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MATEUS, 10

de Alexandre Dal Farra


Janeiro de 2012

Personagens:
- Pastor Otávio
- Olga, sua mulher
- Jéssica, uma fiel
- Maria, mãe de Jéssica
- Thereza
- Carlos, marido de Thereza.

Primeiro Ato

CENA 1 – Em um quarto de hotel. Otávio está dormindo, sonhos intranquilos. Batem


à porta. A velha vai ver, e volta.
VELHA – Para Otávio, que dorme.
Ele está aí, Otávio. O Joelmir. Chuta a cama dele. Acorda. Você dormiu demais.
Chuta a cama. Acorda, Otávio. Chuta a cama. Acorda. Chuta. Chegou o Joelmir,
acorda! Chuta a cama. Ele chegou, o Joelmir, quer te ver. Chuta a cama. ...está
na hora! Chuta a cama. Você dormiu demais. Chuta a cama. Como dorme! Chuta.
Gente que dorme tanto não presta! Chuta a cama de novo. Acorda, Otávio! Chuta
mais forte. ACORDA, ELE ESTÁ AÍ! Chuta. ESTÁ AÍ! ACORDA! Chuta. Acorda. Chuta.
Acorda. Chuta de novo. Pausa.
OTÁVIO – Sem se mover.
Eu estou acordado.
VELHA -
Ah, está! E por que não levantou?

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OTÁVIO -
Porque eu preciso ficar um pouco mais aqui. Eu ainda não estou pronto para
levantar.
VELHA -
Ele está aí.
OTÁVIO -
Diz pra ele entrar.
VELHA -
Pra entrar? Mas você está deitado!
OTÁVIO -
Eu sei. Pode dizer para ele entrar, mesmo eu estando deitado.
VELHA -
Não pode.
OTÁVIO -
Venha aqui.
A velha anda até ele. Ele dá um soco na perna dela, com força.
VELHA -
Ai! De novo você me bate! Não tem vergonha!
OTÁVIO – grita.
Fala para ele entrar!
VELHA -
É um absurdo, bater em uma velha assim! Uma idosa! De novo! De novo!
Ela sai de cena, reclamando. Ouvimos a sua voz indo até a porta resmungando.
...oi, ele falou pra você entrar... Mas está deitado! Eu tentei acordar, mas
ele...
Pausa. Sussurra.
...não, não é nada.
Pausa.
É...
Pausa.

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...é, de novo...
Pausa.
É, como sempre...
Pausa.
Não, eu não gosto, é claro que não!...
Pausa.
...e como? Como eu vou?...
Pausa.
Não consigo revidar. Eu tenho... Não sei!...
Pausa.
Tá, eu vou tentar. Você tem razão.
Pausa.
Sim.
Pausa.
Desculpa, senhor.
Pausa.
Obrigado.
Pausa longa. Joelmir entra no quarto. Senta ao lado da cama, tira um tanto de
fumo do bolso e um canivete, e corta o fumo na mão, depois enrola um cigarro.
Enquanto isso, silêncio por algum tempo. Otávio, aos poucos, se levanta e senta
na cama. Esfrega o rosto.
JOELMIR -
...está tudo bem?
OTÁVIO -
Sim.
JOELMIR -
Você se sente pronto?
OTÁVIO -
Acho que sim. Eu estou pronto.
JOELMIR –

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Isso é bom.
Pausa.
...então, eu... Eu só vim enrolar esse cigarro aqui. Eu preciso ir, na verdade,
você sabe, eu tenho uma outra vivência que começa amanhã... Na verdade, acho que
é só isso mesmo, o que eu tinha para ajudar, eu já vou, vim me despedir... Se
levantando. Desejo muito boa sorte, e que, na paz de Deus...
OTÁVIO -
...não, espera. Pausa. Eu preciso de um conselho, ainda. Sabe, pastor. Sussurra,
como se fossem segredos. Eu tenho muita raiva dentro de mim!...
JOELMIR – Responde sussurrando também.
Isso é bom.
OTÁVIO -
Muita raiva, mesmo!...
JOELMIR -
Que bom. Isso é muito bom. Use isso contra os outros.
OTÁVIO -
Contra os outros?
JOELMIR -
Sim.
OTÁVIO -
...e eu acho que talvez eu precise fazer um... Eu tenho essa ideia, está aqui...
Aponta a própria cabeça. Está aqui, pendulando de um lado para o outro, essa
ideia, já faz tempo... Sabe? Ela fica aqui, de um lado para o outro... Talvez a
única saída seja...
JOELMIR -
Sim! Pode ser.
OTÁVIO -
Mas você acha isso certo?
JOELMIR -
Acho. Isso é certo, Otávio. Use a raiva nos outros.

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OTÁVIO -
Sim. Eu vou tentar fazer isso.
JOELMIR -
O importante é manter o seu caminho reto e claro. E sempre rígido. O seu caminho
deve ser rígido. Rigidamente traçado. Um caminho reto, sem variações.
Sinceramente reto.
OTÁVIO – Pausa. Pensa um pouco. De repente se sente mais confiante. Fala baixo,
como se fosse segredo.
Eu traçarei o meu caminho com retidão. Eu já estou fazendo isso. Eu tenho, tenho
essa raiva, tenho raiva e força para percorrer o caminho reto e rígido que eu
tracei para mim, e as pessoas vão me seguir por isso! Vão me seguir, eu vou
conseguir seguidores! Você vai ver, não vai se arrepender! Eles vão me seguir,
mas... Talvez eu precise provar para eles, para mim... Joelmir cochila, com a
cadeira pendendo para trás. Talvez só seja possível se for assim... Talvez eu
precise realizar alguns... atos, algumas atitudes... Eu andei tendo esses
sonhos... Eu sinto essa raiva, não é possível isso! Eu tenho realizado os meus
sermões, e, sabe, pastor?, tudo parece possível, TU-DO! Absolutamente tudo é
possível. É muito estranho isso, e a sensação vai aumentando a minha raiva, não
sei... Eu acho que ainda não foi o bastante, ainda não foi o bastante, sabe?!
Para que aquela massa de gente se amalgame, para que as pessoas se amalgamem em
uma coisa só, sabe?, para que eles se tornem um só comigo, e para que esse
caminho, esse caminho, reto, uniforme, rígido, esteja lotado, cheio de gente
nele, comigo, um caminho só, cheio de gente!... A cadeira de Joelmir
desequilibra e ele cai para trás, de costas no chão.
JOELMIR – Disfarçando, e se levantando e sentando de novo rapidamente.
Sim! Sim!... É importante! Muito importante. Mas agora eu... eu realmente
preciso ir...
OTÁVIO – Sem jeito.
...claro, claro!... Eu entendo.
JOELMIR -

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Eu vou, então.
Pausa longa. Os dois ficam se olhando por algum tempo.
Eu estou indo.
OTÁVIO -
Sim. Obrigado. Muito obrigado. Eu aprendi muito com o senhor. Eu... nem sei como
agradecer.
Pausa. Os dois se olham. Joelmir não se move.
JOELMIR -
Eu estou saindo, então.
OTÁVIO -
...mas... você... está saindo?
JOELMIR – Pausa. Ele faz que sim com a cabeça. Pausa.
E você não vai...
Ele indica a porta com o queixo. Pausa.
OTÁVIO – Sem entender. Olha para a porta.
O quê?
Pausa.
JOELMIR -
Bom, eu, eu estou saindo, então.
OTÁVIO -
Está bom. Obrigado.
Pausa longa. Se olham. Otávio faz menção de que vai se levantar. No que ele se
move, Joelmir se levanta mais rápido.
JOELMIR -
Ah, não precisa...
Pausa. Otávio se dirige para a porta, Joelmir passa por ele mais rápido.
...não precisa, não precisa...
Otávio para, Joelmir para de frente para ele, antes da porta. Eles se olham por
alguns instantes. Otávio volta a se dirigir para a porta, Joelmir chega antes.
Obrigado. Não precisa. Eu vou indo.

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Pausa. Se olham. Otávio levanta a mão para pegar o trinco na porta, Joelmir pega
o trinco antes, sempre balbuciando "não precisa", "é tranquilo", etc. Joelmir
abre a porta do mesmo jeito. Otávio faz menção de abrir, Joelmir abre. Ele se
coloca do lado de fora. Otávio faz menção de fechar a porta, Joelmir pega o
trinco do lado de fora, "não precisa", etc. Joelmir puxa a porta rapidamente,
arranca-a da mão de Otávio. Ele encosta a porta, mas não fecha. Otávio vai pegar
o trinco, mas Joelmir gira antes "não precisa, não precisa". Fecha a porta.
Silêncio. Pausa. Depois de algum tempo, Otávio abre a porta, um pouco. Joelmir
está ali. Pausa. Otávio se assusta um pouco, fecha de novo. Ele fica quieto.
Silêncio. Ele vacila. Pega o trinco de novo. Abre a porta devagar, até ver que o
outro ainda está lá, no mesmo lugar. Otávio fecha a porta de novo. Pausa. Ele
abre a porta mais uma vez, já com certa impaciência. Ninguém. Pausa. Fecha. Ele
volta para a cama. Senta. Pausa. Otávio se levanta, coloca os sapatos, lava o
rosto, se barbeia. Penteia o cabelo. Vai até o quadro, retira o quadro, pega
atrás do quadro alguns objetos: uma espécie de bolacha de plástico, do tamanho
de um maxilar; uma corda; um pedaço de pau; uma corrente; um cachimbo de crack;
um cilício, tudo enrolado em um pano de cozinha com bordados em uma das
extremidades. Ele desenrola os objetos, arruma-os, depois enrola-os de novo. Ele
coloca os objetos em uma bolsa, coloca a bolsa no ombro, e sai. Otávio se dirige
a alguém do público. Ele mostra os objetos que tem na bolsa e entrega uma bíblia
para o espectador.
OTÁVIO – Fala educadamente.
O senhor pode ler, por favor? Não, depois. Por favor. Evangelho segundo São
Mateus, 10. Os inimigos do homem serão os seus próprios familiares, Cristo
disse. Ele disse isso! O inimigo do homem é o familiar. O inimigo, é o familiar!
Aqueles que você melhor conhece, eles serão os seus inimigos! Aquilo que você
mais conhece é o que você precisa renegar! O familiar é o inimigo. Não o
desconhecido! O conhecido precisa ser renegado, foi isso que Cristo disse!
MATEUS, 10! O conhecido, o familiar, é inimigo!
Sai caminhando.

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CENA 2 – Na casa de Otávio. Ele chega em casa e Olga, a sua mulher, o aguarda.
Os dois se sentam à mesa de jantar.
OTÁVIO –
Eu estou comendo um frango. Isso não é um ato normal?
OLGA –
Me parece um ato normal, Otávio.
OTÁVIO –
Olga, eu tenho me sentido bastante estranho.
OLGA –
Tente não pensar nisso.
OTÁVIO –
Sim, eu tenho procurado não pensar nisso.
OLGA –
Coma o seu frango, Otávio.
OTÁVIO –
Sim. Eu estou comendo o meu frango. Alguém que senta e come um frango, de frente
para a sua mulher, é normal. Alguém normal.
OLGA –
Sim, meu amor. Você é alguém normal.
OTÁVIO –
Sabe, Olga, eu também me acho normal. Estou tranquilo, na verdade. Porque eu sei
que é assim que se vive.
OLGA –
É assim.
OTÁVIO –
É exatamente assim que se vive. As pessoas sentam, comem frango, e assim por
diante. E eu estou muito orgulhoso das minhas pregações.
OLGA –
Você está muito bem.

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OTÁVIO –
Sim, o Joelmir disse que eu sou um dos pastores mais promissores.
OLGA –
Eu sei disso. Sempre soube.
OTÁVIO –
Ele me elogiou pela minha sinceridade. Ele disse que admira a minha sinceridade.
OLGA –
Você é muito sincero, Otávio.
OTÁVIO –
Sim. Por que esse frango está assim?
OLGA –
Assim como?
OTÁVIO –
Está ruim.
OLGA –
...mas eu temperei bem...
OTÁVIO –
O tempero está ruim. E está um pouco mole, Olga.
OLGA –
Por que você está falando desse jeito do frango?
OTÁVIO –
Porque está horrível. Mole e sem tempero.
OLGA –
Me desculpe, Otávio! ...ponha um pouco mais de sal...
OTÁVIO –
Não adianta. Eu estou enjoado. Comi muita pele mole e sem tempero. O seu frango
me causou náuseas.
OLGA –
Calma, Otávio. Eu errei no tempero, e no tempo de cozimento. Você tem razão.
Você quer que eu frite uns ovos?

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OTÁVIO –
Não. Eu não quero ovos. Eu quero que você coma o meu frango, Olga. Coma a pele
mole do meu frango.
Pega o frango e coloca na cara da Olga, que não abre a boca.
OLGA -
Eu não estou com fome.
OTÁVIO – Enfia o frango na cara dela.
Coma.
OLGA -
Eu não quero, Otávio.
OTÁVIO -
Coma, Olga. Coma o frango.
OLGA -
Eu não estou com fome. Eu já comi.
OTÁVIO -
Coma, Olga.
OLGA -
Eu não quero!
OTÁVIO – Enfia o frango no olho dela.
Você precisa experimentar, Olga. Precisa experimentar. Coma.
OLGA -
Obrigado, Otávio. Eu não quero experimentar o frango.
OTÁVIO -
Coma.
OLGA -
Não, eu não quero.
OTÁVIO -
Coma.
OLGA -
Obrigado, eu já comi.

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OTÁVIO -
Coma o frango, Olga.
OLGA – Dando um tapa no frango, que cai no chão.
EU NÃO QUERO!
Os dois olham para o frango caído. Pausa.
OTÁVIO -
Você derrubou o frango, Olga. Agora eu não tenho o que comer.
Olga se levanta e pega o frango.
OLGA -
Ainda está bom. Não está tão ruim, Otávio!...
Ela coloca o frango de volta no prato do Otávio.
OTÁVIO -
Mas agora o frango está sujo, e continua com o tempero ruim.
OLGA -
...deixa, que eu vou fritar uns ovos...
OTÁVIO – batendo na mesa.
Eu não quero ovos! Perdi a fome.
OLGA -
Como assim, perdeu a fome? Você nunca perde a fome!
OTÁVIO -
Perdi a fome. Eu não quero continuar aqui sentado comendo esse frango, vou me
levantar.
Otávio se levanta.
OLGA -
Sim, Otávio. Vamos conversar na sala.
OTÁVIO -
Prefiro ficar de pé.
OLGA -
Você quer ficar de pé, na cozinha, aqui?
OTÁVIO -

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Sim. Vou ficar aqui de pé. VOU FICAR AQUI, EXATAMENTE AQUI, DE PÉ, POR QUÊ???
Otávio está de pé bem na frente de Olga.
OLGA -
Pausa.
Está bem, Otávio. Como foi o seu dia hoje?
OTÁVIO -
Foi um dia ruim. Eu passei o dia inteiro na rua, cheguei em casa e a minha
mulher tinha cozinhado um frango mole e sem gosto.
OLGA -
Mas o que você quer, Otávio??? Eu tentei consertar!
OTÁVIO -
Eu sei. EU SEI QUE VOCÊ TENTOU! E SEI QUE AGORA VOCÊ PODE COMEÇAR A FAZER ISSO,
ESSE TEATRO IMBECIL E SEM SENTIDO!... ...PODE COMEÇAR COM ISSO, ACHANDO QUE...
Se contém, procura se acalmar. Pausa. Retoma. ...os fiéis sujam a igreja, Olga.
É terrível.
OLGA -
O quê?...
OTÁVIO -
Sim, eles entram na igreja com os pés sujos, vindo da rua, principalmente quando
chove... Os fiéis sujam muito a igreja, Olga.
OLGA -
Por que você está de pé no meio da cozinha?
OTÁVIO – Se contém. Muito irado.
Por quê? Mas, qual o problema? Por que isso, por exemplo, não seria possível e
razoável? Um homem POR UM ACASO não pode chegar em casa e conversar com a sua
mulher, DE PÉ, NO MEIO DA COZINHA, SOBRE A SUA VIDA? NÃO PODE? AH, MEU DEUS! NÃO
PODE, NÃO PODE, OLGA? VOCÊ ME FAZ UMA COMIDA PODRE E SEM GOSTO, RUIM, VOCÊ É UMA
INÚTIL, OLGA! VOCÊ...
Tenta se acalmar
Os fiéis sujam a igreja.

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OLGA -
Parece ruim.
OTÁVIO -
Sim, é muito ruim, Olga! MUITO RUIM! VOCÊ NÃO IMAGINA COMO É RUIM! VOCÊ NÃO
IMAGINA PELO QUE EU PASSO, OLGA!!! NÃO IMAGINA! É MUITO RUIM! MUITO!
Pausa. Otávio de pé, na cozinha. Olga se levanta, para tirar a mesa. Otávio a
impede de tirar a mesa, totalmente irado, contendo-se para não gritar.
É melhor deixar assim. É melhor não tirar, Olga. O que não comemos deve ficar.
Deixa.
OLGA -
...vai juntar bicho, vai ficar podre, não pode...
OTÁVIO -
Deixa apodrecer. DEIXA APODRECER!
Olga para. Pausa longa. Toca a campainha. É Jéssica. Otávio abre a porta.
Jéssica percebe o clima de tensão da sala. Ela está um pouco alegre, distraída.
JÉSSICA –
Ai, meu Deus!... Desculpa, desculpa atrapalhar... Desculpa vir aqui, na casa de
vocês, e...
OTÁVIO -
Não se desculpe. Entre.
JÉSSICA -
...mas será que eu não estou...
OTÁVIO – Puxando a outra para dentro.
Entre.
Pausa. Jéssica e Otávio de pé, Olga quieta. Jéssica e Olga se cumprimentam de
longe.
JÉSSICA – Olhando em volta.
Eu... eu posso voltar...
OTÁVIO -
Não. Fica.

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Olga quieta.
JÉSSICA – Olha para Olga.
Tem certeza?, eu...
OTÁVIO -
SIM, EU TENHO CERTEZA!
JÉSSICA – Pausa. Ela fala, visivelmente confusa e tocada.
Bom, é que. Na verdade, eu vim falar... Eu vim, na verdade, dizer que eu gostei
muito, eu realmente...
Olga se levanta e começa a pegar os pratos.
OTÁVIO – Aparentemente calmo.
Não, Olga. Eu já falei. Deixa.
Olga para. Vai para a sala.
OTÁVIO – à Jéssica
Desculpa.
JÉSSICA -
Não, tudo bem... ...então, é que... Bom, eu gostei, pela primeira vez, não sei,
eu gostei muito, muito mesmo, do que o senhor falou hoje...
OTÁVIO – Indo até a cozinha pegar um copo de água.
Sei.
JÉSSICA -
Muito... Mas, o senhor acha mesmo que...
OTÁVIO -
Sim.
JÉSSICA -
Aquela passagem, da faca...
OTÁVIO -
...DA ESPADA!
Joga a água que tinha pegado no chão. Volta a encher o copo.
Sim, é isso mesmo! Isso mesmo!
JÉSSICA -

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Mas... em que sentido? Quer dizer, como assim, "trazer a espada"? Quer dizer,
trazer a morte, a desgraça?, é muito louco isso, estranho...
OTÁVIO -
É! ...mas não a desgraça, em geral! Não toda a desgraça! Só um pouco,
entendeu?... Um pouco, uma desgraça específica, não geral!...
Bebe a água rapidamente, e se engasga um pouco.
JÉSSICA – Concordando.
Sim!... eu entendo, a gente precisa matar aquilo, dentro de nós, que é mal, que
é do demônio...
OTÁVIO – tentando desengasgar o peito
É, mais ou menos isso...
JÉSSICA -
...que é o corpo interior, que você disse! ...precisa acabar, é isso? Matar o
corpo interior! A espada! Isso é muito louco, pastor, muito... estranho!
OTÁVIO –
É, é isso, é o jeito que eu entendo! A parte de dentro, ela precisa simplesmente
ACABAR de forma definitiva! A alma, e todas essas coisas, ainda são necessárias
só porque!...
JÉSSICA – cortando, seguindo o seu raciocínio.
...mas então quer dizer que também a minha mãe, eu, os meus irmãos, nada disso é
necessário!...
OTÁVIO -
PRINCIPALMENTE ESSAS COISAS! PRINCIPALMENTE! Nós mesmos, enquanto almas,
enquanto seres interiores, específicos, somos desnecessários! NÓS MESMOS! Quer
dizer, o corpo interior, a sua mãe especificamente, a identidade pessoal dela, e
mesmo a reprodução dos indivíduos específicos, os nexos familiares, as
interioridades das relações entre pais, irmãos, amigos!... Nada disso é
necessário! NADA DISSO SERÁ PERMITIDO!
JÉSSICA - Pausa. Otávio procura se acalmar.
Mas então, pastor, então as relações, os sentimentos, o amor, sei lá, nada!?...

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OTÁVIO -
Só a parte de fora. A parte de dentro nunca existiu. As coisas são ocas.
JÉSSICA -
Ocas?
OTÁVIO -
Sim, ocas! Não existe a parte de dentro! Por exemplo, agora, agora mesmo, eu
estou aqui falando, com você, mas o que eu estou falando, não está aqui dentro,
não está dentro de mim, Jéssica! A voz, A PRÓPRIA VOZ, ela não se propaga por
dentro, entendeu???!!! NÃO SE PROPAGA NA PARTE DE DENTRO! A VOZ SE PROPAGA POR
FORA! SÓ POR FORA! A VOZ ESTÁ AQUI! AQUI NA FRENTE, ENTRE NÓS! É AQUI QUE ESTÁ A
VOZ, É AQUI QUE ESTÁ DEUS, É AQUI QUE ESTÃO AS PALAVRAS DE DEUS! AS PALAVRAS
ESTÃO AQUI, PELO AR! AS PALAVRAS ESTÃO ENTRE NÓS E AS COISAS, DEUS É FEITO DE
PALAVRAS, QUE ESTÃO ENTRE NÓS E AS COISAS, E AS PALAVRAS, AS PALAVRAS, ELAS
SÃO... AS PALAVRAS SÃO COMO, SÃO COMO AS NOTAS DE DINHEIRO!...
Pausa. Otávio se espanta com o que ele mesmo disse.
JÉSSICA - Pensativa
Nossa... ...mas, a minha mãe...
OTÁVIO -
Ãh, o que tem? A Maria? O que tem ela, hein?? ...ela não tem mais aparecido...
JÉSSICA -
Bom, ela disse que ela não concorda, completamente... Ela não concorda direito
com isso... Ela preferia antes!... ...mas ela é, você sabe, né?!...
OTÁVIO -
...ah, ela disse isso? Então ela não concorda? Ela preferia antes, então? ELA
PREFERIA ANTES, QUANDO EU MENTIA???
JÉSSICA -
O senhor?...
OTÁVIO -
Sim, quando eu mentia! Ela preferia isso! Quando eu mentia! Mas pode dizer para
ela, viu? Pode falar pra Maria, que eu não vou mais mentir em nome de Deus! Não

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vou! Não importa! Além do mais, isso tudo não importa! Nem ela, nem eu, nenhum
de nós, enquanto nós mesmos, não importamos!... Não vou mais mentir! Nem que
alguém me peça! NEM QUE ALGUÉM IMPLORE, JÉSSICA!
JÉSSICA -
...mas então era mentira?
OTÁVIO -
Era. Mentira. Eu peço desculpas, eu pedi desculpas, você viu, eu... Eu me
arrependo muito...
JÉSSICA -
Sim, mas nós desculpamos, a gente desculpou, o senhor não viu hoje, no culto,
foi tão bonito! ...é só que, não sei, algumas pessoas, sei lá, a minha mãe por
exemplo, sabe?, ela não....
OTÁVIO – Volta a se descontrolar. Jéssica reage ao descontrole do outro com
naturalidade.
Ela está errada! Escuta bem: a sua mãe está errada. A sua mãe não importa! Não
importa a interioridade dela, a singularidade dela, enquanto algo além de um ser
que é, que foi a sua mãe, não importa ela especificamente, a Maria! Não é
importante! O FATO PURO DE ELA SER MÃE É O QUE IMPORTA! A PALAVRA! AS PALAVRAS
DIVINAS, ESTÃO ENTRE NÓS E AS COISAS, SÓ QUE DO LADO DE FORA, JÉSSICA! NÃO DO
LADO DE DENTRO! AS PALAVRAS SE PROPAGAM, SURGEM E SE REPRODUZEM DO LADO DE
FORA!!! ELAS É QUE IMPORTAM, NÃO O SIGNIFICADO INTERNO, NÃO A MÃE ESPECÍFICA!
NÃO IMPORTA, A REPRODUÇÃO HUMANA, A MÃE, O PAI, ESPECÍFICOS, O QUE JÁ ESTÁ
DADO, NÃO IMPORTA!!! O QUE IMPORTA É MUITO MAIOR QUE ISSO! MUITO MAIOR! VOCÊ
SABE QUEM É A MINHA MÃE, OS MEUS IRMÃOS, O MEU PAI??? É VOCÊ! SOU EU! É QUEM
SEGUE A PALAVRA! EU SÓ TENHO A PALAVRA, QUE É A PALAVRA DO SENHOR, QUE ME
MOSTRA, QUE ME MOSTRA O MUNDO, QUE GUIA O MEU OLHAR, QUE RECORTA O MUNDO
OBLIQUAMENTE, E O MOSTRA PARA MIM, JÉSSICA! É COMO DISSE MATEUS: Jesus estava
falando com as multidões, FALANDO!, e a mãe dele, e os seus irmãos, estavam
fora, procurando falar com ele. E avisaram Jesus: eis que a tua mãe e os teus
irmãos estão fora e procuram te falar. E Jesus respondeu: quem é a minha mãe e

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quem são os meus irmãos? E apontou os discípulos, e disse: aqui estão a minha
mãe e os meus irmãos, porque aquele que fizer a vontade de Meu Senhor que está
nos Céus, esse é o meu irmão, a minha irmã e a minha mãe! AS PALAVRAS DE DEUS
IMPORTAM MAIS, JÉSSICA! A MANEIRA COMO AS PALAVRAS PERPASSAM AS COISAS,
JÉSSICA!!! IMPORTA MAIS DO QUE A SUA MÃE ESPECIFICAMENTE! AS PALAVRAS, AQUI, NO
AR, AQUI! AQUI!!!
JÉSSICA – Que fechou os olhos. Pausa.
Amém.
Pausa. Os dois ficam em silêncio um pouco.
OTÁVIO -
Amém. Agora pode ir.
Ele se vira, vai para a cozinha. Jéssica fica sozinha.
JÉSSICA -
Sim... tchau, então...
Ele acena com a mão.
Tchau, Olga...
OLGA -
Tchau.
Jéssica sai. Olga assiste televisão. Otávio fica sozinho na cozinha.
OTÁVIO – Sozinho.
Essa velha é... ...é muito egoísta!... É muito pequena mesmo, mente pequena!...
Uma cobra! Maldita! Fica enfiando essas... essas ideias! Fica enfiando essas
ideias na cabeça da filha!... Na cabeça das minhas fiéis?!... Mas que... QUE
MULHER MAIS ENXERIDA E FILHA DA PUTA!...
OLGA – Da sala.
Oi?
OTÁVIO -
O quê?
OLGA -
Por que você está falando assim da menina, Otávio?

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OTÁVIO -
Você está espionando os meus pensamentos, Olga?
OLGA – Se levanta e vem para a cozinha, irada.
Você estava falando em voz alta!
OTÁVIO -
Não posso nem pensar! NÃO POSSO PENSAR! EU TE PROÍBO! TE PROÍBO DE ROUBAR MEUS
PENSAMENTOS! DE FICAR ESCUTANDO, ESPIONANDO! NÃO É NADA DO QUE VOCÊ OUVIU OLGA,
NÃO É NADA DISSO! IDIOTA! BURRA!
OLGA – Magoada.
Idiota... Burra! Olha o que você fala... Veja! Você está completamente louco,
Otávio! E não está percebendo! É triste. Triste!
Ele sai, não a escuta, e aumenta muito o volume da televisão. Ele volta para a
cozinha, bufando. Os dois se olham por algum tempo. Olga magoada. Ela volta para
a sala. Otávio fica sozinho de novo, fala um pouco mais, mas não é possível
escutar tudo. Pausa. Repentinamente ele se levanta, sem aviso, e vira a mesa no
chão. Tudo se espalha pela cozinha. Olga chega da sala. Observa. Pausa. Olga não
sabe o que fazer. Ela faz menção de se abaixar para recolher.
Não, Olga! Não pegue nada!
Ela chora. Abraça Otávio, que continua gritando, mas se deixa abraçar por alguns
instantes.
DEIXA!!! DEIXA APODRECER, ENTENDEU??? DEIXA APODRECER! NÃO TIRA NADA! NÃO MEXE
EM NADA!
Ele se desvencilha dela, e sai, batendo a porta. Olga fica olhando a sala
destruída. Pausa. Som altíssimo da televisão.

CENA 3 –
Na casa de Maria e Jéssica. Alguém bate na porta com pressa. Ela abre a porta.
THEREZA – Entrando. Maria vai respondendo como pode às perguntas dela. Ela sorri
amigavelmente.
Com licença.

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Entra. Olhando em volta.
Nossa, que casa mais interessante! Que coisa... Tudo assim... Assim! Então você
é que é a Maria... Licença, viu? Bonita cozinha, Maria. Bonitos pratos.
Pega um prato.
Bonitas cadeiras.
Chuta de leve algumas cadeiras.
Bela cozinha, Maria!
MARIA -
Obrigada...
Lembrando.
Ah!... Eu sei! Você é aquela mulher!...
THEREZA -
Isso, Maria, a Thereza! The-reza. Lembra?
MARIA -
Lembrei, agora... Que bom que você veio!, eu vou... Vou fazer um café.
THEREZA -
Obrigada, Maria. Muito obrigada. Você é muito... Prestativa!
Fica olhando em volta, depois se senta.
Eu gostei muito da sua casa. Foi você que fez?
MARIA -
Não, eu não. Isso aqui foi tudo o Paulo...
THEREZA –
Ah, o Paulo. O Paulo é o seu marido?
MARIA -
Foi. Foi meu marido. Ele faleceu, sabe...
THEREZA -
Ah, acontece. Acontece muito.
MARIA -
Sim...
THEREZA -

20
É assim mesmo, as pessoas morrem, Maria.
MARIA -
Ah, sim, é verdade...
THEREZA -
É verdade. Isso mesmo.
MARIA -
Deus faz, Deus tira.
THEREZA -
Isso. Deus. Eu sou muito humilde, Maria. Eu me curvo perante a Deus.
MARIA -
Por que você está me dizendo isso?
THEREZA -
Porque eu quero dividir a minha fé com você. Você também tem fé, não tem?
MARIA -
Uai, mas que pergunta?!
THEREZA -
Tem ou não tem? E por que não estava no culto com a Jéssica, e por que ela disse
que você “ia” no culto, por que ela usou esse verbo no passado, Maria? Hein?
MARIA -
E eu sei lá?! E eu sei da Jéssica? Hoje em dia, mãe não sabe de nada! Mas eu ia
mesmo, não vou mais, não concordo muito com, aliás, isso não importa em nada,
não tem nenhuma importância!
THEREZA -
Não importa?
MARIA -
Não vem ao caso. Eu não estou entendendo, por que você começou a me perguntar...
THEREZA -
É, não importa mesmo... O Otávio faz os seus cultos, fala algumas coisas para os
fiéis, eles gostam de ouvir o Otávio, por isso eles vão ao culto dele, etc, etc,
etc. Você tem razão.

21
MARIA -
É, mas que é errado, é. Muito errado!
THEREZA -
...errado?...
OTÁVIO – Entrando, sem olhar em volta. Totalmente alterado. Maria totalmente sem
jeito.
Oi, Maria. Preciso falar com você... Eu... Preciso te perguntar uma opinião...
Eu preciso... Falar umas coisas... é urgente, você pode me falar, será... Você
está... Sozinha, não é? Depois, a Jéssica...
Repara em Thereza.
Quem é essa?... Oi... Parece que eu te... conheço...
THEREZA – observando Otávio
Oi, pastor. Eu estive no seu culto no outro dia... Eu não gostei muito não.
OTÁVIO -
Oi... O que essa mulher está fazendo aqui, Maria?
Maria dá de ombros.
A Jéssica está trabalhando?... Você... Vocês se conhecem?
THEREZA –
Nós estamos nos conhecendo. Olha pastor, deixa eu te falar uma coisa? Posso?
Será que é falar demais? Bom, mas deixa eu falar, olha, eu acho que essa coisa
dessa igreja sua, que eu respeito, que eu gosto muito, mas essas coisas que você
fala, isso tudo está muito repetitivo! Precisa variar um pouco mais, sei lá!
Sempre o mesmo tema, Deus, sempre a mesma coisa!... Desculpa falar assim! Mas é
para ajudar, né? Sei lá, não dá pra dar uma variada nos assuntos?...
Otávio quieto um pouco. Não comenta nada. Pausa.
OTÁVIO -
Maria, a que horas a Jéssica...
MARIA – Busca o café. Coloca as xícaras na mesa.
Ah, o café! Vocês querem? Senta, Otávio. Aliás, eu queria mesmo conversar com
você...

22
Maria serve as três xícaras.
Açúcar? Quer açúcar, Otávio?
OTÁVIO -
Pode ser.
Maria põe o açúcar.
Não!... Prefiro sem açúcar.
Otávio levanta e joga o café fora, na pia. Passa uma água na xícara, volta e se
senta de novo.
Desculpa. Prefiro sem açúcar. O açúcar não dá mais para mim.
MARIA – Colocando o café nas xícaras dos três.
Otávio, olha... Não é para concordar aqui com a moça aqui, não tem nada a ver
com o que ela disse, mas... Você está indo por um caminho, que...
OTÁVIO -
Mas o que é isso?! Vocês se uniram para falar mal de mim, é isso?
THEREZA -
Claro que não, não seja tão egocêntrico, Otávio...
MARIA -
Escuta, eu já queria falar com você antes, Otávio, a Jéssica me disse, comentou
de umas coisas... Essas coisas que você está falando!... Não é bom, Otávio,
escuta o que eu estou te dizendo. Eu até liguei para o Joelmir, falei...
OTÁVIO –
...para o Joelmir?... Sei... ...então a Jéssica comentou? O que é que ela disse,
hein?
MARIA -
Ela me contou das coisas que você anda falando... Falou do corpo interior, o
corpo interior não importa, da espada, de matar o corpo interior!... Ah, não!...
Que espada o quê, meu Deus?
A Thereza.
Você quer açúcar?
THEREZA -

23
Sim. Para mim pode por açúcar.
Maria põe uma colher.
MARIA -
Assim?
THEREZA -
Pode por mais.
Maria põe outra colher. Olha para Thereza.
Pode por mais uma, por favor.
Maria põe outra colher ainda.
Mais uma.
Ela põe outra colher.
Mais.
Põe outra colher.
Mais uma, por favor.
Põe outra.
Mais uma colher, Maria.
Põe outra.
Mais uma.
Outra.
Mais.
MARIA -
...mas não cabe mais...
THEREZA -
Mais uma.
[Etc.] Ela continua pedindo para Maria por mais açúcar, até a xícara ficar
lotada de açúcar, e o café ter caído todo para fora. Maria observa, Otávio bebe
o seu café.
THEREZA -
Obrigada. Agora está bom.
Thereza pega a xícara educadamente e come o açúcar. Os outros dois ficam

24
olhando.
OTÁVIO –
...então você ligou para o Joelmir?...
MARIA -
Ah, eu liguei, liguei mesmo. Não está certo!... não, não!!... Essas coisas que
você está falando lá, eu nunca ouvi na minha vida!... Não é possível! Se eu
pudesse eu proibia a minha filha. O que você diz, essas coisas que você fica
falando, as pessoas levam a sério, você devia pensar melhor!...
OTÁVIO – Totalmente irado, mas sempre tentando se conter.
Sim, sim. Eu vou pensar. Obrigado.
Pausa
Eu preciso ir.
THEREZA –
Peraí peraí!!! Onde você vai? Como assim, chegou e já está saindo?...
OTÁVIO – Saindo.
É, eu tenho umas coisas para organizar...
THEREZA – Comenta com Maria
Nossa, mas que coisa mais esquisita!...
MARIA – Pegando o rosto dele nas mãos.
Otávio, pelo amor de Deus, eu te conheço desde pequeno, era um menino tão bom,
agora está desse jeito! Confuso, louco!...
OTÁVIO – Se desvencilhando dela.
Sim, eu... Olha, eu preciso ir agora. Obrigado.
Ele sai, e fica do outro lado da porta. Ele observa a cena pela janela.
MARIA -
...você viu?
THEREZA -
O quê?
MARIA -
...ele está confuso! Não é bom! Está errado! Está ficando errado! Errado!

25
Maria levanta e vai colocar as xícaras na pia.
THEREZA -
Errado?...
Pausa.
...Hum, não sei: eu não acho “errado”, eu acho outra coisa, sei lá... Acho
meio chato, meio... Não sei, meio sem energia, meio repetitivo, meio assim,
sabe?... Mas, enfim, é uma opinião! A minha opinião. Não vale mais do que a sua
opinião, do que a opinião dele, ou do que a opinião, sei lá, de uma barata!...
Não é verdade? Mesmo os animais, até mesmo os insetos de certa forma, até eles
têm as suas opiniões sobre as coisas!... Por isso que eu digo, “que tenham as
suas opiniões”! Não importa! Não é verdade?... Ah, é. É sim, isso mesmo.
Pausa. Maria só observa.
Muito bom, o café, viu?...
Pausa.
...bom, eu vou indo então... Eu... gostei muito da visita!...
MARIA -
Hum...
THEREZA -
Tchau Maria, eu... Talvez eu volte, depois... Não sei. Mas... Qualquer coisa, é
só eu aparecer, só bater na porta, e a gente conversa... Tá bom, Maria? Então é
isso.
MARIA -
Isso... É... Fique à vontade, eu... gostei muito da visita!... Qualquer coisa é
só... aparecer...
THEREZA – Pausa.
Que bom. Tchau, tchau!...
Thereza sai, bate a porta atrás de si, com força. Maria fica sentada. Pausa. Ela
vai até o armário, pega a sua bíblia, senta na cadeira, e ora. Pausa. Chega
Jéssica, coloca a mochila em cima da mesa.
JÉSSICA -

26
Oi, mãe...
MARIA – fechando a bíblia, colocando em cima da cômoda.
Oi...
JÉSSICA – Que fica andando pela sala, vai até a cozinha, bebe água, volta, etc.
...mãe, eu vi uma mulher no caminho, saindo daqui... Ela... Tava aqui, mesmo?
MARIA -
Ah, é... estava... estava sim, a... Thereza, Therezinha, não sei, uma mulher
esquisita... Por quê?
JÉSSICA – Passando para a cozinha.
Ah, nada não. ...nossa, mãe, você não sabe, hoje, o Sandro, que trabalha comigo,
ele disse que o Pedro estava comentando outro dia... Que ele estava comentando
de mim, falando bem, de mim, mãe, olha só? Ele falou que o Pedro gosta muito de
mim, do meu trabalho... Que ele disse assim que eu sou muito correta, que ele
confia em mim, mãe!... Eu não sei, eu pode até ser que o Sandro tenha exagerado
um pouco, mas o Pedro ter dito alguma coisa é... Enfim, é ele que decide, né,
quer dizer, se alguém pode mudar alguma coisa lá dentro da empresa é o Pedro...
Repara em Maria, que está quieta e cabisbaixa.
...que foi?... Aconteceu alguma coisa?
MARIA -
Ah, não... Nada...
JÉSSICA -
O que foi.
MARIA -
Nada filha... Nada, não. Eu fico feliz por você.
JÉSSICA -
Mas o que foi?
MARIA -
Na-da.
JÉSSICA -
Está precisando de alguma coisa?

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MARIA -
Não. Nada. Não preciso de nada. Eu fico aqui sozinha, pode deixar. Pelo menos de
vez em quando vem uma visita...
JÉSSICA -
Oi?
MARIA -
Nada. Não é nada. Eu fico feliz que a sua vida esteja melhor... que esteja
melhorando!...
JÉSSICA -
Ãh? ...ah, mas vai ser bom para você também, se alguma coisa, se Deus quiser, se
o Pedro, sei lá...
Ela vai até o quarto, troca de camiseta, troca de sapato, solta os cabelos, etc.
Vai que dá na telha dele, me subir para secretária dele, sei lá... Eu vi que ele
com aquela Júlia, a secretária... Ah, sei lá, melhor não ficar falando, né,
mas...
MARIA -
Ah, mas eu tenho certeza, viu, que você está certa! Que bom! Eu acho que você
tem todas as chances de melhorar, todas, acho que vai melhorar com certeza,
filha! Que bom! Que bom. De repente pelo menos você começa a cuidar mais de
casa.
JÉSSICA -
Cuidar mais de casa!? E você acha que eu não cuido, mãe? Eu?
MARIA -
Não, Jéssica. Não acho isso!... Não acho, não...
Pausa.
Mas você é muito egoísta mesmo! Nem repara, nem vê a minha situação! E eu aqui,
assim, largada, sem ter nem o que comer direito!...
JÉSSICA -
Mas eu fui no mercado ontem!
MARIA -

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É, você foi, sim! Você foi! Mas e eu? Quando eu vou no mercado? Quando EU posso
comprar alguma roupa nova para mim, quando??? Quando eu posso sair um pouco por
aí, me divertir?? Ah, não, você sai, você trabalha, você traz as coisas... Mas e
eu?
JÉSSICA – impaciente, magoada.
Que coisa mais horrível isso que você disse, mãe. Horrível. Se você pensasse um
pouco, um pouquinho só, você não falaria nada, nada disso! Parece até que não vê
tudo o que eu faço!... Talvez você não perceba mesmo. É triste!... Um dia você
vai perceber.
MARIA -
Perceber o que? Um dia eu vou perceber, quando eu estiver no asilo? É isso? Pois
me bota logo lá, que é o que você quer!
JÉSSICA – Totalmente irada. Se contendo para não gritar.
Tchau. Eu estou saindo.
Vai saindo. Maria virada para o outro lado, olhando para a janela.
MARIA –
Espera. Jéssica.
JÉSSICA -
Oi?
MARIA – Pausa.
...eu... Eu preciso de um pouco de dinheiro...
JÉSSICA – Pausa. Tirando algumas notas da bolsa.
Olha, eu tenho aqui um pouco... De quanto você precisa?
MARIA – baixo. Pausa.
Trezentos reais.
JÉSSICA – para de procurar
Oi? Trezentos reais?
Maria faz que sim.
E para que você precisa de trezentos reais?...
Lembrando.

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...é, ah... É aquela história!... Sei, sei. Por isso então que você começou com
essa...
MARIA –
É. Aquilo mesmo. É para pagar os juros das jóias.
JÉSSICA – Dando um dinheiro.
Tá, tá... Não quero ouvir. Tó. Depois eu te dou o resto, senão eu vou ficar sem
nada, agora...
MARIA -
...mas precisa ser amanhã cedo, eu vou sair para pagar...
JÉSSICA – Dando o resto todo das notas.
Tá bom, mãe. Tó. Agora eu vou, estou atrasada. Tchau.
MARIA -
Está atrasada para o culto, né?
JÉSSICA -
Oi?
MARIA -
É, fala, não é? Está atrasada para aquele culto! Por que você ainda vai, hein?
Aquele culto, aquele pastor, ele veio aqui hoje! Está errado, Jéssica! Errado! O
culto errado, você também, está errada, está errada! Olha o jeito que você me
trata, não tem dó, não tem pena da sua mãe!...
JÉSSICA – Ela abre a porta e sai.
Tchau, mãe! TCHAU!
Bate a porta com força atrás de si. Maria corre e abre a porta de novo.
MARIA -
...e ainda joga o dinheiro na minha cara, assim, como se fosse culpa minha!
Ainda me humilha! Vai, faz isso mesmo! Com a sua mãe! Você deve achar que eu me
orgulho! Que eu acho bonito, né! Deve achar que eu QUIS botar as jóias no
penhor!!! Não! Eu me envergonho! Eu me envergonho muito! Mas você não! Com você
está tudo certo, não é? Tu-do cer-to! Com você essas coisas não vão acontecer,
ah, não! Nunca! A sua mãe, ela é burra mesmo!

30
Resmunga sozinha.
...falar assim da mãe... Da mãe!... E o jeito que ela me deu o dinheiro, com
desprezo!...
Jéssica saiu totalmente do campo de visão dela. Maria guarda o dinheiro na
roupa.

CENA 4
Na casa do Pastor Otávio. Ele chega de carro, logo depois do culto. Sai do carro
com os bolsos cheios de dinheiro, e todo suado, com os olhos esbugalhados, mas
estranhamente calmo. Parece ter adquirido certa clareza da situação
repentinamente. Espalha o dinheiro em cima da mesa, e passa a organizar as
notas.
OLGA – Que se levantou de onde estava, e foi até ele.
O que é isso, Otávio?
OTÁVIO -
Como assim, "o que é isso"? Você não sabe o que é isso?
OLGA -
Sim, Otávio. Eu sei o que é isso. Mas...
OTÁVIO – Cortando.
Eu comprei um carro, Olga.
Dobra as notas e coloca os bolinhos na mesa. Pega a chave do carro no bolso. Dá
a Olga.
Tó. Pode ficar.
OLGA -
Para mim?
OTÁVIO -
Pode ser. É um presente. Um carro de presente.
OLGA – Na janela.
Que bom! Agora nós temos um carro. É possível nos locomovermos com mais
facilidade.

31
Otávio continua dobrando o dinheiro e colocando em cima da mesa.
OTÁVIO -
Sim. Nos locomoveremos.
Pega uma nota. Olha a nota contra a luz. Analisa a nota, depois rasga e joga
fora. Volta a dobrar as notas e às vezes rasga algumas.
OLGA – Ainda olhando pela janela.
Nós vamos a um churrasco, Otávio. Eu conheci uma mulher... Ela passou aqui em
casa. Um pouco estranha, ela. Thereza. Ela disse que te conhece.
OTÁVIO -
Ah, sim, essa mulher... a Thereza. Ela esteve no... culto...
Acha outra nota "ruim" e rasga, joga fora.
OLGA -
Como assim, esteve no culto?...
Olga olha para trás e vê Otávio jogando a nota fora. Ela fica parada por um
instante. Não parece acreditar no que viu.
OTÁVIO -
Ela... Esteve no culto... Disse que queria conversar. Depois me perguntou umas
coisas. Ela me perguntou.
Ele ri.
...ela me perguntou o que eu achava de Deus!... O que ela esperava que eu fosse
responder?!... Que pergunta idiota!...
Ele analisa outra nota. Rasga. Olga irada.
OLGA – Pegando os pedaços da nota pelo chão.
MAS O QUE É ISSO??? VOCÊ ESTÁ LOUCO!!!
OTÁVIO – Sem entender
O quê?
OLGA – Juntando os pedaços.
O QUE É QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, OTÁVIO!!! FICOU MALUCO, TOTALMENTE LOUCO!!! VOCÊ
RASGOU UMA NOTA DE CINQUENTA REAIS!
OTÁVIO -

32
Ah, isso. É que não estava limpa.
OLGA -
"Não estava limpa"??? E desde quando precisa estar limpa, Otávio, DESDE QUANDO
PRECISA ESTAR LIMPA???!!!
OTÁVIO -
Eu achei desagradável. A nota estava suja, Olga. Tem outras aqui, não tem
problema!...
Mostra algumas notas a ela.
OLGA – Continua juntando as partes da nota.
Desagradável?? Desde quando você joga fora as notas sujas, Otávio? Isso não faz
o menor sentido!
OTÁVIO – Se descontrola de repente e sem transição.
FAZ SENTIDO! FAZ SENTIDO, OLGA!!! ESSAS NOTAS... TAMBÉM SÃO PARTE DAS NOSSAS
VIDAS!!! IMAGINA! EU VOU... EU SAIO DE CASA, POR EXEMPLO, SEM ME BARBEAR???
SAIO??? EU VOU PARA O CULTO DE BERMUDA, SUJO, SEM TOMAR BANHO, OLGA???
OLGA – Petrificada.
Não...
OTÁVIO -
NÃO!!! EU VOU LIMPO! EU ME LIMPO! POR QUÊ? QUE DIFERENÇA FAZ, OLGA??? NÃO FAZ
DIFERENÇA? É ISSO QUE VOCÊ ESTÁ DIZENDO? VOCÊ ACHA QUE EU DEVERIA SAIR PELA RUA
PELADO, SUJO, SEM TOMAR BANHO, FICAR POR AÍ FEITO UM MENDIGO, OLGA???
OLGA -
Não, Otávio, eu não disse isso...
OTÁVIO – Repentinamente calmo, volta a ficar irado no meio da fala.
Não, você não disse isso. É verdade. Mas você consegue ver a minha cara, Olga?
Consegue ver o meu corpo? VOCÊ ESTÁ ME VENDO, OLGA? ESTÁ VENDO ISSO AQUI QUE
ESTÁ NA SUA FRENTE??? ESTÁ? QUEM SOU EU, OLGA??? VOCÊ ME VÊ AQUI???
OLGA -
Claro, você é Otávio, meu marido...
OTÁVIO -

33
NÃO!!! EU NÃO SOU OTÁVIO, SEU MARIDO!!! EU SOU SEU MARIDO, SÓ ISSO!!! EU SOU
ESSA PESSOA AQUI, SOU SEU MARIDO, SOU O PASTOR, SOU O TERNO, A PELE DA CARA... É
ISSO QUE EU SOU, OLGA!!! EU NÃO SOU NADA ALÉM DISSO!!! EU NÃO SOU OTÁVIO!!! NÃO
SOU OTÁVIO!!! A PARTE DE DENTRO É OCA!!!
Sacode a Olga.
EU SOU ESSE TERNO, SOU ESSA CARA, SOU ESSA PELE DA MINHA MÃO, SOU ESSE CARRO,
ESSE DINHEIRO, EU SOU ESSA MESA, OLGA!!!
Empurra Olga, que se senta.
...MAS EU NÃO SOU OTÁVIO! ISSO EU NÃO SOU! OTÁVIO É SÓ UM NOME QUE SERVE PARA
QUE AS PESSOAS POSSAM ME CHAMAR. NÃO TEM NADA. NADA DENTRO DESSE NOME, NADA
DENTRO DE MIM, OLGA!!! VOCÊ PERCEBE??? NÃO TEM NADA!!! QUANDO EU NÃO FOR MAIS
ESSE TERNO, QUANDO EU NÃO FOR A FORMA DO MEU CABELO, O FATO DE EU TER UMA
MULHER, AS COISAS QUE EU FAÇO, QUANDO EU NÃO FOR MAIS NADA DISSO, NADA DESSA
MESQUINHARIA DA SOBREVIVÊNCIA NO MUNDO, QUANDO EU ESTIVER FORA DISSO É QUE EU
ESTAREI EM DEUS! Por enquanto eu sou só isso! SÓ ISSO, E POR ENQUANTO EU NÃO USO
NOTAS SUJAS!!!
Pausa. Pega algumas notas rasgadas.
AS NOTAS RASGADAS! ELAS ESTÃO EM DEUS! AS NOTAS RASGADAS ESTÃO EM DEUS, OLGA, O
ATO DE RASGAR A NOTA É O ATO QUE ME PÕE EM DEUS!!!
Otávio sai de casa, e fica do lado de fora, parado. Pausa. Olga volta para a
sala, limpa os pedaços de dinheiro e tenta juntá-los. Depois vai para a cozinha,
organiza a sala, etc. Ouvimos o solilóquio de Otávio do lado de fora da casa,
caminhando pelo meio das cadeiras do público.
OTÁVIO –
Talvez eu precise mesmo matar a velha. A essa altura, talvez seja o... O evento!
O fato! Talvez eu consiga mesmo, talvez eu consiga, através disso, a... A
unidade, não sei!!! Mas agora, eu acho que... acho que o Joelmir, infelizmente,
ele não vai poder... Não! Não, é claro que ele não pode saber, por enquanto!!!
Ele também, ele também precisa do tempo!... Também ele vai ter que ficar sabendo
só depois!... ...é, ele tem me apoiado em tudo, até quando eu... Até quando eu

34
mencionei... Isso!... Se bem que eu não mencionei exatamente esse fato.... De
qualquer maneira, ele não pode saber dessa parte, não agora, não enquanto
ainda... Não enquanto ainda é reversível! Ele só deve saber quando já for
irreversível! Talvez seja melhor... Essa velha filha da puta, essa Maria, ela
vai ter que... ser sacrificada, de alguma forma isso se tornou absolutamente
necessário. É uma velha maléfica, é só observar a maneira como ela se movimenta!
...e além do mais, não importa! É só o corpo interior! Não é nada, de alguma
forma a velha já cumpre a sua função no mundo, mesmo que esteja morta!... Não é
tanto!, não é um preço tão... Tão grande, para o começo!... Não é! É preciso
começar! É um impulso inicial, só isso. E se for preciso... Se for preciso
ser... vai ter que ser violento! Até assim! Até assim! Pausa. Esfrega os olhos,
o couro cabeludo. Meu Deus, meu Deus! Como eu estou pensando nisso, assim!...
Não, NÃO!!! É claro que é impossível! Impossível! Terrível! Não é um bom começo.
Talvez seja melhor não fazer nada! Pausa. Mas, não sei, não sei, essa ideia não
me sai da cabeça, não sai!... ...um começo ruim ainda é um começo! É melhor do
que não ter começo! Talvez um começo ruim, detestável, terrível, seja melhor do
que nada!... Não, é óbvio que é pior! É pior do que nada! É melhor não acontecer
nada. O Joelmir não entendeu direito. Ele acha que não vai acontecer nada. Ele
não percebe que as coisas vão acontecer! Ele não entendeu nada!... Senão, ele
não... Não ia falar daquele jeito... Não, não. O Joelmir também não sabe, ainda.
É, é melhor. É melhor que ele ainda não saiba.
Pausa. Ele passa a mão na cabeça, alisa os cabelos, organiza a camisa. Fica um
instante parado e sai caminhando de repente, rápida e decididamente. Fim do
primeiro ato.

Transição
Uma pregação do pastor Otávio.

Uma igreja. As pessoas estão sentadas na plateia, junto com o público. Se


ajeitam, conversam, etc. Entra pastor Otávio, de terno, pega o microfone, liga,

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se arruma. Aparência totalmente calma.
OTÁVIO -
Um, dois... Alô. Oi.
Pausa.
Boa noite a vocês, que estão aqui hoje, nessa data tão importante. Hoje eu
gostaria de falar com vocês sobre uma coisa diferente. Eu sempre falo para vocês
sobre os caminhos do senhor, sobre o caminho que está dentro de cada um de nós,
sobre a voz do senhor dentro do nosso peito, dentro da nossa mente. Eu falo
sempre sobre isso, sobre a vida de cada um de nós. Mas hoje eu queria. Hoje eu
queria falar sobre uma coisa um pouco diferente aqui. Eu queria falar sobre uma
coisa muito maior que isso, que não é só a voz do senhor dentro de cada um de
nós... Hoje eu queria falar sobre a guerra entre Deus e o mal, sobre essa
guerra, no mundo, sobre essa guerra na vida, no que a gente vê, no que a gente
ouve falar, nos acontecimentos que a gente lê nos jornais!... Porque se Deus
quer os nossos corações, se Ele quer a nossa fé, Ele quer também a fé de todos,
e Ele quer o bem de todos, e Ele quer o bem no mundo, e a guerra de Deus, a
guerra da fé de Deus é pelo mundo todo, e para que tudo e todos estejam em Deus,
na paz de Deus. Mas para essa paz poder vir, ainda será necessário que haja a
espada. Porque eu não vim trazer a paz, eu vim trazer a espada, disse Jesus! Eu
vim trazer a paz, mas a paz só existe pela espada, a paz que está aí, a paz do
mal, a paz da desgraça, a paz do demônio!, essa paz eu não quero, e é contra
essa paz eu levanto a minha espada, disse Jesus, contra essa paz eu levanto a
minha espada.
Pausa. Se acalma.
Nós estamos em uma era de sofrimento e dor. Sofrimento e dor. Vocês vão dizer,
"isso é muito ruim, pastor!" "Como isso me faz sofrer!" "Eu fico desanimado,
pastor, quando eu escuto isso", vocês vão dizer! E vocês vão perguntar: "mas
pastor, o que eu faço, o que fazer para suportar a dor e o sofrimento?" Outros
vão dizer: "mas todas as eras foram de sofrimento, todas as eras foram de dor!"
E outros vão dizer: "não, pastor! Não é isso que eu vejo! Eu não vejo

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sofrimento! Eu não vejo dor!" E eu digo, esse que não vê, esse já está tomado!
Eu eu digo para vocês: estamos entrando em uma era de sofrimento e dor! E isso é
bom! Porque se nós sofremos, e se nós sentimos a dor, é porque nós não queremos
a paz que está aí! É porque o mal ainda não penetrou no nosso peito. Eu não vim
trazer a paz, meus irmãos! Eu não vim trazer a paz, essa paz! Eu vim trazer a
espada. "Mas, pastor, o sofrimento é ruim!" "Pastor, a dor é ruim!" É! A dor é
ruim, o sofrimento é ruim, mas sem elas não se pode alcançar a fé!!! Não se pode
alcançar nada! Vocês sabem onde está a fé? Vocês, que estão chegando na igreja
agora, que vieram hoje dar uma olhada; vocês, que estão começando a gostar da
igreja, e vocês, fiéis antigos, meus irmãos, vocês todos, vocês sabem onde está
a fé? Sabem?
Irônico.
"Sim pastor, a fé está aqui." "A fé está na igreja, a fé está com você, pastor,
a fé está no ministério! A fé está na bíblia, pastor!..."
Pausa.
Blá, blá, blá...
Pausa.
Eu respondo: não.
Pausa.
"Não? Não está aqui? A fé não está com você? A fé não está na igreja?..."
Pausa.
Não! Onde está a fé?
Pausa. Volta a falar de maneira totalmente corriqueira, agora como se estivesse
na sala da sua casa.
Eu vou contar uma coisa para vocês, aqui. Eu estou aqui falando com vocês hoje,
às
Olha o relógio
Nove e quinze da noite... Estou aqui, eu tenho algumas coisas para falar pra
vocês, e depois nós vamos orar juntos, e depois... Depois eu vou para a minha
casa, vou comer, com a minha mulher... Vou... dormir... É isso que eu vou fazer.

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Amanhã eu também tenho algumas coisas para fazer, eu vou no banco, amanhã, eu
vou ao supermercado, eu vou vir aqui, no ministério...
Fala para uma das pessoas sentadas na frente.
E vocês, o que vocês vão fazer? Vão sair daqui e ir para a casa com as suas
famílias... Vão encontrar os irmãos... Alguns de vocês têm uma festa de
aniversário de um amigo, alguns de vocês tem um filho pequeno para dar de comer,
outros tem uma avó velhinha para cuidar, vão sair daqui para fazer essas coisas!
Alguns vão dormir para acordar cedo e ir trabalhar, alguns vão trabalhar em uma
coisa que não gostam, vão ter que acordar cedo, não estão felizes com isso,
outros vão para a escola de manhã!... Algumas de vocês vão para as suas casas
encontrar os seus maridos... Não é? Não é?
Pausa. Assertivo.
Não! Não é! Não é isso que nós vamos fazer! Nós não vamos fazer nada disso,
hoje! Nós não vamos sair daqui, ir para as nossas casas, encontrar as pessoas
que nós conhecemos, comer, dormir, assistir televisão... Nós não vamos fazer
isso, não vamos! Sabem por que? Vocês sabem por que nós não vamos fazer nada
disso? Porque nós não sabemos! Porque nada disso está dado! Porque ao sair de
dentro dessa igreja, ao pisar na rua, pode ser que Deus me envie da sua grandeza
um raio de desgraça ou de milagre que transforme a minha vida completamente!
Pode ser que Deus faça chover copiosamente, e impeça que saiamos daqui hoje,
pode ser que Deus ponha no meu caminho uma pessoa, que me leve para outros
lugares, pode ser que Deus me faça esquecer o que eu ia fazer! Pode ser que Deus
ache que chegou a hora da minha mulher, pode ser que Deus ache... que chegou a
minha hora de ir!!! Pode ser. Pode ser. E pode ser que eu saia daqui, vá até a
minha casa, sente com a minha mulher, jante, deite na cama, e durma. Ah, não
pense que você sabe o que vai acontecer no próximo instante! Nas próximas horas,
nos próximos minutos! NOS PRÓXIMOS SEGUNDOS! A cada segundo que passa o
imprevisível divino está redefinindo tudo! Não esqueçamos disso! AGORA MESMO,
AGORA, NO PRÓXIMO INSTANTE, AGORA DE NOVO, E NO INSTANTE SEGUINTE, A CADA PASSO
O IMPREVISÍVEL SE ABRE SOBRE NÓS, E A CADA MOMENTO!, cada instante é uma nova

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confirmação do mundo que se dá, porque está nos desígnios de Deus que este mundo
continue sendo este mundo no instante seguinte ao que estamos! Porque está nos
desígnios de Deus que eu continue sendo eu mesmo no instante seguinte, está nos
desígnios de Deus, que continuemos aqui, orando, agora, e agora ainda, e no
instante seguinte a este!!! Está nos desígnios de Deus!
Pausa.
Agora pode perguntar! Você que está na escola, e tem aquele colega, aquele amigo
que ainda não encontrou com Deus! Você que tem na família aquela prima, que
ainda não conheceu Jesus; você que tem aquele amigo no trabalho, que ainda não
quis vir ao culto!, pergunta para ele: “o que garante que vocês continuarão
vivos?” “O que garante que agora, saindo da escola, você vai para a sua casa?
O que garante que a sua mãe ainda vai estar lá? O que garante que você vai vir
no trabalho de novo amanhã?” O que garante, meus amigos? A ciência? O hospital?
Os médicos? Hum? Porque se é para renegar o Senhor, renegar o poder do Senhor,
renegar a fé, então por que essas pessoas têm agendas, minha gente? Por quê? Por
que elas tem relógios? Porque elas marcam compromissos, minha gente? Se sem a
fé, se sem a fé em Deus, não existe futuro? Por que elas agem como crentes, se
elas dizem, levianamente, descuidadamente que “não acreditam em Deus”?,
desculpa Senhor! Não! Não existe futuro nenhum para quem não crê! Então, essas
pessoas, e é isso que eu quero que vocês percebam aqui hoje, e que vocês falem
para elas, meus irmãos! Essas pessoas, por mais que elas falem, que elas achem
que não estão em Deus, essas pessoas JÁ TÊM A FÉ! TODAS! Elas só não sabem no
quê. Elas não sabem no que elas têm fé, mas têm. Elas não sabem que quando elas
falam assim "ah, então tá, eu te encontro tal hora", ou "amanhã eu te ligo", ou
"mais tarde eu saio daqui", ou "hoje eu vou no cinema", quando elas dizem tudo
isso, elas estão sempre dizendo, ao mesmo tempo, na mesma frase, estão dizendo
sempre assim: "eu quero ir ao cinema, e eu tenho fé em Deus, de que eu chegarei
ao cinema, de que eu estarei vivo, de que o cinema estará lá." "Eu quero te
encontrar amanhã, e eu creio em Deus, que amanhã eu poderei te encontrar, você
poderá me encontrar!". Essas pessoas oram a Deus sem saber! Mas elas não têm

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consciência e merecem a nossa pena, a nossa ajuda. A fé é o que nos permite
pensar no futuro, é o que nos permite agir com previsibilidade, é o que nos
permite acreditar que as coisas vão continuar da maneira como elas estão.
Pausa.
Mas é a fé em Deus que nos permite saber, e isso os coitados, os fariseus,
ateus, hipócritas de todos os tipos!, os que não creem, os perdidos, isso eles
não sabem: é a fé em Deus que nos permite ver que a vida não precisam continuar
como está.
Novamente doce, esperançoso.
Porque em Deus não cabe só esse mundo, minha gente! Em Deus não cabe só o o
mundo que já está aí! Eu vim dividir, disse Jesus! Em Deus cabe o imprevisível!
É em nós que o imprevisível não cabe! Em nós! Mas quando nós percebermos que o
imprevisível está em Deus, que ele é maior do que o previsível, quando a gente
perceber que o que a gente imagina, o futuro que a gente imagina é só uma das
possibilidades, dentre todas as outras, e que as outras também estão em Deus, e
são tão possíveis quanto essa que nós estamos acostumados a ver, é nesse momento
que vai se abrir à nossa frente um mundo inteiro perpassado por Deus nos seus
mínimos detalhes, e é aí que nós vamos poder ver que não existe só um mundo
possível! O futuro não está dado. O FUTURO NÃO ESTÁ DADO!
Pausa. Depois de algum tempo ele retoma, mas agora começa a correr mais a fala,
ficar confuso.
Mas como colocar no nosso mundo os outros mundos possíveis para Deus? Como
inserir no mundo a palavra de Deus, para redirecionar os fatos para o nosso
caminho, junto com o Senhor? Jesus disse, eu não vim trazer a paz, eu vim trazer
a espada, que é a fé, que é a fé!!... Mas a espada, meus irmãos, meus amigos,
minhas irmãs, a espada precisa de um primeiro impulso, que inicia a luta!, esse
primeiro impulso, esse chute inicial, ele é totalmente necessário, para que a
batalha comece! Para que todos vocês, e eu, e todos nós, para que a gente se
junte de uma maneira mais definitiva, e para que quem esteja comigo não tenha
mais escolha, não tenha mais como voltar atrás!... Para que fique irreversível,

40
para que não tenha mais como voltar, e para que o futuro seja ampliado, para que
a janela se abra ao imprevisível divino, de uma vez por todas, porque não vai
ter como negar, não vai ter como negar esse fato, essa atitude, e... Nós
precisamos disso, só disso, de um princípio, um começo, um empurrãozinho! É, e
esse fato, esse primeiro passo, ele precisa ser dado... Ele precisa, sem muita
reflexão, não importa, praticamente não importa que passo é esse, não importa
muito, mas vocês vão entender que o melhor é...
Olga entra e fala algo para Jéssica. Ela se levanta, anda um pouco, senta
novamente, meio perdida. Burburinho. Otávio, que já estava se confundindo, se
desconcentra completamente.
Não importa muito o que for, porque é só um impulso, então, eu vim aqui hoje
para... É com Deus e com o Espírito Santo que eu, não importa o que vão dizer,
mas... ...eu vim aqui hoje, para anunciar, aqui, eu vim aqui para dizer, na
frente de todos vocês, e eu sei, eu tenho certeza, eu sei que vocês vão agora se
juntar a mim nesse caminho, nesse caminho único, reto!, eu vim aqui, porque o
impulso inicial, o primeiro passo, o fato... Esse impulso já foi dado!... Eu,
perante vocês, eu vim dizer que... que eu...
O rebuliço fica maior, as pessoas não prestam mais atenção nele.
...o que?... O que está acontecendo?...
Otávio febril, fica tonto, se apoia na mesa e cai, desmaiado, mas nem todo mundo
nota, por conta da confusão em torno de Jéssica. Burburinho no público. Para a
música, se tiver música. Todos se levantam. Otávio jogado na cadeira, não se
move. Os outros saem aos poucos. Confusão. Alguém vem acordar Otávio. Fim da
transição. Música.

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SEGUNDO ATO
Em um almoço na casa de Thereza e Carlos.

CENA ÚNICA
Na casa de Thereza. Olga está vendendo produtos da Avon. Sala de Thereza. Olga
sentada. Thereza chega com uma bandeja de café. Pausa.
THEREZA -
Por que você está fazendo isso, Olga.
OLGA -
O quê?
THEREZA – Apontando a sacola da Avon.
Isso.
OLGA -
Os produtos?
THEREZA -
Por que você está vendendo esses produtos.
OLGA -
Porque... Para ganhar algum dinheiro. Veja, esse creme facial contra as rugas.
THEREZA -
Deixa eu ver.
Olga entrega o creme.
Posso?
OLGA -
Pode. É uma amostra. A gente traz para deixar as clientes experimentarem.
Thereza começa a passar creme na cara.
...também faço isso para conversar um pouco com as pessoas, conhecer gente...
THEREZA -
Você usa esse creme, Olga?
OLGA -
Sim, eu... eu uso esse creme.

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Pausa.
THEREZA -
Eu estou triste, Olga. Estou triste.
OLGA -
Ah é?...
THEREZA -
Eu estou triste. Você está na minha casa. Na minha sala, Olga.
Bezuntando a cara.
Você está sentada na minha sala. E mente para mim?
Toda cheia de creme.
Você usa esse creme, Olga? VOCÊ USA?
OLGA – assustada
...não, eu não uso!, desculpa!...
THEREZA -
Ah, bom!...
Entra Carlos, marido de Thereza.
Oi, Carlos!
CARLOS -
Oi.
Ele passa e vai para o quarto.
THEREZA -
Esse creme é muito bom, Olga. Você devia usar!
OLGA -
Sim, eu gostaria de usar.
THEREZA -
Então tó.
Joga creme na mão de Olga.
Pode usar. Finge que fui eu.
OLGA -
Mas é para os clientes...

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THEREZA -
Finge que fui eu Olga! Você diz isso para o seu chefe!
OLGA -
Mas depois eu vou ter que... Vou precisar de mais uma amostra grátis. Eu vou ter
que comprar outro desses, Thereza...
THEREZA – enchendo a mão de Olga de creme.
Tudo bem. Tudo bem! Passa na cara! Passa!
Olga passa na cara.
Olga. Por que você vende isso?
OLGA -
Porque... porque os produtos são muito bons. É um jeito de ganhar a vida. E de
conhecer as pessoas. O Otávio até um tempo atrás não conseguia pagar as contas
todas. Mas mesmo agora que ele já pode eu continuo vendendo os produtos. É um
passatempo!...
THEREZA -
Ah, que bom!
OLGA -
Sim. Os produtos são bons. Eu conheço pessoas interessantes...
As duas estão passando o creme.
THEREZA -
Que bom. Mas o Otávio...
Joga um tanto de creme no chão.
Ai, desculpa...
Ela limpa com o pé.
OLGA -
Não, tudo bem...
THEREZA -
Sim. Então, o Otávio, ele... Como vocês estão, Olga?...
OLGA – Enquanto Thereza joga um monte de creme no chão, até esvaziar.
Ah, sim, o Otávio ...é pastor...

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THEREZA -
...desculpa, Olga.
Ela limpa com o pé.
Eu sei, eu sei que ele é pastor, mas... Está tudo bem com ele?...
OLGA -
Sim, ele... está bem, ele
Thereza joga a bisnaga de creme pela janela.
Bem, ultimamente ele está um pouco... Enfim. Um pouco confuso, mas acho que
vai...
THEREZA -
Desculpa, Olga.
OLGA -
Sim, tudo bem... Eu acho que essas fases, esses momentos mais confusos, fazem
parte, sabe?... Acho que é assim mesmo...
Pausa.
THEREZA -
Olga, acabou a amostra...
Pausa. Se olham.
...eu gostaria de mostrar ao Carlos. Para poder comprar, ele vai querer ver...
OLGA -
Ao seu marido?
THEREZA -
Sim. Ele precisa saber. É ele que manda na questão do dinheiro, sabe?...
OLGA -
Ah, sim, eu sei como é... Mas isso é muito ruim!
THEREZA -
Sim. É ruim. O dinheiro é dele, Olga.
OLGA -
E você não...
THEREZA -

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Não.
OLGA -
Nem um extra...
THEREZA -
Nada.
OLGA -
E por que você não faz que nem eu?....
THEREZA -
Não. Eu não faço.
OLGA -
É muito ruim ficar dependendo...
THEREZA -
É ruim.
OLGA -
Não ter o próprio dinheiro!...
Thereza pega um creme na bolsa de Olga.
THEREZA -
É muito ruim. Eu não tenho o meu próprio dinheiro, Olga.
OLGA -
Ah, mas eu tenho. Faço questão. Mesmo agora que o Otávio está bem, você sabe...
THEREZA -
Sim, sim. Eu entendo, Olga. Eu prefiro não ter dinheiro.
Ela abre o pote de creme.
Este creme parece bom, Olga.
OLGA -
Sim, ele é ótimo.
THEREZA -
Um ótimo creme.
OLGA -
Ótimo. Você vai?...

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THEREZA -
Sim.
Ela enfia a mão no creme, cheira, e joga um pouco fora.
Ai. Derrubei um pouco, Olga.
Olga tenta pegar o creme da mão da outra. Entra Carlos.
CARLOS – Entrando.
...Thereza, o que você fez com o meu...
Vendo a cena.
O que é isso, Thereza?
THEREZA -
São os cremes, veja!
CARLOS -
Você está pensando em comprar cremes, Thereza?
THEREZA -
Sim, Carlos. Eu estou pensando sobre isso. Esta mulher se chama Olga.
CARLOS -
Ela é muito bonita. Você usa os cremes, Olga?
OLGA -
Sim, eu uso sempre.
CARLOS -
Isso é bom. Ela usa os cremes, Thereza.
THEREZA -
É mentira dela.
CARLOS -
Thereza!... Veja a pele dela. Eu gostaria de ter uma mulher com a pele assim.
Ele vai até Olga. Encosta a mão no seu rosto.
Posso tocar?
OLGA -
Sim.
CARLOS -

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É macio. Veja Thereza, ela tem um rosto macio.
THEREZA -
É verdade, Carlos. Ela parece macia.
CARLOS -
Eu vou comprar os cremes. Deixa eu ver.
Ele pega o pote que Thereza tinha aberto. Abre.
Mas esse pote está aberto, Olga! Que coisa nojenta!
THEREZA -
É um creme para os olhos.
CARLOS -
Para os olhos? E o que você enfiou aqui, Olga?
OLGA -
Nada. Quem abriu foi a Thereza...
THEREZA -
Não, não, eu...
CARLOS -
Por que você abriu isso? Eu achei QUE A GENTE NÃO IA TER MAIS ESSE TIPO DE
PROBLEMA!!! POR QUE VOCÊ ABRIU???
OLGA – Tentando segurar o Carlos
Ah, não, está tudo bem!!!
CARLOS – Se soltando.
Não Olga. Não está tudo bem! Ela sempre faz isso! Não se preocupe. Eu vou
ensinar para ela a NÃO MEXER NAS COISAS DOS OUTROS!!!
Empurra Thereza, que cai no chão, desesperada.
THEREZA -
Desculpa! Desculpa!
Carlos quase dá um soco na cara dela, mas desiste.
CARLOS – Consigo mesmo.
Tá bom. Tá bom. Eu preciso entender. Entender.
Devolve o creme para Olga.

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Desculpa, Olga. Estragou?
OLGA -
Não!...
Pausa.
...é... na verdade...
CARLOS -
Estragou, né? ESTRAGOU O CREME!!! Ela abriu, agora não dá mais para vender, né?
NÃO É???
Vai até Thereza e lhe dá um tapa na cara.
Não é isso, Olga? Estragou o creme! ESTRAGOU O CREME, THEREZA!! AH, THEREZA!!!
THEREZA – Gritando e chorando
DESCULPA, DESCULPA!!!
OLGA -
NÃO, NÃO!!! Não estragou nada. Está quase novo... quase... Não tem problema,
Carlos! Não precisa ficar assim...
CARLOS -
Não estragou? Não estragou mesmo?
THEREZA -
Tá vendo! Não estragou...
OLGA – repensando.
É... na verdade...
CARLOS -
Na verdade, o quê? Pode falar, Olga! Na verdade...
OLGA –
...é que agora está aberto...
CARLOS – Partindo pra cima de Thereza, dá uns chutes nela, mais alguns tapas.
Thereza se defende.
ESTÁ ABERTO! VOCÊ ABRIU, THEREZA, AGORA NÃO TEM MAIS VOLTA, ESTÁ ABERTO!! ESTÁ
ABERTO, ESTRAGOU! ESTRAGOU!!
THEREZA -

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Desculpa! Desculpa! Foi sem querer!!!
OLGA -
Para! Para! Está tudo bem. Não tem problemas...
CARLOS -
Está tudo bem? Você tem certeza, Olga?
OLGA – Pausa. Pensa um pouco.
Bom... é que, no fundo...
CARLOS – Partindo pra cima de Thereza, agarra o seu braço e a arrasta pelo chão
até a Olga.
THEREZA, VEM AQUI! VEM AQUI VER O QUE VOCÊ FEZ!!!
OLGA -
Não! Não! Para! Está tudo bem.
CARLOS – Sem transição.
Bonita pele, Olga. Fique aqui para beber conosco.
Ele vai até o armário e pega uma garrafa de cachaça.
Agora nós vamos ter que beber juntos!
Thereza se levanta e senta ao lado de Carlos.
Venha, Thereza. Vamos beber juntos.
Carlos arruma o cabelo de Thereza.
Desculpa meu amor. Desculpa. Eu te bati agora. Foi errado.
THEREZA -
Sim. Eu sei.
CARLOS -
Foi errado. Você me desculpa? É que, você sabe...
THEREZA -
Eu sei...
Chora.
Eu sei. Doeu aqui.
Ela aponta o rosto. Ele beija o rosto no lugar onde ela aponta. Ela aponta
outros lugares, ele beija os lugares, fazem esse jogo até se agarrarem. Olga

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observa. Ela se levanta para sair. Os dois reparam e se contém.
CARLOS -
Desculpa, Olga.
THEREZA -
Ah, desculpa!...
OLGA -
Imagina, não tem problema...
CARLOS – Pegando uma cachaça, entregando copos.
TEM PROBLEMA, SIM!!! TEM PROBLEMA! PEGUE UM COPO, OLGA! AGORA NÓS VAMOS BEBER! A
MINHA MULHER TE OFENDEU. EU ME SINTO NA OBRIGAÇÃO!...
Abre a cachaça. Enche um copo para Olga, outro para ele, outro para Thereza.
Totalmente descontrolado.
TOMEM!
Ele vira o copo. Thereza também. Olga bebe um gole.
MAS TEM QUE VIRAR! VIRA DE UMA VEZ!!! NÃO PODE DEIXAR NADA!
Olga, encabulada, vira o copo e tosse um pouco.
AHAHAHAHAHA! Isso é bom. É CERTO! O CERTO É BEBER ASSIM, OLGA!
Batem na porta. Carlos vai abrir. É Otávio, está encharcado, e com as mãos sujas
de terra. Pausa.
THEREZA – Se levantando, meio estabanada, para explicar para Carlos.
Ah, oi Otávio, nós estávamos te esperando! Veja, Carlos, esse é o Otávio, o
marido da Olga aqui, ele é o pastor, e!...
Otávio e Carlos se cumprimentam.
CARLOS -
Entre, Otávio.
OLGA -
Oi, meu amor. Tudo bem?
Otávio parado no meio da sala.
CARLOS – Vai até ele.
Toma alguma coisa, Otávio! Bebe!

51
Ele serve um copo de cachaça.
Toma, Otávio. É melhor.
THEREZA -
Sim, bebe um pouco... Para relaxar!
OLGA -
Eu também estou bebendo, Otávio!
Otávio pega o copo, toma a cachaça toda de uma vez.
CARLOS -
Isso! AÍ SIM! ESSE CARA SIM! ISSO É O CERTO! GOSTEI! GOSTEI!
Serve mais uma cachaça.
Isso, muito bom. Sabe, outro dia eu estava indo para o interior, estava
acompanhando o pessoal lá da empresa, e eu fiquei pensando justamente isso:
Otávio bebe a cachaça inteira de novo, e lhe entrega o copo.
como é bonito quando essas grandes, essas imensas quantidades de espaço são
tratados de forma unitária! Eu estava no caminhão, na estrada, no banco do
passageiro, e eu via a estrada, o asfalto, a estrada vazia, e dos dois lados da
estrada era tudo cana. Serve mais cachaça. Tudo. Era cana, cana, até o horizonte
tudo cana! É uma coisa extraordinária, isso. E também é maravilhoso pensar que
aquilo tudo pertence a uma pessoa só. Eu cheguei até a fazenda, e aí, fiquei
feliz. Sabe? É que lá na fazenda também, é tudo meu! Tudo meu! É muito bom isso.
Eu desci do caminhão e pensei, "estou pisando no meu chão. Isso aqui que eu
estou pisando, é meu". Aquilo é meu, Otávio!
Otávio bebe o copo de uma vez só, de novo.
Isso aí, é meu. Está no seu estômago. Meu.
Abraça Otávio. Ele se desvencilha do outro sutilmente, estica o copo de novo, e
Carlos enche o copo.
...já está de fogo?!... Mas é muito bom isso, esses terrenos gigantescos,
imensos, e pertence a uma pessoa! Imagina, imagina, a cana toda, tudo da pessoa!
TU-DO!...
Batem na porta de novo. Otávio se joga no sofá, com a cachaça na mão. Thereza

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vai até a porta, e abre. Jéssica está fechando o guarda-chuva. Ela está com o
seu melhor vestido, preto, sapatos e meia calça pretos, de luto, mas ao mesmo
tempo como se estivesse vestida para um baile, cabelo arrumado, "umidificado",
etc. Está visivelmente arrumada, talvez exageradamente para a ocasião, mas
também mais bonita do que antes.
THEREZA -
Ai, meu Deus, se molhou?...
Otávio vê Jéssica. Bebe de novo. Olga vai até ele.
OLGA -
Está tudo bem?...
OTÁVIO -
Sim!
JÉSSICA -
...eu me molhei... Um pouco, só...
CARLOS -
Então você é a Jéssica?
JÉSSICA -
Sim... Prazer, você é...
CARLOS -
Carlos, prazer.
THEREZA -
Este é o meu marido, Jéssica. Eu falei de você para ele.
CARLOS -
Muito!
JÉSSICA -
Ah...
Thereza fecha a porta atrás de Jéssica.
Ah, vocês estão aqui? Oi!
Otávio acena do sofá, com desânimo.
OLGA -

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Olá, Jéssica!
JÉSSICA -
Oi, pastor...
Pausa.
THEREZA -
Bom, esse almoço, então é para a gente...
CARLOS -
É um convite nosso. Vamos comer alguma coisa. Eu pensei em fazer um churrasco...
THEREZA -
..."pensou em fazer"?...
CARLOS -
É, eu pensei em fazer um churrasco, foi isso que aconteceu, eu pensei sobre
isso...
THEREZA -
Mas, as pessoas já estão aqui, Carlos, o que essas pessoas vão comer?
CARLOS -
Eu sei lá! Não tenho a menor ideia! Não me responsabilize por isso!
Ele vai até a geladeira.
THEREZA -
“não me responsabilize"?...
resmunga
Como assim, as pessoas vieram comer! Vieram até aqui, tem que comer!...
OLGA -
...Jéssica, como você está? Está melhor?... É difícil, né?...
JÉSSICA -
Sim, sim...
Olhando para Otávio.
Eu sofri muito. Estou sofrendo. Muito.
Otávio se levanta.
CARLOS – tirando carnes da geladeira.

54
Eu comprei um monte de carnes. Várias partes do boi.
Vai mostrando no seu corpo o que corresponderia às partes da carne, rindo um
pouco de si mesmo, se achando meio engraçado. Otávio serve mais um copo de
cachaça.
Por exemplo, esta parte é a costela. Podemos fazer essa parte, colocar no fogo,
para comer. Tem também a picanha, que é como... é mais ou menos essa parte
aqui... Assim. É mais macia. Uma parte macia do boi. E eu comprei um cupim. Um
pedaço bom de cupim. É mais gorduroso... Ele fica aqui, assim... Bom, é uma
parte do boi que a gente não tem!... Um calombo nas costas... Como se fosse uma
corcunda, assim... É muito bom. Está muito bonito o cupim...
Otávio volta a se sentar. Fica algum tempo observando.
JÉSSICA -
...eu não estou com muita fome...
CARLOS -
Viu, Thereza! A gente ia ter gastado um monte de carne à toa! EU NÃO SUPORTO
DESPERDÍCIO! NÃO SUPORTO!
THEREZA -
Ah, mas a Jéssica, coitada, Carlos, deixa de ser assim tão insensível...
Desculpa, Jéssica, mas é lógico que ela não ia ter fome, olha a situação dela...
Eu, por exemplo, eu estou com muita fome!...
CARLOS -
Bom, então, não sei. Nós podemos assar um pedaço de boi, algum pedaço desses...
OLGA -
Sim, eu aceitaria também.
THEREZA -
Viu?
CARLOS -
Você parou de beber, Olga?
OLGA -
É, eu...

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CARLOS -
Volte a beber.
Ele coloca mais cachaça para ela.
ISSO! MUITO BOM! MUITO BOM! Vamos ligar o forno. Vou temperar a carne. Vou
temperar esse cupim. Vamos ouvir música! Vamos cantar, dançar, ouvir música!
Agora! A-GO-RA!!!
Ele coloca uma música. Pega Olga para dançar, depois a deixa e vai temperar um
pedaço de carne. Thereza se aproxima de Jéssica.
OLGA – Vai até Otávio.
Ai, meu Deus. Otávio, eu não estou muito bem...
OTÁVIO -
Tente não pensar nisso!
OLGA -
Sim, eu sei... Mas... Dessa vez, é sério...
OTÁVIO -
...mas está tudo bem, Olga! Fique tranquila!
THEREZA – Jéssica tenta se distanciar dela. Olga chega ao lado de Thereza ao
mesmo tempo
Fica à vontade, viu Jéssica... A gente está muito feliz de você ter vindo...
Como você está? Está bem já, né? Está tudo bem! Está melhor, né?
Thereza passa a conversar com a Olga.
Está melhor, já. Essas coisas, né, são muito difíceis... Mas passa, acaba
passando, não tem que ficar carregando a desgraça por aí com você, senão a
pessoa...
OLGA -
É, senão é horrível... A pessoa fica pesada, com a energia ruim...
Jéssica se senta ao lado de Otávio.
JÉSSICA – Disfarçando um pouco.
Pastor... ...quem são essas pessoas?....
OTÁVIO -

56
...não sei direito...
JÉSSICA -
Aquela moça, ela...
OTÁVIO -
Sim, ela é bastante estranha. Eu sei.
Pausa longa. Ouvem música. Carlos dança e tempera a carne. Os outros ficam
quietos por algum tempo. Thereza dança um pouquinho no lugar.
JÉSSICA -
...eu. Eu tenho pensado muito, no que o senhor disse...
OTÁVIO – tomando o último gole de cachaça. Visivelmente bêbado.
Hum?
JÉSSICA -
...sobre o corpo interior... Eu também acho, acho que ele deve... Ele precisa
morrer, de alguma forma...
OTÁVIO -
Ã-hã...
JÉSSICA -
...eu entendo isso, mas... Sabe, pastor? Isso às vezes dói muito... Dói. Por
exemplo, eu agora, o senhor sabe...
Pausa. Se olham.
O senhor sabe, não é, eu... Eu perdi a minha mãe... Isso foi, de alguma forma
foi bastante triste, sabe? É. O senhor conheceu, ela era uma mulher... Enfim,
não é bem por ela, eu não sei direito...
OTÁVIO -
Sim, sim.
JÉSSICA -
...mas me faz falta! A última coisa que ela me disse, quando eu saí de casa pela
última vez, sabe o que foi?...
OTÁVIO – Se levanta para pegar outro copo de pinga.
...não...

57
JÉSSICA -
Ela me disse... que eu era muito egoísta!... Foi o que ela disse, a última
coisa.
Pausa.
...mas eu não era, não... Egoísta. Eu só... Só não queria mais... ficar tão...
Ela se segura para não chorar.
...eu sei, não parece... Não parece legal, mas... Não é legal, eu sei, mas... A
gente sente falta! Porque eu sei que era por amor! Mesmo quando ela era mais...
difícil...
Chora um pouquinho, muito baixo. Pastor Otávio observa.
...bom, mas você sabe disso, né? Você sabe, mais que eu até... Ai, ai. A gente
acostuma, de qualquer jeito, né. A gente acostuma com a vida...
OTÁVIO -
...eu sei, eu sei...
Jéssica levanta, vai até a janela, olha a vista. Otávio toma a outra talagada de
pinga, deita no sofá. Thereza dança um pouco, a música acaba. Pausa. De repente,
Jéssica se vira, muito empolgada.
JÉSSICA – ao Otávio.
Ah, eu esqueci de falar! Eu fui selecionada na minha entrevista! Fui promovida!
Hoje foi o meu primeiro dia no novo cargo, lá na empresa! Eles me mostraram a
mesa onde eu vou ficar, e tudo!
Todos se aproximam, fora Otávio.
TODOS – As vozes se sobrepõem, etc.
Viva! Viva, que coisa boa! É maravilhoso! Já começou então? Parabéns! Muito boa
a notícia! Ficamos todos felizes! [etc]
A comemoração se dispersa rapidamente.
CARLOS – Colocando a carne no fogo.
Que coisa boa. Essas coisas são boas. São prazeres que nem todos têm. Comer uma
carne como essa. Conseguir um emprego, ter uma mulher assim, ou assim... São
prazeres superiores... O mal é sempre menor, sempre fica menor. O mal fica

58
menor, na vida, as coisas boas acontecem, e entram em uma espiral de felicidade,
e é inevitável I-NE-VI-TÁ-VEL!
Fecha o forno.
Agora é só esperar.
Pausa longa. Acaba a música. Silêncio. Pausa longa. Jéssica, Olga, Thereza e
Carlos sentam em volta da mesa, que está posta. Pausa longa, todos sentados. Há
um lugar vazio, de Otávio, que continua sentado no sofá. Pausa. Depois de algum
tempo, Otávio se levanta, para pegar mais cachaça, e volta a sentar no sofá. Ele
observa os outros, e bebe. Toca o seu celular. Otávio atende. Os outros seguem
mastigando, e observam Otávio.
OTÁVIO – Repentinamente calmo.
Alô?
Pausa.
...quem é?...
Pausa. Sem jeito.
Ah, nossa, não reconheci!...
Pausa. Muito preocupado.
Desculpa... É por causa do barulho...
Pausa.
...estou... na casa de uns... amigos...
Pausa.
Ah, é?...
Pausa.
Como assim?
Pausa.
O quê?...
Pausa. Totalmente branco, paralisado.
Entendi...
Pausa.
...mas foi por causa de...

59
Pausa. Ele fica cada vez mais arrasado. Olha para Thereza. Ela fica impassível.
...como assim "não foi por causa de nada"...
Pausa. Meio descontrolado
quem te... contou?... Quem?
Pausa. Meio irado. Se contém.
...não importa? não foi por...
Pausa. Paralisado.
...entendo...
Pausa.
O quê? Mas... não pode ser...
Pausa.
Não posso mais?...
Pausa.
...mas como assim, como...
Pausa.
...não, não, como assim, espera!...
Pausa.
Alô? ALÔ?
Pausa. Olha o aparelho. Guarda o celular de volta no bolso. Os outros disfarçam.
Otávio em choque absoluto. Pausa longa. Os outros comem como se não tivesse
acontecido nada.
CARLOS – À Thereza, sussurra.
...devia ser o Joelmir...
Thereza faz que sim, mas ao mesmo tempo sugere com gestos que Carlos fique
quieto. Otávio totalmente confuso.
OTÁVIO – procurando entender, ao Carlos.
...mas você... Conhece o...
Carlos faz um gesto com a mão e com o rosto, como que dizendo: "isso não é
importante, deixa pra lá!...", e volta a comer. Otávio faz menção de falar, mas
Thereza corta.

60
THEREZA -
Eu vou colocar uma música.
OLGA -
Isso, boa ideia...
Ela coloca uma música, em volume baixo. Volta à mesa. Pausa. Otávio caminha até
o meio da sala. Pausa.
OTÁVIO -
...o... O Joelmir acabou de me ligar... Ele me ligou, e... Eu não sou mais
pastor...
JÉSSICA -
O quê?
Pausa.
THEREZA –
...mas conta, Jéssica, o que foi que você sentiu com a promoção? Fala para a
gente...
Jéssica olhando para Otávio, faz menção de responder.
OLGA -
Ah, eu sei como é! No começo a gente pena, a gente acha que está trabalhando à
toa, que não vai ganhar nada, aí de repente, um belo dia!... Eu me lembro da
sensação... É estranho, não é?...
JÉSSICA – Ainda ligada no pastor.
Como assim, "estranho"?
OLGA – Percebendo a estranheza do que ela mesma disse.
Ah, é uma mudança tão rápida, tão de repente...
JÉSSICA -
Ah, é, isso é...
THEREZA -
Você ficou feliz com isso, Jéssica? Está feliz então, não é? Olha, ela ficou
assim, com essa carinha... Que bom! Isso é o que importa!
OLGA -

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É!... Que bom...
JÉSSICA -
É! Eu... estou muito feliz, sim, na verdade! Eu acho que isso foi... Sei lá, né,
a gente fica às vezes meio descrente mesmo, meio achando tudo difícil, sei lá...
Aí vem uma notícia dessas, e a gente fica feliz, a gente pensa, "é, vale a pena,
né? A gente se esforça tanto, mas graças a Deus vale a pena!" Graças a Deus, a
gente um belo dia tem a confirmação de que não foi à toa!
CARLOS -
Ah, sim! Com certeza!... Eu mesmo. Eu, por exemplo, quando vou à fazenda, eu
sempre penso nisso. Eu penso em Deus, eu penso na natureza, na mãe natureza. Eu
amo a natureza, sabe? Eu olho as plantas, os bichos, até mesmo os insetos! Tudo
faz parte de uma coisa tão maior, que é a vida! A vida! E a gente é tão pequeno,
na verdade, tão pequeno! A gente vai e mete a inchada na terra, mata os bichos,
a gente faz isso, né? Pisa nos animais. As estradas, faz estrada, faz tudo. Mas
no fundo a gente é pequeno...
Pausa. Ele decide mudar de assunto e falar sobre a Jéssica.
...é, muito pequeno, e aí de repente chega uma outra pessoa e fala: "você é
importante!" "Eu quero você mais perto de mim! Vou colocar você nessa mesa aqui,
perto da minha! Você é boa no que você faz! Você pode ganhar um pouco mais de
dinheiro aqui, porque você é reconhecida! Você tem o reconhecimento pelo que
você fez! Pelo esforço!..." Não é? Essa pessoa diz isso para a gente, não é,
Jéssica, e a gente fica feliz. A gente percebe que não foi em vão...
OLGA -
Nada é em vão!... Nada é em vão!...
Otávio caminha até a mesa, se joga na cadeira. Os outros procuram ignorá-lo.
THEREZA -
Nada é em vão, é! É isso mesmo! Eu gosto de pensar assim. Nada é em vão, a gente
faz parte de uma coisa maior, não é? Não importa muito o que esteja acontecendo,
mas a gente se sente parte disso. Eu por exemplo, sou parte disso. Você é parte
disso! Parte disso, desse almoço por exemplo, sei lá! Não é? É. É, sim.

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JÉSSICA -
...nada é em vão... Eu... Fiquei muito feliz. E as dificuldades da vida, a gente
esquece...
CARLOS -
Ah, mas não precisa falar assim, minha querida. As coisas mais difíceis também
fazem parte da vida, sem as coisas difíceis, a gente não ia nem perceber quando
os momentos mais tranquilos, mais gostosos, chegassem!... A gente não ia nem
perceber!...
Ele se levanta para pegar a carne.
OLGA -
É verdade, Jéssica. Até as dificuldades, até elas...
THEREZA -
É melhor pensar assim.
JÉSSICA -
Sim, é melhor pensar assim...
Carlos chega com a carne, visivelmente crua. Ninguém diz nada.
CARLOS – cortando a carne.
Eu estou muito feliz de receber vocês aqui, na minha casa. Muito feliz mesmo.
Como é bom dizer isso, como é bom poder receber as pessoas na minha! É muito
bom. Vocês entraram, estão se sentindo bem, aconchegados, neste espaço aqui, que
é meu, essa casa, essa cadeira, é muito bom ver como vocês entram aqui e ficam
por aqui na minha casa, se sentindo bem, no meu espaço...
Ele começa a cortar a carne.
Espero que vocês gostem da carne. Eu preparei para vocês, sabe, eu...
Serve as pessoas com os pedaços de carne.
Nós precisamos fazer isso mais vezes. Principalmente a Jéssica! Nós ficamos
muito felizes que você veio... Nós ficamos sabendo, enfim, e achamos que você
não viria, mas você foi uma lutadora! Você veio, Jéssica, veio nos visitar, e
foi promovida, ainda por cima! É muito bom.
THEREZA -

63
E está na nossa casa!... E está conhecendo pessoas, ampliando horizontes!
JÉSSICA -
Ah, sim, muito!
Carlos acaba de servi-los. Pausa. Todos olham os seus pratos. A carne está crua.
JÉSSICA -
Sim, ajudou muito. Muito obrigado por me receberem aqui. Eu fico muito feliz de
estar aqui.
Todos se olham. Jéssica corta o bife. Finge não perceber que está cru. Ela
coloca o bife na boca, e mastiga. Otávio observa. Os outros começam a cortar
também. Jéssica engole com dificuldade.
Hum, está...
CARLOS -
Sim, sim, eu sei... Está muito bom!
OLGA -
A cara está ótima...
Olga coloca um pedaço na boca, depois Thereza, e Jéssica coloca mais um pedaço,
e por último Carlos. Todos mastigam.
OTÁVIO – Se descontrola. Bate com as mãos na mesa
AAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHH!!!!
Ele grita, bate no próprio rosto, se levanta, corre em volta da mesa, bate no
próprio rosto, etc, etc. Pausa longa. Tensão. Otávio no canto da sala.
THEREZA –
...bom, então, outro dia um rapaz, lá no curso de filosofias, esse rapaz, ele é
bem esperto, assim, ele estava comentando sobre a tribo indígena dos guaranis,
sabe, que fica dentro de São Paulo... E esses guaranis, é impressionante, eles
têm uma capacidade muito louca, muito grande mesmo, de se adaptar, sabe?, de se
defender. Eles são um povo pacífico! Eles não lutam contra ninguém, e o rapaz
estava explicando como eles conseguiram, por causa disso, pelo fato de eles
serem defensivos, pacíficos, como eles conseguiram por isso não serem totalmente
mortos, ao longo dos séculos! Eles sobreviveram, a cultura deles sobreviveu!

64
Pausa.
E é uma cultura linda cheia de detalhes, de loucuras... É muito bonito.
Pausa longa. Ela enfia mais um pedaço de carne crua na boca.
E a música! A música deles, é uma coisa... Eles tocam violino, um tipo de
violino, é incrível. Bom, e o rapaz, ele tem esse trabalho de levar os dentistas
lá na aldeia... Porque os índios não escovam os dentes, é um coisa, isso... E
eles estão levando os dentistas, e tal... E é aquela situação, uma coisa
horrível, não tem o que comer, não tem muito nada, eles vivem de uns lanches da
prefeitura, e tal. Mas, ué, se você for ver, eles estão lá, é uma resistência
tão grande, tão, de uma cultura, sabe, uma cultura milenar, mesmo!... Deve ser
uma coisa!...
OTÁVIO – Direto e com clareza.
Vocês precisam saber.
Pausa.
Fui eu.
Pausa.
Vocês precisam saber disso! Doa a quem doer! FUI EU! EU! FUI EU QUE MATEI A
SENHORA MARIA, A MÃE DE JÉSSICA, UMA DAS MULHERES MAIS... FUI EU QUE MATEI A
MARIA! EU QUE MATEI!
Pausa. Silêncio. Jéssica larga o prato, com um pedaço de carne ainda na boca.
Todos quietos. Pausa. Jéssica volta a mastigar. Engole. Constrangimento geral.
FUI EU!!! FUI EU!!!
Continuam quietos. Ele joga o seu bife no chão, começa a bater em si mesmo, Olga
corre para pegar o bife, Carlos segura Otávio, procura impedi-lo de se mover
abraçando-o. Os outros continuam quietos. Thereza observa a reação de Jéssica.
Otávio tenta se mover, e se acalma aos poucos, por falta de forças e pela
bebedeira. Pausa.
JÉSSICA – Cortando mais um pedaço de carne.
...está louco. Eu não preciso disso, Otávio.
OTÁVIO -

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O quê? Você não precisa disso? Mas, Jéssica, eu...
OLGA – levantando e batendo a mão na mesa.
ELA NÃO PRECISA DISSO OTÁVIO! VOCÊ NÃO PERCEBE! INSENSÍVEL! COVARDE! FICA QUIETO
AGORA! FICA QUIETO! EU AGUENTEI ESSE TEMPO TODO! AGUENTEI O SEU EGOÍSMO, OTÁVIO!
MAS AGORA CHEGA! VOCÊ NÃO ENXERGA? NÃO VÊ QUE O QUE MENOS PRECISAMOS AQUI É
DISSO??? NÃO PRECISAMOS DE VOCÊ, OTÁVIO!!!! EGOÍSTA! O JOELMIR ESTÁ
CERTÍSSIMO!!!
Otávio estupefato.
ESTÁ ASSUSTADO! NÃO ESPERAVA ISSO DE MIM??? EGOÍSTA! FICA QUIETO, AGORA! AGORA
GUARDA PARA VOCÊ O QUE VOCÊ QUER DIZER, OTÁVIO! ENGULA! ENGULA! EU NÃO PRECISO
MAIS DE VOCÊ, NÓS NÃO PRECISAMOS MAIS!!!
Pausa.
JÉSSICA – Pensativa.
...eu sei que não foi você, pastor.
OTÁVIO -
EU NÃO SOU PASTOR! NÃO SOU MAIS! FUI EXPULSO! EU FUI EXPULSO, PORQUE EU MATEI A
SUA MÃE! EU SEI QUE FOI POR ISSO!!! FUI EU! VOCÊS PODEM ME ESCORRAÇAR, ME MANDAR
EMBORA, ME BOTAR PRESO, MAS FUI EU! EU ENFIEI A FACA NA BARRIGA DELA! TRÊS
VEZES, E UMA NO PESCOÇO!!! FUI EU, JÉSSICA!
JÉSSICA -
...está louco.
CARLOS -
Completamente.
OLGA -
Nós não precisamos dos seus delírios, Otávio. Nós sabemos as razões da sua
expulsão.
OTÁVIO – Confuso.
Que razões?
OLGA -
Isso não precisa ser dito de novo.

66
JÉSSICA -
Pastor, eu não concordo com ela.
OTÁVIO -
Eu não sou mais pastor!...
JÉSSICA -
...pra mim, é, sempre será...
OLGA – Cortando.
VOCÊ NÃO ERA UM BOM PASTOR, OTÁVIO! NÃO ERA BOM! SIMPLES ASSIM. ACEITE.
THEREZA -
...é, de fato, era um pouco exagerado, eu tentei dar um toque...
CARLOS -
Bom, essas coisas são difíceis de aceitar, mas é importante, para a gente
crescer, Otávio, aceitar!... Pare de querer ser mais do que você é...
OTÁVIO -
COMO ASSIM!!! MAS VOCÊS TODOS SABEM, NÃO É POSSÍVEL!!! VOCÊS SABEM!!! FUI EU
QUE... FUI EU!!!
JÉSSICA -
Pastor, por favor, fique quieto um pouco. Pense um pouco, por favor. Eu sei o
que aconteceu.
OTÁVIO -
...o que?... como assim?...
JÉSSICA -
Você também sabe. Está em choque. É difícil assumir.
OLGA -
É DIFÍCIL ASSUMIR QUANDO A GENTE É RUIM! RU-IM NO QUE A GENTE FAZ! VAI TER QUE
PROCURAR OUTRO EMPREGO!
JÉSSICA -
É, é difícil, eu sei. Eu não te culpo. Só peço para não misturar nisso a minha
mãe. Eu sei, nós todos sabemos que ela se suicidou. Eu sei de tudo. Eu vi as
cinzas do corpo, vi o bilhete dela... Eu estou com ele aqui...

67
Ao Otávio.
Ela se suicidou. Eu entendo, Otávio, a sua angústia. Os grandes homens têm
grandes angústias. Você para mim é um grande homem, mas por favor deixe a minha
mãe fora disso... Apesar de tudo... eu amava ela, muito...
Otávio totalmente estupefato. Pausa. Ele fica no sofá mais algum tempo.
CARLOS – Como que tendo uma ideia sobre o que foi dito. Enquanto isso, no outro
canto da sala, depois de algum tempo Otávio tira uma arma do bolso.
...é o amor filial! O amor filial é infinito!... É como eu, com o meu pai. Como
eu amava aquele senhor! Hoje em dia eu posso falar. Porque na época, vocês
sabem, era muito difícil. Eu... Eu só consegui, de verdade, dizer que eu amo o
meu pai, depois que ele morreu!... É muito triste isso. Só hoje é que eu vejo,
eu percebo o quanto eu puxei dele. Eu herdei do meu pai, além das terras, toda a
minha personalidade, todo o meu vigor! Uma vez, na fazenda, ele me levou para
dar uma volta de cavalo, e olhar as terras. Eu me lembro até hoje, de estar
naquela garupa, agarrado, assim, na barriga do meu pai, correndo com o cavalo, e
eu ia perguntando o tempo todo "aqui é sua terra?". E ele respondia "sim, nossa
terra, nossa terra!" E eu ia olhando em volta, e parecia tão grande aquilo!...
Mas o meu pai, ele trabalhava, ele foi policial, ele construiu tudo com as
próprias mãos, não era herança! Era um sujeito muito, muito forte, personalidade
forte, sabe?... Eu me lembro, ele tinha lá na parede, o primeiro quepe que ele
usou, ficava pendurado na parede!...
A certa altura do texto Thereza chama a sua atenção, cortando o seu raciocínio,
porque Otávio está com a arma na mão.
OTÁVIO -
VENHAM AQUI, VENHAM! VOCÊS NÃO VÃO PODER FICAR AQUI, NÃO!!! EU VOU PROVAR PARA
VOCÊS, VAMOS!!!
As pessoas não se movem. Otávio tira uma arma da bolsa. Burburinho geral. Ele
aponta a arma para a própria cabeça, depois para os outros, alternadamente.
VOCÊS VÃO TER QUE ME SEGUIR, CARALHO! EU MATO ELA, MATO VOCÊ!! EU ME MATO,
VAMOS!!! VAI VAI VAI!!!

68
Os outros vão saindo, um a um, ele vai obrigando as pessoas a o seguirem.
EU VOU PROVAR! VOU PROVAR PARA VOCÊS!!! VAMOS COMIGO, EU VOU MOSTRAR!!!
Todos saem, e seguem Otávio até um terreno. Otávio entrega a sua arma à Jéssica.
Ela não sabe o que fazer com a arma.
APONTA PRA MIM! PRA MIM! FUI EU QUE MATEI A SUA MÃE! FUI EU! VOCÊ VAI VER
Ele começa a cavar.
ACREDITA EM MIM, POR FAVOR!!! VOCÊS ESTÃO TODOS LOUCOS!!! SERÁ QUE NÃO CONSEGUEM
PERCEBER! NÃO CONSEGUEM?!... FUI EU!!! FUI EU. Fui eu.
Ele continua falando trechos da sua 'ideia', e cava. Os outros observam. Música.
Jéssica segura a arma, apontada para Otávio. Ele não encontra o corpo de jeito
nenhum, se cansa de cavar, se joga aos pés de Jéssica. Repentinamente calmo.
Sincero.
Fui eu Jéssica, eu juro.
Ele coloca a arma na própria cabeça, ela segura a arma.
Eu dei três facadas na barriga da sua mãe. Eu ouvi os gritos dela, Jéssica. Eu
dei outra facada na garganta, para os gritos não saírem. Eu matei a sua mãe.
Cruelmente. fui cruel. Fui torpe. Eu não estou pedindo o seu perdão! Eu estou
pedindo a culpa! A CULPA! FUI EU! Eu senti quando o corpo parou de se mexer! Eu
senti! Senti quando o corpo ficou parado, morto, fui eu! Atira! Pode atirar! Eu
matei a sua mãe! Depois eu arrastei o corpo até aqui, eu enterrei aqui, para
ninguém achar, ah, como eu fui idiota! Eu não vi, não percebi, que vocês
precisavam saber! Vocês precisam saber! EU QUERO QUE VOCÊS SAIBAM! EU MATEI A
VELHA, MAS O QUE IMPORTA NÃO É A VELHA! A VELHA SÓ TE FAZIA MAL, JÉSSICA, A
VELHA PRECISAVA SER MORTA!!! PRECISAVA SER MORTA! EU COLOQUEI O CORPO AQUI...
POR AQUI... NÃO ESTOU, NÃO ESTOU ENCONTRANDO AGORA, MAS FUI EU, EU QUERO A CULPA
POR ISSO, EU QUERO A CULPA, A CULPA POR TER TE LIVRADO DA VELHA!!!....
Jéssica dá um tapa com força na cara dele. Pausa. Ela encosta a arma na têmpora
dele. Ele espera. Ela engatilha a arma. Desengatilha.
JÉSSICA -
Eu não quero que você fale assim da minha mãe. O Joelmir tem razão. Devia

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respeitar o meu sofrimento. Eu estou sofrendo pela morte da minha mãe. Não
merece a minha fé. Não merece a fé de ninguém. Nós temos problemas demais na
vida. Vá embora.
Ela desarma o revólver, e o entrega a Otávio. Pausa. Jéssica volta para dentro
da casa. Ela vai escolher um disco para colocar. Todos seguem Jéssica e vão
entrando na sala. Ela encontra um disco, e coloca para tocar. Jéssica vai até a
geladeira, pega uma latinha de cerveja, toma um ou dois goles e deixa em cima da
mesa. Ela dança um pouco, todos passam a conversar entre si sobre amenidades,
Carlos atende o nextel, etc. Menos Otávio, que entrou e se jogou no sofá.
Joelmir chega com as mãos sujas de terra. Os outros o cumprimentam, Otávio não
reage. Ele vai lavar as mãos na pia, conversa com Carlos, também sobre
amenidades, etc., todos seguem conversando, dançando um pouco, depois vão embora
um a um, o Joelmir por último. Fim.

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