria das vezes , fatal.
As defesas da Fortaleza do Mago não hesitavam em seu objetivo .
— Essas trepadeiras estão se movendo . — Rikka agarrou a manga dele .
— Essas trepadeiras estão se movendo como um ninho de cobras .
Zedd lançou um olhar sério para trás por cima do ombro . — Porque você
acha que eu disse para ficar em cima das pedras ?
Ele ergueu uma alavanca e abriu a segunda porta com o topo arredondado
e entrou. Podia sentir Rikka praticamente respirando no pescoço dele . Esticando
o braço cegamente na escuridão seus dedos ossudos encontraram uma esfera lisa
no suporte à direita. Quando ele passou a mão sobre a superfície lustrosa ela
começou a brilhar com uma luz esverdeada . A sala de entrada era pequena , feita
com paredes simples, não decoradas, de blocos de pedra . Acima estava uma viga
e um teto de tábuas. Contra a parede à direita estava um pequen o pedaço de ardósia
que servia como um banco, caso as escadas tivessem deixado qualquer visitante
com a necessidade de um breve descanso . Nas duas outras paredes havia duas
passagens escuras seguindo em direções distintas .

251
Pela parede acima do banco havia dúzias de suportes, sobre metade deles
esferas que brilhavam levemente com a mesma cor esverdeada que aquele que ele
havia tocado primeiro . Zedd tirou uma das esferas de um suporte . Era pesada,
feita de vidro sólido , mas outros elementos estavam fundidos d entro desse vidro
e esses elementos respondiam aos estímulos do Dom . Na mão dele a cor
esverdeada mudou para um brilho amarelado mais quente . Ele deixou uma
centelha do seu Dom penetrar na esfera e ela cintilou , projetando sombras
bruxuleantes nos dois corredores na frente deles .
Com um forte empurrão de um dedo ossudo , ele fez Rikka sentar no
banco. — Aqui é o mais longe que você vai .
Forte determinação estava gravada no rosto dela enquanto seus olhos
azuis o observavam . — Alguma coisa estranha está aco ntecendo com os livros de
profecia. Você esteve sobre aqueles livros durante dias . Você não tem comido ou
dormido direito. Mas pior ainda é que as profecias que estão desaparecendo são a
respeito de Lorde Rahl .
Foi uma observação , não uma pergunta . Ele havia pensado que seu
conflito estivesse bem escondido internamente . Ela estivera silenciosamente
prestando mais atenção do que ele havia dado crédito . Ou talvez ele simplesmente
estivesse distraído demais para notar que ela estava prestando atenção . Em todo
caso, não era um bom sinal que ele andasse tão preocupado que não estive sse ao
menos consciente de que ela estava notando o quanto ele ficara absorto e inquieto .
— Até onde posso afirmar , você está certa ao dizer que muitas daquelas
profecias que desapareceram são a respeito de Richard, mas não acredito que todas
sejam. De acordo com o que fui capaz de determinar , entretanto, todas estão
relacionadas com profecia que pertence a um tempo dep ois que ele nasceu. Porém,
isso não significa que todas são sobre ele . Os espaços em branco nos livros são
extensos. Uma vez que não consigo lembrar daquilo que aqueles espaços em
branco diziam, obviamente não há como dizer sobre o que eles são , tornando
impossível conhecer o assunto específico das profecias que estão faltando .
— Mas por tudo que você conseguiu reunir em maior parte elas possuem
algo a ver com Lorde Rahl.
Isso também não tinha sido uma pergunta , mas a declaração de uma
observação, ou, pelo menos, uma especulação razoável .
Essa era uma Mord-Sith fazendo perguntas que giravam em torno do
assunto da segurança do seu Lorde Rahl. Zedd podia ver que ela não estava com
humor para explicações evasivas .
— Eu teria que concordar que Richard, mesmo que não seja o centro,
está ao menos profundamente conectado com o problema nos livros de profecia .
Rikka levantou do banco . — Então esse não é o momento para você ficar
cheio de segredos comigo . Isso é importante . Lorde Rahl é vital para todos nós .
Não trata-se apenas da segurança do seu neto , mas do futuro de todas as nossas
vidas.
— E eu estou procurando...
— Isso não é importante só para você ; ele é importante para nós todos .
Se apenas você descobrir algo significativo e alguma coisa acontecer com voc ê,
então todos nós poderíamos ficar abandonados em um beco sem saída . Isso é mais
importante do que a manutenção dos seus segredos .
Zedd colocou as mãos nos quadris, então virou para outro lado durante
um momento, pensando. Ele finalmente virou de volta pa ra ela.
— Rikka, tem coisas lá embaixo sobre as quais ninguém sabe . Existem
boas razões para isso .

252
— Não vou roubar algum tesouro e se você estiver com medo que eu
veja algum “segredo do século” , então estarei disposta a jurar pela minha vida
manter isso em segredo a não ser que seja necessário revelar isso para Lorde Rahl.
— É mais do que isso. Muitas das coisas nos recantos mais baixos da
Fortaleza são incrivelmente perigosas para qualquer um que chegar perto .
— Também há coisas de incrível perigo do lado de fora da Fortaleza .
Nós não temos mais o luxo de ficarmos com segredos.
Zedd observou os olhos dela . Ela estava com razão . Se algo acontecesse
com ele, a informação também estaria perdida . Ele sempre planejou um dia
permitir que Richard soubesse sobre isso , mas nunca houve tempo e , até que o
problema com os livros de profecia tivesse aparecido, isso não pareceu algo
crítico. Ainda assim , não era Richard quem veria essas coisas .
— O que você está pensando , mago? Que eu descerei até a cidade e vou
tagarelar sobre aquilo que eu vi ? Quem restou para que eu conte ? A Ordem cruzou
a maior parte do Mundo Novo e todos partiram de Aydindril para D'Hara. D'Hara
está por um fio. Nosso futuro está por um fio .
— Há razões para que algum conhecimento seja mantido escondido .
— Também há razões para que homens sábios às vezes devam
compartilhar aquilo que sabem . A vida é o que importa. Se o conhecimento ajudará
a preservar e desenvolver a vida , então esse conhecimento não deveria estar
escondido, especialmente quando ele pode ser perdido justamente quando ele
poderia ser mais necessário .
Zedd pressionou os lábios enquanto considerava as palavras dela . Ele
descobrira esse segredo quando era jovem . Durante toda sua vida e le nunca contou
a outra pessoa sobre isso . Ninguém o havia instruído a manter isso como um
segredo, nem poderia , ninguém além dele sabia a respeito disso . Ainda assim, ele
sabia que devia haver uma razão para que isso não fosse algo que est ivesse
destinado a ser amplamente conhecido . Isso havia sido mantido em segredo por
um motivo.
Ele apenas não sabia qual era o motivo .
— Zedd, pelo bem de Lorde Rahl, pelo bem de nossa causa , permita que
eu vá com você.
Ele avaliou a determinação dela durante um momento . — Você jamais
poderá revelar isso para qualquer pessoa .
— A não ser para Lorde Rahl, eu jamais revelarei isso para outra pessoa .
Mord-Sith geralmente entram em seus túmulos sem revelar as coisas que sabem .
Zedd assentiu. — Está certo. Isso vai para o túmul o com você, a não ser
que algo aconteça comigo . Se acontecer, então você deve contar a Richard o que
eu mostrarei a você esta noite . Porém, você d eve jurar para mim que nunca contará
para qualquer outra pessoa sobre isso , nem mesmo para as suas irmãs Mord-Sith.
Sem hesitação Rikka esticou a mão para ele. — Eu juro.
Zedd apertou a mão dela e, fazendo isso, formalizou o acordo , aceitando
a palavra dela.
Quando ele foi Primeiro Mago durante a guerra com D'Hara, antes que
ele houvesse erguido as Fronteiras e mo rto Panis Rahl, o pai de Darken Rahl, se
alguém tivesse falado a ele que algum dia ele faria tal acordo com uma Mord-Sith
sobre algo tão importante , ele teria pensado que essa pessoa estava louca . Ele
estava agradecido que aquelas coisas tivessem mudado para melhor.

253
C A P Í T U L O 3 4

— Essa é uma rota complexa. — Zedd falou a ela.


Rikka arqueou uma sobrancelha. — Alguma vez você teve que me
encontrar porque eu fiquei perdida patrulhando a Fortaleza ?
Zedd percebeu que isso não acontecera . Ele sabia muito bem como era
fácil ficar perdido na Fortaleza . De fato, essa era uma das defesas dela .
Em diversos locais, quando alguém tentava deslocar -se através da
Fortaleza, essa pessoa chegava até salas interconectadas aos milhares . Nesses
lugares não havia corredores a não ser para as escadas subindo ou descendo .
Passar através desses labirintos tridimensionais era necessário para chegar até
várias áreas bem protegidas . Era enganadoramente fácil ficar perdido para sempre
no emaranhado daquelas salas interc onectadas. Até mesmo pessoas que cresceram
na Fortaleza podiam facilmente ficar perdidas ali dentro .
Um invasor, não familiarizado com o lugar e se ele fosse fundo demais
dentro do labirinto, encarava um desafio formidável só para encontrar o caminho
de volta, quanto mais para cruzar através de todo ele , e então escapar. Assim que
você passava por algumas salas , por alguns portais, era incrível como tudo parecia
similar. Não havia janelas para ajudar e a direção logo perdia o significado .
Virtualmente não havia como afirmar se você lembrava de já ter visto uma sala
ou um portal. Uma coisa parecia de mais com as doze últimas que você tinha visto .
Houve espiões e pessoas assim que no passado ficaram perdidos no labirinto de
salas. Em eras passadas não era tot almente incomum encontrar um corpo ali
dentro.
É claro, nem todos aqueles que pretendiam causar damos eram estranhos .
No passado alguns foram traidores .
— Não, acho que você nunca ficou perdida. — Zedd finalmente
concordou. — Pelo menos, ainda não . Você não esteve aqui tempo suficiente para
começar a explorar a maior parte do lugar . Há perigos de todos os tipos . Ficar
perdido no labirinto que é a Fortaleza é somente um dos perigos . O lugar para
onde vamos é assim . É mais fácil ainda perder -se lá embaixo. Você terá que fazer
o melhor que puder para lembrar do caminho . Ajudarei você onde eu puder .
Rikka assentiu, aparentemente despreocupada . — Sou boa em lembrar
de coisas como uma série de curvas . Eu as memorizo quando faço patrulha .
— Não fique confiante demais. Isso é mais complexo do que uma série
de curvas . Eu mesmo fiquei perdido na Fortaleza , e eu cresci aqui. Não existe só
um jeito certo para chegar até onde estamos indo . Às vezes a rota que você tomou
na última vez não funcionará dessa vez porque lá embaixo nos locais mais
inferiores da Fortaleza os escudos às vezes mudam sozinhos para diferentes
passagens. Isso faz parte do projeto deles para tornar mais difícil atravessar, por
exemplo, se um espião desenhasse um mapa para seus comparsas.
Sem ficar impressionada, Rikka sacudiu os ombros . — Eu entendo . O
Palácio do Povo é desse jeito em algumas das seções para as quais o público não
tem permissão de acesso, complexo, com as passagens abertas pelas quais alguém
pode passar mudando de tempos em tempos. Adicionalmente, não há rota direta
para qualquer lugar, mesmo se todas as passagens estivessem abertas , e elas
jamais estão.
— Eu lembro; já estive lá, ainda que eu estivesse nas áreas públicas ,

254
mas aquelas já eram confusas o bastante . — isso foi depois qu e Darken Rahl havia
capturado Richard. — Porém, eu tive a vantagem no fato de que o Palácio do Povo
é feito na forma de uma feitiço desenhado no solo e eu sei que aquele feitiço em
particular é construído, então eu sei onde a linha primária e os pontos de conexão
estão localizados.
— Bem, — disse Rikka. — nós tínhamos que ser capazes de encontrar
diferentes passagens através do lugar para que pudéssemos ir de uma área para
outra se ele fosse invadido . Ou, se estivéssemos perseguindo alguém , tínhamos
que ser capazes de pensar em um caminho para chegarmos na frente dele . Nós
temos que ser capazes de fazer mais do que simplesmente lembrar de uma série
de curvas. Devemos compreender todo o lugar pelo qual passamos . Em minha
cabeça as curvas que faço formam partes de uma imagem de um lugar . Cada curva
é somada a essa imagem . Com essa imagem sempre crescente em minha mente eu
consigo encontrar meu caminho tomando uma rota diferente porque consigo ver
onde as outras partes estão e como elas se conectam .
Zedd piscou, surpreso. — Esse parece ser um talento extraordinário .
— Eu sempre consegui entender esse tipo de coisa melhor do que consigo
entender pessoas.
Zedd soltou uma breve risada . — Acho que você entende pessoas mais
do que admite.
Ela apenas sorriu .
— Muito bem, agora escute. — ele disse. — Você não precisará apenas
lembrar de muitas curvas esta noite . Tem mais. A única maneira de chegar onde
estamos indo é através de vários escudos . Você não é dotada então o único jeito
de você passar através desses escud os é com uma pessoa dotada para ajudá -la. Se
algum dia for necessário , Richard pode levá-la através deles, como levarei você
esta noite. Mas não importa o quanto você conheça o lugar , ou a forma como os
escudos mudam de posição , não há como passar sem ter que atravessar os escudos ,
então você não conseguirá passar sozinha . Isso significa que você não poderá
praticar a rota sozinha .
Ele balançou um dedo na frente do rosto dela para enfatizar sua
declaração. — Jamais pense em tentar forçar caminho através dos escudos. Tentar
fazer isso seria fatal .
Rikka assentiu. — Entendo. Eu não teria razão para precisar atravessar
sem você ou Lorde Rahl.
Zedd inclinou aproximando -se ainda mais dela . — Pela sua palavra e
pela sua vida.
— Eu já dei a você minha palavra e jur ei pela minha vida . Esse é o jeito
como será.
Zedd encerrou o assunto acenando com a cabeça. — Bom. Vamos lá.
Com Rikka logo atrás dele , Zedd desceu rapidamente pelo corredor
estreito de pedra à esquerda , o caminho deles sendo iluminado pelo globo que ele
carregava. Esferas de vidro em suportes ao longe brilharam levemente assim que
entraram no campo de visão . Conforme passavam por elas , cada uma brilhou com
a aproximação dele e escureceu conforme ele seguia adiante com aquela que havia
recolhido. Na primeira escadaria que eles alcançaram , Zedd subiu, sabendo que
para descer até o seu destino primeiro ele precisava contornar diversas áreas
impenetráveis da parte inferior da Fortaleza passando por áreas mais altas .
Eles seguiram caminho por largos corre dores com elegantes painéis de
madeira nas paredes e pisos de rocha decorados e então por várias salas que
serviam como áreas de estudo do lado de fora de bibliotecas próximas . As salas

255
tinham dúzias de grossos tapetes espalhados por toda parte em vários â ngulos
entre confortáveis cadeiras . Havia amplo espaço em mesas , e diversas lanternas
para fornecerem luz adequada para leitura . Zedd sabia porque passou bastante
tempo lendo livros das bibliotecas .
Após passarem por uma série de corredores de rocha que vi nham de
várias partes da Fortaleza , eles finalmente alcançaram o corredor arterial
principal na seção através da qual eles tinham que passar . O corredor tinha quase
cem pés de altura , com as paredes inclinadas aproximando -se no topo; parecia
como caminhar por uma imensa rachadura na Fortaleza. O sol já estava baixo
então a altas aberturas na rocha pouco contribuíam para iluminar o corredor .
Porém, elas permitiam que os morcegos saíssem a cada início de noite , milhares
dos morcegos surgiam dos lugares escond idos, escuros, úmidos, na Fortaleza e
seguiam seu caminho para fora através das altas aberturas no corredor principal .
Em um portal dourado , Zedd virou para Rikka. — Essa passagem tem
um escudo. Segure minha mão e poderá passar .
Ela não hesitou . Zedd cruzou o escudo primeiro . O escudo produziu uma
suave sensação de formigamento na pele dele através do plano da abertura.
Quando ele virou para trás , em direção a ela, e puxou-a através daquele plano do
escudo no portal , ela encolheu -se.
— Isso não vai machucá-la enquanto eu estiver segurando você. — ele
garantiu a ela . — Posso continuar?
Ela assentiu. — Isso apenas é tão frio . A sensação me pegou de surpresa ,
só isso.
Segurando a mão dela com firmeza , ele puxou-a o resto do caminho
através do portal. Logo que passou ela esfregou vigorosamente os braços .
— O que teria acontecido caso eu tivesse tentado atravessar sem você ?
— É difícil afirmar , uma vez que escudos diferentes fazem coisas
diferentes, mas vamos apenas dizer que você não teria conseguido atravessar. Esse
não tem campo de alerta preliminar , então ele não deve ser fatal . Há diversos
escudos que teremos de atravessar que arrancariam a carne de seus ossos .
Entretanto, esse tipo fornece um grande alerta .
Ela não pareceu muito contente em ouvir aquilo, mas não emitiu
qualquer protesto . Mord-Sith não gostavam de magia, então ele sabia que ela
estava fazendo um grande esforço para suprimir sua resistência natural .
O portão dourado conduzia descendo por um corredor com mármore
branco por todos os lados, os pisos, paredes, e teto. A cor branca era adotada para
evitar certos truques de magia que usavam conjuração envolvendo cores para
enganar os escudos em cada extremidade do corredor . Na outra ponta, Zedd ajudou
Rikka através do escudo... esse usava calor ao invés de frio .
Assim que estavam livres do corredor , eles desceram por vários lances
de degraus de mármore negro empoeirados . Na base dos degraus ele conduziu -a
descendo pela esquerda de três ramificações . A esfera que ele carregava gerava
uma bolha de luz ao redor deles enquanto corriam pelo túnel grosseiramente
escavado na rocha que os levou até salas simples feitas com blocos de pedra .
A maioria das sala tinha um ou dois portais , mas algumas tinham três ,
ou até quatro aberturas que levavam até outras salas. Algumas eram alcançadas
subindo por um curto lance de degraus até mais salas . Algumas das salas estavam
acima ou abaixo apenas um ou dois degraus . Porém, a maioria das salas estavam
niveladas umas com as outras . Os tamanhos das salas pouco variavam e nenhuma
tinha qualquer mobília. Algumas das salas estavam engessadas para deixar as
paredes lisas e algumas dessas estavam pintadas , ainda que a tinta lascada

256
descascando estivesse tão desbotada que as cores mal estav am discerníveis,
fazendo todas elas parecerem ter uma cor encardida similar , uma vez que a poeira
estivera depositada nelas durante séculos . Quando Zedd era garoto ele ficou
perdido no labirinto de salas durante um dia inteiro . O local estava tão intocado
que ainda havia leves pegadas evidentes na fina poeira cobrindo o solo.
Após atravessarem uma séria aparentemente infinita de salas , eles
finalmente saíram em um largo formado por blocos cinzentos de granito bruto .
Enquanto o corredor era largo , o teto era tão baixo que eles tiveram de curvar-se
levemente para não baterem as cabeças . Esse era um lugar que , embora estivesse
vazio e com aparência simples , sempre causara uma impressão nefasta para Zedd.
Após uma curva, suportes de ferro com mais das esferas de vidro brilharam quando
eles passaram, e então apagaram quando eles seguiram em frente . Em vários locais
escadarias de pedra conduziam até o corredor baixo . Diversos outros corredores
mais altos ramificavam da passagem principal .
No final do largo corredor baixo finalmente eles entraram em uma
passagem maior que estava engessada e pintada com uma cor de areia . Relevos de
pilares estavam espaçados descendo na passagem , transmitindo a ela uma
aparência mais grandiosa. Quando chegaram ao meio , Zedd finalmente fez uma
pausa. Ele apontou para o teto .
— Está vendo ali , aquela grade de ferro lá em cima que deixa a Fortaleza
respirar, deixa o ar fresco descer até aqui embaixo ?
Ela olhou para a grade ornamentada. — Aquilo é um livro?
Dentro da figura, formada com as barras de ferro, estava o contorno de
um livro aberto. A figura, criada para ser uma rápida referência visual , indicava
uma seção da Fortaleza que continha várias bibliotecas .
— Sim. A grade ajudará você a lembrar que aqui é onde você deve fazer
a curva. Esse corredor com aquela grade lá em cima é um tronco principal de
passagens. Há muitos caminhos descendo até esse lugar , e daqui você pode ir por
várias rotas para quase todos os lugares na Fortaleza , mas aqui, sob esta grade,
você deve virar descendo esse corredor. — ele apontou em direção a um pequeno
corredor. — Esse é o único caminho para chegarmos aonde estamos indo .
Zedd observou-a enquanto ela olhava ao redor e mais uma vez chec ou a
grade acima. Quando ela estava satisfeita e assentiu , eles começaram a descer um
pequeno corredor lateral .
O corredor continha uma série de salas que Zedd acreditava um dia terem
sido usadas para suprimentos de manutenção. Ele sabia que uma das salas ainda
continha várias ferramentas . Além, no final do corredor, estavam al gumas salas
rudemente construídas feitas de pedra seguidas por pequenas passagens quadradas
correndo em diversas direções . No final da passagem central , eles chegaram a um
conjunto de baixos túneis de serviço que os conduziam em uma rota serpenteante
que mudava de níveis alguns pés de tempos em tempos . Passaram por salas vazias
e portas de ferro enferrujadas que estavam fechadas . Teias de aranha cobriam os
túneis em alguns locais. Em outros lugares, seções de corredor es que eram vários
pés mais baixos guardavam água parada . As carcaças apodrecidas de ratos
flutuavam na água fétida . Sem uma palavra eles caminharam através da água para
alcançarem o solo mais alto além .
Quando chegaram a uma escadaria de pedra em espiral depois do
labirinto eles desceram na escuridão total , a esfera silenciosa levando luz e
sombras a lugares que não tinham sido iluminados durante anos . A escada era
estreita, larga apenas o suficiente para a descida de um corpo por vez . Parecia
como estar sendo engolido através da garganta de algum monstro de pedra .

257
Na base da escadaria em espiral , a luz gerava leves sombras descendo
por passagens escavadas rudemente que eram túneis de inspeção para uma parte
da fundação da Fortaleza . Fragmentos de quartzo em blocos de pedra da fundação
do tamanho de pequenos palácios cintilaram quando a luz passou sobre eles . Zedd
conduziu Rikka até a estreita escada que descia ao lado do rosto daquela parede
de fundação brilhante. Os dois olharam por cima da borda daquela fenda no solo
antes de começarem a descer .
No fundo eles seguiram a estreita fenda pela base dos blocos de
fundação. A rocha erguia-se mergulhando na escuridão , o quartzo cintilante acima
pareciam estrelas. À direita estava um muro rudemente esculpido de rochas
desmoronando. Se aquela muro desabasse , eles seriam enterrados vivos onde
ninguém jamais procuraria por eles .
A fundação nessa parte da Fortaleza era mantida livre das rochas ao
redor para que a mesma pudesse mover-se um pouco se fosse necessári o. Os blocos
de fundação haviam sido colocados sobre as rochas mais firmes abaixo . A estreita
fenda também fornecia uma área para inspeção das fundações . Zedd sempre achara
incrível que ele nunca tivesse encontrado qualquer bloco que estivesse partindo.
Alguns tinham rachaduras , mas elas não eram consideradas problemas estruturais .
Quando eles chegaram a outo lance estreito de escadas no final da fenda , desceram
novamente, mais fundo dentro da abertura em total escuridão .
— Isso tem algum final ? — Rikka perguntou.
Zedd olhou para trás por cima do ombro , a esfera brilhante banhando -a
em fraca luz amarelada. — Estamos bem fundo na montanha e chegando mais
perto de uma das encostas laterais . Ainda temos bastante caminho a seguir .
Ela simplesmente assentiu , resignada com o quanto isso era distante .
— Acha que consegue chegar tão longe se estiver comigo ou com
Richard para atravessar os escudos ?
Houve vários escudos , alguns através dos quais ela não gostara de
passar. Para alguém sem a proteção do Dom em algun s lugares essa era uma
experiência bastante desconfortável , mesmo com Zedd ajudando-a.
— Acredito que sim. — disse ela.
Nos canais de inspeção mais baixos , eles chegaram a túneis ladrilhados
que, quando necessário, também serviam como drenos . Zedd entrou no complexo
de túneis , avançando por cruzamentos que ele lembrava desde que era garoto .
Água pingando ecoava através das passagens . Estava frio o bastante para
enxergar a respiração deles no ar úmido . Água gotejava entre os ladrilhos em
alguns pontos , tornando o túnel escorregadio .
Em diversos lugares , bem no meio de lugar algum nos túneis , eles
encontraram escudos poderosos pelos quais ele ajudou -a a cruzar. Muitos eram
tão fortes que eles receberam alertas com bastante antecedência . Zedd teve que
envolvê-la em seus braços para protegê -la o suficiente e atravessá -la de forma
segura.
— Tem um monte de ratos aqui embaixo. — Rikka falou.
Zedd podia ouvir centenas deles guinchando por todo o caminho nas
passagens. As pequenas bestas pareciam fugir antes que a luz pudesse iluminá-los
completamente, então eles ficavam em evidência pelo som , não pela visão, a não
ser os mortos.
— Sim. Você tem medo de ratos ?
Ela parou e fez uma careta para ele . — Ninguém gosta de ratos .
— Quanto a isso não posso discutir com você .
A cada cruzamento Zedd indicava para ela o caminho pelo qual eles

258
tinham que seguir. Ele não conseguia imaginar como ela conseguiria lembrar do
caminho. Esperava que isso jamais fosse necessário . Esperava que fosse ele quem
mostraria isso a Richard. Quando garoto Zedd usara rastreadores de magia para
aprender o caminho. Rikka prestava bastante atenção e observava cada um dos
cruzamentos escuros que eles encontravam . Ele tinha certeza de que isso era mais
do que aquilo pelo qual ela havia barganhado e que ela não conseguiria lembrar
do caminho. Pensou que talvez ele a levasse diversas vezes mais para ajudá -la a
ficar com tudo mapeado em sua cabeça . Depois disso, ele a testaria e deixaria que
ela indicasse o caminho .
Depois daquilo que pareceu uma jornada in finita descendo mais ainda,
eles finalmente entraram em uma sala colossal , uma imensa câmara parecida com
uma caverna que surgia do interior da montanha . O granito extraído da montanha
desse lugar aqui embaixo fornecera parte das rochas para fundação . As rochas,
abandonadas após a construção ter sido concluída , foram deixadas para trás nessa
enorme sala.
Em algum lugares ao redor dos lados , os construtores da Fortaleza
haviam deixado alguns pilares de pedra no lugar para apoiar o que eles
aparentemente cons ideravam as áreas mais fracas do teto . Em pontos pela sala
havia largas faixas de obsidiana , uma rocha negra vítrea que não era adequada
como material de construção . Zedd tinha visto ela ser usada em alguns locais do
lugar, em maior parte para decoração . No brilho de luz da esfera , a superfície da
obsidiana exibia arcos curvados brilhantes deixados por pedaços removidos com
cinzel, transmitindo a ela uma aparência de escamas de peix e.
O centro da gigantesca sala , onde a rocha era mais rígida , era abobadado
com uma altura de mais de duzentos e cinquenta pés . Pela evidência na rocha ,
parecia que os trabalhadores começaram no topo , removendo enormes blocos de
rocha logo embaixo daquilo que era o teto atual . Então eles começaram a extrair
o nível inferior segui nte de rocha até que eventualmente haviam escavado a sala
parecida com uma caverna . Os diferentes níveis de galerias ao redor eram altos o
bastante, e largos o suficiente entre as grossas colunas quadradas , para que os
blocos de fundação fossem transportad os. Além da sala estavam rampas onde os
blocos haviam sido baixados até as partes mais inferiores da fundação .
— Está vendo ali , do outro lado da sala? — Zedd perguntou, apontando
para um enorme corredor escuro para o qual ele sabia que as rampas em volta
conduziam. — Aquilo foi construído primeiro . É o canal principal de onde os
blocos de fundação foram transportados desta sala para a fundação por toda aquela
seção da Fortaleza. Veja como o piso está desgastado pelo trabalho .
O chão levando para dentro do abismo escuro estava tão gasto, tão liso,
que parecia ele quase parecia ter sido polido .
— Porque não viemos por aquele caminho... teria sido uma rota muito
menor.
Ele estava impressionado que ela tivesse percebido que a passagem
primária corria na direção da qual eles tinham vindo . Os blocos de rocha para a
fundação não teriam seguido a rota serpenteante que eles fizeram .
— Você está certa , teria sido menor, mas tem escudos lá pelos quais eu
não consigo passar. Uma vez que não consigo entrar lá , por causa daqueles
escudos, não sei o que tem ali dentro , mas suspeito que provavelmente os
construtores criaram salas lá dentro que guardam coisas que devem ser protegidas .
Realmente não consigo pensar em qualquer outra razão para aqueles escudos .
— Porque você não consegue passar por eles ? Você é o Primeiro Mago .
— Os magos daquela época tinham os dois lados do Dom . Richard é o

259
primeiro em milhares de anos a nascer tanto com o lado Subtrativo quanto o
Aditivo. Escudos com Magia Subtrativa são mortais e normalmente são reservados
para os lugares mais perigosos , ou lugares que possuem itens excepcionalmente
importantes que eles estavam mais preocupados em proteger.
Zedd guiou Rikka através da vasta sala por uma rota que os manteve
perto da parede externa . Ele raramente descia até esta sala então precisava
observar a parede de pedra cuidadosamente enquanto eles avançavam . Quando
chegaram ao local que ele estava procurando , ele segurou o braço de Rikka e fez
ela parar.
— É isso.
Rikka piscou quando olhou ao redor . Para olhos inexperientes , parecia
a mesma coisa que as outras salas . — É isso o quê?
— O lugar secreto.
Parecia com o resto da enorme sala . Por toda parte as paredes estavam
marcadas com os cortes deixados por ferramentas usadas por trabalhadores fazia
milhares de anos .
Zedd ergueu a esfera de vidro para que ela pudesse enxergar o lugar que
ele apontava. — Aqui. Está vendo aquele corte lá em cima ? Aquele que segue
nesse ângulo, acompanhando a fissura, e um pouco mais gordo no meio ? Enfie a
sua mão esquerd a dentro dele. Tem uma abertura atrás do corte , mais fundo dentro
da fissura.
Rikka fez uma careta para ele mas então ficou na ponta dos pés e enfiou
a mão dentro da abertura até as articulações dos dedos .
— Tem uma borda na rocha aqui. — ele disse. — Usei ela quando era
menor. Se não conseguir alcançar , pise em cima da borda .
— Não, eu consegui. — ela falou. — E agora?
— Você está apenas na metade do caminho . Coloque a sua mão mais
fundo.
Ela agitou os dedos e enfiou a mão ainda mais até chegar ao pul so. —
Isso é o mais distante onde posso chegar . Está sólido no local onde estão as pontas
dos meus dedos.
— Mova o seu dedo mais longo para cima e para baixo até encontrar um
buraco.
Ela fez uma careta enquanto mexia os dedos . — Achei.
Zedd segurou a mão direita dela e guiou -a para dentro de uma abertura
similar em outra parte da mesma fissura ao nível da cintura dela . — Encontre um
buraco no fundo dessa também . Quando encontrar, empurre um dedo com firmeza
dentro dos dois buracos .
Ela emitiu um leve som na garganta com o esforço . — Achei. Estou com
os dois. Estou empurrando .
— Muito bem, agora, enquanto empurra com os dois dedos , coloque o
seu pé direito aqui em cima , na parede à direita do outro lado dessa rachadura, e
dê um forte empurrão .
Ela fez uma careta , mas fez como ele disse. Nada aconteceu.
— Não consegue empurrar mais forte do que isso ? Não me diga que você
não é tão forte quanto um velho magro .
Ela lançou um olhar furioso para ele e então usou o apoio das mãos como
alavanca enquanto grunhia com o esforço e deu um bom empurrão na parede com
a bota. De repente, o rosto da rocha começou a afastar -se. Zedd indicou a Rikka
para dar um passo atrás . Ambos observaram quando uma seção da parede recuou
silenciosamente como se fosse uma porta , e era exatamente isso . Independente do

260
seu peso monumental , ela estava tão perfeitamente equilibrada que tão logo os
dois trincos dos dedos foram liberados , ela girou sobre um eixo com apenas um
forte empurrão . — Queridos espíritos , — Rikka sussurrou quando inclinou em
direção da abertura e deu uma olhada dentro da boca escura . — Como você
encontrou um lugar como esse ?
— Encontrei isso quando era criança . Na verdade, encontrei a outra
ponta. Assim que cheguei até aqui , sabia onde era esse local e tomei nota
cuidadosamente para conseguir encontrá -lo novamente. Nas primeiras vezes eu
não consegui encontrar , então tive que atravessar outra vez .
— Bem, o que é isso ?
— Quando eu era garoto , isso foi minha salvação . Era o caminho através
do qual eu conseguia retornar sorrateiramente para dentro da Fortaleza sem ter
que cruzar a ponte e entrar pela frente , como todos os outros .
Ela arqueou uma sobrancelha com desconfiança . — Você deve ter sido
uma criança problema.
Zedd sorriu. — Tenho que admitir que houve pessoas que concordariam
com isso. Esse lugar me serviu bem . Eu também fui capaz de entrar por aqui
quando as Irmãs do Escuro haviam tomado a Fortaleza . Elas só sabiam guardar a
entrada da frente. Elas, como todas as outras pes soas vivas , não sabiam que esse
lugar existia.
— Então era isso que você queria me mostrar ? Um caminho secreto para
entrar na Fortaleza?
— Não, essa é de longe a coisa menos importante ou extraordinária a
respeito desse lugar . Venha e mostrarei a você .
A desconfiança dela emergiu outra vez . — Exatamente que tipo de lugar
é esse?
Zedd levantou a esfera de luz quando inclinou em direção a ela e
sussurrou.
— Além desse ponto está a noite eterna : a passagem dos mortos .

261
C A P Í T U L O 3 5

O uivo distante de um lobo despertou Richard de um sono pesado . O


grito aflito ecoou pelas montanhas , mas ficou sem resposta . Richard deitou de
lado, na luz surreal do falso amanhecer , escutando distraidamente , esperando, por
um uivo de resposta que nunca veio .
Não importava o quanto tentasse , ele parecia não conseguir abrir seus
olhos por mais tempo do que uma breve batida lenta do coração , muito menos
reunir a energia para erguer sua cabeça . Galhos de árvore sombreados pareciam
mover-se na escuridão.
Richard arfou quando despertou completamente . Ele acordou furioso .
Estava deitado sobre as costas . A espada dele estava sobre o seu peito ,
uma da mãos segurando a bainha , a outra o cabo tão forte que as letras da palavra
VERDADE estavam pressionando dolorosamente con tra sua palma em um lado e
contra os dedos do outro . A Espada da Verdade estava parcialmente fora de sua
bainha. A fúria dela também havia deslizado parcialmente sua fronteiras .
Os primeiros leves traços do amanhecer estavam apenas começando a
banhar silenciosamente o lado da montanha com floresta . As espessas árvores
estavam quietas e imóveis .
Richard enfiou de volta a lâmina na bainha e sentou , colocando a espada
ao lado dele em seu pequeno colchão .
Ele encolheu as pernas e colocou os cotovelos sobre os joelhos enquanto
deslizava os dedos através do cabelo . O coração dele ainda estava acelerado por
causa da fúria da espada . Ela havia invadido ele sem a sua consciência ou direção ,
mas ele não estava surpreso ou alarmado . Essa não era a primeira vez em que ele
tinha começado a sacar a espada enquanto lembrava daquela manhã fatídica
enquanto deslizava nos laços do sono . Às vezes ele acordava para descobrir que
tinha sacado a lâmina completamente .
Porque ele continuava tendo aquela recordação quando desper tava?
Ele sabia muito bem o motivo . Aquela foi a manhã em que ele acordou
para descobrir que Kahlan desaparecera. Essa era a lembrança terrível da manhã
em que ela desapareceu . Era um pesadelo sobre o pesadelo em que sua vida havia
se transformado , e ainda assim, ele sabia que tinha alguma coisa nisso que
continuava fazendo aquilo passar em sua mente . Tinha penado nisso mil vezes
mas não mas não conseguia descobrir o que era tão importante a respeito daquela
recordação em particular . O lobo ter acordado ele foi um pouco esquisito , mas
aquilo não pareceu tão estranho a ponto de continuar assomb rando ele.
Richard olhou ao redor na obscuridade mas não viu Cara. Entre os
grossos galhos de árvores ele conseguia distinguir a leve mancha avermelhada
projetando -se através do céu ao leste. A tonalidade da cor quase parecia com
sangue escorrendo através de um corte no céu negro além das árvores
perfeitamente imóveis.
Ele estava com os ossos cansados do passo implacável da cavalgada
deles vindo das profundezas do Mundo Antigo. Eles foram parados diversas vezes
por soldados em patrulha espalhados por Midlands, e por tropas ocupantes . Essa
não era de modo algum a força principal da Ordem Imperial , mas eles já tinham
problemas suficientes . Uma vez eles deixaram Cara e Richard, fazendo papel de
escultor de rocha e sua esposa , seguirem seu caminho até um trabalho pela glória

262
da Ordem que Richard inventara. Nas outras vezes os dois tiveram que abrir
caminho lutando . Aqueles encontros foram sangrentos .
Ele precisava dormir mais... eles dormiram pouco em sua jornada... mas
enquanto Kahlan estivesse desaparecida eles não podiam ter o luxo de dormir mais
do que era absolutamente necessário . Ele não sabia quanto tempo tinha para
encontrá-la, mas não pretenda desperdiçar qualquer parcela dele. Recusava-se a
acreditar que seu tempo já havia esgotado .
Um dos cavalos morrera de exaustão não fazia muito tempo ; ele não
conseguia lembrar exatamente quando . Outro ficou aleijado e tiveram que
abandoná-lo. Richard se preocuparia depois em arranjar mais cavalos . Havia
preocupações mais importantes no momento . Eles estavam perto de Agaden
Reach, o lar de Shota. Durante os últimos dois dias eles estiveram subindo em
ritmo firme as formidáveis montanhas que c ercavam Reach.
Enquanto esticava seus músculos cansados doloridos ele tentou
novamente pensar em como convenceria Shota a ajudá-lo. Ela o ajudara antes ,
mas isso não era garantia de que ela o ajudaria dessa vez . Shota podia ser uma
pessoa difícil , para falar o mínimo . Havia pessoas que ficavam tão aterrorizadas
com a feiticeira que não pronunciariam o nome dela em voz alta .
Uma vez Zedd disse a ele que Shota nunca falava qualquer coisa que
você queria saber sem também falar algo que você não queria . Richard realmente
não conseguia imaginar o que não queria saber , mas entendia bastante claramente
o que queria saber e pretendia pedir a Shota para contar a ele qualquer coisa que
soubesse a respeito do desaparecimento de Kahlan ou onde ela poderia estar . Se
Shota recusasse, haveria problemas.
Enquanto sua raiva crescia ele percebeu que estava sentindo o frio toque
arrepiante de neblina em seu rosto .
Foi então que ele também notou algo movendo -se nas árvores .
Ele cerrou parcialmente os olhos em um esforço para enxergar na
escuridão. Não poderia ser a brisa movendo as folhas ; não havia vento na floresta
silenciosa pouco antes do amanhecer .
Galhos de árvores sombreados surgiram balançando na densa escuridão .
Também não havia vento naquela manhã .
A sensação de alarme de Richard cresceu combinando com o ritmo da
batidas de seu coração . Ele levantou no colchonete .
Algo estava deslizando entre as árvores .
Não estava perturbando os galhos ou arbustos do jeito que uma pessoa
ou um animal faria. A coisa estava erguida, talvez ao nível dos olhos.
Simplesmente não havia luz suficiente para que ele visse o que era . Porém, escuro
e parado como estava o amanhecer , ele não conseguia ter certeza se realmente
havia alguma coisa lá. Podia ter sido a sua imaginação ; estar tão perto assim de
Shota certamente era o bastante para deixá -lo inquieto. Ainda que ela pudesse ter
ajudado ele no passado , ela também causara a ele problemas sem fim .
Mas se não havia algo lá entre as árvores , então porque a pele dele estava
formigando de pavor ? E o que foi o som quase imperceptível que ele escutara ,
como um suave sibilar?
Sem afastar os olhos da floresta escura , Richard esticou o braço e
colocou as pontas dos dedos contra um abeto próximo para equilibrar -se enquanto
agachava cuidadosamente para pegar sua espada do local onde ela jazia ao lado
do colchonete. Quando passava silenciosamente o boldrié por cima da cabeça , ele
tentou concentrar os olhos na escuridão em frente para ver o que , se é que havia
algo, estava movendo -se. Seja lá o que estivesse movendo -se, não podia ser muito,

263
e ainda assim ele estava mais e mais convencido a cada momento de que realmente
era alguma coisa .
O aspecto mais desconcertante disso era a forma como aquilo
movimentava-se. Não movia-se em curtos saltos , como um pássaro pelando de
galho em galho , ou em disparadas correndo e parando como um esquilo . Não
estava movendo -se ao menos de forma sorrateira como uma cobra que deslizava ,
então fazia uma pausa, e então deslizava um pouco mais .
Isso não deslocava -se apenas de maneira fluida e s ilenciosa, mas
contínua.
Os cavalos, no meio das árvores em um curral que Richard construiu
usando galhos como uma cerca para fechar o acesso de um estreito abismo ,
bufaram e bateram os cascos . Um grupo de aves ao longe repentinamente saltaram
de seus poleiros e voaram .
Pela primeira vez , Richard percebeu que as cigarras estavam em
silêncio.
Richard detectou o leve cheiro de algo fora de lugar na floresta .
Cuidadosamente , silenciosamente, ele farejou o ar , tentando identificar o cheiro .
Ele imaginou que pod ia ser o odor de algo queimando . O cheiro não era tão forte
quanto seria o de um incêndio. Quase parecia com uma fogueira , mas eles não
tinham fogueira; Richard não quis perder tempo ou arriscar atrair atenção . Cara
tinha uma lanterna com uma fina proteção ao redor, mas não parecia o cheiro da
chama de lanterna.
Ele observou a floresta ao redor , procurando Cara. Ela estava de vigia
então provavelmente estava nas proximidades , mas Richard não avistou -a.
Certamente ela não teria ido longe , especialmente não depois do ataque da manhã
em que Kahlan desapareceu. Ela estava preocupada demais com a segurança dele
e sabia que dessa vez , se ele fosse atingido por uma flecha , não haveria Nicci para
salvar a vida dele. Não, Cara estaria perto.
O instinto dele era de ch amá-la, mas ele conteve a vontade . Primeiro ele
queria descobrir o que estava acontecendo , descobrir o que estava errado , antes
de soltar um grito de alerta ; um alerta também indicaria a qualquer adversário que
ele já estava ciente da sua presença . Era melhor deixar que um oponente ,
especialmente um oponente que esgueirava-se até você, acreditasse que não havia
sido detectado.
Enquanto ele estudava os arredores , Richard pensou que havia alguma
coisa que não estava certa com a floresta . Ele não conseguia definir, mas ela
parecia errada. Ele imaginou que estava com essa impressão em parte por causa
do curioso cheiro de queimado . Ainda estava escuro demais para conseguir ver
qualquer cosia claramente , mas de acordo com o que ele conseguia enxergar ,
parecia que os galhos não estavam certos . Tinha alguma coisa estranha nos galhos
de pinheiro , nas folhas. Elas não pareciam pender de forma natural .
Ele lembrava muito bem da primeira vez em que veio até Agaden Reach.
Descendo bem longe as montanhas ele havia sido ata cado por alguma criatura
estranha. Enquanto ele lutou freneticamente para afastá-la, Shota capturou Kahlan
e levou-a para Reach. Aquele ataque deve ter sido o pretexto de um estranho
tentando conduzi-lo para uma emboscada . A criatura finalmente havia fugid o. E,
dessa vez não havia algum estranho . Ainda assim, isso não significava que uma
criatura como aquela , tendo falhado anteriormente , não pudesse dessa vez tentar
uma aproximação diferente . Ele também lembrou que sua espada foi tudo o que
mantivera a coisa monstruosa afastada.
Tão silenciosamente quanto possível , Richard sacou lentamente a espada

264
da bainha. Em uma tentativa de evitar que ela emitisse qualquer ruído, ele
pressionou os lados da lâmina logo na boca da bainha , deixando o aço deslizar
entre seu indicador e o dedão enquanto escapava da bainha . Mesmo assim , a
lâmina sibilou suavemente quando ficou livre . A fúria da espada também rompeu
suas fronteiras .
Enquanto empunhava com firmeza sua espada , ele começou a mover -se
cautelosamente em direção ao p onto onde pensou ter visto movimento . Sempre
que estava olhando para outro lugar , ele pensava que podia ver com o canto dos
olhos uma suave forma de algo na frente dele , mas quando olhava diretamente
para o lugar, não conseguia enxergar . Ele não sabia se i sso era um truque de sua
visão, ou se nada havia para ver .
Ele tinha plena consciência de que em condições escuras a visão do
centro dos olhos não era tão boa quanto a visão periférica . Sendo um guia florestal
e tendo passado muito tempo em campo aberto du rante a noite, ele tinha usado
com frequência a técnica de não olhar diretamente para aquilo que ele precisava
ver, e ao invés disso olhava a pelo menos quinze graus de distância daquilo . De
noite, a visão periférica funcionava melhor do que a visão direta . Desde que
partira de sua floresta onde ele foi um guia , aprendera que o talento de focar sua
atenção em lugares específicos na sua visão periférica enquanto não virava os
olhos era de valor inestimável na luta com espada .
Antes que ele tivesse caminhado três passos, sua perna encostou em algo
que não deveria estar ali . Foi um leve contato, quase como o de um galho baixo .
Ele parou imediatamente , antes de colocar qualquer pressão nele . Sentiu o cheiro
de algo novamente, só que mais forte. Tinha cheiro parecido com pano queimado .
Então ele sentiu o intenso calor contra sua tíbia . Rapidamente, e sem
emitir qualquer som , ele recuou.
Pela vida dele , Richard não conseguia imaginar no que ele havia tocado .
Não foi qualquer coisa natural em que ele pudesse pen sar. Poderia ter suspeitado
de que era algum tipo de arame para alertar alguém escondido nas árvores
próximas se ele entrasse em movimento , mas um arame não o queimaria do jeito
que essa coisa fez .
Seja lá o que fosse, puxou a calça dele, como se fosse pegajoso, quando
ele afastou-se. Quando ele recuou livrando -se daquilo, o suave movimento nas
árvores cessou abruptamente , como se tivesse detectado o contato contra a calça
dele que foi quebrado . O silêncio total ecoando nos ouvidos dele era quase
doloroso.
A neblina era fraca demais para gerar qualquer som ao atingir as folhas
e a umidade que as agulhas de pinheiro absorviam do ar não era suficiente para
gotejar muito . Além disso, o som que ele ouvira foi algo diferente da água de
chuva. Richard focou sua co ncentração nas sombras escuras , tentando distinguir
o que havia parado de mover -se.
Então, aquilo começou outra vez , apenas mais rápido , como se estivesse
com maior determinação . O som leve, suave, sussurrando entre os galhos das
árvores de um jeito que fez ele lembrar da lâmina de um patim deslizando através
do gelo.
Quando Richard recuou, algo tocou em sua outra perna . Era pegajoso ,
exatamente como a coisa em que ele tinha encostado antes . Isso também era
quente.
Quando ele virou para ver o que estava e ncostando contra sua perna ,
algo roçou em seu braço , logo acima do cotovelo . Ele não estava usando camisa ,
e no instante que a coisa pegajosa o tocou ela queimou sua carne . Ele recuou

265
rapidamente o braço e então afastou -se da coisa que tocava sua perna . Com a mão
que segurava a espada, ele acariciou silenciosamente o local dolorido em seu
braço esquerdo . Sangue quente escorreu sobre os seus dedos . Sua fúria, e a fúria
que o inundava vindo da espada , juntas, ameaçavam sobrepujar o seu senso de
cautela.
Ele girou o corpo, tentando ver na escuridão o que estava ali que não
deveria estar . O leve feixe avermelhado de luz no horizonte cintilou na lâmina
dele quando ele virou , fazendo o metal polido parecer como se estivesse coberto
por sangue para combinar com o s angue bastante real que cobria sua mão no cabo .
As sombras ao redor dele estavam começando a fechar o cerco em
direção a ele. Fosse lá o que fosse , conforme aquilo chegava mais perto tocava
galhos e ramos ao redor dele , empurrando suavemente folhas e arbustos conforme
avançava. Richard suspeitou que o suave som sibilante que ouvira na verdade era
o som da vegetação sendo queimada quando era tocada . O cheiro de folhas
queimando que detectou primeiro começou a fazer sentido para ele ; simplesmente
não fazia qualquer ideia do que poderia estar causando isso , ou como. Ele
duvidaria do seu julgamento , duvidaria que uma coisa assim pudesse ser real , se
não fosse pela forte dor ardente do toque daquilo . Certamente ele não estava
imaginando o sangue que escorria por seu braço.
Instintivamente, Richard soube que o tempo dele estava esgotando .

266
C A P Í T U L O 3 6

Velozmente, mas de forma silenciosa, Richard ergueu a espada diante de


si preparando-se para um ataque... que tipo de ataque ele não tinha certeza, mas
ele pretendia estar preparado . Ele encostou o aço frio da lâmina em sua testa
suada.
Ele pronunciou as palavras — Lâmina, seja verdadeira hoje . — em um
suave sussurro inaudível , comprometendo ele e sua espada a fazerem o que fosse
necessário.
Algumas gotas de chuva esparramaram -se contra o peito nu dele . No
início esporádica, a chuva intermitente começou a aumentar gradualmente um
pouco. O suave som sussurrante das gotas de chuva contra a espessa cobertura de
folhas começou a espalhar -se através da calmaria da floresta . Richard piscou
removendo gotas de água dos cílios .
Em meio ao som do movimento de galhos , então ele ouviu o súbito ruído
de passos começando a correr em direção a ele . Ele reconheceu o modo de andar
inconfundível de Cara. Aparentemente, ela estivera patrulhando ao redor do
perímetro do acampamento deles e ouvira os mesmos sons que ele ouviu .
Conhecendo Cara, ele não estava nem um pouco surpreso que ela estivesse
prestando bastante atenção .
Mas sob a cobertura do som da chuva , em volta dele, Richard podia ouvir
galhos sendo empurrados lentamente uns contra os outros . Aqui e ali alguns
galhos finos estalavam conforme algo chegava cada vez mais perto ao redor dele .
Alguma coisa tocou seu braço esquerdo . Ele recuou um passo, afastando seu braço
do contato pegajoso . A queimadura latejava dolorosamente . Agora o sangue
quente escorria por seu braços em dois pontos . Sentiu algo tocar atrás de sua
perna. Ele afastou a perna do contato gosmento .
Cara saiu do meio das árvores não muito longe . Ela não foi sutil . Ela
abriu uma portinhola na proteção em volta da lanterna que carregava, deixando
um fraco feixe luz espalhar -se no acampamento.
Richard conseguiu ver o que ele tinha pensado parecer com uma estranha
teia escura de alguma coisa entrelaça da em volta dele, trançada entre árvores ,
arbustos, galhos. Pareciam algum tipo de cordas grossas , mas orgânica e grudenta ,
ele não conseguia imaginar o que isso era ou exatamente como isso havia se
espalhado por toda parte ao redor dele .
— Lorde Rahl! Você está bem?
— Sim. Fique onde está.
— O que está acontecendo ?
— Ainda não tenho certeza .
O som aproximou -se quando os fios escuros que estavam imóveis ao
redor dele novamente começaram a fechar cada vez mais . Um deles pressionou
contra as costas dele . Ele encolheu-se, girou, e golpeou com a espada .
Logo que ele o cortou , o emaranhado todo em volta dele tencionou e
contraiu em direção a ele .
Cara abriu totalmente a proteção ao redor da lanterna , esperando
enxergar melhor. De repente Richard conseguiu ver que os fios reluzentes estavam
quase formando um casulo . Ele até viu linhas da coisa entrelaçando acima de sua
cabeça. Tão perto como tudo aquilo estava , ele estava ficando sem espaço livre

267
para manobrar.
Com um estalo de compreensão , ele entendeu o leve som que ouviu
primeiro. O movimento fluido, contínuo, era algo traçando os filamentos ao redor
dele como se ele fosse uma refeição para uma aranha . Entretanto, esses filamentos
eram tão grossos quanto seu pulso . O que exatamente eles eram , ele não tinha
ideia. O que ele sabia era que quando eles o tocaram , grudando em sua perna, no
braço esquerdo, e nas costas, eles causaram queimaduras dolorosas .
Conseguiu ver Cara e sua lanterna enquanto ele esquivava de um lado
para outro, procurando um jeito de chegar até ele.
— Cara, para trás ! Isso vai queimá-la se você tocar.
— Queimar?
— Sim, como ácido , eu acho. E isso é pegajoso. Mantenha distância ou
você pode acabar presa.
— Então como você sairá do meio disso ?
— Simplesmente terei que cortar abrindo caminho . Fique aí e deixe que
eu vá até você.
Quando os fios chegaram mais perto pelo lado esquerdo , finalmente ele
girou a espada e golpeou . A lâmina brilhou na luz da lanterna de Cara , cortando
o emaranhado de fibras pegajosas . Quando eram partidos pelas lâminas , eles
chicoteavam como se estivessem sob tensão . Alguns grudaram em galhos de
árvores, ficando pendurados como musgo lamacento . Na luz da lanterna, ele podia
ver as folhas enrolando , evidentemente por estarem sendo queimadas quando eram
tocadas pelos fios.
Seja lá o que estivesse criando as teias da coisa , Richard não enxergava.
A chuva começou a cair um pouco mais forte quando Cara correu de um
lado para outro , tentando encontrar um jeito de entrar . — Acho que eu consigo...
— Não! — ele gritou para ela. — Eu já falei... fique longe disso !
Richard girava a espada sobre as grossas cordas escuras sempre que elas
aproximavam-se em volta dele , tentando aumentar sua constrição e enfraquecendo
sua integridade, mas ele era forçado a não fazer isso a não ser que nã o tivesse
escolha porque os fios grudentos estavam começando a colar na lâmina .
— Tenho que ajudar você a deter essa coisa ! — ela gritou de volta ,
impaciente para libertá-lo.
— Você apenas ficará presa . Se fizer isso, então não poderá ajudar .
Mantenha distância. Eu disse, deixe que eu abra caminho e vá até você .
Isso, pelo menos, pareceu finalmente dissuadi -la de qualquer tentativa
imediata para atravessar . Ela permaneceu meio agachada , os lábios pressionados
com furiosa frustração , o Agiel em seu punho, sem saber o que fazer... não
querendo ir contra aquilo que ele falou e percebendo o sentido naquilo que ele
havia dito... mas ao mesmo tempo não querendo que ele tivesse que abrir caminho
sozinho.
Era um tipo de batalha não violenta, estranha, confusa . Parecia não haver
pressa. Os cortes que ele infligiu não pareceram causar qualquer dor na coisa . A
aproximação lenta, inexorável, do emaranhado ao redor parecia estar tentando
fazer ele encolher -se, independente do quanto parecia haver tempo suficiente para
analisar a situação .
A despeito daquela aparência tranquila , daquela calma enganadora ,
Richard considerava o avanço implacável da armadilha alarmante ao extremo . Não
desejando entregar-se diante daquele apelo para inatividade , Richard girou a
espada novamente, penetrando nas paredes da teia .
Ele podia ver mais dos fios surgindo na floresta de todas as partes em

268
volta dele mesmo quando tentava abrir caminho . Aquilo estava reforçando -se,
adicionando uma camada mesmo quando ele cortava a parte mais perto dele . Para
cada dúzia de fios que ele corta , duas dúzias mais o envolvem . Ele continuou
estudando a floresta , tentando ver o que estava criando o crescente emaranhado
para que pudesse atacar a causa e não o resultado . Independente do quanto
tentasse, ele não con seguia ver um fio principal ou o que estava tecendo a rede,
mas as cordas viscosas estavam movendo -se rapidamente entre as árvores e
arbustos, os fios esticando e multiplicando -se o tempo todo, infinitamente
somando e formando mais de si mesmos po r todos os lados dele.
Mesmo que parecesse como se ele tivesse amplo tempo para descobrir
um jeito de sair, ele sabia que esse pensamento era uma esperança vazia de um
tolo. Ele estava bastante consciente de que seu tempo estava esgotando
velozmente. O nível de alarme dele aumentava constantemente . Sua carne latejava
em dor, lembrando a ele que destino o aguardava se ele não escapasse . Chegaria
um momento, ele sabia, quando a ação não seria mais possível . Sabia que assim
que a intrincada armadilha contraísse o bastante, ele morreria, mas ele duvidava
que fosse uma morte rápida .
Enquanto a teia reforçava -se em torno dele e movia -se fechando o cerco ,
Richard atacou, cortando furiosamente, fazendo um esforço alucinado para abrir
caminho através da armadilha constritiva. Porém, cada vez que ele girava a
espada, a lâmina ficava mais enredada na substância grudenta que formava os fios .
Quanto mais ele cortava , mais aquilo grudava junto com o que já estava grudado
com tenacidade em sua espada . A massa grudenta estava ficando pesada e
tornando cada vez mais difícil cortar a parede .
Enquanto ele tentava golpear e cortar abrindo caminho , um grupo dos
filamentos não apenas cont inuou a enrolar -se em uma massa em volta de sua
espada, mas começou a aderir na parede da armadi lha, transformando em uma
formidável tarefa simplesmente mover a espada . Ele sentia-se como uma mosca
preso em uma teia de aranha. Era necessário um grande esforço para retirar a
espada da parede de fios . Eles, em contra partida , grudando na espada , esticavam
em fios pegajosos .
Essa era a primeira vez que Richard tinha encontrado um adversário que
causava tamanha dificuldade para a espada . Ele cortara armaduras e barras de
ferro com ela, mas esta substância pegajosa , apesar de ser possível cortar ,
simplesmente voava e colava em tudo .
Ele lembrou de Adie uma vez ter perguntado o que ele achava que era
mais forte, os dentes ou a língua. Ela defendera a ideia de que a língua era mais
forte, ainda que fosse muito macia , e duraria muito tempo depois que os dentes
se fossem. Embora fosse em um contexto diferente , isso tinha uma significância
assustadora nesse caso também .
Alguns dos fios pegajosos esticaram e colocaram nas pernas dele .
Quando ele puxou sua espada de volta , um fio caiu em seu braço direito . Ele gritou
de dor e caiu de joelhos .
— Lorde Rahl!
— Fique aí ! — ele gritou antes que Cara tivesse chance de tentar
novamente alcançá -lo. — Estou bem. Apenas fique onde você está .
Agarrando um monte de folhas , cascas, e terra, ele usou os detritos para
proteger sua mão quando arrancava a escura substância pegajosa do seu braço .
A dor lancinante quase fez ele esquecer tudo mais a não ser remover
aquilo.
Conforme a estrutura fibrosa apertava mais , os grossos fios arrancavam

269
fragmentos . Gravetos partiam . Galhos eram arrancados de árvores . A floresta
estava cheia de um pungente odor de queimado .
Mesmo com a fúria da espada trovejando através dele , impulsionando a
ira dele, Richard percebeu que estava perdendo a batalha . Aonde quer que ele
cortasse, muitos daqueles fios cortados caíam para colar com outros e fechar a
abertura. Independente dos cortes que ele fazia na massa de teias , elas apenas se
entrelaçavam e colavam em si mesmas , criando uma teia ainda mais firme .
Sua calma frustração começou a dar lugar ao pâni co da percepção de que
ele estava preso. Esse medo energizou os seus músculos quando colocava todo
seu esforço em mover a espada . Ele podia imaginar a estranha massa escura
envolvendo -o, queimando sua carne, solidificando -se enquanto enrolava-se em
volta dele, para eventualmente sufocá -lo se primeiro não o matasse incinerando a
carne de seus ossos .
Com toda sua força Richard brandia a espada repetidas vezes , cortando
através de uma parede da coisa . Mais fios atrás daqueles que ele cortava colaram
naqueles que ele havia partido enquanto chicoteavam . Aqueles que ele cortava
serviam apenas para cruzar sobre fios além e reforçá -los. Ele não estava apenas
falhando, mas ao fazer isso, ajudava a fortalecer o seu executor .
— Lorde Rahl... preciso chegar até você .
Cara entendia claramente a natureza mortal da ameaça sob a qual ele
estava e queria encontrar uma maneira de ajudá -lo a sair do problema . E, como
ele, ela realmente não tinha ideia do que fazer .
— Cara, me escute. Se ficar presa nisso , você morrerá. Fique longe... e
não importa o que você faça , não toque nisso com seu Agiel. Eu vou pensar em
alguma coisa.
— Então faça isso depressa antes que seja tarde demais .
Como se ele não estivesse tentando . — Só me dê um minuto para pensar .
Ofegando, tentando recuperar o fôlego, ele apoiou as costas contra a
proteção de um largo abeto perto do seu colchonete enquanto tentava descobrir o
que fazer para escapar. Não restava muito espaço em volta da árvore , e não restava
muito tempo antes que aquele espaço também des aparecesse. Sangue escorria
pelos braços dele dos ferimentos onde a substância escura o tocara . Aqueles
ferimentos ardiam e latejavam , tornando difícil pensar . Ele precisava de um jeito
para atravessar o emaranhado pegajoso , para sair do meio dele , antes que aquilo
o capturasse definitivamente .
E então aquilo lhe ocorreu .
Usar a espada para aquilo que a espada podia fazer melhor .
Sem desperdiçar um momento , Richard afastou-se da árvore, girou o
corpo, recuou, e com toda sua força moveu a espada o mais fort e que podia.
Sabendo que sua vida dependia disso , ele colocou cada fração de fúria e energia
atrás da lâmina, manuseando -a com toda sua força. A ponta assobiou quando girou
com grandiosa velocidade .
A lâmina cortou a árvore com um som alto que pareceu com um
relâmpago e causou tanto dano quanto o mesmo . O tronco da árvore despedaçou .
Fragmentos voaram para todos os lados . Longos pedaços espiralaram através do
ar. Pedaços menores e uma chuva de cascas ficaram espalhados pelo emaranhado
grudento além .
O poderoso abeto gemeu quando a enorme co pa cedeu através do
emaranhado dossel acima quando a árvore começou a cair . Com crescente
velocidade, ela mergulhou através do grupo de árvores , arrancando galhos de
outras árvores enquanto o grande peso do abeto despencava pela floresta .

270
Quando a árvore caiu , ela arrebentou os fios onde o tronco elevava-se
através do emaranhado acima dele , levando cordas grudentas junto com ele , e
então desabou sobre o trançado de fios pegajosos , derrubando -os contra o chão,
enterrando-os sob o tronco e o espesso amontoado de galhos .
Antes que a teia tivesse tempo de recompor -se ou curar-se e fechar a
grande abertura, Richard saltou sobre o tronco mesmo enquanto ele ainda estava
estremecendo por atingir o solo. Ele manteve os braço s esticados e agachou para
equilibrar-se. A chuva estava aumentando e o tronco da árvore estava
escorregadio. Enquanto o grande tronco vibrava e começava a parar no solo ,
galhos, cascas, agulhas, e folhas ainda choviam sobre ele , Richard aproveitou a
oportunidade para correr pelo tronco do abeto , usando-o como uma ponte para
atravessar a teia grudenta.
Ofegante, ele alcançou Cara, finalmente livre da armadilha . Cara, vendo
que ele estava aproximando -se, havia subido sobre um galho grosso para ficar
pronta e ajudá-lo do outro lado . Ela segurou o braço dele para impedir que ele
caísse sobre a casca molhada enquanto ele cruzava entre os galhos .
— O que está acontecendo ? — Cara perguntou no meio do rugido d o
aguaceiro quando ajudava ele a descer até o solo .
Richard ainda estava tentando recuperar o fôlego . — Não tenho ideia.
— Veja. — ela disse, apontando para a espada dele .
A substância pegajosa ainda grudada na espada dele estava começando
a desfazer na chuva.
A massa de fios emaranhada pela floresta também est ava começando a
amolecer e cair. Enquanto as cordas partiam , a chuva derrubava a rede , removendo
ainda mais das longas fibras grossas das árvores . Elas caíram ao chão em massas
escuras, onde chiaram na chuva e derreteram como a primeira neve da estação
falhando em resistir quando a tempestade voltava a descer .
No amanhecer cinzento Richard podia ver a extensão da massa que
enrolara-se ao redor dele. Era um volume imenso . Quando a árvore rasgou o
trançado da malha no topo isso parecer ter desfeito a integ ridade da coisa toda,
fazendo com que o peso dela rasgasse a mesma e ela desmoronasse .
Com a chuva fria descendo cada vez mais forte , as cordas escuras foram
removidas dos galhos e arbustos . Elas ficaram sobre o chão parecendo nada mais
do que vísceras escuras de algum mostro grande morto .
Richard esfregou sua espada em arbustos molhados e grama até que a
substância pegajosa fosse removida completamente .
A massa no chão derreteu com velocidade crescente , evaporando em uma
fumaça cinza. De volta nas sombras das árvores , como vapor saindo das entranhas
de um cadáver fresco em um dia de inverno , aquela fumaça escura ergueu -se
lentamente do chão . Carregadas por uma leve brisa que formara -se, nuvens
escuras deslizaram para longe além do conjunto de árvores .
Novamente na cobertura das árvores , aquela fumaça escura mudou de
direção abruptamente de alguma forma vaga que Richard não conseguiu entender ,
solidificando-se em uma sombra negra . Num piscar de olhos , antes que ele
conseguisse perceber , aquela aparição sinistra desintegrou em milhares de formas
flutuantes que voaram rapidamente em todas as direções , como se um fantasma
escuro estivesse decompondo -se em sombras e neblina. Em um instante elas
desapareceram .
Um calafrio subiu pela coluna de Richard.
Cara ficou observando surpresa . — Você viu aquilo?
Richard assentiu. — Pareceu alguma coisa como aquela coisa em

271
Altur'Rang fez depois que atravessou as paredes atrás de mim . Desapareceu de
forma muito parecida pouco antes de me alcançar.
— Então deve ser a mes ma besta.
No aguaceiro matinal , Richard olhou as sombras entre as árvores ao
redor deles. — Esse seria o meu palpite .
Cara também observou a floresta em volta procurando qualquer sinal de
ameaça. — Sorte nossa que a chuva veio nesse momento .
— Acho que não foi a chuva que fez isso .
Ela enxugou água dos olhos . — Então o que fez ?
— Não tenho certeza , mas talvez simplesmente o fato de que eu escapei
da armadilha.
— Não consigo imaginar uma besta com aquele tipo de poder ficando
desencorajada tão facilmente... na última vez ou dessa vez .
— Não tenho quaisquer outras ideias . Porém, conheço alguém que pode
ter. — ele segurou Cara pelo braço. — Vamos lá. Vamos pegar nossas coisas e
dar o fora daqui .
Ela apontou para as árvores . — Você vai buscar os cavalos . Deixe que
eu enrole os nossos colchonetes . Podemos secar eles mais tarde .
— Não, quero sair desse lugar agora mesmo . — rapidamente ele tirou
uma camisa da mochila, junto com uma capa para tentar manter -se relativamente
seco. — Deixaremos os cavalos . No cercado em um lugar onde tem grama e água
eles ficarão bem onde estão por enquanto .
— Mas os cavalos nos levariam para longe daqui mais rápido .
Richard manteve um olho na floresta ao redor enquanto enfiava os braços
dentro das mangas da camisa . — Não podemos levá -los através da passagem na
montanha... é estreita demais em alguns pontos... e não podemos levar cavalos
para dentro de Agaden Reach onde Shota mora. Eles podem ter o descaso de que
precisam enquanto vamos falar com a feiticeira . Então, quando descobrirmos o
que Shota sabe a respeito de onde está Kahlan, podemos retornar e pegar os
cavalos. Talvez Shota até saiba como podemos nos livrar dessa besta que está me
seguindo.
Cara assentiu. — Faz sentido, a não ser pelo fato de que eu preferia c air
fora daqui o mais rápido possível e cavalos ajudariam nisso .
Richard agachou e começou a enrolar o seu colchonete molhado . —
Concordo com o sentimento , mas a passagem está próxima e os cavalos não
conseguem passar, então vamos andando . Como eu disse, de qualquer modo os
cavalos precisam descansar ou eles não serão de grande serventia para nós .
Cara enfiou algumas as poucas coisas que tinha de volta em sua mochila .
Ela também tirou uma capa . Levantou a mochila por uma alça e jogou -a sobre um
dos ombros . — Precisaremos tirar algumas coisas de nossos alforjes, lá com os
cavalos.
— Deixe eles. Não quero ter que carregar qualquer coisa a mais do que
aquilo que é necessário ; isso apenas nos atrasaria .
Cara olhou através do véu de chuva . — Mas alguém pode roup ar nossos
suprimentos.
— Ladrões não chegam perto de Shota.
Ela franziu a testa . — Porque não?
— Shota e o companheiro dela caminham por essa floresta . Ela é uma
mulher bastante intolerante .
— Oh, maravilha. — Cara murmurou.
Richard jogou a mochila sobre as costas e começou a andar . — Vamos

272
lá, depressa.
Ela correu atrás dele . — Você já considerou que talvez a feiticeira seja
mais perigosa do que a besta ?
Richard olhou para trás por cima do ombro . — Você está parecendo uma
garotinha comum esta manhã , não é mesmo?

273
C A P Í T U L O 3 7

A chuva transformara-se em neve depois que eles subiram saindo da


floresta fechada e entraram na floresta retorcida na transição passando da linha
das árvores. Por causa das condições severas comuns naquela ele vação, as árvores
enfraquecidas, cobertas por rala vegetação , cresciam em bizarras formas curvadas
pelo vento. Caminhar pela floresta retorcida era como passar entre as formas
petrificadas de almas dissecadas cujos membros estavam congelados para sempre
em posições de tormento , como se elas tivessem emergido dos seus túmulos
apenas para encontrarem seus pés ancorados para sempre em solo consagrado,
evitando que elas escapassem do mundo temporal .
Ainda que houvesse aqueles que não entrariam no mundo surreal da
floresta retorcida sem alguma forma de proteção mística , Richard não era
supersticioso a respeito do lugar . De fato, ele considerava todas as crenças como
essa o refúgio dos ignorantes deliberados . Richard enxergava através das
armadilhas daquilo que ja zia por baixo de toda superstição... nada menos do que
o chamado para render -se diante da visão do homem como incapaz de atingir os
seus próprios fins e lidar com a realidade do mundo ao redor dele para alcançar a
sua própria sobrevivência , ao invés de abr açar a ideia de que ele existia apenas
pelo capricho de forças vagas e desconhecidas que só podiam ser persuadidas a
conter seus impulsos cruéis e impiedosos se o homem caísse de joelhos
suplicando, ou, se ele tivesse que entrar em um lugar espiritual , carregando a
oferenda adequada.
Embora Richard sempre achasse estranho estar em uma floresta
retorcida, ele sabia o que ela era e porque havia crescido daquela forma , mesmo
se ainda fosse bastante assustador estar em um lugar assim . Ele sabia que havia
basicamente duas maneiras de lidar com essa emoção primordial . A solução
supersticiosa era carregar talismãs e amuletos sagrados para afastar demônios e
forças sombrias incompreensíveis que eram considerados habitantes de lugares
como esse, esperando que o destino fosse persuadido a gentilmente conter sua
mão caprichosa . Muito embora pessoas proclamassem com total confiança que
esse tipo de forças misteriosas eram fundamentalmente desconhecidas por meros
mortais, todavia eles acreditavam apaixonadamente , sem evidências, que podiam
estar certas de que o poder de amuletos acalmaria o temperamento selvagem
dessas forças ameaçadoras , insistindo que tudo o que era necessário era a fé...
como se a fé fosse um reboco místico com o poder de tapar todos os grandes fu ros
em suas convicções.
Acreditando no livre arbítrio , ao invés disso Richard escolhia a segunda
maneira de lidar com tal medo , que era estar vigilante , alerta, e pronto para
assumir a responsabilidade por sua própria sobrevivência e por sua vida . Em seu
núcleo, essa batalha de crenças entre o destino cruel e o livre arbítrio era a
principal discordância dele com a profecia e o motivo pelo qual ele a
desconsiderava. Escolher acreditar no destino era também uma admissão do livre
arbítrio e ao mesmo tempo uma abdicação da responsabilidade com ele .
Enquanto ele e Cara cruzavam a floresta retorcida , Richard mantinha
olhos vigilantes mas ele não viu qualquer besta lendária ou fantasma vingativo .
Somente a neve soprada pelo vento perambulava pela floresta .
Tendo viajado em um ritmo acelerado durante tanto tempo no calor

274
opressivo e na humidade do verão , eles achavam que o encontro com o frio no
alto da passagem na montanha tornava o esforço da subida mais difícil ainda ,
especialmente após serem encharcados pela chu va miserável. A despeito de
estarem fatigados por causa da altitude , Richard sabia que, molhados como
estavam, precisavam continuar o movimento em um ritmo veloz para manterem -
se aquecidos ou o frio poderia facilmente sobrepujá -los. Ele sabia muito bem que
a canção sedutora do frio podia estimular a pessoa a parar e deitar para um
descanso, enganando -a para que se entregasse ao sono e a morte que aguardava
sob o seu manto convidativo . Como Zedd uma vez dissera a ele, um morto era um
morto. Richard sabia que não estaria menos morto por causa do frio do que estaria
por causa de uma flecha .
Porém, m ais do que isso, ele e Cara estavam ansiosos para colocar uma
boa distância entre eles e a armadilha que quase o capturou no acampamento deles .
Suas queimaduras do breve contato com sua armadilha quase mortal formaram
bolhas. Ele estremeceu ao pensar naquilo que quase acontecera .
Ao mesmo tempo , ele estava preocupado em procurar Shota em seu covil
em Agaden Reach. Na última vez em que ele estivera em Reach ela disse que se
algum dia ele retornasse ali ela o mataria . Richard não duvidava da palavra dela
ou de sua habilidade para cumprir a ameaça . Mesmo assim, ele acreditava que
Shota seria a sua melhor chance de conseguir o tipo de ajuda necessária para
encontrar Kahlan.
Ele estava desesperado para encontrar alguém que pudesse falar a ele
algo útil, e depois de pensar em uma lista de coisas que poderia fazer , pessoas a
quem ele poderia procurar , e no final ele não conseguiu pensar em outra pessoa
que pudesse ser tão po tencialmente informativa quanto Shota. Nicci não foi capaz
de oferecer qualquer solução . Zedd, ele sabia, poderia ser capaz de ajudá -lo de
algumas formas , e talvez houvesse outros com a capacidade para adicionar alguma
peça do quebra-cabeças, mas na mente de Richard, quando tudo era dito e feito ,
provavelmente nenhum deles era tão capaz quanto Shota de indicar a ele a direção
certa. Só isso já tornava a escolha simples .
Quando olhou para cima, Richard viu brevemente a cobertura de neve
através de aberturas na neve. A uma certa distância, no solo partido aberto da
ladeira íngreme, a trilha por cima da passagem contornaria os recessos mais
baixos do manto gelado arredondado da montanha . As nuvens, carregadas com
umidade, pairavam sobre a rocha cinzenta ascendente. As baixas faixas de neblina
passavam arrastando -se e deixando a visibilidade limitada na maioria dos locais
e eram quase não existentes em outros. Em contra partida; as quedas vertiginosas
em pontos pela trilha usada com pouca frequência e cada vez mais escorregadia
oferecia assustadores vislumbres do enorme lado da montanha .
Quando um jato fresco de ar gelado lançou cortinas de neve úmida nos
rostos deles , Richard fechou mais a capa para proteger -se do ataque. Fora da
cobertura das árvores , seguindo seu caminho através dos cascalhos soltos , eles
tiveram que inclinar os corpos não apenas por causa do terreno bastante íngreme ,
mas por causa do vento . Richard curvou um ombro, tentando manter os ferrões de
gelo longe de seu rosto. A neve soprada pelo vento formou uma crosta quebradiça
em um lado da capa dele .
Com o vento rugindo através da passagem na montanha , falar era no
mínimo difícil . A altitude e o cansaço deixavam os dois sem fôlego e sem
condições de manter uma conversa com facilidade. Só conseguir o ar que
precisavam já era esforço bastante e ele podia afirmar pela expressão no rosto de
Cara que ela sentia -se tão nauseada pela altitude quanto ele .

275
De qualquer modo, Richard não estava com humor para falar . Estivera
conversando com Cara durante dias e isso o levou a lugar algum . Cara, de sua
parte, parecia tão frustrada com as perguntas dele quanto ele estava com as
respostas dela. Ele sabia que ela achava que as perguntas dele eram absurdas ; ele
achava que as respostas dela eram . As inconsistências e falhas nas lembranças de
Cara no início eram desapontadoras e desorientadoras mas eventualmente elas
tornaram-se enlouquecedoras . Diversas vezes ele teve que morder sua língua e
lembrar a si mesmo que ela não estava fazendo isso p ara ser maliciosa. Sabia que
se Cara pudesse honestamente ter falado o que ele queria ouvir ela o teria feito
com alegria. Ele também sabia que se ela mentisse isso não o ajudaria a re sgatar
Kahlan. Ele precisava da verdade ; afinal de contas, era por isso que ele est ava
querendo falar com Shota.
Richard tinha repassado sistematicamente uma longa lista de vezes
quando Cara estivera com ele e Kahlan. Cara, entretanto, lembrava de eventos que
deviam ter sido marcantes para ela de maneiras que não eram consistentes com
aquilo que realmente acontecera . Em alguns casos, como na vez em que ele foi
para o Templo dos Ventos, Cara simplesmente não lembrava de partes chave das
circunstâncias nas quais Kahlan estivera envolvida. Em outros casos , Cara
lembrava de eventos de formas muito diferentes das quais eles realmente
aconteceram.
Pelo menos, aconteceram , pelo que Richard lembrava. Houve momentos
depressivos quando ele mergulhou em um medo desesperado de que por alguma
razão fosse ele quem estava com problemas . Cara achava que era ele quem estava
lembrando de coisas que nunca aconteceram . Embora ela tentasse não parecer
demasiadamente explícita em suas convicções , quanto mais coisas ele falava mais
ela pensava que as alucinações dele sobre uma esposa fantasiosa estavam
espalhando -se por toda parte em sua memória como grama depois da chuva .
Mas as claras lembranças de Richard de eventos e a forma como esses
eventos estavam fortemente interligados sempre faziam ele voltar a ter a sólida
convicção de que Kahlan era real.
As lembranças de Cara sobre certos incidentes eram muito claras e muito
diferentes das dele, enquanto a respeito de outras coisas a memória dela era
agonizantemente nebulosa. O fato de que as histórias dele sobre situações fossem
tão diferentes das lembra nças dela a respeito daquelas mesmas situações servia
apenas, na mente de Cara, para convencê-la de que ele estava com mais
alucinações do que ela percebera ou temera anteriormente . Ainda que aquilo
obviamente a deixasse triste , ele continuou a pressioná -la.
No casamento dele e Kahlan, Cara foi a única Mord-Sith em serviço.
Richard sabia que um evento como aquele havia sido significativo para ela de
várias formas, e assim mesmo Cara lembrava apenas que foi junto com ele até o
povoado do Povo da Lama. E porque eles foram até lá se não foi para o casamento ?
Cara falou que não sabia com certeza porque ele foi até lá , mas tinha certeza de
que ele tinha suas razões ; o dever dela era ir para onde ele fosse e protegê -lo, não
questionar os motivos dele todas as vezes que ele viajava. Richard sentiu vontade
de arrancar os cabelos .
Cara não lembrava que ela , Kahlan, e Richard viajaram juntos para o
local do casamento na Sliph. Naquele momento Cara havia ficado apreensiva em
entrar no poço da Sliph e respirar aquilo que parecia ser mercúrio vivo . Mesmo
assim agora ela não tinha qualquer recordação de que Kahlan ajudou-a a superar
a ansiedade a respeito de viajar dentro de tal criatura de magia . Cara lembrava de
Zedd estar lá no povoado do Povo da Lama , e Shota ter feito uma breve aparição ,

276
mas ao invés da feiticeira ter vindo para oferecer a Kahlan o colar como presente
de casamento e de trégua , Cara só lembrava de Shota estar lá para congratular
Richard por deter a praga indo ao Templo dos Ventos .
Quando Richard questionou Cara sobre o Mago Marlin, o assassino que
Jagang enviara, ela lembrou claramente dele vindo para matar Richard, mas não
de qualquer uma das partes onde Kahlan estivera envolvida. Quando ele perguntou
como ela achava que ele podia ter chegado até o Templo dos Ventos para início
de conversa, ou como ele foi curado da praga , se não fosse com a ajuda de Kahlan,
Cara apenas balançou os ombros e disse “ Lorde Rahl, você é um mago, você sabe
a respeito desse tipo de coisas... eu não . Sinto muito, mas não posso dizer a você
como você conseguiu realizar coisas surpreendentes com o seu Dom . Não sei como
a magia funciona . Sei apenas que você fez isso . Só lembro de você fazendo o que
teve de fazer para que as coisas funcionassem... e funcionaram, então eu devo
estar certa. Eu não poderia dizer mais facilmente como você me curou ; sei apenas
que você usou o seu Dom e fez isso . Você foi a magia contra a magia , como é seu
dever conosco. Simplesmente não lembro dessa mulher fazendo parte de qualquer
uma dessas coisas. Pelo seu bem eu gostaria de lembrar , mas não lembro”.
Para cada ocorrência onde Kahlan estivera presente, Cara lembrava
daquilo de forma diferente ou não lembrava . Para cada um daqueles eventos , ela
apresentava uma resposta para explicar aquilo com uma ver são alternativa ou,
quando aquilo seria impossível, simplesmente não lembrava do que ele estava
falando. Parta Richard, havia mil pequenas inconsistências na versão dela que
simplesmente não encaixavam ou não faziam sentido ; para a mente de Cara, isso
parecia não apenas simples e claro , mas correto.
Dizer que era exasperante tentar convencer Cara da realidade da
existência de Kahlan não começaria ao menos a tocar a profundidade da frustração
dele.
Uma vez que era inútil continuar a relembrar eventos signifi cativos em
um esforço para tentar ajudá -la a recordar, já que isso não surtia qualquer efeito ,
Richard perdera o interesse em tentar trazer Cara de volta para a realidade . Ela
simplesmente não lembrava de Kahlan. Parecia que a sua mente tinha apagado
trechos que faltavam daquilo que realmente acontecera .
Richard percebeu que tinha de existir uma causa racional , possivelmente
algum tipo de feitiço ou algo assim , que estava alterando a memória dela...
alterando a memória de todos . Ele estava começando a aceitar o fato de que se
esse fosse o caso , e tinha que ser, simplesmente não havia qualquer evento , ou
conjunto de eventos , com os quais ele fosse capaz de questioná -la, que trouxesse
de volta a memória de Cara.
O que era pior, ele estava percebendo , era que essas tentativas de fazer
com que ela ou qualquer outra pessoa lembrasse, na verdade eram um perigoso
desvio do esforço em encontrar Kahlan.
Richard olhou para trás para ter certeza de que Cara estava perto dele
sobre o lado da montanha íngreme . A pessoa não precisava que subir muito alto
nas montanhas acidentadas formando um anel em volta de Agaden Reach para
encontrar um penhasco e cair dele . Com cascalhos soltos sob o cobertor de neve
fresca seria fácil perder o apoio dos pés e cair pelo declive .
Ele não queria arriscar perder o contato com Cara no meio da fraca
visibilidade. Com o rugido do vento seria difícil ouvir vozes gritando se eles
ficassem separados , e seus rastros seriam cobertos em alguns momentos pela neve
esvoaçante. Quando ele viu que Cara estava dentro do alcance de um braço , ele
seguiu adiante dentro dos dentes do vento .

277
Enquanto ele remexia tudo isso em sua mente , ocorreu-lhe que ao tentar
constantemente tentar pensar em algum incidente que Cara, ou aqueles mais
próximos a ele, certamente teriam que lembrar , ele estava caindo na armadilha de
concentrar seus pensamentos e esforços no problema ao invés de procurar a
solução. Desde quando era jovem , Zedd o tinha alertado para manter os olhos no
objetivo... pensar na solução, e não no pro blema.
Richard jurou a si mesmo que manteria seu foco exclusivamente no
problema e descartaria as distrações criadas pelo desaparecimento de Kahlan.
Cara, Nicci, e Victor, todos tinham respostas para explicar as inconsistências .
Nenhum deles lembrava das c oisas que Richard sabia que aconteceram .
Mergulhando nas coisas específicas que ele tinha feito com Kahlan, e girando e
girando em círculos com as pessoas sobre como era impossível que elas tivessem
esquecido eventos tão importantes , ele estava apenas deix ando a solução
escorregar para mais e mais longe dele... deixando a vida de Kahlan escorregar
para mais e mais longe dele .
Ele precisava controlar os seus sentimentos , parar de agonizar com o
problema, e concentrar-se exclusivamente n a solução.
Mas deixar os seus sentimento de lado era difícil . Era quase como dizer
a si mesmo para esquecer Kahlan mesmo enquanto ele procurava por ela . As
lembranças executaram um papel central em sua vida com ela . Ir ver Shota servia
apenas para trazer muito mais daquilo de volta. Ele tinha encontrado com Shota
pela primeira vez quando Kahlan o levara para ver a feiticeira com o objetivo de
pedir a ajuda dela para encontrar a última Caixa de Orden desaparecida depois
que Darken Rahl havia colocado elas em funcionamento .
Kahlan estava inextricavelmente conectada com a vida dele de tantas
formas. Ele tinha, colocando isso de certo modo , conhecido ela como uma
Confessora desde que era garoto , muito tempo antes de encontrar com a mulher
em pessoa naquele dia na floresta de Hartland.
Quando ele era garoto , George C ypher, o homem que o criara e que
Richard ao mesmo tempo pensava ser o seu pai , disse a ele que tinha salvado um
livro secreto de um grande perigo ao trazê-lo para Westland. O pai dele disse que
havia grave perigo para tod os enquanto o livro existisse , mas que ele não
conseguia destruir o conhecimento guardado nele . O único jeito de eliminar o
perigo do livro cair nas mãos erradas e ainda assim salvar o conhecimento era
gravar o livro na memória e então queimá -lo. Ele escol heu Richard para a
prodigiosa tarefa de memorizar todo o livro .
O pai de Richard o levou para um lugar secreto bem fundo na floresta e ,
dia após dia, semana após semana, observou Richard sentar lendo o livro
incontáveis vezes enquanto trabalhava para memor izá-lo. O pai dele jamais olhou
dentro do livro ; aquela era uma responsabilidade de Richard.
Após um longo período de leitura e memorização , Richard começou a
escrever o que tinha memorizado . Então ele comparava com o livro . No início
cometeu vários erros , mas ele melhorou continuamente . A cada vez, seu pai
queimava os papéis. Richard repetiu a tarefa diversas vezes . O pai dele sempre
pedia desculpas pelo fardo que estava colocando sobre Richard, mas Richard
nunca reclamou; ele considerou uma honra ter a c onfiança de seu pai em tamanha
responsabilidade . Mesmo que fosse jovem e não entendesse tudo o que lia , ele
conseguiu perceber como esse era um trabalho profundamente importante . Ele
também percebeu que o livro envolvia complexos procedimentos que tinham
relação com magia. Magia real.
Com o tempo, Richard eventual mente escreveu o livro do início ao fim

278
sem erro antes que estivesse satisfeito sabendo que jamais esqueceria ao menos
uma palavra. Ele sabia não apenas pelo texto do livro , mas pela sua sintaxe
idiossincrática, que qualquer palavra deixada de fora significaria um desastre para
o conhecimento em si .
Quando ele garantiu a seu pai que que todo o trabalho estava gravado na
memória, eles colocaram o livro de volta no esconderijo nas rochas e deixaram
ele ali durante três anos . Após aquele tempo, quando Richard estava além da
metade de sua adolescência , eles retornaram em um dia de outono e recuperaram
o antigo livro. O pai dele disse que se Richard conseguisse escrever todo o livro ,
sem qualquer erro, os dois poderiam ficar satisfeitos que ele havia sido aprendido
perfeitamente e juntos queimariam o livro . Richard escreveu sem hesitação do
início até a palavra final . Quando comparou seu trabalho com o livro , isso
confirmou o que ele já sabia : ele não cometera qualquer erro .
Juntos ele e seu pai construíram uma fogueira, empilhando madeira mais
do que suficiente , até o calor fazer eles recuarem . Seu pai entregou a ele o livro
e falou que, se ele tivesse certeza , deveria jogar o livro no fogo . Richard apoiou
o Livro das Sombras Contadas na curva do seu braço , deslizando os dedos sobre
a grossa capa de couro . Ele segurava nos braços não apenas a confiança de seu
pai, mas a confiança de todos . Sentindo todo o peso daquela responsabilidade ,
Richard atirou o livr o dentro do fogo. Naquele momento, ele não era mais uma
criança.
Quando o livro queimou além do calor ele também emitiu frio , e isso
liberou feixes de luz coloridos e formas fantasmagóricas . Richard soube que pela
primeira vez realmente tinha visto magia.. . não truques com as mãos ou aquelas
coisas de misticismo , mas magia real que existia , magia real com suas próprias
leis de funcionamento exatamente como tudo mais que existia . E algumas daquelas
leis estiveram no livro que ele havia memorizado .
Mas no com eço, naquele dia na floresta, quando ele era garoto e pela
primeira vez abriu a capa , Richard tinha, de certo modo, conhecido Kahlan. O
Livro das Sombras Contadas começava com as palavras : A verificação da verdade
das palavras do Livro das Sombras Contadas , quando ditas por outra pessoa e
não lidas por aquele que comanda as Caixas , só pode ser garantida pelo uso de
uma Confessora...
Kahlan era a última confessora .
No dia em que encontrou com ela , Richard estava procurando pistas do
assassinato do seu pai . Darken Rahl havia ativado as Caixas de Orden e para abri-
las ele precisava da informação no Livro das Sombras Contadas . Ele não sabia
que naquele momento a informação existia somente na mente de Richard, e que
para verificá-la ele precisaria de uma Confesso ra: Kahlan.
De certa maneira, Richard e Kahlan foram conectados por aquele livro ,
e pelos eventos que o cercavam , desde o instante em que Richard abriu pela
primeira vez a capa encontrou a estranha palavra “ Confessora”.
Quando ele encontrou Kahlan na floresta naquele dia, para ele pareceu
como se já a conhecesse . De certo modo , ele conhecia. De certo modo, ela fizera
parte de sua vida , esteve em uma parte de seus pensamentos , desde quando ele era
garoto.
No dia em que ele a viu pela primeira vez em uma trilha na floresta de
Hartland, a vida dele de repente tornou -se completa, mesmo que naquela época
ele não soubesse que ela era a última Confessora viva . Sua escolha em ajudá -la
naquele dia foi um ato de livre arbítrio executado antes que a profecia tives se
chance de declarar algo a respeito .

279
Kahlan representava tanto uma parte dele, uma parte daquilo que o
mundo era para ele , daquilo que a vida era para ele , que ele não conseguia
imaginar seguir adiante sem ela . Precisava encontrá -la. Era chegada a hora de ir
além do problema e buscar a solução .
Uma rajada de ar gelado fez ele encolher -se e o trouxe de volta de suas
lembranças.
— Ali. — disse ele, apontando.
Cara parou atrás dele e espiou por cima do ombro dele dentro da neve
rodopiante até que ela conseg uiu discernir o estreito caminho pela borda do lado
da montanha. Quando ele olhou para trás ela assentiu , indicando a ele que tinha
visto o caminho margeando a borda inferior da cobertura de neve .
Com a neve que soprava começando a acumular -se, o caminho havia
começado a ficar coberto. Richard estava ansioso para atravessá -lo e chegar ao
terreno mais baixo. Conforme eles avançavam , as condições pioraram e a única
forma através da qual ele conseguia reconhecer o caminho era pela disposição do
terreno. A neve tinha uma suave curva quando o lado da montanha erguia -se lá de
baixo à esquerda. Ela nivelava com uma leve depressão onde ficava o caminho , e
então à direita formava uma corcova onde a neve elevava -se mais.
Enquanto eles caminhavam com dificuldade através da neve até o
tornozelo, Richard olhou para trás por cima do ombro . — Esse é o ponto mais
alto. Vai começar a descer colina abaixo em breve e ficará mais quente .
— Você está querendo dizer que estaremos de volta na chuva antes que
nós ao menos tenh amos chance de descermos até menores altitudes e ficarmos
mais aquecidos. — ela resmungou. — É isso que você está dizendo .
Richard entendia muito bem o desconforto dela , mas não poderia
oferecer qualquer perspectiva ou alívio tão cedo .
— Acho que sim. — ele falou.
De repente, algo pequeno e escuro correu descendo saindo das cortinas
brancas de neve . Justamente quando ele viu , e antes que tivesse chance de reagir ,
aquilo derrubou Richard.

280
C A P Í T U L O 3 8

Richard viu o chão passar velozmente por seu rosto enquanto suas pernas
balançavam no ar , então tudo que ele conseguiu ver foi o branco . Por um instante
ele não conseguia diferenciar o lado de cima do lado de baixo ou onde ele estava
em relação a qualquer outra coisa .
E então todo o peso del e chocou-se contra o solo, o impulso atirando-o
ladeira abaixo. A neve pouco serviu para amortecer . O ar foi expulso de seus
pulmões. Rolando e rolando ele viu breves relances do chão . O mundo girou
loucamente. Ele não conseguia controlar ou deter o que el e rapidamente percebeu
ser a descida dele em uma ladeira cada vez mais íngreme .
Isso tudo tinha acontecido de forma tão inesperada e tão rápido que
Richard não tivera muito tempo para evitar a queda. Naquele momento, a falta de
atenção pareceu uma desculpa pobre e conforto algum . Ele quicou por cima de um
amontoado de solo firme e pousou de bruços. Tendo o ar expulso de seus pulmões ,
ele tentou respirar enquanto deslizava com o rosto para baixo descendo a
montanha, mas ao invés de ar ele conseguiu apenas uma boca cheia de gelo .
Com a força da queda e o ângulo de inclinação vertiginoso , nada havia
ao alcance para ajudar a detê -lo enquanto ele escorregava com velocidade
crescente descendo a ladeira íngreme . Seguindo para baixo com o rosto no chão
tornava mais difícil ainda tomar uma ação efetiva . Em uma tentativa frenética
para deter ou ao menos reduzir a velocidade de sua queda , Richard abriu os braços .
Ele lutou para enfiar as mãos e pés dentro da neve e tentar atrasar seu mergulho
fora de controle pelo lado da montanha, mas a neve e o cascalho apenas
começaram a deslizar junto com ele .
Ele viu uma sombra passar rapidamente . Acima do som do vento ele
conseguiu ouvir gritos selvagens de fúria . Alguma coisa sólida chocou -se contra
a parte de trás de suas co stelas. Ele enterrou os dedos e botas mais fundo no
cascalho embaixo da neve , tentando reduzir o seu apavorante deslizar . Com a neve
movendo-se ao redor dele enquanto escorregava , ele não conseguia ver qualquer
coisa a não ser branco .
Novamente a forma escura surgiu voando do meio da neve rodopiante .
Outra vez alguma coisa bateu nele , só que dessa vez foi muito mais forte e foi um
golpe direto em seus rins com objetivo de ajudar a acelerar sua queda .
Richard gritou com o choque da dor . Quando ele girou em agonia sobre
o lado direito do corpo , ele ouviu o som inconfundível do aço enquanto a Espada
da Verdade era removida de sua bainha.
Enquanto deslizava pela ladeira , Richard torceu o corpo e tentou
alcançar a espada quando ela foi lançada para longe dele . Ele sabia que se
agarrasse na lâmina afiada ela poderia facilmente cortar sua mão ao meio, então
ao invés disso ele tentou segurar o cabo ou pelo menos pegar a guarda , mas era
tarde demais. O agressor enterrou os calcanhares para frear enquanto Richard
navegava para fora da vista .
Girar desajeitadamente quando tentava alcançar sua espada deixou
Richard com menos equilíbrio ainda . Quando quicou no solo desnivelado ele foi
lançado de cabeça rolando .
No meio do giro, justamente quando ele começava a abrir seus braços e
pernas para, ao menos, parar de rolar, sua costa bateu contra uma projeção rochosa

281
sob a neve. Outra vez o ar foi expulso violentamente de seus pulmões , só que
dessa vez de forma mais dolorosa .
A força do impacto lançou-o por cima da obstrução .
O terror espalhou -se através dele quando ele encontrou-se no meio do
ar. Com esforço frenético , Richard esticou o braço e agarrou a projeção rochosa
na qual havia batido . Ele segurou firme enquanto suas pernas ficaram balançando
sobre um abismo .
Richard agarrou-se na rocha com grande força . Durante um momento ,
ele ficou pendurado na rocha , reunindo suas forças e arfando. Pelo menos ele
tinha parado de cair . Neve e pequenos flocos de cascalho ainda deslizavam pela
ladeira íngreme saltavam por cima da rocha que ele estava segurando assim como
por cima dos seus braços e da cabeça .
Cuidadosamente , ele balançou as pernas , tentando colocá-las sobre algo,
tentando encontrar algum apoio para seu peso . Nada havia. Ele balançou
inutilmente, um pêndulo vivo agarrado em uma rocha gelada.
Ele olhou por cima do ombro e viu neve soprando e nuvens escuras
deslizando por baixo dele . Através de uma pequena abertura , ele avistou pedaços
de cascalho no meio de uma longa queda pelo ar em direção a árvores e rochas
longe lá embaixo.
Acima dele, com os pés afastados , estava em pé uma pequena forma
escura com longos braços , uma cabeça pálida, e pele cinzenta. Olhos amarelos
esbugalhados, como duas lanternas brilhando dentro da sombria luz azulada da
tempestade de neve , olharam ferozes para ele. Lábios sem sangue curvaram -se em
um sorriso para exibirem dentes afiados .
Era o companheiro de Shota, Samuel.
Ele estava segurando a espada de R ichard em uma das mãos e parecia
mais do que contente consigo. Samuel usava uma capa marrom escura qu e
esvoaçava como uma bandeira de vitória ao vento . Ele recuou alguns passos ,
esperando para ver Richard cair da montanha .
Os dedos de Richard estavam escorregando . Ele tentou colocar os braços
em volta das rochas para subir , ou pelo menos conseguir um melhor apoio. Ele
não teve sucesso . Porém, ele sabia se conseguisse melhor apoio , Samuel estava
pronto para usar a espada para garantir que Richard caísse.
Com os pés balançando sobre uma queda de pelo menos mil pés , Richard
estava em uma posição bastante precária e vulnerável . Ele mal conseguia acreditar
que Samuel o tivesse derrotado desse jeito... e que ele tivesse conseguido agarrar
a espada de Richard. Ele observou as nuvens cinzentas de neblina carregadas
juntos com a neve soprada pelo vento mas não v iu Cara.
— Samuel! — Richard gritou no vento . — Devolva minha espada !
Até para ele mesmo, isso pareceu uma exigência bastante ridícula .
— Minha espada. — Samuel sibilou.
— E o que você acha que Shota diria?
Os lábios sem sangue abriram um largo sorriso . — Senhora não aqui .
Como um fantasma materializando -se das próprias sombras , uma forma
escura surgiu atrás de Samuel. Era Cara, sua capa escura tremulando ao vento ,
transmitindo a ela o aspecto de um espírito da vingança . Richard percebeu que
provavelmente ela havia seguido a trilha rodopiante dele através da neve . Com o
vento tempestuoso em seus ouvidos e , mais importante, seu olhar concentrado na
situação de Richard, Samuel não notou Cara aproximando -se por trás de le.
Em um rápido olhar ela captou a imagem ameaçadora de Samuel
segurando a espada de Richard, em pé acima de Richard enquanto ele segurava-

282
se na borda do penhasco . No passado Richard aprendera que a atenção e as ações
de Samuel eram firmemente governadas por suas fortes emoções ; os pés dele
apenas seguiam. Com a alegre distração de ter o objeto do seu ódio fervoroso na
ponta de uma espada que um dia ele carregara e até esse dia cobiçava , Samuel
estava ocupado demais exultando para ver a Mord-Sith aparecendo atrás dele.
Sem pronunciar uma palavra , Cara bateu com seu Agiel na base da nuca
de Samuel. Com as condições escorregarias, ela não conseguiu manter o contato .
Samuel gritou de dor e com o confuso terror caiu para trás na neve .
Contorcendo em agonia, sem entender o que tinha acontecido , ele esfregou
freneticamente atrás do pescoço onde Cara havia pressionado seu Agiel. Ele
grunhia enquanto saltava na neve como um peixe na areia. Richard sabia que o
choque horrível da dor causada por um Agiel quando aplicado naquele ponto
parecia com o de um raio.
Richard reconheceu a expressão no rosto de Cara quando ela caminhava
para segurar a figura trêmula . Ela pretendia usar seu Agiel para matar Samuel.
Richard realmente não se importaria se ela matasse o traiçoeiro
companheiro da feiticeira , mas ele tinha problemas mais urgentes no momento .
— Cara! Estou pendurado na borda de um penhasco . Não consigo
segurar. Estou escorregando.
Imediatamente ela pegou a espada do lado de um derrotado Samuel para
que ele não pudesse alcançá -la enquanto ela corria para ajudar Richard.
Enterrando a lâmina no chão ao lado de si , ela abaixou, apoiou as botas contra as
rochas, e segurou os braços dele . Ela chegou no momento certo .
Com a ajuda dela, Richard conseguiu um ponto de apoio melhor nas
rochas. Com os dois lutando nas difíceis condições , ele finalmente conseguiu
passar o braço por cima da projeção rochosa . Logo que estava com um apoio firme
com um braço ele finalmente conseguiu balançar uma perna para cima e prendê-
la nas rochas. Cara agarrou o cinto dele e ajudou a içá-lo. Tremendo de esforço ,
ele arrastou-se para cima e sobre a escorregadia projeção rochosa .
Richard virou de lado, arfando, tentando absorver o suficiente do ar
rarefeito. — Obrigado. — ele conseguiu falar .
Cara olhou para trás por cima do ombro , ficando de olho em Samuel.
Richard reuniu suas forças rapidamente e levantou. Logo que estava com os pés
firmes na beira do penhasco , ele tirou sua espada do lugar onde Cara havia
enterrado no solo.
Ele mal podia acreditar que Samuel tivesse conseguido pegá -lo de
guarda baixa daquele jeito . Desde quando Richard e Cara partiram do
acampamento deles naquela manhã , ele estivera esperando que Samuel surgisse
inesperadamente. Entretanto, ele sabia que independente de estar esperando por
um ataque como aquele, era impossível prever isso a cada momento... de forma
muito parecida como foi impossível deter todas as flechas naquela manhã quando
Kahlan havia desaparecido.
Richard removeu um pouco da neve do seu rosto . A queda rolando , o
mergulho repentino, e ficar pendurado pelos dedos sobre um penhasco o deixaram
abalado mas, acima de tudo, furioso.
Samuel, ainda deitado encolhido na neve , contorcendo e gemendo ,
abraçava o corpo, resmungando algo que Richard não conseguia ouvir em meio ao
som do vento.
Quando Samuel viu Richard olhando em direção a ele , ele levantou
desajeitadamente, ainda sofrendo com a dor persistente. A despeito dessa dor,
porém, ele viu aquilo que queria .

283
— Minha! Me dê! Me dê minha espada!
Richard ergueu a ponta em direção ao pequeno indivíduo repugnante.
Vendo a ponta da lâmina aproximando -se, Samuel perdeu sua coragem e
recuou alguns passos subindo a ladeira . — Por favor. — ele choramingou ,
esticando as mãos para a fúria de Richard. — não me matar?
— O que você está fazendo aqui ?
— Senhora me enviou.
— Shota enviou você para me matar , não foi? — Richard zombou. Ele
queria que Samuel admitisse a verdade .
Samuel balançou a cabeça vigorosamente . — Não, não matar você.
— Então aquilo foi ideia sua .
Samuel não respondeu.
— Então porque? — Richard press ionou. — Porque Shota enviou você?
Samuel observava Cara enquanto ela movia-se para o lado , cercando-o
parcialmente. Samuel sibilou para ela, mostrando os dentes . Cara, não
impressionada, mostrou a ele seu Agiel. Os olhos dele ficaram arregal ados de
medo.
— Samuel! — Richard gritou.
Os olhos amarelos de Samuel desviaram de volta para Richard e
novamente eles ficaram cheios de ódio . — Porque Shota mandou você?
— Senhora... — ele choramingou enquanto sua fúria reduzia . Ele ficou
olhando tristonho em direção a Agaden Reach. — Ela mandou companheiro .
— Porque!
Samuel encolheu-se quando Richard gritou e deu um passo agressivo
adiante.
Samuel, tentando ficar de olho nos dois , apontou um longo dedo para
Cara. — Senhora diz para você trazer moça bonita .
Isso foi uma surpresa por duas razões . “Moça bonita” era como Samuel
sempre chamava Kahlan.
Segundo, Richard jamais esperaria que Shota fosse querer que Cara
descesse até Agaden Reach com ele. De certo modo ele achou aquilo perturbador .
— Porque ela quer que a moça bonita vá comigo ?
— Não sei. — os lábios sem sangue de Samuel formaram um sorriso . —
Talvez para matar ela.
Cara balançou o Agiel para que ele visse. — Se ela tentar, talvez ela
receba muito mais do que aquilo que você recebeu . Ao invés disso, t alvez eu a
mate.
Samuel gemeu de horror, seus olhos grandes ficando arregalados . —
Não! Não mate Senhora!
— Não viemos aqui para machucar Shota. — Richard disse a ele. — Mas
nos defenderemos.
Samuel pressionou as articulações dos dedos no solo enquanto inclinava
em direção a Richard. — Nós veremos... — ele rosnou com desdém. — o que
Senhora faz com você, Seeker.
Antes que Richard pudesse responder, Samuel disparou repentinamente
para dentro da neve rodopiante . Era surpreendente como ele conseguia mover -se
tão rápido.
Cara correu atrás dele, mas Richard segurou o braço dela para detê -la.
— Não estou com humor para correr atrás dele. — ele disse. — Além
disso, provavelmente não conseguiremos pegar ele . Ele conhece a trilha e não
estamos familiarizados com ela . Não podemos seguir os rastros dele tão rápido

284
quanto ele os cria . Além disso, ele voltará para Shota e é para onde estamos indo
de qualquer modo . Não adianta desperdiçar nossa energia quando encontraremos
com ele no final .
— Devia ter deixado que eu o matasse .
Richard começou a subir a ladeira em direção a trilha . — Eu teria
deixado, mas não consigo voar.
— Imagino que não. — ela concordou soltando um suspiro . — Você está
bem?
Richard assentiu enquanto enfiava a espada em sua bainha , afastando
também, o fluxo da fúria . — Graças a você.
Cara lançou um sorriso convencido para ele . — Eu ficou dizendo para
você, você não conseguiria se virar sem mim . — ela olhou ao redor na escuridão
cinza azulada. — E se ele tentar aquilo de novo ?
— Samuel é basicamente um covarde e um oportunista . Ele só ataca
quando acha que você está indefeso . Até onde posso afirmar, ele não possui
quaisquer qualidades de arrependimento .
— Porque uma feiticeira o manteria por pert o?
— Não sei . Talvez ele seja apenas um adulador servil e ela goste da
submissão dele. Talvez ela permita que ele fique por perto para transmitir
mensagens para ela. Talvez Samuel seja o único que seria companheiro dela de
boa vontade. A maioria das pessoas fica aterrorizada com Shota e de acordo com
o que eu ouvi ninguém chegará perto desse lugar .
Entretanto, conforme aquilo que Kahlan disse, Bruxas não conseguem
evitar de enfeitiçar pessoas... simplesmente é assim que elas são . Mesmo se elas
não fossem assim, Shota certamente é sedutora da sua própria maneira então
imagino que se ela realmente quisesse um companheiro que valesse à pena , ela
poderia escolher .
— Agora que fizemos ele correr , realmente duvido que Samuel teria
coragem para atacar novamente . Ele entregou a mensagem de Shota. Agora que
assustamos ele, e o machucamos , provavelmente ele vai querer correr de volta
para a proteção de Shota. Além disso, provavelmente ele pensa que ela poderá nos
matar e ele ficaria feliz que ela fizesse isso .
Cara ficou olhando fixamente para a neve rodopiante durante um
momento antes de seguir Richard subindo a ladeira íngreme . — Porque você acha
que Shota mandaria um mensageiro para certificar -se que eu vá com você até
Agaden Reach?
Richard encontrou a trilha e com eçou a descer por ela. Ele viu as pegadas
de Samuel mas elas já estavam quase preenchidas pela neve .
— Não sei. Essa é a parte que me intriga .
— E porque Samuel acha que a sua espada pertence a ele ?
Richard s oltou lentamente um suspiro . — Samuel carregava a espada
antes de mim. Ele era o último Seeker antes de mim... embora não fosse um Seeker
nomeado legitimamente . Não sei como ele obteve a Espada da Verdade. Zedd
entrou em Agaden Reach e pegou-a de volta. Samuel acredita que a espada ainda
pertence a ele. — Cara pareceu incrédula. — Ele era o último Seeker?
Richard lançou um olhar sério para ela . — Ele não tinha a magia , o
temperamento, ou característica requeridos pela espada para ser o verdadeiro
Seeker da Verdade. Devido ele não ter sido capaz de ser o mestre do poder da
espada, aquele poder transformou -o naquilo que você vê hoje .

285
C A P Í T U L O 3 9

Com um dedo, Richard enxugou o suor e a água do chuvisco da testa .


Pouca luz penetrava na obscuridade nos recantos mais baixos do pântano , mas
mesmo sem o sol caindo sobre eles o calor húmido era opressivo . Após sair da
tempestade na passagem da montanha , Richard não importava-se tanto com o calor
como caso contrário poderia fazer . Cara também não estava reclamando , mas ela
raramente fazia isso a respeito de seus próprio desconforto . Enquanto estivesse
perto dele ela estava satisfeita , embora sempre que ele fazia algo que ela
considerava arriscado , isso costumava deixá -la com péssimo humor, o que
explicava sua disposição irritada a respeito de vis itar Shota.
Aqui e ali na lama e no solo macio do chão da floresta , Richard viu
pegadas frescas deixadas por Samuel. Estava claro para Richard que o
companheiro de Shota estava ansioso para retornar até a proteção dela e apressara -
se pela trilha em um trote constante. Cara também viu os rastros . Richard ficara
impressionado quando ela apontou -os quando os avistou pela primeira vez . Ela
estivera mais observadora de rastros desde o dia em que Kahlan desapareceu e
Richard mostrou a ela, Nicci, e Victor alguns dos tipos de coisas que rastros
revelavam .
Embora os rastros de Samuel deixassem claro que ele estava com pressa
e não parecia que ele pretendia tentar pular sobre eles outra vez , Richard e Cara
ainda mantinham cuidadosa vigília caso ele , ou qualquer outra coisa, estivesse
espreitando nas sombras . Afinal de contas, o pântano era um lugar destinado a
manter intrusos longe. Richard não tinha certeza do que aguardava sob a cobertura
de folhas e sombras , mas as pessoas em Midlands, inclu indo magos, não entravam
no santuário de Shota sem uma boa razão .
Não estava mais chovendo , mas nevoento e húmido como estava poderia
muito bem ter chovido . O dossel da floresta coletava a neblina e a garoa , liberando
isso como gordas gotas esporádicas . Largas folhas em longos filamentos
arqueados projetando -se para cima a partir do emaranhado do chão da floresta e
trepadeiras serpenteando por galhos de árvores por toda parte ao redor balançavam
sob o peso das gotas , transmitindo a toda a floresta um movi mento constante para
cima e para baixo no ar parado .
As árvores no pântano cresciam em formas enroladas, retorcidas , como
se fossem atormentadas pela carga de trepadeiras e cortinas de musgo que pendiam
moles e pesadas de seus galhos na neblina . Líquen cas cudo e em alguns locais
limo negro cresciam nas cascas . Aqui e ali, ao longe, Richard avistou aves
empoleiradas nos galhos , observando.
Vapor pairava logo acima da superfície de extensões estagnadas de água
turva reunidas na base d as montanhas. Na borda da água emaranhados de raízes
serpenteavam descendo nas profundezas . Coisas moviam-se através das piscinas
escuras, erguendo a camada de lentilhas de água nas lentas ondulações. Das
sombras do outro lado da água , olhos observavam.
Ao redor os gritos cacofôni cos de aves ecoavam através do ar úmido
enquanto Richard e Cara tinham que espantar os insetos zumbindo em volta deles .
Outros animais na neblina soltavam gemidos e assovios . Ao mesmo tempo, a
espessa vegetação parada e o opressivo peso do ar úmido e quente davam ao lugar
uma espécie de calmaria inquietante . Richard viu Cara franzir o nariz diante do

286
fedor impregnante de podridão .
O caminho através da densa vegetação quase parecia mais como um túnel
vivo crescente. Richard estava feliz por que eles precisavam aventurar -se fora da
trilha e de volta dentro do lodaçal ao redor . Ele podia imaginar muito bem garras
e presas aguardando pacientemente que o jantar chegasse perto .
Quando eles atingiram a borda do pântano sombrio , Richard fez uma
pausa nas sombras profundas . Espiar do escuro entre emaranhados de galhos ,
musgo pendurado, e vegetação pegajosa foi como olhar de uma caverna para um
glorioso novo dia além . Independente do chuvisco e da neblina no pântano, o sol
da tarde havia surgido através da cobertura de nuvens em alguns pontos para
lançar feixes dourados de luz sobre o vale distante , como se fosse uma joia em
exposição.
Ao redor do vale verdejante as paredes rochosas cinzentas das
montanhas em volta ascendiam quase retas entrando em um escuro anel de nuvens.
Até onde Richard sabia, não havia caminho para entrar no lar de Shota a não ser
através do pântano . O chão do vale abaixo estava coberto por um tapete de grama
pontilhado por flores silvestres. Punhados de carvalhos , bordos, e faias
salpicavam de manchas algumas das colinas e congregavam-se em lugares baixos
pelo riacho, suas folhas cintilando na luz vespertina .
Na floresta escura onde Richard e Cara estavam, parecia como estar na
noite, olhado para o dia lá fora . Não muito longe através das trepadeiras e
arbustos, água desabava da rocha escarpada na borda do pântano para desaparecer
em colunas verticais de neblina em seu caminho descendo até os claros lagos e
riachos bem longe abaixo onde emitia um distante rugido , na altura em que
estavam, soava como pouco mais do que um chiado . Aquela garoa e a neblina
molhavam os rostos deles enquanto eles contemplavam da borda do penhasco .
Richard conduziu Cara através de um estreito caminho saindo da trilha
principal que simplesmente terminava no penhasco . A pequena trilha lateral seria
quase impossível de encontrar se ele não soubesse onde procurar por ela por causa
de sua visita prévia . Ela passava através de um labirinto de pedregulhos quase
escondidos sob uma camada d e samambaias de cor verde pálida. Trepadeiras,
musgo, e arbustos também ajudavam a ocultar a rota obscura .
Na borda eles finalmente começaram a descer . A trilha descendo para
dentro do vale era formada por degraus , milhares deles , cortados nas rochas da
parede do penhasco. Aqueles degraus serpenteavam, formavam túneis e viravam
sempre descendo , seguindo a forma natural das fileiras de rochas , às vezes
contornando colunas de rochas naturais , apenas para espiralar de volta sobre si
mesmos passando sob o caminho que formava uma ponte acima .
A vista da descida pelo lado do penhasco era espetacular . Os riachos
carregando água da montanha deslizando através de suaves colinas eram a coisa
mais bela que Richard tinha visto. As árvores, que em alguns pontos juntavam -se
em grupos e em outros locais ficavam sozinhas como um monarca em cima de uma
colina, eram a visão mais reconfortante e convidativa pela qual ela podia esperar .
No distante centro do vale , instalado entre um tapete de grandes árvores,
estava um belo Palácio de arrebatadora graça e esplendor . Delicadas espirais
estendiam-se no ar, finas pontes cobriam os altos espaços entre torres , e
escadarias espiralavam ao redor de torreões . Bandeiras e faixas coloridas
tremulavam sobre cada ponta. Se poderia ser dito que um Palácio majestoso podia
parecer feminino , esse parecia. Parecia um lugar adequado para uma mulher como
Shota.
Além de sua terra natal de Hartland e das montanhas a oeste dali, para

287
onde ele tinha levado Kahlan para recuperar-se durante o período de um verão
mágico, Richard nunca tinha visto outro lugar comparável a esse vale. Só isso
tinha feito ele hesitar em seu julgamento a respeito de Shota antes de encontrar
com ela pela primeira vez . Passando pelo pântano naquela época, havia
considerado que ele era um lugar adeq uado para uma Bruxa. Quando ouviu dizer
que na verdade o vale era o lar dela , ele tinha pensado que certamente alguém que
podia chamar um lugar pacífico, lindo como esse de lar devia ter algumas boa s
qualidades. Mais tarde, quando tinha visto a beleza do Palácio do Povo , o lar de
Darken Rahl, ele passou a descartar noções indulgentes como essa .
Na base do penhasco ao lado da cachoeira uma estrada conduzia através
de campos gramados seguindo caminho e ntre as pequenas colinas . Porém, antes
que eles tomassem a estrada , Cara perguntou se eles podiam aproveitar a
oportunidade para um rápido mergulho para lavarem -se.
Richard achou que isso parecia uma boa ideia , então ele parou e tirou
sua mochila. O mais importante era que ele queria lavar as dolorosas queimaduras
para que elas tivessem uma chance de cura melhor. Ele estava cheio de suor e
poeira e imaginou que devia estar parecendo um mendigo.
Uma vez Kahlan disse a ele que era importante transmitir a impressão
apropriada para as pessoas . Ela queria que ele vestisse algo melhor do que suas
roupas de guia florestal . Naquele momento, ela estava tentando dizer a ele que se
esperava que as pessoas acreditassem nele e o seguissem , se ele seria o Lorde
Rahl e comandaria o Império D’Haraniano, ele tinha que mostrar isso.
Afinal de contas, aparência era um reflexo daquilo que uma pessoa
pensava de si mesma e assim , por consequência, das outras. Uma pessoa atingida
pelo desgosto próprio ou dúvida quanto a si mesm a refletia esses sentimentos em
sua aparência. Tais dicas visuais não inspiravam confiança em outros porque , e
ainda que nem sempre fosse algo acurado , em maior parte elas realmente refletiam
a pessoa interior... quer essa pessoa percebesse isso ou não .
Uma ave com boa saúde sem respeito próprio permitir ia que suas penas
parecessem arrepiadas. Nenhum Jaguar confiante deixaria seu pelo permanecer
embaraçado e sujo. Uma estátua destinada a representar a nobreza do home m não
transmitia esse conceito exibindo-o desgrenhado e sujo.
Richard entendeu a sugestão de Kahlan, e, de fato, já tinha começado a
cuidar disso antes que ela mencionasse . Ele encontrara uma roupa de um antigo
Mago Guerreiro na Fortaleza do Mago . Ele usou os elementos importantes daquela
roupa e providenciou para que outras coisas fossem feitas . Ele não sabia como
isso impressionava outras pessoas , mas lembrava muito claramente como tinha
impressionado Kahlan.
Richard contornou as rochas na base da cachoeira para encontrar um
lugar privado para u m rápido banho enquanto Cara escolheu outro local . Ela
prometeu que não levaria muito tempo .
A água pareceu relaxante , mas Richard não queria desperdiçar qualquer
tempo. Ele tinha coisas muito mais importantes em sua mente . Assim que limpou
o suor e a sujeira e depois de lavar as queimaduras , ele vestiu sua roupa de Mago
Guerreiro, que havia retirado de sua mochila . Ele pensou que hoje, de todos os
dias, seria o dia apropriado para surgir diante de Shota como um líder que veio
para falar com ela, ao invés de um mendigo desamparado.
Sobre a calça preta e uma camisa preta sem manga , ele colocou sem
manto negro de laterais abertas , decorada com símbolos serpenteando por uma
larga faixa dourada seguindo por todo o caminho ao redor de suas bordas
quadradas . Um largo cinto de couro com múltiplas camadas exibindo emblemas

288
prateados com padrão antigo possuía uma bolsa trabalhada com ouro de cada um
dos lados e cilhava o manto na cintura dele . Pinos no couro ao redor do topo das
botas negras dele também carregavam aq ueles símbolos. Cuidadosamente, ele
colocou o antigo boldrié de couro que com a bainha dourada e prateada polida por
cima do ombro direito e prendeu a Espada da Verdade no quadril esquerdo .
Ainda que para a maioria das pessoas a Espada da Verdade fosse uma
arma incrível, e certamente ela era isso , para Richard ela era muito mais . Seu avô,
Zedd, em sua posição como Primeiro Mago , entregara a espada para Richard,
nomeando-o como Seeker. De muitas formas aquela confiança era a mesma coisa
que a confi ança de seu pai representou quando ele pediu para memorizar o livro .
Richard tinha levado um longo tempo para compreender totalmente a confiança e
a responsabilidade que carregar a Espada da Verdade representava.
Como uma arma formidável , a espada salvara sua vida incontáveis vezes .
Mas ela não salvou sua vida porque veio com grande poder, ou porque era capaz
de feitos extraordinários . Ela salvara sua vida porque ajudou -o a aprender coisas
não apenas sobre si mesmo , mas sobre a vida.
Certamente, a Espada da Verdade ensinou a ele sobre lutar , sobre a
dança com a morte, e como prevalecer diante de probabilidades aparentemente
impossíveis. E ainda que ela o tivesse ajudado quando tinha que realizar o mais
terrível de todos os atos... matar... ela também o ajudara a aprender quando o
perdão era justificado . Dessas maneiras ela ajudou -o a entender quais valores
eram importantes ao ajudar a avançar na causa da vida . E isso ajudou ele a
aprender a importância e a necessidade de julgar esses valores , e como colocar
cada um deles em contexto .
De certas formas, como a forma em que aprender o Livro das Sombras
Contadas o ensinara que ele não era mais uma criança , a espada ajudou ele a
aprender a ser uma parte do mundo mais amplo , e qual o seu lugar nele .
Ela também havia, de certo modo, trazido Kahlan para ele.
E Kahlan era o motivo pelo qual ele precisava falar com Shota.
Richard fechou sua mochila . Havia uma capa, que parecia ter sido tecida
com ouro, que ele encontrou com o resto da roupa de Mago Guerreiro na Fort aleza,
mas, já que estava um dia quente , ele deixou-a na mochila. Finalmente, em cada
pulso ele colocou uma larga faixa prateada de couro exibindo anéis conectados
com mais dos símbolos antigos . Entre outras coisas , aquelas faixas eram usadas
para invocar a Sliph do seu sono.
Quando Cara gritou que estava pronta , Richard ergueu sua mochila e
contornou as rochas . Então, ele viu porque ela quis parar. Tinha feito mais do que
simplesmente tomar um banho rápido . Tinha vestido sua roupa vermelha de couro .
Richard lançou um olhar sério para o uniforme vermelho sangue da
Mord-Sith. — Shota poderá arrepender -se de ter convidado você para a festa .
O sorriso de Cara disse que se houvesse qualquer problema , ela se
certificaria disso.
Quando eles começaram a descer a estrada , Richard falou. — Não sei
exatamente quais poderes Shota possui, mas acho que hoje talvez você devesse
tentar usar algo que nunca tentou .
Cara fez uma careta. — E o que seria isso ?
— Cautela.

289
C A P Í T U L O 4 0

Richard observou as colinas ao redor , procurando qualquer sinal de


perigo, quando ele e Cara entraram em um lugar onde magníficas faias e bordos
haviam crescido amontoadas no topo de uma elevação . Os galhos retos e altos
bifurcavam cada vez m ais em suaves arcos ascendentes , dando a Richard a
sensação de massivas colunas segurando o teto abobadado de uma gran de catedral
verde. A fragrância de flores do campo pairava em uma suave brisa . Através da
cobertura e folhas farfalhantes ele conseguia ob ter sedutores vislumbres das torres
do Palácio de Shota.
Feixes de raios de sol dourados cintilavam através das folhas e
saltitavam sobre a grama baixa . Água de uma nascente borbulhava por uma
abertura em uma rocha baixa e corria descendo por seus lados li sos para dentro
de um raso riacho. Espalhadas pelo riacho estavam pedras cobertas por uma
camada de musgo verde.
Uma mulher com uma espessa cabeleira loira e usando um longo vestido
negro estava sentada sob a luz do sol em uma rocha ao lado do riacho , apoiada
sobre um gracioso braço enquanto deslizava os dedos através da água cristalina .
Ela parecia brilhar. O próprio ar ao redor dela parecia brilhar .
Mesmo de costas para ele , ela parecia bastante familiar .
Cara inclinou em direção a Richard e falou baixinho. — Aquela é Nicci?
— De certa maneira eu gostaria que fosse , mas não é.
— Tem certeza?
Richard assentiu. — Já vi Shota fazer isso . Na primeira vez em que eu a
vi, exatamente naquele mesmo lugar , ela apareceu para mim como a minha
falecida mãe.
Cara olhou para ele. — Esse é um truque bastante cruel .
— Ela disse que era um presente , uma gentileza, apenas com objetivo de
fornecer vida brevemente a uma lembrança querida .
Cara bufou, incrédula. — Então porque ela está tentando fazer você
lembrar Nicci?
Richard olhou para Cara, mas não tinha uma resposta para ela .
Quando eles finalmente chegaram até a rocha , a mulher ergueu -se
graciosamente e virou para ele . Olhos azuis que ele conhecia encontraram seu
olhar.
— Richard. — disse a mulher que parecia Nicci. A voz dela tinha
exatamente a mesma qualidade aveludada d a voz de Nicci. O decote do corpete
parecia ainda mais ousado do que Richard lembrava. — Estou tão feliz em vê -lo
novamente. — ela descansou os pulsos nos ombros dele , casualmente entrelaçando
os dedos atrás da cabeça dele . O ar em volta dela pareceu delgado , transmitindo
a ela uma aparência surreal, borrada, suave .
— Muito feliz. — ela completou com afeição de tirar o fôlego .
Ela não poderia ter parecido ou soado mais como Nicci se fosse a própria
Nicci. A ilusão era tão convincente que que Cara ficou com a boca aberta . Richard
quase sentiu uma sensação de alívio em ver Nicci outra vez.
Quase.
— Shota, eu vim conversar com você .
— Conversar é para amantes. — ela falou, com um sorriso dengoso

290
permeando sua feição primorosa .
Ela deslizou os dedos no cabelo da nuca dele enquanto seu sorriso suave
aqueceu afetuosamente. Os olhos dela, junto com o seu sorriso , refletiram o prazer
dela em vê-lo. Ela pareceu naquele momento mais feliz , mais satisfeita, mais em
paz do que ele já tinha visto Nicci parecer. Ela também parecia tanto com Nicci
que ele estava sentindo dificuldade para convencer a si mesmo de manter em
mente que essa era Shota. No mínimo, ela agia mais de acordo com Shota do que
Nicci. Nicci jamais seria tão direta . Tinha que ser Shota.
Ela puxou -o gentilmente para mais perto. Nesse momento, Richard lutou
para tentar pensar em uma razão para resistir . Nenhuma surgia em mente nesse
instante. Ele não conseguia parar de olhar nos olhos sedutores dela. Ele sentiu-se
dominado pelo simples prazer de olhar no rosto hipnotizante de Nicci.
— E se essa for a sua oferta , Richard, então eu aceito.
Ela estava tão próxima dele que podia sentir o doce sopro das palavras
dela em seu rosto . Os olhos dela fecharam. Os lábios macios dela encontraram
com os dele em um beijo luxurioso que ele não correspondeu . De qualquer modo,
ele também não afastou -a.
Enquanto os braços dela o apertavam mais forte no abraço, no beijo, isso
pareceu embaralhar seu pensame ntos e imobilizá-lo completamente. Muito mais
do que o beijo , aquele abraço despertou um terrível desejo pelo conforto do pronto
apoio, devoção protetora, e terna aceitação. Mais do que tudo, a promessa daquele
consolo ausente fazia muito tempo foi o que o desarmou.
Ele podia sentir cada polegada , cada curva, cada alto e baixo do corpo
firme dela pressionando contra o dele . Ele sabia que estava tentando pensar em
algum outra coisa ao invés daquele beijo , daquele abraço, daquele corpo , mas ele
não conseguia lembrar o que era. De fato, ele estava sentindo grande dificuldade
até mesmo em pensar .
Era por causa daquele beijo . Foi um beijo que o fez esquecer quem ele
era, ou porque estava ali , porém, o que era bastante estranho , ele não parecia ser
um beijo que necessariamente prometia amor , ou mesmo luxúria. Ele não tinha
certeza do que aquilo prometia . Quase parecia ser condicional .
Uma coisa que ele soube foi que esse era muito diferente do beijo que
Nicci deu nele no estábulo em Altur'Rang pouco antes dele partir. Aquele beijo
tinha carregado o extraordinário prazer e serenidade d e magia, se não outras
coisas. A verdadeira Nicci estava por trás daquele beijo . Independente da ilusão
visual, essa não era Nicci.
Esse era um beijo que parecia irresistível , como um grande peso pode
ser irresistível, mas não realmente tão ... erótico. Ainda assim, isso ameaçava
envolvê-lo em suas cautelosas perguntas e silenciosas promessas .
— Nicci... ou Shota... ou seja lá quem você for... — Cara rosnou com os
dentes cerrados, os punhos fechados com firmeza. — o que você acha que está
fazendo?
Ela afastou-se, virando a cabeça levemente , sua bochecha repousando
contra a de Richard, para olhar Cara com curiosidade.
Dedos delicados deslizaram pelo cabelo atrás da cabeça dele . A mente
de Richard estava vacilando.
Cara recuou um pouco quando Shota... na pele de Nicci... com sua outra
mão, segurou suavemente o queixo da Mord-Sith.
— Ora, nada além daquilo que você quer .
Cara recuou mais um passo para que o seu rosto ficasse fosse do alcan ce
da mão confortadora. — O quê?

291
— Isso é o que você quer , não é? Eu pensaria que você ficaria agradecida
que eu esteja ajudando você com o seu grande plano .
Cara plantou os punhos nos quadris . — Eu não sei do que você está
falando.
— Porque está tão irritada? — o sorriso ficou astuto . — Não fui eu quem
pensou nisso . Você pensou . Esse é o seu plano... aquele que você mesma criou.
Estou simplesmente ajudando você a dar vida a ele .
— O que faz você pensar... ? — Cara pareceu ficar sem palavras .
O olhar com olhos azuis que parecia tanto com o de Nicci desviou para
Richard. O sorriso retornou enquanto ela estudava as feições dele a polegadas de
distância.
— Essa jovem é uma querida amiga e protetora leal . A sua querida amiga
e protetora leal contou tudo o q ue planejou para você, Richard? — ela tocou o
nariz dele. — E que planos. Ela tem o resto da sua vida toda pensada e arranjada
para você. Algum dia você realmente devia perguntar o que ela está tramando para
você.
Subitamente o rosto de Cara ficou vazio ao compreender e depois ficou
vermelho.
Richard segurou Shota pelos ombros e empurrou -a para trás, forçando a
mão dela a escorregar do seu ombro . Ao mesmo tempo ele renovou os esforços
para recuperar o controle de si mesmo .
— Você já disse... Cara é minha amiga . Não tenho medo daquilo que ela
pode querer para minha vida . Entenda, a despeito do que os meus amigos e entes
queridos querem para mim , ou esperam que eu realize , essa é a minha vida e eu
decido o que tentarei fazer dela . As pessoas podem planejar ou esperar tudo o que
quiserem para aqueles com os quais se importam , mas no fim é cada indivíduo
quem deve assumir a responsabilidade por sua própria vida e fazer a escolha por
si mesmo.
O sorriso largo dela exibiu os dentes . — Como você é deliciosamente
inocente para pensar coisas assim . — os dedos dela alisaram para trás o cabelo
dele. — Eu realmente aconselharia você a perguntar para ela o que está planejando
fazer com o seu coração .
Richard olhou para Cara. Ela parecia ao mesmo tempo prestes a explodir
de fúria e fugir em pânico . Ao invés de fazer qualquer uma das duas coisas ela
permaneceu quieta. Richard não sabia do que Shota estava falando, mas sabia que
essa não era a hora e nem o lugar para descobrir . Não podia permitir que Shota o
desviasse de seu objetivo .
Ele também notou que Cara estava apertando com firmeza os dedos em
seu Agiel.
— Shota, já chega dessa charada. Os desejos e intenções de Cara são
problema meu, não seu.
Nicci sorriu com tristeza. — Assim você acha, Richard. Assim você
acha.
O ar nebuloso ao redor da mulher cintilou e Nicci não era mais Nicci,
mas Shota. Ela não era mais um fantasma de sonho , mas uma clara visão . Seu
cabelo, ao invés de loiro , continuava tão volumoso quanto antes mas com uma cor
castanho-avermelhada. Seu vestido negro havia se transformado em um fino cinza
variegado , com camadas, de mesmo corte baixo , com pontas soltas que
esvoaçavam levemente na brisa . Ela era tão bela quanto o vale ao redor dela .
Quando Shota voltou sua atenção para Cara , sua expressão endureceu
perigosamente. — Você feriu Samuel.

292
— Sinto muito . — Cara falou sacudindo os ombros . — Não pretendia
ferir ele. — Shota arqueou uma sobrancelha em seu olhar ameaçador , como se
indicasse que não acreditava em uma palavra daquilo .
— Pretendia matá -lo. — disse Cara.
A fúria de Shota desapareceu . Um sorriso incandescente acompanhou
uma genuína, mesmo que breve, risada . Ela olhou para Richard com o canto dos
olhos, o sorriso ainda em seus lábios .
— Gostei dela. Você pode continuar com ela.
Richard lembrou que um dia Cara tinha feito aquela mesma declaração
para ele a respeito de Kahlan.
— Shota, eu disse, preciso conversar com você .
Os claros olhos cor de amêndoa dela observaram ele com uma sensação
de espanto. — Então você veio oferecer -se para ser meu amante?
Richard notou Samuel entre as árvores , espiando, seus olhos amarelos
brilhando com ódio .
— Você sabe que não.
— Ah. — o sorriso dela retornou . — O que está querendo dizer, então,
é que veio porque você quer alguma coisa de mim . — ela segurou uma das pontas
flutuantes do vestido . — Não é isso, Richard?
Richard teve que lembrar a si mesmo de parar de olhar nos olhos dela .
Mas era tão difícil desviar o olhar . Era como se Shota controlasse onde o olhar
dele pousava e ele estivesse com dif iculdades para fazê -lo pousar em locais
apropriados.
Uma vez Kahlan disse a ele que Shota o enfeitiçara . Kahlan falou que
Shota não conseguia evitar fazer isso , simplesmente era o que Bruxas faziam. Isso
ocorria naturalmente para elas .
Kahlan.
Aquele pensamento nela agitou sua mente .
— Kahlan desapareceu.
A testa de Shota franziu levemente . — Quem?
Richard s uspirou. — Olhe, algo terrível está acontecendo . Kahlan, minha
esposa...
— Esposa! Desde quando você tem uma esposa ?
A expressão dela exibiu um olhar feroz. Pela raiva súbita energizando
as feições dela e pelo modo como o colo dela moveu -se no decote do vestido ,
Richard soube que ela não estava fingindo surpresa . Ela simplesmente não
lembrava de Kahlan.
Richard passou os dedos através do cabelo enquanto organizava os
pensamentos e começou novamente .
— Shota, você encontrou com Kahlan várias vezes. Você a conhece
muito bem. Alguma coisa aconteceu para apagar a lembrança dela da mente de
todas as pessoas . Ninguém lembra dela, incluindo você, e...
— Exceto você? — ela disse com incredulidade . — Só você lembra dela?
— É uma longa história .
— O tamanho da história não torna ela verdadeira .
— É verdade. — Richard insistiu. Ele gesticulou vigorosamente . — Você
esteve em nosso casamento .
Ela cruzou os braços . — Acho que não.
— Na primeira vez em que eu vim aqui , você capturou Kahlan e deixou
ela coberta por serpentes...
— Serpentes. — Shota sorriu. — Está dizendo que eu gostei dessa

293
mulher e está sugerindo que eu a tratei de forma indulgente?
— Não exatamente . Você queria ela morta.
O sorriso aumentou . Ela colocou os pulsos de volta nos ombros dele . —
Richard, agora isso é terrivelmente severo , você não acha?
Richard segurou-a pela cintura e gentilmente empurrou -a para trás. Ele
sabia que se não a impedisse em breve ela atrapalharia sua capacidade de pensar .
— Eu certamente pensei assim . — disse ele. — Entre outras coisas , você
não queria o nosso casamento .
Shota deslizou uma unha pintada de vermelho descendo no peito dele .
Ela olhou para ele com a cabeça meio a baixada.
— Bem, talvez eu tivesse minhas razões .
— Sim... você não queria que nós tivéssemos uma criança . Disse que
estaríamos criando um monstro porque de mim ele herdaria o Dom e por causa de
Kahlan ele seria um Confessor .
— Confessor! — Shota deu um passo para trás como se ele tivesse ficado
venenoso. — Um Confessor? Você está louco?
— Shota...
— Não há mais Confessoras . Elas estão todas mortas .
— Isso não está correto . Todas estão a não ser Kahlan.
Ela virou para Cara. — Ele teve uma febre ou algo assim ?
— Bem... ele foi atingido por uma flecha . Quase morreu. Nicci curou
ele mas ele ainda ficou inconsciente durante dias .
Desconfiada, Shota levantou um dedo como se houvesse descoberto uma
trama maligna. — Não me diga que ela usou Magia Subtrativa .
— Sim, ela usou, — Richard respondeu no lugar de Cara. — e porque
fez isso ela conseguiu salvar minha vida .
Shota deu um passo eliminando a distância que havia colocado entre eles
quando tinha recuado . — Usou Magia Subtrativa ... — Shota murmurou para si
mesma. Ela olhou para ele outra vez . — Como ela usou... com que propósito ?
— Ela usou para eliminar a flecha farpada enterrada em mim .
Shota girou uma das mão , pedindo a ele para continuar . — Ela deve ter
feito algo mais .
— Ela usou Magia Subtrativa para remover todo o sangue acumulando
no meu peito. Ela falou que não havia outra maneira de remover tanto a flecha
quanto o sangue ou qualquer um dos dois me mataria se fosse deixado ali .
Shota virou as costas para eles e , com uma das mãos no quadril ,
caminhou alguns passos enquanto considerava o breve relato .
— Isso explica muitas coisas. — ela falou baixo, irritada .
— Você deu um colar para Kahlan. — disse Richard.
Shota franziu a testa olhando para trás por cima do ombro . — Um colar?
Que tipo de colar eu daria para ela? E porque, meu querido rapaz , você imagina
que eu faria uma coisa como essa para a sua ... amante?
— Esposa. — Richard corrigiu. — Você e Kahlan passaram algum tempo
juntas... sozinhas... e entraram em uma espécie de entendimento . Você deu o colar
para Kahlan como um presente para que ela e eu pudéssemos ... bem, ficarmos
juntos. Ele tinha algum tipo de poder para que não pudéssemos ter uma criança .
Embora eu não concorde coma sua visão de eventos futuros , nesse momento , com
a guerra e tudo, nós decidimos aceitar o seu presente e a trégua que vinha com
ele.
— Não consigo imaginar como você poderia pensar que eu faria qualquer
uma dessas coisas . — Shota olhou para Cara novamente. — Ele teve uma febre

294
muito forte além do ferimento ?
Richard podia ter pensado que Shota estava sendo sarcástica, mas podia
ver pela expressão no rosto dela que ela estava fazendo uma pergunta séria .
— Não exatamente uma febre muito forte. — falou Cara, hesitant e. —
Foi uma febre leve. Porém, Nicci disse que o problema dele estava parcialmente
relacionado com o quanto ele chegou da morte mas que em maior parte tinha algo
a ver com o tempo prolongado em que ficou inconsciente . — Cara soou bastante
relutante em falar sobre isso com uma pessoa que ela considerava uma potencial
ameaça, mas finalmente ela concluiu sua resposta . — Ela disse que ele estava
sofrendo com delírios.
Shota cruzou os braços quando soltou um suspiro enquanto observava
ele com seus olhos cor de amêndoa . — O que farei com você. — ela murmurou
para si mesma.
— Na última vez em que estive aqui , — falou Richard. — você disse que
se algum dia eu retornasse a Agaden Reach você me mataria .
Ela não mostrou reação . — Eu disse isso? E porque eu falaria tal coisa ?
— Acho que você estava bastante irritada comigo porque eu me recusei
a matar Kahlan e porque recusei permitir que você fizesse isso . — ele apontou
com o queixo em direção a passagem na montanha . — Pensei que você podia ter
decidido manter a sua palavra e ass im enviou Samuel para cumprir a ameaça.
Shota olhou para seu companheiro entre as árvores . De repente ele
pareceu alarmado.
— Do que você está falando ? — ela perguntou franzindo a testa quando
olhou de volta para Richard.
— Agora você vai afirmar que não s abia?
— Não sabia do quê?
Richard considerou brevemente os olhos amarelos olhando com raiva
para ele.
— Samuel escondeu-se na passagem e pulou em cima de mim do meio
da tempestade. Ele pegou minha espada e me chutou em um penhasco . Eu só
consegui segurar n a borda. Se Cara não estivesse lá, Samuel teria usado a espada
para garantir que eu caísse do penhasco . Ele quase me matou. Ele não conseguiu
não foi porque não pretendia ou por não ter tentado o melhor que podia .
O olhar sério de Shota desviou para a figura escura agachada entre as
árvores. — Isso é verdade?
Samuel não conseguiu suportar o escrutínio dela . Mergulhado em auto
piedade, o olhar dele desviou para o chão . Isso já foi resposta suficiente.
— Discutiremos isso mais tarde. — ela falou para ele com uma voz baixa
que espalhou -se inequivocamente entre as árvores e causou calafrios em Richard.
— Essa não foi minha intenção , Richard, n em minhas ordens, posso
garantir isso a você . Falei para Samuel apenas convidar a sua pequena guardiã
feroz para vir junto .
— Sabe de uma coisa, Shota? Estou ficando cansado de Samuel tentar
me matar e então você alegar que jamais deu a ele essas instruções . Uma vez seria
possível acreditar, mas isso está virando rotina . A sua inocente surpresa toda vez
que isso acontece está começando a parecer bastante conveniente . Parece que você
considera a negação bastante útil e assim continua fazendo isso.
— Isso não é verdade, Richard. — Shota falou com um tom controlado .
Ela descruzou os braços e juntou as mãos quando olhou para o chão aos pés dela .
— Você carrega a espada dele . Samuel é um pouco sensível em relação a isso .
Uma vez que ela foi tomada dele , não entregue por sua vontade própria , isso

295
significa que ela ainda pertence a ele .
Richard quase proferiu um a objeção, mas então lembrou a si mesmo que
não estava ali para discutir esse assunto .
O olhar de Shota levantou para encontrar o dele . O olhar dela mostrava
raiva.
— E como ousa reclamar para mim a respeito daquilo que Samuel faz
sem o meu conhecimento qu ando você traz conscientemente uma ameaça mortal
para dentro da paz do meu lar ?
Richard foi pego de surpresa. — Do que você está falando ?
— Não finja ser estúpido , Richard, isso não combina com você . Você
está sendo caçado por uma ameaça selvagemente perigosa. Quantas pessoas já
morreram porque foram desafortunadas o bastante para estarem perto de você
quando a besta veio procurando por você . E se ela decidir vir aqui para matá -lo?
Você vem aqui e fazendo isso coloca em risco a minha vida , sem minha permissão,
simplesmente porque você quer alguma coisa ?
— Acha que é certo que eu seja colocada em risco de morte por causa
daquilo que você quer? O fato de pensar que eu tenho algo que você precisa coloca
minha vida à sua disposição e desse modo em grande ri sco?
— É claro que não. — Richard engoliu em seco. — Eu nunca pensei na
coisa desse jeito.
Shota jogou as mãos para o alto . — Ah, então a sua desculpa é que eu
devo colocar minha vida em risco porque você não pensou .
— Preciso da sua ajuda.
— Quer dizer qu e você veio como um pedinte desamparado , implorando
por ajuda, sem importar-se com o perigo em que isso me coloca , simpl esmente
porque você quer alguma coisa .
Richard esfregou as pontas dos dedos na testa . — Olhe, eu não tenho
todas as respostas, mas posso dizer que tenho boas razões para acreditar que estou
certo, que Kahlan existe e que ela desapareceu .
— Como eu disse, você quer alguma coisa e não preocupa -se em
considerar o risco para qualquer outra pessoa .
Richard deu um passo aproximando -se dela. — Isso não é verdade. Não
está vendo? Você não lembra de Kahlan. Ninguém além de mim lembra . Pense,
Shota, pense no que isso significa se eu estiver certo .
A testa dela franziu quando ela olhou confusa para ele . — Do que você
está falando?
— Se eu estiver cert o, então existe algo gravemente errado no mundo
que está fazendo todos... inclusive você... esquecer dela . Ela foi apagada da sua
mente. Mas a coisa é mais séria do que isso . Não é só Kahlan que sumiu da mente
de todos. Tudo que você ou qualquer outra pess oa fez junto com ela também
desapareceu . Algumas dessas partes que sumiram podem ser triviais , mas outras
podem muito bem ser vitais .
— Você não lembra de ter falado que me mataria se eu voltasse aqui .
Isso significa que quando disse isso , em sua mente de alguma forma essa ameaça
tinha que estar conectada a Kahlan. Ela contribuiu para sua escolha em fazer
aquela ameaça. Agora, uma vez que não lembra de Kahlan, você também não
lembra de ter falado aquilo para mim .
— E se houver algo vastament e importante que você esqueceu do mesmo
jeito? Porque esqueceu Kahlan, você perdeu parte daquilo que você fez em sua
própria vida... perdeu algumas das decisões que tomou . De quantas maneiras você
tem conexões com Kahlan sobre as quais não está completamen te ciente que agora

296
foram apagadas? O quanto essas coisas desaparecidas são importantes ? Quanto da
sua vida tem sido alterado porque agora você não lembra das mudanças no seu
pensamento que você fez por causa da influência dela ?
— Shota, você não vê a magnitude do problema? Não consegue perceber
como isso tem o potencial para mudar a percepção de todos ? Se todos esquecerem
como Kahlan mudou suas vidas individuais , agirão sem o benefício das mudanças
que fizeram em seu pensamento .
Richard andou de um lad o para outro, uma das mãos em um quadril ,
gesticulando com a outra . — Pense em alguém que você conhece . — ele virou de
volta para ela, encarando o olhar dela . — Pense em sua mãe. Agora, apenas tente
imaginar tudo que você perderia se perdesse cada lembranç a dela e de tudo que
ela ensinou a você , cada uma das suas decisões nas quais ela teve influência , tanto
diretamente quanto indiretamente .
— Agora, imagine todos esquecendo alguém importante como sua mãe
foi para você... mas imagine eles como peças centrai s de eventos importantes para
todos. Imagine por um momento como a sua vida... o seu pensamento... seriam
alterados se você esquecesse que eu existo e você não lembrasse mais das coisas
que fez comigo , das coisas que fez por minha causa . Consegue começar a ver a
significância?
— Você deu a Kahlan aquele colar como um presente de casamento para
nós dois para evitar que ela tenha um filho ... pelo menos por enquanto . Entretanto,
esse foi um presente que significou mais do que isso . Representou uma trégua .
Foi a paz entre eu e você assim como entre você e Kahlan. Que outras tréguas,
alianças, e juramentos foram feitos por causa de Kahlan que, como o colar, agora
estão esquecidos? Quantas missões importantes serão abandonadas ?
— Não está vendo? Isso tem o potenci al para lançar o mundo dentro de
um turbilhão . Não faço ideia dos possíveis efeitos de um evento com tão ampla
abrangência, mas pelo que eu sei isso poderia alterar a complexidade da luta pela
liberdade. Poderia resultar na ascensão da Ordem Imperial. De acordo como que
sei, poderia resultar no final da própria vida .
Shota pareceu espantada. — Da própria vida?
— Algo com essa significância não acontece aleatoriamente . Não é um
infeliz acidente ou algum erro casual . Tem que haver uma causa , e qualquer coisa
que poderia gerar um evento universal dessa grandiosidade carrega implicações
sinistras.
Durante algum tempo , Shota observou ele com uma expressão ilegível .
Finalmente ela segurou uma ponta flutuante do material em camadas que formava
o seu vestido e virou para outro lado como se estivesse pensando nas palavras
dele. Finalmente ela virou de volta .
— E se você estiver simplesmente sofrendo uma alucinação ? Já que essa
é a explicação mais simples , isso faz com que ela provavelmente seja a verdadeira
resposta.
— Ainda que a explicação mais simples geralmente seja a verdadeira
resposta, isso não é algo infalível.
— Isso não é uma escolha comum como você a considera , Richard. O
que você descreve é extravagantemente complicado . Estou sentindo dificuldade
até mesmo em começar a visualizar as complexidades e consequências que
estariam envolvidas em um evento como esse. Isso teria que fazer com que tantas
coisas fossem desfeitas , com uma desordem tão composta , que logo se tornaria
óbvio demais para todos que alguma coisa terrivelmente errad a no mundo...
mesmo que eles não soubessem o que . Isso simplesmente não está acontecendo .

297
Shota esticou o braço movendo -o com grandiosidade . — Enquanto isso ,
que dano ao mundo você causaria por causa dessa missão louca que está realizando
para encontrar uma mulher que não existe ?
— Você veio até mim na primeira vez buscando ajuda para deter Darken
Rahl. Eu ajudei você , e fazendo isso ajudei -o a tornar-se o Lorde Rahl.
— A guerra está acontecendo , o Império D’Haraniano luta
desesperadamente, e agora você não está lá para fazer parte disso , como é seu
dever como Lorde Rahl. Você foi efetivamente removido da sua posição de
autoridade por suas próprias alucinações e ações impensadas . Um vazio foi
deixado onde deveria haver liderança . Toda ajuda que você seria capaz de fornecer
não está mais disponível para aqueles que lutam pela causa que você defendia.
— Acredito que estou certo. — Richard disse. — Se estou, então isso
significa que há um grave perigo do qual ninguém além de mim está ao menos
consciente. Portanto, ninguém além de mim pode combatê -lo. Somente eu monto
oposição a alguma ruína desconhecida mas iminente . Não posso em sã consciência
ignorar o que eu acredito ser a verdade de uma ameaça escon dida mais monstruosa
do que qualquer um percebe .
— Isso cria uma desculpa conveniente , Richard.
— Não é uma desculpa.
Shota assentiu de forma zombeteira . — E se o recém fundado império
livre de D'Hara cair nesse meio tempo ? Se os selvagens da Ordem Imperial
erguerem suas espadas sangrentas sobre os cadáveres de todos aqueles bravos
homens que perecerão defendendo a causa da liberdade enquanto o líder deles está
fora perseguindo fantasmas ? Todos aqueles bravos homens estarão m enos mortos
porque só você enxerga algum perigo inescrutável ? A causa deles... a sua causa...
estará menos derrotada? O mundo então será capaz de deslizar alegremente dentro
de uma longa era sombria onde milhões e milhões nascerão em vidas miseráveis
de opressão, fome, sofrimento , e morte?
— Perseguir o enigma que está apenas em sua mente tornará o
sepultamento da liberdade aceitável para você , Richard? Uma mera consequência
daquilo que você teimosamente acha que é certo em face da esmagadora evidência
do contrário?
Richard não teve resposta. De fato, ele temeu ao menos tentar oferecer
alguma para ela. Depois da forma como ela colocou isso , qualquer coisa que ele
falasse soaria vazia e egoísta . Ele sentia certeza de que tinha boas razões para
agarrar-se às suas convicções, mas também sabia que para todos os outros a prova
estava parecendo fraca demais , então ele pensou que talvez fosse melhor apenas
ficar quieto.
Porém, mais do que isso, espreitando sob a superfície estava a terrível
sombra do medo de que el a pudesse estar certa , de que tudo isso era alguma
terrível alucinação apenas em sua mente e não algum problema com todas as
outras pessoas.
O que fazia ele estar certo e todos os outros errados ? Como apenas ele
podia estar certo? Como algo assim podia ao menos ser possível ? Como ele mesmo
podia saber que estava certo ? Que provas, além de sua própria memória , ele tinha?
Não havia um fragmento concreto de evidência ao qual ele podia segurar -se, para
o qual podia apontar.
A fissura em sua confiança o apavorav a. Se essa fissura aumentasse , se
ela rompesse, o peso do mundo o esmagaria . Ele não conseguiria suportar o peso
se ela não existisse.
Apenas a palavra dele estava entre Kahlan e o esquecimento .

298
Ele não conseguiria continuar sem ela . Não queria continuar em um
mundo sem ela. Ela era tudo para ele . Até esse momento, ele estivera colocando
a pessoal, particular, adorável lembrança dela de lado ao invés de lidar com
detalhes para suportar a dor de sentir falta dela por mais um dia mesmo quando
trabalhava para encontrá-la. Mas agora aquela dor estava apertando em volta de
seu coração, ameaçando deixá-lo de joelhos.
Com a dor de sentir falta dela veio uma explosão de culpa. Ele era a
única esperança de Kahlan. Somente ele mantinha a chama dela viva acima da
torrente que tentava afogar a existência dela . Apenas ele trabalhava para encontrá -
la e trazê-la de volta. Mas ele ainda não tinha realizado qualquer coisa útil em
direção a esse fim . Os dias passavam marchando , mas até agora ele não tinha
conseguido qualquer coisa que o levasse mais p erto dela.
Para tornar as coisas ainda piores , Richard sabia que Shota também
estava certa de uma forma muito importante . Enquanto ele trabalhava para ajudar
Kahlan, estava falhando com todos os outros . Foi ele quem , em grande extensãoo,
fizera as pessoas acreditarem na ideia , na possibilidade bastante real , de uma
D'Hara livre, de um lugar onde fosse possível para as pessoas viverem e
trabalharem em prol de seus próprios objetivos em suas próprias vidas .
Ele estava bastante conscie nte de que ele também foi amplamente
responsável pela queda da grande barreira , permitindo que o Imperador Jagang
liderasse a Ordem Imperial para dentro do Mundo Novo para ameaçar a liberdade
recém encontrada no Mundo Novo .
Quantas pessoas estariam em risco, ou perderiam suas vidas , enquanto
ele perseguia essa pessoa que amava ? O que Kahlan gostaria que ele fizesse ? Ele
sabia como ela preocupava -se com o povo de Midlands, o povo que um dia ela
governara. Ela desejaria que ele a esquecesse e tentasse sal vá-los. Ela diria que
havia muito em risco para ir atrás dela .
Mas se fosse ele quem estivesse desaparecido , ela não o abandonaria por
qualquer coisa ou qualquer pessoa .
A despeito daquilo que Kahlan poderia dizer, era a vida dela que era
importante para e le, a vida dela que significava o mundo para ele .
Ele imaginou se talvez Shota estivesse certa, de que ele estava
meramente usando o conceito do perigo que o desaparecimento de Kahlan
representava para o resto do mundo , como uma desculpa .
Ele decidiu que a melhor coisa a fazer no momento , até que ele
conseguisse pensar em uma forma melhor de conseguir a ajuda de que precisava ,
e ganhar tempo para reunir sua coragem , fortalecer a sua determinação , era mudar
de assunto.
— E quanto a essa coisa, — perguntou Richard, gesticulando vagamente.
— essa besta que está me perseguindo . — a paixão desaparecera da sua voz . Ele
percebeu o quanto estava cansado da longa caminhada pela passagem , sem falar
dos dias de cavalgada do Mundo Antigo . — Tem alguma coisa que você p ossa
dizer a respeito dela ?
Ele sentiu -se em solo mais seguro com essa pergunta porque a besta
poderia interferir não apenas em sua busca por Kahlan, mas na missão para a qual
Shota estava sugerindo que ele retornasse .
Ela observou -o por um momento, sua voz finalmente surgindo mais
suave, como fizera a dele, como que sem perceber se eles alcançaram uma trégua
sem palavras em um nível menor de antagonismo . — A besta que caça você não é
mais a besta que ela foi , a besta que ela foi como havia sido criada . Eventos
fizeram ela sofrer mutação .

299
— Mutação? — Cara perguntou, parecendo alarmada. — O que você quer
dizer? No que ela transformou -se?
Shota olhou para os dois , como que para certificar -se de que eles
estavam prestando atenção .
— Transformou -se em uma Besta Sangrenta.

300
C A P Í T U L O 4 1

— Uma Besta Sangrenta? — perguntou Richard.


Cara chegou mais perto do lado dele . — O que é uma Besta Sangrenta ?
Shota deu um suspiro antes de explicar . — Ela não é mais apenas uma
besta conectada com ao Submundo, como era quando foi criada . Ela recebeu
inadvertidamente uma prova do seu sangue , Richard. E o que é pior , era recebeu
essa prova através da Magia Subtrativa... magia também conectada ao Submundo.
Esse evento transformou -a em uma Besta Sangrenta .
— Então... o que isso significa? — Cara perguntou.
Shota inclinou-se chegando mais perto , sua voz reduzindo para pouco
mais do que um sussurro . — Isso significa que agora ela é muito mais perigosa .
— ela endireitou o corpo depois que tinha certeza de ter causado a impressão
pretendida. — Não sou especialista em antigas armas criadas na Grande Guerra ,
mas acredito que uma vez que uma besta como essa provou o sangue do seu alvo
desse jeito, não há como fazer ela voltar atrás , jamais.
— Muito bem, então ela não vai desistir. — Richard descansou a palma
sobre o cabo da espada. — Então o que você pode dizer para me ajudar a matá -
la? Ou pelo menos fazer ela parar , ou mandá-la de volta para o Submundo. O que
ela faz, precisamente, como ela sabe que...
— Não, não. — Shota balançou a mão . — Você está tentando pensar nela
nos termos de alguma ameaça comum caçando você . Está tentando colocar uma
natureza nela, tentando dar a ela um comportamento que a define. Ela não possui
isso. Essa é a peculiaridade dessa coisa... a ausênc ia de uma descrição que a
defina, de uma referência. Pelo menos alguma que tenha qualquer utilidade , uma
vez que sua natureza é exatamente o fato de que ela possui nenhuma . Por causa
disso suas ações não podem ser previstas.
— Isso não faz sentido . — Richard cruzou os braços, imaginando se
Shota realmente sabia tanto sobre essa besta quanto dizia que sabia . — Ela tem
que agir conforme alguma natureza fundamental . Deve comportar -se de certas
formas que nós possamos ao menos começar a entendê -la e assim começar a
antecipá-la. Só precisamos descobrir . Ela não pode possuir natureza alguma .
— Não está vendo, Richard? Desde o início , aqui está você tentando
compreender isso. Não acha que Jagang saberia que você tentaria compreendê -la
para que pudesse derrotá -la? Já não fez esse tipo de coisa com ele no passado ?
Ele descobriu a sua natureza , e para combatê-lo ele criou uma arma que ,
justamente por essa razão, não possui natureza.
— Você é o Seeker. Você procura respostas para a natureza de pessoas ,
ou coisas, ou situações. O que em uma extensão maior ou menor , todas as pessoas
fazem. Se a Besta Sangrenta tivesse uma natureza específica , então suas ações
poderiam ser aprendidas e compreendidas . Se algo pode ser compreendido o
suficiente para prever seu comportam ento, então precauções podem ser tomadas ,
um plano para combate pode ser feito . Decodificar sua natureza é essencial para
que a ação efetiva seja tomada . É por isso que essa coisa não tem natureza... para
que você não consiga fazer essas coisas para detê -la.
Richard passou os dedos pelo cabelo . — Isso não faz o menor sentido .
— Não deve mesmo fazer . Isso também é parte da característica dela...
não ter características . Não fazer sentido para frustrar você .

301
— Concordo com Lorde Rahl. — Cara disse. — Ela ainda tem que ter
algum tipo de composição, alguma forma de agir e reagir . Até mesmo pessoas que
consideram -se espertas ao tentarem ser imprevisíveis ainda caem em padrões
mesmo que não percebam . Essa besta não pode simplesmente correr para cá e para
lá esperando encontrar Lorde Rahl cochilando.
— Para evitar que ela seja compreendida e detida , essa besta foi criada
intencionalmente como uma criatura do caos . Ela foi conjurada para atacar e matar
você, mas além dessa missão , ela trabalha em direção a esse fim através de meios
desordenados . — Shota segurou outra ponta flutuante do seu vestido enquanto
falava. — Hoje ela ataca com garras . Amanhã ela cospe veneno . No dia seguinte
ela queima com fogo , ou esmaga com um golpe , ou enterra presas em você . Ela
ataca usando ações aleatórias . Ela não escolhe um curso de ação baseado em
análise, experiência prévia, ou até mesmo na situação do momento.
Richard apertou o nariz enquanto pensava na explicação dela . Até agora,
parecia que Shota estava certa em não haver padrão nos ataques. Eles vieram de
formas completamente diferentes... tão diferentes , de fato, que eles questionaram
se era ou não realmente a mesma besta sobre a qual Nicci alertou que estava atrás
dele.
— Mas Lorde Rahl escapou dessa besta várias vezes . Ele provou que ela
pode ser superada.
Shota sorriu diante da simples ideia, como se uma criança tivesse feito
a declaração. Ela caminhou afastando -se um pouco e então retornou enquanto
considerava o problema. O movimento da sobrancelha dela disse Richard que ela
havia pensado em uma forma melhor de explicar .
— Pense na Besta Sangrenta como se ela fosse chuva. — ela falou. —
Imagine que você queira ficar fora da chuva , como desejaria evitar ser pego pela
besta. Imagine que o seu objetivo é permanecer seco . Hoje você pode estar do
lado de dentro quando a chuva vier , então você permanece seco . Outro dia a chuva
pode vir do outro lado do vale e então novamente você fica seco . Outro dia você
sai de uma área pouco antes da chuva começar . Outro dia, você pode decidir não
viajar, e a chuva vem . Talvez em outro dia enquanto você caminha por uma estrada
a chuva movimente-se e caia no campo a sua direita , mas na estrada e a sua
esquerda permaneça seco . Em cada uma das vezes o evento da chuva aleatória não
atingiu você, e você ficou seco... às vezes porque você efetuou ações preventivas,
como ficar do lado de dentro , e às vezes pela sorte .
— Mas, com a frequência que chove , você percebe que mais cedo ou
mais tarde ela molhará você .
— Então, você pode decidir que a me lhor abordagem a longo prazo é
obter a compreensão contra o quê exatamente você luta . Desse modo, em um
esforço para entender o seu adversário , você observa o céu e tenta aprender a
prever a chuva . Alguns padrões começam a revelar -se como relativamente
perceptíveis, então você os utiliza como um meio de previsão e como resultado
haverá algumas vezes quando você está certo e antecipa precisamente a
aproximação da chuva. Com esses meios você é capaz de ficar do lado de dentro
quando a chuva vem e assim você f ica seco. Você teve sucesso, assim pareceria ,
aplicando o que aprendeu sobre como antecipar e prever a chuva .
Os olhos atentos de Shota observaram Cara e então fixaram-se em
Richard com tal poder que isso quase fez parar a respiração dele . — Mas cedo ou
tarde, — ela falou com uma voz que fez correr um calafrio na coluna dele. — a
chuva pegará você . Você poderá ser pego de surpresa . Ou, pode ter previsto que
ela estava vindo , mas acreditou que teria tempo para chegar ao abrigo primeiro , e

302
então ela subitam ente desloca-se mais rápido do que você já pensou ser possível .
Ou, em um dia quando você está longe do abrigo porque pensou que naquele dia
não havia chance de chover e então você aventurou -se longe do seu abrigo , ela o
alcança inesperadamente . O resultado de todos aqueles eventos diferentes é o
mesmo. Se for a besta, ao invés da chuva, você não fica molhado , você está morto.
— A confiança em sua habilidade de prever a chuva eventualmente será
a sua ruína porque embora você consiga ser capaz de prevê -la de forma acurada
em várias ocasiões , na realidade ela não é confiavelmente previsível baseado no
volume de conhecimento realmente disponível a você ou sua habilidade pode não
ser capaz de entender toda a informação que você tem . Entretanto, quanto mais
vezes você escapar, mais forte a sua falsa sensação de confiança será , deixando
você muito mais vulnerável a um evento surpresa . Os seus melhores esforços para
conhecer a natureza da chuva eventualmente falharão porque mesmo que você
esteja certo em grande núme ro de suas previsões , as coisas que trouxeram
previsões de sucesso nem sempre são relevantes , e ainda assim você não tem como
saber disso. Como resultado , a chuva chegará sorrateira e o pegará quando você
não estiver esperando .
Richard olhou para a expres são preocupada no rosto de Cara, mas nada
falou.
— A Besta Sangrenta é assim. — Shota disse com finalidade . — Ela não
tem uma natureza precisamente para que você não consiga prever o seu
comportamento por quaisquer padrões de sua conduta .
Richard deu um suspiro paciente . Ele não conseguia mais ficar calado .
— Mas todas as coisas que existem devem possuir uma natureza , leis para sua
existência, mesmo que não as entendamos... caso contrário o que você está
propondo é que elas poderiam contradizer a si mesmas e elas não podem .
— Falta de compreensão da sua parte não significa que você pode
escolher uma explicação conforme sua vontade . Você não pode dizer que uma vez
que não conhece a natureza dela , ela não possui qualquer natureza . Você só pode
afirmar que aind a não conhece a natureza dessa coisa , que ainda não foi capaz de
entendê-la.
Com um leve sorriso , Shota apontou para o céu . — Como a chuva? Você
pode estar correto teoricamente , Richard, mas algumas coisas , em todos os
propósitos práticos , estão tão além d e nossa compreensão que parecem ser
movidas pelo acaso... como a chuva . Até onde eu sei, o clima pode muito bem
possuir leis que o governam , mas elas são tão complexas e tão distantes que não
podemos de forma realística esperar compreender ou conhecê -las. No final, a
chuva pode não ser realmente um evento criado pelo acaso , mas ela ainda está
fora de nossa capacidade de previsão , então para nós o resultado é o mesmo que
se ela fosse inteiramente aleatória e sem ordem ou natureza .
— Uma Besta Sangrenta é parecida com isso. Se de fato houver leis para
sua natureza, como você acredita, isso não faria diferença . Tudo que posso dizer
a você é que de acordo com o que sei , essa é uma besta criada especificamente
para agir sem ordem e a criação dela teve sucesso ao nível em que ela funciona
de forma consistente em não ter natureza discernível... pelo menos qualquer uma
que seja útil para entendê -la ou detê-la.
— Reconheço a possibilidade de que você pode ter razão . Suponho que
seja possível que exista alguma natur eza complexa por trás da aparente desordem
da besta, mas se esse for o caso , posso dizer a você que ela está tão além de nossa
habilidade para entendê -la que para nossos padrões ela age de forma caótica .
— Não tenho certeza se entendo você. — falou Richard. — Cite um

303
exemplo.
— Por exemplo, a besta não aprenderá com aquilo que faz . Ela pode
tentar a mesma tática que falhou três vezes seguidas , ou pode tentar algo ainda
mais fraco na próxima vez que obviamente não possui chance de sucesso . O que
ela faz parece aleatório. Mas se ela é conduzida por alguma grandiosa, complexa
equação, isso não é revelado através de suas ações ; nós vemos apenas resultados
caóticos .
— E mais, ela não tem consciência , pelo menos, como nós pensaríamos .
Ela não tem alma. Ainda que tenha um objetivo, ela não se importa se terá sucesso .
Não fica com raiva se falhar . É desprovida de piedade, empatia, curiosi dade,
entusiasmo, ou preocupação. Ela recebeu uma missão... matar Richard Rahl... e
ela usa aleatoriamente suas diversas habili dades para atingir esse objetivo , mas
ela não tem interesse emocional ou intelectual em providenciar que seu propósito
seja alcançado.
— Coisas vivas possuem interesse em verem a si mesmas obtendo
sucesso em seus objetivos , quer seja uma ave voando até um arbusto com frutas ,
ou uma cobra seguindo um rato em um buraco . Elas agem para prolongarem suas
vidas. A Besta Sangrenta não .
— É apenas uma coisa sem raciocínio avançando em direção da execução
de seu objetivo conjurado inerente . Você pode dizer que ela é como a chuva,
recebendo a missão de “faça Richard ficar molhado”. A chuva tenta e tenta , um
temporal, uma garoa, um rápido chuvisco , e tudo falha. A chuva não se importa
ao falhar em fazer você ficar molhado . Ela pode passar algum tempo em uma
estiagem. Ela não fica ansiosa ou com raiva . Ela não redobra seus esforços . Ela
simplesmente continuará chovendo de formas diferentes até que eventualmente
ela encharca você. Quando ela fizer isso , não sentirá qualquer alegria .
— A Besta é irracional nesse sentido ... mas não se engane, ela é
perversa, feroz, e impensadamente cruel em suas ações .
Richard passou a mão pelo rosto . — Shota, isso ainda não faz sentido
para mim. Como poderia ser assim ? Se ela é uma besta , ela tem que ser direcionada
por algum tipo de pro pósito. Alguma coisa tem que direcioná -la.
— Oh, ela é direcionada por alguma coisa : a necessidade de matar você .
Ela foi criada para ser uma criatura que age com pura desordem para que você não
consiga combatê -la. De certo modo, você provou ser um oponente tão difícil de
derrotar que Jagang teve que pensar em algo que trabalharia evitando as suas
incríveis habilidades , ao invés de superá-las.
— Mas se ela foi criada para me matar , então ela tem propósito .
Shota balançou os ombros . — Verdade, mas essa informação não tem
qualquer utilidade para que você preveja como , quando, ou onde ela tentará matá -
lo. Como você já devia saber agora , as ações dela em direção a esse objetivo são
randômicas . Você deveria enxergar claramente o profundo perigo nessa tática. Se
você sabe que o inimigo vai atacar com lanças , você pode carregar um escudo . Se
você sabe que um assassino com um arco o está caçando , pode mandar o exército
procurar por um homem com um arco . Se você sabe que um lobo o está caçand o,
pode montar uma armadilha , ou ficar dentro de uma construção.
— A Besta Sangrenta não tem método preferido de matar ou caçar , então
do ponto de vista em defender -se dela, é profundamente difícil proteger -se. Um
dia ela pode atacar e matar facilmente mil soldados que estão protegendo você .
Na próxima vez ela pode recuar timidamente após massacrar uma criança que
saltitava na frente de você . O que ela faz uma vez não pode indicar a você o que
ela fará na próxima vez . Isso também é parte do terror engendrado por uma besta

304
como essa... o terror de não saber como virá o ataque .
— A força dela, sua letalidade , é que ela não é alguma coisa em
particular. Ela não é forte, ou fraca, ou veloz, ou lenta. Ela está constantemente
mudando e assim mesmo às vezes ela per manece a mesma ou reverte para um
estado prévio , mesmo um que não tenha obtido sucesso .
— A única coisa que importou depois que ela foi criada foi a primeira
vez em que você usou o seu Dom . Foi quando ela travou a mira em você . Depois
disso, você jamais pode saber o que ela fará em seguida ou quando fará . Sabe
apenas que ela está vindo atrás de você e não importa quantas vezes você escape
das suas garras, ela continuará vindo... talvez diversas vezes no mesmo dia , talvez
não apareça outra vez durante um m ês, ou um ano, mas pode ter certeza de que
eventualmente ela virá atrás de você novamente . Ela nunca desistirá.
Richard imaginou quanto daqu ilo que Shota estava dizendo ela sabia ser
fato e quanto ela estava completando com o que ac reditava, ou talvez até mesmo
imaginava.
— Mas você é uma Bruxa, — Cara disse. — certamente pode dizer a ele
alguma coisa que ajudará a combater isso .
— Parte da minha habilidade é a capacidade de ver como eventos fluem
no rio do tempo, ver para onde eles seguem , você poderia dizer. Uma vez que a
Besta Sangrenta não pode ser prevista, ela, pela definição prática de sua
característica, existe fora da minha habilidade de previsão . Minha habilidade está
conectada de certo modo com a profecia .
Richard é um homem que de uma certa maneira existe fora da profecia ,
um homem que outras pessoas geralmente consideram frustrantemente
imprevisível... como as Mord-Sith sem dúvida descobriram . Em relação a essa
besta eu não posso oferecer a ele qualquer aviso sobre o que pode acontecer ou o
que ele deve evitar.
— Então, livros de profecia não teriam qualquer utilidade ? — Richard
perguntou.
— Justamente como eu estou cega nisso , todas as profecias estão . A
profecia não consegue ver uma Besta Sangrenta mais do que consegue ver
qualquer evento c aótico, aleatório. A profecia pode ser capaz de dizer que uma
pessoa será atingida por uma flecha na manhã de um dia em que choverá , mas a
profecia não pode indicar todos os dias em que choverá , ou em qual desses dias
de chuva a flecha a precederá . Você pode dizer que o máximo que a profecia pode
prever é que mais cedo ou mais tarde choverá e você ficará molhado .
Com a mão esquerda repousando sobre a espada , Richard assentiu
relutante. — Tenho que admitir , isso está próximo da minha própria visão da
profecia... que ela pode ser capaz de dizer que o sol nascerá amanhã mas não o
que você escolherá fazer com o seu dia .
Ele fez uma careta para ela . — Então, não pode me dizer qualquer coisa
sobre o que essa Besta Sangrenta fará , porque a sua habilidade é c om o fluxo do
tempo. — quando ela assentiu , ele perguntou. — Então como você parece saber
tanto a respeito disso ?
— O fluxo dos eventos através do rio do tempo não é minha única
habilidade. — disse ela, de forma crítica.
Richard s uspirou, não querendo discutir com ela. — Então isso é tudo
que você pode me dizer .
Shota assentiu. — Isso é tudo que sou capaz de dizer a você sobre a
Besta Sangrenta e o que uma coisa como essa reserva para você . Se ela continuar
a existir, mais cedo ou mais tarde ela pegará você . Mas, porque ela não é

305
previsível, nem mesmo esse resultado não pode ser previsto . Quando, onde, ou
quanto tempo levará para que ela pegue você é impossível saber . Pode ser hoje ,
ou, pelo que sei , pode ser que antes que ela seja capaz de encontrá -lo e mat á-lo,
você morrerá primeiro de velhice .
— Bem, então existe essa possibilidade. — Richard murmurou.
— Não deposite muita esperança nisso. — ela falou em tom solidário .
— Enquanto você viver , Richard, enquanto o sangue pulsar em suas veias , a Best a
Sangrent a caçará você.
— Está sugerindo que ela me encontra através do meu sangue ? De forma
semelhante como dizem que um Sabujo do Coração é capaz de encontrar uma
pessoa pelo som do seu coração batendo ?
Shota ergueu uma das mãos como que para descartar a ideia . — Apenas
uma maneira de falar. Ela provou o seu sangue , em um certo sentido . Mas o seu
sangue, da forma como você está pensando , não é o que tem importância para essa
besta. O que é material é o que ela sentiu ao obter essa amostra : a sua
ancestralidade.
— Ela já sabia que você vive . Ela já estava caçando você . O uso do seu
Dom na primeira vez foi o bastante para conectá -la a você por toda a eternidade .
É o Dom presente no seu sangue que ela sente e que fez ela mudar .
Richard tinha tantas perguntas que não s abia o que perguntar primeiro .
Ele começou com aquilo que ele pensou que poderia ser mais fácil para entender .
— Porque ela está ligada ao Submundo? Existe um propósito para isso ?
— Uns dois que eu consigo perceber . O Submundo é eterno. O tempo não
tem significado na eternidade . Desse modo, o tempo nada significa para a besta .
Ela não sentirá urgência em matá -lo. A urgência faria ela agir com uma espécie
de intenção consciente que daria a ela uma natureza . Ela não sente qualquer
pressão a cada pôr do sol em finalizar o trabalho . Um dia é a mesma coisa que o
seguinte. Os dias nunca terminam .
— Porque ela não possui sentido de tempo , ela não precisa de natureza .
O tempo ajuda a dar dimensão a cada coisa viva . Ele permite que você adie tarefas
que sabe que podem ser feitas mais tarde. Ele faz você correr para montar
acampamento antes que fique escuro . Ele faz um general agir para colocar suas
defesas em posição antes que o inimigo chegue . Ele faz uma mulher querer ter
uma criança enquanto ainda tem tempo . O tempo é um elemento que ajuda a
moldar a natureza de tudo . Até mesmo uma mariposa que emerge de seu casulo
para viver uma vida com asas por apenas um dia deve acasalar naquele dia e
colocar ovos ou não haverá mais representantes da sua espécie .
— A besta não é tocada pelo te mpo. Um elemento constitu inte dela é a
eternidade do Submundo, que é antitético da própria noção da Criação , uma vez
que o Submundo é a desconstrução da Criação . Essa mistura, esse conflito interno ,
é parte do mecanismo condutor que faz suas ações aleatórias e a torna caótica.
Quando Nicci usou Magia Subtrativa para eliminar o seu sangue perdido , a besta,
a partir de suas raízes com o Submundo, obteve uma prova de você , ou, mais
precisamente, uma medida da sua magia .
— O seu sangue carrega a Magia Aditiva e a Magia Subtrativa . A besta
foi criada para ser capaz de reconhecê -lo pela sua essência, magia, assim
permitindo que isso transcenda limites típicos do mundo . A besta precisava que
você usasse a magia uma vez para que ela pudesse conectar-se a você. Através
dessa conexão , ela poderia caçá -lo. Mas quando ela recebeu aquela amostra do
seu sangue, ela passou a ser capaz de reconhecê -lo de uma forma totalmente
diferente.

306
— O elemento único de magia carregado em seu sangue , herdado do lado
de Zedd e do lado de Darken Rahl, foi o que a besta provou . Essa prova foi o que
causou a mutação da besta que os subalternos de Jagang criaram.
— Não é o seu sangue em si que ela sente , mas ao invés disso ela detecta
aqueles elementos de magia inerentes a ele. É por isso que qualquer uso da magia
vai atrair a besta... foi assim que ela tornou -se mais perigosa. Agora ela reconhece
qualquer uso da sua magia em qualquer lugar do mundo . A magia de cada pessoa
é única. Agora a besta conhece a sua. É por isso que você não deve usar o seu
Dom.
— Exatamente por essa razão , as Irmãs que trouxeram a besta para a
existência para Jagang teriam adorado poderem usar o seu sangue no início , mas
elas não tinham como conseguir um pouco dele . Elas puderam ligar a besta ao seu
Dom, mas sem o seu sangue, essa era uma ligação fraca que realmente não
conhecia toda a medida da sua magia .
— Nicci deu para a besta o que ela realmente precisava , logo depois dela
ter sido despertada pelo uso do seu Dom . Ela pode ter feito isso para salvar a sua
vida, e pode não ter restado escolha , mas ela fez isso . Agora, qualquer uso da
magia pode trazer a Besta Sangrenta até você muito mais facilmente . Pareceria
que Nicci cumpriu, de certo modo, seu juramento como uma Irmã do Escuro.
O cabelo da nuca de Richard estava eriçado . Ele queria pensar em um
jeito de provar que Shota estava errada, encontrar uma rachadura na armadura do
monstro ao qual ela havia dado forma na mente dele .
— Mas a besta atacou quando eu não estava usando magia. Justamente
nessa manhã ela atacou em nosso acampamento . Eu não estava usando magia .
Shota direcionou a ele um daqueles olhares que tinham o poder de fazer
ele sentir-se ignorante. — Você estava usando magia nessa manhã.
— Não estava. — ele insistiu. — Eu estava dormindo naquele momento .
Como eu poderia estar usando ...
As palavras de Richard desapareceram. O olhar dele desviou para as
colinas distantes do vale e para as montanhas além. Ele lembrou de ter acordado
e ter aquela terrível lembrança da manhã quando Kahlan havia desaparecido e
então perceber que estava segurando o cabo da espada , a lâmina parcialmente
sacada de sua bainha. Ele lembrou de ter sentido a magia furtiva da espada f luindo
através dele.
— Mas aquela era a magia da espada. — ele disse. — Eu estava
segurando a espada. Não era a minha magia.
— Era a sua magia. — Shota insistiu. — Usar a Espada da Verdade
invoca o poder dela , que junta-se com o seu Dom... com sua magia... que é
reconhecida pela Besta Sangrenta . Agora a magia da espada é parte de você . Usá-
la é um risco de atrair a besta .
Richard sentiu como se tudo estivesse pressionando ele , eliminando cada
alternativa, bloqueando sua habilidade de fazer qualquer coisa para deter o que
estava vindo atrás dele . Ele sentiu-se do jeito que sentiu mais cedo , quando
acordou para encontrar -se em uma armadilha cada vez mais cerrada.
— Mas a espada vai me ajudar a combatê -la. Não sei como usar o meu
Dom. A espada é a única coisa c om a qual eu posso contar .
— É possível que em alguns casos ela possa salvá -lo. Mas porque a Besta
Sangrenta não tem natureza , e porque agora ela é uma parte do Submundo, haverá
momentos em que você pensará que sua espada o protegerá e ela não fará isso.
Pensar que você pode prever a habilidade da sua espada de trabalhar contra a besta
o levará a ter falsa confiança . Como eu disse, a besta não pode ser prevista, então

307
alguma vezes a sua espada não poderá protegê -lo. Você deve estar atento não
apenas contra a falsa confiança em sua espada , mas também com o fato dela atrair
a besta involuntariamente .
— Ela está sempre caçando você , e poderia atacar a qualquer hora , mas
quando você usa o seu Dom isso aumenta amplamente a habilidade , e assim a
probabilidade da besta iniciar um ataque . A magia atiça ela.
Richard percebeu que estava segurando o cabo da espada com tanta
força que podia sentir as letras em alto relevo da palavra “VERDADE”
pressionando sua palma. Ele também podia sentir a fúria da espada tentando fluir
para dentro dele para protegê -lo contra a ameaça. Ele afastou a mão do cabo como
se ele o estivesse queimando . Ele ficou imaginando se aquela magia tinha
despertado a sua própria magia , se ele tinha atraído a Besta Sangrenta sem ao
menos perceber o q ue estava fazendo.
Shota uniu as mãos. — Tem mais uma coisa.
A atenção de Richard retornou para a Bruxa. — Ótimo, o que vem a
seguir?
— Richard, não sou a pessoa que criou essa besta . Não sou responsável
por esse perigo a você . — ela desviou o olhar. — Se quiser me odiar por dizer a
verdade a você , e quiser que eu pare , então diga e eu vou parar .
Richard pediu desculpas . — Não, eu sinto muito. Sei que não é culpa
sua. Acho que estou apenas me sentindo um pouco sobrecarregado. Continue. O
que você estava para dizer?
— Se você usar magia... qualquer magia... a Besta Sangrenta saberá .
Porque ela age de forma aleatória , ela pode muito bem não usar essa conexão de
magia para vir atrás de você imediatamente . Inexplicavelmente ela pode não
responder. Mas na próxima vez, ela poderá atacar. Então não ouse ficar confiante
desse jeito.
— Você já falou isso .
— Sim, mas você ainda não percebeu completamente as implicações
daquilo que estou dizendo . Você deve entender que qualquer uso de magia
fornecerá para a besta o cheiro do seu sangue , por assim dizer.
— Como eu disse, você falou isso .
— Isso significa qualquer uso do seu Dom . — quando ele ficou olhando
fixamente para ela com um olhar vazio , ela bateu impacientemente com um dedo
na testa dele. — Pense.
Quando ele ainda não havia entendido , ela disse. — Isso inclui profecia.
— Profecia? O que você quer dizer?
— Profecia é fornecida por magos que possuem o Dom para a profecia .
Uma pessoa comum que leia profecia verá apenas palavras . Mesmo as Irmãs da
Luz, embora considerassem a si mesmas como guardiãs da profecia , não enxergam
a profecia em seu verdadeiro estado . Você é um Mago Guerreiro . Ser um Mago
Guerreiro meramente significa que o seu Dom carrega uma variedade de
habilidades latentes . Parte disso é que você é cap az de usar profecia... de entendê -
la como ela foi planejada.
— Está vendo? Está vendo como é fácil usar inadvertidamente o seu
Dom?
— Não importa como você usa o seu Dom... se você usa sua espada , ou
cura com o seu Dom , ou invoca um raio... não importa ; isso chamará a besta. Para
a Besta Sangrenta , qualquer uso do seu Dom é a mesma coisa... um meio de
reconhecimento . Ela não fará distinção entre um pequeno uso , ou um uso
espetacular. Para a besta, o Dom é o Dom .

308
Richard estava incrédulo. — Você está querendo dizer que se eu
simplesmente curar alguém , ou sacar minha espada , isso alertará a besta?
— Sim. E provavelmente em pouco tempo ela saberá precisamente onde
você está. Sendo ela elementarmente Subtrativa, ela existe apenas parcialmente
nesse mundo, então, embora a besta não seja atrapalhada por coisas como
distância ou obstáculos , ela também não funciona nesse mundo com facilidade .
Ela não consegue conceber completamente as leis desse mundo , como o tempo.
Ainda assim , ela não fica cansada, não fica p reguiçosa, ou furiosa, ou impaciente.
— Com tudo isso não estou querendo sugerir que porque você usa o seu
Dom a besta por consequência vai agir . Como eu disse, suas ações não podem ser
previstas, então, como tudo mais, o uso da magia não pode ser usado co mo um
fator de previsão. Significa apenas que isso aumenta a facilidade dela em
conseguir encontrá -lo. Não é possível saber se ela fará isso ou não .
— Maravilha. — Richard murmurou quando voltou a andar de um lado
para outro.
— Como ele pode matá-la? — perguntou Cara.
— Ela não está viva. — falou Shota. — Você não pode matar a Besta
Sangrenta da mesma forma que não pode matar uma rocha que está prestes a cair
sobre você, ou matar a chuva antes que ela tenha chance de molhar você .
Cara pareceu tão frustrada quanto Richard estava sentindo-se. — Bem,
tem que haver alguma coisa da qual ela tenha medo .
— O medo é uma função de coisas vivas .
— Talvez, então, algo do qual ela não goste .
Shota franziu a testa. — Não goste?
— Você sabe, fogo, ou água, ou luz. Algo do qual ela não goste e que
evite.
— Hoje ela pode escolher evitar água . Amanhã ela pode emergir de um
atoleiro, agarrar a perna dele , e arrastá-lo para baixo da água para afogá -lo. El a
desloca-se através desse mundo como faria por uma paisagem alienígena que tem
pouco efeito sobre ela.
— Onde alguém poderia aprender como criar uma besta como essa ? —
Richard perguntou.
— Acredito que a base do conhecimento foi descobert a por Jagang em
livros antigos sobre armas que foram originadas duran te a Grande Guerra. Ele é
um estudioso de assuntos relacionados com a guerra ; ele coleta esse tipo de
conhecimento de todas as partes . Porém, eu suspeito que ele pegou o que
encontrou e adicionou especificações que ele queria para derrotar você . Nós
sabemos que então ele usou as Irmãs dotadas para criar a besta .
— Uma vez que elas usaram Magia Subtrativa junto com sua magia
roubada de magos , elas conseguiram fazer uso de outras pessoas dotadas como
partes constituintes da besta , arrancando as almas delas , descartando tudo a não
ser o que era necessário para conjurar , combinar e criar a besta. Essa é uma arm a
além de qualquer coisa que nós já encontramos . Jagang foi aquele que causou a
criação da besta. Ele deve ser detido antes que crie mais alguma coisa .
— Eu não poderia concordar mais ainda quanto a isso. — Richard
murmurou.
— Você não pode deter ele se estiver longe perseguindo fantasmas. —
disse Shota.
Richard parou sua caminhada e olhou para ela . — Shota, você não pode
simplesmente falar tudo isso sem ao menos dizer algo que ajudará .
— Foi você quem veio me procurar fazendo perguntas . Eu não fui

309
procurá-lo. Além disso, eu ajudei você. Falei o que sei. Talvez usando a
informação que você tem agora , consiga viver outro dia.
Richard já tinha ouvido o bastant e. A Besta Sangrenta não tinha
natureza, mas não ter uma natureza , de certo modo, era sua natureza, então ela
possuía uma até onde ele sabia. Poderia ser verdade, como Shota dissera, que não
houvesse uma forma precisa de prever o que ela faria em seguida , mas falta de
compreensão ou de conhecimento não constituía uma falta de natureza.
Entretanto, esse era um ponto que não valia à pena discutir . Ele pensou que isso
poderia ser uma distinção importante mais cedo ou mais tarde , mas nesse momento
não importava muito. Tudo que Shota havia falado confirmava amplamente o que
Nicci já tinha informado. Embora ela tivesse adicionado facetas e detalhes sobre
os quais Nicci não sabia, Shota não fornecera quaisquer soluções .
De fato, pareceu a ele que ela esforçara -se bastante para certificar -se de
que havia pintado uma imagem desesperadora .
Richard quase descansou a mão sobre a sua espada . Ele parou e ao invés
disso passou os dedos pelo cabelo . Ele estava no limite de seu raciocínio . Virou
e contemplou as árvores espalh adas pelo vale , suas folhas cintilando ao sol da
tarde.
— Então, não há o que eu possa fazer para me proteger da Besta
Sangrenta.
— Eu não disse isso .
Richard girou de volta. — O quê? Está dizendo que existe um jeito ?
Sem emoção, Shota estudou os olhos dele. — Acredito que existe um
jeito de manter você vivo .
— Qual jeito?
Ela juntou as mãos, entrelaçando os dedos . Ela olhou para o chão durante
um momento , como se estivesse pensando , e então encarou o olhar dele com firme
resolução .
— Você poderia ficar aqui.
Ele viu Samuel levantar. Richard retornou sua atenção para o olhar de
Shota. — O que você quer dizer com , eu poderia ficar aqui ?
Ela balançou os ombros , como se essa fosse uma oferta trivial . — Fique
aqui e eu o protegerei .
Cara agitou-se, seus braços descruzando. — Você pode fazer isso ?
— Acredito que posso.
— Então venha conosco , — Cara sugeriu. — isso resolveria o problema .
Richard já não tinha gostado da ideia de Cara.
— Não posso. — disse Shota. — Só posso protegê -lo se ele ficar aqui ,
nesse vale, em meu lar.
— Não posso ficar. — Richard falou, tentando fazer soar de forma
casual.
Shota esticou-se e segurou o braço dele gentilmente , não permitindo que
ele colocasse de lado o assunto tão facilmente . — Você pode, Richard. Seria tão
ruim assim, ficar comigo?
— Eu não queria falar dessa maneira ...
— Então fique aqui comigo .
— Por quanto tempo ?
Os dedos dela apertaram tão suavemente , como se ela temesse falar ,
temesse a reação dele, mas ao mesmo tempo estivesse firme em seu curso .
— Para sempre.
Richard engoliu em seco. Ele sentiu como se tivesse caminhado sobre

310
gelo fino sem perceber , e agora descobrisse que era uma longa, longa caminhada
de volta até a segurança . Sabia que se falasse a coisa errada estaria com sérios
problemas. A carne dele formigou quando ele percebeu como o ar do final de tarde
havia se tornado repentinamente perigoso.
Naquele momento, ele não tinha certeza de que não acharia melhor
encarar a besta do que o escrutínio de Shota.
Richard abriu os braços , como se pedisse a compreensão dela . — Shota,
como posso ficar aqui ? Você sabe que tem pessoas contando comigo... pessoas
que precisam de mim . Você mesma disse isso .
— Você não é escravo dos outros , acorrentado a eles por suas
necessidades. É a sua vida, Richard. Fique, e tenha uma vida.
Cara, parecendo mais do que desconfiada , bateu com um dedo no próprio
peito. — E quanto a mim?
Sem olhar para Cara, sem desviar os olhos de Richard, Shota disse. —
Uma mulher nesse lugar é o bastante .
Cara olhou para Richard e Shota enquanto eles olhavam dentro dos olhos
um do outro, mas então ela fez aquilo que Richard havia alertado mais cedo : ficou
cautelosa e nada falou .
— Fique. — Shota sussurrou suavemente .
Richard podia ver uma terrível espécie de vulnerabilidade exposta nos
olhos de Shota, em sua expressão ansiosa... uma expressão aberta que ele jamais
tinha visto nela . Com o canto do olho , ele também conseguiu ver Samuel olhando
furioso para ele .
Richard inclinou a cabeça, indicando o companheiro dela. — E quanto a
ele?
Ela não ficou intimidada com a pergunta... de fato, pareceu estar
esperando por ela.
— Um Seeker nesse lugar é o bastante .
— Shota...
— Você fica, Richard? — ela pressionou, interrompendo-o antes que ele
pudesse negar, antes que ele cruzasse uma linha que ele não sabia que estava ali
até agora.
Era tanto uma oferta quanto um ultimato .
— Mas e quanto a Besta Sangrenta ? Você mesma disse que não pode
saber qual a natureza dela . Como pode saber que estaríamos seguros aqui se eu
ficasse? Muitos homens perto de mim foram mortos quando a besta atacou da
primeira vez.
Shota ergueu o queixo. — Conheço a mim mesma , conheço minhas
habilidades, meus limites . Acredito que posso mantê -lo em segurança , aqui, nesse
vale. Não posso ter completa certeza , mas sinceramente acr edito que isso seja
verdade. Sei que se você sair daqui não terá qualquer proteção . Essa é a sua única
chance.
Ele sabia que a última parte tinha mais do que um significado .
— Fique, Richard... Por favor? Fique aqui comigo?
— Para sempre.
Os olhos dela cintilaram com lágrimas .
— Sim, para sempre. Por favor? Fique? Eu cuidarei de você, para
sempre. Garantirei que você nunca se arrependa , ou que jamais perca o resto do
mundo. Por favor?
Essa não era Shota, a Bruxa. Essa simplesmente era a mulher , Shota,
desesperadamente abrindo -se para ele de uma forma que nunca tinha feito ,

311
oferecendo seu coração desprotegido , arriscando-se. A solidão que ele viu ali era
apavorante. Ele sabia, porque sentiu a mesma angústia de estar tão sozinho que
aquilo machucava.
Richard engoliu em seco e deu o passo sobre o gelo fino .
— Shota, essa provavelmente é a coisa mais gentil que você já disse para
mim. Saber que você me respeita o bastante para pedir uma coisa como essa
significa mais para mim do que você jamais entenderá . Tenho mais respeito por
você do que você imagina... por isso quando precisei de respostas não pensei em
outra pessoa a não ser você .
— Sinceramente agradeço tudo que você está oferecendo ... mas temo
não poder aceitar . Preciso ir.
A expressão que surgiu n o rosto dela fez Richard sentir tanto frio quanto
se ele fosse atirado dentro de água gelada .
Sem qualquer outra palavra , Shota virou e começou a afastar -se.

312
C A P Í T U L O 4 2

Richard segurou o braço de Shota, fazendo ela parar antes que pudesse
partir. Ele não podia permitir que isso terminasse desse jeito... por mais de uma
razão.
— Shota, sinto muito... mas você mesma disse; é a minha vida para viver .
Se você me considera... ao menos um pouco... como um amigo , alguém com quem
você realmente se importa, então você desejaria que eu vivesse a minha vida como
eu penso que devo , não como você pode querer que eu viva .
O peito dela estufou . — Certo. Você fez a sua escolha, Richard. Parta.
Vá e viva o que resta da sua vida .
— Vim até você porque preciso da sua ajuda .
Ela virou totalmente em direção a ele e lançou o olhar mais sombrio que
já tinha visto em alguém . Essa era a inconfundível máscara de uma Bruxa. Ele
quase podia sentir o ar ao redor dela chiando.
— Dei ajuda a você... obtida através de um esforço de minha parte que
eu seriamente duvido que você consiga começar a imaginar . Use essa ajuda como
quiser. Agora, vá embora do meu lar .
Independente do quanto desejasse nesse momento fazer o que ela pediu ,
do quanto não quisesse pressioná -la, ele tinha vindo por uma razão e ela ainda
não havia tratado daquele assunto . Ele não partiria até que ela fizesse isso .
— Preciso da sua ajuda para encontrar Kahlan.
A expressão dela tornou -se mais fria ainda. — Se você for sábio, usará
o conhecimento que d ei a você para ficar vivo tanto tempo quanto puder para
ajudar a derrotar Jagang, ou para perseguir fantasmas... não me importo mais qual
das duas coisas . Apenas vá, antes que você descubra porque magos temem entrar
no meu lar.
— Você disse que a sua habilidade ajuda a ver eventos no fluxo do
tempo. O que a sua habilidade vê a meu respeito no futuro ?
Shota ficou em silêncio durante um momento antes que ela finalmente
desviasse os olhos para longe do olhar firme dele . — Por alguma razão , o rio do
tempo tornou-se obscuro para mim . Isso acontece. — o olhar dela retornou , mais
determinado do que nunca . — Está vendo ? Não posso ajudar mais . Agora, vá.
Ele estava determinado a não permitir que ela se esquivasse do assunto .
— Você sabe que eu vim aqui atrás de informações, de algo que pudesse me ajudar
a descobrir a verdade sobre o que está acontecendo . Isso é importante . É
importante para mais pessoas do que apenas para você ou eu . Não afaste-se de
mim desse jeito Shota, por favor. Preciso da sua ajuda .
Ela arqueou uma sobrancelha . — Desde quando você já seguiu alguma
coisa que eu disse?
— Olhe, admito que no passado nem sempre eu concordei com tudo que
você tinha para dizer, mas eu não estaria aqui se não achasse que você era uma
mulher astuta. Ainda que al gumas das coisas que você me falou no passado fossem
verdadeiras, se eu tivesse feito as coisas estritamente do seu jeito sem usar o meu
próprio julgamento conforme a situação ocorria eu teria falhado e todos nós
estaríamos sob o governo de Darken Rahl ou no abraço impiedoso do Guardião do
Submundo.
— Assim você diz .

313
Richard perdeu o seu tom indulgente quando inclinou em direção a ela .
— Você lembra da vez em que você me procurou no povoado do Povo da Lama ,
não lembra? Da vez em que me implorou para selar o Véu para que o Guardião
não dominasse nós todos ? Você lembra de falar para mim o quanto o Guardião
queria que aqueles com o Dom , o quanto queria que você, uma Bruxa, sofresse de
forma inimaginável por toda a eternidad e?
Ele tocou-a com um dedo, pontuando suas declarações . — Você não
sofreu com todas as coisas apavorantes necessárias para impedir o que estava
acontecendo... eu sofri . Você não teve que lutar contra os terrores do Guardião
para selar o Véu... eu tive . Você não salvou a sua própria pele do Guardião... eu
fiz isso.
Ela estava observando ele com a cabeça parcialmente abaixada. — Eu
lembro.
— Eu tive sucesso . Salvei você daquele destino .
— Você salvou a si mesmo daquele destino . Que isso também tenha me
salvado não era sua preocupação , foi meramente um efeito colateral .
Ele soltou um suspiro , tentando ser paciente . — Shota, eu sei que você
deve saber algo a respeito disso... algo sobre o que aconteceu com Kahlan.
— Eu já disse, não lembro de qualquer mulh er chamada Kahlan.
— Sim, e a razão é que alguma coisa está terrivelmente errada e eu
percebo isso porque você não lembra dela , mas você deve saber algo que ajudará
em minha busca pela verdade... alguma pequena informação que me ajudará a
descobrir a verda de sobre o que realmente está acontecendo .
— E você espera poder simplesmente entrar sem ser convidado no meu
lar, colocar minha vida em risco , fazer a sua pequena dança , e pegar qualquer
parte da minha vida, minha habilidade , que você quer. — Richard ficou olhando
para ela. Ela não havia negado que sabia de alguma coisa que pudesse ajudá -lo.
Ele percebeu que realmente estivera certo a respeito dela .
— Shota, para de fingir e pare de agir como se eu estivesse injustamente
fazendo exigências a você . Nunca menti para você e você sabe disso . Estou
dizendo que isso também é importante para você, quer você perceba isso ou não .
Até onde eu sei, isso poderia ser algo que o G uardião iniciou para pegar todos
nós. Preciso de qualquer informação que você possa me d ar para evitar o sucesso
de seja lá o que esteja acontecendo . Não estou fazendo joguinhos . Eu terei o que
você sabe!
— E você acha que tal exigência o torna merecedor disso ? — os olhos
dela ficaram parcialmente cerrados . — Acha que só porque eu tenho algo , a sua
perceptível necessidade significa que eu deve entregar alguma coisa que eu tenha ?
Que você tem direito a alguma parte de minha vida da qual você sente que precisa ?
Acha que a minha vida não é minha , que eu meramente devo servir a você ? Acha
que minha vida nada significa a não ser estando à sua disposição quando você
decide fazer uso de mim ? Acha que pode entrar aqui e fazer exigências , mas
quando eu ouso pedir alguma coisa , você fica indignado?
— Eu não fiquei indignado. — ele disse, tentando conter o seu tom. —
Eu reconheci a sinceridade da sua oferta . Entendo muito bem a sensação de vazio
em estar sozinho. Mas se você for a mulher que acredito que é , você também não
iria me querer se o meu coração não estivesse comprometido nisso . Você merece
ter alguém que possa amá -la. Sinto muito, Shota, mas não posso mentir e dizer
que posso ser essa pessoa para você ou no final eu estaria apenas ferindo você
ainda mais. Não posso mentir para você ; já estou apaixonado por alguém .
— E mesmo se você já perce besse isso , você realmente iria querer

314
alguém que fosse tão casualmente falso para aceitar uma oferta como essa tão
prontamente? Acho que o que você realmente quer é um igual , um verdadeiro
companheiro em sua vida, alguém com quem compartilhar as maravilhas da vida.
Não acredito que você realmente queira a recompensa vazia de um animal de
estimação. Acho que você já sabe que um animal de estimação não pode trazer a
você uma alegria real .
— Se você se importa comigo , se fez tal oferta porque realmen te se
importa, se você foi sincera, então me ajude.
Não parecia que ela pretendia responder , então ele pressionou . — Shota,
preciso saber qualquer informação que você possa me dar . Isso é importante. Tão
importante quanto era para você quando me procurou p edindo que eu selasse a
ruptura no Véu. Eu não sei o suficiente para solucionar esse problema . Se eu
falhar, temo que todos nós perderemos . Não tenho tempo para joguinhos . Preciso
da informação que você tiver .
— Como ousa fazer uma exigência tão arrogante para mim. Já falei para
você, já dei a você minha resposta . É a minha habilidade, minha vida. Você não
tem qualquer direito sobre ela .
Richard pressionou os dedões e os dedos médios nas têmporas enquanto
suspirava calmamente. Com relutância ele percebeu qu e talvez ela tivesse razão .
Ele virou as costas para ela e caminhou alguns passos enquanto
considerava o que poderia fazer . De uma coisa el e sabia com certeza, não partiri a
sem cada fragmento de ajuda disponível .
— Então você está dizendo que sabe algo que me ajudaria em minha
busca pela verdade.
— Sei muitas coisas sobre muitas áreas diferentes da verdade .
— Mas você sabe alguma coisa que eu preciso para encontrar a verdade
a respeito daquilo que me trouxe aqui para falar com você .
— Sim.
Ele sabia. Com sua costa ainda voltada para ela , ele disse. — Diga o seu
preço.
— Você não estaria disposto a pagar o preço .
Ele considerou o preço que esperava que ela exigisse.
Richard virou para ela. Ela o estava observando daquele jeito que fazia
ele sentir-se transparente. Ele não partiria sem a informação e isso era tudo . Era
a vida de Kahlan.
Qualquer coisa que ele tivesse que fazer para salvar a vida dela ,
incluindo desistir da dele , ele faria.
— Diga seu preço.
— A Espada da Verdade .
O mundo pareceu parar . — O quê?
— Você perguntou o preço por aquilo que posso dizer . O preço é a
Espada da Verdade.
Richard ficou paralisado . — Não pode estar falando sério .
Os cantos dos lábios dela curvaram levemente . — Oh, mas eu estou.
No meio das árvores , Richard viu Samuel levantar, repentinamente
bastante atento.
— O que você quer com a espada ?
— Você perguntou o preço , eu disse. O que eu quero com o pagamento
depois que ele for efetuado não é da sua conta .
Richard sentiu suor escorrer entre as suas omoplatas.
— Shota...

315
Parecia que ele não conseguia mover -se, ou falar. Isso realmente não era
o que ele esperava.
Shota virou as costas e começou a andar até a estrada . — Adeus, Richard.
Foi muito bom conhecer você . Não volte.
— Espere!
Shota parou para olhar para trás por cim a do ombro, ondas do seu cabelo
castanho avermelhado cintilando em um feixe de luz dourada do sol . — Sim ou
não, Richard. Já entreguei o suficiente de mim sem ter algum retorno. Não darei
qualquer cosia mais a você . Se quer isso, você pagará. Não oferecerei a chance
para você outra vez .
Ela observou ele por um instante e então começou a afastar -se
novamente. Richard cerrou os dentes.
— Está certo.
Ela parou. — Então você concorda?
— Sim.
Ela virou completamente para encará -lo, esperando .
Imediatamente Richard levantou o braço para tirar o boldrié por cima da
cabeça. Cara saltou na frente dele e segurou o seu pulso com as duas mãos .
— O que você pensa que está fazendo ? — ela rosnou. Seu couro
vermelho brilhou na luz do sol , como que para combinar com o fogo em seus
olhos.
— Shota sabe alguma coisa sobre toda essa bagunça , — ele disse a ela .
— preciso saber o que ela pode dizer . Não sei o que mais fazer . Não tenho escolha.
Cara soltou uma das mãos do pulso dele para pressionar os dedos na
testa dela enquanto tentava organizar os pensamentos , tentava acalmar a sua
repentina respiração acelerada .
— Lorde Rahl, você não pode fazer isso . Não pode. Não está pensando
claramente. Você está tomado pela paixão do momento , a paixão de querer algo
que você acha que ela tem. Você tem na sua cabeça que precisa obter isso não
importa o que aconteça . Você nem sabe o que ela está oferecendo . Do jeito como
ela está furiosa com você , é mais provável que ela não tenha qualquer coisa de
real valor.
— Preciso saber algo qu e me ajude a encontrar a verdade .
— E não há garantia de que isso ajudará . Lorde Rahl, me escute. Você
não está pensando claramente . Estou dizendo, o preço é alto demais .
— Não existe preço alto demais pela vida de Kahlan... especialmente se
o preço é meramente um objeto.
— Não é a vida dela que você estaria comprando . É apenas a palavra de
uma Bruxa de que ela pode dizer algo de útil a você... uma Bruxa que quer
machucá-lo por rejeitá-la. Você mesmo falou que nada que ela já disse a você
antes acabou sendo do jeito que ela falou. Isso não será diferente. Você perderá
sua espada e será por algo sem valor .
— Cara, eu tenho que fazer isso .
— Lorde Rahl, isso é loucura.
— E se eu estiver louco?
— Do que você está falando ?
— E se todos vocês estiverem certos e não existir Kahlan? E se eu estiver
louco? Até você pensa que eu estou . Preciso saber o que Shota pode me dizer. Se
eu estiver errado a respeito de tudo em que acredito , então que bem uma espada
fará para um homem louco ? Se todos vocês estiverem certos e eu estiver sofrendo
alucinações, então que bem eu posso fazer para qualquer pessoa ? Que bem eu

316
represento para qualquer um se estou louco ? Que bem eu represento ?
Os olhos dela pareceram úmidos. — Você não está louco .
— Não? Então você acredita que realmente existe uma mulher chamada
Kahlan e que estou casado com ela ? — quando ela não respondeu , ele retirou a
outra mão dela do seu pulso . — Achei que não .
Cara virou furiosa para Shota, apontando com seu Agiel. — Você não
pode tirar a espada dele ! Não é justo e você sabe disso ! Está tirando vantagem da
condição dele. Você não pode tirar a espada dele !
— O preço que eu peço é apenas algo insignificante ... a espada nem é
dele. Nunca foi.
Shota gesticulou com um dedo . Samuel, observando das sombras , correu
em direção a eles entre as árvores .
Cara posicionou-se entre Richard e Shota. — Ela foi dada a Lorde Rahl
pelo Primeiro Mago . Lorde Rahl foi nomeado ao posto de Seeker e recebeu a
Espada da Verdade. Ela é dele!
— E onde você supõe que o Primeiro Mago conseguiu a espada em
primeiro lugar? — Shota apontou um dedo com uma longa unha pintada de
vermelho em direção ao chão . — Ele pegou-a aqui. Ele veio aqui, dentro do meu
lar, e roubou-a. Foi onde Zedd conseguiu a espada .
— Richard não a carrega por direito , mas por roubo. Devolvê-la a seu
dono por direito é uma pequena penitência a pagar por aquilo que ele quer saber .
Cara tinha uma expressão perigosa em seus olhos quando ergueu seu
Agiel. Richard segurou o pulso dela gentilmente e abaixou o braço dela antes que
ela iniciasse algo que, ele sabia, poderia rapidamente ficar muito feio . Ele não
tinha certeza dos resultados de tal confronto , mas não ousava arriscar perder o
que Shota poderia dizer a ele... ou arriscar perder Cara.
— Estou fazendo o que devo , — ele falou para Cara com uma voz calma .
— não torne isso mais difícil do que já é .
Richard tinha visto Cara com todos os tipos de humores imagináveis .
Tinha visto ela feliz , triste, desanimada, decidida, determinada, e enfurecida, mas
até aquele momento nunca tinha visto a fúria dela focada com tanta intensidade ,
deliberadamente, tão diretamente para ele .
E então ele teve uma repentina visão dela tomada por uma fúria cruel
uma vez, há muito tempo.
Ele não podia sofrer com a distração de uma lembrança como essa nesse
momento e então removeu -a de sua mente . Isso era sobre Kahlan, e sobre o futuro ,
não sobre o passado .
Richard tirou o boldrié por cima da cabeça e segurou -o junto com a
bainha. Samuel, não muito longe atrás da s saias de sua Senhora , permaneceu
observando em silêncio , seus olhos ávidos fixos no cabo com fios trançados .
Segurando a bainha cintilante dourada e prateada com as duas mãos ,
enrolada pelo antigo boldrié trabalhado em couro , Richard ofereceu a Shota.
Ela fez um movimento para pegá -la. — A espada pertence a Samuel, meu
leal companheiro. — ela sorriu triunfante . — Entregue para ele.
Richard ficou imóvel . Não podia deixar Samuel ter a Espada da Verdade.
Simplesmente não podia .
Então ele imaginou justamente o que Shota iria querer com a espada se
não fosse para entregá -la a Samuel. Ele supôs que estivera tentando não pensar
no que realmente significava entregá -la para Shota.
— Mas a espada fez ele ficar desse jeito . Zedd falou que a magia da
espada fez aquilo com ele , transformou ele naquilo que ele é agora .

317
— E quando ele tiver de volta o que pertence a ele , ele será quem um
dia ele foi, antes que ela fosse roubada dele por seu avô .
Richard conhecia o caráter de Samuel. Até onde Richard sabia, Samuel
era capaz de qualquer coisa , incluindo assassinato. Dificilmente Richard poderia
dar algo tão perigoso como a Espada da Verdade para alguém assim .
Pessoas demais como Samuel carregaram a espada , lutaram por ela,
roubaram ela uns dos outros, venderam ela para a pessoa de maior posição , que
então tornou -se um Seeker cujos serviços estavam à venda para qualquer causa
repulsiva de quem pudesse pagar o preço . Nas sombras ela passou de mão em mão ,
usada para propósitos torpes e violentos . Na época quando Zedd finalmente pegou
a Espada da Verdade de volta e eventualmente entregou -a a Richard, o Seeker
havia se tornado um objeto de desprezo e descaso , visto como nada mais do que
um criminoso, e um criminoso perigoso .
Se ele entregasse a espada a Samuel, tudo seria daquele jeito novamente .
Começaria tudo de novo .
Mas se não entregasse, então Richard não teria chance de deter a ameaça
muito maior provavelmente solta no mundo , ou de algum dia ver Kahlan outra
vez. Embora Kahlan fosse de grande importância para ele , pessoalmente, ele
estava convencido de que o desaparecimento dela predizia uma nefasta ameaça
muito mais sinistra, com potencial para causar danos em uma escala que ele temia
imaginar.
Sua responsabilidade como o Seeker da Verdade era com a verdade, não
com a Espada da Verdade.
Samuel chegou mais perto, seus olhos na espada, seus braços esticando ,
suas palmas para cima, aguardando .
— Minha, entregue. — Samuel grunhiu com impaciência , seus olhos
cheios de ódio bri lhando.
Richard ergueu e cabeça para olhar Shota. Ela cruzou os braços , como
que para indicar que essa era a última chance dele . Essa era a última chance que
Richard tinha de encontrar a verdade .
Se ele soubesse de alguma outra forma para encontrar uma solução, não
importava o quão remota aquela forma pudesse ser , ao invés disso ele teria pego
a espada de volta e arriscado naquela opção . Mas não podia perder essa chance ,
perder a informação que Shota tinha. Não havia outra coisa a fazer .
Com mãos trêmula s, Richard esticou os braços com a espada .
Samuel, não querendo esperar os segundos finais até que ela chegasse
nele, saltou e pegou a espada , finalmente segurando o objeto cobiçado contra o
peito.
No instante em que estava com ela , uma estranha expressão tomou conta
do rosto dele. Ele olhou dentro dos olhos de Richard, com os olhos arregalados
de espanto, sua boca aberta . Richard não conseguia imaginar o que Samuel estava
vendo como resultado de ter em suas mãos a Espada da Verdade. Richard pensou
que talvez ele estivesse apenas assustado em perceber que realmente a possuía
novamente.
De repente ele afastou -se correndo, desaparecendo rapidamente entre as
árvores. A Espada da Verdade estava nas trevas mais uma vez .
Richard sentiu-se nu, e atordoado. Ele ficou olhando na direção em que
Samuel havia seguido. Agora ele desejava ter morto o companheiro de Shota na
primeira vez em que Samuel o atacou. Samuel atacara Richard mais de uma vez .
Richard deixou aquelas chances escaparem .
Ele virou um olhar sever o para Shota. — Se ele ferir alguém , isso pesará

318
em sua cabeça.
— Não fui eu quem deu a ele a espada . Você o fez por sua livre e
espontânea vontade. Eu não torci o seu braço ou usei os meus poderes para forçá -
lo. Não tente transferir a responsabilidade por suas próprias escolhas e ações .
— E eu não sou responsável pelas ações dele . Se ele ferir alguém ,
providenciarei para que dessa vez ele pague por seus crimes .
Shota olhou para o meio das árvores que pontilhavam a extensão
gramada. — Não há qualquer pessoa aqui para ele ferir . Ele tem a espada dele .
Agora ele está feliz .
Richard duvidava seriamente daquilo.
Com fúria controlada, ele voltou sua atenção para o assunto imediato .
Ele não queria ouvir qualquer uma das desculpas dela então foi direto ao ponto .
— Você tem o seu pagamento .
Ela olhou fixamente para ele durante um longo tempo , seu rosto ilegível .
Finalmente, com uma voz suave , ela falou uma frase.
— Cadeia de Fogo.
Ela virou e começou a andar em direção a estrada .
Richard segurou o braço dela e fez ela virar . — O quê?
— Você queria o que eu sei que pode ajudá -lo a encontrar a verdade . Eu
dei isso a você: Cadeia de Fogo.
Richard estava incrédulo. — Cadeia de Fogo? O que isso significa?
Shota balançou os ombros . — Não faço ideia. Só sei que isso é o que
você precisa saber para encontrar a verdade sobre tudo isso .
— O que você quer dizer com , você não faz ideia? Você não pode apenas
dizer alguma coisa da qual nunca ouvi falar e então partir . Isso não é uma troca
justa por aquilo que dei a você.
— Porém, esse foi o acordo que você fez , e eu cumpri com a minha parte
da barganha.
— Você tem que dizer o que isso significa .
— Não sei o que significa , mas sei que isso vale o preço que você pagou .
Richard não conseguia acreditar que havia concordado com uma
negociação na qual ele não recebia algo de valor em retorno . Ele não estava mais
próximo de encontrar Kahlan do que estivera antes de vir falar com Shota. Ele
sentiu vontade de sentar bem ali no chão e desistir .
— O nosso assunto está concluído. Adeus, Richard. Por favor, vá
embora. Logo ficará escuro. Posso garantir a você , que você não gostaria de estar
aqui quando escurece.
Shota começou a descer a estrada em direção a seu palácio ao longe .
Enquanto observava ela ir , Richard censurou a si mesmo por abraçar o fracasso
sem ao menos tentar obter o sucesso . Agora ele sabia algo conectado ao mistério .
Era uma peça do quebra cabeças , uma parte da solução , tão valioso que
previamente era conhecido apenas por uma Bruxa. Isso confirmou a ele que
Kahlan era real. Ele disse a si mesmo que estava um passo mais perto . Tinha que
acreditar nisso .
— Shota. — Richard gritou.
Ela parou e virou-se, esperando para ouvir o que ele poderia dizer ,
parecendo como se ela esperasse uma sermão.
— Obrigado. — ele disse com uma voz sincera . — Não sei que bem
conhecer a frase Cadeia de Fogo fará por mim, mas obrigado . Pelo menos você
forneceu uma razão para que eu siga em frente . Quando vim para cá , eu não tinha
qualquer uma; agora eu tenho . Obrigado.

319
Ela ficou olhan do para ela. Ele não conseguiria imaginar o que ela
poderia estar pensando .
Finalmente, ela deu um lento passo de volta em direção a ele . Ela cruzou
as mãos na frente do corpo , olhando para baixo por um momento antes de olhar
para as árvores, aparentemente avaliando algo.
Finalmente, ela falou. — O que você busca está enterrado há muito
tempo.
— Enterrado há muito tempo ? — ele perguntou cautelosamente .
— Como a palavra Cadeia de Fogo , eu não posso dizer a você o que isso
significa. As coisas surgem para mim relacionadas com assuntos , problemas,
perguntas. Eu sou a portadora da informação , o canal, você poderia dizer . Não
sou a fonte. Não posso dizer a você o significado , mas posso dizer que o que você
busca está enterrado há muito te mpo.
— Cadeia de Fogo, e procurar algo enterrado há muito tempo . — Richard
repetiu enquanto assentia. — Certo. Não esquecerei .
A testa dela franziu , como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer . —
Você deve encontrar o lugar dos ossos no Nada Profundo .
Richard sentiu arrepios subirem em suas pernas . Ele não fazia ideia do
que era o “Nada Profundo” , mas não gostou do som daquilo , ou da menção de
procurar por ossos. Ele recusou -se a considerar as horríveis implicações .
Shota virou outra vez para a estrada e começou a seguir seu caminho em
direção ao palácio dela. Ela não tinha avançado mais do que uma dúzia de passos
quando parou e virou . Seus olhos encontraram com o olhar dele .
— Cuidado com a víbora com quatro cabeças .
Richard inclinou a cabeça, em expect ativa. — Não sei o que isso
significa... a víbora com quatro cabeças .
— Quer você perceba isso ou não nesse momento , eu fiz um negócio
justo com você . Dei a você as respostas de que precisava . Você é o Seeker... ou
pelo menos, você era; terá que procurar o significado a ser encontrado nessas
respostas.
Com aquilo, ela virou pela última vez e caminhou através da luz dourada
descendo a longa estrada .
— Vamos lá. — ele disse para Cara. — Eu não gostaria de descobrir
porque não queremos estar aqui quando escure cer.
Cara lançou um olhar gelado para ele . — Eu imaginaria que isso tem
alguma coisa a ver com um maníaco assassino empunhando uma espada mortal
saindo da escuridão para atacar você .
Melancolicamente Richard supôs que ela poderia estar certa .
Provavelmente Samuel não ficaria contente em simplesmente ter a espada . Ele
provavelmente desejaria eliminar o dono por direito e assim qualquer chance de
que Richard possa reivindicá-la ou pegue ela de volta de algum jeito .
Independente daquilo que Shota dissera , o verdadeiro ladrão foi Samuel.
A Espada da Verdade era responsabilidade do Primeiro Mago . Era ele quem
nomeava Seekers e entregava a eles a espada . Ela não pertencia a qualquer um que
pudesse possuí -la através de quaisquer meios , ela pertencia ao verdadei ro Seeker
nomeado pelo mago, e esse era Richard.
Com apavorante tristeza , ele percebeu que havia traído a confiança que
seu avô depositara nele quando deu a Richard a espada.
Mas que valor a espada teria para ele se ficar com ela significava que
Kahlan perderia sua vida?
Não existia valor maior para ele do que a vida .

320
C A P Í T U L O 4 3

Richard estava tão perdido em pensamentos que não estava totalmente


consciente da árdua subida pelo rosto íngreme do penhasco na saída de Agaden
Reach. Na luz dourada do vale abaixo deles as longas sombras de árvores
esticavam-se pelos campos verdes , e ainda assim a tranquila beleza do lugar
enquanto o sol mergulhava atrás das montanhas estava perdida para ele ; ele queria
estar longe do vale e fora do pân tano antes que a escuridão tomasse conta . Ele
tentou concentrar seus esforços naquela tarefa , naquela missão, de colocar um pé
na frente do outro, de mover-se, avançando.
Na hora em que eles alcançaram o topo do penhasco e o vasto pântano
guardando a aprox imação do lar de Shota, estava no início da noite no profundo
nicho das enormes montanhas que cercavam o lugar. Porque as paredes de rocha
cortavam os raios de sol cedo , isso deixava o céu acima com uma cor azul escura ,
mas aquela luz era incapaz de penetr ar efetivamente a cobertura da floresta , de
modo que no final do dia o vasto atoleiro verde parecia mergulhado em uma
perpétua meia-luz. As sombras profundas eram muito diferentes daquelas no vale
de Shota. As sombras no pântano ocultavam ameaças palpáveis mas em maior
parte comuns; as sombras em volta de Shota escondiam perigos que não eram tão
facilmente apreciáveis, mas que Richard suspeitava, eram muito mais perniciosos .
Os sons do úmido pântano ao redor dele , os chilros , os assovios, os
uivos, os estalos, os gritos distantes, malmente eram registrados na consciência
de Richard. Ele estava fundo em seu próprio mundo de desespero e propósito
entrelaçados em uma luta titânica .
Embora Shota tivesse falado muitas coisas sobre a Besta Sangrenta que
o estava caçando, Nicci já havia falado que ele estava sendo caçado por uma besta
conjurada por ordem de Jagang. A visita à Shota não tinha valido à pena pelas
minúcias que aprendeu sobre a besta . Foram as pequenas coisas preciosas que
Shota falara no final que realmente importaram para ele . Foi por aquelas coisas
que ele tinha viajado até esse lugar . Foi por aquelas coisas que ele pagara um
preço tão alto que somente agora estava começando a captar totalmente a sua
significância. Seus dedos coçavam para tocar o cabo da sua espada para sentir
conforto, mas aquela arma familiar e confiável não estava mais ali .
Ele tentou não pensar naquilo , e mesmo assim só conseguia pensar em
poucas outras coisas . Sentiu alívio por ter obtido aquilo que ele com certeza sentia
que seriam informações cruciais, mas ao mesmo tempo ele sentia a esmagadora
sensação de fracasso .
Ele prestou atenção apenas suficiente por onde estava caminhando para
evitar pisar em cima de uma cobra listrada de amarelo e preto que avistou enrolada
sobre uma raiz, ou deixar as aranhas peludas grudadas do lado de baixo de folhas
silenciosamente descerem por linhas de seda para pousarem sobre ele . Ele desviou
de um arbusto quando algo ali dentro sibilou para ele .
Richard seguiu a trilha que escurecia da forma m ais rápida e s egura que
podia enquanto em sua mente ele repassava cada palavra de Shota, concentra ndo-
se no tesouro pelo qual ele havia pago um preço terrível . Cara seguia logo atrás
dele, balançando e golpeando a nuvem de insetos pairando ao redor dos rostos
deles. Ocasionalmente um morcego voava saindo das sombras escuras para agarrar
alguns daqueles insetos .

321
Conforme ele seguia seu caminho através da vegetação , Richard
empurrava trepadeiras e galhos e pisava cuidadosamente ao redor de amontoados
de raízes... alguns dos quais contorciam -se como um ninho de cobras quando eles
chegavam perto demais . Em sua primeira visita Samuel havia mostrado a ele como
aquelas raízes podiam agarrar um tornozelo se você chegasse muito perto . Richard
estava tão completamente concentrado em tentar descobrir o que "Cadeia de Fogo "
poderia significar , ou o que poderia ser , que ele quase pisou dentro de uma
extensão de água negra que era difícil de enxergar na luz fraca . A mão de Cara
segurando seu braço o fez parar bem em tem po. Ele olhou ao redor e avistou a
tora sobre a qual eles tinham atravessado e tomou aquela rota .
Ele forçou o cérebro tentando pensar se já tinha ouvido “Cadeia de
Fogo”, mas suas esperanças ficaram cada vez mais fracas como a luz que
desaparecia. Era uma coisa tão estranha , parecia, que ele teria lembrado se já
tivesse ouvido. Ele gostaria que Shota soubesse a origem ou o significado daquilo ,
mas ele acreditava que ela estava falando a verdade sobre esses tipos de respostas
surgirem para ela sem explicação ou pista.
Por outro lado, ele temia saber muito muito bem o que Shota queria dizer
quando falou, “o que você busca está enterrado há muito tempo ”.
Aquele aviso fez o peito dele doer . Estava com medo de que isso pudesse
muito bem significar que Kahlan já estava morta e enterrada há muito tempo .
Ele sentira-se perdido desde aquela manhã em que ele acordou para
descobrir que ela estava desaparecida . Sem Kahlan, tudo mais no mundo parecia
não ter signifi cado.
Ele não podia permitir a si mesmo imaginar a morte dela como sendo
verdade. Ao invés disso, ele pensou nos lindos olhos verdes inteligentes dela , no
sorriso especial, em sua maneira singular de ser bastante real e bastante viva .
Porém, as palavras de Shota continuavam retornando . Ele tinha que
descobrir que significado elas podiam guardar se queira encontrar Kahlan.
A última parte, que ele deveria ter “cuidado com a víbora com quatro
cabeças”, não fizera sentido para ele no início , mas quanto mais ele pensava
naquilo, mais ele começava a sentir que devia entender , como se fosse algo que
deveria fazer sentido para ele ou algo que ele deveria ser capaz de descobrir se
apenas pensasse naquilo com bastante esforço . A implicação que parecia óbvia
era que essa víbora com quatro cabeças... seja lá o que fosse isso... de alguma
forma era responsável pelo desaparecimento de Kahlan.
Ele imaginou se apenas suspeitasse disso porque aquilo soava de forma
sinistra. Ele não queria começar a descer por estradas erradas em impulsos sem
fundamento. Isso somente desperdiçaria um tempo valioso . Ele temia já ter usado
tempo demais .
— Para onde estamos indo ? — perguntou Cara, arrancando ele de seus
pensamentos .
Ele percebeu que essa foi a primeira coisa que ela disse desde qu e
deixaram Shota. — Pegar os cavalos.
— Você pretende tentar atravessar a passagem esta noite ?
Richard assentiu. — Sim, se nós pudermos. Se a tempestade tiver
passado, a lua fornecerá luz suficiente .
Na primeira vez em que ele veio falar com Shota, a Bruxa tinha levado
Kahlan para seu vale. Richard seguiu os rastros delas através da passagem durante
a noite. Não era fácil , mas ele sabia que podia ser feito . Ele sabia o quanto estava
cansado do dia árduo cruzando a passagem , e sabia que Cara devia estar tão
cansada quanto ele , mas não pretendia parar enquanto ainda conseguisse colocar

322
um pé na frente do outro .
Era óbvio pela expressão de Cara que ela não gostou da ideia de fazer
uma jornada como essa durante a noite , mas, ao invés de discutir, ela perguntou
outra coisa.
— E quando pegarmos os cavalos ? Para onde então?
— Tentar conseguir respostas para aquilo que descobri até agora.
Por toda parte ao redor , a neblina havia deslizado lentamente entre as
árvores retorcidas , trepadeiras , e extensões de água parad a, como se estivesse
aproximando-se para escutar a conversa deles . Não havia vento para mover os fios
de musgo, então eles pendiam flácidos de galhos tortos . Sombras moviam-se nos
lugares escuros sob trepadeiras e arbustos . Coisas invisíveis distantes
mergulhavam nos trechos negros de água estagnada .
Richard realmente não queria discutir a cavalgada longa e difícil adiante
deles, então antes que Cara pudesse falar alguma coisa , ele perguntou. — Você já
ouviu falar em Cadeia de Fogo?
Cara soltou um suspi ro. — Não.
— Alguma suposição sobre o que isso poderia significar ?
Ela balançou a cabeça.
— E quanto ao lugar dos ossos no Nada Profundo ? Isso significa alguma
coisa para você?
Cara não respondeu durante um momento . — Parece como se o “Nada
Profundo” pudesse ser vagamente familiar , como se eu já pudesse ter ouvido isso
uma vez.
Richard considerou que aquilo soava encorajador . — Consegue lembrar
onde, ou qualquer coisa a respeito ?
— Não, eu temo que não . — ela esticou o braço e casualmente arrancou
uma folha em forma de coração de uma trepadeira enquanto caminhava ao lado
dele. — A única coisa que consigo pensar é que talvez tenha ouvido isso quando
era criança. Estive tentando e tentando , mas simplesmente não consigo lembrar
se isso é mesmo verdade... que posso ter ouvido... ou se acontece que “profundo”
e “nada” são palavras bastante comuns e por essa razão parece que eu devo
conhecê-las.
Richard soltou um suspiro desapontado . Isso era o que ele imaginava
também... se elas eram simplesmente palavras co muns e que isso era o que estava
fazendo o Nada Profundo soar como algo que talvez ele devesse conhecer .
— E quanto a víbora com quatro cabeças ? — ele perguntou.
Cara balançou a cabeça novamente quando ela ficou para trás um passo
para ficar atrás dele e desviar de um galho de árvore pendurado sobre a trilha .
Uma pequena cobra verde cor de folha estava enrolada no galho , observando eles
passarem perto , lambendo o ar para sentir o cheiro deles.
— Isso não faz sentido para mim . — ela disse enquanto enrolava a folha
pelo talo. — Nunca ouvi falar de tal besta... ou o que quer que isso seja . Talvez
a víbora com quatro cabeças more em um lugar chamado Nada Profundo .
O próprio Richard havia considerado essa possibilidade , mas por causa
da forma como Shota as mencionara separadamente ele duvidava disso . Elas
pareciam ter surgido para ela individualmente , peças diferentes de informação .
Ele supôs que uma vez que elas estavam conectadas com a pergunta dele a respeito
de algo que pudesse ajudá -lo a descobrir a verdade , elas poderiam estar associadas
como Cara havia sugerido.
No lugar na trilha onde as árvores abriam para a massa escura das
montanhas elevando -se diante deles, Cara fez uma pausa.

323
— Talvez Nicci nos alcance em breve. Ela sabe muita coisa sobre magia
e todo tipo de coisas . Ela pode saber o que Cadeia de Fogo significa, ou até mesmo
o restante sobre isso . Nicci ficaria feliz em fazer qualquer coisa para ajudar você .
Richard engatou um dedão no cinto . — Você quer falar o que você e
Nicci andam aprontando?
Parecia bastante óbvio para ele , mas ele queria ouvir ela admitir isso .
Ele observou os olhos dela enquanto esperava .
— Nicci não teve nada a ver com isso . Foi ideia minha.
— O quê, exatamente, foi sua ideia?
Cara desviou do olhar direto dele e ficou olhando p ara a passagem
subindo. O céu estava em maior parte claro , com estrelas começando a aparecer .
Nuvens passavam deslizando no vento silencioso no alto. Não levaria muito tempo
até que a lua surgisse.
— Quando você me curou , eu senti um pouco da terrível soli dão
assombrando você. Acho que você pode ter criado em seu pensamento essa
mulher, Kahlan, para preencher esse vazio . Não quero que você tenha de sofrer a
terrível angústia que senti em você . Alguém que não existe jamais pode preencher
um vazio como esse .
Quando ela não falou qualquer outra coisa mais , ele falou.
— E então você quer que o vazio seja preenchido por Nicci?
Ela olhou de volta para os olhos dele , a frustração tomando conta de
suas feições. — Lorde Rahl, eu só queria ajudá -lo. Acho que você precisa de
alguém para ficar com você... para compartilhar a sua vida... como Shota queria
alguém. Como ela queria você. Mas Shota é a pessoa errada... nos dois casos.
Acho que Nicci seria boa para você, só isso.
— Então pensou que poderia entregar o meu coraç ão para alguém em
meu lugar?
— Bem... soa errado do jeito que você coloca .
— Isso é errado.
— Não, não é. — ela insistiu enquanto suas mãos ficavam cerradas
próximas do corpo . — Você precisa de alguém . Sei que agora mesmo você está
sentindo-se perdido. Acho que você está ficando pior . Queridos espíritos , você
entregou a sua espada.
— Você precisa de alguém , sei que precisa. Você parece de alguma
forma incompleto. Em todo o tempo que conheço você , você nunca pareceu desse
jeito. Durante toda minha vida eu nunca pensei no Lorde Rahl estando com apenas
uma mulher, muito menos casado, mas com você, simplesmente parece que você
precisa de uma alma gêmea .
— Nicci é mais adequada do que qualquer outra pessoa . Ela é
inteligente... Nicci é bastante inteligente que vocês dois conseguem realmente
conversar. Vocês compartilham coisas sobre magia . Vi a forma como vocês dois
conversam , a forma como os dois sorriem . Vocês parecem combinar juntos . Os
dois são inteligentes... e os dois são dotados . E, ela é linda. Você devia ter alguém
linda e Nicci é assim.
— E que parte Nicci executa no seu pequeno plano ?
— Nicci tem objeções muito parecidas com as suas... o que de certo
modo apenas prova que eu tenho razão sobre vocês dois serem uma boa
combinação .
— Então ela não gostou de você planejar a vida dela também ?
Cara balançou um ombro . — Não, não foi isso que eu quis dizer . Ela
estava com as mesmas objeções por você... ela falou em seu nome , não dela. Ela

324
importava-se somente com o que você queria . Ela parecia saber qu e você não veria
com bons olhos tal ideia .
— Bem, você está certa em uma coisa, ela é inteligente .
— Eu só estava tentando fazer ela pensar a respeito . Não estava dizendo
a ela para atirar-se em cima de você. Pensei que talvez você dois pudessem
completar um ao outro, preencher o vazio que vocês dois sentem . Pensei que
talvez se eu a encorajasse a considerar isso , que a natureza poderia tomar o seu
curso, só isso.
Richard queria estrangular ela, mas ele manteve a voz calma porque as
ações de Cara, embora fo ssem erradas , eram tão tocantemente humanas , tão
carinhosas, que ao mesmo tempo ele qu eria abraçá-la. Quem poderia ter pensado
que algum dia uma Mord-Sith poderia preocupar-se com amor e companheirismo .
Ele imaginou que ele tinha pensado . Mas ainda assim...
— Cara, o que você está tentando fazer é a mesma coisa que Shota estava
tentando... decidir por mim o que eu deveria sentir , como eu deveria viver.
— Não, não é a mesma coisa .
Richard ficou sério. — E como não é a mesma coisa ?
Cara pressionou os lábios. Ele aguardou . Ela finalmente respondeu em
um sussurro.
— Ela realmente não ama você . Eu amo. Mas não desse jeito. — ela foi
rápida em completar .
Richard não estava com humor para discutir , ou para gritar . Ele sabia
que a intenção de Cara era boa, mesmo que equivocada. Mais do que tudo, ele mal
conseguia acreditar naquilo que acabara de ouvir ela admitir em voz alta . Se não
fosse tudo que estava acontecendo , ele teria ficado alegre .
— Cara, estou casado com a mulher que amo .
Ela balançou a cabeça com tristez a. — Lorde Rahl, sinto muito, mas
Kahlan simplesmente não existe .
— Se ela não existe , então porque Shota foi capaz de fornecer pistas que
me ajudarão a provar a verdade ?
Cara desviou o olhar mais uma vez . — Porque a verdade é que não existe
Kahlan. As coisas que ela falou só ajudarão você a descobrir essa triste verdade .
Você já pensou nisso ?
— Apenas em meus pesadelos. — ele disse quando começou a andar para
a passagem na montanha .

325
C A P Í T U L O 4 4

Jillian virou e olhou para o céu quando ouviu o corvo grasnar . O grande
pássaro abria bem as asas enquanto voava nas correntes invisíveis no céu azul
perfeitamente claro. Enquanto ela observava, ele grasnou novamente , um som
rouco que ecoou através do profundo silêncio de abismos e espalhou-se pela seca
paisagem cozinhando sob o sol da tarde .
Jillian agarrou o pequeno lagarto morto que jazia sobre o muro em ruínas
ao lado dela e então subiu a rua empoeirada . O corvo girou majestosamente acima
enquanto observava ela correr na elevação . Ela sabia que ele provavelmente
avistara ela há muito tempo , muito antes que ela soubesse que ele estivera ali .
Segurando o lagarto por sua cauda enquanto ela erguia -se na ponta dos
pés, Jillian levantou o braço o mais alto que podia em direção ao céu e sacudiu a
oferenda. Ela riu quando viu que o pássaro negro quase pareceu ter trombado no
ar quando avistou o lagarto pendurado nos dedos dela . O pássaro girou em um
mergulho acentuado com as asas parcialmente fechadas para que ele ganhasse
mais velocidade enquanto descia.
Jillian saltou e sentou sobre o muro de pedra dilapidada ao lado de
algumas das pedras de pavimentação expostas que um dia foram parte de uma
estrada. Com o passar das eras , grande parte daquela estrada havia sido enterrada
sob camadas de terra. Sobre essas camadas de solo formadas po r vento e água,
grama alta e árvores retorcidas agora cresciam . O avô dela dissera que isso foi
parte de um lugar especial e muito antigo .
Jillian sentiu dificuldade em imaginar o quanto ele poderia ser antigo .
Quando era mais jovem e tinha perguntado ao avô se isso era mais antigo do que
ele, ele riu e disse que embora admitisse ser velho , nem de perto ele era tão velho
assim e que o solo não cobria tão rapidamente os feitos do homem apenas no
tempo de uma vida. Ele disse que um trabalho tão lento como esse exigia não
apenas tempo, mas também negligência. Houve tempo em abundância , e quase
sem restar pessoas, a negligência fizera seu trabalho .
O avô disse a ela como essa antiga cidade vazia um dia fora habitada
pelos ancestrais deles . Jillian adorava ouvir as histórias dele sobre as pessoas
misteriosas que um dia viveram nesse lugar e construíram a incrível cidade no
promontório além dos picos de pedra.
O avô dela era um contador de histórias , e, já que ela esta va sempre tão
ansiosa em ouvir as histórias dele sobre as antigas tradições , ela falou que se ela
estivesse disposta a se esforçar ele faria dela a contadora de histórias que um dia
assumira seu lugar. Jillian estava animada com o prospecto de aprender a s er uma
contadora de histórias e dominar todas as coisas que havia para aprender , alguém
respeitada por seu conhecimento dos tempos antigos e sua herança, mas ao mesmo
tempo ela não gostava das implicações que tal avanço eventual entre o povo dela
fosse marcar a morte de seu avô .
Lokey pousou perto dela e fechou suas asas negras brilhantes , trazendo-
a de volta de sua análise de assuntos importantes , das pessoas antigas e das
cidades que el as construíram, de guerras e grandes feitos . O corvo curioso chegou
mais perto.
Jillian abaixou o lagarto morto recentemente e , segurando a ponta da
cauda dele, sacudiu-o de forma tentadora .

326
Lokey inclinou a cabeça , observando. Ao invés de pegar a oferenda , ele
piscou os olhos negros . Ele saltou para mais perto dela , com o pé direito na frente
movendo-se de lado da maneira cautelosa que sempre usava quando aproximava-
se de carniça. Ao invés de bater as asas e saltar para trás várias vezes na prática
de guarda que ele aplicava quando chegava perto daquilo que esperava ser u ma
boa refeição, mas que poderia transformar -se potencialmente em uma ameaça , ele
caminhou audaciosamente em frente e agarrou a manga de pele em seu grosso
bico.
— Lokey, o que você está fazendo ?
Lokey puxou insistentemente . O pássaro curioso geralmente puxava as
contas na ponta da manga ou as tiras de couro na borda, mas agora ele puxava a
manga propriamente dita .
— O que foi? — ela perguntou. — O que você quer?
Ele soltou a manga dela e inclinou a cabeça enquanto olhava para ela
com um olho brilhante. Corvos eram criaturas inteligentes , mas ela nunca tinha
certeza do quanto. Às vezes ela achava que Lokey era mais esperto do que algumas
pessoas que ela conhecia .
As penas na garganta e ouvidos de Lokey ergueram-se agressivament e.
De repente ele soltou um grasnado agudo que soou de forma muito
parecida com grande frustração por não ser capaz de falar para que pudesse dizer
algo a ela. — Kraaah. Ele levantou as penas novamente e grasnou outra vez . —
Kraaah.
Jillian acariciou a cabeça dele e então as costas , coçando gentilmente
mas com firmeza embaixo de sua plumagem negra levantada... uma coisa que ele
adorava... antes de alisar suas penas eriçadas . Ao invés de bater o bico contente
e piscar preguiçosamente , como ele normalmente fazia quando ela o coçava assim,
ele pulou para trás um passo para fora do alcance dela e soltou três grasnados
agudos que fizeram os ouvidos dela doerem . — Kraaah. Kraaah. Kraaah .
Ela cobriu os ouvidos . — O que deu em você hoje?
Lokey saltou para cima e para baixo, batendo suas asas. — Kraaah. Ele
correu pela rua de pavimento antigo , batendo as asas e grasnando . Do outro lado
ele esvoaçou no ar , pousou, e então saiu do chão novamente . — Kraaah.
Jillian levantou. — Quer que eu vá com você?
Lokey grasnou alto como que para confirmar que depois de um longo
tempo ela pensou corretamente . Jillian riu. Ela estava certa de que o pássaro
maluco conseguia entender cada palavra que ela dizia e, além disso, às vezes ler
os pensamentos dela . Ela adorava ter ele por perto. Algumas vezes quando ela
falava com ele, ele ficava quieto ali perto e escutava .
Seu avô disse a ela para não deixar Lokey dormir no quarto dela ou ele
conheceria os seus sonhos . Em maior parte Jillian tinha sonhos maravilhosos ,
então não importava -se se Lokey os conhecesse. Ela suspeitava que talvez o seu
amigo realmente conhecesse os seus sonhos e que era por isso que ela
frequentemente acordava vendo ele empoleirado no parapeito de uma janela
próxima, dormindo satisfeito .
Mas ela sempre era muito cuidadosa para não enviar a ele algum
pesadelo.
— Você achou um belo antílope morto ? Ou talvez um coelho ? É por isso
que não está com fome? — ela balançou o dedo para ele . — Lokey, — ela
censurou. — você roubou do esconderijo de outro corvo?
Lokey estava sempre faminto . Ela geralmente o chamava de “seu corvo
esfomeado”. Ele compartilharia do jantar dela se ela deixasse e o roubaria se ela

327
não deixasse. Mesmo se ele estivesse cheio demais para comer o lagarto , ela
estava surpresa que ele ao menos não o levasse embora e o escondesse para mais
tarde. Corvos escondiam tudo que não conseguiam comer... e eles conseguiam
comer muito. Ela não conseguia entender como o pássaro não ficava gordo .
Jillian levantou e limpou a terra do vestido dela e seus joelhos. Lokey
já estava no ar, circulando, grasnando, pedindo urgência a ela.
— Está certo, está certo. — ela reclamou quando esticou os braços para
equilibrar-se enquanto caminhava pelo topo do grosso muro por um espaço cheio
de cascalhos.
No cume da pequena colina ela ficou com uma das mãos na cinta de pano
enrolada em volta do seu quadril enquanto com a outra mão ela protegia os olhos
ao espiar o céu claro para observar seu amigo efetuando mergulhos e giros para
atrair a atenção dela . Lokey era um exibido sem vergonha . Se ele não conseguisse
fazer manobras aéreas para impressionar outros corvos , ele as faria alegremente
para ela.
— Sim, — ela gritou para o céu. — você é um pássaro esperto , Lokey.
Lokey grasnou uma vez e então bateu as asas rapidamente. O olhar de
Jillian o seguiu, sua mão protegendo os olhos da luz do sol , enquanto ele voava
para o sul acima da vasta extensão diante dela . Faixas aleatórias de grama verde
de verão, subindo mais perto da base do promontório e das montanhas atrás dela,
cortavam a paisagem árida . Para os lados , nebulosos dedos violeta de montanhas
distantes, cada um mais longe era uma sombra mais suave e clara , estendiam -se
através da planície desolada que parecia seguir eternamente para o sul. Porém, ela
sabia que isso não acontecia. O avô disse que ao sul estava uma grande barreira e
além um longo lugar proibido chamado Mundo Antigo .
Ao longe, entre os caminhos verdes na planície que jaziam próximos
contra os pés das colinas , ela podia ver o lugar onde o povo de la vivia nos verões .
Cercas de madeira preenchiam as aberturas quebradas de antigos muros de pedra
que guardavam suas cabras , porcos, e galinhas. Uma parte do gado deles pastava
nos gramados de verão . Havia água nesse lugar , e algumas árvores, suas folhas
cintilando na brilhante luz do sol . Jardins estendiam -se ao lado das simples casas
de tijolos que resistiram ao rigorosos ventos do inverno e ao sol escaldante de
verão por incontáveis séculos .
E então, quando ela olhou para cima novamente, para Lokey, Jillian viu
no horizonte em direção ao oeste uma leve nuvem de poeira erguendo -se.
Estava tão distante que parecia pequenina . A mancha de poeira contra o
azul do céu onde ele encontrava com o horizonte parecia pairar no ar , imóvel, mas
ela sabia que isso era apenas uma ilusão da distância que fazia ela parecer pequena
e parada. Mesmo desta distância , ela podia dizer que aquilo espalhava -se por uma
grande extensão. Ela ainda estava tão longe que era difícil ver o que a gerava. Se
não fosse Lokey, Jillian provavelmente não a teria avistado durante algum tempo .
Muito embora ela não ainda conseguisse enxergar o que estava causando
a poeira, ela sabia que nunca havia contemplado uma visão como aquela .
O primeiro pensamento dela foi que devia ser um redemoinho de vento
ou uma tempestade de areia . Mas enquanto ela observava percebeu que aquilo era
largo demais para ser um redemoinho de vento e uma tempestade de areia não
subia até o céu do jeito que isso subia . Uma tempestade de areia, mesmo que
subisse alto, ainda tinha na base o que pareciam como enormes nuvens marrons
ondulantes correndo pelo solo que na verdade eram onde as rajadas de vento
estavam soprando a areia.
De forma alguma isso era assim . Isso era poeira levantando de algo que

328
estava vindo... de pessoas vindo em cavalos.
Estranhos .
Mais estranhos do que ela conseguia imaginar . Estranhos em um número
tão grande que era como algo das histórias do seu avô .
Os joelhos de Jillian começaram a tremer . O medo espalhou -se através
dela, indo alojar-se em sua garganta onde os gritos nasciam .
Eram eles. Os estranhos que o seu avô sempre disse que viriam . Eles
estavam vindo agora.
As pessoas nunca duvidaram do avô dela... pelo menos, n ão na cara
dele... mas ela não achava que elas realmente preocupavam -se com as coisas das
histórias dele. Afinal de contas, suas vidas eram pacíficas ; ninguém jamais veio
perturbar a eles ou sua terra natal .
Jillian, porém, sempre acreditou no avô dela e sempre soubera que
eventualmente os estranhos viriam , mas, como outras pessoas , ela sempre pensou
que isso aconteceria em algum dia no futuro distante, talvez quando ela fosse
idosa, ou, talvez até, se tivessem sorte, gerações no futuro.
Apenas nos raros pesadelos dela que os estranhos chegavam no presente ,
ao invés de no futuro distante .
Vendo aquelas colunas de poeira subindo , ela soube sem dúvida que
eram eles e eles estavam vindo agora .
Em toda sua vida ela nunca tinha visto estranhos . Ninguém além do povo
de Jillian jamais caminhou pelas áridas terras inóspitas do lugar vasto e proibido
conhecido como o Nada Profundo .
Ela ficou tremendo de terror , olhando fixamente para a mancha de poeira
no horizonte. Ela estava prestes a ver um grande número de forasteiros ... aqueles
das histórias.
Mas era cedo demais . Ela ainda não tivera uma vida , não teve chance de
viver, amar e ter filhos . Lágrimas brotaram em seus olhos , transmitindo a tudo
uma aparência embaçada. Ela olhou por cima do ombro para as ruínas . Foi isso
que eles haviam encarado , como nas histórias do avô ?
Lágrimas começaram a descer através da poeira nas bochechas dela . Ela
sabia, ela sabia sem dúvida , que sua vida estava prestes a mudar , e que os seus
sonhos não seriam mais felizes .
Jillian desceu do topo dos destroços sobre os quais ela estivera e correu
descendo a colina, passando pelo muro, pelas vazias construções quadradas de
tijolos, pelos buracos onde um dia construções foram erguidas . Seus pés
acelerados erguiam sua própria nuvem de poeira enquanto ela corria pelas ruínas
daquilo que um dia foram postos avançados de uma antiga cidade. Ela correu
descendo estradas que não possuíam mais vida ao redor delas , não estavam mais
alinhadas com construções .
Diversas vezes ela tentou imaginar como teria sido quando pessoas
moravam nas casas, quando pessoas caminhavam pelas ruas , cozinhavam em seus
lares, penduravam roupas para secar do lado de fora de suas casas de tijolos ,
negociavam mercadorias nas praças . Nunca mais . Todos estavam mortos há muito
tempo. A cidade toda estava morta fazia muito tempo , exceto por algumas pessoas
do povo de Jillian que às vezes ficavam nas mais remotas das antigas construções .
Quando chegou mais perto daquelas antigas construções dos postos
avançados que eles usavam quando viviam nessa área durante o verão , Jillian viu
pessoas correndo de um lado par a outro, gritando umas para as outras . Viu que
elas estavam juntando suas coisas e coletando os animais . Parecia que elas
estavam de mudança, talvez de volta para dentro do abrigo das montanhas , ou para

329
o deserto. Tinha visto seu povo fazer uma coisa como essa poucas vezes . A ameaça
sempre acabou sendo imaginária . Jillian sabia que dessa vez ela era real .
Entretanto, ela não tinha certeza se dessa vez eles teriam tempo
suficiente para fugirem dos estranhos que se aproximavam e esconderem -se. Mas
o povo dela era forte e veloz . Estavam acostumados a mudar na terra vazia . O avô
disse que ninguém mais além do povo dela conseguiria sobreviver tão bem nesse
lugar proibido . Eles conheciam as passagens nas montanhas e lugares com água ,
assim como as passagens escondidas através do que pareciam cânions impossíveis
de atravessar . Eles podiam desaparecer na terra inóspita em pouco tempo e
sobreviver.
Pelo menos, a maioria deles podia . Alguns, como o avô dela , não eram
mais velozes.
Com esse medo renovado, os pés dela correram ainda mais rápido ,
batendo com ritmo firme sobre o chão poeirento . Quando chegou amis perto ,
Jillian viu homens arrumando seus mantimentos para viagem nas mulas . Mulheres
reuniam utensílios de cozinha , enchiam recipientes com água, e carregavam
roupas e tendas para fora de seus lares de verão e armazéns. Para Jillian parecia
que eles já estavam cientes dos estranhos que aproximavam -se fazia algum tempo
uma vez que eles já estavam bem avançados em seus preparativos de partida.
— Mãe! — Jillian gritou quando viu sua mãe colocando sua panela sobre
uma mula já abarrotada com os seus pertences . — Mãe!
Sua mãe exibiu um rápido sorriso e esticou um braço confortador . Ainda
que ela já estivesse passando da idade para essas coisa s, Jillian mergulhou naquele
braço como um pintinho entocando -se sob a asa de sua mãe .
— Jillian, pegue suas coisas . — a mãe dela empurrou-a com uma das
mãos. — Depressa.
Jillian sabia muito bem que não devia fazer perguntas em um momento
como esse. Ela enxugou as lágrimas e correu até a antiga pequena construção
quadrada que usavam como lar quando passavam o verão nas planícies perto do
promontório. Às vezes os homens tinham que recolocar os telhados quando o pior
tempo os arrancava, mas, a não ser por isso, o resto das baixas construções eram
as mesmas construídas por seus ancestrais que um dia construíram e viveram na
cidade abandonada de Caska, no alto do promontório .
O avô, parecendo abatido e tão pálido quanto ela imaginava que um
fantasma devia parecer, aguardava nas sombras do lado de dentro , perto da porta .
Ele não estava com pressa . O terror espalhou -se no peito de Jillian. Ela percebeu
que ele não pod eria vir com elas. Ele estava velho e frágil . Como algumas das
outras pessoas idosas , ele não seria rápido o suficiente para acompanhar o resto
deles se eles queriam escapar . Ela podia ver nos olhos dele que ele não tinha
intenção de tentar.
Ela correu para o carinhoso abraço do seu avô e começou a chorar mesmo
enquanto ele a confortava .
— Calma, calma, criança. — ele disse, sua mão acariciando o cabelo
curto dela. — Não há tempo para isso .
O avô segurou os braços dela e afastou -a enquanto ela tentava o melhor
que podia manter os soluços sob controle . Ela sabia que estava com idade bastante
para que não devesse ficar chorando desse jeito , mas ela simplesmente não
conseguia evitar . Ele agachou , seu rosto marcado pelo tempo enrugando quando
sorriu para ela e enxugou uma lágrima .
Jillian enxugou o resto das suas lágrimas , tentando ser forte e agir
conforme a sua idade. — Avô, Lokey mostrou para mim os estranhos que estão

330
vindo.
Ele estava assentindo . — Eu sei. Eu enviei ele.
— Oh — foi tudo que ela conseguiu pensar para dizer . Seu mundo estava
virando de cabeça para baixo e era difícil pensar , mas em algum lugar no fundo
de sua mente ela percebeu que ele nunca tinha feito uma coisa como essa . Jamais
soubera que ele podia, mas, conhecendo seu avô , isso realmente não surpreendeu -
a.
— Jillian, me escute. Esses homens que estão vindo são aqueles que eu
sempre disse a você que viriam . Aqueles que podem irão para longe durante algum
tempo para esconderem -se.
— Por quanto tempo ?
— Pelo tempo que for necessário . Esses homens que cavalgam para cá
são apenas um pequeno número daqueles que eventualmente virão.
Os olhos dela ficaram arregalados . — Você está querendo dizer que tem
mais? Mas eles são tantos . Eles levantam mais poeira do que eu já vi . Pode haver
mais estranhos do que isso ?
O sorriso dele foi breve e triste . — Estes são apenas um grupo de
reconhecimento , eu acredito... os prim eiros batedores avançados de muitos que
estão por vir. Essa terra vasta e desolada é desconhecida para eles . Acredito que
eles estejam procurando rotas através dela , testando para verem se haverá alguma
oposição. Eu temo que, de acordo com as histórias , os homens para os quais eles
fazem reconhecimento estão em um número muito maior do que até mesmo eu
consigo conceber. Acredito que esses outros homens , com seus números
incontáveis, ainda levarão algum tempo para chegar , mas até mesmo esse grupo
avançado será de homens perigosos e brutais . Aqueles de nosso povo que forem
capazes devem partir e esconderem -se por enquanto.
— Jillian, você não pode ir com eles .
Ela ficou de boca aberta . — O que...?
— Me escute. Os tempos sobre os quais falei a você estão sobre nós .
— Mas, a Mãe e o Pai não permitirão...
— Eles permitirão o que eu disser que eles devem , exatamente como o
nosso povo. — ele falou com uma voz firme. — Isso tem relação com assuntos
muito maiores , assuntos que antes nunca envo lveram o nosso povo... pelo menos
não desde que nossos ancestrais enchiam a cidade. Agora essas coisas também são
do interesse de todos nós .
Jillian assentiu solenemente. — Sim, avô. — ela estava aterrorizada ,
mas ao mesmo tempo sentiu o despertar de um senso de dever com a convocação
de seu avô. Se ele pretendia confiar tais coisas a ela , então ela não podia falhar
com ele.
— Então o que eu devo fazer ?
— Você deverá ser a Sacerdotisa dos Ossos , a portadora de sonhos .
A boca de Jillian ficou aberta outra vez. — Eu?
— Sim, você.
— Mas eu ainda sou jovem demais . Ainda não fui treinada nessas coisas .
— Não há mais tempo, criança. — ele inclinou em direção a ela fazendo
um aviso. — Você deve fazer isso , Jillian. Já ensinei a você muitas das histórias .
Você pode pensar que não está preparada , ou que não tem idade suficiente , e tudo
isso pode ter um pouco de verdade , mas você sabe mais do que consegue perceber .
Além disso, não há outra pessoa. Depende de você fazer isso .
Parecia que Jillian não conseguia pisca r. Sentiu-se completamente
inadequada, e ao mesmo tempo levemente excitada e fortemente inspirada . Seu

331
povo estava dependendo dela . O mais importante, seu avô estava dependendo dela
e ele acreditava que ela podia fazer isso .
— Sim, avô.
— Vou prepará-la para ficar entre os mortos , e então você deve
esconder-se entre eles e esperar .
O medo começou a lançar seus braços em volta dela novamente . Ela
nunca ficou sozinha entre os mortos .
Jillian engoliu em seco. — Avô, em certeza de que estou pronta para
uma coisa assim? Ficar lá, sozinha, entre os mortos? Esperando por um deles ?
A luz que entrava pela porta aberta transmitia ao rosto dele uma
aparência ameaçadora. — Você está tão pronta quanto eu posso torná -la. Tive
esperança de que haveria tempo sobrando pa ra ensinar a você muitas outras coisas ,
mas pelo menos ensinei uma parte do que você deve saber .
Do lado de fora, as pessoas corriam sob a luz do sol , cuidando dos
preparativos . Eles tomavam cuidado para não olhar dentro das sombras , para o
avô, depois que ele a levara para longe do resto deles , falando para ela o que ela
devia enfrentar .
— Para dizer a verdade, — ele falou. — isso me pegou despreparado
também. As histórias foram repassadas entre nosso povo durante milhares de anos ,
mas nunca disseram quand o isso aconteceria . Eu realmente nunca acreditei que
isso aconteceria durante a minha vida . Lembro do meu próprio avô contando para
mim as histórias que contei para você e não acreditando realmente que isso
aconteceria a não ser talvez em algum tempo futuro distante que realmente nada
significava para minha vida . Mas agora o tempo está sobre nós e devemos fazer o
nosso melhor para honrar nossos ancestrais . Devemos estar prontos... você deve...
conforme fomos ensinados através das histórias .
— Quanto tempo terei que esperar?
— Não há como eu possa dizer isso . Você deve esconder -se entre os
espíritos.
Como os contadores fizeram através dos séculos , você e eu temos comida
guardada, assim como Lokey faz, justamente para uma eventualidade como essa .
Você terá comida para manter o seu estômago cheio . Pode pescar e caçar por
diversão quando for seguro sair .
— Sim, avô. Mas você não poderia esconder -se comigo?
— Levarei você lá em cima, ajudarei a prepará -la, e contarei a você tudo
que puder. Mas então eu devo r etornar aqui para ajudar a fazer esses estranhos
pensarem que estamos em campo aberto e recebendo eles enquanto os outros de
nosso povo escapam... e para que você consiga esconder -se. Eu não conseguiria
ser tão veloz quanto você , nem tão pequeno para deslizar através dos lugares
estreitos para que esses homens não possam seguir . Eu terei que voltar aqui e
fazer a minha parte .
— E se os estranhos machucarem você ?
O avô deu um suspiro com cansada determinação . — Pode ser que eles
façam isso. Esses homens que chegam serão capazes de tal brutalidade... é por
isso que essa coisa é tão importante. Os costumes cruéis deles são o motivo pelo
qual devemos permanecer fortes e pelo qual não devemos nos render a eles .
Mesmo se eu morrer... — ele balançou um dedo pa ra ela... e você pode ter certeza
de que farei o melhor que puder para não morrer , estarei fornecendo ao resto de
vocês o tempo de que precisam .
Jillian mastigou o lábio. — Você não tem medo de morrer ?
Ele assentiu enquanto sorria . — Muito. Mas eu vivi uma longa vida e

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porque amo tanto você , escolheria dar a você uma chance de fazer o mesmo .
— Avô, — ela disse em meio a lágrimas. — quero que você esteja comigo
durante minha vida.
Ele segurou a mão dela. — Eu também, criança. Gostaria de ver você
virar uma mulher e ter as suas próprias crianças . Mas não quero que você se
preocupe demais comigo ; não sou tão indefeso nem sou um tolo . Ficarei sentado
na sombra com os outros e não vou representar ameaça para esses homens . Nós
confessaremos para os estranhos que os mais jovens do nosso povo fugiram com
medo, mas nós não conseguimos . Provavelmente os estranhos terão coisas mais
importantes para fazer do que desperdiçar sua energia nos ferindo . Nós ficaremos
bem. Quero que você pense no que deve fazer , e não se preocupe comigo .
Jillian sentiu-se um pouco melhor a respeito da segurança dele . — Sim,
avô.
— Além disso, — ele disse a ela. — Lokey estará com você , e ele
carregará o meu espírito com ele , então será quase como se eu estivesse tomando
conta de você. — quando ela sorriu com aquilo , ele falou. — Agora venha.
Devemos ir e fazer os preparativos .
A mãe e o pai de Jillian tiveram permissão para uma breve despedida
depois que o avô disse a eles com voz séria que ele a estava levando para ficar
com os espíritos ancestrais deles e cuidar da segurança do povo deles .
A mãe e o pai dela entenderam a importância de permitir que su a filha
fosse, ou estavam com medo demais do avô para recusar . Em qualquer caso eles
abraçaram ela e desejaram a ela força até que eles pudessem estar juntos
novamente.
Sem falar mais a respeito , o avô levou -a embora enquanto olhos os
seguiram. Ele conduziu-a subindo as antigas estradas e através de desfiladeiros,
passando pelos postos avançados desertos e misteriosas construções , e subindo a
grande elevação da terra . Enquanto eles subiam , o sol baixava no céu a oeste por
trás da cauda dourada de poeira que lentamente, mas constantemente, chegava
cada vez mais perto . Ela sabia que antes que o sol baixasse , a maioria do seu povo
teria partido .
O sol descendente permitia que as sombras começassem a assombrar os
desfiladeiros . A pedra lisa, coberta por faixas sinuosas de rocha, os convidava a
seguirem sempre adiante para verem o que poderia estar depois de cada curva.
Pela parte inferior o cascalho estava cheio de ossos de pequenos animais aqui e
ali. A maioria, ela sabia, eram restos deixados por coiotes e lob os. Ela tentou
arduamente banir a imagem mental dos seus próprios ossos alvejados espalhados
sobre o cascalho .
Acima, Lokey circulava preguiçosamente no azul profundo do céu
enquanto observava ela seguindo seu caminho com o avô subindo em direção ao
promontório. Quando eles chegaram até as agulhas de pedra, o pássaro deslizou
silenciosamente entre os pináculos das colunas , como se fosse uma brincadeira .
Ele os tinha seguido até a cidade antiga tantas vezes que devia não dar muito
importância para isso . Para Jillian, ainda que o avô a tivesse levado subindo
através do labirinto de ravinas , barrancos, e profundos cânions muitas vezes ,
dessa vez tudo isso parecia novo para ela .
Dessa vez ela estava indo como a Sacerdotisa dos Osso s, a portadora de
sonhos.
Em um lugar onde uma tranquila corrente seguia uma rota serpenteante
através do fundo cheio de cascalho de um cânion bastante profundo , o avô levou-
a até uma pequena rocha na sombra fria e sentou -a. Por toda parte ao redor , os

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lisos lados ondulados do cânion er guiam-se quase em linha reta, não deixando
qualquer jeito para sair escalando caso uma repentina chuva causasse uma
inundação. Esse era um lugar perigoso... por mais razões do que a ameaça de
rápidas inundações . Era um emaranhado de barrancos laterais e câ nions que em
alguns locais faziam rotas complicadas ao redor de enormes colunas de forma que
era possível andar em círculos e nunca encontrar o caminho de saída . Jillian,
entretanto , conhecia o caminho por esse labirinto , assim como por outros .
Enquanto ela ficava sentada quieta , esperando, o avô abriu uma bolsa
que ele sempre carregava amarrada ao cinto . Ele tirou um pedaço dobrado de
tecido encerado do meio das coisas que ele carregava na bolsa , e abriu em uma
palma. Ele mergulhou o dedo indicador na subs tância negra oleosa ali dentro .
O avô levantou o queixo dela . — Fique parada, agora, enquanto eu pinto
o seu rosto.
Jillian nunca foi pintada. Ela sabia da formalidade das histórias do avô ,
mas jamais pensou nisso com ela sendo a Sacerdotisa dos Ossos , aquela a ser
pintada. Ela ficou o mais firme quanto podia enquanto ele trabalhava , sentindo
que tudo estava acontecendo rápido demais... antes que ela ao menos tivesse
tempo para realmente pensar a respeito disso . Mais cedo naquele dia o máximo
que tinha em sua mente era pegar um lagarto para Lokey. Agora parecia como se
o peso do mundo estivesse sobre os ombros dela .
— Aí está. — disse o avô. — Venha ver.
Jillian ajoelhou ao lado de uma poça e curvou -se para frente. Ela arfou.
O que ela viu era apavorante . O rosto olhando de volta tinha uma faixa negra
pintada nele, como uma venda , mas uma venda através da qual ela podia ver . Os
olhos cor de cobre dela olhavam de volta para ela do meio escuro daquela máscara
negra.
— Agora os espíritos malignos não consegui rão enxergar você. — ele
disse para ela quando levantou . — Você pode ficar segura entre os nossos
ancestrais.
Jillian também levantou , sentindo-se muito estranha. Sentiu-se
transformada. O rosto que ela vira foi o rosto da Sacerdotisa . Ouviu sobre isso
nas histórias do avô, mas nunca tinha visto um rosto assim na vida real , muito
menos imaginado que esse seria o próprio rosto dela .
Ela inclinou e deu uma cautelosa espiadinha dentro da poça . — Isso vai
me esconder mesmo?
— Manterá você segura. — ele falou qu ando assentia.
Ela imaginou se Lokey a conheceria, se ele teria medo dela . O rosto
olhando de volta da água parada certamente assustou ela .
— Venha, — disse o avô. — devemos levar você até lá em cima e então
eu devo voltar para que os homens me encontrem l á com aqueles do nosso povo
que ficaram para trás .
Quando após muito tempo eles finalmente saíram das agulhas e dos
cânions de pedra , eles finalmente estavam perto da cidade , logo do lado de fora
do grande corredor principal mas dentro de algum dos anéis externos de
corredores menores.
Eles emergiram perto do cemitério .
O avô gesticulou. — Você mostra o caminho , Jillian. Agora esse é o seu
lugar.
Jillian assentiu e começou a andar em direção a cidade cintilando na luz
do sol dourada. Era uma bela visão, como sempre foi , mas nesse dia isso também
pareceu assombrá -la. Parecia que estava enxergando aquilo através de novos

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olhos. Agora ela sentiu uma conexão bastante real com seus ancestrais .
As grandes construções pareciam como se as pessoas ainda pudessem
ocupá-las, como se ela pudesse avistar alguma s delas pelas aberturas vazias de
janelas enquanto seguiam com suas vidas diárias . Algumas das estruturas eram
imensas, com pilares sustentando seções projetadas de telhados de ardósia. Outras
construções tinham fileiras de janelas arqueadas em cada andar. O avô a levara
para dentro de algumas daquelas casas . Era surpreendente ver lugares que estavam
empilhados por dentro com camadas de salas de forma que a pessoa tinha que
subir escadas... escadas construídas den tro das casas... para chegar até as salas
acima. Os construtores antigos pareciam quase mágicos nas coisas que realizaram .
De uma certa distância, brilhando na luz dourada , essa realmente era uma visão
majestosa.
Agora, ela caminharia pelas ruas sozinha , acompanhada somente pelos
espíritos daqueles que um dia viveram aqui . Porém, ela sentia -se segura, sabendo
que o avô havia pintado nela a máscara das Sacerdotisas dos Ossos.
Seria ela quem lançaria os sonhos sobre os estranhos .
Se ela fizesse bem o seu tra balho, os estranhos ficariam tão assustados
que fugiriam e o povo dela ficaria seguro .
Ela tentou não pensar sobre como o povo que um dia viveu aqui tinha
feito a mesma coisa e ainda assim falharam .
— Você acha que haverá pessoas demais ? — ela perguntou, de repente
assustada pelas histórias do antigo fracasso .
— Pessoas demais? — ele olhou confuso para ela enquanto caminhavam
ao lado de um muro que há muito tempo estava coberto por redes vivas de
trepadeiras que agora seguravam as rochas no lugar .
— Pessoas demais para os sonhos . Sou apenas uma pessoas... e não tenho
experiências, ou mais idade, ou algo assim. Sou apenas eu .
A grande mão dele deu um tapinha confortador entre as omoplatas dela.
— Números não importam . Ele ajudará a fornecer a você a força de que precisa.
— o avô ergueu um dedo avisando . — E não esqueça, Jillian, as histórias dizem
que você deve ser devotada a essa pessoa . Ele deverá ser o seu mestre .
Jillian assentiu quando eles entravam no vasto cemitério . Nos recantos
mais baixos havia lápides simples de pedra . Conforme eles subiram , passando por
fileiras e fileiras de túmulos, eventualmente eles chegaram a monumentos aos
mortos maiores e mais ornament ados. Alguns deles tinham grandes estátuas de
pessoas em poses orgulhosas sobre eles . Alguns tinham entalhes da chama da vida
que representava a luz do Criador . Alguns tinham antigas inscrições de amor .
Poucas tinham somente um antigo símbolo que o avô dela disse q ue era chamado
de “Graça”. Alguns dos grandes monumentos tinham apenas um nome .
Bem fundo no lugar dos mortos , perto do ponto mais alto , onde as
árvores castigadas pelo clima cresciam largas e retorcidas , eles finalmente
chegaram a um grande túmulo com um enorme monumento de pedra
ornamentadamente gravado . Em cima dele repousava uma urna de granito cinza
que exibia olivas , peras, e outras frutas , com uvas derramando por um lado , tudo
esculpido na mesma peça de rocha . O avô, que a levara muitas vezes para ver esse
monumento enquanto contava histórias , disse que a urna destinava -se a
representar o prêmio da vida que o homem conquistou através de seus esforços
criativos e trabalho árduo .
Ele observou -a quando ela parou e então chegou mais perto de uma
enorme lápide para alguém morto há muito tempo , talhada de uma peça de rocha
no tempo em que a antiga cidade estivera viva . Ela imaginou como ele teria sido .

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Imaginou se ele era gentil , cruel, jovem, ou idoso.
Lokey pousou sobre as uvas de pedra esculpidas e agitou suas penas
negras lustrosas antes de acomodar -se. Ela estava feliz que Lokey faria companhia
a ela em um lugar tão solitário .
Jillian esticou o braço e passou um dedo pelas letras que formavam o
nome entalhado no granito cinza .
— Você acha que as histórias são verdadeiras , avô? Quero dizer,
realmente verdadeiras?
— Fui ensinado que elas são .
— Então ele realmente voltará para nós do mundo dos mortos ?
Realmente, verdadeiramente voltará à vida vindo dos mortos ?
Ela olhou para trás por cima do ombro . O avô dela, em pé atrás dela,
esticou o braço e tocou o monumento de pedra com reverência . Ele assentiu
solenemente.
— Ele voltará.
— Então eu esperarei por ele , — ela falou. — a Sacerdotisa dos Ossos
estará aqui para dar as boas vindas a ele e servi-lo quando ele retornar à vida .
Jillian olhou brevemente para a poeira subindo no horizonte e então
virou de volta para a tumba . — Por favor, seja rápido. — ela implorou ao morto .
Enquanto seu avô observava , ela deslizou os pequenos dedos gentilmente
pelas letras na tumba .
— Não posso lançar os sonhos sem você. — Jillian falou suavemente
para o nome esculpido na rocha . — Por favor, depressa , Richard Rahl, e retorne
aos vivos.

336
C A P Í T U L O 4 5

Quando o cavalo de Nicci, Sa'din, cavalgou pela cidade vazia , o som de


seus cascos nos blocos de pedra ecoaram entre os cânions das construções desertas
como um grito que ficou sem resposta . Algumas das janelas coloridas
permaneciam abertas , outras fechadas . No segundo andar de muitas das
construções, pequenas sacadas com vista panorâmica para as ruas vazia s tinham
corrimões de ferro na frente de portas com as cortinas fechadas . Não havia brisa
para mover as pernas de um par de calças que Nicci viu penduradas em uma corda
esticada entre o segundo andar em lados opostos de um beco vazio . O dono das
calças havia caminhado para longe sem elas .
A calmaria era tão opressiva que beirava o agourento . Era uma sensação
estranha estar em uma cidade sem o povo dela , a mera concha que um dia guardara
vida e vitalidade, agora com forma mas sem propósito . Era de certa forma
evocativo ver um cadáver , a forma como ele parecia quase vivo e ainda assim tão
imóvel que não poderia haver dúvida quanto a terrível verdade . Se fosse deixada
desse jeito, se não fosse trazida de volta do frio limiar com vida , eventualmente
ela iria desmoronar em ruínas esquecidas .
Através de estreitas aberturas entre construções , Nicci viu relances da
Fortaleza do Mago cravada em uma ladeira rochosa bem alto na monstruosa
montanha. O vasto complexo escuro empoleirava-se como um abutre ameaçador
pronto para recolher os restos da cidade silenciosa . Pináculos, torres, e altas
pontes erguendo -se da Fortaleza cortavam nuvens que deslizavam silenciosament e
passando pelo rosto fraturado da rocha vertical. A imensa edificação era a visão
mais sinistra que ela já tinha visto. No entanto, ela sabia que na realidade aquele
não era um lugar sinistro , e ela estava aliviada por finalmente ter chegado .
Foi uma jornada longa e difícil do Mundo Antigo até Aydindril. Houve
momentos em que ela temeu que jamais consegu isse escapar das redes de tropas
espalhadas pelo caminho . Algumas vezes durante algum tempo ela perdeu -se no
ato de matá-los. Porém, havia tantos que ela sabia que não tinha qualquer
esperança realística de realizar qualquer redução significativa nos números deles.
Ela ficou furiosa em conseguir ser pouco mais do que um incômodo para eles .
Ainda assim , o real propósito dela era alcançar Richard. As tropas da Ordem eram
meramente um obstáculo no caminho dela .
Através da conexão que ela forjara com Richard, Nicci sabia que depois
de muito tempo estava perto dele . Ainda não o havia encontrado , mas sabia que
em breve encontraria .
Por algum tempo , antes mesmo de ter começado a seguir seu caminho ,
ela pensou que nunca mais teria chance de vê -lo novamente.
A luta pelo controle de Altur'Rang foi brutal. As tropas que atacaram ,
sendo pegas de surpresa e sangradas no início quando a noite caiu , experientes e
endurecidas pela batalha como eram , rapidamente recuperaram seu espírito e seus
números e, com a luz de fogueiras que fizeram , fizeram um esforço concentrado
para virar a maré da batalha .
Mesmo com todo o conhecimento de Nicci sobre a maneira com a qual
Jagang lidaria com a insurreição em Altur'Rang, nem mesmo ela havia esperado
tudo que os inimigos lançaram sobre eles. Durante algum tempo , com a ajuda de
um inesperado terceiro mago , parecia que as tropas da Ordem subjugariam os

337
inexperientes defensores . Foi um momento sombrio sem esperança quando parecia
que os esforços do povo de Altur'Rang para defenderem-se eram inúteis. O
espectro da derrota, e a carnificina subsequente que todos sabiam que uma derrota
como essa traria, começou a parecer não apenas inevitável , mas real demais. Por
um momento, Nicci e aqueles com ela acreditaram que não sobreviveriam além
daquela noite.
Independente de seus ferimentos e da exaustão , e mais do que o sincero
desejo dela de ajudar as pessoas que conhecia em Altur'Rang e todas as almas
inocentes e indefesas que seriam massacradas se eles perdessem , o pensamento de
jamais ver Richard outra vez havia energizado Nicci e dado a ela a força de
vontade extra para continuar. Ela usou o seu medo de nunca mais ver Richard para
alimentar uma fúria feroz que só poderia ser satisfeita com o sangue do inimigo
que estava em seu caminho .
No ponto crucial da batalha , na luz bruxuleante das chamas de casas
ardendo por toda parte, quando o mago inimigo ficou em pé sobre a plataforma
de um poço público em uma praça aberta lançando morte e terrível sofrimento
enquanto impelia seus homens adiante , Nicci surgiu como um espírito vingador
no meio das fileiras deles e pulou para cima da plataforma. Foi um evento tão
inesperado que atraiu a atenção de todos . Naquela breve fração de tempo quando
todos eles olhavam surpresos , em pleno campo de visão das t ropas da Ordem , ela
repentinamente perfurou o peito do mago assustado deles e com a penas a mão
arrancou o coração ainda pulsante dele . Com um grito de fúria primitivo , Nicci
ergueu o troféu sangrento para os soldados dele verem e prometeu o mesmo a eles .
Naquele momento , Victor Cascella avançou com seus homens no centro
dos invasores. Ele estava dominado por sua própria fúria , não apenas porque os
brutamontes saqueadores matariam e pilhariam o povo de Altur'Rang, mas porque
eles roubariam sua duramente con quistada liberdade . Se ele tivesse o Dom ,
somente o seu olhar feroz poderia ter derrubado o inimigo. Daquela forma, o seu
ataque audacioso foi tão inesperado quanto foi selvagem. Essa combinação de
eventos quebrou a coragem dos atacantes . Nenhum deles queria enfrentar a ira do
ferreiro e cair sob a fúria da sua maça mais do que queriam que uma feiticeira
louca parecendo com um espírito vingador da morte arrancasse os seus corações .
As tropas de elite da Ordem deram meia volta e tentaram escapar da
cidade, do meio de uma população enfurecida . Ao invés de permitir que o povo
da cidade ficasse satisfeito com a vitória , Nicci insistiu para que o inimigo fosse
perseguido e morto até o último homem .
Apenas ela entendia completamente o quanto era importante que ne nhum
dos soldados escapasse para contar a história da derrota deles . O Imperador
Jagang estaria aguardando a notícia de que sua cidade natal tinha sido colocada
de volta sob o seu comando , de que os insurrecionist as foram torturados até a
morte, e que o povo da cidade foi colocado de joelhos , de que houve um massacre
tão surpreendente que isso serviria para sempre como um aviso para outros .
Ainda que ele esperasse o sucesso , Nicci sabia que Jagang receberia
notícia da derrota no ataque . Ele perdera batalhas antes. Isso não impediria ele.
Com as derrotas ele aprendia a medida da determinação da oposição . Ele
simplesmente teria enviado mais tropas da próxima vez , suficientes para realizar
a tarefa, e para fazer isso de forma tão cruel quanto possível não apena s para
garantir a vitória, mas para garantir uma carga extra de punição pela resistência
contra a autoridade dele .
Nicci conhecia o homem. Ele não se importava com as vidas dos seus
soldados... ou com as vidas de quaisquer pessoas , para dizer a verdade . Se homens

338
lutavam pela Ordem e morriam , então a glória na vida seguinte seria o prêmio
deles. Eles só poderiam esperar o sacrifício nessa vida .
Mas se nenhuma notícia da batalha por Altur'Rang chegasse, isso era
uma coisa totalmente diferente .
Nicci sabia que Jagang ficava irritado com a falta de conhecimento mais
do que qualquer inimigo . Ele não gostava do desconhecido . Ela sabia que enviar
tropas, junto com três raros e valiosos magos, e então jamais ouvir qualquer
notícia deles, o deixaria perturbado. Ele trabalharia no mistério repetidas vezes
em sua mente da mesma forma que um homem nervoso girava uma pedra em seus
dedos para acalmar-se.
No final, não ter qualquer testemunha do resultado da batalha por
Altur'Rang o assombraria mais do que uma simples de rrota. Ele não tinha medo
de perder homens... a vida pouco significava para ele... então com uma derrota
ele podia lidar , mas ele não gostava mesmo do desconhecido. Talvez pior, seu
exército, composto por homens inclinados a superstição , tomassem esse evento
como um mau presságio .
Quando Nicci seguia as curvas da estreita rua pavimentada com
paralelepípedos, ela contornou por uma curva e levantou os olhos para
contemplar, entre as construções alinha das de cada lado , uma visão que quase
tirou o seu fôlego. Em uma colina ao longe, iluminado pelo sol , instalado sobre
lindo terreno verde esmeralda , agigantava-se um magnífico palácio de rocha
branca. Era a coisa mais elegante que ela já tinha visto . Era uma estrutura que
erguia-se imponente, forte, e agradavelmente possuía uma graça distintamente
feminina. Esse, ela sabia, não podia ser outra coisa além do Palácio das
Confessoras.
A visão dele, primoroso, autoritário, puro, ficava em completo contraste
com a enorme montanha atrás dele sobre a qual erguiam -se os escuros mu ros da
Fortaleza. Pareceu claro para Nicci que o Palácio das Confessoras foi concebido
para ser majestosamente respaldado por sombria ameaça .
Afinal de contas, esse foi o lugar que durante milênios havia governado
Midlands. As terras maiores d e Midlands tinham palácios na cidade para seus
embaixadores e membros do Conselho Central , que havia governado as terras
coletivas de Midlands. A Madre Confessora reinava não apenas sobre as
Confessoras, mas também sobre o Conselho Central . Reis e Rainhas respondiam
a ela, assim como fazia cada governador de cada terra de Midlands. Da rua estreita
onde ela estava, Nicci não via os lugares que representavam as várias terras , mas
ela sabia que nenhum deles seria tão grandioso quanto o Palácio das Confessoras. ..
especialmente não com a imponente Fortaleza como suporte.
Através de uma abertura nas construções de um lado , um movimento
chamou a atenção de Nicci. Quando ela viu que era poeira elevando-se no ar
parado, ela puxou as rédeas e fez Sa'din virar, direcionando -o por uma rua lateral .
Apertando com a parte inferior das pernas , fez ele cavalgar a meio galope . Sem
parar ele avançou descendo a estreita rua poeirenta. Em relances entre as
construções, ela podia ver a poeira elevando -se longe. Alguém estav a cavalgando
rapidamente em uma estrada em direção a montanha onde ficava a Fortaleza .
Através de sua conexão com ele , ela sabia quem devia ser .
Nicci ajudara a acabar com a ameaça para Altur'Rang o mais rápido
possível principalmente para que pudesse part ir atrás de Richard. Não que ela não
se importasse com aquelas pessoas , ou em eliminar os animais enviados para
massacrá-los, era apenas que ela preocupava -se mais em alcançar Richard. No
início, ela teve o pensamento de cavalgar o mais rápido que pudesse e alcançar

339
ele e Cara. Entretanto, rapidamente tornou -se evidente que não havia chance
disso. Ele simplesmente estava viajando rápido demais . Quando Richard estava
focado em um objetivo e determinado a alcançá -lo, ele era incansável .
Nicci percebeu que sua única esperança de alcançá -lo novamente era, ao
invés de persegui-lo, dirigir-se para onde ele iria em seguida e interceptá -lo. Ela
sabia que a Bruxa não conseguiria ajudá -lo a encontrar uma mulher que não
existia, então Nicci concluiu que em seguida Richard seguiria para norte para
tentar conseguir ajuda com o único mago que conhecia , seu avô, Zedd, na
Fortaleza do Mago em Aydindril. Uma vez que ela ainda estava um longo caminho
a sudeste, Nicci decidira pegar a rota mais curta até Aydindril, dessa forma
precisando cobrir uma distância muito menor do que ele precisaria e assim
conseguir interceptá-lo lá.
Quando ela saiu dos estreitos confinamentos das construções da cidade ,
o coração de Nicci acelerou quando ela viu que estava certa , quando ela
finalmente avistou Richard.
Ele e Cara estavam avançando subindo por uma estrada , deixando uma
longa faixa de poeira atrás deles . Nicci lembrou que eles deixaram Altur'Rang
com seis cavalos; agora eles tinham apenas três . Pela forma como eles estavam
cavalgando, Nicci suspeitou fortemente que sabia porque . Quando Richard estava
com sua mente concentrada em algo ele não podia ser detido . Provavelmente ele
cavalgara com os outros cavalos até a morte deles .
Quando Nicci galopou saindo da cidade para encontrar com e les, Richard
avistou-a imediatamente e reduziu o passo. Sa'din carregou-a velozmente por cima
das pequenas elevações , passando por cercados, estábulos, oficinas , bancas de
mercado, uma ferraria, e pastos cercados com abrigos para animais que não
estavam mais ali. Conjuntos de pinheiros passavam rapidamente e ela corria sob
as largas coroas de carvalhos brancos amontoados perto da estrada em alguns
trechos.
Nicci mal podia esperar para ver Richard outra vez. De repente sua vida
novamente tinha propósito . Ela imaginou se havia acontecido alguma coisa com a
Bruxa para finalmente convencê -lo de que não existia a mulher dos seus sonhos
que ele lembrava como algo real . Nicci até mesmo sentia um pouco de esperança
de que ele tivesse se recuperado de suas alucina ções e agora estava de volta ao
seu antigo eu . Seu alívio por vê -lo sentado altivo em seu cavalo superou a
preocupação dela sobre o motivo pelo qual ele estava correndo até a Fortaleza .
Desde que foi separada dele , Nicci estivera pensando em tudo que
aconteceu, tentando descobrir a fonte da alucinação dele , e chegou a uma teoria
apavorante. Repassando isso mil vezes em sua mente , tentando lembrar cada
detalhe, Nicci começara a temer que na verdade ela fosse a causa do problema
dele.
Ela estivera trabalhando em um passo rápido quando tentava salvar a
vida dele. Havia outras pessoas ao redor criando distrações . Ela estava preocupada
que soldados inimigos atacassem a qualquer momento e então não ousou reduzir
a velocidade do que estava fazendo . Pior ainda, ela estava tentando coisas que
nunca tinha feito... coisas sobre as quais nunca ouvira falar . Afinal de contas,
Magia Subtrativa era usada para destruir, não curar. Ela estava fazendo coisas que
não tinha certeza se funcionariam . Ela também sabia que não exist ia outra
esperança e então não teve escolha .
Mas ela temia que naquela mistura perigosa , fosse ela quem havia
acidentalmente induzido o problema com a memória de Richard, com a mente
dele. Se isso fosse verdade , ela jamais perdoaria a si mesma .

340
Se ela tivesse cometido um erro com a Magia Subtrativa , e houvesse
eliminado algum elemento da mente dele , alguma parte vital que o tornava cap az
de interagir efetivamente com a realidade , não haveria como restaurar uma perda
assim. Eliminar algo com a Magia Subtrati va era tão irreversível quanto a morte .
Se ela tivesse danificado a mente dele , ele jamais seria o mesmo novamente ,
mergulhando eternamente em um mundo de sua própria imaginação , nunca mais
sendo capaz de reconhecer a verdade do mundo ao redor dele ... e tudo isso seria
culpa dela.
Esse pensamento levou -a ao limiar do desespero .
Richard e Cara pararam ao lado da estrada enquanto aguardavam que
Nicci os alcançasse. Campos de grama ondulante cresciam na base de colinas
arborizadas além. Os cavalos deles aproveitaram a oportunidade para comerem a
longa grama onde ela chegava perto do lado da estrada .
A visão de Richard encheu o coração de Nicci de alegria. O cabelo dele
estava um pouco mais longo , e ele parecia empoeirado da cavalgada, mas ele
parecia tão firme, tão tranquilo, tão poderoso, tão bonito, tão magistral, tão
incisivo, tão focado, tão determinado quanto sempre parecera , como se nada no
mundo em volta dele escapasse de sua atenção . A despeito de suas roupas de
viagem simples e em poeiradas, ele parecia em todos os sentidos com o Lorde
Rahl.
Ainda assim, parecia que alguma coisa não estava certa com ele .
— Richard! — Nicci gritou enquanto corria até ele e Cara, embora eles
já houvessem avistado ela . Nicci puxou as rédeas de Sa'din quando alcançou eles .
Assim que ela parou , a poeira que ela arrastava começou a chegar e passou
voando. Richard e Cara aguardaram. Pela forma como Nicci havia gritado parecia
que eles esperavam que ela fosse dizer algo urgente , quando na verdade aquilo
não foi mais do que sua animação em vê-los.
— Estou aliviada em ver que os dois estão bem. — Nicci falou.
Richard relaxou visivelmente e colocou as duas mãos sobre o p ito da
sela. O cavalo dele espantou moscas da sua traseira . Cara sentou ereta na sela ,
seu cavalo perto e um pouco atrás do cavalo de Richard, balançando um pouco a
cabeça por causa do quão firme ela havia puxado as rédeas após o galope.
— Também fico feliz em ver que você parece bem. — Richard disse. Seu
sorriso caloroso indicou que ele falava sério. Nicci podia ter explodido em risadas
alegres ao ver aquele sorriso , mas ela conteve-se e simplesmente devolveu o
sorriso. — Como foi em Altur'Rang? — ele perguntou. — A cidade está segura?
— Eles destruíram os invasores. — Nicci apertou as rédeas para acalmar
um excitado Sa'din. Ela deu um leve tapa no pescoço dele para ajudar a acalmá -
lo. — A cidade está segura por enquanto . Victor e Ishaq disseram para falar a
você que eles estão livres e permanecerão desse jeito .
Richard assentiu com tranquila sat isfação. — Então você está bem ? Eu
estava preocupado com você .
— Estou bem. — disse ela, incapaz de conter o sorriso diante da simples
ideia de que ele estivesse preocupado com ela e sem o mínimo interesse em falar
para ele sobre ferimentos que agora estavam curados . Nada disso importava mais .
Ela estava com Richard novamente.
Ele parecia cansado , como se ele e Cara não tivessem dormido muito em
sua jornada ao norte. Pela distância que eles cobriram em um tempo tão curto , não
poderiam ter descansado mu ito.
Então Nicci percebeu o que havia de errado com ele .
Ele não estava com sua espada .

341
— Richard, onde...
Cara, atrás dele, lançou um olhar reprovador para Nicci e ao mesmo
tempo passou rapidamente um dedo pela garganta , avisando Nicci para
interromper o que ela estivera prestes a perguntar .
— Onde estão os outros cavalos ? — Nicci perguntou rapidamente ,
alterando o curso de sua pergunta para cobrir o sinistro silêncio que pairou no ar
durante a breve pausa.
Richard suspirou, aparentemente não percebendo a verdade daquilo que
ela estivera prestes a perguntar . — Sinto dizer que estive forçando eles demais .
Alguns deles ficaram aleijados e o resto morreu . Tivemos que conseguir cavalos
novos pelo caminho . Esses nós roubamos de um acampamento da Ordem Imperial
perto de Galea. Eles possuem tropas espalhadas por toda Midlands. Nós pegamos
cavalos e suprimentos deles durante o caminho .
Cara sorriu com leve satisfação , mas permaneceu em silêncio .
Nicci imaginou como ele conseguiu fazer essas coisas sem a sua espada .
Então ela percebeu como esse pensamento era tolo ; a espada não fazia de Richard
o homem que ele era .
— E a besta? — Nicci perguntou.
Richard olhou por cima do ombro para Cara . — Tivemos alguns
encontros.
Por alguma razão , Nicci sentiu algo inquietante na voz dele, se não em
suas palavras.
— Alguns encontros ? — ela perguntou. — Que tipo de encontros ? Qual
é o problema? O que está errado?
— Nós conseguimos , isso é tudo. Conversarmos sobre isso mais tarde
quando tivermos tempo . — ela conseguiu ver pela expres são irritada nos olhos
dele que ele estava minimizando o assunto e não estava com humor para desabafar
nesse momento . Ele puxou as rédeas do cavalo , afastando a atenção do cavalo da
grama. — Nesse momento eu preciso chegar até a Fortaleza .
— E quanto a Bruxa? — Nicci perguntou enquanto conduzia o seu cavalo
ao lado do dele. — O que você descobriu ? O que ela disse?
— Que aquilo que eu busco está enterrado há muito tempo. — ele
murmurou desanimadamente para si mesmo . Richard passou a mão cansada pelo
rosto e então saiu de seus pensamento particulares para fixar nela seu olhar
penetrante. — “Cadeia de Fogo ” significa alguma coisa para você ? — Quando
Nicci balançou a cabeça, ele perguntou. — E quanto ao “Nada Profundo” ?
— Nada Profundo? — Nicci pensou naquilo brevemente . — Não, o que
é isso?
— Não tenho ideia , mas preciso descobrir . Espero que Zedd consiga
lançar alguma luz sobre isso . Vamos lá, vamos em frente.
Dizendo aquilo, ele galopou. Nicci imediat amente fez Sa'din entrar em
um galope para acompanhá -lo.

342
C A P Í T U L O 4 6

A estrada subindo até a Fortaleza oferecia vistas magníficas da cidade


de Aydindril espalhada abaixo, ainda que nuvens tivessem deslizado sobre as
montanhas para abafar a luz do final de tard e e deixar o ar úmido e quente . Se não
fosse as suas preocupações , Nicci poderia ter considerado as vistas da estrada até
a Fortaleza as vistas mais bonitas que já tinha apreciado e uma apreciação de tal
beleza era uma coisa relativamente nova para ela, algo que Richard havia
despertado nela.
Porém, do jeito que as coisas estavam, ela refletiu sobre a fixação
contínua dele em encontrar a mulher Kahlan da qual ele tinha tanta certeza que
lembrava. Ele ainda não tinha falado qualquer coisa a respeito dela ,
provavelmente por causa da discordância prévia deles ele tivesse ficado frustrado
pela futilidade de tentar convencê -la de que ele tinha que encontrar uma mulher
que Nicci sabia que não existia. Independente dele não mencioná -la, estava claro
para Nicci que ele não estava menos determinado em encontrar Kahlan agora do
que estivera da última vez em que Nicci esteve com ele. As esperanças de que ele
estaria melhor na hora em que ela finalmente o encontrasse desapareceram . O
prazer dela com a visão diminuiu .
Porém, havia alguma coisa, uma expressão nos olhos dele, que para
Nicci de alguma forma parecia diferente . Ela não conseguia apontar o que era , ou
o que isso poderia significar . Ele sempre teve um olhar penetrante , um porte como
o de um predador, mas agora, o jeito como ele encarava o olhar dela , era ainda
mais agudo, como se ele estivesse vasculhando a alma dela . Entretanto, Nicci nada
tinha a esconder, especialmente de Richard. Ela não possuía em seu coração outra
coisa além do desejo das melhores coisas para ele. Não queira outra coisa mais
do que a felicidade dele . Ela faria qualquer coisa para ajudá -lo a ser feliz.
Ela supôs que foi por isso que o humor dela havia piorado ; muito embora
ele ainda estivesse determinado , ela sabia que ele estava ficando cada vez mais
desanimado. A luz da vida nos olhos dele era algo que Nicci estimava. Ela não
gostaria de ver isso apagar -se.
Tentar acompanhá -lo não deixou oportunidade para Nicci perguntar a
ele sobre o que tinha acontecido com a Bruxa. Pelo silêncio de Cara, Nicci sabia
que, fosse lá o que tivesse acontecido , não tinha saído tão bem quanto Richard
esperava. Isso não era surpresa para Nicci. Como poderia uma Bruxa, mesmo se
ela quisesse ajudar , ser de alguma utilidade para encontrar uma mulher que existia
somente na mente de Richard?
O que poderia ser Cadeia de Fogo, Nicci não fazia ideia, mas ela podia
sentir na voz dele, bem como na expressão tensa dele , o quanto Richard estava
ansioso para descobrir o significado daquilo . Após viver com ele durante tanto
tempo, Nicci conhecia os sentimentos dele sem que ele tivesse que pronunciar
uma palavra. Era óbvio que ele depositava grande importância no significado por
trás de “Cadeia de Fogo”.
Mais do que isso , porém, Nicci estava preocupada com o que poderia ter
acontecido com a espada dele . Não conseguia imaginar porque ele não estava com
ela. A preocupação dela aumentara ainda mais pela forma como Cara havia
cortado imediatamente o ass unto, sem falar do fato de Richard não ter mencionado
aquilo. A Espada da Verdade não era uma coisa sobre a qual Richard esqueceria

343
facilmente.
Mais alto nas montanhas , quando eles cavalgavam pelas curvas
acentuadas, a estrada emergiu do meio de um amontoa do de abetos diante de uma
ponte de pedra cruzando um abismo de imensa profundidade . Para Nicci parecia
como se a montanha estivesse aberta até o seu núcleo , com o lado mais próximo
afastado do resto da montanha . Enquanto eles cavalgavam em fila única pela ponte
sobre o abismo, ela espiou por cima da borda e conseguiu ver paredes de rocha de
cada lado mergulhando através de nuvens parecidas com algodão deslizando
abaixo deles. Foi uma visão estonteante que fez o estômago dela sentir -se
embrulhado.
Nicci podia dizer, pelo jeito como Sa'din galopava, como ele estava
cansado. Suas orelhas balançavam murchas em direção a queda de cada lado
enquanto eles cruzavam a ponte . Os cavalos de Richard e Cara, porém, estavam
espumando e respirando forte . Nicci sabia como Richard tratava bem animais , e
assim mesmo ele não estava mostrando piedade a esses . Obviamente ele pensava
que havia um valor mais alto envolvido do que as vidas de animais . Ela sabia qual
era aquele valor: a vida humana. Uma em particular .
Os muros da Fortaleza, compostos por blocos de granit o escuro
complexamente unidos , erguiam-se como um desfiladeiro diante deles . Saindo da
ponte, cavalgando entre Richard na frente e Cara atrás, Nicci observou o complexo
labirinto de muralhas, bastiões, torres da Forta leza, conectando passagens , e
pontes. De alguma forma o lugar parecia vivo , como se ele estivesse observando -
os aproximarem -se da entrada de rocha arqueada onde a estrada afunilava sob a
base do muro externo .
Sem hesitação, Richard trotou com seu cavalo por baixo do massivo
portículo elevado. Se tivesse escolha, Nicci teria sido um pouco mais cautelosa
em sua aproximação de tal lugar . Sua pele formigava com o poder emanando do
interior. Ela nunca sentira uma sensação tão forte d e força da magia dentro de um
lugar. Era como estar sozinha em campo aberto enquanto uma vasta tempestade
estava prestes a envolvê -la.
A sensação transmitiu a ela alguma medida dos escudos que protegiam
a Fortaleza. De acordo com o que teve de concluir através daquilo que conseguiu
sentir, os escudos no Palácio dos Profetas eram brincadeira de criança em
comparação . E também, aqueles eram predominantemente Aditivos e o Palácio foi
construído para um propósito completamente diferente . Aqui, escudos Subtrativos
eram aplicados em igual quantidade. A letalidade do domínio deles não estava
oculta, mas era manifesta para aqueles cujo negócio era saber a respeito desse
tipo de coisas.
Quase despercebidas, nuvens carregadas haviam se reunido acima ,
deixando o céu com uma cor cinz enta. A obscuridade que substituiu a luz do sol
tornou as pedras da Fortaleza ainda mais escuras , mais assustadoras, quase como
se a própria Fortaleza tivesse puxado uma mortalha de nuvens em torno de si
mesma enquanto observava a aproximação da feiticeira e de um mago capaz de
comandar poderes que ainda assombravam esse lugar.
Após saírem de baixo da abertura arqueada no espesso muro externo ,
eles emergiram em uma estrada que continuava através do profundo cânion
interior da Fortaleza . Além, a estrada formava um t únel através de outro muro
escuro que representava uma segunda barreira , caso algum dia fosse necessária .
Sem pausa, Richard cavalgou dentro daquela longa passagem escura . Os sons dos
cascos dos cavalos ecoavam na rocha úmida sob a obscura passagem arquead a.
Além do túnel, eles saíram ao lado de um grande pasto com grama

344
exuberante. A estrada de cascalho corria ao lado de um a parede para a direita com
várias portas . A primeira porta que eles encontraram logo após a entrada do
portículo teria sido por onde os visitantes entravam . Nicci imaginou que essa,
além do segundo muro , provavelmente era a entrada de serviço para a Fortaleza .
Uma cerca pelo outro lado da estrada fechava o pasto . Além, para a esquerda, o
lado dos fundos do pasto estava fechado pela pare de da própria Fortaleza . Do
outro lado ficavam os estábulos .
Sem uma palavra , Richard d esmontou e abriu o portão para o pasto ,
deixando seu cavalo entrar mas mantendo ele selado. Perplex as, Cara e Nicci
seguiram o exemplo dele antes de o seguirem através d o terreno em direção à
entrada com uma dúzia de largos degraus de granito branco desgastados e
curvados pelo tempo . Eles foram até uma entrada recuada onde portas duplas
simples mas pesadas de entrada para a Fortaleza propriamente dita começaram a
abrir gemendo.
Um homem idoso , com o cabelo branco desgrenhado, espiou o lado de
fora como o proprietário de uma casa pego de surpresa por visitantes . Ele arfou,
aparentemente sem fôlego por ter corrido pela Fortaleza quando percebeu que
alguém estava chegando . Sem dúvida ele fora alertado por teias de magia que
anunciavam qualquer pessoa tomando a estrada para a Fortaleza . Em tempos
antigos haveria pessoas mais perto para verem qualquer recém chegado . Agora só
havia o homem idoso . Pela forma como estava respirando ele devia estar bem
distante na Fortaleza quando os alarmes o alertaram .
Mesmo através do olhar de surpresa no rosto magro e enrugado dele ,
Nicci reconheceu elementos daqueles traços. Ela sabia que ele não podia ser outra
pessoa a não ser o avô de Richard, Zedd. Ele era alto, mas tão magro quanto uma
árvore jovem . Seus olhos castanhos estavam arregalados de admiração e uma
espécie de animação infantil, se não fosse inocência. O manto liso dele, sem
adornos, o marcava como um grande mago . Ele carregava sua idade muito bem.
Era uma agradável previsão de como, em parte, o tempo poderia tratar Richard.
O velho lançou os braços para o alto acima da cabeça . — Richard! —
um sorriso alegre surgiu em seu rosto . — Maldição, é mesmo você, meu rapaz?
Zedd emergiu do portal e começou a descer os degraus desgastados
dentro da luz fraca .
Richard correu até seu avô e ergueu -o dos degraus , abraçando-o com
força suficiente para expulsar o ar dos pulmões já esgotados do idoso . Os dois
riram, um som agradável com óbvio parentesco .
— Zedd! Não consegue imaginar como estou feliz em ver você !
— E eu você, meu rapaz. — Zedd falou em uma voz embargada por
lágrimas. — Faz tempo demais . Tempo demais .
Ele esticou a mão fina passando por Richard e segurou o ombro de Cara.
— Como você está, minha querida ? Você parece quase exausta . Você está bem?
— Eu sou Mord-Sith, — disse ela, parecendo um pouco indignada . — é
claro que estou bem . Porque você pensaria que eu pareço qualquer coisa a não ser
perfeitamente bem ?
Zedd riu quando afastou-se de Richard. — Por razão alguma, eu
suponho. Parece que vocês dois precisam de um pouco de descanso e uma refeição
ou duas, só isso . Mas você realmente parece bem e eu estou bastante feliz em vê -
la novamente.
Cara sorriu diante daquilo . — Senti saudade de você, Zedd.
Zedd balançou um dedo . — Não são muitas Mord-Sith que sentem falta
de um velho. Rikka ficará surpresa em ouvir uma coisa como essa .

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— Rikka? — Cara perguntou, surpresa. — Rikka está aqui?
Zedd balançou a mão para trás em direção da porta parcialmente aberta .
— Ela está lá dentro , em algum lugar ... patrulhando, eu imagino. Ela parece ter
duas preocupações na vida , patrulhar e me atormentar . Estou dizendo a você , eu
não tenho paz com a mulher . Pior, ela é esperta demais para o próprio bem dela.
Pelo menos ela é uma cozinheira talentosa .
As sobrancelhas de Cara levantaram. — Rikka sabe cozinhar?
Zedd fez uma careta , soltando ar entre os dentes . — Não diga a ela que
eu disse isso ou ela jamais vai parar de falar . A mulher...
— Zedd, — Richard interrompeu. — estou com problemas e preciso de
ajuda.
— Você está bem? Não está doente, está? Você não parece inteiramente
você mesmo, meu rapaz. — Zedd press ionou uma das mãos sobre a testa de
Richard. — Febres de verão são as piores , você sabe. Calor em cima de calor . Má
combinação .
— Sim... não... quer dizer, não é isso. Preciso falar com você.
— Então fale. Já faz um longo tempo . Tempo demais. Quanto tempo faz ?
Dois anos nessa primavera passada , se eu não estou enganado . — Zedd recuou um
pouco e apertou os braços de Richard enquanto olhava ele dos pés à cabeça. —
Richard, onde está a sua espada?
— Olhe, falaremos sobre isso mais tarde. — falou Richard, libertando-
se irritado das mãos de Zedd para colocar de lado o assunto .
— Você disse que queria falar. Então fale e diga-me onde está a sua
espada. — Zedd redirecionou seu largo sorriso para Nicci. — E quem é essa
adorável feiticeira que você trouxe ?
Richard piscou diante do sorriso de Zedd e então olhou para Nicci. —
Oh, sinto muito. Zedd, essa é Nicci. Nicci, esse...
— Nicci! — Zedd rugiu quando recuou dois degraus como se tivesse
avistado uma víbora . — A Irmã do Escuro que o levou para o Mundo Antigo ?
Aquela Nicci? O que você está fazendo junto com essa vil criatura ? Porque você
ousaria trazer tal mulher...
— Zedd, — Richard disse, cortando forçosamente seu avô . — Nicci é
uma amiga.
— Uma amiga! Você está ficando louco , Richard? Como você espera...
— Zedd, agora ela está do nosso lado. — ele gesticulou calorosamente .
— De forma parecida como Cara, ou Rikka. As coisas mudam. Antes, as duas
teriam...
A voz dele sumiu enquanto seu avô olhava fixamente para ele . — Você
sabe o que eu quero dizer . Confio em Cara com a minha vida , agora, e ela provou
ser merecedora de minha confiança . Confio em Nicci do mesmo jeito. Confio na
duas com minha vida .
Finalmente Zedd segurou o ombro de Richard e deu um aperto afetuoso .
— Acho que sei o que você quer dizer . Desde que eu entreguei a você a Espada
da Verdade você mudou muitas coisas para melhor . Ora, eu jamais em minha vida
teria imaginado que um dia estaria comendo alegremente refeições preparadas por
uma Mord-Sith. E elas são refeições deliciosas também . — ele controlou-se e
apontou para Cara. — Se você falar para ela que eu disse isso arrancarei sua pele .
A mulher já é incorrigível .
Cara apenas sorriu .
Zedd redirecionou seu olhar para Nicci. Ele não tinha aquela qualidade
de predador de um Rahl, mas da sua própria maneira era tão desarmador quanto e

346
parecia ter potencial para ser tão perturbador quanto .
— Seja benvinda, feiticeira. Se Richard diz que você é uma amiga, então
você é. Sinto muito ter ficado tão agitado .
Nicci sorriu. — É perfeitamente compreensível . Eu também não gostava
de mim naquela época . Eu estava sob influência de ilusões sombrias . Eu era
chamada de Senhora da Morte por uma boa razão . — Nicci olhou dentro dos olhos
cinzentos de Richard. — O seu neto fez com que eu enxergasse a beleza da vida .
Zedd sorriu com orgulho. — Sim, é exatamente isso . A beleza da vida .
Richard aproveitou a abertura. — E isso trata-se da vida. Zedd, escute,
eu preciso...
— Sim, sim, — Zedd falou, colocando de lado a impaciência de Richard.
— você sempre precisa de alguma coisa . Ainda não esteve de volta tempo
suficiente para entrar pela porta e você já quer saber alguma coisa. Se eu lembro
corretamente, a primeira palavra que você sempre falou foi “porque” .
— Então vamos lá, entre. Quero saber porque você não está com a
Espada da Verdade . Sei que não deixaria nada acontecer a ela , mas quero ouvir a
história toda. Não deixe nada de fora. Vamos lá.
Fazendo sinal para que todos eles o seguissem , o avô de Richard subiu
os degraus em direção ao portal .
— Zedd! Eu preciso...
— Sim, sim, meu rapaz. Você precisa de alguma coisa . Eu escutei da
primeira vez. Acho que está parecendo que vai chover. Não adianta ficarmos
nervosos quando estamos prestes a nos molhar . Entre e eu escutarei o que você
tem a dizer. — a voz de Zedd começou a ecoar enquanto ele desaparecia dentro
da escuridão. — Parece que você precisa de uma refeição. Tem mais alguém com
fome? Reuniões sempre me dão apetite .
Os braços de Richard caíram, suas mãos batendo contra suas coxas com
frustração. Ele suspirou e então subiu apressado os degraus atrás do seu avô . Nicci
sabia que se fosse qualquer outra pessoa, Richard teria lidado com isso de forma
bem diferente. Pessoas que amam você , e criaram você desde que você era
pequeno, e o confortaram quando você gritava por causa de uma tempestade ou o
uivo de um lobo tendiam a desarmá-lo. Ela podia ver que não era diferente com
Richard. O amor dele por seu avô amarrava suas mãos com cordas de respeito
inquebráveis.
Esse era um lado de Richard que Nicci nunca tinha visto, e era uma visão
que ela considerou bastante adorável . Aqui estava o Lorde Rahl, o líder do
Império D’Haraniano, o Seeker da Verdade , um homem que conseguiria fazer
quase todos tremerem com um olhar , silenciado por um sermão gentil, se não
desnorteante. Se os assuntos envolvidos não fossem tão sérios , Nicci teria sido
incapaz de evitar sorrir com a impotência de Richard perante um homem idoso de
aparência tão frágil .
O som de água reverberava do lado de dentro da antecâmara. Zedd
apontou a mão casualmente para o lado e uma lanterna na parede acendeu . Com a
ignição da chama Nicci reconheceu a reiteraç ão de uma centelha de poder que
marcou-a como uma lanterna chave . Com uma sucessão de sons de chamas ,
começando em ambos os lados da entrada , centenas de lanternas ao redor da vasta
sala acenderam em pares . Cada som quando um par das lanternas acendeu foi
seguido quase simultaneamente por outro quando cada uma das lanternas pela
enorme sala ganhou chamas a partir da magia iniciada pela lanterna chave , o efeito
sendo um anel de fogo que parecia dançar ao redor da sala . Nicci sabia que aquilo
teria funcionado da mesma maneira caso alguém acendesse aquela lanterna em

347
particular com uma chama ao invés de magia . A luz na sala aumentou , e dentro
de segundos a antecâmara estava quase tão clara como se fosse dia.
Uma fonte em forma de tre vo estava centralizada no chão lajotado . Água
jorrava alto no ar acima da tigela superior, de onde ela descia em cascata cada
nível sucessivo de tigelas cada vez mais largas , finalmente correndo de pontos ao
redor da tigela inferior em arcos perfeitamente combinados para dentro da piscina
contida por uma mureta externa de mármore branco variegado larga o bastante
para funcionar como um banco .
Por todo caminho na sala em forma oval , colunas de mármore vermelho
altamente polidas ficavam embaixo de arcos suportando uma sacada contínua .
Cem pés acima uma seção de telhado de vidro deixava entrar um pouco da luz do
final de tarde para equilibrar o brilho de lanternas lá embaixo no coração da sala .
À noite, o telhado de vidro provavelmente também deixaria entrar a suave luz fria
da lua para transmitir à sala obscura uma sensação espectral , mas sendo lua nova,
sem falar nas nuvens que juntavam -se, não haveria luz da lua esta noite . Pelo
aspecto do céu através da seção de telhado de vidro , Nicci pensou que Zedd estava
certo; realmente parecia que poderia chover .
Contradizendo as primeiras impressões da Fortaleza , a sala era uma bela
entrada calorosa para o que parecia um interior frio e austero . Ela dava pistas da
vida que o lugar um dia guardou. Como a cidade abandonada lá embaixo no vale ,
Nicci ficou bastante triste com o vazio .
— Benvindos a Fortaleza do Mago . Talvez nós todos devêssemos...
— Zedd, — Richard grunhiu, cortando seu avô. — preciso falar com
você. Agora mesmo. É importante.
Querido avô ou não, Nicci podia ver que Richard estava no final de sua
paciência. Articulações brancas dos dedos destacavam -se em grande contraste
com sua pele bronzeada e as veias proeminentes em seus punhos . Julgando pela
aparência dele , ele não dormiu muito ou comeu direito nos últi mos dias. Ela
pensou que nunca tinha visto ele parecer tão exausto assim ou tão perto de perder
o controle. Cara também parecia bem além dos limites de sua resistência , ainda
que ela fizesse um bom trabalho em ocultar isso ; Mord-Sith eram treinadas para
ignorar o desconforto físico . A despeito de estar muito feliz em ver seu avô , a
preocupação de Richard em encontrar a mulher de sua imaginação havia cortado
as cordialidades da breve reunião .
A correria louca em que a vida tornara -se, desde aquele dia quan do ele
foi atingido pela flecha e quase morreu , pareceu ter levado a esse momento .
Zedd piscou com inocente surpresa . — Bem, é claro, Richard, é claro.
— ele abriu os braços enquanto falava com uma voz gentil . — Você sabe que
sempre pode falar comigo . Seja lá o que esteja em sua mente , você sabe que...
— O que é Cadeia de Fogo?
Aquilo foi quase a mesma coisa que ele perguntara a Nicci também.
Zedd ficou imóvel, com uma expressão vazia no rosto . — Cadeia de
Fogo. — ele repetiu em um tom lento.
— Sim, Cadeia de Fogo.
Com uma expressão séria pesando em seu rosto , Zedd considerou a
pergunta com cuidado , virando em direção a fonte enquanto pensava . A espera era
quase dolorosa. A fonte borbulhou, espirrou e ecoou na sala quase silenciosa .
— Cadeia de Fogo . — Zedd falou lentamente para si mesmo enquanto
esfregava um dedo fino pela mandíbula lisa enquanto olhava fixamente dentro da
água que dançava descendo em cascata por cada nível sucessivo da fonte. Nicci
deu uma espiada em Cara, mas a Mord-Sith estava ilegível. O rosto abatido dela

348
parecia tão cansado e mal nutrido quanto o de Richard, mas, sendo Cara, ela estava
ereta, não permitindo que seu cansaço retirasse o melhor dela .
— Isso mesmo. Cadeia de Fogo. — Richard disse com impaciência
através de dentes cerrados . — Você sabe o que isso significa ?
Zedd virou de volta para seu neto , erguendo suas mãos abertas . Ele
parecia não somente perplexo mas apologético.
— Sinto muito, Richard, mas nunca ouvi falar de Cadeia de Fogo.
Com a raiva abandonando ele , parecia que Richard poderia desabar. O
desapontamento não estava evidente demais apenas em seus olhos . Seus ombros
caíram quando ele soltou um suspiro . Cara cuidadosamente, mas em silêncio,
chegou um passo mais perto , pronta para ajudá-lo se ele desmoronasse. Para Nicci,
aquela parecia uma possibilidade real .
— Richard, — falou Zedd, sua voz ficando séria. — onde está sua
espada?
Richard estourou. — É só um pedaço de aço !
— Só um pedaço...
O rosto de Richard ficou vermelho. — É apenas um estúpido pedaço de
metal! Você não acha que pode haver coisas mais importantes com o que
preocupar-se?
Zedd inclinou a cabeça . — Coisas mais importantes ? Do que você está
falando?
— Eu quero minha vida de volta !
Zedd ficou olhando para ele, mas permaneceu em silêncio , e ao fazer
isso quase ordenou que seu neto falasse mais alguma coisa para preencher algumas
das lacunas.
Richard caminhou da fonte até uma larga faixa de degraus triplos que
subiam entre dois dos pilares de mármore vermelho . Um longo tapete vermelho e
dourado bordado com simple s figuras geométricas negras corria entre os pilares
sob uma sacada e para dentro da escuridão .
Richard deslizou os dedos das duas mãos através dos cabelos . — Que
diferença faz? Ninguém acredita em mim . Ninguém vai me ajudar a encontrá -la.
Nicci sentiu uma profunda sensação de tristeza por ele . Naquele
momento ela arrependera -se de cada coisa rude que disse tentando convencê -lo de
que ele havia apenas sonhado com Kahlan. Ele precisava de ajuda com suas
alucinações, mas, naquele momento , ela teria ficado fel iz em deixar ele agarrar -
se a elas se isso tivesse trazido a luz da vida de volta aos olhos dele .
Ela desejava abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem , mas não poderia,
por mais de uma razão .
Cara, com os braços pendurados contra os flancos , parecia quase t ão
triste em ver Richard agoniz ando tanto. Parecia não haver fim à vista . Nicci
suspeitou que a Mord-Sith teria concordado com Nicci em deixar Richard ter o
seu lindo sonho com a mulher que amava . Mas uma mentira não aliviaria uma dor
tão real.
— Richard, não sei do que você está falando , mas o que isso tem a ver
com a Espada da Verdade? — Zedd perguntou, a seriedade retornando em sua
voz.
Richard fechou os olhos durante um momento por causa do tormento de
falar em voz alta o que tinha falado tant as vezes, tantas vezes quando ninguém
acreditava nele.
— Tenho que encontrar Kahlan.
Nicci podia ver ele ficando mais tenso , insistindo nas usuais perguntas

349
desconcertantes sobre quem ele estava falando e de onde ele poderia ter tirada tal
ideia. Nicci podia ver que era quase demais para ele suportar outra pessoa dizendo
que ele estava imaginando coisas , questionando a sanidade dele . Ela podia ver
que ele temia isso ainda mais vindo de seu avô .
Zedd inclinou um pouco a cabeça . — Kahlan?
— Sim, — Richard disse com um suspiro e sem levantar os olhos. —
Kahlan. Mas você não saberia de quem eu estou falando .
Normalmente, Richard teria iniciado uma pronta explicação , mas agora
ele parecia desanimado demais para querer incomodar-se em explicar novamente ,
para ser confrontado com incredulidade e perguntas descrentes .
— Kahlan. — a testa de Zedd franziu em uma dúvida cautelosa . —
Kahlan Amnell? Essa é a Kahlan de quem você está falando ?
Nicci congelou.
Richard levantou a cabeça , seus olhos arregalados . — O que você disse?
— ele sussurrou.
— Kahlan Amnell? Essa Kahlan?
O coração de Nicci quase parou. Cara ficou de boca aberta .
Em um piscar de olhos , Richard estava com a frente do manto de Zedd
em seus punhos e tinha erguido o velho do chão . Os músculos melados de suor de
Richard brilharam na luz da lanterna .
— Você falou o nome dela completo , Kahlan Amnell. Eu não falei para
você todo o nome dela. Você falou isso sozinho .
Zedd estava parecendo mais confuso a cada momento . — Mas, isso é
porque a única Kahlan que eu conheço é Kahlan Amnell.
— Você conhece Kahlan... sabe de quem eu estou falando ?
— A Madre Confessora?
— Sim, a Madre Confessora!
— Bem, é claro. A maioria das pessoas a conhece , eu espero. Richard, o
que deu em você? Me coloque no chão .
Nicci sentiu-se tonta. Ela não conseguia acreditar em seus próprios
ouvidos. Como uma coisa assim era possível ? Não era. Isso era tão arrebatador ,
inconcebivelmente impossível, que ela achou que poderia desmaiar .
Com as mãos trêmulas , Richard colocou seu avô no chão. — O que você
quer dizer com , todos a conhecem?
Zedd puxou cada uma das mangas por vez , puxando-as de volta sobre os
braços magros. Ele arrumou o manto amarrotado nos quadris , o tempo todo
observando seu neto. Ele parecia verdadeiramente surpreso com o comportamento
de Richard.
— Richard, qual é o problema com você ? Como eles poderiam não
conhecê-la? Afinal de contas ela é a Madre Confessora .
Richard engoliu em seco. — Onde ela está?
Zedd lançou um breve olhar c onfuso para Cara e depois para Nicci antes
de olhar de volta para Richard.
— Ora, no Palácio das Confessoras .
Richard soltou um grito de alegria e passou os braços em volta do seu
avô.

350
C A P Í T U L O 4 7

Agarrando os ombros magros do seu avô , Richard sacudiu o idoso . —


Ela está aqui? Kahlan está no Palácio das Confessoras ?
Com preocupação espalhando -se em seu rosto enrugado, Zedd assentiu
cautelosamente.
Com a costa da mão, Richard enxugou a lágrima que descia por sua
bochecha. — Ela está aqui. — ele falou, virando para Cara. Ele segurou os ombros
dela e deu uma firme sacudida . — Ela está em Aydindril. Você ouviu? Eu não
estava imaginando isso . Zedd lembra dela. Ele sabe a verdade.
Cara parecia estar fazendo o melhor que podia para controlar a sua
admiração sem deixar que isso fosse confundido com infelicidade por causa da
notícia surpreendente.
— Lorde Rahl... eu estou... feliz por você... realmente estou... mas não
vejo como...
Richard, sem parecer notar a incerteza da Mord-Sith, virou de volta para
o mago. — O que ela está fazendo lá ? — perguntou ele, sua voz tremendo com a
ansiedade.
Zedd, parecendo profundamente perturbado , olhou outra vez para Cara
e Nicci antes de colocar a mão carinhosamente no ombro de Richard.
— Richard, é onde ela está ent errada.
O mundo pareceu parar .
Em um estalo de compreensão , Nicci percebeu a verdade.
De repente, tudo ficou claro . Agora o comportamento de Zedd fez
sentido. A mulher de quem Zedd estava falando não era Kahlan, a Madre
Confessora, da imaginação de Richard, a mulher que ele imaginou ter amado e
casado com ele.
Era a Madre Confessora real .
Nicci tinha avisado Richard de que em seu sonho ele tinha feito uma
coisa perigosa ao imaginar uma mulher como sua esposa que não era simplesmente
alguma mulher ima ginária anônima, mas, ao invés disso , era uma mulher da qual
ele já havia ouvido falar... uma mulher que, assim acontecia , era bem conhecida
em Midlands. Essa era a Kahlan Amnell real, a Madre Confessora real, que estava
enterrada no Palácio das Confessora s, não aquela que Richard sonhara ser o seu
amor. Era justamente essa realidade que Nicci temia que eventualmente
despedaçaria o mundo de Richard.
Ela o alertara que isso aconteceria . Avisou que um dia ele ficaria cara a
cara com a verdade. Esse era o momento, essa era justamente a coisa que ela
estivera tentando evitar .
Ainda assim, Nicci não sentiu qualquer alegria em estar certa . Sentiu
apenas esmagadora tristeza por causa daquilo que Richard devia estar sentindo .
Ela não conseguia ao menos começar a imaginar o quão confuso , desorientador,
isso devia ser para ele . Para alguém tão firmemente apoiado na realidade quanto
Richard sempre foi , toda essa provação tinha que ser devastadora .
Richard só conseguia olhar fixamente .
— Richard, — Zedd finalmente falou, aplicando nele um gentil aperto
nos braços. — você está bem? O que está acontecendo ?
Richard piscou lentamente. Ele parecia em estado de choque .

351
— O que você quer dizer com ... ela está enterrada no Palácio das
Confessoras? — ele perguntou com voz trêm ula. — Quando isso aconteceu ?
Zedd lambeu os lábios. — Não sei quando ela morreu . Quando eu estava
lá embaixo... quando o exército de Jagang estava marchando sobre Aydindril... eu
vi a lápide do túmulo. Eu não conheci ela. Apenas vi o túmulo dela , só isso. É
uma lápide bem grande. Seria difícil não ver. Todas as Confessoras foram mortas
pelos Quads que Darken Rahl enviou. Ela deve ter morrido naquela época .
— Richard, você não poderia ter conhecido a mulher ; ela devia estar
morta e enterrada antes que nós deixássemos nosso lar em Westland... antes que
a Fronteira caísse. Quando você ainda era um guia florestal na floresta de
Hartland.
Richard pressionou as palmas na testa . — Não, não, você não entende .
Você está com o mesmo problema que todos os outros . Não é ela. Você conhece
Kahlan.
Zedd ergueu a mão em direção a seu neto . — Richard, isso não é
possível . Os Quads mataram as Confessoras .
— Sim, as outras Confessoras foram mortas por aqueles assassinos , mas
não ela, não Kahlan. — Richard balançou a mão quando colocava de lado o
argumento. — Zedd, ela foi a pessoa que veio pedir para você indicar o Seeker...
foi por isso que partimos de Westland. Você conhece Kahlan.
Zedd franziu a testa . — Do que você está falando ? Nós tivemos que
partir quando Darken Rahl veio nos caçar. Tivemos que fugir para salvar nossas
vidas.
— Em parte, mas Kahlan veio procurar você antes . Foi ela quem nos
falou que Darken Rahl havia colocado as Caixas de Orden em ação. Ele estava do
outro lado da Fronteira; se não fosse pela vinda de Kahlan, como teríamos sabido ?
Zedd olhou para Richard como se ele suspeitasse que ele pudesse estar
bastante doente. — Richard, quando as Caixas de Orden são colocadas em
atividade, a trepadeira serpente cresce . Isso até é indicado no Livro das Sombras
Contadas. Você, melhor do que qualquer outra pessoa , sabe disso. Você estava na
Floresta Ven e foi picado por uma trepadeira serpente . Isso causou uma febre e
você procurou minha ajuda . Foi assim que soubemos que as Caixas de Orden
estavam em ação. Então Darken Rahl veio para Westland e nos atacou .
— Bem, sim, tudo isso é verdade, de certo modo, mas Kahlan nos contou
o que estava acontecendo em Midlands... ela confirmou isso . — Richard rosnou
com frustração. — É mais do que isso, mas do que ela ter vindo p edir a você para
indicar um Seeker. Você a conhece.
— Temo que eu não a conheça , Richard.
— Queridos espíritos , Zedd, você passou o último inverno com ela e o
exército D’Haraniano. Quando Nicci me levou para o Mundo Antigo , Kahlan
estava lá com Cara e você. — ele apontou insistentemente para Cara, como se isso
de alguma forma fosse provar a declaração e acabar com o pesadelo . — Ela e Cara
lutaram com você durante todo o inverno .
Zedd olhou para Cara. Cara, atrás das costas de Richard, virou as palmas
para cima e sacudiu os ombros para Zedd indicando a ele que ela não sabia mais
a respeito disso do que Zedd.
— Já que entrou no assunto de você ser o Seeker, onde está a sua...
Richard estalou os dedos, seu rosto de repente iluminou -se.
— Aquele não é o túmulo de Kahlan.
— Claro que é. Não há como enganar -se com esse túmulo . Ele está
proeminente e eu lembro claramente que ele tem o nome dela gravado na pedra .

352
— Sim, é o nome dela, mas não o túmulo dela. Agora eu percebo sobre
o que você está falando . — Richard riu com alívio. — Estou dizendo, não é o
túmulo dela.
Zedd não achou que isso era engraçado . — Richard, eu vi o nome dela
na pedra. É ela, a Madre Confessora , Kahlan Amnell.
Richard balançou a cabeça insistentemente . — Não, não é ela. Isso foi
um truque...
— Um truque? — Zedd virou a cabeça, fazendo uma careta . — Do que
você está falando? Que tipo de truque?
— Eles estavam caçando ela... a Ordem estava atrás de Kahlan quando
ocuparam Aydindril. Eles assumiram o controle do Conselho , condenaram ela a
morte, e eles estavam caçando ela . Para impedir que eles a perseguissem , você
colocou um Feitiço da Morte sobre ela...
— O quê! Um Feitiço da Morte! Richard, você tem ideia da magnitude
daquilo que você está sugerindo ?
— Claro que tenho . Mas é verdade. Você precisou simular a morte dela
para que a Ordem pensasse que tiveram sucesso e não fossem atrás dela... para
que assim ela pudesse fugir . Você não lembra? Você fez aquela lápide, ou pelo
menos providenciou para que ela fosse feita. Eu vim aqui para enc ontrá-la... faz
alguns anos . O seu feitiço enganou até a mim . Pensei que ela estava morta . Mas
ela não estava.
A confusão dele tinha desaparecido e agora Zedd estava parecendo
seriamente preocupado . — Richard, não consigo imaginar qual é o problema com
você, mas isso é simplesmente...
— Vocês dois escaparam em segurança mas você deixou uma mensagem
para mim na lápide dela , — falou Richard, encostando um dedo no peito de Zedd.
— para que eu soubesse que na verdade ela ainda estava viva . Para que eu não
entrasse em desespero . Para que eu não desistisse . Eu quase desisti, mas então eu
entendi.
Zedd estava quase fervendo de frustração , impaciência, e preocupação.
Nicci conhecia a sensação .
— Maldição, meu rapaz, de que mensagem você está falando ?
— As palavras na lápide. A inscrição. Era uma mensagem para mim .
Zedd plantou os punhos nos quadris . — Do que você está falando ? Que
mensagem? Qual era essa mensagem ?
Richard começou a andar de um lado para outro , pressionando as pontas
dos dedos nas têmporas enquan to murmurava para si mesmo , aparent emente
tentando lembrar das palavras exatas .
Ou, Nicci pensou, tentando imaginá -las do jeito que sempre imaginava
respostas para declarar seu jeito de encarar a verdade . Ela sabia que dessa vez ele
estava cometendo um err o que o deixaria sem saída. A realidade estava fechando
o cerco em volta dele, mesmo que ele ainda reconhecesse isso . Em breve ele
reconheceria.
Nicci temia aquela inequívoca junção de alucinação e verdade . A
despeito de querer que Richard ficasse melhor, que superasse as falsas memórias
com as quais estivera sofrendo , ela temia a dor que, ela sabia, isso causaria a ele
quando eventualmente ele ficasse cara a cara com a inconfundível verdade . Mais
ainda, ela temia o que aconteceria a ele se não conseguisse ver a verdade, ou
recusasse enxergá -la, se ele mergulhasse para sempre mais fundo em um mundo
de ilusão.
— “Não aqui”, — ele murmurou. — alguma coisa sobre não estar aqui .

353
E alguma coisa sobre meu coração .
Zedd empurrou a bochecha para fora com a língua , aparentemente em
um esforço para ficar firme enquanto observava seu neto caminhando para frente
e para trás e ao mesmo tempo provavelmente tentava imaginar o que poderia estar
acontecendo com ele .
— Não. — Richard disse abruptamente quando parou . — Não, não meu
coração. Não era isso que dizia. É um grande monumento . Agora eu lembro . Dizia,
“Kahlan Amnell. Madre Confessora. Ela não está aqui , mas sim nos corações
daqueles que a amam”.
— Era uma mensagem para que eu não desistisse da esperança porque
ela não estava realmente morta... ela não estava realmente ali , naquele túmulo .
— Richard, — Zedd falou em suave consolação. — isso é uma coisa
bastante comum para dizer em uma lápide , que alguém não está morto mas ao
invés disso vive nos corações daqueles que a amam. Coveiros provavelmente
possuem pilhas de lápides feitas com aquele sentimento , com essas mesmas
palavras gravadas.
— Mas ela não estava enterrada lá ! Não estava! Ela diz isso... “ela não
está aqui”... por uma razão .
— Então quem está enterrado no túm ulo dela? — perguntou Zedd.
Richard ficou em silêncio por um momento .
— Ninguém. — ele finalmente falou , seu olhar perdido enquanto
pensava. — A Senhora Sanderholt... a cozinheira no Palácio... ela foi enganada
pelo seu Feitiço da Morte como todos os outro s. Quando eu finalmente cheguei
aqui ela disse que você estava lá na plataforma enquanto Kahlan foi decapitada...
ela estava em luto por causa daquilo e terrivelmente abatida... mas eu percebi que
você não faria uma coisa como essa e então tinha que ser um dos seus truques.
Você falou isso para mim... lembra ? Às vezes a melhor magia é apenas um truque .
Zedd assentiu. — Essa parte é verdade.
— A Senhora Sanderholt disse que o corpo de Kahlan tinha sido cremado
em uma pira funerária, a coisa toda supervisionada pelo Primeiro Mago em pessoa .
Ela falou que então as cinzas de Kahlan foram enterradas diante daquela imensa
lápida. A Senhora Sanderholt até me levou lá fora ao jardim reservado ao lado do
Palácio onde as Confessoras estão enterradas . Ela mostrou o túmulo . Eu fiquei
horrorizado . Pensei que fosse ela , que ela estava morta, até que entendi a
mensagem gravada na pedra... a mensagem que vocês dois deixaram para que eu
encontrasse.
Richard agarrou os ombros do seu avô novamente . — Está vendo? Foi
apenas um truque para tirar nossos inimigos do rastro dela . Ela não estava
realmente morta . Não estava realmente enterrada lá . Nada está enterrado lá , a não
ser talvez algumas cinzas .
Nicci pensou que era bastante conveniente que Richard imaginasse ela
sendo cremada em sua história de blefe do Feitiço da Morte para que tudo que
restasse fossem cinzas que não poderiam ser identificadas . Ele sempre inventava
algo que para sua mente explicava logicamente a falta de evidência . Nicci não
sabia se Confessoras realmente eram cremadas , mas se eram , isso apenas
forneceria a ele outro pretexto útil para apoiar sua história de forma que ele
pudesse continuar a negar que era ela . Outra vez eles não teriam como provar o
contrário.
A não ser, é claro, que ele estivesse imaginando a parte da pira funerária
de sua história e Confesso ras não fossem normalmente cremadas .
— E então você diz que foi até lá ? — perguntou Zedd. — Lá embaixo

354
onde fica a lápide?
— Sim, e então Denna veio...
— Denna estava morta. — disse Cara, interrompendo pela primeira vez .
— Você a matou para escapar dela no Palácio do Povo . Ela não poderia estar lá ...
a não ser, é claro, que ela tenha aparecido como um espírito .
— Sim, isso mesmo, — Richard falou, virando para Cara. — ela
apareceu. Ela veio como um espírito e me levou até um lugar entre mundos para
que eu pudesse estar com Kahlan lá.
Os olhos de Cara desviaram brevemente para o mago . Sua incredulidade
era impossível de mascarar então ela desviou os olhos de Richard e ocupou-se
coçando atrás do seu pescoço.
Nicci quis gritar. A história dele ficava mais insana a cada momento .
Ela lembrou da Prelada uma vez ensinando a Nicci quando Noviça como a semente
das mentiras , uma vez plantada, apenas crescia fora de controle com o passar do
tempo.
Zedd aproximou-se por trás e gentilmente segurou os ombros de Richard.
— Vamos lá, meu rapaz. Acho que você precisa descansar um pouco e
então depois nós podemos...
— Não! — Richard gritou quando afastou -se. — Não estou imaginando
isso! Não estou inventando !
Nicci sabia que ele estava fazendo exatamente isso . Em um certo
sentido, era extraordinária a forma como ele era capaz , imediatamente, de
entrelaçar novos eventos , baseado em sua alucinação original , para conseguir
escapar continuamente da arma dilha da verdade .
Mas ele não conseguiria escapar para sempre . Havia a questão da
verdadeira Madre Confessora enterrada no túmulo e isso era bastante real... a
menos que Midlands realmente cremasse suas Confessoras , situação na qual
Richard seria capaz de continuar divagando, agarrando-se ao seu sonho por mais
algum tempo, até que o próximo problema surgisse . Porém, mais cedo ou mais
tarde, alguma coisa despedaçaria esses sonhos .
Zedd tentou novamente . — Richard, você está cansado. Parece que você
esteve morando em cima de um cavalo por...
— Posso provar. — disse Richard em tranquilo desafio .
Todos ficaram quietos .
— Você não acredita em mim , eu sei. Nenhum de vocês acredita... mas
eu posso provar .
— O que você quer dizer? — Zedd perguntou.
— Vamos lá. Venha comigo até a lápide.
— Richard, eu falei, a lápide poderia muito bem dizer aquilo que você
disse lembrar, mas isso não prova coisa alguma . É um sentimento bastante comum
para expressar em uma lápide .
— Eles normalmente cremam os corpos das Madres Confessoras em uma
pira funerária? Ou isso foi apenas parte do seu truque para não ter que produzir o
corpo dela no funeral uma vez que ela estava supostamente cremada ?
Zedd estava começando a parecer mais do que apenas um pouco
indignado. — Quando eu costumava v iver aqui os corpos das Confessoras nunca
eram profanados . A Madre Confessora era colocada em um caixão coberto com
prata em seu vestido branco e as pessoas tinham permissão para vê-la uma última
vez, para fazerem suas despedidas , antes que ela fosse enterrada.
Richard olhou sério para o seu avô , para Cara, e finalmente para Nicci.
— Bom. Se eu tiver que abrir o túmulo e provar para todos vocês que não há coisa

355
alguma enterrada sob a lápide , então é o que farei . Precisamos resolver isso para
que possamos seguir adiante para a solução do que está acontecendo . Para
fazermos isso , preciso que todos vocês acreditem em mim .
Zedd abriu as mãos . — Richard, isso não é necessário .
— Sim, é! É necessário ! Eu quero minha vida de volta !
Ninguém ofereceu argumento .
— Zedd, alguma vez eu falei para você alguma mentira maliciosa ?
— Não, meu rapaz, você nunca fez isso .
— Não estou mentindo agora .
— Richard, — disse Nicci. — ninguém está dizendo que você está
mentindo, apenas que você está sofrendo com os desafortunados efeitos do delírio
induzido por um ferimento. Não é culpa sua . Todos nós sabemos que você não
está fazendo isso deliberadamente .
Ele virou para seu avô . — Zedd, você não percebe? Pense nisso. Tem
alguma coisa errada no mundo . Alguma coisa está terrivelmente errada. Por
alguma razão que eu ainda não fui capaz de descobrir , eu sou o único que está
ciente disso. Sou o único que lembra de Kahlan. Tem que haver alguma coisa por
trás disso . Algo terrível . Talvez Jagang seja o responsável .
— Jagang fez a besta ser criada para vir atrás de você. — Nicci falou.
— Ele colocou tudo nesse esforço . Ele não precisaria fazer qualquer coisa mais .
Além disso, com a besta perseguindo você , que propósito isso teria ?
— Não sei. Não tenho todas as respostas , mas sei a verdade de uma parte
disso.
— E como pode ser que apenas você sabe a verdade e todos os outros
estão errados, que a memória de todos falhou menos a sua ? — perguntou Zedd.
— Também não sei a resposta para isso , mas posso provar o que estou
dizendo a você . Posso mostrar a você a cova . Vamos lá.
— Eu já falei , Richard, a lápide diz palavras comuns .
A expressão de Richard tornou-se perigosa. — Então abriremos a cova
para que todos vocês possam ver que ela está vazia e que eu não estou louco .
Zedd levantou a mão em direção a porta ainda aberta . — Mas logo ficará
escuro. E mais, vai chover.
Richard virou de volta do portal . — Temos um cavalo extra. Ainda
podemos descer até lá enquanto temos luz do dia . Se for necessário, podemos usar
lanternas. Se for preciso , eu cavarei no escuro . Isso é mais importante do que
preocupar-se com um pouco de chuva ou a ausência de luz . Preciso acabar com
isso... agora... para que possamos resolver o problema real e para que eu possa
encontrar Kahlan antes que seja tarde demais . Vamos lá.
Zedd gesticulou calorosamente . — Richard, isso é...
— Deixe ele fazer o que pede . — falou Nicci, interrompendo , atraindo
todos os olhos . — Nós todos já ouvimos o bastante . Isso é importante para ele .
Devemos permitir que ele faça o que acha que deve. Essa é a única chance que
temos de finalmente resolvermos o assunto .
Antes que Zedd pudesse responder, uma Mord-Sith apareceu entre dois
pilares vermelhos do outro lado da sala . Seu cabelo loiro estava jogado para trás
em uma trança como a de Cara. Ela não era tão alta quanto Cara, e não tão magra,
mas parecia tão formidável quanto na forma como ela comportava-se, como se
nada temesse e vivesse procurando uma desculpa para provar isso .
— O que está acontecendo ? Eu ouvi... — ela ficou olhando fixamente
com repentina surpresa. — Cara? É você?
— Rikka, — disse Cara com um sorriso e assentindo . — é bom ver o seu

356
rosto novamente.
Rikka baixou a cabeça para Cara mais do que Cara tinha feito antes de
olhar para Richard. Ela caminhou adiante na sala .
Os olhos dela ficaram arregalados . — Lorde Rahl , não vejo você desde ...
Richard assentiu. — Desde o Palácio do Povo , em D'Hara. Quando eu
vim para fechar o portal para o Submundo você foi uma das Mord-Sith que
ajudaram a me levar até o Jardim da Vida . Você foi aquela que segurou minha
camisa no meu ombro esquerdo enquanto todas vocês me guiavam em segurança
através do Palácio . Uma das suas irmãs Mord-Sith deu a vida naquela noite para
que eu pudesse completar a minha missão .
Rikka sorriu, admirada. — Você lembra. Nós estávamos todas usando
nosso couro vermelho . Não consigo acreditar que você tenha uma memória tão
boa que poderia lembrar de mim, muito menos que eu era aquela ao seu ombro
esquerdo. — ela baixou a cabeça . — E você honra a todas nós ao lembrar uma que
caiu em batalha.
— Eu realmente tenho uma boa memória . — Richard lançou um olhar
sombrio para Nicci e então para Zedd. — Isso foi pouco antes de eu voltar até
Aydindril e até a lápide com o nome de Kahlan. — ele virou de volta para Rikka.
— Tome conta da Fortaleza , está bem, Rikka? Nós todos temos que descer até a
cidade durante um tempinho .
— É claro, Lorde Rahl . — disse Rikka, baixando a cabeça outra vez ,
parecendo quase tonta por estar na presença de Richard, e por ser lembrada.
Richard direcionou mais uma vez seu olhar de predador para o resto
deles. — Vamos lá.
Richard desapareceu saindo pelo portal . Zedd segurou a manga de Nicci
quando ela passava.
— Ele foi ferido , não foi? — quando ela hesitou, ele prosseguiu. — Você
disse que ele estava sofrendo alucinações por ter sido ferido .
Nicci assentiu. — Ele foi atingido por uma flecha . Ele quase morreu.
— Nicci curou ele. — Cara inclinou aproximando -se quando falou em
voz baixa. — Ela salvou a vida de Lord e Rahl.
Zedd ergueu uma sobrancelha . — Uma amiga certamente .
— Eu curei ele, — Nicci confirmou. — mas isso foi difícil além de
qualquer coisa que já tentei . Posso ter salvo a vida dele , mas agora estou
preocupada que eu não tenha feito um trabalho suficientemente bom .
— O que você quer dizer? — perguntou Zedd.
— Eu temo que de alguma forma talvez eu possa ter feito algo para
causar as alucinações dele .
— Isso não é verdade. — disse Cara.
— Fico imaginando se é, — Nicci falou. — se eu poderia ter feito mais ,
ou feito as coisas de modo diferent e.
Ela engoliu em seco o nó crescendo em sua garganta . Ela estava com
medo que fosse verdade, que o problema de Richard fosse culpa dela, que não
tivesse agido rápido o bastante , ou que pudesse ter feito algo terrivelmente errado .
Ela preocupava-se constantemente com sua decisão naquela terrível manhã de
levar Richard até um lugar seguro antes de trabalhar nele . Ela temeu um ataque
que fatalmente teria interrompido seus esforços para curá -lo, mas talvez se ela
simplesmente tivesse começado imediatamente e ali no campo de batalha ele
poderia não estar caçando fantasmas agora .
Afinal de contas, um ataque não aconteceu , então ela fez o julgamento
errado a respeito da necessidade de levá -lo para a casa de fazenda abandonada .

357
Naquele momento ela não sabia que nã o havia um ataque iminente, mas talvez se
ela tivesse aproveitando para pedir aos homens de Victor para fazerem um
reconhecimento na área ela pudesse ter começado a curar Richard muito mais
cedo. Ela não fizera isso porque teve medo que se eles fizessem o reconhecimento,
e ela estivesse certa sobre a existência de mais inimigos nas proximidades , então
eles teriam que mover Richard de qualquer jeito , e até lá o tempo dele teria
esgotado.
De qualquer modo, foi ela quem tomou as decisões e Richard era aquele
que agora sofria alucinações . Alguma coisa deu errado naquela noite terrível .
Ninguém no mundo importava mais para ela do que Richard. Ela temeu
ter sido aquela que causou a ele o dano que estava arruinando sua vida.
— O que havia de errado com ele exatamen te? — perguntou Zedd. —
Onde ele foi atingido pela flecha ?
— No lado esquerdo do peito... com uma flecha dentada de uma besta .
Aquela cabeça dentada alojou -se no peito dele sem atravessar por sua costa . Ele
conseguiu desviá-la parcialmente , de forma que ela não acertou seu coração , mas
seu pulmão e o peito estavam rapidamente ficando cheios de sangue .
Zedd levantou uma sobrancelha, admirado . — E você conseguiu remover
a flecha e curá -lo?
— Isso mesmo, — Cara confirm ou com energia. — ela salvou a vida de
Lorde Rahl.
— Não sei... — Nicci sentiu dificuldade para colocar tudo aquilo em
palavras. — Estive separada dele enquanto seguia meu caminho até aqui . Agora
que vejo ele novamente, vejo como ele agarra -se tão fortemente em sua alucinação
e não consegue enxergar a verdade , não tenho tanta certeza se fiz algum bem a
ele. Como ele pode viver se não consegue ver a verdade do mundo ao redor dele ?
Embora seu corpo possa estar curado , ele está sofrendo com um tipo horrível de
morte lenta enquanto sua mente falh a.
Zedd deu um tapinha paternal no ombro dela . Nicci reconheceu a luz de
vida nos olhos dele . Era a mesma centelha que Richard tinha. Pelo menos a mesma
centelha que ele costumava ter .
— Simplesmente teremos que ajudá -lo a enxergar a verdade .
— E se isso destruir o coração dele? — ela perguntou.
Zedd sorriu. Isso lembrou a ela do sorriso de Richard, o sorriso do qual
ela sentia tanta falta .
— Então simplesmente teremos que curar o coração dele , não é mesmo?
Nicci foi incapaz de soltar mais do que um sussurro que beirava as
lágrimas. — E como faremos isso ?
Zedd sorriu novamente e deu um firme aperto no ombro dela . — Teremos
que ver. Primeiro temos que deixar ele ver a verdade , então poderemos nos
preocupar em curar a ferida que isso causará em seu cora ção.
Nicci só conseguiu assentir . Ela receava ver Richard sofrer.
— E que besta é essa que você mencionou ? Aquela que Jagang criou?
— Uma arma criada através do uso de Irmãs do Escuro . — Nicci falou.
Alguma coisa da época da Grande Guerra .
Zedd praguejou baixinho diante da notícia . Cara pareceu ter algo a dizer
sobre a besta, mas ela pensou melhor e ao invés disso seguiu em direção a porta .
— Vamos lá. Não quero que Lorde Rahl fique muito na nossa frente .
Zedd resmungou que concordava . — Parece que vamos nos molhar.
— Pelo menos se chover, — disse a Mord-Sith. — vai lavar um pouco
do cheiro de cavalo de mim .

358
C A P Í T U L O 4 8

O chuvisco começou antes que eles estivessem fora do pasto . Richard já


tinha partido . Não havia como dizer o quanto ele estava adiante deles . Cara queria
correr e alcançá-lo, mas Zedd disse a ela que eles sabiam para onde ele estava
seguindo e não fazia sentido arriscar quebrar a perna de um dos cavalos cansados
porque, se isso acontecesse, então eles apenas acabariam tendo que caminhar
descendo a montanha atrás de Richard e então, após visitarem o cemitério das
Confessoras, caminhar todo o caminho de volta .
— Além disso, — Zedd falou. — você jamais conseguiria alcançá -lo.
— Bem, você pode ter razão sobre isso , — Cara disse enquanto colocava
seu cavalo em um meio galope. — mas não quero ele sozinho mais tempo do que
o necessário. Eu sou a proteção dele .
— Especialmente desde que ele está sem a espada. — Zedd murmurou
irritado.
Eles tiveram pouca escolha a não ser correr atrás de Cara.
Na hora em que eles haviam descido a montanha e alcançaram a cidade ,
a luz do dia estava desaparecendo e o chuvisco ficando mais forte . Nicci sabia
que eles ficariam ensopados antes que isso terminasse , mas não havia como evitar .
Felizmente, estava quente o bastante para que ao menos eles não ficassem
congelando no clima úmido .
Sabendo onde Richard estaria, eles seguiram até o s terrenos do Palácio
das Confessoras onde rapidamente encontraram o cavalo dele , amarrado a um dos
anéis segurando corrent es esticadas entre postes de granito decorativos . Uma vez
que não havia abertura nas correntes , aparentemente eles destinavam -se a indicar
uma área privada dos terrenos. Depois que os três amarraram seus cavalos ao lado
do cavalo de Richard, Cara e Nicci seguiram Zedd quando ele passou os pés por
cima da corrente.
Esse claramente não era um lugar onde forasteiros eram benvindos . O
jardim isolado estava protegido da visão pública por uma fileira de altos elmos e
um denso muro de Juníperos sempre verdes. Através dos grossos galhos das
grandes árvores Nicci viu relances dos muros brancos do Palácio das Confessoras
assomando-se ali perto, envolvendo e abrigando o cemitério arborizado .
Por causa do jeito como ele ficava escondido , Nicci esperava que ele
fosse pequeno, mas o lugar onde as Confessoras eram enterradas na verdade era
bem grande. Árvores estavam posicionadas para bloquear a abertura e dar a cada
seção do cemitério um clima intimista. Pela maneira como ele estava composto,
com um caminho e uma peque na colunata coberta por trepadeiras convidando as
pessoas a aproximarem -se do Palácio, aparentemente a intenção era que ele fosse
acessado solenemente a partir do Palácio através de elegantes portas duplas
envidraçadas. Na luz cinzenta o lugar tranquilo so b a cobertura das árvores tinha
um toque sagrado.
Eles encontraram Richard sobre uma suave elevação na qual estaria o
jardim sombreado se estivesse ensolarado , parado no chuvisco diante de um
monumento de pedra polida , deslizando seus dedos nas letras gravadas no granito ,
nas letras do nome KAHLAN.
Em algum lugar nos terrenos do Palácio das Confessoras Richard havia
conseguido encontrar pás e picaretas . Elas estavam de prontidão nas

359
proximidades . Observando a área, Nicci viu que havia locais de armazenagem para
coveiros instalados entre sebes parcialmente escondidos fazendo a curva em canto
do Palácio e concluiu que Richard as tinha conseguido ali .
Enquanto aproximava-se silenciosamente dele, Nicci soube que Richard
estava à beira de al go potencialmente muito perigoso ... para ele. Ela ficou atrás
dele, as mãos unidas , esperando, enquanto ele tocava carinhosamente o nome de
Kahlan na rocha.
— Richard, — finalmente Nicci disse com uma voz suave , sentindo a
necessidade de um tom reverente em um lugar assim. — espero que você pense
em tudo que falei a você , e se as coisas não acontecerem do jeito que nesse
momento você acredita que acontecerão , saiba que todos nós o ajudaremos da
maneira que pudermos.
Ele desviou do nome dela na rocha . — Não fique preocupada comigo ,
Nicci. Não há qualquer cosia embaixo dessa terra . Ela não está aqui . Mostrarei
isso para todos vocês e então terão que acreditar em mim . Vou pegar minha vida
de volta. Quando eu fizer iss o, então todos vocês entenderão que algo está muito
errado. Então teremos que trabalhar para descobrirmos o que está acontecendo e
vamos encontrar Kahlan.
Após encarar o olhar dela por um momento , aguardando para ver se ela
ousaria desafiá -lo, Richard, sem qualquer outra palavra, agarrou a pá e com um
forte empurrão do pé, enterrou a lâmina na terra gramada levemente amontoada
na frente da lápide da Madre Confessora morta.
Zedd ficou perto dali, em silêncio , imóvel, enquanto observava. Ele
trouxera duas lanternas com ele . Elas estavam sobre um banco de pedra próximo ,
gerando um fraco mas constante brilho na umidade . A garoa estava gerando uma
névoa no solo. Embora o céu estivesse completamente coberto por nuvens
cinzentas, pela fraca luz Nicci achou que devia ser pouco depois do pôr do sol .
Esta sendo a noite mais escura da lua nova , e com espessas nuvens para esconder
até as estrelas, esta seria uma das noites mais escuras .
Mesmo sem a garoa e a escuridão que aproximava -se, era um momento
terrível para estar desenterrando cadáveres .
Quando Richard trabalhava com uma espécie de raiva controlada mas
focada, Cara finalmente pegou outra pá. — Quanto mais cedo acabarmos com isso ,
melhor.
Ela enfiou a pá no chão úmido e começou a ajudar Richard a cavar. Zedd
ficou ali perto, silencioso e sério enquanto observava . Nicci teria ajudado a acabar
com aquilo, mas ela duvidava que mais do que duas pessoas teriam espaço para
cavarem sem atrapalharem uma a outra . Ela poderia ter usado magia para realizar
o serviço de abr ir o solo, mas teve uma forte sensação de que Zedd não teria
aprovado, de que ele queria que esse fosse um esforço de Richard, com seus
músculos , seu suor. Trabalho dele.
Enquanto a luz gradualmente sumia , Richard e Cara cavaram cada vez
mais fundo. Tiveram que usar a picareta para atravessar as grossas raízes
entrelaçadas no local do túmulo . Raízes grandes assim disseram a Nicci que o
túmulo devia ser mais antigo do que Richard acreditava. Se ele percebeu isso , não
mencionou enquanto trabalhava . Nicci supôs que de alguma forma ele poderia
estar certo sobre este não ser um túmulo verdadeiro , o que explicaria porque as
raízes ficaram tão grossas quanto estavam . Se Richard estivesse certo , apenas um
pequeno buraco deveria ter sido cavado entre elas , somente grande o suficiente
para um recipiente cerimonial contendo cinzas ter sido enterrado, mas ela não
acreditou nisso em momento algum . De pá em pá, a pilha de terra negra ao lado

360
do buraco ficava cada vez maior .
Ainda que Zedd nada falasse enquanto observ ava, Nicci podia ler nas
profundas linhas no rosto dele que , momento a momento, ele estava ficando cada
vez mais irritado com a exumação da Madre Confessora, mesmo se isso resolvesse
o assunto. Parecia que ele tinha mil coisas a dizer , todas presas dentro dele. Nicci
pensou que ele aguardaria até depois que Richard encontrasse a verdade enterrada ,
mas pela expressão séria no rosto do mago , ela não achava que quando ele
finalmente falasse isso seria algo agradável ou compreensivo. Esse era um
comportamento que passou do limite com ele .
Quando as cabeças de Richard e Cara, pingando suor e água da chuva ,
estavam ao mesmo nível com a superfície do chão , a pá de Richard repentinamente
bateu contra algo que parecia sólido .
Ele e Cara pararam. Richard pareceu surpreso e confuso; de acordo com
a história dele, não deveria haver qualquer coisa na cova , exceto talvez um
pequeno recipiente com cinzas , e era difícil acreditar que um recipiente como esse
estaria enterrado tão fundo .
— Tem que ser um reci piente para as cinzas, — ele finalmente falou
quando olhou confuso para Zedd. — tem que ser. Você não teria simplesmente
jogado cinzas no buraco no chão . No funeral eles teriam usado algum tipo de
receptáculo para as cinzas que você fez eles pensarem que eram de Kahlan.
Zedd nada falou.
Cara observou Richard por um momento e então enterrou a pá no solo .
Ela também emitiu um som abafado . Com a parte de trás do pulso ela afastou uma
mecha de cabelo loiro do rosto quando olhou para Nicci.
— Bem, parece que você encontrou alg uma coisa. — a voz ameaçadora
de Zedd pareceu espalhar-se através da baixa neblina que estava sobre o chão no
cemitério privado. — Acho que devemos ver o que é .
Richard ficou olhando para seu avô durante um momento , e então voltou
a cavar. Não levou muito tempo até que ele e Cara deixassem exposta uma
superfície plana. Estava escuro demais para enxergar claramente , mas Nicci sabia
o que era aquilo.
Era a verdade prestes a ser descoberta .
Era o fim da alucinação de Richard.
— Eu não entendo. — Richard murmurou, confuso com o tamanho
daquilo que eles estavam desenterrando .
— Limpe a parte de cima. — Zedd ordenou com desgosto malmente
contido.
Richard e Cara trabalharam cuidadosamente mas rapidamente
removeram a terra molhada daquilo que , estava tornando -se bem claro, era um
caixão. Quando eles o deixaram totalmente exposto , Zedd ordenou que saíssem
do buraco que cavaram .
O velho mago ergueu as mãos sobre a cova aberta e virou as palmas para
cima. Enquanto Richard, Cara, e Nicci observavam , o pesado caixão começ ou a
erguer-se. Terra caiu quando o longo objeto flutuou saindo do escuro buraco .
Afastando-se da fenda aberta no solo sagrado , Zedd usou o seu Dom para depositar
gentilmente o caixão sobre a grama ao lado da cova aberta .
O exterior estava entalhado de forma elaborada com figuras de
samambaias entrelaçadas cobertas com prata . De forma reverente, era algo
tristemente belo . Richard só conseguia olhar fixamente apavorado com o que o
caixão poderia conter. — Abra ele. — Zedd ordenou.
Richard olhou para ele durante um momento.

361
— Abra ele. — Zedd repetiu.
Richard finalmente ajoelhou -se perto do caixão coberto com prata e usou
a ponta de sua pá para cuidadosamente soltar o topo. Cara pegou as duas lanternas ,
entregando uma para Zedd. Ela segurou a outra lanterna bem alto sobre o ombro
de Richard para ajudá-lo a enxergar.
Quando ela finalmente soltou , Richard levantou a pesada tampa o
suficiente para deslizar a parte de cima para o lado .
O brilho da lanterna de Cara espalhou-se sobre um cadáver decomposto ,
agora quase inteiramente esquelético . A cuidadosa confecção do caixão parecia
ter até agora mantido o corpo seco em sua longa jornada em direção ao pó . Os
ossos estavam com manchas do enterro por longo período e do inescapável
processo de deterioração . Um punhado de longo cabelo , a maior parte ainda
grudado no crânio, jazia sobre os ombros . Restava pouco tecido , a maior parte
tecido conectivo , especialmente aquele mantendo os ossos dos dedos unidos .
Mesmo após esse longo tempo depois da morte, aqueles dedos ainda seguravam
um buquê de flores corroído.
O corpo da Madre Confessora estava usando um vestido branco de seda
elegante de estilo simples, de corte quadrado abaixo da linha do pescoço, que
agora revelava costelas nuas .
O buquê preso nas mãos dela tinha sido enrolado por um laço pérola com
uma larga fita dourada presa nele . Na fita dourada, em letras feitas com linha
prateada, estava escrito, “Adorada Madre Confessora, Kahlan Amnell. Ela sempre
estará em nossos corações ”.
Dificilmente ainda poderia haver qualquer dúvida em relação ao
verdadeiro destino da Madre Confessora, ou sobre a realidade de que aquilo que
Richard tão fortemente acreditava serem suas memórias não eram mais do que
doces ilusões agora transformadas em pó .
Richard, com seu peito inflando , sua respiração difícil , só conseguia
olhar dentro do caixão aberto para os restos esqueléticos , o vestido branco, a fita
dourada em volta dos fragmentos negros do que um dia foi um lindo buquê de
flores.
Nicci sentiu náus eas.
— Está satisfeito agora? — Zedd perguntou em um tom controlado de
fúria latente.
— Eu não entendo. — Richard sussurrou, incapaz de desviar os olhos da
visão macabra.
— Não entende? Acho que isso parece bem claro. — Zedd falou para ele.
— Mas eu sei que ela não está enterrada aqui . Não consigo explicar isso .
Não entendo a contradição com aquilo que eu sei que é verdade .
Zedd juntou as mãos. — Não há contradição para entender . Contradições
não existem.
— Sim, mas eu sei...
— Nona Regra do Mago : uma contradição não pode existir na realidade .
Não parcialmente , não em seu todo. Acreditar em uma contradição é abdicar de
sua crença na existência do mundo ao seu redor e da natureza das coisas nele ,
para ao invés disso abraçar qualquer impulso aleatório que atenda sua fantasia...
imaginar que algo é real simplesmente porque você deseja que fosse .
— Uma coisa é o que ela é , ela é ela mesma. Não pode haver
contradições .
— Mas Zedd, eu tenho que acreditar...
— Ah, você acredita. Quer dizer que a realidade desse caixão e do corpo

362
da Madre Confessora enterrado há muito tempo mostrou a você algo que não
esperava e não quer aceitar e então você ao invés disso deseja refugiar -se no
nevoeiro cegante da fé . É isso que você está querendo dizer?
— Bem, nesse caso...
— A fé é um dispositivo de auto ilusão , uma prestidigitação d e mãos
feita com palavras e emoções baseadas em qualquer noção irracional que pode ser
imaginada. A fé é a tentativa de coagir a verdade para que ela renda -se ao impulso.
Em termos simples, ela está tentando soprar vida em uma mentira ao procurar
ofuscar a realidade com a beleza de desejos . A fé é o refúgio dos tolos , dos
ignorantes, e dos iludidos , que não pensam.
— Na realidade, as contradições não podem existir . Para acreditar nelas
você deve abandonar a coisa mais importante que você possui : a sua mente
racional. A aposta para tal barganha é a sua vida . Em uma troca como essa, você
sempre perde o que você tem em jogo .
Richard passou os dedos através do cabelo mo lhado. — Mas Zedd, tem
alguma coisa errada aqui . Não sei o quê, mas sei que tem. Você tem que me ajudar .
— Acabei de ajudar. Permiti que você nos mostrasse a prova da qual
você mesmo falou. Aqui está, nesse caixão. Admito que isso não é tão desejável
quanto aquilo que você queria que fosse verdade , mas a realidade disso não pode
ser evitada. Isso é o que você procura . Essa é Kahlan Amnell, a Madre Confessora ,
exatamente como está escrito na lápide .
Zedd arqueou uma sobrancelha quando inclinou um pouco em direção a
seu neto. — A menos que você possa mostrar que isso é algum tipo de embuste ,
que alguém por alguma razão enterrou isso aqui como parte de um trote elaborado
só para fazer parecer que você está errado e todos os outros estão certos . Isso
pareceria uma alegação muito fraca , se você me perguntar . Eu temo que a partir
da clara evidência bem aqui es ta seja a realidade... a prova que você buscava... e
não há contradição .
Richard olhou para o corpo morto há muito tempo diante dele .
— Tem alguma coisa errada. Isso não pode ser verdade . Simplesmente
não pode ser.
Os músculos na mandíbula de Zedd flexionaram. — Richard, permiti a
você essa horrível indulgência quando com todo o direito eu não deveria , agora
diga-me porque você não tem a espada . Onde está a Espada da Verdade?
A chuva batia suavemente na cobertura de folhas acima enquanto o avô
de Richard esperava. Richard olhou fixamente para o caixão .
— Dei a espada para Shota em troca da informação que eu precisava .
Os olhos de Zedd ficaram arregalados . — Você fez o quê!
— Tive que fazer isso. — Richard falou sem olhar para seu avô .
— Você teve que fazer? Você teve!
— Sim. — respondeu Richard com a voz fraca.
— Em troca por qual informação ?
Richard colocou os cotovelos sobre a borda do caixão enquanto seu rosto
mergulhava nas mãos . — Em troca por aquilo que pudesse me ajudar a encontrar
a verdade sobre o que está acontecendo . Preciso de respostas . Preciso saber como
encontrar Kahlan.
Furioso, Zedd apontou o dedo para o caixão . — Ali está Kahlan Amnell!
Bem onde a lápide sempre disse que ela está enterrada . E que informação, oh, tão
valiosa, Shota deu a você depois que o enganou para ganhar a sua espada?
Richard não fez qualquer esforço para negar a afirmação de que foi
enganado perdendo a espada .

363
— “Cadeia de Fogo”. — ele disse. — Ela falou para mim “ Cadeia de
Fogo”, mas ela não sabia o que isso significava . Ela disse que eu devo encontrar
o lugar dos ossos no Nada Profundo .
— O “Nada Profundo”. — Zedd zombou. — ele olhou para o céu escuro
enquanto suspirava. — Suponho que Shota não foi capaz de dizer a você o que é
esse “Nada Profundo”.
Richard balançou a cabeça mas não levantou os olhos . — Ela também
falou para ter cuidado com a “víbora com quatro cabeças” .
Zedd soltou outro suspiro furioso . — Não me diga, nem ela nem você
fazem alguma ideia do que isso significa .
Outra vez, Richard balançou a cabeça sem olhar para seu avô .
— É isso? Esse é o grande prêmio de informação valiosa que você
conseguiu em troca pela Espada da Verdade?
Richard hesitou. — Houve mais uma coisa. — ele falou tão suavemente
que mal conseguiu ser ouvido em meio ao leve sussurro da chuva . — Shota disse
que aquilo que eu busco ... está enterrado há muito tempo .
A fúria latente de Zedd ameaçou explodir. — Ali, — ele falou , esticando
um dedo para apontar. — ali está o que você busca : Kahlan Amnell, a Madre
Confessora, enterrada há muito tempo .
Richard, de cabeça baixa, nada falou.
— Você trocou a Espada da Verdade por isso. Uma arma de incalculável
valor. Uma arma que pode derrubar n ão apenas os malignos mas os bons também .
Uma arma repassada pelos magos dos tempos antigos , destinada a ser confiada
somente a uns poucos selecionados . Uma arma confiada a você . E você entregou -
a para uma Bruxa.
— Você ao menos tem alguma ideia daquilo que eu tive que passar para
recuperar a Espada da Verdade de Shota na última vez em que Shota colocou as
mãos nela?
Richard balançou a cabeça enquanto olhava para o chão ao lado do
caixão, parecendo como se ele não ou sasse testar sua voz .
Nicci sabia que Richard tinha várias coisas para dizer em sua própria
defesa, várias coisas que tinham a ver com seu raciocínio por trás de suas crenças
e ações, mas ele não disse qualquer uma delas mesmo quando teve chance .
Enquanto seu avô gritava com ele , ele ficou ajoelhado em silêncio , com a cabeça
pendurada, ao lado do caixão aberto que guardava o fim de sua fantasia .
— Confiei a você algo de grande valor . Pensei que um objeto tão
perigoso estava seguro em suas mãos . Richard, você me desapontou... você
desapontou a todos... para que pudesse perseguir um sonho . Bem, aqui está, ossos
enterrados há muito tempo . Espero que você considere a troca justa , mas eu
certamente não considero .
Cara estava ali perto, segurando a lanterna , seu cabelo colado na cabeça
pela chuva lenta mas constante . Parecia como se ela desejasse defender Richard,
mas não conseguia pensar em algo para dizer . Nicci, igualmente, temeu dizer
qualquer coisa. Ela sabia que naquele momento qualquer coisa que falassem
apenas tornaria a coisa pior . Somente o suave chiado da chuva contra as folhas
preenchia a noite nebulosa, silenciosa .
— Zedd, — Richard disse de forma hesitante. — sinto muito.
— Sentir muito não vai trazê -la de volta das garras de Shota. Sentir
muito não salvará aquelas pessoas que Samuel terá sob aquela espada . Amo você
como a um filho, Richard, e sempre amarei , mas nunca estive tão desapontado
com você desse jeito . Eu jamais acreditaria que você faria algo tão impensado e

364
descuidado.
Richard assentiu, sem querer justificar suas ações .
O coração de Nicci estava parti ndo por ele.
— Deixarei você para enterrar a Madre Confessora enquanto vou tentar
pensar em um jeito de pegar a espada de volta de uma Bruxa que foi muito mais
esperta do que o meu neto . Você deveria perceber que pode muito bem ser
responsável por aquilo que acontecer em decorrência disso .
Richard assentiu.
— Bom. Fico feliz que ao menos isso você entenda . — ele virou para
Cara e Nicci, a expressão nos olhos dele estava tão intimidadora quanto a
expressão de um Rahl. — Quero que vocês duas voltem para a Fortaleza comigo .
Quero saber tudo sobre esse assunto da besta . Tudo sobre isso.
— Devo ficar e tomar conta de Lorde Rahl. — Cara disse.
— Não, — Zedd falou para ela. — você virá comigo e contará em
detalhes tudo que aconteceu com a Bruxa. Quero saber cada palavra que saiu da
boca de Shota.
Cara pareceu transtornada. — Zedd, eu não posso...
— Vá com ele, Cara. — Richard disse para ela em um suave comando .
— Faça como ele pede. Por favor.
Nicci reconheceu o quanto Richard sentia-se impotente em defender suas
ações na presença do seu avô , independente do quanto ele pudesse estar de que
fez o que achou necessário . Ela entendeu porque sempre esteve exatamente
impotente assim na presença de sua mãe quando sua mãe dizia a ela , como
frequentemente fazia , que ela agiu de forma errada . Nicci nunca tinha sido capaz
de defender-se contra o que a mãe dela pensava que ela deveria ter feito . Sua mãe
sempre conseguiu sem esforço fazer as escolhas de Nicci parecerem
insignificantes e egoístas . Não importava quanta idade ela tivesse , ela ainda era
uma criança diante daqueles que a criaram . Mesmo quando ela estivera no Palácio
dos Profetas por anos , sua mãe ainda podia fazer ela sentir -se com dez anos e tola .
Porque Richard amava e respeitava seu avô , na verdade isso tornava tudo
aquilo ainda mais difícil para ele do que foi para Nicci. A despeito de tudo que
Richard tinha realizado , de sua força, seu conhecimento , sua habilidade, sua
destreza, ele não podia discutir ou racionalizar sua forma fora da realidade de ter
desapontado seu avô , e, porque ele o amava e respeitava , isso machucava ainda
mais.
— Vá em frente, — Nicci disse para Cara enquanto colocava suavemente
a mão nas costas da mulher . — Faça o que ele diz por enquanto . Acho que Richard
poderia aproveitar algum tempo sozinho para pensar nisso e recompor -se.
Cara, seu olhar saltando entre Nicci e Richard, pareceu achar que isso
era algo com o qual Nicci poderia ser melhor capacitada par a tratar e então
assentiu.
— Você também. — falou Zedd para Nicci. — A Madre Confessora
precisa ser colocada para descansar ; deixe que Richard cuide disso . Preciso saber
a sua parte nisso, cada pedacinho, para que eu possa tentar descobrir como
reverter todos os problemas que nasceram não apenas disto , mas daquilo que
Jagang fez.
— Está certo, — disse Nicci. — peguem os cavalos e logo eu estarei lá .
Zedd direcionou um breve último olhar para Richard ainda de joelhos ao
lado do caixão antes de concordar acenando com a cabeça para Nicci.
Depois que ele desapareceu com Cara através dos Juníperos e dentro do
nevoeiro, Nicci agachou ao lado de Richard e colocou a mão nas costas dele entre

365
os ombros arriados dele.
— Tudo ficará bem, Richard.
— Fico imaginando se algum dia alguma coisa ficará bem outra vez .
— Pode não parecer assim nesse momento , mas ficará. Zedd vai superar
a sua raiva do momento e entenderá que você estava fazendo o seu melhor para
agir com responsabilidade . Sei que ele ama você e que não pret endia dizer aquilo
para magoá-lo tanto.
Richard assentiu sem levantar os olhos enquanto estava ajoelhado na
lama ao lado do caixão aberto que guardava o cadáver daquela que estava morta
há um longo tempo, Kahlan Amnell, a mulher que ele imaginou ter sido o seu
amor.
— Nicci, — ele finalmente falou tão suavemente que ela mal conseguiu
ouvir com o som da leve chuva. — você faria uma coisa para mim ?
— Qualquer coisa, Richard.
— Uma última vez ... seja a Senhora da Morte para mim.
Ela esfregou as costas dele e então levantou, lágrimas misturando -se
com a chuva em seu rosto . Através de pura força de vontade , contendo o soluço
que lutava para escapar , ela fez sua voz permanecer firme .
— Não posso Richard. Você me ensinou a abraçar a vida .

366
C A P Í T U L O 4 9

A pesada porta com painéis abriu parcialmente . Rikka enfiou a cabeça


dentro da sala silenciosa . — Tem alguém vindo .
Nicci empurrou sua cadeira almofadada da mesa polida da biblioteca . —
Vindo?
— Subindo em direção da Fortaleza .
— Você sabe quem? — ela perguntou quando levantou .
Rikka balançou a cabeça. — Zedd acabou de me falar que os escudos o
alertaram de que alguém estava subindo a estrada . Ele pensou que você devia
saber. Vou dizer uma coisa para você , toda essa magia voando por toda parte nesse
lugar faz a minha pele formigar.
— Vou encontrar Richard.
Rikka assentiu antes de desaparecer saindo pelo portal . Nicci devolveu
rapidamente o livro que estivera estudando para a vasta extensão de prateleiras
de mogno que preenchiam a tranquila biblioteca . O livro era um tedioso relatório
sobre atividades na Fortaleza durante a Grande Guerra . Nicci achou bastante
estranho, ler sobre todas as pessoas que um dia viveram na Fortaleza do Mago há
milhares de anos. Parecia uma história desconectada exceto quando ela lembrava
a si mesma de forma intermitente que eles estavam falando a respeito do lugar
onde ela estava. Ela considerou como , em contraste, o Palácio dos Profetas havia
sido tão cheio de vida e atividade por tanto tempo . Nicci não conseguia imaginar
o Palácio dos Profetas vazio de todas as almas a não ser umas poucas , e a Fortaleza
era vastamente maior. É claro, agora o Palácio não existia mais enquanto a
Fortaleza ainda resistia .
Nicci não estivera realmente interessada no livro que ela estivera lendo .
Ele era entediante mas ela não se importava . Era meramente algo para ocupar o
seu tempo. Ela não conseguia forçar a si mesma a concentrar -se em qualquer coisa
que fosse cativante ou que exigisse que ela colocasse qualquer grande esforço de
pensamento. Ela estava distraída demais .
A lua nova do momento em que eles cavaram a cova da Madre
Confessora havia crescido em uma lua cheia e agora estava aproximando -se do
seu último quarto outra vez , e nada ainda tinha mudado muito . Poucos dias depois
de exumar o corpo, Zedd falou a Richard que o amava e que sentia muito por ter
sido tão duro com ele quando talvez devesse ter descoberto um pouco mais antes
de dizer as coisas que disse . Zedd prom eteu que eles encontrariam uma maneira
de pegar de volta a espada de Richard e que tudo ficaria bem .
Isso pode ter sido sincero , e pode ter sido verdade, mas para Richard a
dor de uma falha pessoal como aquela era difícil de colocar de volta na garrafa .
Ela não tinha apenas desapontado e enfurecido seu avô ; ele falhou em provar que
o seu sonho era de fato a verdade . Havia colocado tudo que tinha naquele esforço .
Tivera certeza e no final havia apenas provado que estava errado .
Richard apenas assentiu diante das palavras Zedd. Nicci não achava que
importava muito para ele se Zedd tinha suavizado seu ponto de vista . Ele chegara
ao final de suas ideias , de suas esperanças, e de seus esforços . Nada o ajudara.
Após aquela noite, a vida desapareceu dele.
Zedd havia interrogado Cara e Nicci durante horas naquela primeira
noite. Nicci ficou surpresa em ouvir de Cara o que Shota tinha falado sobre a

367
besta tornar-se uma Besta Sangrenta porque Nicci havia inadvertidament e
fornecido a ela uma “amostra” do sangue ancestral de Richard. Ela ficou
horrorizada em saber que foi responsável por intensificar o perigo para Richard.
Ainda admirado como Nicci conseguiu salvar a vida de Richard, Zedd
havia garantido a ela que se ela não tivesse agido , Richard certamente teria
morrido naquele momento e ali mesmo . Falou que ela dera a Richard uma chance
de viver, e agora eles poderiam trabalhar para solucionar o problema da besta que
as Irmãs de Jagang criaram, assim como as estranhas alucinações de Richard e a
questão de recuperar a espada dele . Pelo que Shota revelou sobre a besta, somado
com o que Nicci já sabia, não parecia para Nicci que eles tinham muita chance de
sucesso. Ela não tinha a mínima ideia de como ao menos começar a destruir uma
besta como essa gerada através de poderes sombrios.
Ela também ficara envergonhada em ouvir Cara falando sobre como
Shota tinha revelado a Richard o plano de Cara para que Nicci conquistasse o
interesse de Richard romantica mente. Zedd, felizmente, não fez quaisquer
comentários nessa parte da história de Cara.
Isso, entre outras coisas , deixara Nicci sentindo-se bastante
desesperançosa... e impotente . A Ordem Imperial estava seguindo sem controle
através do Mundo Novo , a besta estava caçando Richard, e ele não era o mesmo ,
para falar o mínimo.
De certas formas, isso fazia ela lembrar de sua atitude fria em relação à
vida, na época antes de Richard. Fora ensinada que nasceu sortuda em todos os
sentidos , e que por ter uma habilidade era seu dever devotar-se àqueles em
necessidade. Não importava o quanto traba lhasse duro, as necessidades sempre
superavam a sua capacidade de atendê-las, deixando-a perpetuamente em dívida
para as sempre piores vidas de outros enquanto sua própria vida não era dela . O
sentimento dela a respeito do que estava acontecendo agora com a besta e as
alucinações de Richard eram diferentes em quase todas as formas , exceto que eram
do mesmo jeito no modo como davam a ela aquela familiar sensação de vazio sem
esperança.
Richard tinha passado os longos dias , desde que abrira o túmulo e
descobriu a verdade, sozinho... com a exceção de que Cara, após responder todas
as perguntas tediosas de Zedd sobre tudo que ela sabia do que aconteceu com
Shota, recusou-se a deixar o lado de Richard por qualquer razão. Uma vez que
Richard não estava com humor para conversar, Cara transformara-se na sombra
silenciosa dele.
Era estranho ver os dois juntos , totalmente à vontade um com o outro
mesmo em um momento como esse . Para Nicci não parecia que os dois ao mesmo
precisassem conversar , e ainda assim eles conseguiam, com um olhar , com um
leve movimento dos ombros , ou com nada, o tempo todo entenderem um ao outro .
Nicci sentiu-se como uma forasteira indesejada no sofrimento dele e
então ela o deixava em paz. Ela permaneceu o mais próximo que podia , para que
estivesse perto caso a besta atacasse , mas ficava fora da vista dele e o deixava em
sua solidão.
Os primeiros quatro ou cinco dias após chegar na Fortaleza Richard tinha
passado no Palácio das Confessoras... perambulando pelas magníficas salas e
vasta rede de co rredores. Nicci ficou em um quarto de hóspedes no Palácio , fora
de vista, enquanto Richard vagava sem direção pelo lugar vazio . Depois disso , ele
saiu e e perambulou pela cidade de Aydindril por meia dúzia de dias , caminhando
pelas ruas e vielas como se estivesse revivendo a vida que um dia estivera ali . Foi
muito mais difícil para Nicci ficar perto dele quando ele caminhava o dia todo

368
pela cidade. Depois ele passara mais dias ainda vagando pelas florestas das
montanhas ao redor de Aydindril, às vezes não retornando nem mesmo a noite.
Richard estava em casa na floresta , então Nicci decidira não segui-lo, sabendo o
quanto teria sido difícil para ela impedir que Richard soubesse que ela estava ali .
Ela ficou ligeiramente consolada por sua conexão de magia com ele que permitiu
a ela sempre estar consciente sobre em qual direção ele estava e aproximadamente
o quão distante. Porém, quando ele não retornou durante a noite , Nicci andou de
um lado para outro , sem conseguir dormir .
Zedd finalmente pediu a Richard para que, por favor, ficasse na
Fortaleza pois caso a besta atacasse , Zedd e Nicci pudessem ajudar a detê -la.
Richard tinha feito como ele pedira sem qualquer comentário ou objeção . Ele
passou os dias recentes , ao invés de perambulando no Palácio , na cidade, ou nas
florestas, vagando pelas muralhas externas da Fortaleza , olhando fixamente para
o horizonte.
Nicci queria desesperadamente fazer algo para ajudá -lo, mas Zedd
insistira que não havia o que fazer a não ser esperar e ver se o tempo começaria
a trazê-lo de volta para a realidade de que ele apenas sonhara com seu
relacionamento com Kahlan durante o tempo em que estivera inconsciente . Nesse
caso, Nicci realmente não achou que o tempo resolveria alguma coisa . Ela estivera
com Richard tempo suficiente para perceber que isso era algo maior . Ela
acreditava que ele precisava de algum tipo de ajuda , mas não sabia qual poderia
ser essa ajuda.
Nicci desceu apressada o corredor com painéis de madeira do lado de
fora da biblioteca, seus pés velozes sobre grossos tapetes. Seguiu rapidamente
através do labirinto de degraus e passagens , usando o senso de sua conexão com
Richard para guiá-la, deixando aquela linha de magia levá -la aonde ela poderia
ir, ao invés de tentar deliberadamente lembrar e encon trar seu caminho através da
Fortaleza.
Enquanto ela aproximava -se cada vez mais dele, relembrava sobre o
beijo que dera nele para conectá -los para que pudesse encontrá -lo. Sentia-se
culpada por causa daquele beijo , mesmo se fazer aquilo tivesse sido
dolorosamente maravilhoso. Era muito mais do que precisava ter feito . Ela poderia
simplesmente ter encostado um dedo na mão dele , ou em um ombro , e estabelecido
uma ligação sem que ele sentisse qualquer coisa .
Mas Cara havia acabado de falar como talvez ela precisasse fazer ele
notar mais a presença dela e encheu sua mente com os fortes pensamentos das
possibilidades . Aquele beijo certamente a teria plantado firmemente nos
pensamentos dele . Porém, de certo modo ela senti a que aquilo foi apressado
demais, considerando o estado mental dele ; ele estava apaixonado por outra
pessoa, mesmo se fosse um sonho , e Nicci não tinha respeitado isso . De uma certa
maneira, ela estava arrependida em ter dado aquele beijo nele . De outra m aneira,
ela gostaria de ter aplicado nos lábios dele ao invés da bochecha . Como Shota fez.
Ouvir Cara contando a eles como Shota o havia beijado e tentado fazer
ele ficar com ela fizera o sangue dela ferver . Nicci sabia como a Bruxa sentia-
se... mas isso não fazia ela sentir -se melhor.
Nicci daria tudo para ser capaz de abraçá -lo agora, confortá-lo, dizer a
ele que tudo ficaria bem por nenhuma outra razão a não ser simplesmente tentar
fazer ele sentir -se ao menos um pouco melhor , garantir a ele que havia outras
pessoas ao redor que importavam -se com ele.
Mas ela sabia que esse não era o momento nem era m as circunstâncias
para tais coisas.

369
Ao mesmo tempo, ela sabia que isso não poderia continuar . Ele
simplesmente não poderia continuar assim . A vida dele não podia ficar nesse
estado estático, à deriva sem a sua direção consciente . Ele tinha que recompor -
se.
Nicci avançou apressada, acelerando o passo, pelo infinito labirinto de
corredores e através de salas vazias mas grandiosas , de repente sentindo , por
alguma razão, a urgente necessidade de estar com ele .
Richard estava parado na beira do muro , um braço repousando sobre um
massivo merlão de cada lado , enquanto ele olhava através da ameia. Parecia como
estar no limite do mundo . Traços cinzentos de sombra deslizavam lentamente
sobre as colinas e campos longe abaixo enquanto suas nuvens geradoras os
conduziam.
Ele parecia ter perdido toda a noção do tempo . Todo dia tornara -se a
mesma existência monótona, , sem sentido, vazia. Ele nem sabia quanto tempo
estivera parado na abertura no muro , olhando fixamente para nada em particular .
Com Kahlan morta, nada mais importava. Ele teve dificuldade em
imaginar porque algum dia importou. Agora ele não conseguia ao menos imaginar
com certeza que algum dia ela foi real .
Mas quer ela tivesse sido real ou não , isso estava acabado.
Cara estava perto . Ela sempre estava perto . De certo modo era
confortador, saber que ele sempre podia contar com ela para qualquer coisa .
Porém, de algumas formas , era irritante ter ela sempre ali , de modo que ele nunca
podia ter um momento de privacidade .
Ele imaginou se ela acreditava que estava perto o bastante para agarrá -
lo se ele pulasse.
Ela sabia que ela não estava .
Ele contemplou os pequeninos telhados amontoado s na cidade de
Aydindril longe lá embaixo. Por certos ângulos, ele sentia alguma afinidade pela
cidade. Ela estava vazia. Ele estava vazio . A vida havia desaparecido de ambos .
Desde que cavara a sepultura... ele não conseguia chamá -la de túmulo
de Kahlan, mesmo em sua mente, muito menos em voz alta... ele não achava mais
que houvesse alguma coisa pela qual viver . Se uma pessoa pudesse morrer apenas
pelo seu desejo, ele já estaria morto , mas a morte, quando convidada, de repente
ficara tímida. Os dias arrastavam-se infinitamente.
Ele ficou tão atordoado com aquele túmulo que pareceu que sua mente
havia sido embaralhada imediatamente . Pareceu como se tivesse perdido sua
capacidade de pensar . Nada que ele sabia fazia sentido . As coisas que ele pensou
serem verdade de alguma forma não eram mais . Todo o seu mundo tinha sido
virado de cabeça para baixo . Como ele poderia funcionar se não conseguia
diferenciar o que era real e o que não era ?
Ele não sabia o que mais fazer. Pela primeira vez em sua vida, ele estava
perplexo e derrotado pela forma como as coisas estavam . Ele sempre pareceu ter
uma variedade de opções que sabia que poderia tentar . Agora, ele não tinha. Havia
tentado tudo em que podia pensar . Nada disso funcionou . Ele estava no fim de sua
esperança, e nada mais restava .
E todo o tempo, em sua mente, ele continuava vendo o corpo dela no
caixão.
Ele via, ouvia, sentia, mas não conseguia pensar , não conseguia juntar
as coisas de uma forma que fizesse sentido . Era uma caminhante, viva, imitação
da morte... uma imitação pobre, ele acreditava . Que bem fazia viver se era desse
jeito? Ele ansiava apenas para que aquele sombrio, eterno abraço do nada o

370
levasse.
Ele estava tão além da mágoa , além da tristeza, além do luto, que havia
apenas uma impensável, vazia, cega e confusa agonia que jamais, por ao menos
um segundo, o libertaria tempo suficiente para que ele respirasse . Ele queria
desesperadamente escapar da verdade , recusar-se a permitir que ela fosse real ,
mas não podi a e isso o estava sufocando .
O vendo subindo na montanha agitou seu cabelo enquanto ele olhava
para uma queda vertiginosa de milhares de pés .
Que bem ale fazia para qualquer pessoa ? Ele desapontou Zedd. Entregou
para Shota a Espada da Verdade por nada de v alor. Nicci pensou que ele estava
louco, que estava delirando . Nem mesmo Cara acreditava nele, realmente
acreditava nele. Ele era o único que acreditava , e provou que estava errado
cavando a cova dela .
Ele achou que devia estar louco , que Nicci devia estar certa. Todos
estavam certos. Ele só poderia estar imaginando coisas . Ele podia ver nos olhos
de todos eles a forma como olhavam para ele , como se ele tivesse ficado maluco.
Richard contemplou a queda das rochas escuras do massivo muro externo
da Fortaleza. Elas desciam abaixo dele por milhares de pés em direção às rochas
e da floresta abaixo . Rajadas de vento subindo pela face do muro sopravam nele .
Era uma visão estonteante. Uma queda estonteante .
De que ele servia para qualquer pessoa , e mais ainda para si mesmo?
Ele espiou Cara com o canto do olho . Ela estava perto, mas não perto o
bastante.
Richard não via qualquer razão para continuar com a agonia . Não tinha
sua mente, e sua mente era a vida .
Ele não tinha Kahlan. Ela era a vida dele.
De acordo com o que todos disseram a ele , com o que ele viu no caixão
naquela noite terrível , ele nunca teve ela. Tudo isso foi apenas uma louca
alucinação. Um desejo. Um capricho.
Ele olhou para baixo novamente para a queda eterna da enorme muralha
no lado da Fortaleza , para as árvores e rochas espalhadas lá embaixo . Era um
longo, longo caminho até lá embaixo .
Ele lembrou de pessoas dizendo que pouco antes de morrer você revivia
sua vida.
Se fosse para ele reviver a sua vida , ele reviveria cada momento precioso
que teve com Kahlan.
Ou que ele achava que teve .
Era uma longa descida.
Um longo tempo para reviver momentos tão maravilhosos, românticos,
adoráveis. Um longo tempo para reviver cada momento precioso que passara com
ela.

371
C A P Í T U L O 5 0

Nicci abriu uma porta de carvalho com faixas de ferro para a clara luz
do dia. Nuvens brancas rechonchudas deslizavam acima em um céu azul cintilante
que em qualquer outro dia teria animado o espírito dela . Uma brisa fresca lançou
o cabelo dela no rosto. Ela afastou-o enquanto olhava descendo a estre ita ponte
até uma muralha ao longe. Richard estava além do final da ponte , no muro mais
distante da muralha , na abertura da ameia, olhando para baixo descendo a
montanha. Cara, ali perto, virou quando ouviu a porta.
Nicci cruzou apressada a ponte sobre jardins distantes lá embaixo . Ela
podia ver vários bancos de pedra no meio do jardim de rosas na base de uma torre
e na junção de diversos muros . Quando ela finalmente alcançou o lado de Richard
ele olhou, mostrando a ela um leve e rápido sorriso . Mesmo que ela soubesse que
o sorriso foi pouco mais do que uma educada formalidade isso aqueceu o seu
coração.
— Rikka veio avisar para mim que alguém aproxima -se da Fortaleza.
Pensei que deveria chamá -lo.
Cara, apenas há três passos de distância , chegou um pouco mais perto .
—Rikka sabe quem é?
Nicci balançou a cabeça . — Temo que não, e eu estou mais do que um
pouco preocupada.
Sem mover-se ou desviar os olhos do campo distante , Richard disse. —
São Ann e Nathan.
As sobrancelhas de Nicci ergueram-se com a surpresa . Ela olhou da
borda. Richard apontou para eles longe lá na estrada que seguia pela montanha
em direção à Fortaleza.
— São três cavaleiros. — falou Nicci.
Richard assentiu. — Parece que aquele pode ser Tom junto com eles .
Nicci inclinou um pouco mais passando de Richard e olhou a face do
muro de pedra. Era uma queda assustadora . Ocorreu a ela a sensação de que não
gostava do lugar onde ele estava posicionado .
Com uma das mãos no ombro dele para equilibrar -se, Nicci olhou outra
vez para os três cavalos subindo lentamente a estrada iluminada pelo sol . Eles
desapareceram brevemente sob árvores apenas para emergirem um momento mais
tarde enquanto continuavam em direção à Fortaleza .
Subitamente uma rajada de vento ameaçou desequilibrá -la do local no
imenso muro de pedra. Antes disso, o braço de Richard em volta da cintura dela
estabilizou -a. Ela recuou da borda instintivamente . Assim que ela estava em
posição segura , o braço protetor dele soltou-a.
— Você consegue ter certeza , daqui, que são Ann e Nathan? — ela
perguntou.
— Sim.
Nicci não estava especialmente animada em ver a Prelada outra vez .
Como uma Irmã da Luz e tendo morado no Palácio dos Profetas durante a maior
parte de sua vida, Nicci já tivera tudo que queria das Irmãs e da líder delas . De
muitas formas a Prelada era uma figura materna para ele , como foi para todas as
Irmãs, alguém que estava lá para lembrar a elas sempre que elas fossem um
desapontamento e ensinar a elas que tinham de redobrar seus esforços para

372
ajudarem outras pessoas em necessidade .
Quando ela era jovem , se o interesse pessoal erguesse a sua cabeça feia ,
a mãe de Nicci sempre estivera pronta para aplicar um tapa e derrubá-lo. Mais
tarde na vida de Nicci a Prelada assumiu essa mesma posição , mesmo que exibisse
um sorriso gentil . Tapa ou sorriso, aquilo era a mesma coisa : servidão, mesmo
que sob um nome mais suave.
Nathan Rahl era outro assunto . Ela realmente não conheceu o profeta .
Havia Irmãs, e especialmente Noviças, que tremiam com a simples menção do
nome dele. Entretanto, de acordo com o que todos sempre disseram , ele não era
simplesmente perigoso mas possivelmente desconcertante , o que, se fosse
verdade, possuía implicações perturbadoras pa ra a presente condição de Richard.
O profeta estivera sendo mantido em aposentos isolados por quase toda
sua vida, as Irmãs cuidavam não apenas das necessidades dele mas para que ele
jamais fugisse. As pessoas na cidade de Tanimura, onde localiza-se o Palácio,
ficavam tanto ansiosas quanto apavorad as com o profeta, com o que ele poderia
dizer a elas sobre o futuro . Os rumores que corriam entre as pessoas da cidade ,
eram de que ele certamente era maligno , já que ele conseguia dizer coisas sobre
o futuro deles. A habilidade dele tendia a levantar a ira de muitas pessoas ,
especialmente quando essa habilidade não era uma que pudesse facilmente ser
colocada a serviço dos desejos delas .
Porém, Nicci não estava muito preocupada com o que as pessoas falavam
sobre Nathan. Tinha experiência com pessoas realmente perigosas... com Jagang
representando apenas a mais recente no topo da lista de pessoas más dela .
— Seria melhor nós descermos até lá. — Nicci disse para Richard e Cara.
Richard ficou olhando para o campo . — Vá em frente, se quiser.
Ele soou como se não pudesse importar -se menos com o fato de que
alguém estava chegando , ou com quem fosse . Era óbvio que sua mente estava em
outro lugar e ele só queria que ela fosse embora .
Nicci afastou uma mecha de cabelo do rosto. — Não acha que você
deveria checar o que eles querem ? Afinal de contas, eles devem ter viajado um
longo caminho para chegarem até aqui . Tenho certeza de que não vieram trazer
leite e bolos.
Richard sacudiu um ombro, não mostrando reação diante da tentativa de
humor dela. — Zedd pode cuidar disso.
Nicci sentia tanta falta da luz nos olhos de Richard. Ela estava no final
de sua resistência diante da situação .
Ela olhou para a Mord-Sith e falou em um suave mas inconfundível
comando. — Cara, porque você não vai dar uma caminhada ? Por favor?
Cara, surpresa com tal incomum mas clara diretiva vindo de Nicci,
observou Richard parado na abertura no muro , olhando fixamente para longe , e
então acenou com a cabeça para Nicci de forma conspiratória . Nicci observou
Cara andar pela muralha antes de finalmente dirigir -se a Richard novamente, mas
dessa vez de uma forma audaciosamente direta .
— Richard, você tem que para com isso .
Enquanto ele contemplava a vasta cena abaixo , ele não respondeu .
Nicci sabia que não poderia falhar naquilo que tinha a dizer , que tinha
de realizar. Ela faria quase tudo para que Richard se importasse por tê -la em sua
vida, mas não queria conquistá -lo dessa maneira. Ela não queria ser a segunda
melhor coisa depois de um cadáver , ou uma substituta para um sonho que ele não
poderia tornar real . Se algum dia ela o tivesse , só teria ele porque ele a escolheu ,
não porque nada mais restara para ele . Houve uma época em que ela teria aceito

373
essa situação, mas agora nunca mais . Agora tinha respeito por si mesma, e tudo
por causa de Richard.
Mas além disso, esse não era o Richard que ela conheceu e amou . Mesmo
que ela nunca pudesse conquistá -lo, ela ainda não permitiria que ele afundasse no
terrível lugar sombrio no qual estava . Se ela pudesse dar a ele um necessário
empurrão de volta para cima em direção à vida , e isso fosse tudo que ela
conseguisse fazer por ele, então ela o faria.
Mesmo que ela tivesse de fazer o papel de antagonista para removê-lo
de sua queda em espiral , e ela não pudesse representar mais do que isso para ele ,
então ela o faria.
Ela pousou uma das mãos sobre o merlão de pedra , tornando-se
impossível de evitar, e assumiu um tom ainda mais agressivo.
— Você não vai lutar por aquilo em que acredita ?
— Eles podem lutar se quise rem. — a voz dele não soou desanimada ; ela
soou morta.
— Não foi isso que eu quis dizer . — Nicci agarrou o braço dele e
gentilmente, mas com firmeza, fez ele girar , virando-o de costas para a queda ,
forçando-o a encará-la. — Não vai lutar por si mesmo ?
Ele encarou o olhar dela mas não respondeu .
— Isso é porque Zedd falou que estava desapontado com você .
— Acho que a cova que eu cavei pode ter um pouco a ver com isso .
— Você pode pensar assim mas eu não . Porque deveria? Você já ficou
devastado e foi pressionado pelas coisas em outras ocasiões . Capturei você e
levei-o até o Mundo Antigo , e o que você fez ? Defendeu-se e agiu como você
mesmo e por suas próprias crenças , dentro dos limites daquilo que eu permitiria
a você fazer. Sendo quem você é você exe rceu o seu amor pela vida e isso mudou
a minha. Você mostrou a mim a verdade da alegria da vida e tudo que ela significa .
— Dessa vez você acordou após quase morrer para que eu, Cara e todos
os outros não acreditassem em sua recordação de Kahlan, mas isso nunca deteve
você. Você continuou defendendo suas convicções a despeito de tudo que
dissemos .
— O que estava naquele caixão é diferente , e eu diria que um pouco mais
do que um simples argumento quando alguém não acredita em você .
— É isso? Eu acho que não. Era um esqueleto. E daí?
— E daí? — a irritação surgiu nas feições dele . — Você está ficando
maluca? O que você quer dizer com , e daí?
— Longe de mim discutir o seu caso quando não acredito nele , mas não
procuro convencê -lo de que aquilo em que acredito seja a verdade como um
padrão. Eu gostaria de convencê -lo com os verdadeiros fatos , não com essa fraca
evidência.
— O que você quer dizer?
— Bem, foi o rosto de Kahlan que você viu para provar que realmente
era ela? Não, não poderia ser... não havia rosto . Apenas um crânio... nenhum
rosto, olhos, feições. O esqueleto estava usando o vestido da Madre Confessora.
E daí? Eu estive no Palácio das Confessoras e havia outros vestidos lá como
aquele.
— Então um nome bordado em uma faixa dourada é suficiente para
provar isso a você? Suficiente para levá -lo ao fim da sua busca , das suas crenças?
Depois de todas as coisas que Cara e eu dissemos a você , discutimos com você,
analisamos com você , de repente você sente que essa pálida evidência prova que
você está sofren do alucinações? Um esqueleto em um caixão segurando uma faixa

374
com o nome dela bordado é o bastante para subitamente convencê-lo de que
sonhou com ela, justamente como estivemos dizendo o tempo todo e você recusou -
se a acreditar? Não acha que a faixa é simp lesmente um pouquinho conveniente
demais?
Richard franziu a testa. — Aonde você quer chegar?
— Não acredito que seja isso que realmente está acontecendo com você .
Acho que você está errado em relação à suas lembranças mas não acredito que o
Richard que conheço poderia ser convencido pela evidência duvidosa naquele
túmulo. Isso nem mesmo é porque Zedd não acredita nas suas recordações mais
do que Cara e eu.
— Então do que se trata?
— Isso tudo é porque você acreditou que um cadáver em um caixão era
ela, pois estava com medo de que isso fosse verdade depois que o seu avô falou
que estava triste com você e que você o desapontou.
Richard começou a virar para ir embora , mas Nicci segurou a camisa
dele e puxou-o de volta, forçando-o a encará-la. — É disso que eu acho que trata -
se. — ela disse com feroz determinação . — Você está irritado porque o seu avô
falou que você estava errado , disse que você o desapontou .
— Talvez porque eu fiz isso .
— E daí?
Richard fez uma careta, confuso . — O que você quer dizer com, e daí ?
— Eu quis dizer , e daí se ele estiver desapontado com você . E daí se ele
pensa que você fez uma coisa estúpida . Você é dono de si. Fez o que achou que
devia fazer. Agiu porque pensou que tinha de agir e fazer as coisas qu e fez.
— Mas eu...
— Você o quê? Desapontou ele? Deixou ele furioso com aquilo que você
decidiu fazer? Ele esperava mais de você e você o desapontou ? Você caiu aos
olhos dele?
Richard engoliu em seco, não querendo admitir isso em voz alta .
Nicci levantou o queixo dele e fez com que olhasse dentro dos olhos
dela.
— Richard, você não tem obrigação de viver de acordo com as
expectativas de qualquer outra pessoa .
Ele piscou para ela , parecendo estar sem palavras .
— É a sua vida. — ela insistiu . — Foi você quem me ensinou isso . Você
fez o que achou que devia . Recusou a oferta de Shota porque Cara discordou de
você? Não. Teria recusado a oferta de S hota se soubesse que eu achava que você
estava errado em entregar a ela sua espada ? Ou teria recusado a oferta dela se nós
duas falássemos que você seria um tolo para aceitar ? Não, eu acho que não.
— E porque não? Porque você estava fazendo o que pensava que devia
fazer e não importando o quanto desejasse que nós concordássemos com você , no
final não importava o que pensávamos . Você tinha que agir baseado em sua
convicção. Você não fraquejou na decisão , você agiu. Fez o que sentiu que devia
fazer. Estava tomando a decisão baseado naquilo em que acreditava , por razões
que somente você poderia realmente entender, e essa era a coisa certa a fazer .
Isso não está correto ?
— Bem... sim.
— Então que diferença deveria fazer se o seu avô acha que você está
errado. Ele estava lá? Ele sabe tudo que você sabia naquele momento ? Seria muito
bom se ele acreditasse naq uilo em que você acreditou , se ele apoiasse você e
falasse “bom para você, Richard”, mas ele não fez isso. De repente isso torna a

375
sua decisão errada? Isso torna?
— Não.
— Então você não pode deixar isso dominar a sua mente . Às vezes as
pessoas que mais no s amam possuem as mais altas expectativas para nós , e às
vezes essas expectativas são idealizadas . Você fez o que teve que fazer , conforme
aquilo em que acreditava e que sabia , para encontrar as respostas que precisava
para solucionar o problema . Se todas as outras pessoas no mundo acham que você
está errado, mas você acredita que está certo , você tem que agir de acordo com o
que tem boa razão para acreditar . A quantidade daqueles que estão contra você
não mudam os fatos e você deve agir para encontrar os f atos, não para satisfazer
a multidão ou qualquer indivíduo em particular .
— Você não tem a responsabilidade de viver conforme as expectativas
de qualquer outra pessoa . Tem apenas que viver de acordo com as suas próprias
expectativas .
Um pouco da luz , do fogo, estava de volta aos atentos olhos cinzentos
dele. — Isso significa que você acredita em mim , Nicci?
Ela balançou a cabeça com tristeza . — Não, Richard. Penso que sua
crença em Kahlan é um resultado de seu ferimento . Acho que você sonhou com
ela.
— E o túmulo?
— A verdade? — quando ele assentiu , Nicci deu um forte suspiro . —
Acho que aquela é a verdadeira Madre Confessora, Kahlan Amnell.
— Entendo.
Nicci segurou o queixo dele outra vez e fez ele olhar de volta para ela .
— Mas isso não significa que estou certa . Estou baseando minha crença em outras
coisas... coisas que eu conheço . Mas não penso que qualquer coisa que eu tenha
visto naquele caixão , independente do quanto eu acredite que seja ela , realmente
prova isso. Já estive errada em minha vida . Você achou que estou errada o tempo
todo nesse caso . Você fará aquilo que alguém que você considera estar errada
disser para você fazer? Porque você faria isso ?
— Mas é tão difícil quando ninguém acredita em mim .
— Certamente é, mas e daí? Isso não significa que eles estão certos e
você errado.
— Mas quando todos dizem que você está errado isso começa a fazer
você sentir dúvidas .
— Sim, às vezes a vida realmente é difícil . No passado as dúvidas
sempre fizeram você cavar mais fundo para encontrar a verdade , para ter certeza
de que você estava certo porque conhecer a verdade pode fornecer a você a força
para lutar. Dessa vez, o seu choque ao ver um corpo no túmulo da Madre
Confessora quando não tinha antecipado ao menos a possibilida de de algum estar
ali, junto com os inesperados comentários duros do seu avô justamente naquele
momento de horror, arrasaram você.
— Posso entender como isso foi a última gota e você não conseguiu mais
lutar. Todos podem às vezes atingir seus limites de resistência e desistir... até
mesmo você, Richard Rahl. Você é mortal e tem seus limites exatamente como
todos possuem . Mas tem que lidar com isso e seguir adiante . Você já teve um
período para desistir temporariamente , mas agora você tem que assumir o con trole
da sua própria vida novamente .
Ela podia ver ele pensando , considerando. Era uma visão animadora ver
a mente de Richard de volta e trabalhando . Ela ainda podia enxergar , porém, a
hesitação dele. Ela não queria que ele chegasse tão longe e agora escor regasse de

376
volta.
— Pessoas podem não ter acreditado em você antes , em outras coisas.
— disse ela. — Não houve momentos quando esta sua Kahlan não acreditou em
você? Uma pessoal real teria, algumas vezes, discordado de você , duvidado de
você, discutido com você. E quando isso aconteceu , você deve ter feito o que
pensou que devia fazer , muito embora ela imaginasse que você estava errado ,
talvez até um pouco maluco . Quero dizer, vamos lá, Richard, essa não é a primeira
vez em que eu pensei que você estava lou co.
Richard s orriu brevemente antes de pensar naquilo . Então, um largo
sorriso surgiu em seu rosto .
— Sim, certamente houve momentos como esse com Kahlan, quando ela
não acreditou em mim .
— E ainda assim você fez como acreditava que devia fazer , não fez?
Richard, ainda sorrindo, assentiu.
— Então não deixe esse incidente com o seu avô arruinar a sua vida .
Ele ergueu um braço e deixou ele cair de volta . — Mas é que...
— Você desistiu por causa daquilo que Zedd falou sem ao menos usar o
que obteve de Shota.
Ele levantou os olhos rapidamente , sua atenção repentinamente
concentrada nela. — O que você quer dizer?
— Em troca pela Espada da Verdade , Shota deu a você informação para
ajudá-lo a encontrar a verdade . Uma das coisas que ela disse a você foi “o que
você busca está enterrado há muito tempo” .
— Mas isso não é tudo . Cara falou para mim e Zedd tudo que Shota
disse. Aparentemente a coisa mais vital que ela forneceu a você , porque foi a
primeira e quase tudo que ela pensou que tinha de falar , foi Cadeia de Fogo.
Certo?
Richard assentiu enquanto escutava .
— Então ela disse que você devia encontrar o lugar dos ossos no Nada
Profundo. Shota também falou para ter cuidado com a víbora com quatro cabeças .
— O que é Cadeia de Fogo? O que é o Nada Profundo ? O que é a víbora
com quatro cabeças ? Você pagou um alto preço por essa informação , Richard. O
que você fez com ela? Veio até aqui e perguntou a Zedd se ele sabia e ele disse
não, então ele falou que estava desapontado com você .
— E daí? Vai jogar fora tudo que ganhou em sua busca só por causa
disso? Porque um homem idoso , que não faz ideia do que Kahlan significa para
você ou o que você tem passado nos últimos dois anos , pensa que você agiu de
forma tola? Você quer mudar para cá e ser o animalzinho de estimação dele? Quer
parar de pensar e apenas depender dele para pensar por você ?
— Claro que não.
— No túmulo Zedd estava zangado . Ele passou por coisas que nós
provavelmente não conseguimos imaginar para conseguir a Espada da Verdade
das mãos de Shota. O que você esperava que ele falasse ? “Oh, sim, isso é uma boa
ideia, Richard, simplesmente entregar a espada de volta para ela ; está tudo bem”.
Ele investiu muita coisa para pegar aquela espada de volta e pensou que você fez
uma troca idiota. E daí? Essa é a visão de le. Talvez ele até esteja certo .
— Mas você pensou que isso era importante o bastante para sacrificar
algo que ele tinha confiado somente a você , algo muito precioso para você , para
obter uma coisa valor mais alto . Você acreditou que era uma troca justa . Cara
disse que no início você até mesmo pensou que Shota podia estar enganando você ,
mas então você passou a acreditar que ela havia entregue um valor justo. Cara

377
falou que isso era verdade ?
Richard assentiu.
— O que Shota disse a você sobre a sua barganha ?
Richard olhou para as altas torres atrás de Nicci enquanto lembrava das
palavras. — Shota disse, “Você queria o que eu sei que pode ajudá -lo a encontrar
a verdade. Eu dei isso a você: Cadeia de Fogo . Quer você perceba isso ou não
nesse momento, eu fiz um negócio justo com você . Dei a você as respostas de que
precisava. Você é o Seeker... ou pelo menos , você era; terá que procurar o
significado a ser encontrado nessas respostas ”.
— E você acredita nela?
Richard pensou um momento, seu olhar desviando para longe. —
Acredito. — quando ele olhou de volta nos olhos dela , a centelha da vida estava
ardendo novamente ali . — Eu acredito nela.
— Então você deveria dizer para mim, Cara e para seu avô que se nenhum
de nós vai ajudá-lo, então devemos sair do seu caminho e deixar você fazer o que
deve.
Ele sorriu, mesmo que de forma triste . — Você é uma mulher
extraordinária, Nicci, para me convencer a continuar lutando mesmo quando você
não acredita naquilo por que estou lutando. — ele inclinou -se e beijou -a na
bochecha.
— Eu realmente gostaria de poder acreditar , Richard... para o seu bem.
— Eu sei. Obrigado, minha amiga... e eu digo amiga porque somente
uma verdadeira amiga estaria mais preocupada em me ajudar a encarar a realidade
do que com o que isso signifi ca para ela. — ele esticou o braço e, com a mão
encostada no rosto dela, usou um dedão para enxugar uma lágrima da bochecha
dela. — Você fez mais por mim do que imagina , Nicci. Obrigado.
Nicci sentiu estonteante alegria misturada com a triste frustração de que
eles estivessem de volta ao lugar onde iniciaram .
Mesmo assim , ela quis lançar os braços em volta dele , mas ao invés disso
ela simplesmente colocou as duas mãos sobre a dele no lado do rosto dela .
— Agora, — ele falou. — acho que seria melhor vermos Ann e Nathan,
e então eu preciso descobrir qual o papel de Cadeia de Fogo em tudo isso. Você
vai me ajudar?
Nicci sorriu enquanto assentia , engasgada demais para falar , e então,
incapaz de conter -se, finalmente lançou os braços em volta dele e apertou -o com
força contra si.

378
C A P Í T U L O 5 1

A expressão no rosto de Ann quando ela cruzou a grande porta e viu


Nicci entrando na antecâmara surgindo entre dois pilares vermelhos não teve
preço. Nicci teria rido alto caso sua conversa com Richard não a tivesse drenado
tanto emocionalmente.
O profeta, Nicci sabia, era bastante idoso, mas de forma alguma ele tinha
aparência frágil. Ele era alto e tinha ombros largos , com primoroso cabelo branco
que pendia sobre os ombros . Ele parecia um homem que poderia dobrar o ferro, e
nem precisaria do seu Dom para fazê -lo. Foi o olhar de predador em seus olhos
azuis escuros , porém, que o tornara imediatamente intimidador e sedutor. Eles
eram os olhos de um Rahl.
Ann ficou olhando fixamente , seus olhos arregalados . — Irmã Nicci...
A Prelada não disse “é tão bom vê -la novamente”, ou qualquer coisa
cordial. Ela pareceu momentaneamente incapaz de pensar no que dizer . Nicci
achou simplesmente um pouco admirável que essa mulher baixinha ao lado do
enorme profeta houvesse p or tanto tempo parecido tão grande aos seus olhos.
Noviças e Irmãs geralmente ficavam durante longos períodos sem ao menos verem
a Prelada no Palácio dos Profetas . A ausência, Nicci supôs, aumentava a estatura
mítica dela.
— Prelada. Fico feliz em vê -la bem, especialmente depois da sua
desafortunada morte e funeral . — Nicci olhou para Richard quando concluía o
pensamento. — Ouvi dizer que todos acreditaram que você estava morta . É
surpreendente como um enterro pode ser tão convincente , e ainda assim aqui está
você, viva e bem, assim parece.
O leve sorriso de Richard indicou a ela que ele captou a mensagem dela .
Zedd, em um lado, no início dos três degraus que conduziam até o centro da sala
com a fonte, fez uma curiosa careta para Nicci. Ele também não deix ara passar a
mensagem.
— Sim, bem, infelizmente isso foi necessário , criança, — a expressão
de Ann ficou sombria. — uma vez que as Irmãs do Escuro estavam infestando as
fileiras de nossas Irmãs da Luz . — ela olhou brevemente para Richard, Cara, e
Zedd, a dureza em sua expressão suavizando . — Parece, pela companhia que você
mantém, Irmã Nicci, que você retornou ao grupo . Não consigo expressar a você o
quanto isso me agrada, pessoalmente. Só consigo pensar que o próprio Criador
deve ter salvo a sua alma.
Nicci juntou as mãos atrás das costas . — O Criador não teve nada a ver
com isso, na verdade. Acho que enquanto eu era forçada a passar a minha vida
servindo a todos que decidiam que rer o sangue e o suor de minhas habilidades , o
Criador estava ocupado . Acho que ele não podia ser incomodado enquanto eu
estava sendo usada por homens devotos dizendo como era meu dever servir ,
submeter-me, humilhar-me a eles e matar aqueles que faziam oposição aos
costumes do Criador.
— Acho que durante todas as vezes em que aqueles campeões do Criador
estavam me estuprando , o Criador não percebeu a ironia .
— Nunca mais . Richard ajudou a mostrar para mim o valor da minha
vida para mim mesma. E não é mais “Irmã ” Nicci... quer seja da Luz ou do Escuro .
Nem “Senhora da Morte ”, ou a “Rainha Escrava”. Agora é apenas “Nicci”, se

379
você puder fazer o favor ... e mesmo se não puder.
A expressão de Ann saltou entre a incredulidade e a indignação quan do
seu rosto ficou vermelho. — Mas uma vez que você é uma Irmã, você sempre será
uma Irmã. Você fez uma coisa maravilhosa e renunciou ao Guardião , então você
é uma Irmã da Luz outra vez . Não pode simplesmente decidir por si mesma negar
o seu dever perante o Criador...
— Se Ele tem alguma objeção , então permita que Ele fale agora mesmo !
— enquanto o eco das palavras inflamadas de Nicci desaparecia, a sala ficou em
silêncio a não ser pelo som da água na fonte . Ela fez uma cena olhando ao redor ,
como se ela pensasse que talvez o Criador pudesse estar escondido atrás de um
pilar pronto para saltar e declarar seus desejos .
— Não? — ela juntou as mãos outra vez . Ela exibiu novamente o sorriso
desafiador. — Bem, então, já que Ele não tem objeção , que seja Nicci, eu acredito .
— Eu não vou...
— Ann, já chega, — Nathan falou com uma forte voz de comando . —
temos assuntos importantes e isso não é . Não viajamos tudo isso simplesmente
para que uma Prelada morta aplique um sermão em uma Irmã do Escuro reformada .
Nicci estava bastante surpresa em ouvir a voz da razão vindo do Profeta .
Ela aceitou que talvez tives se colocado valor demais em uma conversa sem
importância.
A boca de Ann torceu em resignação quando ela prendia uma mecha de
cabelo solta no coque atrás de sua cabeça . — Suponho que você esteja certo . Temo
que eu esteja um pouco fora de mim, minha querida, com todos os problemas que
estão acontecendo. Por favor, perdoe a minha severa pretensão , está bem, Nicci?
Nicci abaixou a cabeça . — Alegremente, Prelada.
Ann sorriu, de forma mais genuína, Nicci pensou. — E agora é apenas
Ann. Agora Verna é a Prelada. Estou morta, lembra?
Nicci sorriu. — Assim você está, Ann. Sábia escolha, Verna. A Irmã
Cecilia sempre disse que não havia esperança de converter aquela para o
Guardião.
— Algum dia quando tivermos o luxo do tempo , gostaria de ouvir mais
sobre Irmã Cecilia e as antigas professoras de Richard. — ela suspirou com aquele
pensamento. — Eu nunca soube com certeza que você e todas as cinco das outras
eram Irmãs do Escuro .
Nicci assentiu. — Eu ficaria feliz em falar o que sei sobre elas... aquelas
que ainda estão vivas, pelo menos. Liliana e Merissa estão mortas.
— Tom, como está minha irmã? — Richard perguntou logo que houve
uma pequena pausa na conversa . Nicci reconheceu que ele ouvira tempo suficiente
e estava sinalizando que desejava seguir em frente para assun tos mais
importantes.
— Ela está bem, Lorde Rahl. — disse o grande homem louro perto da
porta.
— Bom. Nathan, o que está acontecendo ? — Richard perguntou
ansiosamente, indo direto ao ponto . — Que problema os trouxe aqui ?
— Bem... entre outras coisas , problema com profecia.
Richard relaxou visivelmente . — Oh. Bem, isso não é algo com o qual
eu possa ajud á-los .
— Eu não teria tanta certeza. — Nathan falou, de forma crítica.
Zedd caminhou saindo do tapete dourado e vermelho e desceu na sala .
— Permita que eu adivinhe . Vocês estão aqui por causa d os espaços em branco
nos livros de profecia.

380
Nicci teve que repassar as palavras de Zedd em sua mente uma segunda
vez antes de ter certeza de que tinha ouvido direito .
Nathan assentiu. — Você acabou de sentar no meio da lama.
— O que você quer dizer com, vocês estão aqui por causa d os espaços
em branco nos livros de profecia ? — de repente Richard pareceu desconfiado . —
Que espaços em branco?
— Extensas seções de profecia... ou seja , profecia escrita nos livros de
profecia... simplesmente desapareceram das páginas de vários dos livros que
inspecionamos até agora . — a testa de Nathan franziu em uma expressão de
apreensão. — Nós checamos com Verna e ela confirmou que os livros de profeci a
no Palácio do Povo em D'Hara estão sofrendo do mesmo problema inexplicável .
Nisso está o coração de nossa preocupação . Nós viemos , em parte, para vermos
se os trabalhos de profecia aqui na Fortaleza ainda estão intactos .
— Eu temo que não. — falou Zedd. — Os livros aqui foram corrompidos
de forma similar .
Nathan passou a mão sobre o rosto cansado . — Queridos espíritos , —
ele murmurou. — nós estivemos com esperança de que seja lá o que esteja
causando esse estrago entre as profecias , isso não tivesse afetado os livros aqui
também.
— Está querendo dizer que seções inteiras de profecia estão faltando ?
— Richard perguntou, caminhando até o centro da sala .
— Isso mesmo. — Nathan confirm ou.
— Haveria um padrão nas profecias que desapareceram ? — Richard
perguntou, de repente concentrando -se em uma linha de raciocínio que, Nicci
sabia, acabaria estando de alguma forma relacionada com a própria busca dele .
Normalmente ela ficaria frustrada ou até mesmo irritada que ele não conseguisse
pensar em outra coisa a não ser em sua fixação com a mulher desaparecida , mas
dessa vez ela estava feliz em ver que o Richard familiar estava de volta.
— Ora, sim, existe um padrão . Todas elas são profecias que possuem
algo a ver com eventos que iniciam por volta da época em que você na sceu.
Richard ficou olhando fixamente, estupefato. — Sobre o que são as
profecias que faltam... especificamente ? Quero dizer, elas estão relacionadas com
eventos específicos , ou elas não são específicas e ao invés disso compartilham
apenas um período de te mpo?
Nathan coçou o queixo enquanto considerava a pergunta . — Essa é a
coisa que torna isso tão estranho . Muitas das profecias que estão faltando nós
sabemos que deveríamos ser capazes de lembrar , mas elas estão repentinamente e
completamente tão apagadas de nossas mentes quanto estão das páginas . Não
conseguimos lembrar de ao menos uma palavra delas . Não lembramos sobre o que
elas são, e uma vez que elas desapareceram também dos livros não posso dizer se
tinham relações entre eventos ou rela ções de tempo... ou qualquer outra coisa .
Nós percebemos que elas desapareceram , mas isso é tudo.
Os olhos de Richard viraram para Nicci, como que para perguntar se ela
captou a correlação . Ela achou que ele conseguiu ver que captou . A voz dele
permaneceu casual , mas Nicci sabia o quanto era intenso o interesse por trás das
palavras dele.
— É bastante estranho que algo que vocês conheceram durante todas as
suas vidas possa simplesmente desaparecer das suas memórias , vocês não
achariam?
— Eu certamente acharia. — disse Nathan. — Alguma ideia sobre o
assunto, Zedd?

381
Zedd, que estivera silenciosa e atentamente observando Richard,
assentiu. — Bem, eu sei o que está causando isso , se isso os ajudará.
Ele sorriu inocentemente . Nicci notou que Rikka, parada nas sombras
atrás dos pilares vermelhos , sorriu também. Nathan, inicialmente surpreso , ficou
animado com a curiosidade .
Richard puxou suavemente o manto de Zedd no ombro. — Você sabe?
— Você sabe? — Nathan perguntou, empurrando Richard para fora do
caminho quando aproximou -se. Ann avançou rapidamente junto com ele . — O que
é? O que está acontecendo ? Diga para nós.
— Um Verme Profético, eu temo.
Nathan e Ann piscaram, seus rostos vazios não exibiam qualquer
compreensão .
— Um o quê? — Nathan finalmente arriscou , um tanto quanto
cautelosamente, se não desconfiadamente .
— O desaparecimento do texto é causado por um Verme Profético . Assim
que uma ramificação de profecia é infectada com essa praga , ela segue por essa
ramificação, consumindo conforme avança . Uma vez que ela consome a profecia
em si, isso significa que com o passar do tempo todas as manifestações dela , como
a profecia escrita ou qualquer lembrança dela , são destruídas . É uma coisa
bastante virulenta. — Zedd apreciou os olhares fixos deles com outro sorriso
polido. — Se quiserem, posso mostrar a vocês o trabalho de referência .
— Eu diria que sim. — Nathan falou.
— Zedd, isso é importante, — Richard disse. — porque não falou alguma
coisa a respeito?
Zedd aplicou nele um familiar tapinha no ombro quando começou a
andar. — Bem, meu rapaz, quando chegou você não estava com humor para escutar
qualquer coisa a não ser a respeito daquilo porque você estava aqui . Lembra?
Você foi bastante insistente que estava com problemas e precisava conversar
comigo sobre isso. Desde então vo cê não esteve exatamente disposto a conversar
muito. Esteve bastante... distraído.
— Acho que eu estava. — Richard segurou o braço do seu avô , fazendo
ele parar antes que pudesse ir longe . — Zedd, olhe, preciso dizer a você uma coisa
sobre tudo isso, e sobre aquela noite.
— Como o quê, meu rapaz?
— Eu sei que uma contradição não pode existir .
— Eu realmente nunca pensei que você achasse o contrário, Richard.
— Mas havia mais coisa além disso naquela noite . A Regra que mais
estava envolvida lá naquele túm ulo não era aquela que você citou . Pode ter
parecido assim para você naquele momento , mas a Regra sobre a qual cometi um
erro era outra... aquela que diz em parte que pessoas podem ser levadas a acreditar
em uma mentira porque elas temem que isso seja verd ade. Isso era o que eu estava
fazendo. Eu não estava acreditando em uma contradição , estava acreditando em
uma mentira porque estava com medo de que fosse verdade. A Regra da não -
contradição é uma das formas através das quais eu devia ter checado minhas
suposições. Eu não fiz isso, e desse jeito eu cometi um erro .
— Entendo como deve ter parecido a você já que não sabia de tudo que
esteve acontecendo, mas isso não significa que eu deveria ter parado de buscar a
verdade por causa de um desejo equivocado de fazer você feliz, ou por medo do
que você pensaria de mim .
Ele encarou o olhar de Nicci por um breve momento . — Nicci ajudou-
me a ver o que eu estava fazendo de errado .

382
Ele olhou de volta para seu avô . — Porém, eu acho que você queria
mostrar para mim que a Regra que você citou é mais . Ela também significa que
você não pode ter valores ou objetivos contraditórios . Não pode dizer, por
exemplo, que a honestidade é um valor significativo , e ao mesmo tempo mentir
para as pessoas. Não pode afirmar que a justiça é o seu objetivo mas negar-se a
fazer dos culpados os responsáveis por suas ações .
— No coração de nossa luta , o fato de que as contradições não podem
existir é o motivo pelo qual o regime da Ordem Imperial é tão desastroso. Eles
dizem que o altruísmo é o mais alto propósito deles . Ainda assim, através de sua
proclamada preocupação altruísta com o indivíduo, eles sacrificam outros ,
mascarando o massacre ao afirmar que tal sacrifício é o dever moral da vítima
sacrificada. Na verdade isso nada mais é do que u ma pilhagem organizada , uma
paixão pela felicidade de ladrões e assassinos sem qualquer preocupação com as
vítimas deles . Tentativas de atingir objetivos que dependem dessa contradição só
podem levar ao sofrimento e morte amplamente disseminados . É a advocacia
fraudulenta do direito à vida ao abraçar a morte como um meio para alcançá-lo.
— A Regra que você citou significa que não posso , como os seguidores
de Jagang, dizer que eu quero a verdade e então , sem checar minha premissa , de
boa vontade ao invés disso acreditar em uma mentira , mesmo que seja por causa
do medo. Foi assim que violei a Regra que você citou . Eu devia ter verificado as
coisas que pareciam contradições e encontrado a verdade que olhava na minha
cara. Foi nisso que errei .
— Está dizendo que agora você não acredita que aquela era Kahlan
Amnell? — perguntou Zedd.
— Quem afirma que aquele cadáver tem que ser a mulher que você pensa
que é? Não havia fatos lá para contradizer a minha crença de que não era ela . Só
acreditei que havia por causa do medo de que fosse verdade . Não era verdade.
Zedd inspirou profundamente , soltando lentamente. — Você está
esticando bastante as coisas , Richard.
— Estou? Você não ficaria muito satisfeito com a minha racionalidade
se eu falasse que não existe uma coisa como a profecia e mostrasse os livros em
branco como prova de que a sua crença na existência da profecia está errada . Que
você acredite que a profecia existe diante do fato de que os supostos livros de
profecia estão em branco não é uma contradição . É uma situação intrigante ainda
sem informação suficiente para explicar os fatos . Você não tem obrigação de
chegar a uma conclusão ou sustentar uma opinião que não aceita por outras razões
sem informação adequada ou antes que tenha acabado de investigar.
— Que tipo de Seeker eu seria se fizesse isso ? Afinal de contas , é a
mente do homem que faz dele o Seeker, não a espada. A espada é meramente uma
ferramenta... foi você quem falou isso para mim .
— No caso de Kahlan, ainda há perguntas demais sem resposta para que
eu esteja convencido de que aquilo que vimos naquela noite chuvosa realmente é
a verdade. Até que isso esteja provado de um jeito ou de outro , vou continuar
procurando pelas respostas... pela verdade... porque eu acredito que o que está
acontecendo é muit o mais perigoso do que qualquer outra pessoa a não ser eu
percebe, sem falar da necessidade de encontrar uma pessoa que eu amo que precisa
da minha ajuda.
Zedd sorriu como um avô. — Bastante justo , Richard, bastante justo.
Mas espero que você prove isso para mim . Não vou aceitar a sua palavra nisso .
Richard acenou com a cabeça para seu avô . — Para começar , acho que
você tem que admitir que é bastante suspeito que profecias girando em torno da

383
vida de Kahlan e da minha estejam faltando . A memória dela desapareceu. Agora
as profecias que conteriam referências a ela desapareceram . Em ambos os casos a
memória de todos das duas entidades reais... a pessoa e as profecias referentes a
essa pessoa real... foram apagadas .
— Está vendo onde quero chegar ?
Nicci estava imensuravelmente aliviada em ver que Richard estava
pensando racionalmente outra vez . Ela também estava preocupada porque de uma
forma estranha, o que ele disse na verdade realmente fez algum sentido .
— Sim, meu rapaz, entendo o que você quer dizer , mas você vê que
existe um problema com a sua teoria ?
— E qual é?
— Nós todos lembramos de você , não lembramos? E as profecias sobre
você estão faltando. Sendo assim, nesse caso o problema com profecia não tem
nada a ver com aquilo que você está espera ndo que explique ou prove a existência
de Kahlan Amnell.
— Porque não? — Richard perguntou.
Zedd começou a subir os degraus . — Isso tem a ver com a natureza
daquilo que eu descobri quando fiz a minha própria investigação do problema com
os livros de profecia. Eu também tenho o meu próprio senso de curiosidade , você
sabe.
— Sei disso, Zedd. Mas isso poderia estar relacionado. — Richard
insistiu enquanto caminhava ao lado do seu avô .
Nicci foi depressa atrás dele . Todos os outros foram forçados a seguir
eles.
— Pode parecer assim para você , meu rapaz, mas a sua especulação é
falha porque todos os fatos simplesmente não encaixam na sua conclusão . Você
está tentando usar botas que parecem boas mas são pequenas demais . — Zedd deu
um tapinha no ombro de Richard. — Quando chegarmos até a biblioteca mostrarei
a você o que estou querendo dizer .
— Quem é Kahlan? — perguntou Nathan.
— Alguém que desapareceu e que ainda não encontrei. — Richard falou
por cima do ombro . — Mas encontrarei.
Richard parou e virou para Ann e Nathan. — Algum de vocês sabe o que
é Cadeia de Fogo? — os dois balançaram as cabeças . — E quanto a uma víbora
com quatro cabeças, ou o Nada Profundo?
— Eu temo que não, Richard, — Ann disse. — mas enquanto estamos no
assunto de questões importantes , temos outras coisas sobre as quais precisamos
falar com você.
— Depois que dermos uma olhada na referência de Zedd sobre profecia.
— falou Nathan.
— Bem, então vamos lá. — Zedd falou a eles quando começava a andar
agitando o seu manto .

384
C A P Í T U L O 5 2

Na acolhedora biblioteca , Richard ficou em pé atrás de Zedd, observando


por cima dos ombros magros de seu avô enquanto ele folheava um grosso livro
com capa surrada de couro marrom . A sala estava pouco iluminada por uma
quantidade de lanternas com refletores prateados em todos os quatro lados de
cinco grossos postes de mogno em fileira pelo centro da sala . Eles suportavam a
extremidade de uma sacada que cruzava a sala . Pesadas mesas escuras de madeira
com tampos polidos estavam alinhadas pelo centro da sala se guindo a fileira de
postes. Cadeiras de madeira estavam espaçadas ao redor das mesas . Tapetes
opulentos com figuras elaboradamente bordadas pareciam suaves e silencios os
sob os pés. Perpendicular às longas paredes de cada lado estavam corredores de
prateleiras cheias de livros . Acima, a sacada continha prateleiras pouco espaçadas
cheias com mais volumes .
Um raio de luz do sol cinza azulado entrando pela única janela bem alta
no final da sala iluminava a poeira flutuando no ar abafado . As lanternas recém
acesas adicionavam um cheiro oleoso . A sala tinha a quietude de uma câmara .
Cara e Rikka estavam mais afastadas na área mais escura sob a janela no
final da sala, braços cruzados, cabeças juntas , conversando em vozes baixas . Nicci
estava ao lado de Zedd em uma borda da mesa iluminada em um retângulo brilhoso
de luz do sol enquanto Ann e Nathan estavam impacientes do outro lado ,
aguardando a explicação de Zedd sobre como a profecia tinha desaparecido .
Permanecendo ali, na ilha de luz, o resto da sala mergulh ava em sombras ao redor
deles.
— Esse livro foi compilado , eu acredito , em algum tempo não muito
depois que a Grande Guerra havia terminado . — Zedd falou para eles enquanto
batia com o dedo na capa aberta perto do título : Razões de Continuidade e
Predições de Viabilidade. — Os dotados daquela época descobriram que , seja qual
fosse a razão , menos e menos magos estavam nascendo e aqueles que nasc iam não
estavam nascendo com os dois lados do Dom , como quase sempre acontecia antes .
E mais, aqueles que nasciam c om o Dom estavam todos começando a nascer
somente com o lado Aditivo . A Magia Subtrativa estava desaparecendo .
Ann olhou atravessado. — Dificilmente estão diante de você uma Noviça
e um jovem mago, meu caro. Sabemos de tudo isso . Passamos nossas vidas
devotados justamente a esse problema. Vá direto ao ponto.
Zedd limpou a garganta. — Sim, bem, como vocês devem saber , isso
também significou que havia menos e menos profetas nascendo .
— Que coisa extraordinariamente fascinante. — Ann zombou. — Eu
jamais teria imaginado uma coisa assim .
Irritado, Nathan silenciou-a. — Continue, Zedd.
Zedd puxou as mangas, lançando um breve olhar zangado para Ann. —
Eles perceberam que, com cada vez menos magos nascidos para a profecia , o corpo
de trabalho da profecia, é claro, deixaria de crescer . Para entenderem o que as
consequências disso poderiam significar , eles decidiram que precisavam fazer
uma investigação intensiva de todo o assunto da profecia enquanto ainda podiam ,
enquanto ainda tinham profetas e outr os magos com ambos os lados do Dom .
— Eles abordaram o problema com grande preocupação , percebendo que
com eles, essa poderia muito bem ser a última oportunidade da humanidade para

385
compreender o futuro da profecia em si , e para oferecer a futuras gerações um
meio para a compreensão daquilo que , esses magos estavam começando a acreditar
cada vez mais , um dia estaria seriamente comprometido ou até mesmo perdido .
Zedd levantou os olhos para ver se Ann parecia com intenção de oferecer
quaisquer outros comentários depreciativos. Não parecia. Isso aparentemente era
algo que ela não sabia.
— Agora, — ele disse. — ao trabalho deles.
Richard foi até a mesa ao lado de Nicci e com um dedo virou páginas
enquanto escutava Zedd. Rapidamente notou que o livro estava escrit o em um
estranho jargão técnico que tinha a ver com as complexidades não apenas da magia
mas da profecia também e que era quase incompreensível para ele . Também
poderia ter sido uma língua diferente .
Uma das surpresas foi que o livro continha uma série de complexas
fórmulas matemáticas . Estas eram interrompidas por diagramas da lua e estrelas
marcados com ângulos de declinação . Richard nunca tinha visto um livro de magia
que contivesse tais equações , observações celestiais , e medidas... não que ele,
para dizer a verdade, tivesse visto muitos livros sobre magia . Porém, ele lembrou,
o Livro das Sombras Contadas que memorizou quando garoto tinha vários ângulos
do sol e estrelas que era necessário conhecer para abrir as Caixas de Orden.
Mais fórmulas estavam rab iscadas nas margens , mas por mãos
diferentes, como se alguém tivesse feito os cálculos para checar o trabalho no
livro, ou talvez atualizado ele com outras informações. Em um caso, vários dos
números em uma elaborada tabela estavam cruzados , com setas apontando a partir
de novos números anotados nas margens até os números nas tabelas . Zedd
ocasionalmente fazia Richard parar de folhear páginas para apontar uma equação
e explicar os símbolos envolvidos nos cálculos.
Como um cão observando um osso , os olhos azuis escuros de Nathan
observavam as páginas enquanto Richard virava lentamente cada uma , olhando
para qualquer coisa que fizesse sentido para ele enquanto Zedd prosseguia falando
a respeito de sobreposições de ramificações transposicionais e triplas
bidirecionais conectadas a raízes conjugadas comprometidas por inversões
binárias precedenciais e sequenciais , proporcionais, envelopando bifurcações
falhas que as fórmulas revelavam que só poderiam ser detectadas através de
levorotatória Subtrativa.
Nathan e Ann olhavam fixamente sem piscar . Uma vez, Nathan até arfou.
Ann ficava gradualmente pálida . Até mesmo Nicci parecia estar escutando com
incomum atenção.
Os conceitos insondáveis faziam a cabeça de Richard girar. Ele odiava
a sensação de afogar -se em informações incompreensíveis , de tentar manter sua
cabeça acima das águas escuras da completa confusão . Isso fazia ele parecer
estúpido.
Intermitent emente, Zedd consultava números e equações do livro .
Nathan e Ann agiam como se estivessem pensando que Zedd estava prestes a
revelar não apenas como o mundo acabaria mas a hora exata .
— Zedd, — finalmente Richard perguntou, interrompendo seu avô no
meio de uma sentença que não mostrava sinais de algum dia chegar ao fim. —
existe alguma maneira de você conseguir transformar esse cozido em alguma carne
que eu possa mastigar?
De boca aberta, Zedd observou Richard durante um momento antes de
empurrar o livro pela mesa até Nathan. — Deixarei que você mesmo leia .
Nathan pegou o livro cautelosamente como se o G uardião em pessoa

386
pudesse pular saindo dele .
Zedd virou de volta para Richard. — Basicamente, para colocar em
termos que você poderá captar melhor , e correndo um grande risco de simplificar
demais isso, imagine que a profecia é como uma árvore , com raízes e galhos.
Como uma árvore , a profecia estava crescendo continuamente . O que aqueles
magos estavam dizendo basicamente era que a árvore da profecia comportava -se
como se houvesse uma espécie de vida nela . Não estavam dizendo que ela estava
viva, entenda bem, apenas que de algumas formas ela imitava... não duplicava...
alguns atributos de um organismo vivo . Foi essa propriedade que permitiu a eles
criarem sua teoria e a partir dela seus cálculos... de forma muito parecida como
há parâmetros através dos quais v ocê pode julgar a idade e a saúde de uma árvore
e, partindo disso, extrapolar a respeito do futuro dela .
— Durante uma época prévia quando houve grande número de profetas
e magos, os trabalhos de profecia e suas muitas ramificações cresceram de modo
bem rápido. Com todos os profetas que contribuíram, ela possuía um solo firme,
fértil, no qual crescer , e raízes profundas. Com novos profetas constantemente
agregando uma nova visão aos trabalhos colecionados , novas ramificações de
profecia espalharam -se continuamente e aqueles novos galhos , com o passar do
tempo conforme outros profetas contribuíam neles, cresceram grossos e fortes .
Enquanto ocorria o crescimento , profetas examinavam constantemente ,
observavam, e interpretavam eventos , o que permitia a el es cuidarem da parte viva
e podar a morta.
— Mas então , a taxa de nascimento de profetas começou a cair e a cada
ano que passava havia menos e menos deles para cuidarem dessas tarefas . Por
causa disso, o crescimento da árvore da profecia começou a reduzir a velocidade.
— Em essência, para explicar isso em termos simples que você consiga
entender, a árvore da profecia tinha, de certo modo, amadurecido . Como um velho
carvalho monarca em uma floresta, esses magos sabiam que a vasta árvore da
profecia tinha muitos anos de vida pela frente como uma entidade madura , mas
eles também sabiam o que o futuro eventualmente reservava para ela .
— Como todas as coisas , a existência da profecia não poderia ser eterna .
Conforme o tempo passava , eventos proféticos ocorrera m, tornando-se
ultrapassados. Esses não serviam mais para qualquer uso. Dessa forma, no
mínimo, a passagem do tempo eventualmente invalidaria todas as previsões
tratadas no trabalho . Em outras palavras, sem nova profecia, toda profecia
existente, quer elas acabem tornando -se ramificações verdadeiras ou não , de
qualquer jeito eventualmente atingiriam seu momento no fluxo cronológico .
Conforme elas fizessem isso , seu tempo tivesse passado... elas estariam obsoletas .
— Assim, a comissão estudando o problema percebeu que a árvores da
profecia, sem o crescimento e a vida que obtinha dos profetas , sem a constante
corrente de profecia alimentando seus galhos , acabaria morrendo. A tarefa deles,
e o propósito desse livro , Razões de Continuidade e Predições de Viabi lidade, era
tentar prever como e quando isso aconteceria .
— As melhores mentes em profecia estudaram o problema , fizeram uma
avaliação da saúde da árvores da profecia . Através de fórmulas conhecidas e
previsões baseadas não apenas em padrões observados no declínio do crescimento
na profecia, mas também em um declínio dos profetas para sustentá -la, eles
determinaram como essa árvores de conhecimento em particular ficaria pesada
com a madeira morta de profecias falsas e profecias expiradas conforme as
ramificações proféticas eram alcançadas e moviam -se cronologicamente pelas
seções de ramificações ainda viáveis . Enquanto isso acontecia... enquanto a

387
árvore da profecia ficava pesada com a idade e a madeira morta que não podia
mais ser removida por verdadeiros profetas... eles previram como isso se tornaria
susceptível a... a... bem ... uma espécie de enfermidade, uma decadência , de forma
muito parecida como uma velha árvore na floresta eventualmente estará
susceptível à doenças.
— Esse declínio d a viabilidade, eles descobriram, com o passar do
tempo, deixaria a profecia vulnerável à qualquer número sempre crescente de
problemas. A enfermidade que, eles concluíram, seria a mais provável de atacar
primeiro viria em uma forma que eles descreveram com o algo semelhante a um
verme. Eles pensaram que isso começaria a infestar e destruir as porções vivas da
árvore da profecia em si , significando os galhos que são contemporâneos ao tempo
dessa infestação. De fato, eles chamaram isso simplesmente de “ verme profético”.
O ar pareceu pesado no espesso silêncio .
Com as mãos dentro dos bolsos , Richard balançou os ombros . — Então
qual é a cura?
Surpreso com a pergunta , Zedd ficou olhando para Richard como se ele
tivesse acabado de perguntar como curar uma tempesta de. — Cura? Richard, esses
especialistas que escreveram esse livro previram que não havia cura . Eles
concluíram , no final, que sem a vitalidade fornecida por novos profetas , a árvore
da profecia eventualmente apodreceria e morreria .
— Eles disseram que a p rofecia só voltaria a ficar forte e saudável
quando novos profetas retornassem ao mundo... em efeito , quando uma semente
de nova profecia brotasse e florescesse . Árvores antigas morrem e abrem espaço
para as novas. Foi determinado por esses magos instruídos que o destino da
profecia como nós conhecemos é que ela também esteja condenada ao
envelhecimento, enfermidade, e eventual morte.
Richard teve que lidar com diversos problemas causados pela profecia ,
mas as expressões sombrias ao redor da mesa eram contagiosas . Quase pareceu
como se um curandeiro tivesse saído de uma sala nos fundos para anunciar que
um parente idoso estava prestes a falecer .
Ele pensou em todos os dotados profetas , devotados às suas vocações ,
que trabalharam durante todas as sua s vidas para contribuírem com este grande
corpo de trabalho que agora estava enfraquecendo e morrendo . Pensou na estátua
que ele mesmo trabalhara tão arduamente para criar e como ele sentiu -se quando
ela foi destruída.
Ele também pensou que poderia simplesmente ser o conceito da morte
em si, em qualquer forma, que era tão depressivo porque lembrava a ele de sua
própria mortalidade... e da mortalidade de Kahlan.
Ele também pensou que isso podia ser a melhor coisa que poderia
acontecer. Afinal de contas, se as pessoas não acreditassem mais que a profecia
havia determinado o que aconteceria com elas , então talvez elas percebessem que
tinham de pensar por si mesmas e decidir o que atenderia seus próprios melhores
interesses. Talvez, se estivessem liv res de uma mentalidade determinística , as
pessoas percebessem que eram elas mesmas quem na verdade controlavam seu
próprios destinos. Se as pessoas compreendessem o que realmente estava em jogo ,
talvez eles notassem o valor da razão nas escolhas que faziam , ao invés de apenas
aguardarem, sem raciocinar, que o que deveria acontecer , acontecesse.
— De acordo com o que Ann e eu descobrimos , — Nathan disse no ar
envelhecido da biblioteca. — a ramificação da profecia que está desaparecendo é
aquele que refere -se à épocas aproximadamente após o nascimento de Richard.
Isso, é claro, faz mais sentido porque almas temporais nutrem o tecido vivo da

388
profecia do qual esse verme profético se alimentaria. Mas eu consegui determinar
que ele ainda não despareceu completamente.
Zedd assentiu. — Está morrendo em retrocesso , mas a partir da raiz ,
então uma parte dela ainda está viva . Achei bolsões dela viva e saudável .
— Isso mesmo... especialmente as porções do presente seguindo para o
futuro. Como você sugere, parece que a praga tem atacado o núcleo dessas
ramificações, que iniciam duas ou três décadas atrás e até agora não devorou
extensivamente até eventos futuros .
— Isso deixa seções dessa ramificação profética... a ramificação
envolvendo você... que ainda estão vivas, — o profeta falou enquanto apoiava -se
sobre as mãos em direção a Richard. — mas assim que ela morrer , então
perderemos até mesmo essas profecias , juntamente com a lembrança do quanto
elas são profundamente importantes .
Richard olhou da expressão sombria de Nathan para a expressão
igualmente séria de Ann. Ele sabia que finalmente eles tinham chegado ao coração
de seu objetivo .
— Foi por isso que viemos procurar você , Richard Rahl, — Ann disse
com grave entonação. — antes que seja tarde demais. Nós encontramos profeci a
que até agora ainda est á viva e nos alertou sobre a mais séria crise diante de nós
desde a Grande Guerra .
Richard franziu a testa, já descontente que mais uma vez a profecia
estivesse parecendo causar problemas a ele. — Que profecia?
Nathan tirou um pequeno livro de um bolso e abriu -o. Enquanto o
segurava com as duas mãos , ele manteve um olhar fixo sobre Richard para
certificar-se de que ele parecia estar ouvindo cuidadosamente .
Quando finalmente Nathan tinha certeza da atenção de todos , ele
começou. — “No ano das cigarras , quando o campeão do sacrifício e do
sofrimento, sob a bandeira tanto da humanidade quanto da luz, ” — ele observou
por baixo de suas sobrancelhas grossas. — esse seria o Imperador Jagang.
“finalmente dividir o seu enxame, então será o sinal de que a profecia foi
despertada e a batalha final e decisiva está sobre nós . Tenha cuidado, pois todas
as ramificações verdadeiras e suas derivações estão entrelaçadas nessa raiz
mântica. Somente um tronco provém dessa origem primal conjugada . Se fuer
grissa ost drauka não liderar essa batalha final , então o mundo, já permanecendo
no limiar das trevas , cairá sob essa terrível sombra ”.
— Queridos espíritos , — Zedd sussurrou. — Fuer grissa ost drauka é
uma conexão essencial com a profecia que fundamenta uma ramificação principal .
Juntá-lo com essa profecia estabelece uma bifurcação conjugada .
Nathan arqueou uma sobrancelha. — Exatamente.
Richard não entendeu completamente o que Zedd tinha falado , mas ele
captou a ideia. E não precisava que falassem a ele quem era fuer grissa ost drauka ,
aquele que traz a morte ; era ele.
— Jagang dividiu as forças dele . — Ann falou com tranquilo poder
enquanto fixava Richard em seu olhar firme. — Ele conduziu o seu exército
subindo perto de Aydindril, esperando acabar com ela , mas as forças
D’Haranianas , junto com as pessoas da cidade , usaram o inverno para escaparem
através das passagens para D'Hara e para fora das garras de Jagang.
— Eu sei. — Richard falou. — Essa fuga pelas passagens no inverno foi
por ordem de Kahlan. Foi ela quem falou a mim sobre isso .
Cara levantou os olhos surpresa , aparent emente pretendendo questionar
o relato dele, mas após um olhar para Nicci ela decidiu permanecer em si lêncio...

389
ao menos por enquanto .
— Em qualquer número, — falou Ann, soando irritada com a
interrupção. — Jagang, incapaz de usar efetivamente os seus números vastamente
superiores para cruzar através daquelas passagens bastante estreitas pesadamente
protegidas, finalmente decidira dividir suas forças . Deixando um exército para
guardar as passagens , o Imperador em pessoa levou o corpo principal de seu
exército para o sul, seguindo todo o caminho de volta descendo através de
Midlands para contornar a barreira de montanhas e então dar a volta e seguir para
dentro de D'Hara.
— Nossas forças estão direcionadas ao sul , descendo através de D'Hara,
para encontrar com eles . Foi por isso que quando conseguimos receber uma
mensagem de Verna sobre a condição dos livros de profecia no Palácio do Povo
em D'Hara; ela foi capaz de cavalgar ao sul adiante de nosso exército e dar uma
olhada neles por si mesma .
— Esse é o ano em que as cigarras estão retornando .” — disse Nicci,
soando alarmada. — Eu as vi.
— Isso mesmo. — falou Nathan, ainda curvado para frente sobre as duas
mãos. — Isso significa que a cronologia agora está fixada . Todas as profecias
fizeram suas conexões e colocaram -se em posição. Os eventos estão marcados . —
em turnos , ele encarou o olhar de todos na sala. — O fim está sobre nós .
Zedd soltou um assovio baixo .
— O mais importante , — Ann falou em tom autoritário. — isso significa
que é hora do Lorde Rahl juntar-se às forças D’Haranianas e liderá-las na batalha
final. Sem você lá, Richard, a profecia é bastante clara ; tudo estará perdido . Nós
viemos para escoltá -lo até as suas forças , para ajudar a garantir que você consiga
fazer isso. Não ousamos arriscar um atraso ; devemos partir imediatamente .
Pela primeira vez desde que eles começaram a falar sobre profecia , os
joelhos de Richard pareceram fracos.
— Mas eu não posso, — disse ele. — tenho que encontrar Kahlan.
Para ele isso soou como um a súplica em meio a uma tempestade .
Ann inspirou profundamente, como que para morder sua língua enquanto
procurava alguma paciência urgentemente necessária , ou talvez palavras que o
persuadissem e finalmente encerrassem o assunto de uma vez por todas . As duas
Mord-Sith trocaram um olhar . Zedd pressionou firme os lábios finos enquanto
considerava. Com frustração Nathan jogou o livro que estava segurando sobre a
mesa e passou a mão sobre o rosto enquanto plantava o punho esquerdo sobre o
quadril.
Richard não sabia o que poderia dizer a todos eles que teria qualquer
chance de fazê -los entenderem que algo profundamente sério estava errado no
mundo e Kahlan era apenas uma peça do quebra -cabeças... de longe a peça mais
importante, mas ainda assim uma parte de algo muito maior . Desde aquela manhã
quando ela desapareceu , ele ficava afirmando para si mesmo sobr e a urgente
necessidade de encontrá-la e isso nunca pareceu ajudar a convencer qualquer um
que ele sabia do que estava falando . Ele não tinha interesse em desperdiçar sua
energia novamente com as mesmas explicações infrutíferas .
— Você o quê? — falou Ann, seu desgosto borbulhando na superfície
como refugos em um caldeirão . Naquele momento ela estava parecendo muito a
Prelada outra vez , uma mulher baixinha que de alguma forma conseguia parecer
enorme.
— Tenho que encontrar Kahlan. — Richard repetiu.
— Não sei do que você está falando . Simplesmente não temos tempo

390
para essa bobagem . — Ann havia descartado os desejos dele, interesses, e
necessidades, sem falar naquelas que ele acreditava serem as suas razões racionais
e importantes . — Nós viemos para garantir que você chegue até o exército
D’Haraniano imediat amente. Todos estão esperando por você . Todos dependem
de você. Chegou o momento em que você deve liderar nossas forças na batalha
final que agora está rapidamente descendo sobre nós.
— Não posso. — Richard disse com uma voz suave mas firme .
— A profecia exige isso ! — Ann gritou.
Richard percebeu que Ann tinha mudado. Todos mudaram de pequenas
maneiras desde que Kahlan desapareceu, mas Ann mudara de formas mais
evidentes. Da última vez em que ela veio , com o mesmo propósito, exigir que
Richard fosse com ela para liderar a guerra , Kahlan havia lançado o Livro de
Jornada de Ann em uma fogueira, dizendo para a Prelada anterior que a profecia
não estava direcionando os eventos , mas ao invés disso Ann estava tentando fazer
as pessoas seguirem a profecia em um esforço para fazer ela tornar -se verdadeira,
que ela estava agindo como impositora da profecia. Kahlan mostrou para Ann
como ela mesma, como a Prelada, ao ser uma serva da profecia , na verdade poderia
muito bem ter sido aquela que conduziu o mundo ao limiar do cataclismo. Por
causa das palavras de Kahlan, Ann tinha feito uma avaliação em sua alma que
eventualmente ajudou a torná -la mais racional, e mais consciente de que era
Richard quem devia escolher faz er o que era certo.
Agora, com o desaparecimento da lembrança de Kahlan, tudo que
acontecera envolvendo Kahlan também foi apagado . Ann, como todos os outros ,
revertera para a disposição que mostrava antes da influência de Kahlan. Fazia a
cabeça de Richard doer, às vezes, apenas tentar lembrar exatamente o que Kahlan
tinha feito com todos que agora eles não lembrariam , para que pudesse levar isso
em consideração quando lidava com eles . Com algumas pessoas , como Shota, na
verdade isso de certas formas o ajudou. Shota, por exemplo , por ter perdido sua
recordação de Kahlan, não lembrou que disse a Richard que se algum dia ele
retornasse a Agaden Reach ela o mataria. Com outras pessoas , como Ann, isso
estava provando que deixava as coisas muito mais difíceis .
— Kahlan jogou o seu Livro de Jornada em uma fogueira. — ele falou
para ela. — Ela estava cansada de você tentar controlar a minha vida , assim como
eu.
Ann fez uma careta . — Eu mesma derrubei acidentalmente o meu Livro
de Jornada em uma fogueira .
Richard suspirou. — Entendo. — ele não queria discutir porque sabia
que não adiantaria. Ninguém da sala acreditava nele. Cara faria qualquer coisa
que ele quisesse que ela fizesse , mas ela não acreditava nele . Nicci não acreditava
nele, mas queria que ele agisse como ele acreditava que devia . Nicci foi quem na
verdade fornecera a ele o maior encorajamento que ele obtivera desde que Kahlan
desapareceu.
— Richard, — Nathan falou com uma voz mais gentil, mais benevolente.
— isso não é uma coisinha simples . Você nasceu para a profecia. O mundo está à
beira de uma grande era sombria . Você guarda a chave para evitar um mergulho
dentro dessa longa e terrível noite . Você é aquele que a profecia diz que pode
salvar a nossa causa... a causa na qual você mesmo acredita . Você deve cumprir
o seu dever. Não pode nos abandonar .
Richard estava cansado de ser conduzido pelos eventos . Ele estava no
fim de sua paciência com o fato de não entender o que estava acontecendo , em
sempre sentir como se estivesse um passo atrás do resto do m undo e dois passos

391
atrás de seja lá o que for que tenha acontecido a Kahlan. Ele estava ficando furioso
que todos estivessem dizendo o que fazer e que ninguém estivesse interessado
naquilo que era de grande importância para ele . Eles nem mesmo queriam deix ar
ele decidir o seu próprio destino . Eles pensavam que a profecia já tinha decidido
por ele.
Não tinha.
Ele precisava descobrir a verdade do que aconteceu com Kahlan. Ele
precisava encontrar Kahlan, ponto final. Ele estava cansado de perder tempo com
o que a profecia, junto com várias pessoas , pensava que ele devia estar fazendo .
Qualquer um que não estivesse ajudando estava , na realidade, atrapalhando ele
em uma coisa vitalmente importante .
— Não tenho a responsabilidade de viver de acordo com o que qua lquer
pessoa espera de mim. — ele falou para Ann quando pegava o pequeno livro que
Nathan trouxe com ele.
Ann e Nathan ficaram surpresos .
Ele sentiu a mão confortadora de Nicci nas costas dele. Ela podia não
acreditar na lembrança dele de Kahlan, mas pelo menos ela o ajudara a enxergar
que ele tinha que ser verdadeiro à seus princípios . Ela não permitiria que ele
perdesse sem luta. Ela foi uma valiosa amiga quando ele mais precisara .
A única outra pessoa que ele sabia que o apoiaria desse jeito , que o
defenderia desse jeito, era Kahlan.
Ele folheou as páginas em branco no livro que Nathan havia trazido.
Richard estava curioso para ver se havia mais alguma coisa que pudesse mudar o
quadro, se estavam apenas dizendo a ele aquilo em que queriam que ele
acreditasse. Ele também gostaria de encontrar algo... qualquer coisa... que o
ajudasse a entender o que estava acontecendo .
E alguma coisa estava acontecendo . A explicação de Zedd sobre o verme
profético pareceu boa, mas algo nisso incomodava Richard. Ela explicava o texto
faltando nos livros der profecia de um jeito que encaixava -se com aquilo em que
essas pessoas queriam acreditar . Era conveniente demais e , pior, era coincidência
demais.
Coincidências sempre deixavam Richard desconfiado.
Nicci também t eve uma boa avaliação; simplesmente parecia um pouco
conveniente demais que o corpo no Palácio das Confessoras tivesse uma faixa
com o nome de Kahlan bordado nela... caso houvesse qualquer dúvida , se alguém
desenterrasse o corpo ?
Após página em branco após pá gina em branco, Richard encontrou a
inscrição. Era exatamente como Nathan havia lido .
“No ano das cigarras , quando o campeão do sacrifício e do sofrimento ,
sob a bandeira tanto da humanidade quanto da luz finalmente dividir o seu
enxame, então será o sinal de que a profecia foi despertada e a batalha final e
decisiva está sobre nós . Tenha cuidado, pois todas as ramificações verdadeiras e
suas derivações estão entrelaçadas nessa raiz mântica . Somente um tronco
provém dessa origem primal conjugada . Se fuer grissa ost drauka não liderar
essa batalha final , então o mundo , já permanecendo no limiar das trevas , cairá
sob essa terrível sombra ”
Havia várias coisas sobre a passagem que intrigavam Richard. Uma das
coisas, a referência às cigarras . Parecia uma criatura simples demais para ter o
valor de uma menção profética , sem falar de um papel central na... supostamente...
mais importante profecia em três mil anos . Ele supôs que poderia fazer sentido
que ela fosse uma chave que ajudasse a definir a cronologia , mas, de acordo com

392
o que outros disseram a ele , a profecia nunca deixava seu caminho para
estabelecer cronologia, tornando isso uma das características mais difíceis da
profecia.
Também o incomodava que essa profecia , tão distante de tantas maneiras
da outra que ele havia lido no Palácio dos Profetas , também fizesse referência a
ele em Alto D’Haraniano como fuer grissa ost drauka . Ele imaginou que poderia
ser, como Zedd tinha sugerido, que tal ligação significasse que isso era
importante.
Mas a ligação com a profecia que Richard viu no Palácio dos Profetas
com a referência a fuer grissa ost drauka estava fortemente conectada a outra
coisa: as Caixas de Orden.
Na antiga profecia que nomeava Richard como aquele que traz a morte ,
a palavra morte significava três coisas diferentes , dependendo de como ela era
usada: aquele que traz o Submundo, o mundo dos mortos; aquele que traz os
espíritos, espíritos dos mortos ; e aquele que traz a morte, significando matar.
Cada significado era diferente , mas todos os três eram intencionais .
O segundo significado tinha a ver com o modo como ele usava a Espada
da Verdade, e o terceiro simplesmente que ele teve que matar pessoas . Mas o
primeiro significado envolvia as Caixas de Orden.
Ele concluiu que no contexto da profecia em questão, o terceiro
significado parecia o óbvio , que ele tinha que liderar o exército e matar o inimigo ,
então chamá-lo de fuer grissa ost drauka fazia sentido . Ainda assim , as coisas
pareciam terrivelmente convenientes .
Todas as explicações convenientes e co incidências estavam deixando
Richard mais do que apenas um pouco desconfiado .
Com o desaparecimento de Kahlan envolvido, ele sentia que tinha de
haver mais em tudo que estava acontecendo .
Ele virou para a página adiante da passagem , e então para aquela que a
precedia, checando. Elas estavam em branco .
— Tenho um problema com isso. — ele disse, olhando para todos os
olhos que observavam .
— E qual seria? — Ann perguntou quando cruzou os braços . Ela usou o
mesmo tom de voz que teria usado se estivesse falando com um garoto
inexperiente, não treinado, ignorante, recém trazido ao Palácio dos Profetas para
ser treinado no uso do seu Dom .
— Bem, não tem qualquer coisa ao redor. — ele falou. — Está tudo em
branco.
Nathan cobriu o rosto com uma das mãos enquanto Ann lançava os
braços ao ar em um gesto de raiva perplexa. — É claro que não ! Isso desapareceu,
junto com muito mais . Era justamente sobre isso que estivemos falando . É por
isso que essa é tão importante !
— Mas sem conhecer o contexto , você realmente não pode dizer que ela
é importante, pode? Para entender qualquer informação você deve conhecer o
contexto.
Ao contrário da agitação de Ann e Nathan, Zedd s orriu diante de lições
ensinadas há muito tempo e lembradas.
Nathan l evantou os olhos. — O que isso tem a ver com essa profecia?
— Bem, pelo que eu sei, podia haver texto mitigante pouco antes disso ,
ou alguma coisa logo após que descartasse sua importância . Com o texto faltando
como saberemos? Essa profecia pod eria ter sido suplantada por qualquer outra
coisa.

393
Zedd sorriu. — O rapaz tem um bom argumento.
— Ele não é um rapaz , — Ann rosnou. — ele é um homem, e o Lorde
Rahl, o líder do Império D’Haraniano que ele mesmo estabeleceu para lutar contra
a Ordem Imperial , e ele deve liderar essas forças . Todas as nossas vidas dependem
dele fazer isso.
Enquanto Richard folheava o livro , ele viu uma inscrição que não tinha
visto na primeira vez . Ele voltou a página até ela .
— Aqui tem mais uma coisa que não desapareceu. — ele disse.
— O quê? — Nathan perguntou com incredulidade quando virava para
olhar. — Não havia qualquer outra coisa . Tenho certeza disso.
— Bem aqui. — Richard falou, batendo com o dedo sobre as palavras.
— Aqui diz, “Aqui vamos nós ”. O que isso poderi a significar? E porque não
desapareceu?
— Aqui vamos nós? — o rosto de Nathan distorceu em uma expressão
de confusão. — Eu não tinha visto isso .
Richard retornou mais páginas . — Olhe. Aqui está novamente . A mesma
coisa. “Aqui vamos nós”.
— Eu poderia não ter percebido uma vez , talvez, — disse Nathan. —
mas de modo algum eu poderia não ter percebido uma segunda vez . Você deve
estar enganado.
— Não, olhe. — Richard falou, virando o livro para mostrar ao profeta .
Ele folheou o livro, retornando páginas em branco até chegar nas inscrições . —
Aqui está outra vez. Uma página toda com a mesma coisa escrita repetidas vezes .
Nathan ficou de boca aberta com admiração sem palavras . Nicci espiou
por cima do ombro de Richard. Zedd aproximou-se rapidamente dele para ver as
inscrições no livro. Até as duas Mord-Sith chegaram para dar uma olhada .
Richard folheou uma página adiante , para o que até um momento antes
estivera em branco. Ali, descendo a página, estava a mesma sentença escrita de
novo e de novo .
Aqui vamos nós.
— Observei você folheando de volta . — a voz aveludada de Nicci
carregava um claro tom de inquietação . — Sei que essa página estava em branco
faz um instante.
Arrepios percorreram os baços de Richard. O cabelo em sua nuca ficou
eriçado.
Ele levantou os olhos e viu algo escuro coalescendo das sombras
profundas sob o feixe de luz do sol que vinha da alta janela no final da sala.
Tarde demais , ele lembrou do aviso de Shota para não ler profecia, que
se ele fizesse isso a Besta Sangrenta seria capaz de encontrá-lo.
Ele tentou pegar a espada .
Sua espada não estava ali.

394
C A P Í T U L O 5 3

Com um gemido que soou como as almas condenadas de mil pecadores ,


redemoinhos e faixas negras materializaram -se da própria escuridão , como
sombras ganhando vida.
Quando as mesas do outro lado da sala foram erguidas violentamente, o
emaranhado negro explodiu através delas . Fragmentos de madeira de todos os
tamanhos voaram pelo ar .
Mesas despedaçaram em sequência enquanto a besta nascida de um
punhado de sombras movia-se pela sala em direção a Richard.
O som de madeira partindo e estalando ecoou através do ar empoeirado
da biblioteca.
Cara e Rikka saltaram na frente de Richard, cada uma com seu Agiel no
punho. Ele sabia muito bem o que aconteceria caso elas encontrassem com a besta .
O pensamento de Cara sendo ferida daquele jeito outra vez disparou a fúria dele.
Antes que elas conseguissem avançar contra a massa escura atravessando as
pesadas mesas da biblioteca , ele agarrou as duas por suas longas tranças louras e
com um grito de fúria puxou-as para trás .
— Não fiquem no caminho dela ! — ele gritou para as duas Mord-Sith.
Ann e Nathan ergueram os braços em direção à coisa , liberando magia
que fez a sala tremeluzir como se fosse enxergada através das ondas de calor sobre
uma grande fogueira. Richard sabia que eles estavam comprimindo o próprio ar
em uma tentativa de repelir o ataque . Seus esforços não tiveram efeito na massa
de sombras que deslizava e contorcia através da sólida madeira conforme cruzava
a sala. Todos eles recuaram , tentando manter distância entre eles e a ameaça .
Richard esquivou quando uma longa tábua ... a borda inteira de uma das
mesas despedaçadas... passou perto da cabeça dele e esmagou -se contra um poste .
Uma das lanternas quebrou abrindo , lançando óleo flamejante sobre antigos
tapetes, fazendo eles pegarem fogo . Fumaça cinza ergueu -se atrás deles enquanto
encaravam a besta avançando até Richard.
Zedd lançou um poderoso raio que atravessou o meio da massa escura
desordenada como se ela nem estivesse ali , apenas para atingir as prateleiras de
livros contra a parede do outro lado da sala . Livros e papéis flamejantes voaram
no ar. Grandes nuvens de poeira e fumaça subiram quando a sala foi preenchida
pelo som da explosão cacofônica.
Terríveis gemidos e ganidos , como os uivos dos condenados através de
um portal aberto para as profundezas do Submundo, brotaram da besta enquanto
ela seguia sempre avançando , quebrando os grossos postes de mogno . Lanternas
rodopiaram no ar quando foram lançadas , seus refletores prateados proj etando luz
bruxuleante ao redor da sala e criando sombras que mesclavam -se na besta
enquanto ela ficava cada vez mais densa , e mais escura ainda.
Magia sendo conjurada velozmente por Ann e Nathan não era visível
para Richard, mas parecia atravessar direto pela besta, como se ela fosse feita
com nada mais do que parecia , sombras misturadas, e mesmo assim a massa de
escuridão quebrava as sólidas mesas de madeira e postes , despedaçando -os
conforme a coisa avançava pela sala . Vigas retorcidas gemiam e tábuas es talavam
sob o estresse quando outro poste quebrou . A borda da sacada curvou , então caiu
vários pés antes de ficar pendurada . Outro poste explodiu quando fo rçado além

395
de sua capacidade de curvatura pelo avanço da ameaça escura . A borda da sacada
caiu mais alguns pés. Prateleiras de livros cambalearam sobre o chão desalinhado
e então caíram, enviando uma avalanche de livros dentro da sala principal .
No meio de toda a confusão , destruição, e barulho, enquanto recuava
pela sala, observando a ameaça que aproxim ava-se, tentando pensar em uma forma
de combatê-la, Richard sentiu sua camisa ser agarrada no ombro . Com força
surpreendente, Nicci lançou ele através do portal aberto . Tom, montando guarda
no corredor, segurou o outro braço de Richard e ajudou a puxá-lo para fora da
biblioteca enquanto Cara e Rikka seguiam, protegendo a retirada dele.
Na sala, a besta continuava avançando , esmagando tudo em seu caminho
quando virou em direção ao portal , em direção a Richard.
Ann, Nathan, e Zedd, todos invocaram forças que Richard não conseguia
ao menos enxergar, mas consegui a sentir pelo distúrbio no ar e através das ondas
de sensações desconfortáveis em seu estômago que aquilo causava nele . Ele podia
sentir o ar sendo manipulado enquanto a magia era conjurada e lançada .
Nada daquilo adiantou . Era como se estivessem atacando sombras .
Nicci virou de volta para a sala do portal e levantou um punho em
direção ao emaranhado de sombras seguindo até ela . A súbita explosão fez todos
encolherem-se e agachar quando ela liberou jatos de poder que eram cegamente
brilhantes e gelidamente sombrios combinados em um terrível disparo . A descarga
de poder trovejante estremeceu a Fortaleza , sacudindo o chão e levantando poeira
de cada fissura e canto . A corda serpenteante de destruição explod iu através da
besta, espalhando-se. Uma chuva de fagulhas caiu enquanto prateleiras voavam .
Madeira, detritos, e centenas de livros junto com punhados de papéis foram
lançados no ar, deixando páginas flutuantes deslizarem em meio ao pand emônio.
Parecia como se uma tempestade de papel tivesse explodido na sala .
A descarga de poder ensurdecedora de Nicci que estremeceu a Fortaleza
também cortou através de paredes de pedra como piche flamejante em papel . Pelas
fendas irregulares na rocha sólida , feixes empoeirados de raios de sol
repentinamente penetraram na sala . O contraste da luz súbita contra a sala
anteriormente escura tornou ainda mais difícil ver o amontoado de sombras
enquanto ele movia -se através da confusão da destruição .
Todos cobriram os ouvidos quando o gemido terrível que soava como
almas perdidas aumentou até um nível apavorante , como se o poder que Nicci
lançara tivesse mergulhado no Submundo para alvejá-las no santuário sombrio
delas.
Ainda que não parecesse que isso tinha feito muita coisa p ara deter a
besta sombria, pareceu atrair a atenção ela . Nada mais havia conseguido .
Nicci correu saindo pela porta e empurrou Richard, fazendo ele descer
o corredor. Ele estava relutante em deixar Zedd diante de tal ameaça, mas Richard
sabia que a coisa estava atrás dele e não de seu avô . Zedd estaria mais seguro se
Richard corresse. Porém, ele não achava que correr fosse necessariamente a
solução para a sua segurança .
— Fique fora do caminho dela , — Richard disse a Tom. — ela rasgará
você em pedaços . Isso serve para vocês duas também. — ele disse para Cara e
Rikka enquanto elas o conduziam descendo o corredor .
— Nós entendemos , Lorde Rahl. — falou Cara.
— Como matamos isso? — Tom perguntou enquanto eles descendo o
corredor, mantendo um olho atento em dire ção à biblioteca .
— Você não pode. — respondeu Nicci. — Aquilo já está morto .
— Oh, maravilha. — ele murmurou quando virou para ajudar Nicci,

396
Cara, e Rikka a garantirem que Richard continuasse em movimento . Richard
realmente não achava que precisava de qualquer encorajamento físico . Os gemidos
dos mortos eram o suficiente para estimular ele a correr .
Jatos de luz junto com gritos furiosos escaparam do portal enquanto
aqueles que estavam na sala ainda lutavam para destruir , ou ao menos conter,
aquilo que parecia como nada mais além de sombras vivas . Richard sabia que eles
estavam desperdiçando seu tempo . Aquilo era feito em parte com Magia
Subtrativa e eles não tinham qualquer arma contra isso . A coisa já tinha provado
isso para eles , mas provavelmente ele s estavam tentando distrair ela para
fornecerem a Richard t empo para fugir. Até o momento , aquilo não mostrara ser
susceptível a essas táticas . Shota tinha falado isso para ele .
Em um cruzamento , Richard tomou o corredor com painéis à direita . O
resto deles o seguiram. Em intervalos eles passavam por áreas abertas com
cadeiras, sofás e lanternas escuras . Lugares como aqueles algum dia devem ter
sido palcos de calorosas conversas e companheirismo .
Quando eles fizeram a curva e correram descendo um corredor m ais
largo com paredes de cor canela emassadas e pisos dourados de carvalho , uma
parede adiante explodiu . Poeira e detritos voaram em direção a eles. Richard
parou escorregando no chão de madeira polida e inverteu a direção quando o
amontoado de sombras emergiu da nuvem branca de poeira . Anteriormente todos
os outros haviam empurrado ele na frente , de modo que agora, tendo feito meia
volta, ele estava na traseira enquanto a besta rapidamente encurtava a distância .
Parecia como se a massa negra tivesse col etado mais sombras pelo
caminho... pequenas sombras anguladas , largas sombras, de cantos escuros, bruma
escura do crepúsculo... e juntou todas como se amontoasse papel . A maneira como
as sombras giravam sobre si mesmas geravam formas negras ondulantes que
constantemente turbilhonavam através umas das outras . Era estonteante observar ,
mesmo durante breves espiadas que ele fazia enquanto corria .
E ainda assim , aquilo era tão insubstancial que quando ele olhava por
cima do ombro podia ver luz de janelas distantes descendo o corredor através da
coisa. Porém, quando eles corriam fazendo curvas em esquinas , a besta às vezes
aumentava o tamanho e arrastava nas paredes , e quando fazia isso , estilhaçava a
madeira, gesso, ou rocha tão facilmente quanto um touro atravessando arbustos .
Richard não fazia Idea de como lutar contra um amontoado de sombras
que podia cortar rocha sólida sem ao menos reduzir a velocidade .
Ele lembrou dos homens de Victor na floresta, feitos em pedaços tão
violentamente em meros instantes . Imaginou se essa era a coisa que os matou , se
esse foi o destino que eles enfrentaram naquela terrível manhã quando a Besta
Sangrenta surgiu procurando Richard.
Dois magos e duas feiticeiras tentaram deter a besta conjurada de Jagang
sem qualquer efeito prático. E Nicci era mais do que uma simples feiticeira . Ela
fora treinada na sinistra arte de como usar a Magia Subtrativa em troca de
juramentos sombrios sobre os quais Richard temia pensar. Até mesmo aquilo não
deteve a besta, embora realmente tivesse conseguido obter uma reação .
Nicci parou e virou em direção ao conjunto de sombras avançando pelos
corredores com painéis de carvalho atrás deles. Parecia que ela pretendia lutar.
Quando alcançou -a, Richard, sem reduzir a velocidade , plantou o ombro no
estômago dela, fazendo ela perder o fôlego quando levantou -a do chão,
carregando-a sobre o ombro como um saco de grãos enquanto ele corria .
Os corredores ao redor iluminaram -se em um clarão cegante de luz
branca quando Nicci... tendo recuperado o fôlego rapidamente... lançou magia

397
para trás mesmo enquanto estava sendo carregada pelo corredor . O chão tremeu,
quando derrubando Richard enquanto ele corria . Escuridão, como o brilho de luz ,
alcançou-os e passou por eles durante um instante quando Nicci liberou um poder
terrível sobre a coisa que os perseguia . Pelo gemido agudo assustador que ecoou
através dos corredores , Richard imaginou que o esforço de Nicci devia ter causado
algum efeito.
Ela segurou a camisa dele com os dois pu nhos enquanto contorcia -se. —
Coloque-me no chão, Richard! Deixe que eu corra! Só estou atrasando você e
aquilo está nos alcançando ! Depressa!
Richard girou-a imediatamente em seu braço direito para que ela ficasse
voltada para o lado certo . Quando colocou-a no chão ele manteve seu braço em
volta da cintura dela até ter certeza de que ela estava equilibrada e podia correr
junto com o resto deles .
Com Nicci ao lado dele e Tom, Cara, e Rikka logo adiante, todos
seguiram rapidamente por corredores sem s aberem para onde estavam indo. Eles
mudavam aleatoriamente de curvas à direita para curvas à esquerda , passando por
alguns cruzamentos enquanto tomavam outros . Ele podia escutar a besta atrás
dele. Às vezes ela seguia pelos salões e corredores , às vezes, quando eles viravam
em uma esquina, ela cortava através das paredes , tentando reduzir a distância ,
tentando chegar até ele. Rocha, massa, e madeira pareciam não fazer diferença
para a coisa enquanto ela passava por cada uma delas com igual facilidade . Ele
sabia que uma coisa conjurada por Irmãs do Escuro e ligada ao Submundo teria
habilidades que nenhuma criatura comum possuiria , então ele não fazia ideia de
quais poderiam ser os limites dela .
Enquanto corria, ele gritou para as duas Mord-Sith e Tom. — Vocês três
sigam direto ! Tentem fazer a coisa seguir vocês !
Eles olharam para trás enquanto corriam e assentiram diante das ordens
dele.
— Aquela coisa não vai seguir eles , — falou Nicci em voz baixa
enquanto inclinava -se em direção a ele o melhor que podia no meio da corrida.
— Eu sei. Eu tive uma ideia. Fique comigo... vou seguir por aquela
escada adiante.
Em uma escadaria, quando os três na frente passaram acelerados ,
Richard colocou a mão na esfera negra de pedra sobre o poste de granito , girando
o corpo ao redor dele e para a direita . Nicci fez o mesmo e ambos dispararam
descendo a escada à toda velocidade . A besta cortou o canto , atravessando o poste,
lançando fragmentos de granito ricocheteando nas paredes e a esfera quicando
pelo corredor. Cara, Rikka, e Tom, já tendo passado pela escada , deslizaram
parando no chão de mármore polido . Eles estavam encurralados acima da besta .
Imediatamente eles a seguiram descendo a escada .
Richard e Nicci desciam saltando três ou quatro degraus de uma vez . Ele
conseguia ouvir o uivo sobrenatural da cosia logo atrás dele . Parecia como se ela
estivesse tocando nos cabelos em sua nuca... ela estava bem perto .
Na base da escadaria, Richard cortou para a direita , seguindo uma
passagem de pedra. A besta ficou maior, chocando-se contra uma parede cor de
canela de mármore polido . A placa de rocha despedaçou com um som alto mas a
besta seguiu adiante . Na primeira escadaria que Richard encontrou ele desceu
correndo, então pegou o segundo e o terceiro lance descendo até o fundo.
O largo corredor seguindo em linha reta a partir da escadaria tinha
tapetes em intervalos regulares , tornando mais difícil manter o apoio nos pés . As
paredes tinham alicerce de madeira sob gesso liso . Suportes espaçados pela

398
passagem, centralizados acima de cada tapete continham o que pareciam globos
de vidro que brilhavam conforme Richard corria em direção a cada um . Ele corria
o mais rápido que podia , Nicci ao seu lado, as sombras avançando como a própria
morte logo nos calcanhares deles .
Em uma escada em espiral , Richard pulou sentando de lado sobre o
corrimão e deslizou a uma velocidade vertiginosa em um curso saca -rolhas
descendo na escuridão . Perto dele, Nicci passou um braço ao redor do pescoço
dele para obter equilíbrio e fez o mesmo . Juntos eles mergulharam descendo ,
ganhando alguma distância preciosa de seu perseguidor .
No fundo o corrimão o s levou até um frio piso lajotado . Os dois
cambalearam pelas lajotas verdes lisas e escorregaram parando . Richard
recuperou o equilíbrio e pegou u ma das esferas brilhantes de um suporte .
— Vamos lá, depressa. — ela disse quando Nicci fez o mesmo.
Eles correram por salas intermináveis e passagens , seguindo a rota mais
desordenada que podia em um esforço de atrasar o caçador deles . Ocasional mente
eles ganhavam alguns passos preciosos . Outras vezes, especialmente nos
corredores, a coisa recuperava a distância e chegava cada vez mais perto . Algumas
das salas eram acolhedoras suítes com painéis. A besta parecia sugar as sombras
direto das frias lareiras escuras quando passava por elas . Os globos que eles
carregavam lançavam um brilho caloroso sobre tapetes tecidos de forma
intrincada e cadeiras ricamente estofadas . Prateleiras guardavam volumes em
couro. Richard bateu acidentalmente em uma estante de livros, mas manteve o
equilíbrio e continuou correndo .
Após descerem mais lances de escadas , algumas largas com patamares e
outras nada mais do que estreitos poços que pareciam sem fundo , as salas
começaram a ficar menos grandiosas. Algumas das paredes est avam lajotadas em
todos os lados com desenhos estranhos . Uma das câmaras era imensa e vazia , com
grossos pilares de pedra arredondados espaçados uniformemente do início ao fim .
As luzes que eles carregavam não era m suficientes para penetrar os recantos mai s
distantes. Ocasionalmente, as passagens eram pouco mais do que fendas cortadas
através da rocha sólida .
Outras salas e corredores estavam protegidos por escudos através dos
quais Richard cruzava deliberadamente . Ele não queria que Cara, Rikka, e Tom
chegassem perto da coisa que o perseguia . Não queria que eles encontrassem o
mesmo destino dos homens de Victor. Ele sabia que Cara ficaria furiosa com ele
quando ela ficasse bloqueada pelos escudos . Ele esperava viver para ouvir o
sermão dela.
Eles emergi ram daquilo que, enquanto corriam através dele, parecia ser
uma sala de armazena gem para materiais de construção , com sacos de aniagem e
rochas empilhadas em cada lado. Richard reconheceu o material de seu tempo em
Altur'Rang no trabalho forçado na constru ção do Palácio do Imperador Jagang.
Agora a besta de Jagang estava caçando ele.
Eles saíram do outro lado da sala de armazenagem dentro de um longo
corredor com piso de ardósia . As lisas paredes com blocos de pedra erguiam-se
ininterruptas até um teto elev ado que devia estar a pelo menos cento e cinquenta
pés acima, criando um estreito corte vertical enorme através do interior da
Fortaleza. No fundo daquela alta passagem, Richard sentiu-se como uma formiga.
Imediatamente ele cortou para a direita descendo o imenso corredor. O
som das botas deles ecoavam ao redor enquanto ele corria com toda sua energia .
Logo ele teve que reduzir um pouco por causa de Nicci. Ambos estavam perto do
final de suas resistências . O gemido de mil almas soava sempre avançando ,

399
parecendo nunca cansar.
Enquanto corria , Richard não conseguia ao menos enxergar o fim da alta
passagem que desaparecia longe . O fato de que esse era apenas um entre muitos
corredores transmitiu a ele uma profunda sensação da enormidade da Fortaleza .
Chegando em uma passagem que virava à esquerda , Richard virou e
correu por ela uma curta distância até onde eles encontraram uma escada de ferro .
Tentando recuperar o fôlego , ele olhou para trás e viu o amontoado de sombras
fazendo a curva. Empurrando Nicci na frente dele, eles desceram a escada juntos .
No fundo eles encontraram -se em uma pequena sala quadrada que era
pouco mais do que um cruzamento de passagens seguindo em três direções .
Richard segurou a esfera brilhante no alto , dando uma rápida olhada em cada
passagem. Não conseguia enxergar em duas delas . Na que ficava à direita ele
pensou ter visto algo cintilando . Ele já estivera lá embaixo na Fortaleza e tinha
encontrado lugares estranhos e um desses lugares era o que ele precisava agora .
Juntos ele e Nicci correram pela passagem . Como ele pensara , ela não
era muito longa , apenas longa o bastante para levá -los sob o corredor colossal e
então um pouco mais adiante até onde ela abria em uma espécie de área de entrada
com paredes cobertas com pequenos fragmentos de vidro colorido
meticulosamente dispostos em elaboradas figuras geométricas. A luz das duas
esferas brilhantes refletiu nos pequenos pedaços de vidro lançando milhares de
reflexos coloridos cintilando pela sala . Havia apenas uma outra abertura , contra
uma parede distante.
Richard parou bruscamente. A estranha sala cintilante fez a pele arrepiar
com uma sensação muito parecida com a de teias de aranha esfregando nele . Nicci
virou o rosto, esfregando a mão no rosto como se procurasse remover algo . Ele
sabia que tal sensação era parte de um alerta maior para ficar longe .
Pequenos pilares feitos de rocha polida com pontos dourados estavam de
cada lado da distante abertura suportando um entablamento . A passagem além dos
pilares, não muito mais alta do que Richard, parecia ser mais ou menos quadrada
e feita com simples blocos de pedra que desapareciam dentro da escuridão . Parecia
uma entrada elaborada e impressionante para um simples corredor que descia nas
entranhas do lugar.
Richard esperava estar certo sobre o motivo para isso.
Quando eles cruzaram a sala de entrada e aproximaram -se da abertura, a
área antes dos pilares começou a emitir um leve brilho avermelhado . O próprio ar
começou a zunir de uma forma bastante perturbadora .
Nicci, com o cabelo ficando arre piado como se estivesse prestes a ser
atingida por um raio , segurou o braço dele. — Aquilo é um escudo.
— Eu sei. — Richard disse enquanto arrastava ela pela mão que segurava
em seu braço.
— Richard, você não pode. Esse não é apenas um escudo comum... não
é apenas Aditivo . Está entrelaçado com Magia Subtrativa . Escudos desse tipo são
mortais, esse aqui especialmente .
Ele olhou para trás pelo caminho que eles vieram e viu a besta sombria
descendo a passagem em direção a eles . — Eu sei, já passei por lugares como
esse.
Ele esperava que estivesse certo de que esse escudo em particular era
como aqueles que tinha atravessado . Ele precisava de um do tipo que encontrara
antes, do tipo que guardava as áreas mais restritas . Se fosse algo menos , ou um
que na verdade fosse mais poderoso ou mais restritivo do que aqueles que ele já
tinha visto, então eles teriam grandes problemas .

400
O único caminho de saída da sala em que eles estavam era de volta
através da passagem com a besta que vinha atrás deles , ou avançando através do
escudo.
— Vamos lá. Depressa.
O peito de Nicci pulsava forte enquanto ela lutava para recuperar o
fôlego. — Richard, não podemos passar por ali . Aquele escudo vai arrancar a
carne de nossos ossos .
— Eu já falei , eu já fiz isso. Você pode comandar Magia Subtrativa,
então você também consegue atravessar . — ele começou a correr em direção a
passagem. — Além disso, se não conseguirmos , estamos mortos de qualquer jeito .
É a nossa única chance .
Com um rosnado de rendição , ela correu junto com ele através da ch uva
de reflexos cintilantes dos mosaicos de vidro que cobriam as paredes da sala . —
É melhor que você esteja certo a respeito disso .
Ele pegou a mão dela e segurou firme , só para garantir caso fosse
necessário ter nascido com o lado Subtrativo . Nicci não havia nascido com ele ,
mas havia adquirido seu uso . Ele não sabia muito a respeito de magia , mas de
acordo com o que aprendeu , existia um grande abismo entre ter nascido com ele
e simplesmente ser capaz de usá -lo. Ele ajudara outras pessoas , sem o Dom, a
cruzar escudos, então com as habilidades dela, e segurando -a com firmeza, ele
imaginou que conseguiria atravessá -la... quer dizer, isso se ele mesmo
conseguisse atravessar .
O ar ao redor deles tornou -se tão vermelho quanto uma neblina escarlate .
Sem pausa, Richard avançou através do portal , puxando Nicci com ele.
Pareceu que a súbita avalanche de pressão os esmagaria . Nicci arfou.
Richard teve que fazer força contra aquela pressão para avançar . Na
borda do plano pela abertura cercada pelos pilares de pedra polidos, o calor
espalhou-se na carne dele . Era tão intenso que por instante ele pensou ter
cometido um erro terrível , que Nicci estava certa, e que o escudo arrancaria a
carne dos ossos dele .
Mesmo quando ele encolheu -se reagindo por causa da inesperada
sensação de queimação , seu impulso o levou através do portal . Ele estava surpreso
não apenas por encontrar -se vivo, bem e ileso , mas também que a passagem não
fosse o que parecia do outro lado . Quando olhou pela abertura antes , ela parecia
uma simples passagem com blocos de pedra . Assim que passou dos pilares , ela
mudou para rocha polida que parecia brilhar com uma superfície prateada
ondulante que fazia ela parecer tridimensional .
Uma olhada para trás mostrou o emaranhado de sombras movendo -se até
a entrada da abertura. Ainda segurando a mão de Nicci, Richard recuou mais
dentro da passagem cintilante .
Ele estava exausto demais para correr novamente .
— Aqui nós vivemos ou morremos. — ele falou para ela enquanto
esforçava-se para recuperar o fôlego .

401
C A P Í T U L O 5 4

A sombra atingiu a abertura com um som tão reverberante que Richard


pensou que a passagem onde eles estavam certamente seria despedaçada . O que
havia sido uma forma escura ligeiramente coesiva explodiu em pedaços como
vidro sobre gr anito, fragmentando-se em milhares de estilhaços escuros . Gemidos
estridentes de apavorante angústia ecoaram através da passagem em uma terrível
finalidade quando luz incendiou em um cegante clarão vermelho . Na abertura
protegida pelo escudo , fragmentos negros de sombras voaram de volta pela sala
que estava cheia de reflexos cintilantes dos mosaicos de vidro . Com o que pareceu
uma chuva de meteoros comprimida em um instante , os fragmentos sombrios
explodiram em claras centelhas que voaram em todas as dire ções enquanto
mergulhavam no nada.
De repente estava tudo quieto a não ser pela respiração ofegante de
Richard e Nicci.
A besta havia desaparecido . Pelo menos ela sumiu por enquanto .
Richard soltou a mão de Nicci e os dois sentaram pesadamente no chão
e apoiaram as costas na parede prateada iridescente enquanto ofegavam exaustos .
— Você estava procurando por um desses escudos , não estava? — Nicci
perguntou enquanto batalhava para recuperar fôlego suficiente para conversar.
Richard assentiu. — Nada que Zedd, Nathan ou Ann conjuraram fez
qualquer coisa para deter a besta . O que você fez pelo menos pareceu ter causado
um efeito , mesmo que pequeno. Isso me fez pensar que devia existir algo que seria
capaz de anular ela, talvez não totalmente, mas pelo menos na forma em que ela
apresentou-se dessa vez.
— Eu sabia que os magos da época em que esse lugar foi construído
precisavam deter qualquer coisa que não pertencesse a esse local... e a besta ,
afinal de contas , era algo daqueles tempos , algo que Jagang encontrou descrito
em livros antigos. Então imaginei que aqueles que criaram os escudos aqui deviam
ter levado em conta esse tipo de eventualidades .
— Uma vez que eles são feitos para deter ameaças como essa, é
necessário, pelo menos, um elemento de Magia Subtrativa para atravessar os
escudos. Mas já que o inimigo também tinha poderes Subtrativos , acho que os
escudos de alguma forma também analisam a natureza de quem está tentando
passar por eles, talvez ao interpretar o nível potencial de ameaça. Poderia até
mesmo ser que enquanto estávamos sendo perseguidos através da Fortaleza e
continuamos cruzando escudos , eles de alguma maneira colheram informações não
apenas sobre a nossa natureza , mas da besta também de modo que quando
chegamos até esses escudos mais extremos, eles finalmente a julgaram como uma
ameaça e contiveram ela.
Nicci considerou o que ele dissera enquanto afastava mechas suadas de
cabelo louro do rosto . — Ninguém sabe realmente muita coisa sobre os dotados
daquela época, mas faz sentido que um tipo de antiga ameaça como essa fosse
vulnerável a antigas defesas . — ela fez uma careta como se uma ideia houvesse
lhe ocorrido . — Talvez escudos como esse pudessem até mesmo ser uma forma de
protegê-lo se aquilo aparecer novamente .
— Certamente, — ele disse. — se eu quiser viver aqui embaixo como
uma toupeira.

402
Ela olhou ao redor . — Tem alguma ideia de onde nós estamos ?
— Não, — ele falou, soltando um suspiro de cansaço. — mas acho que
seria melhor tentarmos descobrir .
Eles levantaram com dificuldade e seguiram o resto da distância
descendo a curta passagem . No final eles emergiram em uma sala simples
construída com blocos de pedra um dia cobertos por gesso que agora estava
desmoronando. A sala não tinha mais do que quinze passos de comprimento e não
era tão larga, com livros em prateleiras pela maior parte da extensão da parede à
esquerda.
Embora ela tivesse uma certa quantidade de livros , não era uma
biblioteca como tantas outras que ele viu na Fortaleza . Por um motivo, ela era
pequena demais. Por outro, ela não era elegante, ou mesmo bela, mas bastante
despojada. No máximo, ela poderia ser chamada de utilitária . Ao lado das
prateleiras, a sala era apenas larga o bastante para uma mesa do outro lado perto
de uma passagem levando para fora do outro lado . Havia uma vela gorda sobre a
mesa e um banquinho de madeira sob ela . A passagem na outra extremidade
parecia muito com aquela pela qual eles haviam entrado .
Quando Richard deu uma olhada, viu que ela possuía as mesmas paredes
de rochas prateadas cintilantes e outro escudo que parecia com aquele através do
qual eles tinham entrado na outra ponta da sala , de forma que, diferente de vários
lugares na Fortaleza que tinham escudos , não havia como contornar e entrar na
sala por outra rota sem escudos tão poderosos . Era através de um dos dois escudos
ou nada feito .
— Com toda essa poeira, — Nicci falou. — não parece que alguém tenha
limpado aqui dentro durante milhares de anos .
Ela estava certa. A sala era desprovida de cor além da cor cinza da poeira
que cobria tudo. O cabelo da nuca de Richard eriçou quando ele percebeu
totalmente o motivo .
— É porque ninguém esteve aqui durante milhares de anos .
— Verdade?
Ele apontou para a passagem mais distante que acabara de inspecionar .
— Os dois únicos caminhos de entrada até a qui estão protegidos com escudos que
exigem Magia Subtrativa para cruzá -los. Nem mesmo Zedd, o Primeiro Mago, já
esteve aqui dentro. Ele não pode atravessar escudos Subtrativos .
Nicci esfregou as mãos . — Especialmente esses escudos . Eu lidei com
escudos durante a maior parte da minha vida . Pelo que senti nesses , eles são
mortais. Suspeito que sem a sua ajuda até mesmo eu poderia ter sofrido alguma
dificuldade para atravessá -los na primeira vez .
Richard inclinou a cabeça para conseguir ler melhor os títulos enquanto
examinava os livros nas prateleiras. Alguns não tinham títulos nas lombadas .
Alguns estavam em línguas que ele não conseguia ler . Alguns pareciam que
poderiam ser diários . Entretanto, vários pareciam curiosos. Um livro pequeno ,
Gegendrauss , em Alto D’Haraniano significava Contramedidas . Ele puxou outro
ao lado dele com um pequeno tamanho similar intitulado Teoria Ordênica. Quando
soprou uma espessa camada de poeira , ele percebeu então que ele deve ter
chamado sua atenção porque Ordênica o fez lembrar de Orden, como em Caixas
de Orden. Ele imaginou se havia alguma conexão .
— Richard, veja isso. — Nicci gritou para ele da passagem distante .
Richard jogou o livro sobre a mesa quando caminhou até a passagem,
em direção ao escudo . — O que foi?
— Não sei. — a voz dela ecoou, e então ele viu o brilho escarlate ficar

403
mais forte e finalmente desaparecer .
Ele percebeu que ela deve ter ido além do escudo . Inicialmente
alarmado, Richard ficou extremamente aliviado que não tivesse ocorrido
quaisquer resultados horríveis . Nicci era uma feiticeira experiente . Ele suspeitou
que após ter cruzado o último escudo , ele devia ter aprendido quais perigos
procurar que indicavam a ela se conseguiria passar por esse tam bém. Ele concluiu
que talvez o primeiro escudo , quando ele ajudou -a a atravessar , houvesse entrado
em sintonia com ela, permitindo que ela cruzasse escudos como esse.
Cruzando o plano de pressão e o breve calor , ele entrou um uma pequena
sala além com mosaicos de vidro, como aquela na outra extremidade da pequena
sala de leitura. Ambas as salas deviam ter uma espécie de caminho de entrada
antes do escudo para fornecer o alerta para qualquer um que chegasse perto , ou
talvez eles fossem de alguma forma um auxílio para os próprios escudos . Nicci
estava logo além , em uma porta de ferro aberta , suas costas para ele , o farto cabelo
louro caindo ao redor dos ombros .
No corrimão da plataforma ao lado dela , Richard olhou dentro de uma
sala de torre arredondada com pelo menos cem pés de extensão . Degraus
espiralavam subindo pelo lado de dentro da parede externa curva . A torre erguia -
se acima deles por mais de duzentos pés . Em intervalos irregulares , pequenos
patamares como aquele onde eles estavam interrompiam os de graus sempre que
havia um portal. Na extensão sombria acima , feixes de luz cortavam a escuridão .
O lugar tinha um fedor podre . Na base da torre, não muito longe abaixo
do patamar onde eles estavam , ele viu um passeio com um corrimão de ferro que
circulava o interior da parede da torre. Chuva que podia entrar pelas aberturas
acima, junto com infiltrações da própria montanha , acumulava-se lá embaixo no
centro da torre. Insetos voavam sobre a água negra estagnada. Outros deslizavam
na superfície.
— Conheço esse lugar. — Richard disse enquanto olhava ao redor ,
localizando-se.
— Conhece?
Ele começou a descer os degraus . — Sim, vamos lá.
No fundo, ele seguiu o corrimão de ferro até uma larga plataforma no
passeio diante de um local onde um dia estivera uma port a. O portal havia sido
estourado e agora a abertura tinha talvez duas vezes o seu tamanho anterior. As
pontas irregulares da rocha quebrada estavam enegrecidas em alguns pontos . Em
outros a própria rocha havia sido derretida como se não fosse mais do que c era de
vela. Faixas retorcidas na superfície da parede de pedra corriam em todas as
direções a partir do buraco estourado , marcando onde uma espécie de raio havia
deslizado contra a parede e queimado ela .
Nicci ficou olhando admirada. — O que aconteceu aqui?
— Um dia esta sala esteve isolada , junto com o Mundo Antigo . Quando
eu destruí a barreira para o Mundo Antigo , isso abriu este selo.
— Porque? O que tem aqui dentro ?
— O poço da Sliph.
— A coisa sobre a qual você me falou que pessoas nos tempos antig os
usavam para viajar grandes distâncias ? A coisa na qual você viajou ?
— Isso mesmo. — ele disse quando passava através da abertura irregular
que um dia foi um portal .
A sala por dentro era cilíndrica, talvez com sessenta pés de diâmetro,
suas paredes também estavam chamuscadas com linhas como se um raio tivesse
atingido o lugar. Um muro circular de pedra com aproximadamente a altura da

404
cintura, formando o que parecia um enorme poço , ocupava o centro da sala .
O teto em domo era quase tão alto quanto a largura da sala. Não havia
janelas ou outras portas . Do outro lado do poço da Sliph havia uma mesa e algumas
prateleiras. Foi ali onde Richard encontrara os restos do mago que em tempos
antigos ficara selado dentro da sala quando as barreiras que acabaram com a
Grande Guerra foram trazidas à vida . Preso dessa forma, o homem morreu dentro
da sala isolada. Ele deixou um diário que agora estava com a Mord-Sith Berdine.
Aquele diário havia no passado , quando Richard e Berdine o traduziram , revelado
valiosa info rmação.
Por causa da importância da informação que eles obtiveram com o diário ,
eles chamaram o homem que o escreveu de Koloblicin, uma palavra em Alto
D’Haraniano que significa “forte conselheiro ”. Berdine e Richard eventualmente
passaram a chamar o misterioso mago de Kolo.
Nicci segurou o seu globo brilhante acima da borda e espiou dentro do
poço. As paredes lisas desciam aparentemente infinitamente , a luz iluminando a
rocha por centenas de pés abaixo antes de sumir na escuridão .
— E você diz que col ocou a Sliph para dormir?
— Sim, com isso. — Richard encostou levemente as partes internas das
faixas de couro prateadas que usava uma contra a outra . — Ela falou que quando
“dorme”, conforme ela definiu , ela reúne-se com a sua alma. Ela diz que para ela
dormir é um êxtase .
— E você consegue chamá-la de volta do mesmo jeito ? Usando essas
faixas?
— Bem, sim, mas, exatamente como para colocá -la para dormir, eu teria
que usar o meu Dom . Não é uma coisa que eu esteja ansioso para fazer outra vez .
Eu especialmente não gostaria de estar dentro desta sala , com apenas uma porta,
invocando a Sliph, quando a Besta Sangrenta também é chamada pelo meu Dom .
Nicci assentiu quando compreendeu o pensamento dele . — Acha que a
besta poderia segui-lo através da Sliph?
Richard pensou naquilo durante um momento . — Não posso dizer com
certeza, mas imagino que seja possível . Mas mesmo que ele não pudesse ela ainda
consegue aparecer onde quer que eu esteja , então eu não tenho certeza se ela ao
menos precisaria preocupar-se em usar a Sliph. De acordo com o que aprendi sobre
a natureza dela com você e Shota, assim como por experiência própria , suspeito
que a besta é capaz de viajar através do Submundo.
— E outras pessoas? — Nicci perguntou. — Alguma delas conseguem
usar isso?
— Para viajar na Sliph você precisa ter algum elemento dos dois lados
do Dom. Isso era um problema na Grande Guerra e foi por isso que eles m antinham
um mago sempre montando guarda nesta sala e no final tiveram que selar a sala...
para que o inimigo não pudesse entrar por ela direto no coração da Fortaleza .
— Agora, por causa da exigência de um elemento de ambos os lados da
magia, há poucas pessoas que podem usar a Sliph. Cara capturou pessoas que
possuem Magia Aditiva , e ela capturou u m homem que Kahlan falou que não era
inteiramente humano e que tinha um elemento de Magia Subtrativa . Isso foi o
suficiente para que Cara seja capaz de viajar na Sliph. O poder de uma C onfessora
é antigo e tem um elemento Subtrativo , então Kahlan pode viajar na Sliph. Essas
são as únicas pessoas que eu conheço que poderiam viajar na Sliph... além das
Irmãs do Escuro. Uma das minhas antigas professoras , Merissa, seguiu através da
Sliph atrás de mim. Você também poderia viajar na Sliph. É isso.
— Ainda assim, ela permanece um perigo se for despertada porque

405
Jagang poderia teoricamente enviar qualquer uma de suas Irmãs do Escuro através
dela.
— O que acontece se você não tiver ao menos algum elemento dos dois
lados? — perguntou Nicci. — Se, por exemplo, alguém como Zedd, uma pessoa
dotada que tivesse somente Magia Aditiva , tentasse viajar?
Richard moveu o braço para descansar a mão sobre o pomo de sua
espada, mas a espada não estava ali . Esperar encontrá-la e então perceber que a
entregara para Shota o deixava abatido... para Samuel, na verdade . Ele afastou a
constante preocupação fantasmagórica de sua mente .
— Bem, viajar conduz você a grandes distâncias , mas ainda leva algum
tempo... esse não é um procedimento instantâneo . Acredito que o tempo varia d e
acordo com a distância , mas sei que leva algumas horas , no mínimo. A Sliph
parece algo como mercúrio vivo. Para permanecer vivo dentro dela enquanto ela
o leva até o local para o qual você deseja viajar , você deve respirá-la, respirar
aquele líquido prateado. Você respira a Sliph, aquele líquido, e ele de alguma
forma o mantém vivo. Se você não tiver um elemento dos dois lados , isso não
funciona e você morre. Simples assim.
Por um rápido momento , Richard pensou em despertar a Sliph para
perguntar se ela lembrava de K ahlan, mas os magos antigos , homens de prodigiosa
habilidade, haviam criado a Sliph a partir de uma prostituta muito exclusiva e
altamente valorizada. Ela terminara envolvendo -se em intriga política que
eventualmente custou sua vida. A natureza daquela mulher ainda estava
parcialmente evidente na Sliph; ela nunca revelava a identidade de um de seus
“clientes”.
— É melhor nós subirmos de volta e mostrar a Zedd que estamos bem .
— os pensamentos de Richard retornaram aos problemas imediatos . — Agora Cara
provavelmente está cansada de ficar de mão amarradas .
— Richard... — Nicci disse com voz suave quando ele começou a andar .
Ele virou para trás para vê -la observando -o. — Sim?
— O que você fará a respeito de Ann e Nathan?
Ele balançou os ombros . — Nada. O que você quer dizer?
— Quero dizer, o que você fará a respeito das coisas que eles tinham a
dizer? O que fará a respeito da guerra ? A hora chegou, e acho que você sabe disso .
Não pode continuar perseguindo o seu sonho enquanto o resto do mundo encara o
fim de tudo que é bom... o fim de todas as esperanças e sonhos deles .
Ele ficou olhando para ela durante um momento . Ela não desviou os
olhos do olhar dele.
— Como você disse, aquele corpo lá embaixo nada prova .
— Não, mas certam ente prova uma coisa: que você estava errado a
respeito daquilo que encontraríamos lá . Escavar a cova falhou em provar o que
você achava que provaria... no mínimo . Isso deixa a pergunta do porqu ê? Porque
foi diferente daquilo que você disse que seria ? A única resposta possível na qual
consigo pensar é que alguém colocou aquilo ali com a ideia de que você
encontraria. Mas porquê?
— Faz algum tempo desde aquela noite na cova . Desde então você nada
conseguiu fazer. Talvez seja hora de você pensar sobre o quadro mais amplo. E
no quadro mais amplo, aquela profecia deixa as coisas bem claras. Compreendo o
valor de uma vida que você ama... mesmo se ela fosse real... mas até certo ponto
não acha que você deve pesar essa única vida contra as vidas de todos os ou tros?
Richard caminhou um pouco lentamente , deslizando os dedos sobre o
topo do muro de pedra ao redor da Sliph. Na última vez em que viajou na Sliph

406
ele levara Kahlan até o Povo da Lama para que eles pudessem casar .
— Tenho que encontrá -la. — ele olhou de volta para Nicci. — Eu não
sou uma ferramenta da profecia .
— Para onde você vai ? O que pode fazer em seguida ? Já esteve com
Shota, e veio até aqui falar com Zedd. Ninguém sabe qualquer cosia sobre Kahlan,
Cadeia de Fogo, ou o resto. Você esgotou todas as suas ideias, todas as suas
opções. Se não for agora, então quando será a hora de finalmente encarar a
realidade?
Richard esfregou as pontas dos dedos na testa . Mesmo que não quisesse
admitir, ele temia que Nicci estivesse certa. O que ele faria?
Não conseguia pensar em qualquer outro lugar para ir , em nada mais a
fazer. Pelo menos , em nada específico, pelo menos, não no momento . Ele não
conseguia imaginar que bem faria a ele perambular sem um plano , sem ideia de
onde procurar por Kahlan.
A sala estava compl etamente silenciosa . O poço da Sliph estava vazio, a
Sliph fora em algum lugar com sua alma . Ele imaginou se Kahlan ainda estava
viva. Engoliu em seco enquanto experimentava um daqueles breves mas
apavorantes momentos quando imaginava se algum dia ela estivera. Estava tão
cansado das dúvidas sempre crescentes , não apenas sobre Kahlan, mas sobre si
mesmo.
Ao mesmo tempo, ele estava sendo esmagado sob o peso da culpa por
não responder ao chamado para liderar o povo D’Haraniano contra a terrível
ameaça para a liberdade deles . Pensou em todas as incontáveis pessoas boas que
ele nem ao menos conhecia que também tinham pessoas queridas sob ameaça
mortal da tempestade da Ordem Imperial que aproximava -se. Ele poderia
simplesmente abandonar todos para ficar procu rando eternamente por Kahlan?
Nicci chegou mais perto.
— Richard, — ela falou com uma voz suave, aveludada, solidária. — eu
sei que é difícil dizer que acabou ... dizer que acabou , e perceber que você tem
que seguir em frente.
Richard rompeu o contato visual primeiro. — Não posso fazer isso ,
Nicci. Percebo que não consigo explicar isso satisfatoriamente , mas simplesmente
não posso fazer isso . Quero dizer, se ela ficasse doente e morresse , então eu
ficaria devastado, mesmo assim sei que teria que lidar c om a vida. Mas isso é
diferente. É quase como se eu soubesse que ela está em algum rio escuro em algum
lugar, pedindo ajuda, e eu fosse o único que consegue ouvir , que sabe que ela está
correndo terrível perigo de afogar -se.
— Richard...
— Você realmente acha que não me importo com todas as pessoas
inocentes sob ameaça da horda que vem para chaciná-las e escravizá -las? Eu me
importo. Não consigo dormir de preocupação , e não apenas preocupação com
Kahlan. Consegue ao menos imaginar como eu me sinto arrasado?
— Como se sentiria se você estivesse dividida entre alguém que ama e
fazer o que todos os outros dizem que é a coisa certa a fazer ?
— Eu acordo molhado de suor no meio da noite não apenas vendo o rosto
de Kahlan, mas os rostos de pessoas que nunca terão uma chance na vida se Jagang
não for detido. Quando me falam como t antas pessoas dependem de mim, isso
parte meu coração... porque eu quero ajudá-las, e porque elas acham que precisam
de mim, porque pensam que eu , um homem, posso fazer a diferença em uma guerra
envolvendo milhões de pessoas . Como elas ousam colocar tanta responsabilidade
sobre mim?

407
Ela chegou mais perto ainda e gentilmente colocou uma das mãos no
lado do braço dele , esfregando para cima e para baixo em um gesto confortador .
— Richard, você sabe que eu não desejaria que fizesse qualquer coisa que você
considerasse errada. Nem mesmo quando foi para deixar você acreditar que ela
estava morta baseada naquilo que eu sabia que não era uma boa evidência , ainda
que eu acreditasse n aquela evidência, mesmo que por outras razões .
— Eu sei.
— Mas desde aquela noite quando você cavou o túmulo , enquanto você
esteve andando de um lado para outro pensando no que podia fazer , eu também
estive pensando bastante .
Richard remexeu em pequenos fr agmentos de pedra do topo do poço , não
querendo ter que olhar para ela . — E quais foram as suas conclusões ?
— Entre outras coisas , enquanto observava você caminhando pelas
muralhas, uma ideia perturbadora me ocorreu . Ainda não tinha falado sobre isso
em parte porque não tenho certeza se isso poderia ser a resposta para o que está
acontecendo a você, e em parte porque se for , então seria um problema ainda
maior do que qualquer mera alucinação causada pelo seu ferimento . Não sei se
essa realmente é a resposta , mas temo que poderia muito bem ser . Porém, em
maior parte, eu não falei sobre isso porque a evidência está perdida , então não
tenho como provar, mas acho que chegou a hora de falar no assunto .
— Evidência? — perguntou Richard. — Você disse que a evidênci a foi
perdida?
Nicci assentiu. — A flecha com a qual você foi alvejado . Temo que tudo
isso pode ter sido causado por aquela flecha , mas de uma forma diferente e muito
mais perturbadora do que percebemos .
Richard foi pego de surpresa pela expressão grave de la. — O que você
quer dizer?
— Você viu quem atirou a flecha que o atingiu ? Quem segurava a besta?
Richard deu um forte suspiro enquanto olhava para o vazio quando
repassava os leves relances de imagens mentais da manhã da luta . Ele tinha
acabado de acorda r após ouvir o uivo de um lobo . Galhos de árvores sombreados
pareceram mover -se na escuridão. Então havia soldados por toda parte ao redor
dele. Teve que lutar contra homens vindo de todos os lados para cima dele .
Lembrou vividamente da sensação de segurar a Espada da Verdade, de sentir o
cabo com fios trançados em sua mão , do poder fluindo através dele .
Lembrou de ter visto homens recuados sobre árvores lançando flechas
nele. A maioria tinham arcos , mas alguns estavam com bestas . Isso teria sido bem
comum para uma patrulha das tropas da Ordem Imperial .
— Não... não posso dizer que lembro de ver quem disparou a flecha que
me atingiu . Porquê? Porque você pensou nisso ?
Nicci avaliou os olhos dele durante o que pareceu uma eternidade. Os
olhos dela às vezes faziam ele lembrar de outros com magia ; Ann, a antiga
Prelada; Verna, a nova Prelada; Adie; Shota; e... Kahlan.
— As farpas naquela flecha tornaram impossível removê-la de você de
qualquer forma normal em tempo para s alvar a sua vida. Eu estava com pressa
desesperada. Jamais pensei em checar a flecha antes de usar Magia Subtrativa
para arrancá-la da existência.
Richard não gostou do rumo no qual a preocupação dela parecia estar
seguindo. — Checar procurando o quê?
— Um feitiço. Um feitiço diabolicamente simples que seria
profundamente destrutivo .

408
Agora Richard tinha certeza de que não gostava da ideia dela mesmo que
ainda não tivesse ouvido .
— Que tipo de feitiço ?
— Um feitiço de Sedução.
— Sedução? — Richard fez uma careta. — Como isso funcionaria?
— Bem, pense nisso como uma poção do amor.
Richard olhou fixamente para ela surpreso . — Uma poção do amor?
— Sim, até certo ponto. — ela ficou batendo levemente as pontas dos
dedos entre ambas as mãos enquanto refletia sobre como explicar melhor. — Um
feitiço de Sedução faria com que você tivesse uma visão mental de uma mulher ,
uma mulher real seria o objeto normal do feitiço , mas enquanto pensava a respeito
eu percebi que também funcionaria com uma mulher imaginária . De qualquer
modo, isso faria você apaixonar -se por ela. Mas até mesmo essa é uma forma
muito fraca de descrever um feitiço tão poderoso . Sob um feitiço de Sedução a
mulher se tornaria uma obsessão . Tal obsessão excluiria quase tudo mais .
— Um feitiço de Seduç ão é uma espécie de segredo sombrio entre
feiticeiras, geralmente ensinado por uma mãe dotada . Um feitiço como esse seria
usado para deixar uma pessoa específica fixada no objeto do feitiço , normalmente
um indivíduo real... a própria feiticeira , na maioria dos casos . Como eu disse, é
um tipo de feitiço do amor .
— Algumas mulheres dotadas não conseguem resistir à tentação de usar
um feitiço de Sedução em homens. O feitiço é tão eficaz que no Palácio dos
Profetas era um assunto muito sério que uma das Irmãs ao menos fosse suspeita
de usar um feitiço de Sedução. Ser pega usando um feitiço de Sedução era um
crime grave, o equivalente moral a um estupro . A punição era severa . A feiticeira
era no mínimo banida, mas ela podia muito bem ser enforc ada. Houve Irmãs que
foram condenadas por tal crime .
— Conforme eu lembro , a última pega no Palácio foi há mais de
cinquenta anos. Ela era uma Noviça, Valdora. O tribunal estava dividido entre
enforcamento ou banimento . A Prelada acabou com o impasse e fez com que a
jovem Noviça fosse banida.
— Eu poderia esperar que as Irmãs de Jagang soubessem como invocar
um feitiço de Sedução. Não seria tão difícil para uma delas colocar um feitiço de
Sedução naquela flecha, ou em algumas das flechas daquela manhã . Se a flecha
não o matasse, ela o enfeitiçaria.
— Isso não é feitiço. — falou Richard, seu tom ficando mais sombrio .
Nicci ignorou não apenas o tom dele , mas também a negação . — Isso
explicaria muita coisa. Um feitiço de Sedução parece absolutamente real para a
vítima. Isso concentra sua mente, seu pensamento , no objeto da obsessão .
Mais uma vez Richard deslizou os dedos através do cabelo, tentando não
ficar furioso com Nicci. — Qual seria o propósito de fazer uma coisa como essa ?
Jagang quer me matar. Foi você quem disse que ele criou uma besta para realizar
essa tarefa. O feitiço do qual você está falando não faz o menor sentido .
— Oh, mas faz todo o sentido do mundo . Ele realizaria muito mais do
que apenas matá-lo, Richard. Não percebe? Ele destruiria sua cred ibilidade.
Deixaria você vivo para que você mesmo destruísse a sua causa.
— Eu mesmo? O que você quer dizer?
— Ele deixaria você obcecado com o objeto do feitiço de Sedução
excluindo todo o resto . Ele faria as pessoas pensarem que havia algo errado com
você, pensarem que você estava louco .
— Faria as pessoas começarem a duvidar de você , e assim da sua causa .

409
— Esse feitiço o condenaria a uma morte em vida . Destruiria tudo que
significa algo para você . Daria a você uma obsessão louca que você acreditaria
totalmente que é algo real , mas que jamais conseguiria satisfazer . Há uma boa
razão para que usar um feitiço de Sedução fosse um sério crime.
— Nesse caso, ao mesmo tempo em que você tenta encontrar o objeto da
sua lembrança fabricada , você vê a sua causa começar a desmoronar porque
aqueles a quem você inspirou e que acreditaram em você agora começam a pensar
que se você está louco , então talvez as coisas que você falou também eram loucas .
Richard imaginou que uma vítima de uma teia como essa não seria capaz
de reconhecer o feitiço de Sedução dentro de si. E certamente era verdade que
quase todos estavam começando a achar que ele estava louco .
— A verdade não depende da pessoa que a pronuncia . A verdade ainda
é a verdade mesmo se declarada por alguém que voc ê não respeita.
— Isso pode ser verdadeiro , Richard, mas os outros não agem
necessariamente com esse tipo de clara percepção .
Ele suspirou . — Acho que não.
— Assim como a besta, Jagang não conta necessariamente com apenas
uma coisa para fazer o trabalho e ele não possui qualquer relutância em fazer mais
do que seja necessário para esmagar seus oponentes . Ele pode ter pensado que
duas pragas seriam mais eficazes para acabar com a ameaça de Richard Rahl do
que apenas uma .
Richard certamente não duvidava daqui lo que ela falou sobre Jagang.
Mesmo assim , ele não acreditava nisso . — Jagang nem ao menos sabia onde eu
estava. Apenas aconteceu daquelas tropas cruzarem comigo quando estavam
vasculhando a floresta, verificando se havia alguma ameaça , para o comboio de
suprimento deles.
— Ele sabe que você começou a revolta em Altur'Rang. Poderia ter
ordenado que suas tropas na área carregassem flechas que estivessem enfeitiçadas
pelas Irmãs dele caso eles encontrassem com você .
Richard podia ver que ela realmente estive ra pensando bastante . Tinha
resposta para tudo.
Ele abriu os braços para os lados e levantou o queixo . — Então coloque
suas mãos em mim , feiticeira. Pegue o feitiço e arranque -o de mim pelos
tentáculos malignos dele . Restaure a minha sanidade. Se realmente acredita que
um feitiço de Sedução é a causa de tudo isso , então use o seu Dom para localizá -
lo e colocar um fim nisso .
Nicci desviou o olhar e observou a escuridão dentro da base da enorme
torre através do portal quebrado .
— Para fazer isso, eu precisaria da flecha. Ela não existe mais . Sinto
muito, Richard. Não pensei em checar a flecha procurando um feitiço antes de
eliminá-la. Eu estava ansiosa para retirá -la de você para salvar a sua vida . Ainda
assim, eu devia ter checado .
Ele colocou uma das mãos atrás do ombro dela . — Você não fez nada de
errado, minha amiga. Você salvou minha vida.
— Salvei? — ela virou para ele . — Ou condenei você a uma morte em
vida?
Ele balançou a cabeça . — Eu acho que não. Como você disse, não
deixaria que eu acre ditasse em algo se achasse que a evidência era insuficiente .
Aquele corpo enterrado lá não era prova suficiente . Ainda assim , ao mesmo tempo,
ele não devia estar lá , então estou convencido de que isso prova que alguma coisa
realmente está acontecendo . Apena ainda não descobri o quê .

410
— Ou isso prova que talvez a sua história não seja mais do que parte de
uma invenção gerada pela louca obsessão de um feitiço de Sedução.
— Ninguém lembra daquilo que aconteceu e que Kahlan não está
enterrada lá, mas eu lemb ro. Isso é algo sólido que mostra para mim, pelo menos,
que não estou imaginando tudo isso .
— Ou é simplesmente parte da alucinação... seja qual for a causa dela .
Richard, isso simplesmente não pode continuar para sempre . Tem que checar a
uma conclusão em algum ponto. Você está em um beco sem saída . Você pensou
em alguma outra coisa para tentar ?
Ele colocou as mãos sobre o muro de pedra do poço da Sliph. — Olhe,
Nicci, eu admito que estou ficando sem ideias , mas não estou pronto para desistir
dela, para desistir da vida dela. Ela significa demais para mim para que eu faça
isso.
— E por quanto tempo você acha que pode ficar perambulando sem
desistir dela, enquanto o tempo todo a Ordem Imperial marcha aproximando -se
cada vez mais de nossas forças? Não gosto da intervenção de Ann em minha vida
mais do que você gosta da intervenção dela na sua , mas ela não está fazendo isso
porque está tentando ser maliciosa . Ela está tentando preservar a liberdade . Ela
está tentando salvar pessoas inocentes de serem assassina das por brut amontes.
Richard engoliu o nó em sua garganta .
— Preciso pensar nas coisas , organizar meus pensamentos . Encontrei
alguns livros naquela sala lá atrás . Quero estudá-los durante algum tempo , só um
pouco, e tentar pensar nas coisas , tentar ver se consigo descobrir o que está
acontecendo e porque. Se não conseguir pensar em algo ... simplesmente preciso
pensar no que fazer em seguida .
— E se não conseguir pensar no que fazer em seguida ?
Richard inclinou-se sobre as duas mãos enquanto olhava fixamente
dentro do poço escuro , fazendo o melhor que podia para conter as lágrimas .
— Por favor...
Se ao menos ele soubesse com quem lutar , se ao menos ele pudesse
golpear um inimigo. Ele não sabia como lutar contra sombras em sua mente .
Nicci pousou uma das mãos gentilmente no ombro dele . — Está certo,
Richard. Está certo.

411
C A P Í T U L O 5 5

Nicci bateu na porta de carvalho com o topo arredondado e esperou .


Rikka, parada atrás dela, esperou junto com ela.
— Entre. — surgiu uma voz abafada.
Nicci pensou que havia soado como a voz poderosa de Nathan, ao invés
da voz de Zedd. Dentro da pequena sala arredondada que o avô de Richard gostava
de usar, ela viu o profeta junto com Ann, as mãos delas enfiadas em mangas
opostas do vestido cinza escuro simples enquanto ela aguardava pacientemente
pelos convidados deles . Nathan, usando calça marrom escura e botas altas , com
uma camisa branca com babados por baixo de uma capa, parecia mais um
aventureiro do que um profeta .
Zedd, em seu manto simples , estava quieto em uma janela arredondada
entre dois armários com portas de vidro , suas mãos cruzadas atrás das costas . Ele
parecia perdido em pensamentos enquanto contemplava a cidade de Aydindril
distante lá embaixo na base da mont anha. Era uma linda vista; Nicci podia
entender porque ele preferia a sala aconchegante . Rikka começou a fechar a grossa
porta de carvalho.
— Rikka, querida, — Ann sorriu com um sorriso treinado de Prelada,
atraindo a atenção da Mord-Sith. — minha garganta ainda está terrivelmente seca
por causa de toda aquela fumaça de ontem quando aquela criatura horrível colocou
fogo na biblioteca. Você se importaria em fazer para mim um pouco de chá , talvez
com um pouquinho de mel ?
Rikka, segurando a porta parcialmente fechada , balançou os ombros. —
De modo algum.
— Sobrou alguns dos seus biscoitos ? — Nathan perguntou com um largo
sorriso. — Os seus biscoitos são maravilhosos , especialmente quando estão
quentes.
Rikka olhou brevemente para todos na pequena sala . — Trarei biscoitos
e chá junto com um pouco de mel .
— Muito obrigada, minha querida. — disse Ann, o sorriso nunca
desaparecendo, quando Rikka desaparecia saindo pela porta .
Zedd, ainda observando pela janela , nada falou .
Nicci, ignorando Ann e Nathan, ao invés disso virou e dirigiu -se à Zedd.
— Rikka disse que você queria falar comigo .
— Isso mesmo. — Ann falou no lugar dele. — Onde está Richard?
— Lá embaixo naquele lugar sobre o qual eu falei , o lugar que ele
encontrou entre os escudos onde ele ficará seguro . Ele está lendo, procurando
informações, fazendo o que um Seeker faz, eu suponho. — com exagerado
cuidado, Nicci entrelaçou os dedos . — Então, vocês três querem conversar comigo
sobre Richard.
Nathan soltou uma curta risada que transformou -se em uma leva tossida
para limpar a garganta quando Ann olhou em direção a ele. Zedd, parado com as
costas voltadas para o resto deles , ficou olhando pela janela sem falar .
— Você sempre foi inteligente. — disse Ann.
— Esse não foi um palpite que exigiu grande intelecto . — falou Nicci,
não querendo deixar Ann seguir adiante com tamanha bajulação. — Se puder, por
favor, guarde o seu elogio até que eu faça algo para merecê -lo. — tanto Nathan

412
quanto Ann sorriram . O sorriso de Nathan até pareceu genuíno .
Bajulação tinha sido uma praga que acompanhara Nicci durante toda sua
vida. “Nicci, você é uma criança brilhante , então deve dar mais valor a si
mesma”. “Nicci, você é tão bonita , a criatura mais bela que eu já vi . Eu devo
abraçá-la”. “Nicci, minha querida, eu simplesmente tenho que experimentar uma
amostra do seu charme primoroso ou certamente morrerei como um homem
miserável”. Para Nicci, elogios vazios eram o som de um pé de cabra, uma
ferramenta usada por um ladrão enquanto ele tentava pegar o que ela possuía .
— O que posso fazer por vocês? — Nicci perguntou em um tom
metódico.
Ann, as mãos ainda enfiadas em mangas opostas , balançou os ombros .
— Precisamos conversar com você a respeito da infeliz condição de Richard. Foi
bastante chocante descobrir que ele está sofrendo delírios .
— Não posso discordar disso. — falou Nicci.
— Você tem quaisquer ideias ? — perguntou a Prelada.
Nicci deslizou os dedos para frente e para trás sobre o tampo polido da
mesa magnífica. — Ideias? O que você quer dizer com, ideias ?
— Não finja-se de tola, — Ann disse, o humor indulgente evaporando
de sua voz. — você sabe muito bem o que eu quero dizer .
Finalmente Zedd virou-se, aparentemente não gostando da atitude de
Ann. — Nicci, estamos m uito preocupados com ele . Sim, estamos preocupados
por causa da profecia e porque ela diz que ele deve ser aquele a liderar nossas
forças e todo o resto , mas... — ele ergueu uma das mãos e deixou -a cair com
frustração. — Mas estamos preocupados com Richard. Tem alguma coisa muito
errada com ele. Conheço ele desde o dia em que nasceu . Passei anos com ele ,
sozinho com ele, com ele perto de outras pessoas . Estive tão orgulhoso daquele
rapaz que não consigo começar a contar para você . Ele sempre foi alguém que
ocasionalmente faz coisas intrigantes , coisas que me deixam frustrado e confuso ,
mas nunca vi ele agir desse jeito . Nunca vi ele acreditar em histórias loucas assim .
Você não consegue imaginar o que ver ele desse jeito faz comigo .
Nicci coçou uma sobrancelha , usando isso como uma desculpa para
desviar o olhar da dor nos olhos castanhos dele . O cabelo branco dele parecia
ainda mais desgrenhado do que o normal . Ele parecia mais magro do que o normal ;
ele parecia abatido . Parecia um h omem que não havia dormido muito durante
semanas.
— Acho que posso entender os seus sentimentos , — ela garantiu a ele .
Deu um forte suspiro pensativo enquanto balançava lentamente a cabeça . — Não
sei, Zedd. Estive tentando descobrir isso desde o momento em que o encontrei
naquela manhã lutando para respirar e quase nas garras do Guardião.
— Você disse que ele perdeu muito sangue , — falou Nathan. — e que
ele ficou inconsciente durante dias .
Nicci assentiu. — É possível que uma condição como essa , tamanho
medo desesperado de não ter ar suficiente para respirar e pensar que morreria
daquele jeito , tenha feito ele sonhar com alguém que o amava... uma espécie de
truque para tentar acalmar -se. Eu costumava fazer algo similar às vezes quando
eu estava com medo; eu colocava minha mente em outro lugar , um lugar agradável,
onde eu estava segura . Com Richard, com a grande perda de sangue e o sono
anormalmente longo após ter sido curado , enquanto estava recuperado parte de
suas força... força o bastante para tentar so breviver perante aquela provação ...
bem, acho que durante o tempo todo o sonho poderia ter crescido e crescido em
sua mente.

413
— E dominou seus pensamentos. — Ann concluiu.
Nicci encarou o olhar dela. — Esse foi meu pensamento .
— E agora? — perguntou Zedd.
Nicci virou os olhos para contemplar as pesadas vigas de carvalho
através do teto enquanto procurava palavras . — Não sei mais. Não sou especialista
em coisas assim . Não passei minha vida exatamente como uma curandeira . Eu
imaginaria que vocês três saberiam muito mais sobre tais enfermidades do que eu .
— Bem, sim, para dizer a verdade, — disse Ann, fazendo uma careta
como se estivesse feliz em ouvir Nicci admitir isso. — nós poderíamos concordar
com essa avaliação .
Nicci olhou para os três com desconfiança . — Então, o que vocês pensam
que seria o problema dele ?
— Bem, — Zedd começou. — nós ainda não estamos prontos para definir
um número de coisas que...
— Vocês consideraram um feitiço de Sedução? — Ann perguntou,
fixando Nicci em seu olhar firme do jeito que ela costumava para fazer Noviças
tremerem e confessarem que estavam evitando suas tarefas .
Nicci não era uma Noviça e não estava mais su sceptível a tal
intimidação. Após ter Jagang, em uma fúria cega , segurando-a com uma das mãos
carnudas em volta do pescoço dela e socando-a com a outra, um olhar firme
dificilmente era algo que faria Nicci trem er. De fato, se o assunto não fosse tão
sério, uma coisa que sinceramente a preocupava tanto , ela poderia ter rido diante
do simpl es esforço de um olhar sério para extrair um relatório imprudente .
— Isso passou por minha mente , — ela falou, não vendo motivo para
negar. — mas tive que eliminar a flecha com Magia Subtrativa para salvar a vida
dele. Temo que, naquele momento, não pensei em tal ideia. Eu estava tentando
freneticamente impedir que ele morresse . Talvez eu devesse ter pensado que a
flecha podia ter sido enfeitiçada , mas não pensei . Agora sem a flecha não há como
dizer se esse realmente foi o caso e , sem a flecha, não tem jeito de fazer qualquer
coisa a respeito se isso for verdade .
Zedd esfregou sua mandíbula barbeada enquanto olhava em outra
direção. — Isso certamente torna as coisas mais difíceis .
— Difíceis? — disse Nicci. — Um feitiço como esse não é fácil de
reverter mesmo se você tiver o objeto que dessa forma infectou a vítima com um
feitiço de Sedução. Sem aquele objeto, somente a feiticeira que lançou o feitiço
de Sedução pode eliminá-lo. Você deve ter aquela teia que ca rregou a infecção se
deseja curá-la.
— E isso se você tivesse certeza de que era um feitiço de Sedução.
Poderia ser alguma outra coisa . Seja lá o que for , algum tipo de feitiço , ou delírio,
você tem que conhecer a causa se pretende curá -lo.
— Não necessari amente. — falou Ann quando ela olhou novamente para
Nicci. — Nesse ponto a causa não é mais um problema .
A testa de Nicci franziu. — Não é mais um problema... do que você está
falando?
— Se uma pessoa tem um braço quebrado você o coloca no lugar e
imobiliz a com uma tala. Você não desperdiça o seu tempo correndo de um lado
para outro fazendo perguntas , tentando descobrir como exatamente ela quebrou o
braço. Você precisa efetuar uma ação para corrigir a enfermidade ; conversar não
vai corrigir o problema.
— Acreditamos que ele precisa de nossa ajuda . — Zedd explicou em um
tom mais conciliatório . — Todos nós sabemos que as coisas que ele está dizendo

414
são impossíveis . No início, quando ele falou que entregou a Espada da Verdade
para Shota, pensei que ele tinha feito algo profundamente tolo , mas comecei a ver
que as ações dele não foram voluntárias e nem as dimensões delas foram captadas
de forma tão simples . Eu reagi com uma furiosa repreensão quando devia ter
enxergando o quanto ele realmente está doente e lida r com isso nesse contexto .
— Há momentos em que você consegue ver como alguém pode começar
a acreditar em algo estranho , mas o comportamento de Richard está muito além
de qualquer coisa que poderia ser remotamente descrit o como estranho. Tornou-
se claro que ele está sofrendo alucinações e agora todos nós percebemos isso . —
ele abriu os braços em um gesto súplica. — Tem alguma coisa que você possa
dizer em nome dele que faça qualquer sentido e que demonstre como podemos
estar errados em nossa análise ?
Zedd realmente pareceu estar sob grande tensão . Estava óbvio o quão
genuinamente ele estava preocupado com seu neto .
Nicci virou os olhos para o chão , incapaz de encarar a dor nos olhos
dele. — Sinto muito, Zedd, mas não sei de qualquer coisa que faça sentido .
Infelizmente, eu não acredito que o corpo que ele desenterrou prove alguma coisa
conclusiva ou que possamos ter chance de forçá -lo a aceitar a realidade da
evidência. Por outro lado, acredito que o corpo que ele desenterrou realmente era
da Madre Confessora, Kahlan Amnell, a mulher com quem ele sonhou ter um
relacionamento enquanto estava em seu confuso estado de dor quando foi ferido .
— Provavelmente ele ouviu o nome em algum lugar quando viajou pela
primeira vez até Midlands e isso ficou em sua mente . Provavelmente foi uma bela
fantasia. Para alguém que cresceu para ser um guia florestal , acho que esse seria
um sonho bastante natural , como imaginar que um dia ele pode partir para uma
terra estranha e casar com uma Rainha , mas então isso virou um sonho enqu anto
ele estava ferido, e depois uma obsessão .
Nicci teve que fazer um esforço para parar . Machucava demais falar tais
coisas a respeito de Richard para outras pessoas , mesmo se essas outras pessoas
também o amassem, estivessem preocupadas com ele e desejassem ajudá-lo. Até
Ann, mesmo que Nicci geralmente achasse que a mulher tinha motivos ocultos ,
realmente importava-se muito com Richard. Ele era um homem que Ann
acreditava ser necessário para cumprir a profecia , mas ela ainda sentia afeto por
ele como indivíduo.
Nicci sabia que estava fazendo a coisa certa naquilo que falou sobre
Richard, mas isso ainda fazia ela sentir como se o estivesse traindo . Podia ver o
rosto dele em sua mente , observando, silenciosamente sofrendo porque ela tão
friamente não acreditava.
— Nós acreditamos que , seja qual for a causa de sua falsa crença. —
disse Ann. — Richard precisa ser trazido de volta à realidade .
Nicci nada falou. Embora ela achasse que eles estavam certos , não sabia
se havia algo que pudesse ser feito , além de deixar ele, conforme o tempo passar ,
chegar até a verdade sozinho .
Nathan deu um passo adiante e sorriu para Nicci. Na sala pequena ele
pareceu ainda mais imponente. Mas eram seus olhos azuis escuros que eram tão
fascinantes. Ele abriu os braços em um gesto de claro apelo .
— Às vezes ajudar uma pessoa a machuca , mas depois ela vê como esse
era o único jeito, e então, quando ela finalmente está bem , fica feliz que você
tenha feito o que tinha de ser feito .
— Como consertar um braço quebrado. — Ann sugeriu, concordando
com as palavras de Nathan. — Ninguém deseja passar pela dor quando isso é feito ,

415
mas às vezes esse tipo de coisa é necessária se a pessoa quiser ficar bem e ter sua
vida de volta.
— Então, — Nicci perguntou fazendo uma careta. — vocês querem curar
ele?
— Isso mesmo. — Zedd disse a ela. Então, ele sorriu. — Encontrei uma
profecia sobre Richard que diz “Inicialmente eles irão contestá -lo antes de
tramarem para curá -lo”. Jamais pensei que isso aconteceria tão cedo ou dessa
maneira, mas acredito que todos nós concordamos que amamos Richard e
queremos que ele fique bem e esteja de volta conosco sendo ele mesmo .
Nicci pensou que devia ter alguma coisa mais do que qualquer um deles
estava dizendo. Começou a imaginar porque fizeram Rikka sair para buscar chá...
porque, exatamente, eles desejariam que a guarda costas de Lorde Rahl não
estivesse por perto.
— Eu já disse a vocês , não sou exatamente uma curandeira .
— Você fez um belo trabalho curando ele quando foi atingido por aquela
flecha, — falou Zedd. — nem mesmo eu conseguiria ter realizado tal feito .
Nenhum de nós nesta sala , além de você, Nicci, poderia ter realizado uma coisa
como essa. Você pode achar que não é curandeira , mas foi capaz de fazer aquilo
que teria sido impossível para qualquer um de nós .
— Bem, eu só tive sucesso porque usei Magia Subtrativa .
Ninguém falou. Todos ficaram apenas olhando fixamente para ela.
— Espere um minuto, — disse Nicci, olhando de uma pessoa para a
seguinte. — estão sugerindo que eu n ovamente, de alguma forma, use Magia
Subtrativa em Richard?
— Isso é exatamente o que estamos sugerindo. — Zedd falou.
Ann balançou uma das mãos em direção a Zedd e Nathan. — Se algum
de nós pudesse fazer isso , nós faríamos, mas não podemos. Precisamos que você
faça isso.
Nicci cruzou os braços. — Faça o quê, exatamente? Eu não entendo o
que vocês esperam que eu faça .
Ann pousou a mão no braço de Nicci. — Nicci, escute. Não sabemos o
que está causando a enfermidade de Richard. Não temos qualquer jeito de te ntar
curar algo quando não sabemos o que é . Mesmo se tivéssemos certeza de que era
um feitiço de Sedução que estava naquela flecha , sem aquela que lançou uma teia
como essa, ou sem a flecha , nenhum de nós trê s poderia eliminar o feitiço .
— Mas não podemos afirmar que foi um feitiço como esse, ou um tipo
de feitiço inteiramente diferente , ou se isso é simplesmente delírio causado pelo
ferimento. Não sabemos qual é a causa . Podemos jamais saber.
— O que deve ser feito agora , — ela falou de uma forma séria que não
tentava mais ser qualquer coisa além de uma coisa direta e honesta. — é eliminar
a obsessão... seja qual for sua origem . Não importa se isso foi causado por um
feitiço, um sonho, ou por algum súbito ataque de insanidade . A lembrança dessa
mulher, Kahlan, é uma lembrança falsa que está distorcendo o pensamento dele e
desse forma deve ser eliminada da sua mente.
Nicci estava estupefata com o que estava ouvindo . Ela olhou da antiga
Prelada para Zedd. — Você está seriamente sugerindo que eu use Magia Subtrativa
na mente do seu neto ? Quer que eu elimine uma parte da consciência dele ? Uma
parte de quem ele é?
— Não, não parte de quem ele é... jamais . Eu nunca desejaria isso . —
Zedd lambeu os seus finos lábios . Sua voz emergiu soando desamparad a e
desesperada. — Quero que você cure ele . Quero Richard de volta, o Richard que

416
eu conheço, o Richard que todos nós conhecemos... o verdadeiro Richard, não o
Richard com essas ideias estranhas tomando conta de sua mente e destruindo ele .
Nicci balançou a cabeça. — Não posso fazer isso com o homem que eu...
— ela fechou a boca antes de concluir a sentença .
— Eu teria de volta o Richard que amo, — Zedd falou em uma suave
súplica. — o Richard que nós todos amamos .
Nicci recuou um passo, balançando a cabeça , incapaz de pensar no que
dizer perante tal desespero . Tinha que haver outro jeito de trazer Richard de volta.
— Mostre para ela, — disse Nathan para Ann, sua voz repentinamente
soando de forma muito condizente com o profeta imponente que ele era , o Rahl
que ele era.
Ann assentiu em resignação e tirou alguma coisa do bolso . Ela ofereceu
para Nicci. — Leia isso.
Quando Ann colocou aquilo na mão de Nicci, ela viu que era um Livro
de Jornada. Ela olhou para Nathan, Ann, e finalmente para Zedd.
— Vá em frente. — disse o profeta . — Leia a mensagem que Ann recebeu
de Verna.
Livros de Jornada eram incrivelmente raros . De fato, Nicci pensava que
todos eles haviam sido destruídos no Palácio dos Profetas . Ela sabia que aquilo
que era escrito em um dos pares de livros gêmeos aparecia no outro . A pena
mantida na lombada que era usada para escrever no livro também era usada para
apagar mensagens antigas . Dessa maneira os Livros de Jornada nunca acabavam
ou tornavam-se obsoletos . Nicci abriu o valioso produto de magia anti ga e folheou
até a inscrição.

Ann, — o texto começava com clareza. — sinto informar que as coisas


não estão indo bem com nossas forças . Onde está Richard? Você ainda não
encontrou ele? Peço desculpas por pressioná -la novamente pois sei que você está
viajando com toda a pressa devida , mas os problemas com o exército ficam mais
sérios a cada dia . Homens desertaram... não muitos , entenda bem... mas agora
estamos em D 'Hara, e crescem os sussurros de que Lorde Rahl não vai liderá -
los em uma batalha que todos eles acreditam será suicida . A contínua ausência
de Richard apenas confirma esse medo para eles . Dia após dia eles sentem cada
vez mais que foram abandonados por seu Lorde Rahl. Nenhum dos homens
acredita que exista chance contra o inimigo se Richard não estiver som suas
próprias tropas para liderá -los.
O General Meiffert e eu ficamos mais desesperados diariamente a
respeito do que falar para homens desencorajados . Mesmo se houvess e uma boa
razão, ainda é difícil o bastante para os homens saberem que encaram a morte e
não terem notícias do primeiro líder em suas vidas no qual eles verdadeiramente
acreditaram.
Por favor, Ann, logo que você encontrar Richard, diga para ele o
quanto todos esses bravos jovens , que estão suportando o impacto de defenderem
nossa causa durante tanto tempo e já sofreram tanto , precisam dele. Por favor
descubra quando ele vai juntar -se a nós. Peça a ele para se apressar .

Aguardando notícias urgentemente ,


Sua na Luz,

Verna.

417
O livro baixou nas mãos de Nicci. Lágrimas queimavam seus olhos .
Ann retirou o Livro de Jornada dos dedos trêmulos de Nicci. — O que
você gostaria que eu falasse para Verna? O que você gostaria que ela falasse para
as tropas? — Ann perguntou em um tom suave , até gentil .
Nicci piscou com as lágrimas . — Vocês querem que eu acabe com a
mente dele? Querem que eu o traia?
— Não, de modo algum. — Zedd garantiu a ela, segurando o ombro dela
em seus dedos poderosos . — Queremos que você o ajude... que cure ele.
— Tememos até chegar perto de Richard em sua presente condição. —
falou Ann.
— Nós temos medo de que ele possa suspeitar de algo . Temo ser
parcialmente responsável por isso por causa da minha dura reação diante das
alucinações dele . Que o Criador me perdoe , mas passei minha vida governando as
vidas de pessoas e esperando obediência. É difícil abandonar velhos costumes .
Agora, ele pensa que eu pretendo de forma inflexível forçá -lo a seguir a profecia.
A desconfiança dele a nosso respei to está aumentando ... mas com você não.
— Ele confiaria em você. — Zedd falou. Você poderia colocar a mão
nele e ele não suspeitaria . — Nicci ficou olhando fixamente. — Colocaria a mão
nele... ?
Zedd assentiu. — Teria o controle dele antes que ele soubesse o que
tinha acontecido. Ele nada sentirá. Quando acordar, a lembrança de Kahlan
Amnell será apagada e ele será o nosso Richard outra vez.
Nicci mordeu o lábio inferior , incapaz de confiar em sua voz .
Os olhos castanhos de Zedd brilharam com lágrimas . — Eu amo muito
meu neto. Faria qualquer coisa por ele . Eu mesmo faria isso, se eu pudesse fazer
um trabalho tão bom quanto você . Quero que ele fique bem . Todos nós precisamos
dele bem .
Ele apertou o ombro dela mais uma vez . — Nicci, se você o ama também ,
por favor, faça isso. Por favor faça o que somente você pode e cure ele mais uma
vez.

418
C A P Í T U L O 5 6

— Mestre Rahl, seja nosso guia . Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl,
nos proteja. — Kahlan murmurou novamente.
— Em sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
Os ombros dela estavam doendo porque estivera ajoelhada no chão com
a testa encostada nas lajotas , pronunciando a Devoção repetidas vezes . A despeito
da fadiga dolorosa, ela realmente não se importava .
— Mestre Rahl, seja nosso guia . — Kahlan disse quando começou outra
vez em harmonia com as vozes unidas que ecoavam suavemente através dos
corredores de mármore .
— Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl, nos proteja. Em sua luz,
prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos
humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
De fato, ela considerou bastante agradável pronunciar as mesmas
palavras diversas vezes . Elas preenchiam sua mente, ajudando a aliviar o terrível
vazio. As palavras faziam ela senti r que não estava tão sozinha .
Tão perdida.
— Mestre Rahl, seja nosso guia, Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl,
nos proteja. Em sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
— alguns daqueles conceitos tocavam algo nela e ela os considerava
confortadores: vidas protegidas e prósperas onde o conhecimento e a sabedoria
prevaleciam . Ela gostava da imagem daquilo . Ideias como essas pareciam um
sonho maravilhoso.
As outras com ela estavam com pressa , mas quando tinham avistado os
soldados olharem em sua direção , decidiram que seria melhor elas irem junto com
o resto das pessoas reunindo-se em uma praça aberta ao céu nublado . Sob aquele
céu carregado jazia areia branca disposta em linhas concêntricas ao redor de uma
rocha escura. Sobre o topo da rocha havia um sino em uma armação grossa. Esse
era o sino que tocou e chamou todas as pessoas .
Pilares suportavam arcos nos quatro lados da abertura no teto da praça .
No solo lajotado entre as colunas , por todos os lados em volta de Kahlan, pessoas
estavam de joelhos , curvados para frente, com suas testas tocando as lajotas . Em
uníssono, todas entoavam a Devoção a Lorde Rahl.
Bem perto do fim da repetição seguinte , o sino sobre a rocha escura
tocou duas vezes. As vozes em volta de Kahlan foram reduzindo o volume
conforme todas concluíam juntas com “Nossas vidas são suas ”.
Na súbita calmaria , pessoas levantavam sobre os joelhos , muitas delas
espreguiçando -se e bocejando antes de ficarem de pé . Conversas iniciaram
novamente quando as pessoas começaram a partir , retornando aos seus assuntos ,
voltando para o que estivessem fazendo antes que o sino as tivessem chamado
para a Devoção.
Quando as outras com ela gesticularam , Kahlan seguiu as ordens e
moveu-se descendo o passeio, para longe da praça aberta . Elas passaram por
estátuas e um cruzamento antes de fazerem uma curva para um lado do largo
corredor. As outras três pararam . Kahlan permanecia em pé silenciosamente

419
enquanto aguardava e observava pessoas passarem .
A longa subida por escadarias infinitas , a caminhada por milhas em
corredores , e a subida por vários lances de mais escadas , tudo isso após chegar
ali em primeiro lugar, a deixara morta de cansaço . Ela teria gostado de sentar ,
mas sabia muito bem que era melhor não pedir . As Irmãs não se importavam se
ela estava exausta. O pior, entretanto, era que ela podia sentir como elas estavam
nervosas, especialmente depois da inesperada interrupção para o cântico.
Elas não reagiriam de forma amigável ou gentil a um pedido para sentar .
Com o humor em que elas estavam , se Kahlan ao menos pedisse , sabia
que elas não teriam o menor pudor a respeito de espancarem ela. Não achava que
fariam isso ali mesmo, não com todas as pessoas ao redor , mas certamente o fariam
mais tarde. Ela ficou quieta, tentando ser invisível e não atrair a ira delas .
Imaginou que ajoelhar teria que ser descanso suficiente ; isso era tudo
que ela conseguiria .
Soldados em belos uniformes , carregando uma variedade de armas
polidas de prontidão , patrulhavam os corredores , observando todos . Toda vez que
guardas passavam, quer fosse em pares ou em grupos maiores , seus olhares
conferiam cuidadosamente as três mulheres com Kahlan. Quando isso acontecia,
as três Irmãs fingiam que estavam olhando para estátuas , ou para alguma das ricas
tapeçarias com cenas do campo . Uma vez, para evitar a atenção de soldados que
estavam passando , elas agrupavam -se, fingindo não perceberem a presença dos
guardas enquanto apontavam para uma grande estátua de uma mulher segurando
um feixe de trigo enquanto apoiava-se em uma lança. Elas sorriam enquanto
falavam baixinho entre si como se estivessem aproveitando uma agradá vel
discussão sobre os méritos artísticos do trabalho até que os soldados tivessem
passado.
— Vocês duas poderiam sentar naquele banco ? — rosnou Irmã Ulicia.
— Parecem gatas sendo farejadas por um bando de cães de caça .
As Irmãs Tovi e Cecilia, ambas mais velhas, olharam em volta e viram
o banco que estava alguns passos atrás delas , contra a parede de mármore branco .
Elas ajeitaram o vestido sob as pernas quando sentaram ao lado uma da outra .
Tovi, pesada como era, parecia especialmente cansada . O rosto enrugado dela
estava vermelho como uma beterraba por ter ajoelhado ele encostado no chão .
Cecilia, sempre arrumada, aproveitou a oportunidade fornecida ao sentar no banco
para remexer em seu cabelo grisalho .
Kahlan seguiu em direção ao banco , aliviada por fin almente ter uma
chance para sentar .
— Você não. — disparou Irmã Ulicia. — Ninguém a notará. Apenas fique
em pé ali ao lado delas para que eu possa ficar de olho em você.
Irmã Ulicia ergueu uma sobrancelha como um alerta .
— Sim, Irmã Ulicia. — disse Kahlan.
Irmã Ulicia esperava uma resposta quando falava .
Kahlan aprendera essa lição do modo difícil , e teria respondido mais
cedo se não tivesse parado de escutar realmente após ter sido informada que a
oferta para sentar não incluía ela . Lembrou a si mesma de que mesmo se estivesse
cansada seria melhor prestar mais atenção ou ganharia um tapa agora e coisa muito
pior mais tarde.
Irmã Ulicia não desviou o olhar, ou permitiu isso a Kahlan, mas ao invés
disso colocou a ponta do seu grosso bas tão de carvalho sob o queixo de Kahlan e
usou-o para levantar a cabeça dela forçadamente .
— O dia ainda não acabou . Você ainda tem que fazer a sua parte . É

420
melhor nem ao menos pensar em me desapontar de qualquer forma . Você
entendeu?
— Sim, Irmã Ulicia.
— Bom. Todas nós estamos tão cansadas quanto você , você sabe disso.
Kahlan quis dizer que elas podiam estar cansadas , mas elas usaram
cavalos. Kahlan sempre tinha que andar e acompanhar os cavalos delas . Às vezes
teve que trotar ou até mesmo correr para evit ar ficar para trás . Irmã Ulicia nunca
ficava feliz se tivesse que dar a volta e retornar para buscar sua escrava lenta.
Kahlan olhou ao redor do passeio para todas as coisas maravilhosas
expostas. Sua curiosidade superou a cautela .
— Irmã Ulicia, que lugar é esse?
A Irmã bateu com o bastão contra a coxa dela enquanto conferia
rapidamente os arredores . — O Palácio do Povo. Um lugar muito bonito . — ela
olhou para trás, para Kahlan. — Esse é o lar de Lorde Rahl .
Ela esperou, aparentemente para ver se Kahlan diria alguma coisa.
Kahlan nada tinha para dizer . — Lorde Rahl?
— Você sabe, o homem para quem estivemos rezando ? Richard Rahl,
para ser precisa. Ele é o Lorde Rahl agora. — os olhos de Irmã Ulicia estreitaram .
— Já ouviu falar dele, minha querida?
Kahlan pensou naquilo. Lorde Rahl . Lorde Richard Rahl. Sua mente
pareceu vazia. Queria pensar nas coisas , lembrar, mas não conseguia. Imaginou
que simplesmente não havia o que lembrar.
— Não, Irmã. Não creio ter ouvido alguma vez sobre o Lorde Rahl .
— Bem, — falou Irmã Ulicia com aquele sorriso que ela mostrava de
tempos em tempos. — imagino que não teria . Afinal de contas , quem é você?
Apenas uma ninguém . Um nada. Uma escrava.
Kahlan conteve a sua vontade de protestar . Como poderia? O que diria?
O sorriso de Irmã Ulicia aumentou. Parecia como se os olhos dessa
pudessem enxergar direto na alma de Kahlan. — Não está certo, minha querida?
Você é uma escrava sem valor que tem a sorte de receber a caridade de uma
refeição.
Kahlan queria protestar, dizer que era mais, dizer que sua vida tinha
valor e valia à pena , mas sabia que coisas como essas eram apenas um sonho. Ela
estava extremamente cansada . Agora, seu coração também parecia estar pesado .
— Sim, Irmã Ulicia.
Sempre que tentava pensar a respeito de si mesma , havia apenas um
vazio. Sua vida parecia tão estéril . Ela achava que não devia ser , mas era.
Irmã Ulicia virou quando notou o olhar de Kahlan desviando para a Irmã
Armina que retornava, uma mulher madura com uma personalidade direta. O
vestido azul escuro d a Irmã Armina esvoaçava enquanto ela avançava apressada
pelo largo corredor em um curso serpenteante para seguir caminho entre as
pessoas caminhando pelo palácio engajadas em conversas e que não observavam
para onde estavam indo .
— Bem? — Irmã Ulicia perguntou quando a Irmã Armina alcançou-as.
— Fiquei presa em uma massa que entoava para nosso Lorde Rahl .
Irmã Ulicia s uspirou. — Nós também. O que você descobriu ?
— Esse é o lugar... logo atrás de mim no próximo cruzamento , então
descendo o corredor à direita . Porém, precisamos tomar cuidado .
— Porquê? — Irmã Ulicia perguntou quando as Irmãs Tovi e Cecilia
corriam chegando mais perto para escutarem .
As quatro Irmãs aproximaram mais as cabeças .

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— As portas estão logo ali ao lado do corredor . Não há como entrar lá
sem ser visto. Pelo menos para nós . Está bem claro que ninguém deve ao menos
pensar em entrar lá.
Irmã Ulicia olhou subindo e descendo o corredor para certificar -se de
que ninguém estava prestando atenção nelas . — O que você quer dizer com , está
bem claro?
— As portas são feitas especificamente para avisar as pessoas a ficarem
longe. Tem cobras entalhadas nelas .
Kahlan encolheu-se. Ela odiava cobras.
Irmã Ulicia bateu com o bastão contra sua perna enquanto cerrava bem
forte os lábios. Furiosa, ela finalmente direcionou seu olhar azedo para Kahlan.
— Você lembra de suas instruções ?
— Sim, Irmã. — Kahlan respondeu imediatamente.
Ela queria acabar logo com isso . Quanto mais cedo as Irmãs estivessem
felizes, melhor. Estava ficando tarde. A longa subida pel o interior do platô e
depois o cântico tomaram mais tempo do que as Irmãs tinham esperado . Ela
pensavam que a esta hora já teriam acabado e estariam seguindo seu caminho .
Kahlan esperava que, quando terminasse, elas pudessem acampar e
dormir um pouco. Elas nunca a deixavam dormir o bastante . Montar acampamento
significava mais trabalho para ela , mas pelo menos haveria a possibilidade de
dormir... contanto que não gerasse o descontentamento das Irmãs e uma surra.
— Muito bem, na verdade isso faz pouca difere nça na prática. Só teremos
que ficar um pouco além do esperado, só isso. — Irmã Ulicia coçou a bochecha
como desculpa para dar uma olhadela cautelosa , verificando os guardas , antes de
curvar-se novamente. — Cecilia, você fica aqui e checa qualquer sinal de
problema nessa extremidade do corredor . Armina, você retorna passando da
entrada e vigia o outro lado . Vá agora para que não pareça como se estiv éssemos
juntas enquanto nos aproximamos das portas , caso elas estejam sendo vigiadas .
Irmã Armina exibiu um sorriso. — Vou passear pelos corredores e
parecer com uma visitante deslumbrada até ela terminar .
Sem qualquer outra palavra , ela partiu .
— Tovi, — falou Irmã Ulicia. — você vem comigo. Seremos duas
amigas, caminhando e cantando e conversando enquanto visi tamos o grande
Palácio de Lorde Rahl. Enquanto isso , Kahlan estará cuidando de suas tarefas .
Irmã Ulicia agarrou o braço de Kahlan e girou-a. — Vamos lá.
Com um empurrão , Kahlan foi projetada na frente delas . Ela pendurou a
mochila enquanto avançava . Juntas, as duas Irmãs a seguiram descendo o
corredor. Quando elas alcançara o cruzamento onde tinham que virar à direita ,
dois grandes soldados voltaram -se em direção a elas . Eles deram apenas uma
olhada para Irmã quando passavam , mas sorriam em resposta ao sorriso de Irmã
Ulicia. Irmã Ulicia podia parecer inocentemente encantadora quando queria, e ela
era suficientemente atraente para que os homens prestassem atenção nela .
Ninguém notou Kahlan.
— Aqui. — falou Irmã Ulicia. — Pare aqui.
Kahlan parou, olhando através do corredor para as grossas portas de
mogno. As serpentes entalhadas nas portas olharam de volta para ela. Suas caudas
enrolavam -se em galhos entalhados nos topos das portas . Os corpos das serpentes
pendiam de forma que as cabeças estavam ao nível dos olhos . Presas projetavam -
se de mandíbulas abertas , como se as duas estivessem prestes a dar o bote . Kahlan
não conseguia imaginar porque alguém entalharia tais criaturas horríveis em
portas. Tudo mais no Palácio era bonito , mas essas portas não e ram.

422
Irmã Ulicia inclinou aproximando -se. — Lembra de todas as suas
instruções?
Kahlan assentiu. — Sim, Irmã.
— Se tiver alguma pergunta , faça agora.
— Não, Irmã. Lembro de tudo que você disse .
Kahlan imaginou porque conseguia lembrar tão bem de algumas co isas,
mas tantas outras pareciam perdidas em um nevoeiro .
— E não desperdice tempo. — disse Tovi.
— Não, Irmã Tovi, não vou desperdiçar .
— Precisamos daquilo que você está sendo enviada para recuperar , e
precisamos disso sem quaisquer tolices . — a malevolência cintilou nos olhos de
Tovi. — Entendeu isso, garota?
Kahlan engoliu em seco. — Sim, Irmã Tovi.
— É melhor, — falou Tovi. — ou responderá a mim e você não desejaria
isso, acredite.
— Eu entendo, Irmã Tovi.
Kahlan sábia que Tovi estava falando sério. A mulher geralmente tinha
um humor relativamente bom , mas quando provocada ela podia tornar-se cruel em
um piscar de olhos . Pior, uma vez que ela começava , adorava ver os outros
impotentes e em agonia .
— Então vá. — Irmã Ulicia falou. — E não esqueça, não fale com
qualquer pessoa. Se os homens lá em cima disserem qualquer coisa , apenas ignore-
os. Eles a deixarão em paz .
A expressão nos olhos da Irmã Ulicia fez Kahlan tremer. Ela assentiu
antes de avançar rapidamente pelo corredor . Seu cansaço estava esquecido, ela
sabia o que tinha de fazer , e sabia que se não fizesse haveria problemas .
Nas portas ela segurou uma das maçanetas que pareciam com um crânio
sorrindo, só que feita de bronze. Ela deliberadamente não olhou para as serpentes
quando imprimiu força para abrir a pesada porta .
Lá dentro , ela parou, deixando seus olhos ajustarem -se com a fraca luz
das lanternas . Os grossos tapetes em dourado e azul abafavam a sala e impediam
quaisquer um dos ecos como os de muitos corredores . A sala intimista , com
painéis do mesmo mogno que as portas altas , parecia um tranquilo refúgio do, às
vezes barulhento, Palácio .
Com a porta fechada atrás de si , ela percebeu que estava finalmente ,
totalmente distante das quatro Irmãs . Ela não conseguia lembrar de algum dia em
que estivera longe delas . Pelo menos uma das Irmãs estava sempre vigiando ela ,
vigiando a escrava delas . Não sabia porque elas a vigiavam tão atentamente , afinal
de contas, na verdade Kahlan jamais tentara escapar. Várias vezes considerou isso
seriamente, mas nunca chegou ao ponto de tentar .
Só o pensamento em tentar fugir das Irmãs causava uma dor tão terrível
que fazia ela sentir como se o sangue fosse e scorrer de seus ouvidos e nariz e que
seus olhos certamente explodiriam . Quando o pensamento de fugir das Irmãs e a
dor aproximavam -se sobre ela, ela procurava tirar o pensamento de sua cabeça
rápido o bastante, e mesmo assim a dor permanecia . Tal episódio geralmente a
deixava tão enfraquecida que seriam necessárias horas antes que ela ao menos
conseguisse ficar em pé , quanto mais caminhar.
As Irmãs sempre sabiam quando isso acontecia , provavelmente porque
encontravam ela jogada no chão . Quando a dor em sua cabeça finalmente
desaparecia, elas a espancavam . A pior era Irmã Ulicia porque ela usava a for te
vara que sempre carregava . Ela deixava ferimentos que demoravam para curar .

423
Alguns ainda não haviam curado .
Dessa vez, porém, elas ordenaram que Kahlan as deixasse e entrasse
sozinha. Elas disseram que isso não causaria a dor enquanto ela seguisse as
instruções. Era tão boa a sensação de estar longe daquelas quatro mulheres
terríveis que Kahlan achou que poderia chorar de alegria.
Dentro da sala, entretanto, havia quatro guardas enormes para tomarem
o lugar das Irmãs. Ela parou , se ter certeza do que f azer.
Serpentes em um lado de uma porta com serpentes entalhadas , e
serpentes do outro lado . Parecia que ela nunca era capaz de encontrar paz .
Kahlan ficou congelada durante um momento , com medo de tentar passar
pelos guardas , com medo do que eles poderiam fazer com ela por estar em um
lugar ao qual ela obviamente não pertencia .
Eles estavam olhando para ela da forma mais curiosa .
Kahlan reuniu sua coragem , prendeu um pouco do seu longo cabelo atrás
de uma orelha, e começou a andar até a escadaria que viu d o outro lado da sala .
Dois guardas moveram -se para bloquear o caminho dela. — Aonde você
acha que vai? — um deles perguntou.
Kahlan manteve a cabeça abaixada e continuou andando. Ela virou um
pouco de lado para conseguir passar entre eles .
Quando passou, o segundo guarda falou para o primeiro. — O que você
disse?
O primeiro homem, que perguntara a Kahlan aonde ela pensava que
estava indo , olhou fixamente para ele .
— O quê? Eu não falei.
Quando Kahlan chegou até os degraus , os outros dois guardas
caminharam até aqueles que tentaram bloquear o caminho de Kahlan.
— O que vocês estão resmungando ? — um deles perguntou .
O primeiro balançou uma das mãos . — Nada. Não é nada.
Kahlan subiu os degraus o mais rápido que suas pernas cansadas
permitiam. Ela parou no largo patamar para recuperar o fôlego , mas sabia que não
devia ousar descansar por muito tempo . Ela segurou o corrimão polido de pedra e
subiu o resto do caminho rapidamente .
Um soldado no topo virou imediatamente em direção ao som dos passos
dela. Ele olhou para ela quando ela entrava no corredor . Ela passou velozmente
por ele. Ele parou apenas um instante antes de virar e marchar para continuar sua
patrulha.
Havia outros homens no corredor... soldados . Soldados por toda parte.
Lorde Rahl tinha um monte de soldados, todos grandes e de aparência
concentrada.
Kahlan engoliu em seco de olhos arregalados com o medo por ver tantos
soldados no caminho daquilo que ela fora enviada para fazer . Se eles a fizessem
demorar, Irmã Ulicia não seria compreensiva, nem perdo aria. Alguns dos soldados
viram Kahlan e caminharam em direção a ela , mas quando aproximaram -se
perderam seus olhares concentrados e passaram direto . Enquanto Kahlan avançava
velozmente pelo corredor , outros guardas voltaram -se urgentemente para oficiais ,
mas então, quando questionados , diziam que não era nada , e para esquecer. Outros
homens levantaram um braço para apontar , apenas para então abaixarem antes de
continuarem em seu caminho .
Enquanto os homens avistavam -na e ao mesmo tempo esqueciam dela ,
Kahlan seguiu firme pelo corredor para onde fora informada que deveria ir .
Porém, o fato de que tantos dos homens estavam carregando bestas a preocupava .

424
Os homens com as bestas usavam luvas pretas . Suas armas estavam carregadas
com flechas com penas vermelhas de aparência mortal.
Irmã Ulicia havia falado a Kahlan que, como parte da magia que trazia
a dor para evitar que ela fugisse , ela foi envolvida por teias de magia que
impediam as pessoas de notarem ela . Kahlan tentou pensar em porque a Irmã faria
tal cosia, mas seus pensamentos simplesmente não conectavam -se, não reuniam -
se para formar a compreensão . Essa era a coisa mais assustadora , não ser capaz
de pensar em coisas específicas quando queria . Ela começava com a pergunta ,
então a resposta começava a formar-se, mas simplesmente desaparecia como se
não houvesse nada mais ali .
Entretanto, a despeito daquilo que foi conjurado ao redor dela , Kahlan
sabia que se um dos soldados apontasse a sua besta para ela e puxasse o gatilho
antes de esquecê-la, estaria morta.
Ela não se importaria em ser morta porque isso pelo menos significaria
ser libertada da angústia que era sua vida , mas Irmã Ulicia tinha avisado que as
Irmãs possuíam grande influência com o Guardião dos mortos . Irmã Ulicia disse
que se Kahlan ao menos pensasse em escapulir de seus deveres para com elas
cruzando as fronteiras do mundo dos vivos e fazendo a longa jornada para o mundo
dos mortos, ela descobriria que esse não era um refúgio e de fato provaria ser um
lugar muito pior. Foi então que Irmã Ulicia falou a Kahlan que elas eram Irmãs
do Escuro, como que para reforçar a veracidade do alerta .
Kahlan realmente não precisava dessa afirmação ; ela sempre tivera
certeza de que qualquer uma das quatro Irmãs poderia persegui-la em qualquer
buraco e alcançá-la, mesmo se esse buraco fosse um túmulo , como aquele que elas
abriram em uma noite escura por razões que Kahlan não conseguiu ao menos
imaginar e não quis saber .
Olhando dentro dos olhos terríveis da Irmã , Kahlan soubera que estava
escutando a verdade. Depois disso, enquanto a Morte a convidava com a
libertação, ela também aterrorizava ela com suas promessas sombrias .
Ela não sabia se essa sempre foi a sua vida , a vida como propriedade de
outros. Porém, não importava o quanto tentasse, ela não conseguia lembrar de
outra.
Enquanto passava por homens em patrulha , ela seguiu caminho através
de uma série de cruzamentos que Irmã Ulicia desenhara na terra para ela em vários
acampamentos enquanto elas viajavam . A Irmã tinha usado sua vara de carvalho
para fazer um diagrama dos corredores para Kahlan saber onde deveria ir.
Quando ela movia -se por aqueles corredores que havia memorizado ,
ninguém tentou detê-la. De certo modo, era deprimente que os homens não
prestassem atenção nela .
Era do mesmo jeito em toda parte, entretanto, ninguém a notava, ou se
notavam, imediatamente a desconsideravam e retornavam aos seus próprios
assuntos. Ela era uma escrava , sem a sua própria vida. Pertencia a outros . Isso
fazia ela sentir -se invisível, insignificant e, sem importânci a. Uma ninguém.
Às vezes, como quando fazia a longa subida subterrânea dentro do
Palácio, Kahlan via homens e mulheres juntos , sorrindo, um braço em volta do
outro, tocando um no outro . Ela tentava imaginar como seria aquela sensação...
ter pessoas que preocupavam-se com ela, gostavam dela... gostar dessas pessoas.
Kahlan enxugou uma lágrima de sua bochecha . Sabia que nunca teria
isso. Escravos não tinham vida própria , eram usados para os propósitos de seus
mestres; Irmã Ulicia tinha deixado isso bastante claro. Um dia, quando Irmã
Ulicia estava com aquel a expressão perversa nos olhos que às vezes ela mostrava ,

425
ela disse que estava pensando em fazer Kahlan reproduzir para que pudesse gerar
um descendente para elas .
Mas como tudo ficou desse jeito ? De onde ela veio? Certamente, o
passado das pessoas não evaporavam de suas mentes do modo como o de Kahlan
fizera.
No nevoeiro de seus pensamentos , ela não conseguia fazer a sua mente
trabalhar no problema. Fez perguntas, mas os conceitos pareciam estar
mergulhados em uma confusa neblina. Odiava a forma como não conseguia pensar .
Porque outras pessoas conseguiam pensar enquanto ela não ? Até essa pergunta
rapidamente desaparecia perdendo relevância no meio do lamaçal de sombras , do
mesmo jeito como ela desaparecia qu ando as pessoas a enxergavam .
Kahlan parou quando chegou a um par de enormes portas cobertas com
ouro. As portas pareciam como Irmã Ulicia dissera que pareceriam... uma imagem
de colinas e florestas todas banhadas em ouro . Kahlan olhou para os dois lados ,
então lançou todo o seu peso na tarefa de abrir uma das portas massivas o
suficiente para entrar.
Ela deu uma última olhada , mas nenhum dos guardas a estava
observando . Ela fechou a porta atrás de si .
Era muito maior do lado de dentro do que no corredor. Mesmo que fosse
um dia nublado as luzes do céu deixavam entrar um jato de luz que iluminava o
jardim mais surpreendente . Irmã Ulicia falou para ela sobre o jardim , em termos
gerais, mas para Kahlan, ver ele aqui no Palácio era algo além de qualquer coisa
que imaginara. O lugar era maravilhoso .
Richard Rahl era um homem de sorte por ter um jardim assim que podia
visitar a qualquer momento que desejasse . Ela imaginou se ele faria uma visita
enquanto ela estava ali dentro , a veria... e então a esqueceria.
Lembrando de sua tarefa, Kahlan falou a si mesma para manter sua mente
naquilo que havia sido enviada para fazer . Ela desceu rapidamente um dos
caminhos através de uma extensão de canteiros de flores . O solo estava coberto
por pétalas vermelhas e amarelas caída s. Ela imaginou se Richard Rahl colhia
flores aqui para sua amada .
Ela gostava do som do nome dele . Tinha um som reconfortante . Richard
Rahl. Richard. Imaginou como ele era, se era tão agradável quanto seu nome era
para os ouvidos dela.
Quando seguia pelo caminho, Kahlan olhou para as pequenas árvores
crescendo em volta dela. Ela adorava árvores . Elas faziam com que lembrasse ...
de alguma coisa. Ela rosnou com frustração . Odiava quando não conseguia
lembrar de coisas que, tinha certeza, eram importantes . Mesmo se não fossem
importantes, odiava esquecer coisas . Era como esquecer partes de quem ela era .
Ela passou apressada por arbustos e muros de pedra cobertos por
trepadeiras até chegar ao lugar gramado que Irmã Ulicia disse que estaria ali no
centro do jardim. Do outro lado o anel gramado estava cortado por uma laje de
pedra sobre a qual estava uma placa de granito , muito parecida com uma mesa .
Sobre a placa de granito supostamente deveriam estar as coisas que
Kahlan fora enviada para recuperar . Avistando-as repentinamente, ela estremeceu.
Os três objetos eram tão sombrios quanto a própria Morte . Parecia como se eles
estivessem sugando a luz da sala , das claraboias, do próprio céu, e tentando
engolir tudo.
O coração dela acelerou de pavor , Kahlan correu pela grama até a mesa
de granito. Estar tão perto de tais objetos de aparência sinistra a deixava nervosa .
Ela retirou as alças dos ombros e colocou a mochila no chão ao lado das caixas

426
negras que ela foi enviada para buscar . Seu colchonete, preso na parte de b aixo,
fez com que a mochila não ficasse em pé , então ela teve que encostá -la um pouco
para o lado.
Ela colocou a mão sobre o colchonete durante um momento , sentindo o
suave contorno daquilo que estava enrolado dentro dele . Era o pertence dela mais
precioso.
Então ela lembrou que era melhor voltar ao trabalho . Imediatamente ela
percebeu, porém , que teria um problema. As caixas eram maiores do que a Irmã
disse que ela achava que seriam . Cada uma delas era quase do tamanho de um pão .
De forma alguma caberiam t odas na mochila dela .
Mas aquelas foram as suas instruções específicas . Os desejos das Irmãs
conflitavam com a realidade de que as caixas não caberiam . Não havia como
satisfazer a contradição .
Lembranças de punições anteriores surgiram na mente dela , fazendo
surgir um brilho de suor em sua testa . Ela enxugou o suor dos olhos quando as
visões de tortura retornaram . Isso, de todas as coisas , ela praguejou
silenciosamente, ela precisava lembrar .
Kahlan decidiu que não havia outra coisa que pudesse fazer ; teria que
tentar.
Ao mesmo tempo , ela também lamentava ter que roubar coisas do jardim
de Lorde Rahl. Afinal de contas, elas não pertenciam às Irmãs , e Lorde Rahl não
teria colocado tantos homens posicionados em volta do jardim a não ser que as
caixas fossem importantes para ele.
Ela não era uma ladra. Mas isso valia o tipo de punição que ela receberia
caso recusasse? O sangue dela valeria o tesouro de Lorde Rahl? Lorde Rahl era o
tipo de homem que gostaria que ela recusasse a prática do roubo e como resultado
sofresse a tortura das Irmãs ?
Ela não sabia porque , e talvez estivesse apenas aliviando suas dúvidas ,
mas ela disse a si mesma que Richard Rahl falaria para pegar as caixas ao invés
de sacrificar a vida dela .
Ela abriu a mochila e tentou enfiar as coisas be m apertadas , mas havia
pouco espaço. Elas já estavam acondicionadas o mais apertado que poderiam ficar .
Com crescente preocupação de que estivesse demorando demais , ela
revirou roupas, tentando achar algo no qual embrulhar a primeira caixa .
Parte do seu vestido de seda apareceu .
Kahlan olhou para o material sedoso quase branco em seus dedos . Era o
vestido mais bonito que ela já tinha visto . Mas porque ela o teria? Ela era uma
ninguém. Uma escrava. O que uma escrava estaria fazendo com um vestido tão
bonito? Ela não conseguia fazer sua mente trabalhar para responder essa pergunta .
Os pensamentos simplesmente não agrupavam -se em uma resposta.
Kahlan pegou uma das caixas e enrolou -a na saia do vestido e enfiou
tudo na mochila. Ela curvou-se sobre a caixa, tentando empurrá -la mais fundo ,
então fechou a alça para testar . A alça mal cobria o topo da caixa e estava com
apenas uma ali dentro . Teve que cilhar bem a alça com a tira só para fazer ela
ficar no lugar. Não haveria como enfiar as outras caixas em sua moch ila.
Irmã Ulicia foi bem específica que Kahlan tinha que esconder as caixas
em sua mochila ou os soldados as veriam . Eles esqueceriam Kahlan, mas Irmã
Ulicia dissera que os soldados reconheceriam as caixas que Kahlan estava tirando
da sala do jardim e então eles soariam os alarmes . Kahlan foi avisada em termos
claros que tinha de esconder as caixas . Mas ela podia ver que não tinha jeito de
todas caberem ali .

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Ao redor da fogueira no acampamento fazia algumas noites , Irmã Ulicia
tinha colocado seu rosto bem perto do de Kahlan e sussurrado exatamente o que
faria a Kahlan caso ela falhasse em fazer conforme foi instruída .
Kahlan começou a tremer diante da lembrança daquilo que a Irmã Ulicia
disse para ela naquela noite terrível . Ela pensou na Irmã Tovi e tremeu ainda mais.
O que ela faria?

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C A P Í T U L O 5 7

Kahlan abriu uma das portas com as serpentes do outro lado . As Irmãs
Ulicia e Tovi imediatamente avistaram ela e com gestos furtivos indicaram a ela
para seguir até o local onde elas aguardavam no corredor. Elas não queriam ser
vistas perto das portas com as serpentes e os crânios .
Kahlan cruzou o corredor, observando os desenhos no piso de mármore ,
não querendo olhar nos olhos da Irmã Ulicia.
Assim que tinha caminhado pelo corredor e estava perto o bastante, Irmã
Ulicia agarrou a camisa de Kahlan no ombro e puxou -a para um nicho na parede .
As Irmãs Ulicia e Tovi prenderam ela ali dentro .
— Alguém tentou deter você ? — perguntou a Irmã Tovi.
Kahlan balançou a cabeça .
Irmã Ulicia soltou um suspiro. — Bom. Vamos dar uma olhada nelas .
Kahlan soltou a mochila de um ombro e virou -a o suficiente para frente
para que as Irmãs pudessem abrir a alça . As duas trabalharam na tira que a cilhava .
Elas finalmente a soltaram e abrira a alça .
As duas Irmãs ficaram b em encostadas, ombro com ombro , para que as
pessoas no corredor não pudessem ver o que elas estavam fazendo, ver que coisa
terrível elas estavam prestes a levar para a luz do dia . Irmã Ulicia afastou o tecido
branco de seda do vestido de Kahlan ainda enfiado parcialmente dentro da mochila
para verem a caixa negra aninhada ali dentro .
As duas ficaram observando em silenciosa admiração .
Irmã Ulicia, seus dedos tremendo de excitação , enfiou o braço no fundo
e começou a tatear , procurando as outras . Quando não encontrou -as ela deu um
passo para trás, uma expressão sombria surgindo em seu rosto .
— Onde estão as outras duas ?
Kahlan engoliu em seco. — Só consegui colocar uma dentro da mochila ,
Irmã. As outras não cabiam . Você falou para escondê-las dentro, mas elas eram
grandes demais. Eu vou...
Antes que Kahlan pudesse dizer outra palavra , antes que ela explicasse
que planejava fazer mais duas viagens para buscar as outras duas caixas , Irmã
Ulicia, furiosa, moveu sua vara com tanta força que ela assoviou no ar .
Kahlan ouviu um estalo ensurdecedor quando ela atingiu o lado de sua
cabeça com plena força .
O mundo pareceu ficar silencioso e negro .
Kahlan percebeu que estava no chão , encolhida sobre os joelhos.
Colocou uma das mãos sobre o ouvido esquerdo , arfando com dor paralisante. Ela
viu sangue espalhado no chão . Ela afastou a mão e viu que ela parecia como se
estivesse com uma luva quente e ensanguentada .
Ela só conseguia ficar olhando para sua mão e ofegar em pequenos
espasmos. A dor era tão esmagadora que sua voz não funcionava . Ela não
conseguiria ao menos gritar em agonia . Parecia como se ela estivesse olhando
através de um longo túnel negro enevoado . Seu estômago estava embrulhado .
De repente, Irmã Ulicia agarrou a camisa de Kahlan e levantou -a do chão
apenas para bater com ela contra a parede . A cabeça de Kahlan chocou-se na
rocha, mas em comparação com a dor que irradiava do lado de sua cabeça ,
mandíbula, e ouvido, isso pareceu não ter importância .

429
— Sua vadia estúpida ! — Irmã Ulicia praguejou quando empurrou
Kahlan e novamente bateu com ela contra a parede . — Sua vadia estúpida,
incompetente, sem valor!
Parecia que Tovi também queria colocar as mãos em Kahlan. Ela viu que
no corredor, metade da vara partida da Irmã Ulicia jazia encostada na parede.
Kahlan lutou para encontrar sua voz , sabendo que isso era sua única salvação .
— Irmã Ulicia, eu não consegui encaixar as três ali dentro . — Kahlan
podia sentir o gosto de salgadas lágrimas junto com sangue. — Você disse para
escondê-las dentro da mochila . Elas não cabem. Planejei voltar e pegá -las, só isso.
Por favor... eu voltarei para buscar as outras . Eu juro, pegarei elas para você.
Irmã Ulicia recuou, a fúria ardente nos olhos dela era assustadora . Ainda
que a mulher tivesse recuado , ela apontou para o centro do peito de Kahlan com
um dedo e Kahlan foi empurrada contra o mármore e ficou presa na parede com
uma força que pareceu tão massiva quanto um touro caindo sobre ela. Cada
respiração era uma luta dian te da pressão esmagadora . Era uma luta enxergar
através do sangue correndo sobre seus olhos .
— Devia ter enrolado as outras duas caixas no seu colchonete , então
agora você teria as três . Não é mesmo?
Kahlan não tinha pensado em fazer isso porque essa não e ra uma opção.
— Mas Irmã, tenho outra coisa enrolada em meu colchonete .
Irmã Ulicia inclinou-se outra vez. Kahlan temeu que agora fosse
incentivada a desejar estar morta , ou que estivesse prestes a morrer . Não tinha
certeza de qual destino seria pior . Ela sentiu a dor surgir dentro de sua cabeça
para igualar-se com a dor do golpe do lado de fora . Presa contra a parede, Kahlan
não podia cair no chão , cobrir os ouvidos , e gritar, ou teria feito isso .
— Não me importo com a bugiganga que você tem enrolada no s eu
colchonete. Devia ter deixado isso fora . As caixas são mais importantes .
Kahlan só conseguiu olhar, incapaz de mover -se por causa da força que
a mantinha contra a parede , e incapaz de falar por causa da força da dor em sua
mente. Parecia como se espinho s de gelo estivessem sendo enterrados lentamente
e girados em seus ouvidos . Seus tornozelos e pulsos tremiam involuntariamente .
Ela arfava com cada onda pulsante de agonia através de sua cabeça, tentando, mas
incapaz de afastar -se da dor lancinante.
— Agora, — Irmã Ulicia falou em uma voz baixa, ameaçadora, que
carregava mortal ameaça. — você acha que consegue fazer isso ? Acha que
consegue voltar lá e enrolar as duas outras caixas no seu colchonete e trazê-las
para mim como devia ter feito em primeiro l ugar?
Kahlan tentou falar, mas não conseguiu. Ao invés disso ela assentiu ,
desesperada em concordar, desesperada para que a dor parasse . Ela podia sentir o
sangue escorrendo do seu ouvido e o lado de sua cabeça ensopando o colarinho
da camisa. Ela estava n a ponta dos dedos , pressionada para trás, desejando poder
escorrer através da parede para escapar da Irmã Ulicia. A dor não deixava força
suficiente para ela respirar .
— Você lembra de ter visto alguns das centenas e centenas de grandes
soldados solitários nos recintos mais baixos desse Palácio quando nós estávamos
subindo? — perguntou a Irmã Ulicia.
Kahlan assentiu novamente.
— Bem, se falhar comigo outra vez , então, quando eu terminar de
quebrar cada osso do seu corpo e fazer você sofrer a agonia de mil mortes, então
vou curá-la o suficiente para que eu possa vendê -la para aqueles soldados lá
embaixo, para que você fique nas barracas das prostitutas deles . Ali será onde

430
você passará o resto da sua vida , sendo passada de um estranho para outro sem
que alguém se importe com o que aconteça a você .
Kahlan sabia que Irmã Ulicia nunca fazia ameaças vazias . A Irmã era
absolutamente impiedosa . Kahlan desviou os olhos quando conteve um gemido ,
sem conseguir suportar mais o escrutínio da Irmã .
Irmã Ulicia segurou a mandíbula de Kahlan e virou o rosto dela de volta .
— Tem certeza de que entende o preço caso falhe comigo novamente ?
Kahlan, com seu queixo seguro com firmeza , conseguiu assentir.
Ela sentiu a pressão colocando -a contra a parede desaparecer
repentinamente. Ela caiu de joelhos , arfando com as ondas de dor no lado esquerdo
do rosto. Não sabia se algum osso estava quebrado , mas certamente parecia que
estava.
— O que está acontecendo aqui ? — perguntou um soldado .
As Irmãs Ulicia e Tovi viraram e sorriam para o homem. Ele olhou para
baixo, para Kahlan, franzindo a testa . Ela olhou de forma suplicante para ele ,
esperando ser resgatada desses monstros . O homem levantou os olhos , sua boca
aberta, prestes a falar algo para as Irmãs , mas então nada falou . Ele olhou do
sorriso da Irmã Ulicia para o sorriso de Tovi, e sorriu.
— Está tudo bem, senhoritas ?
— Oh, sim, — Irmã Tovi disse com uma risada jovial . — estávamos para
fazer um descanso no banco aqui . Eu estava reclamando sobre a minha dor nas
costas, só isso. Nós duas estávamos falando sobre o incômodo que é envelhecer .
— Acho que é. — ele baixou levemente a cabeça . — Então, bom dia,
senhoritas.
Ele partiu sem perceber a existência de Kahlan. Se ele avistou -a,
esqueceu-a antes que pudesse dizer qualquer coisa . Kahlan percebeu que era desse
mesmo jeito que ela também parecia esquecer coisas sobre si mesma .
— Levante. — a voz acima dela rosnou .
Kahlan lutou para levantar -se. Irmã Ulicia virou a mochila de Kahlan
para frente outra vez . Ela levantou a alça e retirou a sini stra caixa negra
embrulhada no vestido de seda branco de Kahlan.
Ela entregou o embrulho para a Irmã Tovi. — Já estivemos aqui tempo
demais. Estamos começando a chamar atenção . Pegue isso e vá andando .
— Mas isso é meu! — Kahlan falou quando segurou o vest ido.
Irmã Ulicia deu um tapa nela forte o bastante para fazer os dentes dela
tremerem. O golpe fez ela cair no chão . Deitada de lado no chão , Kahlan encolheu
as pernas enquanto segurava a cabeça em agonia . Sangue manchou o mármore .
Ela tremeu quando a dor tomava conta e negava-se a reduzir.
— Quer que eu vá embora sem você ? — Irmã Tovi perguntou quando
colocava a caixa enrolada no vestido branco embaixo do braço .
— Acho que seria melhor . Será mais seguro se essa caixa estiver à
caminho enquanto essa vadia sem valor volta para buscar as outras . Se isso
demorar tanto quanto a primeira , eu gostaria que o mais cedo possível não
estejamos as duas aqui no corredor esperando que soldados decidam dar uma
olhada. Não precisamos de uma batalha ; precisamos escapulir s em deixar rastros .
— Se fôssemos interrogadas não seria bom que eles descobrissem que
estamos com uma das Caixas de Orden. — Irmã Tovi concordou . — Então eu devo
partir, e esperar por você em algum lugar ? Ou continuar até chegar a nosso
destino?
— Seria melhor você não parar agora . — Irmã Ulicia fez sinal para
Kahlan levantar enquanto falava com Irmã Tovi. — as Irmãs Cecilia, Armina, e

431
eu encontraremos com você assim que chegarmos ao lugar para onde estamos indo .
A Irmã Tovi inclinou um pouco em direção a Kahlan enquanto Kahlan
levantava com dificuldade . — Acho que isso dá a você alguns dias para pensar
sobre o que farei com você quando o resto de vocês reunirem-se comigo outra
vez, não é? — Kahlan só conseguiu emitir um sussurro . — Sim, Irmã.
— Faça uma rápida jornada. — falou a Irmã Ulicia.
Após Irmã Tovi descer rapidamente o corredor , levando o belo vestido
de Kahlan com ela, Irmã Ulicia agarrou o cabelo de Kahlan e puxou a cabeça dela
bem perto. Os dedos da Irmã tocaram no lado do rosto de Kahlan, fazendo ela
gritar.
— Você tem ossos quebrados. — ela anunciou após seu exame dos
ferimentos de Kahlan. — Complete a sua missão e vou curá-la. Falhe, e isso será
apenas o começo.
— A outra Irmã e eu temos várias outras coisas que devemos fazer antes
que nossos objetivos sejam alcançados . Você também . Se completar a sua tarefa
hoje você será curada. Gostaríamos que você esteja saudável para esses futuros
deveres... — a Irmã Ulicia deu tapinhas leves na bochecha de Kahlan de forma
condescendente... mas sempre posso fazer outros arranjos se você falhar nesse .
Agora, vá depressa e traga para mim as outras duas caixas .
Ela não tinha escolha , é claro. Independente da dor que estava sentindo ,
sabia que se não aceitasse , e logo, então a coisa apenas ficaria pior par a ela. Irmã
Ulicia havia mostrado a ela que sempre havia mais dor aguardando para ser
aplicada. Kahlan também sabia que não havia jeito de escapar das Irmãs .
Kahlan gostaria de poder esquecer a dor como parecia ter esquecido o
resto de sua vida. Parecia que apenas as partes ruins da sua existência
permaneciam nas sombrias câmaras de sua memória .
Respirando com dificuldade e quase explodindo em lágrimas por causa
da dor aguda, ela virou a mochila, passou o braço através da alça , e ergueu a coisa
toda em suas costas.
— E é melhor fazer o que eu disse e trazer as duas. — rosnou a Irmã
Ulicia.
Kahlan assentiu e seguiu rapidamente pelo largo corredor. Todos
ignoraram ela. Era como se ela fosse invisível. As poucas pessoas que olharam
em sua direção pareciam enx ergá-la apenas por um momento , antes que elas
também esquecessem que haviam notado ela .
Kahlan segurou o crânio de bronze com as duas mãos e abriu uma das
portas com serpente. Ela avançou pelos tapetes felpudos e passou pelos guardas
antes que eles consegu issem pensar em imaginar o que tinham visto . Ela subiu as
escadas, ignorando soldados que patrulhavam os corredores , alguns dos quais
viram brevemente para ela , como se tentassem manter a imagem dela em suas
memórias, antes de perderem sua atenção nela e p rosseguirem com seus deveres .
Kahlan sentia-se como um fantasma entre os vivos ; estava ali , mas não estava.
Ela grunhiu com o esforço de abrir uma das portas cobertas com ouro o
bastante para deslizar entrando no jardim . Estava com tanta dor que não conseguia
mover-se rápido o suficiente . Ela só queria voltar e que a Irmã fizesse a dor parar .
Como antes, o jardim estava tão silencioso quanto um santuário deveria estar . Ela
não teve tempo para notar ou contemplar as flores e árvores . Ela fez uma pausa
na grama, olhando para as duas caixas negras sobre a placa de rocha ,
momentaneamente imobilizada pela visão delas , e pelo pensamento sobre o que
disseram a ela para fazer .
Mais lentamente, ela cobriu o resto da distância , não querendo ao menos

432
chegar lá, não querendo fazer o que sabia que devia . Mas a agonia da dor pulsante
no lado de sua cabeça impulsionou -a adiante.
Parada diante da placa , ela finalmente retirou a mochila e colocou -a ao
lado das caixas deitada , ao invés de em pé. Ela esfregou o nariz sang rando atrás
da manga. Ela acariciou gentilmente o lado do rosto , temendo tocá-lo e tornar a
dor pior, mas ao mesmo tempo ansiosa para confortar a dor latejante . Ela quase
desmaiou quando sentiu algo pontudo projetando -se. Não sabia se era um
fragmento da vara partida da Irmã Ulicia, ou um pedaço de osso . De qualquer
modo, ela sentiu tontura e pensou que poderia vomitar .
Sabendo que tinha pouco tempo , ela passou um braço sobre o estômago
e com a outra mão começou a desamarrar as tiras de couro que seguravam o
colchonete ao fundo da sua mochila . Os dedos dela estavam melados de sangue ,
tornando a tarefa de desamarrar os nós mais difícil . Ela finalmente teve que usar
as duas mãos.
Quando finalmente estava com eles desfeitos , ela desenrolou
cuidadosamente seu co lchonete e tirou o que estava ali dentro , colocando sobre a
placa de pedra e abrindo espaço para as horríveis caixas negras . Ela conteve um
soluço, tentando não pensar no que estava deixando para trás .
Kahlan fez um esforço para efetuar o trabalho de enrol ar as duas caixas
restantes em seu colchonete . Quando terminou, ela amarrou as tiras , apertando-as
bem firme para garantir que as caixas não caíssem. Ao finalmente acabar, ela
pendurou a mochila nas costas novamente e com relutância começou a atravessar
a área aberta de terreno no centro do imenso jardim interno .
Enquanto cruzava o anel de grama , ela parou e virou , olhando para trás ,
através de sua visão embaçada, para aquilo que estava deixando sobre a placa de
rocha das caixas.
Era a coisa mais preciosa q ue tinha.
E agora estava deixando para trás .
Devastada e incapaz de prosseguir, sentindo-se mais desamparada e
impotente do que conseguia lembrar já ter sentido , Kahlan caiu de joelhos na
grama.
Ela curvou para frente enquanto começava a soluçar . Odiava sua vida.
Odiava viver. A coisa que ela mais amava estava sendo deixada para trás por causa
daquelas mulheres malignas.
Kahlan chorou incontrolavelmente , agarrando a grama em seus punhos .
Ela não queria deixar aquilo . Mas se não deixasse, a Irmã Ulicia jamais a deixaria
em paz por violar uma ordem direta . Kahlan soluçou por causa do quanto sentia
tristeza com sua situação , por causa da situação de desamparo dela .
Ninguém além das Irmãs a conhecia , ou ao menos sabia que ela existia .
Se ao menos uma pessoa le mbrasse dela.
Se ao menos o Lorde Rahl viesse até o jardim dele e a salvasse .
Se ao menos , se ao menos, se ao menos. Que bem fazia desejar?
Ela levantou e então , sentando sobre os calcanhares , olhou para placa de
granito através das lágrimas , para aquilo que havia deixado ali .
Ninguém a salvaria.
Ela não costumava ser assim . Não sabia como sabia disso , mas ela sabia.
Em algum lugar em seu obscuro passado , parecia como se ela fosse acostumada a
ser capaz de depender de si mesma , de sua própria força , para sobreviver. Ela não
costumava desperdiçar o seu tempo com “se ao menos”.
Observando através do jardim , do lindo jardim pacífico de Lorde Rahl,
ela obteve força daquilo que via ali agora, e, ao mesmo tempo, de algum lugar lá

433
no fundo de si mesma. Tinha que fazer isso agora... ser determinada , como tinha
certeza de que costumava ser . De alguma forma tinha que ser forte por si mesma ,
para o seu próprio bem .
De algum jeito Kahlan tinha que salvar a si mesma .
O que estava ali agora não era mais dela . Seria seu presente para Richard
Rahl em troca da nobreza da vida... da vida dela... que ela havia relembrado no
jardim dele.
— Mestre Rahl seja nosso guia . — ela citou da Devoção . — Obrigada,
Mestre Rahl, por guiar-me neste dia, por guiar-me de volta para aquilo que
significo para mim mesma .
Ela esfregou a parte de trás dos pulsos nos olhos , enxugando as lágrimas
e o sangue. Tinha que ser forte ou as Irmãs a derrotaria . Elas tomariam tudo dela .
Então elas venceriam .
Kahlan não podia deixar elas fazerem isso .
Então ela lembrou, e tocou no colar que usava . Ela girou a pequena pedra
entre o dedão e o indicador . Isso, pelo menos, ainda era dela. Ela ainda tinha o
colar.
Kahlan lutou para ficar em pé e ereta sob o peso da mochila. Primeiro
ela teria que voltar para que a Irmã Ulicia ao menos curasse o ferimento que havia
infligido . Kahlan aceitaria voluntariamente essa ajuda porque então ela seria
capaz de seguir adiante e encontrar uma maneira de vencer.
Com uma última olhada para trás , ela finalmente virou e dirigiu -se até a
porta.
Agora ela sabia que não podia submeter a sua força de vontade a elas , à
crença de que elas tinham direito sobre a sua vida . Elas poderiam derrotá-la, mas
não poderia ser porque ela permitiu .
Mas mesmo se no fim ela perdesse a sua vida , agora ela sabia que não
derrotariam seu espírito .

434
C A P Í T U L O 5 8

Richard caminhou lentamente de um lado para outro na pequena sala ,


mergulhado em pensamentos , repassando a lembrança da manhã quando Kahlan
desapareceu. Tinha que desvendar isso , e logo... por mais de uma razão . A mais
importante das razões , é claro, era ajudar Kahlan. Ele tinha que acreditar que
ainda poderia ajudá -la, que ela ainda estava viva e que ainda havia tempo .
Ele era o único que a conhecia , que acreditava na existência del a. Não
havia outro além dele para ajudá-la.
Também havia as implicações das preocupações mais amplas que o
desaparecimento dela geravam . Não havia como dizer até onde esses problemas
poderiam chegar . Nisso também, ele era o único que fazia oposição aos pad rões
escondidos que espreitavam por trás dos eventos .
Uma vez que até agora parecia que Kahlan não havia escapado de seus
captores, isso significava que ela não conseguia e precisaria de ajuda . Com a besta
aparentemente podendo atacar novamente a qualquer hora, Richard estava
dolorosamente consciente do quão facilmente ele poderia morrer a qualquer
instante, e se ele morresse , então a única pessoa que era a conexão dela com o
mundo deixaria de existir.
Tinha que usar cada minuto do tempo que tinha disponível para trabalhar
em prol de ajudá-la. Não podia ao menos preocupar -se em perder tempo
censurando a si mesmo por todos os dias que já tinha deixado escapar entre seus
dedos.
Tudo tinha começado naquela manhã , não muito tempo antes que ele
fosse atingido pela flecha , então ele decidira concentrar -se naquele evento e
recomeçar. Havia removido a enormidade do problema de sua mente para estreitar
o seu foco na solução . Ele jamais entenderia quem tinha Kahlan puxando os
cabelos e agonizando diante do fat o de que alguém estava com ela , ou tentando
convencer os outros de que ela existia . Nada disso funcionara, nem funcionaria.
Tinha até colocado de lado os livros , Gegendrauss e Teoria Ordênica,
que descobrira na pequena sala . O primeiro estava em Alto D’Haraniano. Fazia
um longo tempo desde que ele havia trabalhado com a antiga língua , então sabia
que não podia perder tempo nisso . Um breve exame dissera a ele que o livro
poderia guardar informações notáveis , embora não tivesse avistado qualquer uma
que fosse substancial . Além disso, ele estava sem prática na tradução de Alto
D’Haraniano. Não tinha tempo para trabalhar nisso até que primeiro resolvesse
outros assuntos.
O segundo livro era difícil de acompanhar , especialmente com a sua
mente em outro lugar, mas ele leu apenas o bastante do início para perceber que
o livro realmente era sobre as Caixas de Orden. Além do Livro das Sombras
Contadas, que ele memorizou quando criança , ele não lembrava de algum dia ter
visto outro livro sobre as Caixas de Orden. Só isso, sem falar no profundo perigo
das Caixas em si , dizia a ele que o livro era de imensurável valor . Mas as caixas
não eram problema dele no momento . Kahlan era seu problema . Ele colocara esse
livro de lado também .
Também havia outros livros na pequen a sala protegida , mas ele não teve
tempo ou inclinação para fazer uma busca neles . Decidira que devotar -se aos
livros antes que tivesse uma verdadeira compreensão do que estava acontecendo

435
apenas desperdiçaria mais tempo . Tinha que abordar o problema de um a forma
lógica, não com tentativas aleatórias, frenéticas, para de alguma forma arrancar
uma resposta do ar.
Seja qual fosse a causa do desaparecimento de Kahlan, tudo tinha
começado naquela manhã pouco antes da luta quando ele foi atingido com a flecha .
Quando Richard foi para cima do seu colchonete na noite antes da batalha , Kahlan
estava com ele . Sabia que ela estava. Lembrava de segurá -la em seus braços .
Lembrava do beijo dela, do sorriso dela no escuro . Ele não estava imaginando
isso.
Ninguém acreditaria nele, mas ele não estava sonhando com Kahlan.
Ele colocou essa parte do problema de lado também . Não poderia mais
preocupar-se em tentar convencer os outros . Fazer isso só estava desviando sua
atenção da real natureza do problema .
Nem poderia entregar-se ao medo de que os outros podiam estar certos
que ele estivesse apenas imaginando ela ; isso também era uma distração perigosa .
Ele lembrou a si mesmo da evidência real : a questão dos rastros dela .
Mesmo se ele não conseguisse fazer outros entenderem a vi da de
aprendizado que estava na compreensão do significado daquilo que ele viu quando
olhava para os rastros , ele sabia com certeza o que as evidências no solo revelaram
a ele. Havia uma língua nos rastros . Outros podiam não entender essa língua , mas
Richard entendia. Os rastros de Kahlan foram apagados, sem dúvida com magia,
deixando para trás um chão de floresta artificialmente perfeito demais e , o mais
importante, a pedra que ele descobrira ter sido chutada do lugar . Aquela pedra
disse a ele que estava certo. Disse a ele que não estava imaginando coisas .
Ele tinha que entender o que acontecera a Kahlan... e isso significava
como ela foi levada . A pessoa que fez isso tinha magia , isso ele sabia. Ela sabia
pelo menos isso por causa da forma como os rastros deles foram alterados . Saber
isso reduzia as possibilidades de quem poderia ser responsável. Tinha que ser
alguém com magia enviado por Jagang.
Richard lembrou de acordar de um sono pesado naquela manhã e ficar
deitado ali de lado . Ele lembrou de não cons eguir abrir os olhos por mais do que
um momento por vez e de não ser capaz de levantar a cabeça . Porque? Ele não
achava que era porque estava grogue por ainda estar meio adormecido ; tinha sido
mais forte do que isso . Pareceu com sonolência , só que mais forte.
Mas a parte da lembrança que o deixava no atorme ntador, frustrante,
limiar da compreensão , era o que ele lembrava de ter visto na escuridão do falso
amanhecer enquanto ficara deitado ali tentando despertar completamente . Essa
parte da lembrança agora e ra onde ele colocava toda sua atenção , todo o seu
esforço mental, toda sua concentração .
Ele lembrou de galhos de árvores sombreados que pareciam mover -se,
como se fossem carregados para frente e para trás no vento .
Mas não tinha vento naquela manhã . Todos estavam certos a respeito
disso. O próprio Richard lembrava de como tudo estava completamente parado .
Mas as formas escuras dos galhos de árvore estavam movendo -se.
Isso parecia uma contradição .
Mas, como Zedd havia destacado com a Nona Regra do Mago ,
contradições não podem existir . A realidade é o que é. Se alguma coisa contradiz
a si mesma então não seria o que é . Essa era uma regra fundamental da existência .
Contradições não podem existir na realidade .
Galhos de árvores não podiam balançar sozinhos e nã o havia vento para
movê-los.

436
Isso significava que ele estava olhando para o problema de forma errada .
Ele sempre estava surpreso como os galhos de árvores podiam mover -se ao vento
quando não existia vento . O simples fato era que eles não poderiam . Talvez
alguém os estivesse movendo .
Andando de um lado para outro na pequena sala , Richard parou de
repente.
Ou talvez não fossem os galhos de árvores que estivessem movendo -se.
Ele viu o movimento das sombras e assumiu que eram os galhos de
árvores. Talvez não fossem.
Com esse simples raciocínio , Richard arfou com a repentina percepção .
Ele entendeu .
Ficou congelado , olhos arregalados , incapaz de mover -se, enquanto a
sequência de eventos e fragmentos de informação daquela manhã organizaram -se
em sua mente, formando uma estrutura de compreensão daquilo que havia
acontecido. Eles estavam levando Kahlan, pro vavelmente usando algum tipo de
feitiço nela, como fizeram para manter Richard dormindo, então coletaram as
coisas dela e limparam o acampamento para apagar evidências de que ela estive ra
ali. Esse era o movimento do qual ele lembrava . Não foram os galhos de árvores
movendo-se para frente e para trás na quase escuridão , eram pessoas. Pessoas
dotadas.
Richard viu um brilho vermelho . Quando levantou os olhos , Nicci estava
entrando na pequena sala .
— Richard, preciso falar com você .
Ele ficou olhando para ela . — Eu entendi . Sei o que significa a víbora
com quatro cabeças .
O olhar de Nicci desviou, como se ela não conseguisse suportar olhar
nos olhos dele. Ele sabia que ela pensava que ele estava apenas adicionando mais
uma camada em sua alucinação .
— Richard, escute. Isso é importante.
Ele fez uma careta para ela . — Você esteve chorando ?
Os olhos dela estavam vermelhos e inchados . Nicci não era o tipo de
mulher dada às lágrimas. Ele tinha visto ela chorar , mas somente por razões muito
boas.
— Não fique preocupado com isso. — disse ela. — Você tem que escutar.
— Nicci, estou dizendo, eu descobri...
— Me escute! — com os punhos contra o corpo , parecia que ela pode ria
explodir em lágrimas outra vez . Ele percebeu que nunca tinha visto ela parecer
tão consternada.
Ele não queria desperdiçar mais tempo , mas decidiu que poderia apressar
as coisas se deixasse ela falar .
— Muito, estou ouvindo.
Nicci aproximou-se e segurou-o pelos dois ombros. Com uma expressão
concentrada, ela olhou dentro dos olhos dele . A testa dela franziu de convicção .
— Richard, você tem que sair daqui .
— O quê?
— Já falei para Cara juntar as suas coisas . Ela está trazendo tudo agora .
Ela disse que sabe o caminho até aqui , para dentro da torre, pelo menos , sem ter
que passar por escudos .
— Eu sei, eu ensinei a ela. — a sensação de alarme de Richard começou
a crescer. — O que está acontecendo ? A Fortaleza está sob ataque ? Zedd está
bem?

437
Nicci encostou uma das mãos no lado do rosto dele . — Richard, eles
estão determinados a curar você da sua alucinação .
— Kahlan não é uma alucinação . Acabei de entender o que aconteceu .
Ela pareceu não notar o que ele disse , ou talvez ela estivesse ignoran do
o que considerava não ser mais do que outra em uma longa série de tentativas de
provar o impossível . Porém, dessa vez , ele não estava realmente interessado em
provar isso para ela.
— Richard, estou dizendo, você tem que sair daqui . Eles querem que eu
use Magia Subtrativa para eliminar a sua lembrança de Kahlan.
Richard piscou, surpreso . — Está dizendo que Ann e Nathan querem
fazer isso. Zedd jamais faria.
— Zedd também. Eles o convenceram de que você está doente e que o
único jeito de curá-lo é remover o que eles consideram ser a parte doente dos seus
pensamentos responsável por suas falsas memórias . Eles convencera Zedd que o
tempo está esgotando e que esse é o único jeito de salvá -lo. Zedd está tão triste
em vê-lo assim que agarrou aquilo que acha talvez ser a única chance para fazer
você ficar bem novamente .
— E você concordou com isso ?
Ela bateu no lado do ombro dele com indignação . — Está maluco?
Realmente acha que eu faria isso com você ? Mesmo se eu achasse que eles estavam
certos, seriamente você acha que eu consideraria remover parte de quem você é ?
Depois do que você mostrou para mim sobre a vida ? Depois do que você tem feito
para que eu volte a abraçar a vida ? Realmente acha que eu faria isso com você ,
Richard?
— Não, acho que você não faria uma coisa como essa . Mas porque Zedd
faria? Ele me ama.
— Ele também está apavorado por você , apavorado que você esteja sendo
consumido por essa alucinação , ou feitiço, ou seja lá o que está causando essa
doença que está deixando você vivo mas não realmente você mesmo ,
transformando você em um estranho que eles não conhecem .
— Zedd sente que essa pode ser a única chance deles para vê -lo completo
novamente, para que você seja Richard, o verdadeiro Richard, outra vez.
— Não acredito que qualquer um deles... Ann, Nathan, e Zedd...
realmente queira fazer isso , mas Ann realmente acredita que só você é a salvação
de nossa causa. Ela tem fé que a profecia revelou que essa é a única chance que
temos e ela está desesperada para fazer você ficar bem, caso contrário todos
estaremos perdidos .
— Zedd estava relutante , mas então eles mostraram a ele uma mensagem
no Livro de Jornada e convenceram ele .
— Que mensagem?
— Verna está com as tropas D’Haranian as. Ela mandou notícia de que
nossos soldados estão ficando desanimados porque você não juntou -se a eles.
Verna teme que a não ser que você esteja lá para liderá -los eles possam escolher
não seguirem adiante. Ela enviou uma mensagem desesperada querendo saber se
Ann já tinha encontrado você , tentando descobrir quando poderia ser esperado
que você se juntasse a seus homens na batalha que aproxima -se contra a Ordem
Imperial .
Richard estava surpreso. — Acho que posso entender porque os três
estão tão preocupados , mas pedir a você para usar Magia Subtrativa ...
— Eu sei. Acredito que seja uma solução nascida do desespero , não do
pensamento claro. Mas o pior, eu temo que assim que eles descobrirem que não

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pretendo fazer o que eles querem , então decidirão que não podem deixar essa
oportunidade escapar e então sua única alternativa será, de alguma forma,
tentarem usar o Dom deles para curá -lo. Esse tipo de cega intervenção na
consciência seria imprevisível , para dizer o mínimo.
— Eles estão d esesperados porque temem que todos nós estejamos
ficando sem tempo antes que Jagang acabe com as nossas chances para sempre .
Eles acreditam que essa é a única solução . Não estão mais ouvindo a razão .
— Você tem que sair daqui , agora, Richard. Só concordei com o plano
deles para que pudesse alertá -lo primeiro e dar a você algum tempo para fugir .
Você deve partir imediatamente se quiser escapar .
A cabeça de Richard estava girando com a simples ideia daquilo que eles
queriam fazer. — Isso apresenta um problema . Não sei como cobrir os meus
rastros com magia, do jeito que Zedd consegue. Se eles estiverem tão
determinados quanto você diz , então virão atrás de mim . Se eles me seguirem e
me pegarem de surpresa, então o que eu farei ? Lutar contra eles?
Ela ergueu os braços com frustração . — Não sei, Richard. Mas sei do
estado de determinação deles . Nada que você disser fará eles mudarem de ideia
porque acreditam que você está sofrendo em uma condição onde não está racional ,
então eles sentem que para o seu próprio bem , devem tomar o controle .
— Eles devem estar fazendo isso por boas razões , mas estão errados em
fazer dessa maneira. Queridos espíritos, eu também penso que você está sofrendo
do mesmo problema, mas simplesmente não poderia permitir que eles façam isso .
Richard apertou o ombro dela em um gesto de agradecimento antes de
afastar-se e tentar absorver tudo aquilo . Era quase impossível para ele imaginar
que Zedd concordaria com tal coisa . Isso simplesmente não era do feitio dele . Não
era do feitio dele.
É claro. Também não era do feitio de Ann estar tão certa de como
Richard devia ser obrigado a executar seu papel na profecia . Kahlan mudara todos
que a conheceram. Ela fizera Ann enxergar como Richard não devia seguir a
leitura literal da profecia como se ela foss e um livro de instruções .
Desde o desaparecimento de Kahlan, todos haviam mudado . Zedd
também estava diferente , e não de formas que ajudariam . Até Cara mudou. Ela
ainda era tão protetora quanto antes , mas agora era protetora de um jeito mais ...
feminino. Nicci tinha mudado também , embora no caso dela Richard achasse que
os resultados foram mais positivos... pelo menos, do ponto de vista dele . Ela
esquecera tudo que tinha relação com Kahlan, e como resultado tornara -se mais
próxima dele a despeito dos seus próprios pontos de vista e interesses , mais
disposta a apoiá -lo independente de tudo que ele falasse ou fizesse . Ela estava
mais devotada a ele e assim mais dedicada a protegê -lo.
Mas Zedd mudou de formas que eram mais preocupantes , de um jeito
parecido como Ann tornara-se mais autoritária e decidida a interferir diretamente
nas decisões de Richard e impor seus pontos de vista daquilo que ela acreditava
que Richard devia fazer.
Richard estivera dizendo para as pessoas o tempo todo que as
implicações do de saparecimento de Kahlan eram muito mais amplas e mais
complexas do que qualquer pessoa, a não ser ele, estava enxergando . Essa
mudança no comportamento de todos , algumas sutis e algumas bem visíveis, era
uma manifestação desses efeitos de longo alcance . E ainda assim , nem mesmo
Richard tinha percebido toda a extensão dos efeitos escondidos e consequências.
Coisas haviam mudado . Richard não podia mais permitir que
características passadas confundissem a realidade de como as coisas estavam no

439
presente. Era vital que ele reconhecesse a verdade do jeito que as coisas estavam ,
agora, e não fosse influenciado pelo modo como um dia elas foram . Nicci tornara-
se mais do que uma aliada . Cara estava tão protetora quanto sempre foi , mesmo
que de uma forma levemente dife rente. Mas Zedd e Ann, e possivelmente Nathan,
tornaram-se menos confiáveis de maneira que importavam muito .
Ele tinha que levar em conta a forma como as pessoas mudaram e agir
de acordo. Tinha que manter seus objetivos em mente e agir para alcançar esses
objetivos mesmo se isso significasse não confiar mais totalmente em pessoas em
quem um dia confiara, pessoas com as quais importava -se.
Com o desaparecimento de Kahlan, tudo estava sendo alterado . As regras
tinham mudado .
Ele virou de volta para Nicci.
— Isso não podia ter acontecido em um pior momento . Acabei de
descobrir. A víbora com as quatro cabeças são as Irmãs do Escuro .
— As Irmãs de Jagang?
— Não... minhas antigas professoras , as Irmãs Tovi, Cecilia, Armina, e
a líder delas, Irmã Ulicia. Irmã Ulicia foi aquela que designou todas as minhas
professoras, incluindo você.
— Richard, isso é uma loucura . Eu não...
— Não, não é. Naquela manhã quando pensei ter visto os galhos de
árvores movendo-se quando não havia vento , não eram os galhos de árvores .
Foram aquelas Irmãs que eu vi movendo -se na quase escuridão .
— Mas Jagang tem todas as Irmãs do Escuro .
— Não, ele não tem.
— Ele é um Andarilho dos Sonhos , Richard. Pela ligação com você as
Irmãs da Luz que estão livres estão fora do alcance dele , mas ele capturou aquelas
Irmãs... eu estava lá, com elas, quando Jagang colocou as garras sobre nós . Elas
são Irmãs do Escuro; sem a ligação elas estão impotentes contra o Andarilho dos
Sonhos. Meus... sentimentos são o que me ligam a você e permite que eu escape
do controle dele. Mas elas não conseguiriam escapar ; não são leais a você nem
poderiam ser.
— Oh, mas elas são. Elas fizeram um juramento de ligação a mim .
— O quê! Isso é impossível .
Richard balançou a cabeça . — Você não estava com elas no dia em que
isso aconteceu. Foi quando as tropas de Jagang estavam tentando tomar o Palácio
dos Profetas . Irmãs Ulicia e minhas antigas professoras... exceto você que tinha
partido e Liliana que estava morta... sabiam onde Kahlan estava sendo mantida .
Elas queriam liberda de do domínio de Jagang e então elas me fizeram uma oferta .
Trocaram a localização de Kahlan pela permissão de fazerem o juramento de
lealdade a mim para que pudessem escapar do controle do Andarilho dos Sonhos .
Nicci estava perto da apoplexia com as objeç ões contidas. Ela parecia
considerar que a ideia era tão bizarra que estava sentindo dificuldade até para
decidir por onde começar . Ela inspirou profundamente para obter controle de suas
objeções galopantes .
— Richard, simplesmente tem que parar de criar essas fantasias . Nada
disso ao menos encaixa na sua história . A víbora, como você acha que descobriu ,
na verdade então teria que possuir cinco cabeças . Você esqueceu de Merissa.
— Não, Merissa está morta. Ela estava tentando me matar... ela veio
atrás de mim. Disse que pretendia banhar -se no meu sangue .
Nicci puxou uma mecha de cabelo entre o dedão e o indicador . — Bem,
eu admito, ouvi ela fazer esse juramento com frequência .

440
— Ela tentou cumprir o juramento . Havia seguido Kahlan e eu na Sliph.
A Espada da Verdade é incompatível com a vida dentro da Sliph. Quando cheguei
aqui eu recuperei a espada e coloquei ela dentro da Sliph antes que Merissa
conseguisse sair . Ela morreu lá dentro.
— De todas as Irmãs do Escuro que juraram lealdade a mim , apenas
quatro ainda estão vivas . Essas Irmãs são a víbora com quatro cabeças . Foram
elas que apareceram naquela manhã e levaram Kahlan. Usaram magia para me
enfeitiçar de forma que eu não acordasse com facilidade . O feitiço que elas usaram
deve ter sido algo simples, como aumentar minha sonolência para que eu não
percebesse que magia tinha sido usada em mim . O lobo solitário que uivou não
era um lobo, mas um sinal dado pela aproximação de tropas . Por causa do feitiço
eu não o reconheci por aquilo que ele era... o feitiço m e deixou tão sonolento que
não conseguia pensar , mas ainda assim , eu sabia que havia alguma coisa estranha
naquilo. Então as Irmãs usaram magia para cobrir seus rastro . Elas levaram
Kahlan.
Nicci pressionou punhos com cabelo louro enquanto rosnava com
agitação. — Mas elas são Irmãs do Escuro ! Elas não podem estar ligadas a você
e ao Guardião ao mesmo tempo. Esse conceito todo é loucura .
— Eu também pensava assim . Irmã Ulicia convenceu-me de que eu
estava enxergando isso apenas através da minha perspecti va. Elas queriam jurar
lealdade e em troca eu poderia perguntar onde Kahlan estava. Elas tinham que
responder com a verdade para honrar a ligação . Então elas partiriam . Se eu
perguntasse alguma coisa mais isso romperia o nosso acordo e nós estaríamos de
volta ao início... elas escravas de Jagang e Kahlan uma cativa. Irmã Ulicia disse
que depois de fazerem o juramento de ligação para mim e que eu fizesse uma
pergunta, então elas partiriam . Elas conseguiram a ligação , eu consegui Kahlan.
— Mas elas são Irmãs do Escuro!
— Irmã Ulicia falou que se elas não tentarem me matar ativamente
depois disso , consideravam que isso definitivamente era benefício para mim , de
modo que na visão delas , conforme os requisitos da ligação , uma vez que não me
matarem era o que eu q ueria, portanto mantinham a ligação comigo intacta .
Nicci virou para outro lado , uma das mãos em um quadril . — De uma
forma estranha, na verdade isso faz sentido . A Irmã Ulicia é mais do que ardilosa.
É desse jeito que ela pensa .
Nicci virou de volta. — O que estou dizendo? Agora você está
começando a me arrastar para suas alucinações . Richard, pare com isso . Olhe,
você tem que sair daqui , e tem que fazer isso agora . Vamos lá. Cara estará logo
atrás de mim com as suas coisas .
Richard sabia que Nicci estava certa. Ele não conseguiria encontrar
Kahlan se tivesse que preocupar -se em manter longe três pessoas com o Dom que
sabiam muito bem como usá -lo e queriam alterar seus pensamentos . Eles não
dariam chance para que ele explicasse qualquer coisa . Já tinha tent ado explicações
e isso não funcionara .
Provavelmente eles fariam o que achavam que deviam fazer . Richard não
acreditava que eles forneceriam qualquer aviso . Antes que ele soubesse o que o
atingiu, estaria acabado .
Odiava admitir para si mesmo , mas sabia que Zedd era capaz de tal coisa.
Após entregar para Richard a Espada da Verdade, quando eles estavam a caminho
para tentarem recuperar as Caixas de Orden que Darken Rahl havia colocado em
ação, Zedd uma vez dissera que tantas vidas estavam em risco que não h esitaria
em matar até mesmo Richard, se fosse necessário, para salvar todas aquelas

441
pessoas inocentes. Ele dissera a Richard como, para ser o Seeker e carregar a
Espada da Verdade, ele tinha que estar pronto para ser comprometido com a causa
deles, que ele tinha que entender o quadro mais amplo .
Dificilmente estava fora de questão imaginar Zedd agora estando
disposto a usar magia para tentar apagar a lembrança de Kahlan da mente de
Richard... uma lembrança que Zedd considerava como uma enfermidade que
estava prejudicando a ele, a causa deles e desse modo colocando em risco as vidas
de milhões .
— Acho que você tem razão. — Richard admitiu com uma voz
melancólica. — Eles tentarão me deter . — ele pegou os dois pequenos livros
jogados sobre a mesa e colocou -os dentro de um bolso traseiro . — Acho que seria
melhor nós sairmos daqui antes que eles consigam fazer isso .
— Nós? Quer que eu vá com você?
Richard fez uma pausa e balançou os ombros . — Nicci, você e Cara são
as únicas amigas verdadeiras que eu tenho nesse m omento. Você estava lá para
me ajudar quando eu mais precisei . Não posso pensar em deixar valiosas amizades
para trás justamente quando estou começando a entender o que está acontecendo .
Assim que eu conseguir descobrir posso precisar da sua ajuda , mas mesmo se não
precisar, gostaria que você estivesse comigo apenas pelos seus conselhos e o
apoio.
— Quero dizer, se você estiver disposta a vir. Eu não forçaria você , é
claro, mas gostaria que viesse .
Nicci exibiu aquele raro sorriso dela , o sorriso que revelava a nobreza
da mulher que Nicci realmente era, o sorriso que ele só tinha visto desde que ela
começara a amar a vida.

442
C A P Í T U L O 5 9

Cara estava esperando com impaciência do outro lado do escudo . Rikka,


montando guarda perto da porta de ferro, estava olhando para dentro da sala da
torre. Ambas viraram quando viram o brilho vermelho e ouviram Richard vindo.
Ele viu mochilas e outros itens reunidos em uma pilha logo do lado de dentro da
porta. Ele tirou sua mochila do meio das outras e colo cou os dois livros dentro .
— Então, estamos partindo ? — perguntou Cara.
Richard enviou os braços através das alças e pendurou a mochila em suas
costas. — Sim, e acho que seria melhor não perdermos tempo .
Quando ele pegou seu arco e aljava , todos começaram a pegar suas
próprias coisas.
Parecia que Cara, querendo que Nicci ficasse perto de Richard para que
estivesse de prontidão para ajudar a protegê -lo, havia trazido as coisas da
feiticeira também . Richard imaginou o quanto de querer Nicci por perto tinha a
ver com o que Shota tinha falado.
Ele viu que Rikka também tinha uma mochila . Ele quase perguntou a ela
o que ela pensava que estava fazendo , mas então percebeu que ela era Mord-Sith
e diria que o lugar dela era com ele . Passara tanto tempo somente com Car a
protegendo ele que achou que pareceria um pouco estranho ter mais de uma Mord-
Sith por perto outra vez .
— Todas prontas? — ele perguntou quando viu todas elas apertando
alças e fivelas.
Após cada uma das mulheres assentir , Richard liderou o grupo de rostos
sérios saindo através do portal . Ele sabia que Cara podia ter seguido ele sem
questionar, mas ela não seguiria cegamente as ordens de Nicci ou de qualquer
outra pessoa sem uma boa razão , então ele suspeitou que Cara provavelment e
fizera diversas per guntas... algo que Mord-Sith não fariam... e descobrira porque
eles tinham que partir .
Na base da torre, Richard deslizou a mão pelo corrimão de ferro quando
começava a fazer a curva no passeio , mas então uma repentina percepção fez ele
parar. Todas aguard aram, observando ele , imaginando porque ele tinha parado .
Richard olhou para os olhos azuis confusos de Nicci. — Eles não
confiarão em você para fazer isso .
— O que você quer dizer? — perguntou Nicci.
— Isso é importante demais . Eles não deixarão por sua c onta para fazer
o que eles instruíram. Ficarão preocupados que você perca sua coragem , ou que
possa falhar e permitir que eu escape .
Cara aproximou -se. — Está querendo dizer que acha que eles virão
procurá-lo?
— Não, não procurar por mim, — falou Richard. — mas aposto que em
algum lugar entre aqui e o caminho para fora da Fortaleza eles estarão aguardando ,
apenas caso eu passe por Nicci e tente partir. Se encontrarmos com eles
inesperadamente então será tarde demais .
— Lorde Rahl , — disse Rikka. — a Senhora Cara e eu não permitiremos
que qualquer um machuque você .
Richard ergueu uma sobrancelha . — Gostaria que não chegasse a esse
ponto. Aqueles três pensam que precisam me ajudar . Não pretendem me ferir...

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pelo menos não intencionalmente . Não quero que vocês duas machuquem eles .
— Mas se eles nos surpreenderem com a intenção de usarem a magia
deles em você, você não pode esperar que nós deixemos eles fazerem isso. —
falou Cara.
Richard encarou o olhar dela durante um momento . — Como eu disse,
não quero que chegue a esse ponto .
— Lorde Rahl, — Cara disse em voz baixa. — eu simplesmente não
posso permitir que alguém ataque você assim , mesmo que eles pensem que é para
ajudá-lo. Você não pode cometer um equívoco em uma situação como essa . Se
eles atacarem você , isso deve ser impedido... ponto final . Se eles tiverem sucesso ,
então você jamais seria o mesmo novamente . Você não seria mais o Lorde Rahl
que conhecemos , o Lorde Rahl que você é.
Cara inclinou chegando ainda mais perto e fixou ele com aquele olhar
que as Mord-Sith tinham que sempre o fazia suar. — Se eles atacarem você e
conseguirem obter sucesso porque você ficou com medo de machucá -los, então
quando eles acabarem você não lembrará mais dessa mulher, Kahlan. É isso que
você quer?
Richard cerrou a mandíbula enquanto soltava um profundo suspiro . —
Não, não é. Vamos tentar evitar que as coisas cheguem a esse ponto . Mas se
chegarem , então acho que você tem razão . Não podemos permitir que eles façam
o que pretendem. Mas se tivermos que detê -los, não vamos usar mais força do que
o necessário.
— A hesitação é um erro que convida a derrota . — falou Cara. — Eu não
seria Mord-Sith se não tivesse hesitado quando era jovem .
Richard sabia que ela estava certa . Pelo menos, a Espada da Verdade
havia ensinado isso para ele. A “Dança com a Morte” não permitia compromisso
entre a vida e a morte.
Ele descansou uma das mãos no ombro de Cara. — Eu entendo .
Nicci olhou para cima na torre, seus olhos azuis observando as portas ao
redor dela. — Onde você acha que eles estarão esperando ?
— Não sei, — Richard disse quando enfiava os dedões sob as alças da
mochila. — A Fortaleza do Mago é imensa , mas no final só tem um caminho de
saída. Uma vez que há tantas rotas que poderíamos tomar , eu diria que será quando
chegarmos mais perto do jardim saindo no portículo.
— Lorde Rahl, — Rikka falou, parecendo um pouco inquieta assim que
ele encontrou o olhar dela. — existe um outro caminho de saída .
Richard fez uma careta para ela . — Do que você está falando ?
— Tem um outro caminho de saída ao lado da entrada principal . Ele só
é acessível através de passagens bem fundo na Fortaleza .
— Como você sabe de uma coisa como essa ?
— O seu avô mostrou para mim .
Richard não tinha tempo para ficar admirado com tal coisa . — Acha que
consegue encontr á-lo de novo?
Rikka pensou um momento. — Acredito que sim. — finalmente ela disse.
— Certamente eu não desejaria que ficássemos perdidos nas entranhas da
Fortaleza, mas acredito que consigo encontrar o caminho . Partindo daqui nós já
estamos em parte do caminho , então não será tão difícil .
Richard tentou descansar a mão sobre o cabo da sua espada enquanto
pensava. A espada não estava ali . Ao invés disso, ele esfregou as palmas das mãos .
— Talvez fosse melhor seguirmos por esse caminho.
Rikka virou, sua trança loura chicoteando quando o fez , e começou a

444
andar. — Então, sigam-me.
Richard deixou Nicci ir na frente dele, então seguiu-a, deixando Cara na
retaguarda. Ele não andara uma dúzia de passos quando parou . Ele virou e olhou
para trás.
Todos olharam para onde ele estava olhando e então observaram ele ,
perplexos com o que ele poderia estar pensando .
— Também não podemos ir por esse caminho . — ele virou de volta para
Rikka. — Zedd mostrou a você esse caminho de saída da Fortaleza . Ele conhece
as Mord-Sith. Sabe que a despeito do quanto vocês dois estejam relacionando -se
bem, se você tiver que fazer uma escolha , a sua lealdade será comigo.
— Zedd gosta de usar truques . Ele deixará Ann e Nathan guardando as
rotas para a entrada prin cipal da Fortaleza. Ele aguardará na rota que mostrou a
você, Rikka.
— Bem, se tem apenas dois caminhos de saída , — Nicci falou. — isso
significa que eles terão que dividir as forças para garantir que ambas estejam
bloqueadas. Isso se Zedd realizar o processo imaginado conforme você colocou .
Ele pode esquecer que contou a Rikka sobre o outro caminho de saída , ou pode
achar que ela não contaria a você . Esse caminho ainda pode estar livre .
Richard balançou a cabeça lentamente enquanto olhava para alguma
outra coisa... a larga plataforma em parte do caminho de volta ao redor do passeio
perto da água estagnada no fundo do interior sombrio da torre .
— Embora o que você falou seja possível , contar que Zedd cometeria um
erro estratégico como esse seria tolice .
Nicci estava parecendo um pouco preocupada . — Bem, você não pode
usar o seu poder sem arriscar invocar a besta , mas eu certamente posso usar o
meu. E tenho mais poder sob meu comando do que Zedd possui. Se eles estiverem
separados como você sugere , então não teremos que lutar com todos os três de
uma só vez.
— Não, mas eu não gostaria de fazer esse tipo de teste , especialmente
não dentro da Fortaleza . É possível que exista defesas aqui que ele iniciou para
proteger o Primeiro Mago caso ele seja atacado . Você pode simplesmente tentar
envolvê-lo em fios conjurados para atrasá -lo enquanto escapamos e isso poderia
ser o suficiente para ativar algo letal . Além disso , mesmo se você conseguisse ter
sucesso em uma coisa assim , ele ainda poderia vir atrás de nós .
Nicci cruzou os braços . — Então o quê, exatamente, você sugere que
façamos?
Ele virou e mais uma vez encarou os olhos azuis dela . — Sugiro que
usemos um caminho para fora através do qual eles não consigam nos seguir .
Ela franziu o nariz . — Qual?
— A Sliph.
Todos olharam de volta descendo o passeio como se a Sliph pudesse estar
bem ali esperando que eles fossem até lá e viajassem com ela .
— É claro. — disse Cara. — Nós poderíamos escapar sem que eles
soubessem para onde fomos . Não haverá rastros. Porém, mais do que isso , ela
poderá nos colocar a uma tremenda distância longe do perigo . Eles não terão
esperança de nos seguir .
— Exatamente. — Richard deu um tapinha atrás do ombro dela . —
Vamos lá.
Todas foram atrás quando ele seguiu rapidamente no passeio e atra vés
do portal estourado. Dentro da sala da Sliph, Nicci lançou magia, acendendo as
tochas em suportes nas paredes quando todos eles reuniram -se em volta do poço .

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Todos olharam para baixo juntos .
— Só tem um problema, — Richard disse bem alto quando o pensa mento
surgiu em sua mente enquanto contemplava o abismo negro . Ele olhou para Nicci.
— Eu tenho que usar magia para chamar a Sliph.
Nicci inspirou profundamente e soltou com uma expressão
desencorajada. — Isso é um problema.
— Não necessariamente . — falou Cara. — Shota nos disse que usar a
sua magia tinha o potencial de chamar a Besta Sangrenta. Mas isso age de forma
aleatória. Quando você usa magia , seria lógico que desse modo ela o encontrasse ,
mas a Besta não age através da lógica . Ela pode vir quando vo cê usa magia, Shota
falou, ou pode não vir. Não há como afirmar ou prever .
— E temos certeza de que não conseguiremos sair desse lugar sem ter
que enfrentar os outros. — Nicci destacou.
— Tentar correr apresentará dois problemas, — disse Richard. — passar
por eles e então continuar fora do alcance deles para evitar que tentem me “curar” .
Isso faz mais sentido . A Sliph seria uma maneira certa de escapar sem que Zedd,
Ann, e Nathan tenham como nos seguir ou saber para onde fomos... e isso também
evitaria confrontá-los, algo que eu não gostaria de ter que fazer . Eu adoro meu
avô; não quero ter que me defender contra ele .
— Eu quase odeio dizer isso , — falou Cara. — mas isso faz mais sentido
para mim também.
— Concordo. — disse Rikka.
— Chame a Sliph. — Nicci segurou o cabelo para trás quando olhou para
baixo espiando dentro do poço outra vez . — E depressa, antes que eles venham
checar porque eu estou demorando tanto .
Richard não hesitou . Esticou os braços sobre o poço , ele precisava
invocar o seu própri o Dom para chamar a Sliph e invocar a sua própria habilidade
não era uma coisa na qual ele era bom . Ele decidiu que já tinha feito isso ; e ele
teria que fazer novamente .
Deixou a sua tensão partir . Ela sabia que tinha de fazer isso ou poderia
muito bem per der a chance de algum dia encontrar a mulher que amava mais do
que a própria vida. Por um momento, a dor do quanto machucava cada dia sem ela
quase fez com que ele mergulhasse no sofrimento .
Com sua sincera e ardente necessidade de fazer o que tivesse de f azer
para ajudar Kahlan, sua necessidade disparou dentro dele . Sentiu ela brotando do
âmago do seu ser, tirando o seu fôlego . Ele tencionou os músculos abdominais
diante do poder da sensação dentro dele .
Luz surgiu entre os punhos dele . Ele reconheceu a sensação por já ter
feito isso. Ele pressionou as tiras de couro prateadas uma contra a outra . Não
tinha elas da primeira vez , mas eram elas que a Sliph dissera que ele deveria usar
para chamá-la outra vez. Elas brilharam com tanta intensidade que através de sua
carne e ossos Richard conseguia ver o outro lado das faixas prateadas .
Ele concentrou sua intenção . Não queria outra coisa a não ser que a Sliph
viesse até ele para que pudesse ajudar Kahlan. Ele desejava isso. Exigiu que isso
fosse feito . — Venha até mim!
O brilho de luz ondulou quando desceu em uma linha no centro do poço ,
como um raio, mas ao invés do som de trovão , o ar estalou com o rugido de fogo
e luz mergulhando em uma incrível velocidade dentro das profundezas da
escuridão .
Aquelas em volta do muro de pedra olhavam com ansiedade dentro do
poço iluminado pelo raio de luz . Nicci também olhou em volta, ficando de olho

446
na sala ao redor deles , aparentemente preocupada com a aparição da Besta . O eco
do poder que Richard tinha enviado dentro do poço estava perdurando um longo
tempo para desaparecer , mas finalmente tudo ficou silencioso .
Na calmaria da Fortaleza , na quietude da montanha de rocha
agigantando-se ao redor e acima deles , surgiu um distante som retumbante .
O som de algo ganhando vida .
O chão começou a tremer com força crescente , até que ele começou a
levantar pó das juntas e rachaduras . Pequenas pedrinhas dançaram no chão de
pedra vibrante.
Bem longe nas distantes profundezas o poço começou a encher com algo
que subia em uma velocidade impossível , rugindo com um silvo de velocidade
enquanto vinha. O rugido aumentou conforme a Sliph subia para atender ao
chamado.
Nicci, Cara, e Rikka afastaram -se do poço quando prata cintilante
disparou subindo, realizando uma parada instantânea que de certa forma pareceu
graciosa.
Dentro da piscina prateada ondulante , um amontoado metálico lustroso
formou-se, erguendo-se acima da borda do muro de pedra cercando o poço . Ele
movia-se ondulando por sua própria vontade , ganhando uma forma reconhecível .
A sua superfície brilhosa, como um espelho líquido , refletiu tudo ao redor da sala ,
distorcendo as imagens refletidas em sua superfície enquanto crescia e
transformava-se.
Parecia mercúrio vivo.
A forma continuou a contorcer , dobrando-se em bordas e planos , retas e
curvas, até que assumiu o rosto de uma mulher .
Um sorriso prateado cresceu com o que pareceu reconhecimento . —
Mestre, você me chamou ?
A esquisita voz feminina da Sliph ecoou pela sala, mas seus lábios não
moveram-se.
Richard chegou mais perto, ignorando os olhos arregalados de surpresa
de Nicci e Rikka. — Sim. Sliph, obrigado por vir. Preciso de você.
Um sorriso prateado estava satisfeito. — Deseja viajar, Mestre?
— Sim, eu desejo viajar . Todos nós desejamos . Todos nós precisamos
viajar.
O sorriso cr esceu. — Então, venham. Nós viajaremos.
Richard conduziu todas para mais perto do muro . Metal líquido formou
uma mão que esticou -se para cada uma das três mulheres .
— Você viajou antes . — a Sliph disse para Cara após um breve contato
com a testa dela. — Você pode viajar.
A mão cintilante gentilmente encostou uma palma na testa de Nicci,
permanecendo durante um tempo maior. — Você possui o que é requerido . Você
pode viajar.
Rikka ergueu o queixo, ignorando seu desgosto pela magia , e manteve
posição quando a Sliph tocou em sua testa.
— Você não pode viajar . — falou a Sliph.
Rikka pareceu indignada. — Mas, mas, se Cara pode... porque eu não
posso?
— Você não possui os dois lados requeridos. — disse a voz.
Rikka cruzou os braços, desafiadora . — Devo ir com eles. Eu também
vou. Está decidido.
— A escolha é sua, mas se tentar viajar em mim , você morrerá, e então

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você também não estará com eles .
Richard colocou uma das mãos no braço de Rikka antes que ela pudesse
falar qualquer outra coisa . — Cara capturou o poder de alguém que tinha um
elemento da magia requerida ; é por isso que ela pode viajar . Não há nada a ser
feito quanto a isso. Você tem que ficar aqui .
Rikka não pareceu feliz , mas assentiu. — Então é melhor o resto de
vocês partirem.
— Venha, — a Sliph falou para Richard. — e nós viajaremos . Para qual
lugar você deseja viajar ?
Richard quase falou em voz alta , mas então conteve-se. Ele virou para
Rikka.
— Você não pode vir conosco . Acho que é melhor você partir agora ,
para que você nem escute p ara onde estou indo. Não quero arriscar a chance de
que se você souber, então de alguma forma os outros possam descobrir . Meu avô
pode ser muito esperto quando quer ser e usar truques para conseguir o que deseja.
— Não precisa falar para mim . — Rikka suspirou com resignação . —
Provavelmente você está certo , Lorde Rahl. — ela sorriu para Cara. — Proteja
ele.
Cara assentiu. — Sempre protejo. Ele fica bastante vulnerável sem mim .
Richard ignorou o comentário de Cara. — Rikka, preciso que diga a Zedd
algo por mim. Preciso que transmita a ele uma mensagem .
Rikka franziu a testa enquanto escutava atentamente .
— Diga a ele que quatro Irmãs do Escuro capturaram Kahlan, a
verdadeira Madre Confessora, não o corpo enterrado em Aydindril. Diga a ele que
eu pretendo voltar o mais breve que puder e vou trazer a prova para ele . Peço que
quando eu retornar, antes que ele tente me curar , permita que eu mostre a ele a
evidência que trarei . E diga a ele que eu o amo e entendo sua preocupação comigo ,
mas que estou fazendo o que o Seeker deve fazer, conforme ele mesmo me
encarregou de fazer quando entregou a mim a Espada da Verdade .
Quando Rikka havia partido, Cara perguntou. — Que evidência?
— Eu não sei. Ainda não descobri . — Richard virou para Nicci. — Não
esqueça daquilo que falei antes . Você tem que respirar dentro da Sliph assim que
descermos. No início vai querer prender a respiração , mas isso simplesmente não
é possível. Assim que chegarmos e sairmos da Sliph, você tem que deixar ela sair
dos seus pulmões e respirar o ar novamente .
Nicci estava parecendo mais do que um pouco nervosa . Richard segurou
a mão dela. — Estarei com você, assim como Cara. Nós dois já fizemos isso . Não
vou soltar você. É difícil respirar a Sliph na primeira vez , mas assim que fizer
isso, verá que é uma experiência bastante extraordinária. Respirar a Sliph é um
êxtase.
— Êxtase. — Nicci repetiu com mais do que um pouquinho de
incredulidade.
— Lorde Rahl tem razão. — disse Cara. — Você verá.
— Apenas lembre, — Richard completou. — quando isso terminar você
não vai querer deixar a Sliph e respirar o ar outra vez... mas você deve . Se não
fizer isso, vai morrer. Você entendeu?
— É claro. — Nicci falou, assentindo .
— Então, vamos lá. — Richard começou a subir no muro , puxando Nicci
para cima com ele.
— Para onde viajaremos , Mestre?
— Acho que deveríamos ir até o Palácio do Povo , em D'Hara. Você

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conhece o lugar?
— É claro. O Palácio do Povo é um local central .
— Um local central?
Se pudermos dizer que mercúrio pode parecer confu so com uma
pergunta, a Sliph pareceu confusa . — Sim, um local central . Assim como esse
lugar aqui é um local central .
Richard não entendeu, mas não achou que isso fosse relevante e então
não insistiu no assunto . — Certo.
— Porque o Palácio do Povo ? — perguntou Nicci.
Richard balançou os ombros . — Temos que ir para algum lugar .
Estaremos mais seguros no Palácio . Mas o mais importante, eles possuem
bibliotecas lá com raros livros antigos . Tenho esperança de que talvez possamos
encontrar algo sobre Cadeia de Fogo. Uma vez que as Irmãs estão com Kahlan,
estou achando que Cadeia de Fogo pode ter algo a ver com algum tipo de magia .
— De acordo com o que ouvi , o exército D’Haraniano está em algum
lugar na vizinhança em seu caminho para o sul . E mais ainda, a última vez em que
vi Berdine, outra Mord-Sith, foi quando deixei ela aqui em Aydindril, então
provavelmente ela estará perto de nossa s tropas ou do Palácio . Preciso dela para
me ajudar a traduzir uma parte do material dos livros que estou levando . Além
disso, ela tem o diário de Kolo e pode até mesmo já saber de algo útil.
Ele olhou para Cara. — Talvez consigamos ver o General Meiffert e
saber como estão indo as coisas com as tropas . — o rosto de Cara iluminou-se
com a surpresa e um largo sorriso .
Nicci assentiu, pensativa . — Acho que isso tudo faz sentido , e acho que
é um lugar tão bom quanto qualquer outro . Afasta você do perigo imedia to e isso
é o que mais importa nesse momento .
— Muito bem, Sliph, — Richard disse. — nós desejamos viajar para o
Palácio do Povo em D'Hara.
Um braço líquido prateado surgiu e envolveu os três . Richard sentiu a
calorosa pegada ondulante comprimir para segurá-lo com firmeza . Nicci estava
apertando a mão dele com toda força .
— Lorde Rahl? — Cara perguntou.
Richard levantou a mão que não estava segurando a de Nicci para deter
a Sliph antes que ela os levasse para dentro do poço . — O que foi?
Cara mordeu o lábio antes de finalmente falar . — Você está segurando
a mão de Nicci. Pode segurar a minha também ? Quero dizer.. . eu não gostaria que
nós três acabássemos nos separando .
Richard tentou não sorrir diante da preocupação no rosto dela . Cara
temia magia, mesmo que já tivesse feito isso .
— Certamente. — Richard falou quando segurou a mão dela . — Eu não
gostaria que nos separássemos .
Um súbito pensamento ocorreu -lhe.
— Espere! — ele disse, fazendo a Sliph parar antes que ela pudesse
começar.
— Sim, Mestre?
— Você conhece uma pessoa chamada Kahlan? Kahlan Amnell, a Madre
Confessora?
— Esse nome nada significa para mim .
Richard suspirou com desapontamento . Ele realmente não esperava que
a Sliph conhecesse Kahlan. Ninguém mais conhecia .
— Por acaso você conhece um lugar chamado Nada Profundo ?

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— Conheço vários locais no Nada Profundo . Alguns foram dest ruídos,
mas alguns ainda existem . Posso viajar até eles se você desejar .
O coração de Richard acelerou com a surpresa. — Algum desses locais
no Nada Profundo também é um local central ?
— Sim, um deles , — falou a Sliph. — Caska, no Nada Profundo, é um
local central. Gostaria de viajar até lá ?
Richard olhou para Nicci e Cara. — Alguma de vocês conhece esse lugar ,
Caska?
Nicci balançou a cabeça .
Cara estava fazendo uma careta . — Acho que lembro de ter ouvido
alguma coisa sobre ele quando era pequena . Sinto muito Lorde Rahl, mas não
lembro exatamente o quê... só que o nome parece familiar de antigas lendas .
— O que você quer dizer com, lendas ?
Cara balançou os ombros . — Antigas lendas D’Haranianas... algo sobre
“Lançadores de Sonho”. Histórias que pessoas contavam. Alguma coisa sobre a
história de D'Hara. Parece que Caska é um nome de tempos mais antigos .
Tempos antigos. Lançadores de Sonho. Richard lembrou que quando
passava os olhos em uma parte do livro Gegendrauss que ele encontrou na sala
protegida, tinha visto algo sobre lançar sonhos, mas não havia traduzido a
passagem . Ainda que Richard fosse o líder do Império D’Haraniano, ele sabia
pouco sobre a misteriosa D'Hara.
Mesmo se Cara não soubesse mais, Richard ainda sentiu como se tivesse
acabado de dar mais um passo aproximando -se de encontrar Kahlan.
— Nós desejamos viajar , — ele disse para a Sliph. — nós desejamos
viajar para Caska, no Nada Profundo.
Fazia um longo tempo desde que Richard viajara na Sliph e ele sentiu-
se um pouco apreensivo . Mas suas animação por finalmente estar fazendo
conexões para encontrar as respostas que durante tanto tempo esquivaram -se del e
eliminou qualquer preocupação .
— Então, nós viajaremos para Caska. — falou a Sliph, sua voz ecoando
na sala de pedra onde um dia Kolo havia morrido montando guarda sobre ela
quando a Grande Guerra chegara ao fim . Pelo menos, todos pensaram que ela
havia chegado ao fim , mas aqueles antigos conflitos não acabaram tão facilmente
e agora eles tinham ganho vida outra vez .
O braço ergueu os três d o muro e mergulhou-os dentro da espuma
prateada. A força do aperto de Nicci na mão dele aumentou e ela arfou antes de
mergulhar.

450
C A P Í T U L O 6 0

Com a velocidade de uma flecha , Richard voou através do silêncio da


Sliph, e ao mesmo tempo ele deslizou com a lenta graça de um corvo nas correntes
acima de árvores enormes em uma noite de luar . Não havia calor, nem frio. No
silêncio, sons doces preencheram sua mente . Sua olhos contemplaram luz e
escuridão juntas em uma simples visão espectral , enquanto os pulmões dele
inflaram com a doce presença da Sliph enquanto ele a respirava dentro de sua
alma.
Era um êxtase.
Abruptamente, isso acabou .
Escuridão granulosa explodiu em sua repentina visão . Parecia haver
formas quadradas ao redor quando ele emergiu na superfície . A mão de Nicci
apertava a dele com terror .
— Respire. — a Sliph falou para ele .
Richard soltou a doce respiração , esvaziando seus pulmões do êxtase .
Com um arfar necessário , ele inspirou o ar alienígena . Cara, também, arfou no ar
quente empoeirado .
Nicci flutuava de rosto para baixo , balançando suavemente no fluido
prateado.
Richard lançou um braço sobre o muro de pedra ao lado da Sliph,
puxando Nicci junto com ele. Ele tirou o arco das costas para removê-lo do
caminho e rapidamente encostou -o contra o lado externo do muro . Com a ajuda
da Sliph, ele saltou sobre o muro , e então com a Sliph erguendo-a, puxou o peso
morto de Nicci alto o bastante para colocar os ombros e a cabeça dela dentro do
escuro ar quente.
Richard deu tapinhas nas costas dela . — Respire, Nicci. Respire. Vamos
lá, você tem que deixar a Sliph sair e respirar. Faça isso por mim .
Finalmente ela o fez . Ela arfou inspirando o ar , seus braços sacudindo
com terror por estar confusa e perdida em tal ambiente estranho. Richard puxou-
a mais perto enquanto ajudava ela a passar os braços sobre o lado e , ofegando,
subir o muro.
Suportes nas paredes próximas tinham esferas de vidro ,como na
Fortaleza, que brilharam mais forte quando ele saiu do poço .
— Que lugar voc ê acha que é esse? — Cara perguntou enquanto olhava
em volta na luz fraca .
— Havia... êxtase. — falou Nicci, ainda sob o efeito da experiência .
— Eu disse. — Richard falou quando ajudava ela a descer .
— Parece que estamos em algum tipo de sala de pedra. — Cara disse
quando caminhava ao redor do perímetro da sala .
Richard caminhou em direção à escuridão em um canto e duas esferas
maiores em altos suportes de ferro brilharam com uma estranha luz verde . Ele viu
que elas flanqueavam degraus . Os degraus, porém, marchavam subindo até o teto .
— Isso é bastante estranho. — Cara falou quando parou no segundo
degrau, inspecionando o teto escuro .
— Aqui. — Nicci disse. Ela estava inclinada sobre o lado dos degraus .
— Tem uma placa de metal .
Era o tipo de placa de meta l que Richard tinha visto em outros lugares .

451
Elas eram placas gatilho para escudos . Nicci encostou a mão contra ela mas nada
aconteceu.
Richard pressionou a mão na placa fria como gelo e rocha começou a
ranger enquanto movia-se. Poeira caiu em feixes .
Os três agacharam -se recuando enquanto olhavam ao redor na fraca luz ,
tentando descobrir o que, exatamente, estava movendo -se. O chão tremeu. Pareceu
como se toda a sala pudesse estar movendo e de algum modo mudando de forma.
Então Richard percebeu que na verdade era o teto que estava afastando -se para o
lado.
Um crescente caminho de luz do luar espalhou -se nos degraus .
Richard não fazia ideia de onde eles estavam , além de numa sala de
pedra que parecia estar enterrada . Ele não sabia onde ficava Caska, além da Sliph
ter falado que ficava no Nada Profundo , e ele não sabia onde ficava isso , então
ele realmente não sabia o que esperar . Sentiu-se decididamente inquieto .
Tentou alcançar sua espada .
A espada não estava ali . Pelo que parecia a milésima vez , ele sentiu o
triste pesar de perceber porque e onde ela estava agora .
Ao invés disso ele sacou sua faca longa quando começou a subir os
degraus agachado, abaixando -se não apenas para que não batesse a cabeça no teto
antes que ele tivesse afastado do caminho , mas com cautela por causa de quem
poderia estar do lado de fora e tivesse ouvido a rocha deslizar . Cara, vendo ele
sacar a faca, empunhou seu Agiel. Ela tentou sair na frente dele , mas ele segurou
o braço dela, mantendo-a atrás do lado esquerdo . Nicci estava logo atrás dele à
direita.
Quando ele emergiu do solo , viu as formas sombreadas de três pessoas
em pé não muito longe adiante . Ele sabia que por ter ficado dentro da Sliph, até
que estivesse totalmente recuperado , sua visão estava mais apurada do que o
normal. Provavelmente ele conseguia enxergá -los melhor do que eles conseguiam
enxergá-lo.
Com essa visão aguçada, Richard viu que o grande homem no meio
estava segurando uma garota magra de costas contra ele . Estava com a mão sobre
a boca dela. Ele podia v er a garota contorcendo -se. A luz do luar cintilou na
lâmina que ele segurava na garganta dela .
— Soltem suas armas, — o homem segurando a garota rosnou. — e
rendam-se para a Ordem Imperial , ou morrerão.
Richard lançou a faca no ar, deixou ela fazer um meio giro, e pegou-a
pela ponta. De repente uma forma negra investiu contra o topo da cabeça do
homem. O pássaro soltou um grasnado agudo . O homem encolheu -se. Richard não
perdeu tempo pensando em tal ataque inesperado . Ele arremessou a faca.
Com asas largas, o pássaro elevou -se no ar. A lâmina atingiu o homem
no meio do rosto com um ruído sólido . Richard sabia que a lâmina era
suficientemente longa para ter penetrado todo o caminho através do cérebro do
homem e que a ponta teria perfurado atrás do crânio . O homem desabou atrás da
garota trêmula... morto antes que pudesse pensar em causar algum dano a ela .
Antes que os homens de ambos os lados da garota pudessem dar meio
passo, Nicci liberou uma lâmina de poder que arrancou as cabeças dos dois outros
homens. O único som que isso gerou foi o som das cabeças batendo no solo . Os
corpos caíram para ambos os lados da garota .
A noite estava silenciosa a não ser pelo ruído das cigarras .
A garota aproximou-se hesitante e caiu de joelhos . Ela curvou-se para
frente diante dos degraus até que sua testa tocou a rocha aos pés dele .

452
— Lorde Rahl , eu sou sua humilde serva . Obrigada por vir e me proteger .
Vivo apenas para servir . Minha vida é sua . Ordene conforme sua vontade .
Mesmo enquanto a garota ainda estava falando com uma voz trêmula,
Cara e Nicci estavam afastando -se para os lados, procurando outras ameaças .
Richard colocou um dedo na frente dos lábios para indicar que elas fizessem isso
em silêncio para não alertar quaisquer outras tropas que pudessem estar perto .
Ambas viram o sinal dele e assentiram .
Richard esperou, procurando ouvir qualquer ameaça . Já que a garota
estava no chão, ele deixou ela permanecer lá , fora da linha de perigo . Ele ouviu
o sussurro de penas contra o ar quando o corvo pousou em um galho próxim o e
então o suave farfalhar quando ele dobrou as asas .
— Está limpo. — Nicci anunciou em voz baixa quando retornou das
sombras. — Meu Han diz que não há outros nas proximidades.
Aliviado, Richard deixou a tensão desaparecer de seus músculos .
Quando ouviu a garota gemendo de terror, ele sentou sobre o degrau superior perto
dela. Ele suspeitou que o terror dela era medo de que pudesse ter sido morta
justamente como foram os três homens . Richard quis garantir a ela que ela não
morreria.
— Está tudo bem. — ele falou para ela enquanto segurava gentilmente
seus ombros e fazia ela levantar . Não vou machucar você. Agora você está segura.
Quando ela levantou, ele segurou a garota assustada nos braços ,
abraçando-a de forma protetora , segurando a cabeça d ela contra o ombro quando
ela olhou para os três homens mortos como se eles ainda pudessem saltar e levá -
la embora. Ela era uma pequena criatura franzina , o tipo de garota prestes a tornar -
se uma mulher, mas ainda assim parecendo tão frágil quanto uma ave quase para
deixar o ninho. Os braços finos dela passaram em volta de Richard em
agradecimento enquanto ela gemia com alívio .
— O pássaro é um amigo seu ? — ele perguntou.
— Lokey. — ela confirmou assentindo . — Ele toma conta de mim .
— Bem, ele fez um bom trabalho esta noite.
— Pensei que você não viria , Mestre Rahl. Pensei que fosse minha culpa ,
que eu não fosse uma Sacerdotisa boa o bastante para você .
Richard passou a mão atrás da cabeça dela . — Como sabia que eu estava
vindo para cá?
— As histórias dizem isso. Mas eu já esperava tanto tempo que pensei
que elas podiam estar erradas . Eu estava quase em desespero que você nos
considerasse indignos , e então tive medo que fosse falha minha.
Ele supôs que “histórias” devia significar algum tipo de profecia . —
Você disse que é uma Sacerdotisa ?
Ela assentiu quando afastou -se para olhar o sorriso dele . Então Richard
viu que os grandes olhos cor de cobre dela observavam de uma máscara escura
pintada em uma faixa em volta do seu rosto. Era uma visão perturbadora .
— Eu sou a Sacerdotisa dos Ossos . Você retornou para me ajudar . Eu
sou sua serva. Sou aquela destinada a lançar os sonhos .
— Retornei?
— À vida. Você voltou dos mortos .
Richard só conseguia olhar fixamente .
Nicci agachou ao lado da garota . — O que você q uer dizer com, ele
voltou dos mortos?
A garota apontou atrás deles , para a estrutura de onde eles haviam
emergido. — Do mundo dos mortos ... de volta para os vivos . Está escrito o nome

453
dele ali , na tumba dele.
Richard virou e realmente viu seu nome esculpido no monumento. A
coisa que imediatamente surgiu em sua mente foi ver o nome de Kahlan gravado
na rocha também. Ambos estavam vivos , a despeito de seus túmulos .
A garota olhou para Cara e então para Nicci. — As histórias dizem que
você voltaria à vida, Lorde Rahl, mas não disseram que você traria espíritos de
seus familiares.
— Eu não retornei dos mortos . — Richard falou para ela . — Eu vim
através da Sliph... lá embaixo, dentro daquele poço.
Ela assentiu . — O poço dos mortos. As histórias mencionam esse tipo
de coisas misteriosas , mas nunca conheci o significado delas .
— Chamo você de “Sacerdotisa” , ou por seu nome?
— Você é Mestre Rahl; pode me chamar do jeito que for do seu agrado .
Mas o meu nome é Jillian. Tive esse nome durante toda minha vida . Temo que eu
não seja uma Sacerdotisa faz muito tempo, e então não sou muito boa nisso , acho
que não. Meu avô disse que quando chegar a hora , não importa a minha idade ,
mas que chegou a hora .
— Que tal eu chamar você de Jillian, então? — ele perguntou com u m
sorriso.
Ela ainda parecia assustada demais para devolver o sorriso . — Eu
gostaria disso, Mestre Rahl.
— Meu nome é Richard. Eu gostaria se você me chamasse de Richard.
Ela assentiu , ainda com aquela expressão de admiração preenchendo
seus olhos redondos . Richard não sabia se a admiração dela era pelo Mestre Rahl,
ou por um homem morto que retornou à vida e caminhou saindo do seu túmulo .
— Agora olhe, Jillian, não sei a respeito das suas histórias, ainda, mas
você precisa entender que eu não retornei dos mortos. Viajei até aqui porque tenho
um problema e estou procurando respostas .
— Então você encontrou o problema . Matou três deles. A resposta é que
você tem que me ajudar a lançar os sonhos para que possamos mandar esses
homens malignos embora . Eles fizeram a maioria do meu povo ir para o
esconderijo. Os mais velhos estão lá embaixo . — ela apontou descendo a ladeira
escura. — Tremem de medo que esses homens matem eles se não acharem o que
procuram.
— O que eles estão procurando ? — Richard perguntou.
— Não tenho certeza. Estive escondida entre os espíritos de nossos
ancestrais. Os homens devem ter feito alguém lá embaixo contar para eles sobre
mim porque sabiam meu nome quando finalmente me perseguiram , hoje. Fiquei
longe das garras deles por um longo tempo . Hoje eles estavam escondidos onde
eu pegava um pouco de comida . Os homens me pegaram e queriam que eu
mostrasse onde estão os livros .
— Essas não são tropas comuns da Ordem Imperial . — Nicci explicou
diante da expressão de confusão no rosto dele . — São batedores avançados .
Richard olhou para os corpos . — Como você sabe?
— Porque tropas comuns da Ordem Imperial jamais pediriam a você para
soltar as armas e render -se. Somente os batedores, buscando rotas através de terras
estranhas e caçando qualquer inform ação que puderem descobrir fariam
prisioneiros . Eles interrogam pessoas . Aqueles que não falam são enviados de
volta para serem torturados . Esses batedores são os homens que primeiro
encontram livros guardados que então são coletados para que o Imperador v eja.
Batedores como esses não encontram apenas as melhores rotas para as tropas ,

454
também possuem a tarefa de encontrarem algo ainda mais importante para o
Imperador: conhecimento, especialmente aquele em livros .
Richard sabia a verdade daquilo . Jagang parecia ser um especialista em
história e sobre o que tinha sido feito em tempos antigos . Ele usava essa
informação para obter grande vantagem . Parecia como se Richard estivesse
sempre tentando alcançar aquilo que Jagang já conhecia.
— Esses homens já encontraram algum dos livros ? — Richard perguntou
a Jillian.
Os olhos cor de cobre dela piscaram . — Meu avô falou para mim sobre
os livros, mas não sei de qualquer um que esteja aqui . A cidade esteve abandonada
desde épocas antigas . Se houve livros, eles devem ter sido levados junto com
qualquer outra coisa de valor faz muito tempo .
Isso não era o que Richard havia esperado ouvir. Estivera esperando que
talvez houvesse algo aqui que ajudasse a responder as perguntas que tinha . Afinal
de contas, Shota falou para ele que devia encontrar o “lugar dos ossos” no “Nada
Profundo”. O cemitério ao redor dele certamente era um lugar de ossos .
— Esse lugar é chamado “Nada Profundo” ? — ele perguntou a ela.
Jillian assentiu. — É uma vasta terra onde pouco coisa vive . Ninguém a
não ser o meu povo consegue obter vida nesse lugar abandonado . As pessoas
sempre temeram vir até aqui . Os ossos alvejados daqueles que aventuram -se aqui
estão lá fora, nesse lugar e ao sul , diante da grande barreira . A terra é chamada
de Nada Profundo.
Richard percebeu que esse devia ser um lugar muito parecido com as
terras selvagens em Midlands.
— A grande barreira ? — Cara perguntou, desconfiada.
Jillian olhou para a Mord-Sith. — A grande barreira que nos protege do
Mundo Antigo.
— Essa tem que ser a zona meridional de D'Hara. — Cara disse a ele. —
É por isso que ouvi histórias sobre Caska quando era criança... porque isso fica
em D'Hara.
Jillian apontou. — Esse é o lugar dos meus ancestrais . Eles foram
destruídos por aqueles do Mundo Antigo em tempos antigos. Eles também eram
pessoas que lançavam sonhos. — ela olhou dentro da escuridão para o sul . — Mas
falharam e foram destruídos.
Richard não tinha tempo para tentar entender tudo isso . Já tinha
problemas suficientes .
— Você já ouviu falar em Cadeia de Fogo?
Jillian fez uma careta. — Não. O que é Cadeia de Fogo?
— Não sei . — ele bateu com um dedo contra o lábio inferior enquanto
pensava sobre o que fazer em seguida .
— Richard, — Jillian falou. — você deve me ajudar a lançar os sonhos
que mandarão esses homens embora para que o meu povo fique em segurança outra
vez.
Richard olhou para Nicci. — Tem alguma ideia de como eu posso fazer
tal coisa?
— Não, — disse ela. — mas posso dizer a você que o resto dos homens
mais cedo ou mais tarde virão procurar esses três homens mortos . Esses não são
soldados comuns da Ordem Imperial . Podem ser brutamontes , mas são os mais
espertos deles. Imagino que “lançar sonhos ” seja algo que envolva usar o seu
Dom... uma coisa que não seria recomendável fazer. — ela completou.
Richard levantou e colocou uma das mãos no quadril enquanto

455
contemplava a cidade escura no promontório .
— Procure o que está enterrado há muito tempo ... — ele sussurrou para
si mesmo. Ele virou de volta para Jillian. — Você disse que era uma Sa cerdotisa
dos Ossos. Preciso que mostre para mim tudo que sabe sobre os ossos .
Jillian balançou a cabeça. — Primeiro você deve me ajudar a lançar os
sonhos para que eu possa mandar os estranhos embora e meu avô e o resto de
nosso povo fique em segurança .
Richard suspirou com frustração . — Olhe, Jillian, eu não sei como ajudá-
la a lançar sonhos e não tenho tempo para descobrir . Mas eu imaginaria , como
falou Nicci, que isso envolve magia, e não posso usar magia ou isso poderia muito
bem chamar uma Besta que poderia matar todo o seu povo . Essa Besta já matou
vários dos meus amigos que estavam comigo . Preciso que você mostre o que sabe
sobre o que está enterrado há muito tempo .
Jillian enxugou as lágrimas . — Aqueles homens estão com o meu avô e
outros lá embaix o. Matarão ele. Você deve salvar o meu avô primeiro . Além disso,
ele é um contador. Ele sabe mais do que eu .
Richard colocou a mão confortadora no ombro dela . Ele não conseguia
imaginar como se sentiria se alguém que ele achasse que era poderoso recusasse
ajudar a salvar o avô dele .
— Tenho uma ideia. — Nicci falou. — Eu sou uma feiticeira , Jillian. Sei
tudo sobre esses homens e como eles trabalham . Sei como lidar com eles . Você
ajuda Richard, e enquanto você faz isso eu vou lá embaixo e livro vocês daqueles
homens. Quando eu tiver acabado eles não serão mais um perigo para o seu povo .
— Se eu ajudar Richard, você vai ajudar o meu avô ?
Nicci sorriu. — Eu prometo.
Jillian olhou para Richard.
— Nicci cumpre a sua palavra. — ele disse para ela .
— Muito bem. Vou mostrar para Richard tudo que sei a respeito desse
lugar enquanto você faz aqueles homens nos deixarem em paz .
— Cara, — Richard disse. — vá com Nicci e proteja a retaguarda dela .
— E quem protegerá a sua?
Richard colocou uma bota sobre a cabeça d o homem que matou e
arrancou sua faca. Ele apontou com a arma . — Lokey vai cuidar da nossa
retaguarda.
Cara não pareceu feliz . — Um corvo cuidará da sua retaguarda .
Ele limpou a lâmina na camisa do homem , então enfiou a faca de volta
em sua bainha no cinto . — A Sacerdotisa dos Ossos cuidará de mim . Afinal de
contas, ela esteve aqui esperando que eu viesse todo esse tempo . Nicci será a
pessoa que estará em perigo . Gostaria que você a protegesse .
Cara olhou para Nicci como se captasse algum significado maior . — Eu
a protegerei para você, Lorde Rahl .

456
C A P Í T U L O 6 1

Quando Nicci e Cara começaram a descer em direção ao lugar onde


Jillian disse que o resto dos soldados da Ordem Imperial estavam , Richard
retornou até a sua tumba e pegou a menor das esferas de vidro . Colocou-a dentro
da mochila para que ela não interferisse com sua visão noturna, mas estivesse
acessível se eles tivessem que entrar em qualquer das construções da cidade . Fazer
busca em antigas construções em decadência no escuro não era um prospecto que
ele gostava.
Jillian era como uma gata que conhecia cada canto e fenda da cidade
antiga no promontório. Eles seguiram por ruas que haviam quase desaparecido
sob cascalhos e destroços das paredes caídas há um longo tempo. Uma parte dos
destroços coletaram terra soprada pelo vento que eventualmente os preencheu,
criando pequenas colinas onde agora cresciam árvores entre as construções .
Houve muitos lugares onde Richard não quis entrar porque podia ver que estavam
prestes a desabar se o vento soprasse para o lado errado . Outros ainda estavam
em condições relativamente boas .
Uma das maiores construções para onde Jillian o levou tinha arcos por
toda a frente que um dia provavelmente tiveram janelas , ou talvez até ficassem
abertas para o que parecia um jardim interno . Conforme Richard caminhava,
pequenos fragmentos de argamassa estalavam sob os pés . Um mosaico feito com
pequenas lajotas quadradas cobria todo o chão . As cores haviam desaparecido
fazia muito tempo, mas Richard ainda conseguia distingui -las muito bem para ver
que as linhas ondulantes das lajotas formavam uma grande imagem de árvores
pontilhando uma paisagem cercada por um muro , com caminhos através de lugares
onde estavam covas .
— Essa construção é a entrada pa ra uma seção do cemitério. — Jillian
disse a ele.
Richard fez uma careta quando inclinou abaixando -se um pouco ,
estudando a imagem. Tinha alguma coisa estranha nela . Luz do luar caiu sobre
figuras no mosaico que estavam carregando bandejas com pães e o que pareciam
carnes para dentro do cemitério , enquanto outras figuras estavam saindo com
bandejas vazias.
Richard endireitou o corpo quando ouviu um grito horrível que chegou
até eles vindo de uma longa distância , os dois, ele e Jillian, ficaram imóveis,
escutando. Mais dos distantes e fracos gemidos e lamentos propagaram -se no ar
frio da noite.
— O que foi isso? — Jillian perguntou em um sussurro, seus olhos cor
de cobre arregalados .
— Acho que Nicci está livrando -se dos invasores . O seu povo estará em
segurança assim que ela terminar .
— Quer dizer que ela está ferindo eles ?
Richard podia ver que tais conceitos eram estranhos para a garota . —
Esses são homens que teriam feito coisas terríveis ao seu povo... incluindo seu
avô. Se permitirem que eles voltem outro dia, eles matarão o seu povo .
Ela virou e olhou de volta através dos arcos . — Isso não seria bom . Mas
os sonhos teriam mandado eles embora .
— Lançar sonhos salvou os seus ancestrais ? Salvou as pessoas dessa

457
cidade?
Ela olhou de volta para os olhos dele. — Acho que não .
— O que mais importa é que as pessoas que valorizam a vida, como
você, o seu avô, e o seu povo, fiquem em segurança para viverem suas vidas . Às
vezes isso significa que é necessário eliminar aqueles que fariam mal a você .
Ela engoliu em seco. — Sim, Lorde Rahl.
Ele colocou a mão no ombro dela e sorriu . — Richard. Eu sou um Lorde
Rahl que deseja que as pessoas fiquem seguras para viverem como quiserem .
Finalmente ela sorriu .
Richard olhou de volta para o mosaico , estudando a imagem . — Você
sabe o que isso significa ? Essa imagem?
Finalmente colocando de lado os distantes gritos assustadores de dor que
brotavam da escuridão , ela olhou para a imagem . — Está vendo ess e muro aqui?
— ela perguntou enquanto apontava. — As histórias dizem que esses muros
guardavam os túmulos das pessoas da cidade . Esse lugar, aqui, é onde estamos
agora. Esse lugar é a passagem para os mortos .
— As histórias dizem que sempre houve mortos , mas apenas esse lugar
para colocá-los dentro dos muros da cidade . As pessoas não queriam que seus
entes queridos ficassem longe deles , longe daquilo que consideravam o lugar
sagrado para seus ancestrais , então fizeram passagens onde poderiam encontrar
locais de descanso para eles .
As palavras de Shota ecoaram na memória dele .
Você deve encontrar o local dos ossos no Nada Profundo .
O que você busca está enterrado há muito te mpo.
— Mostre esse lugar. — ele falou para Jillian. Leve-me até lá.
Era mais difícil chegar até lá do que ele havia esperado . Havia um
labirinto de passagens e salas através da construção . Uma parte seguia entre
paredes que estavam abertas para as estrelas , apenas para entrarem novamente nas
profundezas da construção .
— Esse é o caminho dos mortos , — explicou Jillian. — os falecidos eram
trazidos através daqui . Dizem que isso foi feito dessa maneira na esperança de
que as almas dos mortos ficassem confusas com as passagens e esses novos
espíritos não fossem capazes de vagar para fora . Ao invés disso, confinados nesse
lugar e incapazes de retornar ao meio dos vivo s, então eles seguiriam adiante para
o lugar ao qual pertenciam no mundo espiritual .
Eles finalmente saíram outra vez na noite . A lua crescente estava
erguendo-se acima da antiga cidade de Caska. Lokey circulou acima e gralhou
para sua amiga . Ela acenou em resposta. O cemitério que estendia -se diante dele
era de um bom tamanho , mas pareceu inadequado para uma cidade .
Richard caminhou com Jillian no caminho entre os túmulos . Havia
árvores retorcidas em alguns lugares . Sob a luz do luar esse era um lugar pacífico,
com flores silvestres pelo contorno ascendente e descendente do terreno .
— Onde estão as passagens das quais você falou ? — ele perguntou a ela .
— Sinto muito, Richard, mas eu não sei. As histórias falam delas, mas
não dizem como encontrá -las.
Richard procurou no cemitério , Jillian ao seu lado, enquanto a lua
erguia-se mais alto no céu , e não conseguiu encontrar qualquer evidência de
passagens. Tudo parecia como em qualquer cemitério que ele já tinha visto . Uma
parte do solo estava cheio de lápides . As pedras para cada túmulo estavam bem
próximas. Algumas ainda estavam de pé enquanto outras haviam caído ficando
largadas fazia muito tempo , ou cobertas por mato .

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O temo de Richard estava esgotando. Ele não poderia ficar em Caska,
escutando para sempre as cigarras cantarem. Isso o estava levando a lugar algum .
Ele precisava procurar respostas onde fosse capaz de achá -las. Esse lugar antigo
não parecia ser o lugar .
No Palácio do Povo em D'Hara haveria livros valiosos que Jagang ainda
não tinha conseguido saquear. Era mais provável que ele encontrasse informações
úteis lá do que em um cemitério vazio .
Ele sentou do lado de uma pequena colina sob uma oliveira para
considerar o que poderia fazer .
— Você conhece algum outro lugar onde haveria passagens que foram
mencionadas nas histórias?
A boca de Jillian torceu enquanto ela pensava. — Sinto muito, mas não.
Quando for seguro , podemos descer e falar com meu avô . Ele sabe muitas cosias...
muito mais do que eu.
Richard também não sabia quanto tempo tinha para ouvir as histórias do
avô dela. Lokey desceu até o solo ali perto para fazer um banquete no meio das
cigarras recém emergidas . Após os dezessete anos que elas viveram enterradas no
solo, mais delas estavam emergindo.. só para serem bicadas pelo corvo.
Richard lembrou da profecia que Nathan leu para ele. Ela mencionara as
cigarras. Ele ficou imaginando porque . Ela dissera algo sobre quando as cigarras
despertassem , que a batalha final e dec isiva estava sobre eles . O mundo, ela dizia,
estava à beira da escuridão .
À beira da escuridão . Richard olhou ao redor para as cigarras enquanto
elas emergiam. Ele observou -as saindo do chão .
Enquanto observava, ele percebeu que todas elas estavam saindo a través
de um espaço em uma lápide caída com a frente contra a elevação no solo . Loke y
também tinha notado , e ficou devorando elas.
— Isso é estranho. — ele falou para si mesmo.
— O quê é estranho?
— Bem, olhe ali. As cigarras não estão saindo da terra , estão saindo de
baixo daquela pedra.
Richard ajoelhou e enfiou os dedos dentro do espaço . Parecia oco
embaixo. Lokey inclinou a cabeça enquanto observava . Richard ergueu-a,
grunhindo com o esforço . A pedra começou a levantar . Quando ela subiu, ele
percebeu que ela estava com dobradiças no lado esquerdo. Ela finalmente soltou-
se e abriu.
Richard olhou dentro da escuridão . Não era uma lápide. Era uma tampa
de pedra de uma passagem . Ele imediatamente tirou a esfera de vidro da sua
mochila. Quando ela começou a brilhar, ele segurou -a acima da abertura escura .
Jillian arfou. — É uma escada!
— Vamos lá, tenha cuidado .
Os degraus eram de pedra , irregulares, e estreitos . A borda de cada um
estava recuada e arredondada por incontáveis pés fazendo a jornada . A passagem
estava ladeada por blocos de rocha , formando um claro caminho descendo dentro
do solo. Os degraus chegaram a um patamar e viraram à direita . Após outro longo
lance, eles viraram à esquerda e seguiram mais fundo .
Quando eles finalmente chegaram ao fundo , a passagem abriu em
corredores mais largos que foram esculpidos na sólida, mas macia, rocha do
próprio solo.
Richard segurou o globo brilhante em uma das mãos e a mão de Jillian
na outra quando curvou -se um pouco para evitar o teto baixo enquanto os conduzi a

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mais fundo. Não demorou muito até que eles encontraram um cruzamento .
— As suas histórias falavam alguma cosia a respeito de encontrar o
caminho aqui embaixo? — ela balançou a cabeça. — E quanto a todos esses
labirintos que você aprendeu. Acha que eles servirão para alguma coisa aqui
embaixo?
— Não sei. Eu não sabia que esse lugar existia .
Richard soltou um suspiro quando olhou para cada uma das duas
passagens. — Muito bem , simplesmente terei que entrar mais fundo . Se achar que
reconhece alguma coisa, ou qualquer uma das rotas , me avise.
Depois que ela concordou , eles começaram a andar pela ramificação à
esquerda. De cada lado da estreita passagem eles começaram a encontrar nichos
que foram esculpidos nas paredes . Dentro de cada um jaziam os restos de um
corpo. Em algum lugares os nichos estavam empilhados em três ou cinco . Alguns
tinham dois corpos, provavelmente um marido e a esposa .
Em volta de alguns dos recessos , antigas pinturas ainda permaneciam . A
obra de arte tinha trepadeiras em alguns pontos , pessoas com comida em outros ,
e em alguns lugares, desenhos simples . A partir dos diferentes estilos e da
variedade da qualidade da s artes, Richard supôs que deviam ter sido feitas por
parentes para um membro de sua s famílias que morrera.
A estreita passagem abriu em uma câmara com dez aberturas formando
túneis em várias direções .
Richard escolheu um e começou a descer . Ele também abriu em espaços
mais amplos, com um emaranhado de ramificações . A elevação mudou, de tempos
em tempos descendo mais fundo , e ocasionalmente subindo um pouco .
Logo eles come çaram a encontrar os ossos .
Havia salas com pilhas de ossos similares em nichos . Crânios foram
colocados cuidadosamente em um nicho, ossos de pernas todos empilhados em
outro, ossos de braços em outro . Grandes caixas de pedra esculpidas nas paredes
laterais guardavam ossos menores todos bem arrumados . Enquanto Richard e
Jillian movia-se por câmara após câmara , eles viram paredes com crânios que
deviam estar em dezenas de milhares . Sabendo que estava vendo apenas um a
passagem aleatória, Richard não conseguia imaginar quantas pessoas deviam estar
enterradas nas catacumbas . Mesmo tão surpreendente e tão assustador quanto era
ver tantos mortos, cada um dos seus ossos parecia ter sido colocado ali de forma
reverente. Nenhum deles tinha sido apenas atirado dentro de um buraco ou em um
canto. Cada um havia sido posicionado como se cada um tivesse uma vida
valorizada.
Durante o que devia ter sido mais de uma hora , eles andaram através do
labirinto de túneis . Cada seção era diferente. Algumas eram largas , algumas
estreitas, algumas com salas de cada lado . Depois de algum tempo , Richard
percebeu que cada ponto devia ter sido esculpido na rocha macia para abrir espaço
para uma família; era por isso que os nichos pareciam ocupa r cada espaço
disponível de uma forma tão aleatória .
E então eles chegaram a uma seção da passagem que desabara
parcialmente. Uma enorme seção de rocha tinha tombado e cascalho havia caído
ao redor dela.
Richard parou e olhou para o amontoado de rocha . — Acho que isso é o
mais longe que iremos .
Jillian agachou, espiando embaixo do bloco de pedra deitado em um
ângulo na passagem . — Consigo ver um caminho aqui embaixo . — ela virou para
Richard. Seus olhos cor de cobre pareciam assustados olhando da máscara negra

460
pintada em seu rosto . — Sou menor. Quer que eu vá dar uma olhada rápida ?
Richard segurou a esfera brilhante perto da abertura para iluminá -la. —
Está certo. Mas não quero que você continu e avançando se achar que parece
perigoso. Tem milhares de túneis aqui embaixo , então tem muitos outros para
olharmos.
— Mas esse é aquele que Lorde Rahl encontrou. Deve ser importante.
— Sou apenas em homem , Jillian. Não sou algum espírito sábio que
retornou do mundo dos mortos .
— Se você diz, Richard.
Finalmente ela sorriu quando falou isso .
Jillian d esapareceu dentro do buraco angular como um pássaro através
de um espinheiro.
— Lorde Rahl! — surgiu a voz dela ecoando . — Tem livros aqui dentro .
— Livros? — ele gritou dentro do buraco .
— Sim. Muitos livros. Está escuro, mas parece uma grande sala com
livros.
— Eu vou entrar. — disse ele.
Ele teve que tirar a mochila e empurrá -la na frente quando rastejou .
Acabou não sendo tão arriscado quanto ele temia , e logo havia passado. Quando
levantou do outro lado , ele percebeu que o enorme bloco de pedra deitado em
ângulo através da passagem um dia havia sido uma porta . Parecia como se ela
tivesse sido projetada para deslizar saindo de uma abertura cortada no lado da
parede, mas em um certo momento a massiva porta havia quebrado em uma falha
na rocha, e tombou. Enquanto Richard inspecionava a bagunça , ele esfregou a
poeira e viu uma das placas de metal que ativava um escudo .
A ideia de que esses livros estiveram atrás de um escudo fez o coração
dele bater mais rápido .
Ele virou de volta para a sala . A luz calorosa da esfera brilhante
realmente mostrou uma câmara cheia de livros . A sala corria em ângulos
estranhos, aparentemente sem razão . Richard e Jillian caminharam pela passagem,
olhando para todos os livros . A maioria das prateleiras eram esculpidas na rocha
sólida, do jeito que os locais de descanso para os mortos haviam sido cortados
para criar espaço.
Richard manteve a esfera erguida enquanto começava a checar as
prateleiras.
— Escute, — ele disse para Jillian. — eu estou procurando por algo
específico: Cadeia de Fogo. Pode ser um livro. Você começa de um lado , e eu
pegarei o outro . Certifique-se de olhar o título de cada livro .
Jillian assentiu. — Se estiver aqui, nós encontraremos .
A antiga biblioteca era desencorajadoramente enorme . Enquanto
moviam-se vagarosamente e fizeram a curva em um canto , encontraram uma
câmara com coxias de prateleiras . A busca estava avançando lentamente . Tinham
que trabalhar na mesma ár ea para que ambos pudessem enxergar .
Durante várias horas , eles seguiram pela sala cuidadosamente . Em uma
parte do caminho, encontraram câmaras laterais , menores que a sala principal ,
mas ainda assim cheias de livros . De tempos em tempos cada um deles teve que
soprar poeira de algumas das lombadas .
Richard estava cansado e frustrado no momento em que eles chegaram a
um local onde ele viu outra das placas de metal . Ele pressionou a mão contra ela
e a parede de pedra na frente deles começou a mover . A porta n ão era grande, e
ela abriu rapidamente dentro da escuridão . Ele esperava que os escudos de alguma

461
forma guardassem o que reconheciam do seu Dom , e na verdade não trabalhassem
fazendo o poder dele responder a algum chamado silencioso, que ele não sentisse .
Não gostaria de estar nas catacumbas e a besta surgisse .
Richard colocou a luz dentro da escuridão e viu uma pequena sala com
livros. Também havia uma mesa que há muito tempo tinha caído porque uma parte
do teto desabou sobre ela .
Jillian, bastante concent rada, deslizou um dedo pelas lombadas dos
livros quando lia cada enquanto Richard dava cinco passos cruzando a sala até a
outra parede. Ele viu outra placa ali e pressionou a mão nela .
Lentamente, outra porta estreita na rocha começou a girar sobre um eixo
afastando -se dele na escuridão . Richard agachou um pouco quando passou pelo
portal e colocou a luz parcialmente ali dentro .
— Mestre, você deseja viajar ? — uma voz ecoou.
Ele estava olhando uma luz que refletia no rosto prateado da Sliph. Era
a sala do poço, por onde ele havia entrado . O portal era do lado oposto aos degraus
onde eles tinham encontrado a primeira placa de metal que abriu o teto .
Eles simplesmente passaram a maior parte da noite andando em um
círculo, acabando exatamente onde iniciaram .
— Richard, — Jillian falou. — veja isso.
Richard virou de volta e ficou face a face com a capa vermelha de couro
de um livro que ela estava segurando .
Estava escrito Cadeia de Fogo.
Richard estava tão surpreso que não conseguia falar .
Jillian, sorrindo com a descoberta, entrou na sala da Sliph com ele
quando ele recuou, pegando o livro das mãos dela .
Ele sentiu como se estivesse em algum outro lugar , observando a si
mesmo segurando o livro chamado Cadeia de Fogo .

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C A P Í T U L O 6 2

Richard? — era a voz de Nicci.


Ainda atordoado por ter encontrado Cadeia de Fogo, ele caminhou até
os degraus e olhou para cima . Nicci e Cara, contornadas pela luz da madrugada ,
estavam olhando para baixo em direção a ele .
— Eu encontrei. Quero dizer, Jillian encontrou.
— Como vocês entraram aí ? — Nicci perguntou quando Richard e Jillian
começaram a subir os degraus . — Acabamos de olhar aí dentro e vocês não
estavam.
— Jillian? — era a voz de um homem .
— Avô! — Jillian correu subindo o resto dos degraus e voou para d entro
dos braços de um homem idoso .
Richard subiu os degraus atrás dela . Nicci estava sentada no degrau
superior. — O que está acontecendo ?
— Esse é o avô de Jillian, — falou Nicci, erguendo a mão ao fazer uma
apresentação . — Ele é o Contador desse povo, o guardião do antigo conhecimento .
— Prazer em conhecê -lo. — disse Richard, apertando a mão do
cavalheiro idoso. — Você tem uma neta maravilhosa . Ela acabou de me ajudar
imensamente.
— Você teria encontrado se eu não tivesse visto primeiro. — falou
Jillian, sorrindo.
Richard sorriu de volta.
Ele virou para Nicci. — O que aconteceu com os homens de Jagang?
Nicci balançou os ombros . — Neblina noturna .
Quando Jillian foi junto com seu avô para encontrar com Lokey em um
muro ali perto , Richard falou reservadamente para Nicci e Cara.
— Neblina?
— Sim. — Nicci entrelaçou os dedos em volta de um joelho . — Algum
tipo de neblina estranha caiu sobre eles e fez com que ficassem cegos .
— Não apenas cego s, — Cara disse com obvio deleite. — mas aquilo
também explodiu os olhos deles . Foi uma bagunça sangrenta . Eu gostei muito .
Richard fez uma careta para Nicci, querendo uma explicação .
— Eles são batedores , — disse ela. — conheço esses homens e eles me
conhecem. Não queria que eles me vissem . Porém, mais do que isso, queria que
eles ficassem inúteis para Ja gang... pelo menos, aqueles que viverem . De acordo
com o que o avô de Jillian falou para mim , ele duvida que muitos deles retornarão
para as forças de Jagang, mas eu me certifiquei de que eles estivessem p erto o
bastante de seus cavalos para que seus animais os levem de volta . Quero que
aqueles que sobreviveram consigam relatar apenas o horror da neblina descendo
das colinas... que eles foram cegados em uma terra estranha, isolada e assombrada .
Essa notícia espalhará o medo entre os homens dele .
— Estuprar, pilhar, e trucidar os indefesos é perfeitamente divertido
para o exército de Jagang, mas eles certamente não gostam de coisas como essa .
Morrer pelo Criador em uma grande batalha e receber a sua recompens a na vida
seguinte é uma coisa, ser tomado por algo que não consegu ia ver saindo da
escuridão e acabar impotentes desse jeito é outra .
— Espero que Jagang decida evitar essa terra ao invés de permitir que

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alguma coisa desconhecida aqui transmita um medo que poderia mudar a mente
deles sobre lutarem pela glória do Criador e pela Ordem Imperial . Isso significa
que eles terão que continuar ao sul por uma boa distância . Isso aumentará o tempo
de jornada deles antes que finalmente consigam dar a volta e entrar em D'Hara.
Richard assentiu, pensativo . — Muito bom, Nicci. Muito bom .
Ela ficou radiante. — O que você tem aí ?
— Cadeia de Fogo . — ele subiu os degraus para sentar entre Nicci e
Cara. — É um livro. — ele hesitou em abrir a capa . — Caso isso seja algum ti po
de profecia ou algo assim , acho que seria melhor você dar uma olhada primeiro .
A preocupação instalou -se nas primorosas feições dela . — É claro,
Richard. Entregue para mim .
Richard entregou o livro a ela e levantou . Não queria arriscar olhar para
ele e tarde demais descobrir que não devia ter olhado , apenas para descobrir que
a Besta estava prestes a rasgá -los em pedaços. Especialmente não agora, não
quando ele estava tão perto de conseguir respostas .
Nicci já estava checando o livro , Cara olhando por cima do ombro dela.
— Isso não faz sentido. — Cara anunciou enquanto lia um trecho de
Cadeia de Fogo.
Richard não achou que Nicci compartilhava daquela opinião . A cor
estava sendo drenada do rosto dela . — Queridos espíritos... — ela sussurrou para
si mesma.
Enquanto ela continuava lendo , sem falar qualquer coisa para eles ,
Richard sentou em uma elevação do solo ali perto , sob uma oliveira. Havia uma
trepadeira crescendo ao redor do tronco . Ele esticou o braço distraidamente para
arrancar uma folha da trepad eira.
Ele parou, sua mão a polegadas das folhas variegadas empoeiradas .
Arrepios gelados percorreram os braços dele .
Ele sabia o que aquela trepadeira era .
Do Livro das Sombras Contadas , o livro que seu pai tinha feito ele
comprometer-se a memorizar antes que eles o destruíssem, as palavras inundaram
sua mente: E quando as três Caixas de Orden forem postas em uso, a trepadeira
serpente crescerá.
— Qual é o problema? — Jillian sussurrou para ele quando inclinou
aproximando -se. — Parece que você viu um fantasma .
— Já tinha visto essa planta crescendo aqui , onde o seu povo vive?
— Não, acredito que não.
— Ela está certa . — o avô de Jillian falou, intrigado. — Moro nesses
lugares durante toda minha vida . Não lembro de ter visto essa trepadeira, a não
ser durante um breve período faz aproximadamente três anos , acredito que foi
isso. Isso mesmo, faz três anos no próximo outono . Então ela morreu. Não tenho
visto ela desde então .
Richard não viu quaisquer vagens na trepadeira recém germinada. Ele
esticou o braço e cuidadosamente arrancou um ramo .
— Richard, esse é um livro incrivelmente perigoso . — Nicci falou com
uma voz profundamente transtornada . Ela estava preocupada, ainda lendo, e não
prestava qualquer atenção no resto deles fa lando. — Está além de perigoso . — ela
estava lendo enquanto falava . — Estou apenas no começo , mas isso é... eu nem
sei por onde começar ...
Richard levantou-se, segurando o ramo da trepadeira , olhando fixamente
para ele. — Temos que ir. — ele disse. — Agora mesmo.
Algo no tom da voz dele fez Cara e até mesmo Nicci levantarem os olhos .

464
— Lorde Rahl, o que foi? — perguntou Cara.
— Parece que você acabou de ver o fantasma do seu pai. — disse Nicci.
— Não, isso é pior. — Richard falou para ela, final mente erguen do os
olhos. — Eu entendo . Sei o que está acontecendo .
Ele desceu correndo os degraus entrando em sua tumba . — Sliph!
Precisamos viajar!
— Mas Richard, você veio para me ajudar a lançar os sonhos para que
as pessoas más não venham até aqui .
— Olhe, eu tenho que partir. Imediatamente.
— Lorde Rahl já nos ajudou o máximo que podia nesse momento . — o
avô dela falou quando colocou um braço em volta dos ombros finos dela . — S e
puder, ele retornará até nós .
— Isso mesmo, — falou Richard. — se eu puder, voltar ei. Obrigado,
Jillian, por me ajudar. Você não consegue ao menos imaginar o que fez nesse dia .
Diga ao seu povo para ficarem longe daquela trepadeira .
— Richard, — Nicci disse. — o que deu em você?
Ele agarrou o vestido dela no ombro , e no braço de Cara.
— Temos que ir para o Palácio do Povo . Agora.
— Porquê? O que está acontecendo ? O que você descobriu ?
Richard mostrou a ela o ramo da trepadeira antes de enfiá -lo em um
bolso, agarrar o braço dela outra vez e forçá -la a descer os degraus .
— Isso é uma trepa deira serpente . Ela só cresce quando as Caixas de
Orden foram colocadas em atividade .
— Mas as Caixas de Orden estão em segurança no Palácio. — Cara
protestou.
— Elas não estão mais seguras . Aquelas Irmãs colocaram a magia de
Orden em ação. Sliph! Precisamos viajar para o Palácio do Povo .
— Venha, nós viajaremos.
Nicci ainda estava lutando com ele enquanto ele a puxava . — Richard,
não vejo o que isso tem a ver com o seu sonho sobre essa mulher .
Richard encostou a mão na placa de metal , fazendo o teto da tumba
começar a fechar. — Adeus, Jillian. Obrigado. Eu voltarei algum dia.
Enquanto ela acenava, ele pegou o arco e a aljava .
Ele virou para Nicci. — Elas precisam de Kahlan. Ela é a última
Confessora viva. Elas colocaram as Caixas de Orden em ação. Precisam do livro
que eu memorizei . A primeira coisa que ele diz é “A verificação da verdade das
palavras do Livro das Sombras Contadas, quando feita por outra pessoa, não lida
por quem comanda as Caixas, só pode ser garantida com o uso de uma
Confessora”.
O teto terminou de fechar . Bem longe, Richard conseguiu ouvir Jillian
gritar, “— Adeus, Richard. Faça uma viagem segura ”.
— Richard, isso é loucura. Simplesmente...
— Agora não é o momento para discutir comigo .
Pelo tom da voz dele ela soube que ele falava sério.
Ele subiu no muro e ajudou as duas mulheres .
— Aqui, espere, — falou Nicci quando abriu a mochila . — É melhor
você manter isso em segurança . — ela enfiou Cadeia de Fogo dentro e amarrou a
alça bem apertado.
— Alguma ideia do que trata -se Cadeia de Fogo? — ele perguntou.
Seus olhos azuis olharam dentro dos olhos dele . — De acordo com o que
eu consigo dizer a partir do pequeno trecho que vi no início , é uma fórmula teórica

465
para conjurar coisas que possuem o potencial para desfazer a existência .
— Desfazer a existência? — perguntou Cara. — O que isso significa?
— Não tenho certeza. Mas parece ser uma discussão de uma teoria de
uma magia específica que se for iniciada poderia potencialmente destruir o mundo
dos vivos.
— Porque elas precisariam disso ? — Richard perguntou. — Agora elas
possuem a magia de Orden.
Nicci não respondeu . Ela não acreditava na teoria dele ; ela envolvia
Kahlan.
— Sliph, agora, por favor. Leve-nos para o Palácio do Povo .
O braço prateado colheu eles. — Venham, nós viajaremos .
Pouco antes deles mergulharem na espuma prateada , Nicci e Cara, cada
uma delas, segurou em uma das mãos dele .

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C A P Í T U L O 6 3

Nicci mal havia recuperado os sentidos , mal reconhecera que eles


estavam em uma sala de mármore , mal deixara que a Sliph saísse de seus pulmões
e respirava desesperadamente o ar , quando Richard já estava puxando ela por cima
do muro pela mão .
A despeito de tudo , ela ainda era capaz , em alguma parte de sua mente ,
de emocionar-se por segurar a mão dele , não importava qual fosse a razão.
Ela imaginara que, enquanto estava na Sliph viajando para o Palácio do
Povo, conseguiria pensar a respeito da estranha nova reviravolta de Richard
encontrar um pedaço de trepadeira e saltar para a conclusão de que as Caixas de
Orden estavam em aç ão... tudo em uma tentativa de provar que Kahlan era real.
A sala onde eles estavam estava protegida por escudos . Richard puxou
ela e Cara através do poderoso escudo . Eles correram subindo um corredor de
mármore e saíram por uma porta dupla com um lago gravado no metal .
— Conheço esse lugar. — disse Cara. — Sei onde estamos.
— Bom, — falou Richard. — então você mostra o caminho . E depressa.
Houve momentos em que Nicci quase desejou ter levado adiante o plano
de Zedd, Ann, e Nathan de livrá-lo da memória de Kahlan.
Exceto por uma coisa. Ela testou a teoria em um dos homens de Jagang,
em Caska. Ela tentou usar Magia Subtrativa para eliminar a memória do homem
sobre o Imperador . Isso soava bastante simples . Fizera exatamente como os três
queriam que ela fizesse com Richard.
Houve apenas um problema .
Isso matou o homem . Matou ele de uma forma horripilante .
Quando pensou a respeito daquilo que quase fizera com Richard, como
durante algum tempo ela permitira que eles a convencessem a fazer isso e como
ela comprometera -se a fazer, ela ficou tão fraca e zonza que sentou no chão perto
do soldado morto. Cara tinha pensado que Nicci estava quase para desmaiar . A
ideia do que ela quase tinha feito deixou -a tremendo durante uma hora.
— Aqui. — Cara disse quando os conduziu subindo degraus que levaram
até um largo corredor com partes do teto de envidraçadas .
A luz que entrava era avermelhada , então era quase pôr do sol ou logo
após a madrugada , Nicci não sabia qual . Era uma sensação desorientadora não
saber se era dia ou noite .
Os corredores estavam cheios de pessoas. Muitas delas pararam para
olhar as três pessoas correndo . Guardas também notaram e vieram correndo , as
mãos nas armas, até que viram Cara em sua roupa vermelha de couro. Muitas das
pessoas reconheceram Richard e caíram de joelhos , fazendo reverência enquanto
ele passava correndo . Ele não reduziu a velocidade para responder .
Eles subiram um conjunto estonteante de passagens , sobre pontes, por
sacadas, entre colunas, a através de salas. De forma intermitente eles subiam
escadas. Ocasional mente Cara os levou por corredores de serviço , sem dúvida
como atalhos .
Nicci observou como o Palácio era magnífico , o quanto era
excepcionalmente belo . Os pisos de pedra com gravuras estavam dispostos com
uma rara precisão . Havia estátuas primorosas... nenhuma tão notável quanto a
estátua que Richard esculpira, mas ainda assim primorosas . Ela viu uma tapeçaria

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que era mais larga do que qualquer outra que já tinha visto em sua vida . Ela exibia
uma grande batalha e devia ter centenas de cavalos nela .
— Por aqui. — disse Cara, apontando um corredor quando corria em
direção a ele.
Quando eles viraram na esquina , Cara atravessou para o outro lado da
passagem enquanto corria descendo por ela . Nicci, puxada pela mão, teria gostado
de discutir várias coisas , de ter feito algumas perguntas importantes e relevantes ,
mas tudo que podia fazer era manter o fôlego enquanto corria . Correr não era algo
que ela realmente tinha feito até conhecer Richard.
Cara reduziu a velocidade escorregando quando alcançou um par de
portas de mogno entalhadas . Nicci estava indignada ao ver as serpentes gravadas
nelas. Sem pausa, Richard segurou um dos puxadores da porta , um crânio de
bronze, e abriu a porta.
Dentro da tranquila sala acarpetada, quatro guardas correram
imediatamente para bloquear o caminho de Richard. Eles viram Cara, e olharam
para Richard novamente, incertos.
— Lorde Rahl? — um deles perguntou .
— Isso mesmo, — disparou Cara. — agora, saiam do caminho .
Os homens afastaram -se imediatamente , cada um colocando um punho
sobre o coração.
— Aconteceu alguma coisa recentemente ? — perguntou Richard quando
recuperou o fôlego .
— Aconteceu?
— Invasores? Alguém entrou por esse caminho ?
O homem soltou uma risada . — Dificilmente, Lorde Rahl. Nós
saberíamos se isso acontecesse e não teríamos permitido .
Richard assentiu agradecendo e correu até os degraus de mármore , quase
arrancando o braço de Nicci no processo . Quando eles subiram correndo os
degraus, Nicci achou que suas pernas podiam simplesmente ceder. Seus músculos
estavam tão exaustos da longa corrida através do Palácio que ela mal conseguia
fazer elas continuarem, mas precisava, por Richard.
No topo da escada, soldados estavam correndo em direção a eles , bestas
carregadas com flechas de pena vermelha preparadas . Eles não sabiam que era
Lorde Rahl. Pensaram que alguém estava tentando entrar na área restrita . Nicci
esperava que alguém recuperasse o bom senso antes que um dos homens ficasse
descuidado .
Mas pelas reações deles, Nicci percebeu que esses homens eram
altamente treinados e não propensos a atirar flechas antes de terem certeza do seu
alvo. Para a sorte deles, porque ela teria sido mais rápida .
— General Comandante Trimack? — Richard perguntou para um oficial
que abria caminho através do anel de aço que os cercava .
O homem ficou ereto e bateu com um punho sobre o coração . — Lorde
Rahl! — ele avistou a Mord-Sith. — Cara? — Cara assentiu em saudação.
Richard trocou um aperto de braços co m o homem . — General, alguém
entrou aqui . Elas levaram as Caixas dentro do Jardim da Vida .
O General ficou momentaneamente sem fala . — O quê? Lorde Rahl , isso
não é possível. Você deve estar enganado . Ninguém conseguiria passar por nós
sem o nosso conhecim ento. Tudo aqui esteve tão pacífico quanto devia estar
durante eras. Ora, só tivemos uma visitante .
— Visitante? Quem?
— A Prelada. Verna. Faz algum tempo. Estava no Palácio checando algo

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sobre livros de magia, ela disse. Falou que enquanto estava aqui , queria dar uma
olhada para ter certeza de que as Caixas estavam em segurança .
— Então você permitiu que ela entrasse lá ?
O General pareceu um pouco indignado . Uma longa cicatriz destacou -se
branca quando seu rosto ficou vermelho .
— Não, Lorde Rahl. Eu não deixaria ela entrar ali . O que acabamos
fazendo foi abrir as portas para que ela pudesse olhar lá dentro para ver que tudo
estava em segurança .
— Olhar lá dentro?
— Isso mesmo . Nós a cercamos com homens , todos apontando essas
flechas especiais que Nathan Rahl encontrou para nós que deteriam até os dotados .
Estávamos com ela em um anel de aço . A pobre mulher parecia estar prestes a
virar uma alfineteira .
Homens ao redor assentiram diante das palavras do General .
— Ela olhou dentro do jardim e disse que estava aliviada em ver que
tudo estava bem. Eu mesm o dei uma olhada e vi as três caixas negras sobre a placa
de pedra dentro da sala. Mas jamais deixei a mulher colocar um pé além das
portas, eu juro.
Richard soltou um suspiro. — Então é isso ? Ninguém mais abriu aquelas
portas?
— Não, Lorde Rahl . Ninguém mais esteve aqui a não ser meus homens .
Ninguém. Não deixamos qualquer pessoa ao menos usar esses corredores em volta
do Jardim da Vida . Como deve lembrar , você foi bastante insistente a respeito
disso na última vez em que você esteve aqui .
Richard assentiu, pensando. Ele levantou os olhos . — Bem, vamos lá dar
uma olhada.
Os homens, todos emitindo sons de metal de armas e armaduras ,
seguiram os visitantes surpresa pelo corredor de granito polido até chegarem
diante de duas portas enormes cobertas por ouro .
Sem esperar que outra pessoa o fizesse , Richard abriu uma das pesadas
portas e caminhou entrando na sala . Os soldados ficaram parados na frente das
portas. Aparentemente esse era um solo sagrado , um santuário apenas para o
mestre do palácio , e a não ser que fossem convidados por Lorde Rahl , nenhum
deles entraria. Richard não os convidou enquanto avançava rapidamente sozinho .
Independente do quanto estava cansada , Nicci foi atrás dele rapidamente
enquanto ele seguia entre as flores . Adiante, através de um telhado envidraçado ,
ela conseguiu ver que o céu tinha assumido um púrpura mais escuro , então ela
soube que era noite, ao invés de madrugada.
Exatamente como Richard, Nicci prestou pouca atenção aos muros
cobertos por trepadeiras , ou árvores, ou quaisquer outras coisas crescendo ao
redor. O jardim era um lugar magnífico , com certeza, mas o olhar dela estava
concentrado no altar de pedra que ela viu a uma certa distância . Ela não viu
qualquer uma das três Caixas que supostamente deveriam estar ali . Tinha alguma
outra coisa sobre a placa de granito , mas ela não conseguia definir o que era.
Pelo modo como o peito de Richard estava pulsando, ele sabia o que
estava ali .
Eles atravessaram um anel de grama , e o solo de terra. Na terra, Richard
parou repentinamente no meio de um passo e ficou olhando para o chão .
— Lorde Rahl, — Cara perguntou. — o que foi?
— Os rastros dela , — ele sussurrou. — eu os reconheço . Esses não estão
cobertos por magia. Ela esteve aqui sozinha. — ele apontou para a terra . — Dois

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conjuntos. Ela esteve aqui dentro duas vezes . — ele olhou para trás em direção à
grama, seguindo aquilo que ele conseguia enxergar que elas não conseguiam. —
Ela ficou de joelhos ali , na grama.
Ele partiu correndo o resto do caminho até o altar de pedra . Nicci e Cara
correram para acompanhá -lo.
Quando alcançaram a placa de granito , Nicci finalmente soube o que
estava ali .
Era a estátua da mulher que foi esculpida em mármore na Praça da
Liberdade em Altur'Rang. A estátua original que Richard dissera a elas que havia
entalhado. A estátua que ele falou que pertencia a Kahlan. Nicci podia ver que
havia impressões digitais com sangue nela .
Richard pegou a figura de madeira entalhada em mãos trêmulas e
apertou-a contra o peito, contendo um soluço. Nicci pensou que ele poderia cair ,
mas ele não caiu.
Após ter segurado aquilo durante um momento, ele virou para elas ,
lágrimas escorrendo por seu rosto . Ele mostrou a Cara e Nicci a estátua da figura
orgulhosa, sua cabeça jogada para trás, as mãos cerradas nos flancos do corpo .
— Essa é a estátua que eu entalhei para Kahlan. Essa é Espírito. Essa é
a estátua que falei a vocês não poderia estar em Altur'Rang porque estava com
ela. Se eles copiaram essa estátua em rocha lá em Altur'Rang, no Mundo Antigo ,
então como ela chegou até aqui ?
Nicci ficou olhando para aquilo , seus olhos arregalados , tentando
entender o que estava enxergando . Ela não conseguia compreender a contradição .
Lembrou de Richard tentando entender o que tinha v isto no local da cova onde a
Madre Confessora estava enterrada . Agora ela sabia o que ele sentiu .
— Richard, eu não entendo como isso poderia ter chegado até aqui .
— Kahlan deixou isso aqui! Deixou aqui para que eu encontrasse ! Ela
pegou as Caixas de Orden para as Irmãs ! Não está percebendo ? Não está
enxergando finalmente a verdade diante de você ?
Incapaz de falar mais , ele apertou a estátua novamente contra o peito
como se ela fosse o tesouro mais valioso no mundo .
Naquele momento , vendo a dor que espalhava-se nele, Nicci imaginou
como seria se ele a amasse tanto assim .
Ao mesmo tempo, a despeito da confusão dela , a despeito da tristeza por
causa daquilo que ela estava vendo , da dor pela qual ele obviamente estava
passando, ela sentiu satisfação , satisfação que Richard tivesse alguém que
significava tanto para ele , alguém que pudesse fazer ele sentir -se daquela
maneira... mesmo se ela fosse imaginária . Nicci ainda não estava convencida de
que ela não era .
— Vocês entendem agora? — ele perguntou. — Vocês duas entendem
agora?
Cara, parecendo tão surpresa quanto Nicci, balançou a cabeça. — Não,
Lorde Rahl, eu não entendo .
Ele ergueu a pequena estátua . — Ninguém lembra dela. Provavelmente
ela caminhou passando por esses homens e eles a esqueceram , exatamente como
você esqueceu todas as milhares de vezes em que a viu . Ela está sozinha, nas mãos
daquelas quatro Irmãs , e elas a fizeram vir aqui dentro e pegar as Caixas . Estão
vendo o sangue nisso ? O sengue dela? Vocês deveriam entender isso . Conseguem
imaginar como ela está sentindo -se, sozinha, esquecida por todos? Ela deixou
isso, provavelmente esperando que alguém visse e soubesse que ela existe .
Ele mostrou a estátua para Cara, e então para Nicci. — Olhem para isso !

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Está coberta por sangue ! Tem sangue no altar. Tem sangue no chão. Ali estão as
pegadas dela. Como acham que as Caixas sumiram e isso está aqui ? Ela esteve
aqui.
O jardim interno estava completamente silencioso . Nicci estava tão
confusa que não sabia em que acreditar . Ela sabia o que esta va vendo, mas isso
não parecia ser possível .
— Vocês acreditam em mim agora ? — perguntou Richard para as duas.
Cara engoliu em seco . — Lorde Rahl, acredito no que você está falando ,
mas ainda não lembro dela .
Quando o olhar penetrante dele desviou para Nicci, ela também sentiu o
poder daquele olhar .
— Richard, eu não sei o que está acontecendo . O que você está dizendo
certamente é uma evidência poderosa , mas, como Cara diz, eu ainda não lembro
dela. Sinto muito, mas não posso mentir para você e falar aqu ilo que você quer
ouvir apenas para deixá -lo feliz. Estou dizendo a verdade a você . Ainda não sei
do que você está falando .
— Sei que você não sabe. — ele falou com repentina, tranquila, notável
simpatia. — É isso que estive falando para vocês . Alguma cois a terrível está
acontecendo. Ninguém lembra dela. Qualquer coisa que pudesse causar um evento
como esse é sem dúvida uma conjuração poderosa e extremamente perigosa , capaz
de ser gerada somente pelas pessoas mais poderosas que possuem o comando dos
dois lados do Dom. Uma magia tão poderosa que estaria escondida em um livro
enterrado em uma catacumba atrás de escudos onde os magos que colocaram isso
lá esperavam que ninguém conseguisse encontrar .
— Cadeia de Fogo . — Nicci falou. — Mas conforme o breve trecho que
eu vi, isso de alguma forma tem o poder para desfazer o mundo dos vivos .
— E porque as Irmãs se importariam? — Richard perguntou com uma
voz triste. — Elas já colocaram as Caixas de Orden em atividade. A intenção elas
é acabar com a vida em benefício do Guardião dos mortos . Você deveria entender
isso melhor do que qualquer pessoa .
Nicci colocou uma das mãos na testa . — Queridos espíritos , acho que
você pode ter razão . — ela não conseguia sentir as pontas dos dedos . Seu corpo
todo estava formigando de pavor . — De acordo com a pequena parte que eu li ,
parece que Cadeia de Fogo pode ter algo próximo daquilo que Zedd, Ann, e Nathan
queriam que eu fizesse com você... usar Magia Subtrativa para fazer você esquecer
Kahlan. Se o que você diz é verdade, então de certa forma , poderia ser isso que
as Irmãs fizeram... fizeram todos esquecerem ela .
Nicci olhou dentro dos olhos cinzentos dele , olhos nos quais ela poderia
perder-se. Ela sentiu lágrimas de temor descerem por suas bochechas .
— Richard, eu tentei isso.
— Do que você está falando ?
— Tentei o que eles queriam que eu fizesse com você . Tentei em um dos
homens de Jagang, lá em Caska. Tentei fazer ele esquecer Jagang. Foi mortal . E
se for isso que Cadeia de Fogo faz com todos?
Richard soltou um suspiro furioso . — Vamos lá.
Ele marchou para fora do Jardim até um General e seus guardas que
aguardavam no corredor de granito polido , amontoados em volta da entrada do
Jardim da Vida.
— Lorde Rahl, — disse o General. — não vejo mais as Caixas .
— Elas foram roubadas .
Homens ao redor ficaram de bocas abertas com repentino assombro . Os

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olhos do General Trimack ficaram arregalados. — Roubadas... mas, quem poderia
tê-las roubado?
Richard levantou a estátua e balançou -a na frente do homem . — Minha
esposa.
O General Trimack parecia não saber se gritava em fúria ou se cometia
suicídio ali mesmo. Ao invés disso ele esfregou uma das mãos para frente e para
trás em sua boca enquanto pensava em tudo que ouvira e aparentemente tentava
encaixar isso com qualquer outra informação que tinha . Ele olhou para Richard
com o tipo de olhar atento que poucos homens além de Generais conseguiriam
mostrar.
— Recebo relatórios o tempo todo , Lorde Rahl . Eu insisto em ver todos
os relatórios... você nunca imagina que tipo de pequena informação pode obter
que poderia acabar sendo útil . O General Meiffert também envia relatórios para
mim. Uma vez que agora ele está nas proximidades , recebo eles em um intervalo
de horas . Logo eles e as tropas seguirão ao sul e isso levará mais tempo, mas por
enquanto, eu as recebo frescas .
— Estou ouvindo.
— Bem, não sei se isso significa alguma coisa , mas o último relatório
que recebi cedo esta manhã disse que eles cruzaram com uma mulher , uma mulher
idosa, que havia sido ferida por uma espada . Ela está em péssimas condições , de
acordo com o relatório . Não sei porque ele enviou para mim um relatório a
respeito de tal coisa, mas o General Meiffert é um sujeito bastante esperto , e tenho
que imaginar que havia alguma coisa bastante estranha nisso para que ele
desejasse que eu soubesse.
— A que distância ele está ? — Richard perguntou. — O exército, eu
quero dizer. A que distância?
O General balançou os ombros . — A cavalo? Cavalgue firme metade do
caminho e eles não estarão a mais do que uma hora ou duas de distância .
— Então consiga para mim alguns cavalos . Imediatamente.
O General Trimack bateu com um punho sobre o coração ao mesmo
tempo em que sinalizava para dois homens avançarem . — Corram na frente e
façam com que alguns cavalos sejam preparados para Lorde Rahl . — ele olhou
para Richard, então para Cara e Nicci. — Três cavalos?
— Sim, três. — Richard confirmou.
— E uma escolta da Primeira Fileira para mostrar a ele o caminho e
fornecer proteção.
Os dois homens assentiram e partiram correndo em direção aos degraus .
— Lorde Rahl, não sei o que dizer. É claro que renunciarei...
— Não seja tolo. Isso não é uma coisa a respeito d a qual você poderia
ter feito algo; foi uma ilusão através de magia . A culpa é minha por deixar isso
acontecer. Eu sou o Lorde Rahl. Eu deveria ser a magia contra a magia .
Nicci só conseguiu pensar que ele estivera tentando ser , mas ninguém
acreditava nele .
Sem perder qualquer tempo para descansar , Richard, Cara, e Nicci,
escoltados por uma companhia dos guardas do Palácio , correram através dos
grandiosos e largos corredores do lar ancestral de Richard. P essoas na rota deles
saiam do caminho da cunha de guardas descendo os corredores . Atrás dos guardas,
Cara marchava na frente de Richard. Nicci seguia ao lado dele.
Quando eles passavam em uma corredor menor , com menos pessoas,
Richard reduziu o passo e então parou . Os guardas pararam longe o bastante para
estarem acessíveis, mas dando a ele sua privacidade . Enquanto todos esperavam ,

472
Richard olhou por uma passagem lateral . Cara pareceu desconfortável .
— Aposentos para Mord-Sith. — Cara explicou a Nicci em resposta para
a pergunta não pronunciada nos olhos dela.
— O quarto de Denna era descendo aquele corredor . — Richard apontou
para o outro lado. — O seu quarto era por ali , Cara.
Cara piscou. — Como sabe disso?
Ele olhou para ela durante um momento , sua expressão ilegível . — Cara,
eu lembro de estar lá .
Cara ficou tão vermelha quanto sua roupa de couro . — Você lembra? —
Richard assentiu. — Você sabe? — ela sussurrou, pânico surgindo nos olhos dela .
— Cara, — ele disse gentilmente. — é claro que eu sei .
Os olhos dela cintilaram com lágrimas . — Como você sabia?
Ele indicou o pulso direito dela . — Quando toquei em seu Agiel, ele
machucou. Um Agiel só machuca quando uma pessoa o toca se ele foi usado para
treiná-la, ou se a Mord-Sith quiser machucar.
Ela fechou os olhos . — Lorde Rahl... eu sinto muito .
— Isso foi há muito tempo , quando você era uma pessoa diferente , e eu
era o inimigo do seu Lorde Rahl. As coisas mudam , Cara.
— Tem certeza de que eu mudei o bastante ?
— Outros transformaram você naquilo que você era . Você transformou
a si mesma naquilo em que tornou -se. — ele sorriu. — Lembra quando a Besta a
feriu, e eu curei você?
— Como poderia esquecer?
— Então você sabe o que eu sinto.
Ela sorriu com aquilo .
A testa de Richard franziu. — Toque... — os olhos dele iluminaram -se
com repentina percepção .
— A espada.
— O quê? — perguntou Nicci.
— A Espada da Verdade . Naquela manhã, quando eu estava adormecido,
acredito que as Irmãs lançaram um feitiço para fazer com que eu dormisse mais
pesado para que pudessem levar Kahlan. Mas coloquei a mão na espada . Eu estava
tocando na Espada da Verdade quando elas a levaram e fizeram todos esquecerem
Kahlan. A espada me protegeu daquela magia. É por isso que lembro dela . A
Espada da Verdade foi uma contra medida para aquilo que elas fizeram .
Richard voltou a andar outra vez . — Vamos lá, precisamos chegar ao
acampamento e ver quem é aquela mulher ferida.
Perplexa, Nicci seguiu atrás dele .

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C A P Í T U L O 6 4

Nicci estava surpresa com o acampamento . Estava tão acostumada a estar


entre o exército de Jagang que realmente não tinha pensado em como esses homens
poderiam ser diferentes . Fazia sentido, é claro, mas ela nun ca havia pensado nisso .
Mesmo no escuro, ainda havia a luz de todas as fogueiras e ela esperava
ser o centro de mórbida atenção , com homens gritando as coisas mais sujas em
que podiam pensar em uma tentativa de chocá -la, humilhá-la ou assustá-la. Os
homens no acampamento da Ordem sempre vaiavam para ela , faziam gestos
obscenos , e riam furiosamente enquanto ela passava no meio deles .
Esses homens, certamente, olhavam em direção a ela . Nicci esperou que
fosse uma rara experiência verem uma mulher como ela cav algando dentro do
acampamento deles. Mas eles apenas olhavam . Uma espiada, um olhar admirador ,
um sorriso aqui e ali com um aceno de cabeça em saudação era o máximo que ela
recebia. Podia ser porque estava cavalgando ao lado de Lorde Rahl e uma Mord-
Sith em couro vermelho, mas Nicci achava que não . Esses homens eram diferentes .
Era esperado que eles tivessem um comportamento respeitoso .
Por toda parte quando homens viam Richard, eles batiam com um punho
sobre os corações em saudação quando levantavam com orgulho, ou trotavam
sozinhos ao lado do cavalo dele durante algum tempo . Eles pareciam muito felizes
em verem ele entrar cavalgando em seu acampamento , em verem seu Lorde Rahl
entre eles novamente .
O acampamento também era mais organizado . O fato de que ele estivesse
seco ajudava; havia poucas coisas piores do que um acampamento de exército
molhado. Nesse acampamento os animais estavam confinados em áreas onde não
causariam problemas . Carroças estavam fora da rota principal através do
acampamento. Na verdade deliberadamente havia rotas através do acampamento .
Os homens pareciam cansados da longa marcha , mas suas tendas estavam
dispostas de uma maneira bastante sistemática , não da forma bagunçada , no
método cada homem por si mesmo que a Ordem Imperial empregava. As fogueiras
eram pequenas e somente em quantidade necessária , não uma farra bêbada com
homens dançando , cantando, e brigando ao redor delas .
A outra grande diferença era que não havia qualquer tenda de tortura
armada. A Ordem sempre tinha uma ár ea ativa reservada para tortura . Uma
constante cadeia de pessoas entrava para interrogatório , e um número igual de
cadáveres saiam. Os gritos contínuos das vítimas contribuíam para um
acampamento barulhento .
Isso era outra coisa. Ele era bastante tranquilo . Homens estavam
terminando suas refeições e preparando -se para dormirem . Era um momento
silencioso . No acampamento da Ordem , não havia qualquer momento de
tranquilidade.
— Ali. — um dos homens escoltando eles disse quando ergueu um braço
para apontar as tendas do comando na escuridão .
Um grande oficial louro saiu de uma das tendas quando ouviu cavalos
nas proximidades. Sem dúvida ele já havia sido alertado que o Lorde Rahl estava
a caminho.
Richard desceu da sela e impediu o homem de cair de joelhos e faz er
uma Devoção .

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— General Meiffert, é bom vê-lo novamente, mas não temos tempo para
isso.
Ele fez uma reverência com a cabeça . — Como desejar, Lorde Rahl.
Nicci observou os olhos azuis do General olharem para Cara quando ela
aproximou-se ao lado de Richard.
Ele alisou o cabelo louro para trás . — Senhora Cara.
— General.
— A vida é curta demais para que vocês dois finjam que não se importam
um com o outro. — falou Richard, sua raiva vindo à superfície . — Vocês devem
perceber que cada momento que possuem junt os é precioso e que nada há de errado
em demonstrar alta consideração por alguém . Esse é o tipo de liberdade pela qual
estamos lutando . Não é mesmo?
— Sim, Lorde Rahl. — disse o General Meiffert, pego de surpresa.
— Estamos aqui por causa de um relatório que você enviou sobre uma
mulher que foi ferida . Ela ainda está viva ?
O jovem General assentiu . — Não chequei na última hora ou algo assim ,
mas ela estava, mais cedo. Meus cirurgiões de campo cuidaram dela , mas há
ferimentos muito além da habilidades deles . Este é um desses casos . Ela foi
perfurada no estômago . É uma forma de morrer lenta e dolorosa . Ela já viveu mais
tempo do que eu esperava .
— Sabe o nome dela ? — perguntou Nicci.
— Ela não falou para nós quando estava bem consciente , mas quando
estava em um estado febril, perguntamos outra vez e ela disse que seu nome era
Tovi.
Richard olhou para Nicci antes de perguntar. — Qual é a aparência dela ?
— Uma mulher idosa bastante séria .
— Parece com ela. — Richard falou quando passava uma das mãos pelo
rosto. — Precisamos vê -la. Imediatamente.
O General assentiu. — Então, sigam-me.
— Espere. — falou Nicci.
Richard virou de volta para ela . — O que foi?
— Se entrar lá para vê -la, ela não falará para você . Tovi não me vê há
bastante tempo. Da última vez , eu ainda era uma escrava de Jagang e ela fugiu.
Posso conseguir conversar com ela de forma a conseguir extrair a verdade dela .
Nicci podia ver o quanto Richard estava impaciente para colocar as mãos
em uma das mulheres que ele acreditava serem responsáveis por leva rem a mulher
que ele amava.
Nicci ainda não sabia em quê ela acreditava . Ela imaginou se ainda
acreditava que ele estava apenas sonhando com essa outra mulher simplesmente
por causa dos próprios sentimentos dela .
— Richard, — disse ela quando chegou mais perto dele para que pudesse
falar de forma reservada. — deixe que eu faça isso . Se você entrar lá isso vai
estragar o que eu posso fazer . Acho que posso conseguir fazer ela falar , mas se
ela enxergar você, o jogo estará acabad o.
— E como você planeja conseguir fazer ela falar ?
— Olhe, você quer saber o que aconteceu a Kahlan, ou quer discutir
sobre como vou obter a informação ?
Ele cerrou os lábios bem forte por um momento . — Não me importo se
você arrancar os intestinos dela um a polegada por vez , só para fazer ela falar .
Nicci colocou uma das mãos no ombro dele brevemente ao passar quando
seguiu atrás do General . Assim que estavam longe , ela acelerou e caminhou ao

475
lado dele enquanto marchavam através do acampamento quase escuro. Ela
conseguiu ver porque Cara considerou o homem atraente . Ele tinha um daqueles
rostos bonitos que simplesmente não pareciam capazes de exibir uma mentira .
— À propósito, — ele falou, olhando para ela. — eu sou o General
Meiffert.
Nicci assentiu. — Benjamin.
Ele parou no caminho escuro através do acampamento . — Como sabe
disso?
Nicci sorriu. — Cara falou sobre você. — ela ainda olhava fixamente
para ela. Ela segurou o braço dele e o fez voltar a andar . — E para uma Mord-
Sith falar tão bem de um homem é bastante incomum .
— Cara fala bem de mim?
— É claro. Ela gosta de você. Mas você sabe disso .
Ele cruzou as mãos atrás das costas enquanto eles caminhavam . —
Então... suponho que você deve saber que eu penso muito nela .
— É claro.
— E quem é você , se é que posso perguntar? Sinto muito, mas Lorde
Rahl não nos apresentou.
Nicci olhou com o canto dos olhos para ele . — Você deve ter ouvido
falar de mim como Senhora da Morte.
O General Meiffert parou bruscamente, engolindo em seco . Ele tossiu
até seu rosto ficar vermelho .
— Senhora da Morte ? — finalmente ele conseguiu falar . — As pessoas
sentem mais medo de você do que do próprio Jagang.
— Por uma boa razão.
— Você é aquela que capturou Lorde Rahl, e levou ele para o Mundo
Antigo.
— Isso mesmo. — ela falou quando começou a outra vez .
Ele caminhou ao lado dela , pensando naquilo . — Bem, acho que você
deve ter mudado seus costumes , ou Lorde Rahl não teria você com ele.
Ela apenas sorriu para ele , um leve sorriso manhoso . Isso o deixou
desconfortável . Ele apontou para a direita.
— Descendo aqui. A tenda onde colocamos ela está bem ali .
Nicci segurou o antebraço dele para mantê -lo no lugar. Ela ainda não
queria que Tovi a escutasse.
— Isso vai levar um bom tempo . Porque não diz a Richard que eu falei
que ele devia descansar um pouco . Acho que Cara também devia descansar .
Porque você não cuida disso também ?
— Ah, acho que poderia fazer isso .
— E General, se a minha amiga Cara não sair daqui de manhã com um
belo sorriso , esfolarei você vivo .
Os olhos dele ficaram arregalados. Nicci não conseguiu evitar um
sorriso.
— Apenas uma maneira de falar , Benjamin. — ela levantou uma
sobrancelha. — Você tem essa noite com ela . Não desperdice.
Ele finalmente sorriu . — Obrigado...
— Nicci.
— Obrigado, Nicci. Penso nela o tempo todo. Não sabe o quanto tenho
sentido saudade dela... o quanto fiquei preocupado com ela.
— Acho que sei. Mas você deveria falar isso para ela , não para mim .
Agora, onde está Tovi?

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Ele ergueu um braço e apontou . — Descendo ali, à direita. A última
tenda na fila.
Nicci assentiu. — Faça-me um favor. Cuide para que ninguém nos
perturbe. Incluindo os cirurgiões . Preciso ficar sozinha com ela .
— Vou providenciar isso . — ele virou de volta e coçou a cabeça . — Ah,
não é da minha conta, mas você... — ele apontou para ela e de volta para o
caminho através do qual eles vieram. — você e Lorde Rahl ... bem... você sabe.
Nicci pareceu não conseguir pensar em uma resposta que gostaria de
falar em voz alta.
— O tempo é curto. Não deixe Cara esperando.
— Sim, entendo o que você quer dizer . Obrigado Nicci. Espero encontrar
com você de manhã.
Ela observou ele desaparecer rapidamente na escuridão , então virou -se
para tratar de sua tarefa . Ela realmente não quis deixar o General nervoso com a
conversa sobre Senhora da Morte, mas precisava reencontrar aquela parte de si
mesma, precisava pensar daquele jeito novamente , precisava encontrar a atitude
fria que era indiferente a tudo .
Ela abriu a coberta da tenda e entrou . Havia uma simples vela acesa em
um suporte feito de ferro tranç ado que estava enterrad o no chão ao lado de um
cercado. A tenda estava abafada e quente . Tinha cheiro de suor e sangue
coagulado.
Tovi estava deitada no cercado , respirando com dificuldade .
Nicci sentou lentamente em um banquinho ao lado da mulher . Tovi
dificilmente notou alguém sentando . Nicci colocou uma das mãos no pulso de
Tovi e começou a lançar um fio de poder para aliviar o sofrimento da mulher .
Tovi reco nheceu essa ajuda dotada e imediatamente abriu os olhos . Seus
olhos ficaram arregalados e sua respiração acelerada. Então ela arfou de dor e
segurou o abdômen. Nicci aumentou o fluxo de poder até que Tovi curvou-se para
trás com um gemido de alívio .
— Nicci, de onde você veio? O que está fazendo aqui ?
— Bem, desde quando você se importa ? Irmã Ulicia e o resto de vocês
me abandonaram nas garras de Jagang, a escrava pessoal dele, me deixaram cativa
daquele porco.
— Mas você escapou .
— Escapei? Irmã Tovi, você está louca? Ninguém escapa do Andarilho
dos Sonhos... a não ser vocês cinco .
— Quatro. Irmã Merissa não está mais viva.
— O que aconteceu?
— Aquela vadia estúpida tentou jogar o seu próprio jogo com Richard
Rahl. Você lembra como ela odiava ele... queria banhar -se no sangue dele.
— Eu lembro.
— Irmã Nicci, o que você está fazendo aqui ?
— O resto de vocês me deixaram para Jagang. — Nicci inclinou para que
Tovi pudesse ver seu olhar furioso . — Vocês não fazem ideia das coisas que tive
de suportar. Desde então, estive em uma longa missão para Sua Excelência . Ele
precisa de informação e sabe q ue eu posso conseguir isso .
Tovi sorriu. — Você virou prostituta dele , para descobrir o que ele
deseja saber?
Nicci não respondeu a pergunta , ao invés disso, deixando a resposta nas
entrelinhas . — Acontece que ouvi falar de uma mulher tola que durante o pr ocesso
de ser roubada ou algo assim também conseguiu ser perfurada. Alguma coisa na

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descrição fez com que eu decidisse checar por mim mesma para ver se poderia ser
você.
Tovi assentiu. — Temo que isso esteja muito ruim .
— Espero que esteja doendo . Eu vim para garantir que você leve um
longo tempo morrendo . Quero que você sofra por aquilo que fez... me deixar nas
garras de Jagang enquanto o resto de vocês escaparam sem importarem -se em ao
menos contar como isso poderia ser feito .
— Não pudemos evitar. Nós tivemos uma chance e tivemos que
aproveitar, só isso. — um sorriso astucioso surgiu no rosto dela . — Mas você
também pode ficar livre de Jagang.
Nicci pressionou. — Como... como posso ficar livre ?
— Me cure e contarei a você .
— Quer dizer, curá-la para que você possa me trair como antes . Nada
feito, Tovi. Você vai contar tudo , ou ficarei sentada aqui e observar você sofrer
em seu caminho para dentro do abraço eterno do Guardião . Posso ajudar apenas o
suficiente para mantê-la viva um pouco mais. — ele curvou-se. — Então você
poderá continuar a sentir a dor rasgando as suas entranhas por mais tempo.
Tovi agarrou o vestido de Nicci. — Por favor, Irmã, ajude-me. Dói tanto.
— Fale, “Irmã”.
Ela soltou o vestido de Nicci e virou o rosto para outro lado . — É a
ligação com Lorde Rahl . Nós fizemos um juramento de ligação .
— Irmã Tovi, se acha que sou estúpida , farei você sofrer apenas para
que arrependa-se desse pensamento até morrer .
Ela virou de volta para olhar Nicci. — Não, é verdade.
— Como você pode fazer um juramento de ligação a alguém que você
deseja eliminar?
Tovi sorriu. — Irmã Ulicia descobriu isso. Nós fizemos um juramento
de ligação para ele, mas fizemos ele nos deixar partir antes que pudesse nos
prender com uma lista de seus comandos .
— Essa história fica mais absurda a cada minuto .
Nicci afastou a mão do braço de Tovi, e assim também o pequeno alívio .
Quando Nicci levantou, Tovi gemeu em agonia.
— Por favor, Irmã Nicci, é verdade. — ela segurou a mão de Nicci. —
Em troca por nos deixar p artir, nós entregamos algo que ele queria .
— O que Lorde Rahl poderia querer que o convenceria a deixar um bando
de Irmãs do Escuro à solta ? Essa é a coisa mais louca que eu já ouvi .
— Uma mulher.
— O quê?
— Ele queria uma mulher.
— Como o Lorde Rahl, ele pode ter qualquer mulher que quiser . Basta
que ele a escolha e ordene que ela seja enviada para a cama dele , a não ser que ao
invés disso ela escolhesse o bloco do carrasco, e nenhuma faz isso. Dificilment e
ele precisa das Irmãs do Escuro para levar uma mu lher para a cama .
— Não, não, não esse tipo de mulher. Uma mulher que ele amava .
— Certo. — Nicci bufou. — Adeus, Irmã Tovi. Certifique-se de
transmitir ao Guardião dos mortos minhas lembranças quando você chegar lá .
Sinto muito, mas temo que esse encontro demore algum tempo para acontecer .
Parece que você ainda vai aguentar alguns dias . Que pena.
— Por favor! — o braço dela balançou , procurando o contato com a
pessoa que poderia salvá -la.
— Irmã Nicci, por favor. Por favor escute , e contarei tudo a você .

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Nicci sentou e segurou o braço de Tovi novamente. — Muito bem, Irmã,
mas apenas lembre, o poder pode fluir nas duas direções .
A costa de Tovi arqueou quando ela gritou em agonia . — Não! Por favor!
Nicci não tinha qualquer pudor a respeito do que estava fazendo . Ela
sabia que não havia equivalência moral entre ela infligindo tortura e a Ordem
Imperial fazendo o que na superfície pode ria parecer a mesma coisa . Mas o
objetivo dela ao usar isso era apenas para salvar vidas inocentes . A Ordem
Imperial usava a tortura como um meio de subjugação e conquista , como um a
ferramenta para incutir medo em seus inimigos . E, às vezes, como algo que
saboreavam porque isso fazia eles sentirem -se poderosos em controlar não apenas
a agonia mas a vida em si.
A Ordem Imperial usava tortura porque não tinham consideração pela
vida humana. Nicci estava usando isso porque tinha . Ainda que um dia ela não
tivesse enxergado diferença , desde que passara a abraçar a vida ela enxergava
toda a diferença do mundo .
Nicci reverteu o sofrimento que estava aplicando na mulher idosa e Tovi
baixou o corpo com grande e agradecido alívio .
Tovi estava coberta de suor . — Por favor, Irmã, me dê algum conforto
ao invés disso e contarei tudo a você .
— Comece com quem feriu você .
— O Seeker.
— Richard Rahl é o Seeker. Você realmente acha que eu acreditarei em
uma história como essa? Richard Rahl teria cortado fora sua cabeça com um só
golpe.
A cabeça de Tovi virou de um lado para outro . — Não, não, você não
entende. Esse homem tinha a Espada da Verdade . — ela apontou para a barriga .
— Eu conheci a Espada da Verdade quando ela me perfurou . Ele me pegou de
surpresa e antes que eu soubesse qual era ele ou o que ele queria , o bastardo me
acertou.
Nicci pressionou os dedos na testa, confusa. — Acho que é melhor você
retornar ao começo.
Tovi já estava mergulhando em um estupor . Nicci aumentou o fluxo da
magia dentro dela, dando a ela um pouco do alívio de cura sem curá -la ou curar o
ferimento dela. Nicci não queria curá-la, ela precisava da mulher incapaz de
ajudar a si mesma. Tovi parecia uma avó gentil , mas era uma víbora .
Nicci cruzou uma perna sobre a outra . Seria uma longa noite.
Na vez seguinte em que Tovi virou, Nicci sentou mais ereta. — Então
vocês fizeram um juramento de ligação para Richard, como o Lorde Rahl , — Nicci
disse como se não houvesse acontecido intervalo na conversa. — e isso protegeu
todas vocês do Andarilho dos Sonhos .
— Isso mesmo.
— E então?
— Nós conseguimos fugir . Ficamos no rastro de Richard enquanto
cuidávamos de nosso trabalho para nosso mestre . Nós precisávamos encontrar um
gancho.
Nicci sabia muito bem quem era o mestre delas .
— O que você quer dizer com , “um gancho”?
— Para fazermos o que precisávamos fazer para satisfazer o Guardião ,
precisávamos de uma maneira para garantirmos que Richard Rahl não pudesse
interferir. Nós encontramos isso.
— Encontraram o quê?

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— Algo que nos mantém ligadas a ele não importa o que fizermos . Foi
brilhante.
— Então o que é?
— Vida.
Nicci franziu a testa , sem saber se escutara corretamente. Ela colocou a
mão sobre o ferimento de Tovi e transmitiu algum conforto concentrado .
Após Tovi acalmar-se da onda de dor, Nicci perguntou com uma voz
suave. — O que você quer dizer?
— Vida. — finalmente Tovi falou. — É o mais alto v alor para ele.
— Então?
— Irmã, pense. Para ficar fora das garras do Andarilho dos Sonhos , nós
devemos estar ligadas a Richard Rahl o tempo todo. Não ousamos vacilar um
momento. E ainda assim, quem é o nosso maior mestre ?
— O Guardião dos Mortos . Nós fizemos juramentos.
— Isso mesmo. E se nós fizéssemos alguma coisa que colocasse em risco
a vida de Richard, como soltar o Guardião no mundo dos vivos , então estaríamos
agindo contra nossa ligação a Richard. Isso significaria que antes que pudéssemos
libertar o Guardião das amarras dele no mundo dos mortos , Jagang, nesse mundo,
seria capaz de nos atacar .
— Irmã Tovi, é melhor você começar a falar coisas que façam sentido ,
ou perderei minha paciência , e eu garanto , você não gostaria disso . Não gostaria
mesmo. Quero saber o que está acontecendo para que eu possa participar . Quero
meu lugar de volta.
— É claro. É claro. Veja bem, o valor mais alto para Richard é a vida.
De fato, ele criou uma estátua representando isso . Nós estivemos no Mundo
Antigo. Vimos a estátua dele dedicada à vida .
— Essa parte do que você falou eu entendi .
A cabeça dela inclinou para trás para que ela pudesse olhar para Nicci.
— Bem, minha querida, o que nós prometemos fazer no juramento que fizemos ?
— Libertar o Guardião .
— E qual é a nossa recompensa por realizarmos nossa tarefa ?
Nicci ficou olhando para os olhos frios da mulher. — Imortalidade.
Tovi sorriu. — Exatamente.
— O valor mais alto para Richard é a vida. Está dizendo que vocês
planejam fornecer a ele imortalidade ?
— Nós planejamos. Estamos trabalhando em direção ao mais nobre ideal
dele: vida.
— Mas ele pode não querer a imortalidade .
Tovi conseguiu balançar o ombro . — Talvez. Mas não pretendemos
perguntar a ele . Não vê o brilhantismo do plano de Irmã Ulicia? Sabemos que o
valor mais alto para ele é a vida . Não importa o que mais possamos fazer contra
os desejos dele, essas coisas não chegam ao nível do valor mais importante para
ele. Assim, estamos honrando nossa ligação com o Lorde Rahl na forma mais
grandiosa possível , enquanto mantemos a ligação... mantendo o Andarilho dos
Sonhos fora de nossas mentes... e ao mesmo tempo trabalhamos para trazer o
Guardião ao mundo . Perceba como isso forma um ciclo constante . Cada elemento
conecta-se firmemente aos outros .
— Mas é o Guardi ão quem promete a vocês imortalidade. Vocês não
podem fornecê-la.
— Não, não se buscarmos isso através do Guardião .
— Então como vocês podem fornecer a imortalidade ? Vocês não

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possuem esse poder .
— Oh, mas possuiremos, nós possuiremos.
— Como?
Tovi começou a tossir e Nicci teve que fazer um trabalho rápido no
ferimento apenas para manter a mulher viva . Levou quase duas horas para que ela
tivesse a sua consciência e calma outra vez .
— Irmã Tovi, — ela disse assim que a mulher abriu os olhos e pareceu
estar enxergando novamente. — tive que reparar uma parte do seu ferimento .
Agora, antes que eu possa reparar o resto do seu ferimento e curá -la totalmente...
para que você possa ter a sua recompensa da vida... preciso saber o restante . Como
vocês acreditam que p odem fornecer a imortalidade ? Vocês não possuem esse
poder.
— Nós roubamos as Caixas de Orden. Pretendemos usá-las para destruir
toda a vida... a não ser aquelas que desejarmos manter , é claro. Com o poder de
Orden, teremos poder sobre a vida e a morte . Teremos o poder para fornecer a
Richard Rahl a imortalidade. Está vendo? Ligação satisfeita.
A cabeça de Nicci estava girando. — Tovi, a sua história é algo
impossível. Isso é mais complicado do que você diz .
— Bem, tem outras partes no plano . Encontramos catacumbas sob o
Palácio dos Profetas .
Nicci não tinha ideia de que essas catacumbas existiam , mas queria que
a mulher seguisse em frente com a história dela , então simplesmente deixou ela
falar.
— Foi quando tudo isso começou . Quando tivemos a ideia. Veja bem,
nós estivemos perambulando pelas terras , procurando formas de satisfazer o
Guardião... — ela segurou o braço de Nicci com tanta força que doeu . — Ele
aparece em nossos sonhos . Você sabe disso. Ele aparece para você também . Ele
vem e nos atormenta, nos forçando a fazermos a vontade dele , a trabalharmos para
libertá-lo.
Nicci retirou a mão em forma de garra do braço dela . — Catacumbas?
— Sim. As catacumbas. Descobrimos antigas catacumbas e dentro delas
livros. Encontramos um livro chamado Cadeia de Fogo.
Calafrios percorreram os braços de Nicci. — Cadeia de Fogo, o que isso
significa? É um feitiço?
— Oh, é muito mais do que qualquer coisa tão simples como um feitiço .
Era de tempos antigos . Os magos daquela época apresentaram uma nova teoria
sobre como alterar a memória... em outras palavras , eventos reais alterados com
poder Subtrativo, com todas as partes desconectadas reconstruídas
espontaneamente de forma independente umas das outras . Ou seja, como fazer um
indivíduo desaparecer para todas as outras pe ssoas fazendo com que as pessoas
esqueçam dele, assim que elas acabam de vê -lo.
— Mas os magos que apareceram com essa teoria eram homens tímidos ,
temerosos de libertarem coisas assim não apenas porque perceberam que um
evento conectado como esse causaria danos irreparáveis ao indivíduo , mas porque
não havia jeito para que eles controlassem isso pois assim que era iniciado , isso
atuaria de forma automática e autossustentável .
— O que você quer dizer? O que isso faz ?
— Elimina da memória das pessoas a lembrança do indivíduo , mas isso
inicia um evento em cadeia que não pode ser previsto ou controlado . Então isso
queima através de ligações que as pessoas possuem com outras , e então outras que
aquelas pessoas conhecem , e assim por diante. Eventualmente isso desfaz

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conexões de forma que corrompe tudo . Entretanto, para nossos propósitos isso
realmente não importa , uma vez que de qualquer maneira o nosso objetivo é
desfazer a vida . Temendo que aquilo que estávamos fazendo fosse descoberto , nós
destruímos o livro, e as catacumbas .
— Mas porque vocês precisariam destruir a lembrança de alguém ?
— Não apenas de alguém , mas a lembrança da mulher que nos garantiu
a ligação , Kahlan Amnell, o amor de Richard Rahl. Criando um evento Cadeia de
Fogo, nós acabamos com uma mulher da qual ninguém lembra .
— Mas que ganho isso pode trazer a vocês ?
— As Caixas de Orden. Usamos ela para pegar as Caixas , para que
possamos libertar o Guardião . Com as Caixas, podemos dar a Richard uma vida
imortal ao mesmo tempo em que também libertamos o Guardião .
— O Guardião sussurrou para nós em nossos sonhos que Richard tem o
segredo para abrir as Caixas , ele tem um conhecimento necessário memorizado .
Isso não existe em outro lugar . Darken Rahl revelou isso ao Guardião . Richard
conhece o j eito para destravar os segredos de Orden, só que dessa vez , nós
conhecemos o truque que derrotou Darken Rahl.
— O livro que ele conhece diz que precisamos de uma Confessora para
abrir as Caixas . E como temos uma Confessora da qual ninguém lembra... então
ninguém pode nos incomodar a respeito dela .
— E quanto ao desaparecimento da profecia ? Isso foi causado por Cadeia
de Fogo?
— É parte da Cadeia de Fogo. Chamam isso de Corolário da Cadeia de
Fogo. Parte da fase inicial da Cadeia de Fogo requer que a profecia também seja
tocada por um evento Cadeia de Fogo, de forma muito parecida como as memórias
das pessoas são mergulhadas na conflagração . O evento Cadeia de Fogo alimenta-
se dessas memórias para sustentar o evento , portanto a profecia também deve ser
envolvida. Um espaço em branco é encontrado na ramificação apropriada... um
lugar onde um profeta deixa um espaço , caso futuros profetas queiram completar
o trabalho . Então nós preenchemos esse vazio na profecia com uma profecia
complementadora q ue possui a fórmula Cadeia de Fogo. Assim um evento Cadeia
de Fogo infecta e consome todas as profecias associadas na ramificação , iniciando
com profecias relacionadas , quer seja em assunto ou em cronologia... nesse caso,
Kahlan, a mulher que nós varremos da existência, também é varrida da profecia
pelo Corolário da Cadeia de Fogo.
— Parece que vocês pensaram em tudo. — disse Nicci.
Tovi sorriu em meio à dor . — Ainda fica melhor .
— Melhor? Como essa coisa poderia ficar ainda mais deliciosa ?
— Existe uma contramedida para Cadeia de Fogo . — Tovi riu com o
júbilo que sentiu nisso .
— Uma contramedida? Quer dizer que vocês correm o risco de que
Richard encontre uma contramedida para aquilo que fizeram , uma contramedida
que poderia derrubar o plano todo ?
Tovi tentou conter a risada, mas ela irrompeu outra vez . A despeito da
óbvia dor, ela estava feliz demais para parar . — Isso é o melhor de tudo . Os
antigos magos que apareceram com a teoria Cadeia de Fogo perceberam o
potencial para a total destruição da vida . Então eles criaram uma contramedida ,
caso de alguma forma ocorresse um evento Cadeia de Fogo.
Nicci cerrou os dentes. — Qual contramedida?
— As Caixas de Orden.
Os olhos de Nicci ficaram arregalados . — As Caixas de Orden foram

482
criadas para serem a contramedida para o evento Cadeia de Fogo que vocês
iniciaram?
— Isso mesmo. Não é delicioso? Tem mais, nós colocamos as Caixas em
atividade.
Nicci soltou um profundo suspiro . — Bem, como eu disse, parece que
vocês pensaram em tudo .
Tovi fez uma careta . — Bem... quase. Existe apenas um pequeno detalhe .
— Como o quê?
— Bom, veja bem, a vadia estúpida só trouxe uma das Caixas na primeira
vez em que mandamos ela entrar lá . Não poderíamos permitir que as Caixas
fossem vistas, porque, diferente do amor de Richard, as pessoas lembrariam de
terem visto as Caixas de Orden.
— Kahlan disse que não havia espaço suficiente na mochila dela . Irmã
Ulicia ficou furiosa . Bateu na moça até ela sangrar... você teria adorado isso , Irmã
Nicci... e falou a ela para deixar p ara trás algo que tivesse ali dentro , abrindo
espaço, e então mandou ela de volta para pegar as outras duas Caixas .
Tovi encolheu-se com uma onda de dor. — Porém, nós tivemos medo de
esperar. Irmã Ulicia me enviou com a primeira Caixa e disse que encontraria
comigo mais tarde. — Tovi grunhiu com a agonia de outra pontada de dor . — Eu
tinha a primeira Caixa comigo . O Seeker, pelo menos aquele que estava com a
Espada da Verdade , me pegou de surpresa e me feriu . Ele pegou a Caixa. Assim
que Kahlan finalmente as pegou, então Irmã Ulicia estava com aquelas duas e
pensou que eu tinha a terceira, assim, antes de deixar o Palácio , ela colocou a
magia de Orden em ação.
Nicci levantou rapidamente. Ela sentiu-se tonta. Mal podia acreditar
nisso. Mas agora ela sabia qu e tudo era verdade . Richard estivera certo o tempo
todo. Com quase nada para seguir em frente , ele havia basicamente descoberto
tudo. E o tempo todo ninguém no mundo o escutava ... ninguém em um mundo que
estava desmantelando em um evento Cadeia de Fogo sem controle.

483
C A P Í T U L O 6 5

Um grito que fez os cabelos da nuca de Richard ficarem eriçados rompeu


a tranquilidade da noite . Richard, sobre um colchonete em uma tenda simples ,
ficou de pé rapidamente quando o grito espalhou -se com o seu terror. O som
interminável gerou calafrios nos ombros dele e instantaneamente fez brotar suor
em sua testa.
Como coração acelerado , Richard saiu apressadamente de sua tenda
mesmo enquanto o grito ecoava através do acampamento como se tentasse
alcançar cada canto da escuridão para expressar o seu horror .
Do lado de fora da tenda , que estava separada das outras porque era uma
tenda extra, Richard viu homens levantando na escuridão , os olhos arregalados .
Subindo um pouco na fileira , o General Meiffert observava na noite com o restante
deles.
Richard viu que era uma falsa madrugada , como na manhã quando
Kahlan desapareceu. A mulher que ele amava , a mulher que todos os outros
esqueceram e de quem não preocupavam -se em lembrar. Se ela tivesse gritado ,
ninguém tinha escut ado.
E então, quando o grito morreu , o mundo ficou mais escuro do que
escuro. Foi como ser lançado dentro do nada do mundo dos mortos , abandonado e
perdido para sempre . Richard estremeceu quando sua carne pareceu sentir como
se algo alienígena tocasse o mu ndo dos vivos com uma promessa íntima .
Tão rapidamente quanto a escuridão veio , ela se foi. Homens olharam ao
redor uns para os outros , nenhum deles falava.
Ocorreu a Richard o pensamento de que agora a víbora tinha apenas três
cabeças.
— O Guardião levou um dos seus. — ele explicou para os rostos
questionadores que tinham virado em sua direção . Ele viu o General observando ,
escutando. — Fiquem felizes que alguém tão maligno não esteja mais entre os
vivos. Que todas as pessoas como essa encontrem a morte que tanto adoram.
Homens sorriram e sussurraram que concordavam com a maldição
quando começaram a voltar para dentro de suas tendas para tentarem retomar o
que restou do sono.
O General Meiffert encontrou o olhar de Richard quando bateu com um
punho sobre o coração antes de desaparecer de volta para dentro de sua própria
tenda.
Na luz fraca do acampamento que de repente pareceu estar po voado
apenas por tendas e carroças , Richard avistou Nicci seguindo diretamente até ele .
Havia algo profundamente preocupante com relação ao modo como ela estava
parecendo. Talvez fosse porque ela acabara de liberar uma fúria que ele duvidava
que alguém além dele conseguiria verdadeiramente compreender ou valorizar .
Com mechas de cabelo louro esvoaçando, ela o fez lembrar de um
predador avançando em direção a ele saindo do meio da noite , com músculos e
garras preparados. Quando ele viu as lágrimas no rosto dela , os dentes cerrados ,
a raiva e a dor dela, sua poderosa ameaça e frágil desamparo , seus olhos cheios
com mais do que aquilo ele conseguia perceber , ele recuou entrando na tenda ,
puxando-a do campo de visão do acampamento .
Ela entrou na tenda , logo atrás dele , como uma tempestade caindo sobre

484
um promontório. Ele recuou o máximo que podia , sem ter ideia do que estava
errado ou o que ela pretendia .
Com um soluço de tamanha desolação que quase o desarmou, ela caiu no
chão aos pés dele, lançando os braços em volta das pernas dele . Ela estava
segurando alguma coisa em uma das mãos . Richard percebeu que era o vestido
branco de Madre Confessora de Kahlan.
— Oh, Richard, eu sinto muito, — ela gemeu entre soluços . — eu sinto
tanto por aquilo que fiz a você . Sinto muito. Sinto muito. — ela ficou repetindo .
Ele esticou o braço e tocou o ombro dela . — Nicci, o que foi?
— Eu sinto muito. — ela chorou enquanto segurava as pernas dele como
se fosse uma condenada implorando por sua vida para um Rei . — Oh, queridos
espíritos, eu sinto muito pelo que fiz a você .
Ele curvou -se, retirando os braços dela de suas pernas. — Nicci, o que
foi?
Os ombros dela balançavam com os soluços . Ela olhou para ele quando
ele ergueu-a pelos braços. Ela estava mole.
— Oh, Richard, eu sinto muito. Jamais acreditei em você . Sinto muito
por não ter acreditado em você . Devia ter ajudado você e ao invés disso lutei
contra você a cada passo . Eu sinto muito.
Raramente ele tinha visto alguém em tão profundo sofrimento . —
Nicci...
— Por favor, — ela gemeu. — Por favor, Richard, acabe com isso agora.
— O quê?
— Eu não quero mais viver . Isso dói demais. Por favor, use a sua faca e
acabe com isso . Por favor. Eu sinto muito. Tenho feito pior do que simplesmente
não acreditar em você. Tenho sido aquela que esteve contra você em cada passo.
Ela pendia como uma boneca de pano nas mãos dele . Ela chorava com
grande dor e frustração .
— Sinto muito por não ter acreditado em você . Você estava certo sobre
tudo e tantas coisas mais . Eu sinto muito . Agora está tudo acabado e a culpa é
minha. Eu sinto muito. Devia ter acreditado em você .
Ela quase começou a derreter nas mãos dele. Sentando no chão na frente
dela, ele segurou -a em seus braços , de forma parecida como fez com Jillian.
— Nicci, você foi a única que fez com que eu seguisse adiante quando
eu estava pronto para desistir . Você foi a única que me fez lutar.
Os braços de Nicci subiram em volta do pescoço dele quando ele puxou -
a para mais perto. Ela estava quente com a febre causada por sua angústia .
Ela soluçou e continuou resmungando o quanto estava arrependida , como
devia ter acreditado nele sobre o resto disso, como agora era tarde demais , como
ela queria acabar com a dor e morrer .
Richard segurou a cabeça dela contra o ombro enquanto sussurrava para
ela que tudo ficaria bem , sussurrava seu conforto , balançando-a gentilmente e
acalmando-a sem falar qualquer coisa a não ser mostrando empatia .
Então ele lembrou, quando encontrou Kahlan e eles passaram aquela
primeira noite em um Pinheiro Amigo. Ela quase havia sido puxada de volta para
dentro do Submundo e ele a trouxe de volta no último momento . Kahlan tinha
chorado desse jeito , com grande terror e tristeza , porém mais do que isso , com o
alívio de ter alguém para abraçá -la.
Kahlan nunca teve qualquer pessoa de quem ela gostasse tanto para
abraçá-la quando ela chorava.
Agora ele sabia que Nicci também nunca tivera.

485
Enquanto ele a segurava em seus braços , dando a ela o conforto de que
ela tanto precisava , ela chegou à exaustão até que , sentindo-se segura talvez como
jamais sentira, ela mergulhou no sono . Foi um prazer tão profundo ser capaz de
fornecer a ela esse raro refúgio , que ele chorou silenciosamente enquanto a
segurava e ela dormia, segura, em seus braços.
Ele deve ter caído no sono durante um breve período porque quando
abriu os olhos havia uma pálida luz atravessando as paredes da tenda . Ele ergueu
a cabeça, Nicci moveu-se em seus braços , como uma criança aconchegando -se e
jamais querendo acordar .
Mas ela acordou, de forma bastante repentina quando percebeu onde
estava.
Ela olhou nos olhos dele , seus olhos azuis cansados . — Richard. — ela
sussurrou naquilo em que , ele sabia, seria o início da mesma coisa .
Ele pressionou as pontas dos dedos nos lábios dela , contendo suas
palavras.
— Temos muitas coisas para resolver . Diga-me o que você descobriu
para que possamos seguir em frente.
Ela colocou o vestido branco nas mãos dele . — Você estava certo a
respeito de quase tudo , mesmo que não conhecesse o mecanismo . Irmã Ulicia e o
pequeno grupo dela queriam permanecer livres do Andarilho dos Sonhos ,
exatamente como você falou . Elas decidiram , uma vez que você valoriza a vida ,
dar a você a imortalidade . Qualquer outra coisa que elas fizeram , não importa o
quanto fosse destrutivo , elas enxergavam como algo de importância secundária .
Isso fornece a elas a liberdade para buscarem a libertação do Guard ião.
Os olhos de Richard ficaram arregalados enquanto ele escutava .
— Elas encontraram Cadeia de Fogo e usaram isso para fazerem todos
esquecerem Kahlan para que pudessem roubar as Caixas de Orden. O seu pai, no
Submundo, contou ao Guardião que você memori zou o livro do qual elas
precisavam. Elas sabem que precisam de uma Confessora para obter a verdade .
Kahlan realiza duas tarefas , roubar as Caixas, e ajudar a obter a verdade do livro
que você conhece.
— Cadeia de Fogo, não o Verme Profético , também é responsável por
aquilo que está acontecendo com a profecia .
— As Irmãs estão com duas das Caixas de Orden e colocaram elas em
ação. Elas deram início a essa fase do plano delas por duas razões : porque elas
querem usar Orden para invocar o Guardião no mundo dos vivos, e porque as
Caixas de Orden foram criadas como uma contramedida ao poder que pode ser
deflagrado com Cadeia de Fogo.
Richard piscou. — O que você quer dizer com , elas estão com duas
Caixas? Pensei que elas tivessem usado Kahlan para roubar as três. Todas as três
estavam dentro do Jardim da Vida .
— Kahlan trouxe uma Caixa. Elas entregaram para Tovi e mandaram ela
partir enquanto enviavam Kahlan de volta para buscar as outras duas...
— Enviaram ela de volta? — Richard fez uma careta. — O que você está
deixando de fora?
Nicci lambeu os lábios, mas não quebrou o contato visual . — A razão
para os gritos de Tovi.
Richard sentiu os olhos molhados . Um nó subiu em sua garganta .
Nicci colocou uma das mãos sobre o coração dele . — Vamos trazer ela
de volta, Richard.
Ele cerrou os dentes e assentiu . — Então o que aconteceu ?

486
— O novo Seeker surpreendeu Tovi, feriu-a, e roubou a Caixa de Orden
com a qual ela estava fugindo do Palácio do Povo .
— Temos que começar uma busca . Elas não podem ter ido longe .
— Elas foram embora faz muito tempo , Richard. Exatamente como elas
cobriram os rastros quando levaram Kahlan, elas terão feito o mesmo dessa vez .
Esse não é o jeito para encontrá -las.
Richard levantou os olhos . — Samuel. A Espada da Verdade era uma
contramedida. Quando entreguei a ele a espada , ele deve ter reconhecido a verdade
sobre Kahlan. — o olhar dele pairou dentro da tenda enquanto ele tentava pensar .
— Temos que pensar bem nisso. Reunir toda informação que pudermos e dar um
passo na frente delas , ao invés de sempre ficar um passo atrás .
— Ajudarei você, Richard. Qualquer coisa que você quiser , eu farei.
Ajudarei você a trazê-la de volta. O lugar dela é com você. Sei disso agora.
Ele assentiu, agradecido que a determinação dela estivesse de volta . —
Acho que seria melhor definirmos bem algumas coisas e então buscar ajuda
experiente.
Ela exibiu um sorriso torto . — Esse é o Seeker que eu conheço.
Do lado de fora da tenda , homens haviam começado a reunirem -se, todos
querendo ver o Lorde Rahl .
Do meio da multidão s urgiu Verna. — Richard! Graças ao Criador...
nossas preces foram respondidas ! — ela lançou os braços em volta dele . —
Richard, como você está?
— Onde você esteve ?
— Estava cuidando de alguns homens feridos . Batedores, que
encontraram com alguns dos inimigos. O General Meiffert enviou recado para que
eu retornasse imediatamente .
— E os homens?
— Estão bem, — ela falou com um sorriso . — agora que você finalmente
está conosco para a batalha final .
Ele segurou as mãos dela . — Verna, você sabe que teve momentos
difíceis comigo no passado .
Ela sorriu enquanto assentia dizendo que isso era verdade . Quando viu
que ele não estava sorrindo , o sorriso dela desapareceu . — Esse vai ser um desses
momentos, — ele falou para ela . — Você terá que acreditar em mim e naquilo que
eu digo, ou podemos muito bem nos render para a Ordem agora mesmo .
Richard soltou as mãos dela e subiu em um caixote para ser melhor
ouvido. Ele percebeu que um mar de homens o cercava .
Cara e o General Meiffert estavam logo na frente . — Lorde Rahl , você
poderá nos liderar? — ele perguntou.
— Não. — ele gritou no ar parado do amanhecer .
Sussurros preocupados espalharam -se entre os homens . Richard levantou
os braços.
— Escutem! — eles ficaram quietos . — Eu não tenho muito tempo. Não
tenho tempo para explicar coisas que eu gostaria que pudesse explicar . A situação
é essa. Falarei para vocês os fatos , e deixarei que vocês decidam .
— O exército da Ordem Imperial foi atrasado um pouco ao sul . —
Richard ergueu as mãos para silenciar os gritos de comemoração . — Eu não tenho
muito tempo. Agora escutem .
— Vocês, homens, são o aço contra o aço . Eu sou a magia contra a magia .
Agora eu devo escolher uma dessas duas coisas para a batalha que está por vir .
— Se eu ficar aqui e liderá-los, lutar junto com vocês , então não teremos

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muita chance. As forças do inimigo são enormes . Não preciso dizer isso a qualquer
um de vocês. Se eu ficar e ajudar vocês a lutar contra eles , a maioria de nós
morrerá.
— Posso dizer imediatamente a você , — falou o General Meiffert. —
que não gosto dessa opção .
A maioria dos homens concordaram que o quadro sombrio que ele
acabara de pintar não era algo que eles gostassem .
— Qual é a alternativa? — um homem nas proximidades gritou .
— A alternativ a é que eu deixe vocês fazerem o seu trabalho e
apresentarem o aço para impedir que a Ordem escolha correr livre através de
nossas terras.
— Enquanto isso, eu juro fazer o meu trabalho de ser a magia contra a
magia. Farei aquilo que somente eu posso e trabalharei para encontrar um meio
para derrotar o inimigo sem que qualquer um de vocês tenha que perder a sua vida
em batalha contra eles . Quero encontrar um jeito , com o meu poder, para banir ou
destruí-los antes que tenhamos de lutar contra eles .
— Não posso garantir que terei sucesso . Se eu falhar, morrerei na
tentativa e vocês terão que encarar o inimigo .
— Acha que consegue detê -los com algum tipo de magia ? — perguntou
outro homem.
Nicci saltou para o lado dele . — Lorde Rahl já colocou pessoas no
Mundo Antigo contra as forças de Jagang. Nós lutamos batalhas na própria terra
natal deles na esperança de eliminar o suporte deles .
— Se vocês insistirem em manter Lorde Rahl aqui, com vocês, então
estarão desperdiçando o talento singular dele , e vocês poderão morrer com o
resultado disso. Eu peço, como um daqueles que lutam ao lado dele , que vocês
deixem ele ser o Lorde Rahl , deixem ele fazer o que deve , enquanto vocês fazem
o que devem fazer .
— Eu não poderia colocar de forma melhor , — Richard disse a eles . —
Então aí está. Essa é a escolha que dou a vocês .
Inesperadamente , homens começara a cair de joelhos . A poeira ergueu -
se longe e amplamente quando homens moveram -se para abrirem espaço e
ajoelharem-se.
Em uma só voz, o canto iniciou .
— Mestre Rahl seja nos so guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl
nos proteja. Em sua luz prosperamos. Na sua misericórdia nos abrigamos. Em
sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas .
Richard observou o mar de homens enquanto o sol surgia no horizonte.
A Devoção foi repetida uma segunda vez , e então uma terceira, como era de
costume em campo. Assim que estava terminada , os homens começaram a
levantar.
— Acho que essa é a sua resposta , Lorde Rahl. — falou o General
Meiffert. — Vá pegar aqueles bastardos .
Os homens gritaram concordando .
Richard saltou do caixote e segurou a mão de Nicci para ajudá-la a
descer. Ela ignorou a mão e saltou por sua própria conta . Richard virou para Cara.
— Bem, eu tenho que ir. Estamos com pressa. Olhe, Cara, quero que
você saiba que estará tudo bem se você quiser ficar com ... o exército.
Uma expressão sombria tomou conta de Cara quando ela cruzou os
braços. — Você está maluco? — ela olhou por cima do ombro para o G eneral. —
Eu falei para você, o homem é louco . Está vendo com o que eu tenho que lidar ?

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O General Meiffert assentiu com seriedade. — Não sei como você
consegue fazer isso , Cara.
— Treinamento. — ela confidenciou. Ela deslizou as pontas dos dedos
pela bochecha dele, sorrindo para ele de um a forma que Richard nunca tinha visto
ela fazer. — Tome cuidado , General.
— Sim, Senhora. — ele sorriu para Nicci antes de fazer reverência com
a cabeça. — Conforme as suas ordens , Senhora Nicci.
A mente de Richard já estava em outro lugar . — Vamos lá. Vamos partir.

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C A P Í T U L O 6 6

Marchando pelo corredor com painéis , Rikka liderando o caminho , Cara


e Nicci a reboque, Richard alcançou o cruzamento e virou em uma passagem de
pedra com um enorme teto em abóbada que elevava-se por quase duzento s pés.
Colunas aos lados erguiam -se em intervalos espaçados igualmente . Através de
largas janelas no topo os massivos suportes exteriores que apoiavam as elevadas
paredes podiam ser vistos .
Feixes de luz entravam bem alto acima e desciam por pequenas janelas
arredondadas. As botas deles ecoavam como martelos pelo frio corredor .
A capa de Richard que parecia como se fosse feita com fios de ouro
ondulava atrás dele como se estivesse em uma tempestade que aproximava -se. Os
símbolos dourados em volta do ma nto negro brilhava na luz fraca . Ao passar por
cada feixe de luz do sol , as insígnias prateadas em suas botas, em seu largo cinto
de couro com várias camadas , e em suas faixas de couro nos pulsos , lançavam
reflexos de luz ao redor deles , anunciando a chegada de um Mago Guerreiro .
A raiva de qualquer Mord-Sith era o suficiente para fazer congelar o
sangue nas veias da maioria das pessoas , mas a fúria gélida nas feições atraentes
de Cara parecia capaz de transformar aquele sangue em gelo . Do outro lado dele
a antiga Senhora da Morte, vestida de preto , não parecia menos formidável . Na
primeira vez em que ele encontrou com ela , Richard quase conseguiu ouvir o ar
em volta de Nicci estalar com o poder dela e isso estava acontecendo agora.
Richard passou por cadeiras estofadas e mesas instaladas em nichos .
Tapetes em ângulos estavam parcialmente dentro do corredor em alguns locais ,
convidando as pessoas para dentro de cantos tranquilos, aconchegantes . Richard
desviou dos tapetes porque o som de suas botas sobr e o granito polido era
adequado para ele . Nenhum daqueles que estavam com ele caminhavam sobre os
tapetes também . Com a reverberação retornando a eles do longo corredor , o som
crescia até quase parecer com um exército invasor espalhando -se através da
Fortaleza.
Rikka virou em direção a ele sem reduzir o passo . Ela apontou para a
direita. — Eles estão aqui dentro , Lorde Rahl .
Richard cortou a esquina sem diminuir a velocidade , direcionando sua
marcha através do centro das enormes portas duplas que permaneciam abertas para
dentro da primorosa biblioteca . Pesados mainéis de carvalho cruzavam -se nas
portas dividindo -as com uma dúzia de painéis de vidro em cada uma . Havia
prateleiras até o teto na parede com trinta pés no fundo da biblioteca, com escadas
que deslizavam em trilhos de bronze para fornecer acesso . Pilares massivos de
mogno cintilavam nos feixes de luz do sol que vinham de altas janelas . Mas na
área baixa, a luz era mais fraca e precisava ser cortada por la mparinas.
Uma enorme mesa de mogno com pernas viradas que eram mais grossas
do que o corpo de Richard estava do lado oposto às portas . Para cada lado pilares
erguiam -se para suportar abóbadas acima . Os extremos da sala à esquerda e à
direita estavam mergulhados nas sombras.
Ann pareceu surpresa. — Richard! O que você está fazendo aqui ? Você
devia estar com as nossas tropas .
Richard ignorou-a enquanto pegava o livro com capa vermelha de couro
que tinha enfiado sob um braço . Ele usou o livro como uma vassoura para afastar

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os livros que estavam diant e deles, criando um amplo espaço vazio polido na
frente das três pessoas dotadas .
Richard jogou o livro com capa vermelha de couro sobre a mesa . Ele
emitiu um som que ecoou quase como o estalo de um trovão .
A escrita dourada, Cadeia de Fogo, brilhou na pouca luz.
— O que é isso? — Zedd perguntou, alarmado.
— Prova. — disse Richard. — Pelo menos, uma parte dela . Prometi
trazer comigo uma prova .
— Esse é um livro antigo. — Nicci falou para eles . — Uma fórmula para
criar o que é chamado de um evento Cadeia de Fogo.
Os olhos castanhos de Zedd levantaram. — O que é um evento Cadeia
de Fogo?
— O fim do mundo como nós o conhecemos . — Richard disse com
sombria finalidade. — O que eles estavam fazendo acabou inadvertidamente
envolvendo uma tentativa de criar uma c ontradição, violando a Nona Regra . Eles
finalmente perceberam que se alguém realmente iniciasse um evento Cadeia de
Fogo, isso teria consequências cataclísmicas .
Nathan fez uma careta para Nicci, aparentemente esperando por um
pouco mais de sabedoria e exp eriência de uma antiga Irmã . — Do que ele está
falando?
— Magos de tempos antigos surgiram com uma nova teoria sobre como
alterar a memória com poder Subtrativo , com todas as partes desconectadas
resultantes espontaneamente reconstruídas independentes umas das outras... a
criação de uma memória errônea para preencher os espaços vazios daquilo que
havia sido destruído . Eles estavam estudando a teoria de como fazer u m indivíduo
desaparecer para todas as outras pessoas fazendo as pessoas esqueceram desse
indivíduo, mesmo assim que elas o enxergam . Mesmo quando olham para ele .
— Isso destrói a memória das pessoas a respeito do sujeito , mas foi
descoberto que a criação de tal evento inicia um efeito em cascata que não pode
ser previsto ou controlado . De forma parecida com um incêndio , ele continua a
queimar através das conexões com outros cuja memória não foi alterada .
Eventualmente isso destrói o próprio mundo dos vivos .
— E o Verme Profético ? — perguntou Richard. — Ele pode ser real , mas
o motivo da profecia estar desaparecendo dessa vez é Cadeia de Fogo. Como parte
do processo, a pessoa que começa o evento também preenche um vazio na
profecia, um lugar deixado em branco por um profeta para um futuro trabalho .
Essa brecha é preenchida com uma profecia que tem a fórmula Cadeia de Fogo
nela. Assim, um evento Cadeia de Fogo infecta e consome toda a profecia
associada na ramificação , iniciando pela profecia relacionada , tanto em assunto
ou em cronologia... nesse caso, nos dois : Kahlan. Desse modo, ela também é
varrida da profecia por aquilo que é chamado de Corolário Cadeia de Fogo.
Nathan s entou pesadamente. — Queridos espíritos.
Ann, com as mãos dentro das mangas opostas , não perecia satisfeita ou
impressionada. — Tudo muito bom, e nós teremos que estudar esse livro e ver se
alguma coisa do que você disse ao menos começa a fazer sentido .
— Mas esse livro não é o problema imediato .
— Você devia ter ficado com nossos homens . Você deve liderar nossas
tropas na batalha final . Deve retornar imediatamente . A profecia é bastante clara .
A profecia diz que se você não fizer isso , o mundo cairá nas trevas .
Richard ignor ou Ann e encarou o olhar de seu avô . — Adivinhe qual é a
contramedida a um evento C adeia de Fogo? — Zedd balançou os ombros ,

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parecendo confuso pela linha de questionamento de Richard. — Como eu saberia?
— Só existe um . Foi criado especificamente para esse propósito .
— Qual é? — perguntou Zedd.
— As Caixas de Orden.
Zedd ficou de boca aberta. — Richard, isso simplesmente não...
Richard enfiou a mão no bolso e tirou o que havia trazido . Ele jogou
aquilo sobre a mesa diante dos três.
Os olhos de Zedd ficaram arregalados . — Maldição, Richard, isso é uma
Trepadeira Serpente.
— Você deve lembrar do Livro das Sombras Contadas : E quando as três
Caixas de Orden forem postas em uso , a trepadeira serpente crescerá .
— Mas... mas... — Zedd gaguejou. — as Caixas de Orden estão no
Jardim da Vida, no Palácio do Povo, sob uma guarda incrivelmente pesada.
— Não apenas isso, — Nathan declarou. — mas eu pessoalmente equipei
os homens da Primeira Fileira com armas que são mortais até mesmo contra os
dotados. Ninguém conseguiria entrar lá .
— Concordo. — Zedd insistiu. — Isso é impossível.
Richard virou e pegou cuidadosamente aquilo que Cara estivera
carregando. Ele depositou gentilmente a estátua de Espírito para que a figura
ficasse de frente para os três do outro lado da mesa , como se ela estivesse
erguendo a cabeça bem alto em oposição aos esforços deles para fazerem dela um a
ilusão.
— Isso é de Kahlan. Ela deixou isso lá dentro , no Jardim da Vida , no
lugar das Caixas, para que alguém ficasse sabendo que ela existe . O feitiço Cadeia
de Fogo apagou ela da memória de todos . Aqueles que a enxergam esquecem dela
antes que ela ao menos fique registrada em suas mentes .
Ann moveu uma das mãos sobre o livro , a trepadeira, e a estátua. — Mas
isso, isso, e isso ainda são conjectura , Richard. Quem poderia ter sonhado com
esse tipo de trama?
— Irmã Ulicia criou o plano. — disse Nicci. — Ela estava com as Irmãs
Cecilia, Armina, e Tovi.
Ann fez uma careta. — Como você sabe disso ?
— Tovi confess ou para mim.
Ann pareceu mais do que surpresa . — Confessou... porque ela faria tal
coisa? Como você capturou ela?
— Ela estava fugindo com uma das Caixas de Orden. — falou Richard.
— Foi emboscada pelo homem a quem eu dei a Espada da Verdade. Ele a feriu e
roubou a Caixa de Orden que ela carregava.
Zedd deu um tapa na testa , incapaz de falar, e desa bou na cadeira .
— Tovi também disse para mim , — Nicci falou. — que elas estiveram
aqui, e Aydindril, e plantaram aquele cadáver no túmulo da Madre Confessora
para certificarem de que ninguém acreditaria em Richard, caso ele tentasse
investigar isso para co nvencer as pessoas que estava falando a verdade . Elas
pegaram o vestido do Palácio das Confessoras . Queriam ter certeza de que todos
pensassem que Richard estava enganado.
— Pensando isso , acho que vocês também deveriam saber que nós
viajamos até as ruínas de uma cidade chamada Caska, descendo ao sul de D'Hara.
Batedores da Ordem Imperial estavam lá . Eu conduzi um experimento em um
deles. Usei o feitiço Subtrativo que todos vocês queriam que eu utilizasse para
“curar” Richard das supostas alucinações dele .
Ann inclinou a cabeça cautelosamente . — E?

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— Ele não viveu mais do que alguns momentos .
Zedd, agora quase tão branco quanto seu cabelo desgrenhado , colocou o
rosto entre as mãos .
— Tenho certeza de que alguma coisa nisso provará ser bastante ... útil,
— Ann disse, parecendo bastante confusa. — e é bom que você tenha descoberto
isso. Mas como eu disse, o fato de que você precisa estar com nossas tropas
permanece, Richard. Nós revelamos a você aque la profecia vitalmente importante :
“Se Fuer grissa ost drauka não liderar essa batalha final , então o mundo, já
permanecendo no limiar das trevas , cairá sob essa terrível sombra”.
— Esses outros assuntos que vocês trazem são intrigantes , certamente,
mas a profecia continua sendo nossa missão mais importante . Simplesmente não
podemos falhar ou o mundo cairá nas sombras.
Richard segurou as têmporas entre o polegar e o dedo médio enquanto
olhava para baixo, tentando reunir paciência . Ele procurou lembrar que e ssas
pessoas estavam tentando fazer o que era certo .
Ele levantou os olhos , encarando os olhares deles . — Vocês não
percebem? — ele apontou para a Trepadeira Serpente sobre a mesa . — Essa é a
batalha final. As Irmãs do Escuro colocaram as Caixas de Orden em ação. Elas
pretendem trazer o Guardião dos mortos para o mundo dos vivos . Elas pretendem
entregar a vida para a morte em um acordo para ganharem imortalidade . O mundo
está no limiar da escuridão .
— Não estão vendo? Se vocês três tivessem feito as coisas do seu jeito,
determinados a impor a profecia, e tentassem viver pelas palavras que acreditam
estarem predeterminadas , eu não teria sobrevivido na tentativa de me “curar” . Eu
estaria morto . Tentando cumprir a profecia , vocês teriam garantido o sucesso das
Irmãs do Escuro, e o fim de toda a vida . O mundo dos vivos teria acabado por
causa de vocês . Somente o livre arbítrio... o livre arbítrio de Nicci, o meu livre
arbítrio... evitou aquilo que vocês três teriam lançado sobre a humanidade ao
seguirem a sua fé cega na profecia. — Ann, a única que resistia, caiu em sua
cadeira.
— Queridos espíritos , ele está certo , — Zedd sussurrou para si mesmo .
— O Seeker acabou de salvar três velhos tolos de si mesmos .
— Não. Nenhum de vocês é tolo. — disse Richard. — Todos nós
podemos fazer coisas tolas de vez em quando sem pensar . A coisa a fazer então é
reconhecer um erro e não repeti-lo. Aprender com ele . Não permitam a si mesmos
caírem assim na próxima vez . Não estou aqui para dizer que vocês são tolos ,
porque sei que não são. Estou aqui porque preciso da sua ajuda . Quero que vocês
comecem a usar suas mentes . Todos vocês são brilhantes à sua própria maneira .
Cada um de vocês tem conhecimento que provavelmente ninguém mais tem .
— A mulher que eu amo , a mulher com a qual estou casado, foi raptada
por Irmãs do Escuro e teve um evento Cadeia de Fogo lançado sobre sua vida.
Esse evento agora está queimando através das vidas de todos que conheciam ela
e eventualmente consumirá todos que estão vivos.
Ele apontou para a estátua de Espírito . — Entalhei isso à partir do
espírito da sua neta, Zedd. Isso era precioso para ela . Ela deixou isso lá, sobre
aquele altar de pedra , coberto com o sangue dela . Quero ela de volta.
— Preciso de ajuda. Nem Nicci, nem Cara, lembram de Kahlan, mas as
duas conhecem a verdade do fato de que não lembram dela por causa daquilo que
está nesse livro, Cadeia de Fogo, não porque ela não existe . Todos vocês perderam
algo incrivelmente precioso quando a sua lembrança de Kahlan foi tirada de vocês.
Perderam um valor em suas vidas que não poderiam substituir . Perderam uma das

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melhores ... —
Richard teve que parar porque não conseguia fazer as palavras passarem pelo nó
em sua garganta. Lágrimas caíram do rosto dele sobre a mesa . Nicci aproximou-
se e colocou uma das mãos no ombro dele . — Tudo ficará bem, Richard. Vamos
trazer ela de volta. — Cara pousou uma das mãos no outro ombro dele . — Isso
mesmo, Lorde Rahl. Vamos trazer ela de volta . — Richard assentiu, incapaz de
falar enquanto seu queixo tremia .
Zedd levantou. — Richard, espero que você não pense que falharemos
com você novamente. Não falharemos. Tem a minha palavra como Primeiro Mago .
— Eu acharia melhor ter a sua palavra como meu avô .
Zedd sorriu entre suas próprias lágrimas . — Isso também, meu rapaz.
Isso também.
Nathan levantou rapidamente. — A minha espada também está no jogo ,
meu rapaz.
Ann lançou um olhar zangado para ele . — A sua espada está no jogo ? O
que isso significa?
— Bem, você sabe, — Nathan falou, movendo sua mão como se estivesse
cortando e golpeando . — significa que farei a boa luta .
— A boa luta? Que tal se você nos ajudar a encontrar Kahlan?
— Bem, maldição mulher...
Ann disparou um rápido olhar para Zedd. — Você ensinou ele a falar
desse jeito? Ele nunca praguejou assim antes d e passar algum tempo com você .
Zedd balançou os ombros inocentemente . — Minha nossa, não. Eu não.
Ann fez uma careta para o mago em cada lado dela antes de olhar para
Richard e sorrir.
— Lembro quando você nasceu , Richard. Quando você era apenas uma
pequena vida nos braços da sua mãe . Ela estava tão orgulhosa de você só por você
ser capaz de chorar. Bem, acho que ela estaria bastante orgulhosa de você agora .
Nós todos estamos Richard.
Zedd esfregou o nariz em sua manga . — Verdade.
— Se puder nos perdoar, — disse Ann — nós gostaríamos de fazer parte
na luta para deter essa ameaça . Eu, pelo menos, estou muito ansiosa para dar um
jeito naquelas Irmãs .
Nicci apertou o ombro de Richard. — Acho que você terá uma briga em
suas mãos a respeito disso . Acho que todos nós gostaríamos de ser a pessoa que
vai pegar elas .
Cara inclinou passando um pouco de Richard. — Certamente, é fácil para
você falar isso. Você conseguiu matar a Irmã Tovi.

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C A P Í T U L O 6 7

Ricard estava em pé na ameia da muralha, com um pé repousando sobre


a pedra baixa, contemplando a cena iluminada pelo sol de Aydindril lá embaixo
perto da montanha , observando as nuvens brancas deslizarem suas sombras
através do vale.
Zedd veio por trás dele e ficou ao lado de Richard, e durante algum
tempo também observou em silêncio .
— Não consigo lembrar de Kahlan, — finalmente ele falou . — não
importa o quanto eu tente , simplesmente não consigo .
— Eu sei. — Richard respondeu sem olhar .
— Mas para que ela seja a sua esposa , deve ser uma mulher admirável.
Richard não conseguiu evitar um sorriso . — Isso ela é.
Zedd pousou a mão magra sobre o ombro de R ichard. — Nós a
encontraremos, meu rapaz. Vou ajudar você . Nós a encontraremos . Prometo isso
a você.
Sorrindo, Richard colocou o braço em volta dos ombros do seu avô. —
Obrigado, Zedd. Certamente essa ajuda seria útil .
Zedd ergueu um dedo. — Começaremos imediatamente .
— Imediatamente estaria bom para mim , — Richard falou a ele.
Precisarei pegar a espada também .
— Ah, bem... a espada não é importante . A espada é apenas uma
ferramenta. O Seeker é a arma, e eu diria que você ainda é o Seeker.
— Sobre isso, Zedd. Você sabe, eu estive pensando, e comecei a
acreditar que talvez Shota não estivesse agindo de forma egoísta ao exigir a
espada em troca daquilo q ue ela falou para mim .
— Como você concluiu isso ?
— Bem, a Espada da Verdade drena energia do meu Dom . Quando uso
o meu Dom, como naquele dia em que estávamos na biblioteca e eu li em um livro
de profecia, ela tem o potencial bastante real para chamar a Be sta até mim .
Zedd esfregou o queixo liso . — Bem, acho que isso é verdade . Talvez,
de certo modo, isso tenha ajudado a proteger você . — ele lançou um olhar furioso
para Richard. — Mas ela entregou para Samuel! Ele é um ladrão!
— E o que ele roubou desde que pegou a espada de volta ?
Zedd olhou para Richard com o canto do olho . — Roubou? Não sei. O
que você quer dizer?
— Ele quase matou uma Irmã do Escuro e pegou a Caixa que estava com
ela, impedindo que as Irmãs tivessem todas as três para que pudessem invoca r a
magia de Orden.
A expressão de Zedd ficou mais séria. — E o que você supõe que aquele
ladrãozinho fará com a Caixa ?
Richard balançou os ombros. — Não sei, mas pelo menos ele nos deu um
pouco de tempo. Agora podemos ir atrás dele e pelo menos evitar que as Irmãs
tenham todas as três Caixas .
Zedd coçou a bochecha enquanto olhava de lado para Richard. — Isso
me faz lembrar de um colega da última vez , não é mesmo? ... com Darken Rahl
tendo que pegar a última Caixa .
Richard fez uma careta para seu avô . — O que você está querendo dizer ?

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Zedd balançou os ombros . — Nada. Só estou falando .
— Falando o quê?
— Como eu disse, isso me faz lembrar de alguém da última vez , só isso.
— Zedd deu um tapinha no ombro de Richard. — Bem, vamos lá. Rikka está com
o jantar pronto. Todos nós faremos uma boa refeição antes de discutirmos algumas
ideias sobre como vamos proceder .
— Para mim isso parece ótimo .
— Como você sabe ? Eu ainda nem falei para você o que ela estava
preparando.
— Não, eu quero dizer ... deixa pra lá. Vamos.

F I M

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A série “The Sw ord of Truth” é f ormada pelos seguintes livros:

Debt of Bones

Wizard´s First Rule

Stone of Tears

Blood of the Fold

Temple of the Winds

Soul of the Fire

Faith of the Fallen

The Pillars of Creation

Naked Empire

Chainfire

Phantom

Confessor

*****

The First Confessor – The Legend of Magda Searus

*****

The Omen Machine

The Third Kingdom

Severed Souls

Warheart

Death´s Mistress – The Nikki Chronicles Vol . 1

Shroud of Eternity – The Nikki Chronicles Vol. 2

Siege of Stone – The Nikki Chronicles Vol. 3

*****

Leia também:

The Law of Nines

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