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Supervisão: Deborah Cristina Amorim
Preparação de Texto: Maria Cecília Ursulino Cavassana Curupaná

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T654c

Toscano Jr., Rosivaldo


O cérebro que julga : neurociência para juristas / Rosivaldo Toscano Jr. - 1. ed. -
Florianópolis [SC] : Emais, 2023.
332 p. ; 23 cm.

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-65-85073-02-8
1. Cérebro. 2. Neurociência cognitiva. 3. Juízes - Decisões. 4. Cognição -
Aspectos fisiológicos. Título.

CDD: 612.8233
22-80413 CDU: 612.821.3:347.95

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

30/09/2022 05/10/2022

Todos os direitos desta edição reservados à emais


www.emaiseditora.com.br
euquero@emaiseditora.com.br
Florianópolis/sc

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


A Giovanna, Sofia, Luigi e Beatrice.
AGRADECIMENTOS
Para escrever este livro, contei com a colaboração de amigos e de
alunos que leram as diversas versões do manuscrito e opinaram sobre
elas. A maioria deles, juristas leigos em neurodireito, mas todos leitores
vorazes. Meu foco de atenção estava em fazer uma obra que lidasse com
um tema que é incomum ao jurista não iniciado no neurodireito, mas
que não causasse estranhamento e enfado. Por isso, as observações foram
tão importantes para o resultado que você verá nas páginas seguintes.
Meu agradecimento especial ao amigo da magistratura paraense, Flávio
Lauande, e da magistratura potiguar, João Afonso Pordeus, que me deram
feedback apurado de cada tópico da obra. Às amigas Daniele Paulino e
Natércia Silveira, que me trouxeram apontamentos importantes do olhar
de psicólogas, contribuindo também para a leveza do texto. Não poderia
faltar Mateus Nogueira, meu psicoterapeuta, que fez a revisão técnica.
Agradeço também aos amigos magistrados Raimundo Carlyle Costa,
Ana Orgette Vieira, Cinthia Cibele Medeiros, Tathiana Macedo, Rai-
nel Pereira Filho, Leila Pereira, Tiago Gagliano e Pedro Paulo Falcão,
bem como à professora Carol Coelho e à minha orientanda Mariana
Arcoverde que investiram o tempo precioso de cada um(a) na leitura da
obra, trazendo outros olhares, suprindo meus pontos cegos, podando
meus vieses. Vocês foram muito importantes, seja quando apontavam
algum tópico que eu poderia desenvolver melhor ou outro que poderia
incomodar alguém, seja quando compartilhavam suas angústias ao se
depararem com questões trazidas no manuscrito, seja quando elogiavam
as passagens que mais gostavam.
PREFÁCIO
O modo como nos engajamos na vida e na profissão modifica a mirada,
isto é, podemos assumir diversos pontos de vistas. Em todos eles, no
entanto, estaremos performados pelo dispositivo do saber prevalecente,
consistente no conjunto de entidades heterogêneas apresentadas de ma-
neira aparentemente organizada e sistemática, em geral, denominado por
Sistema. Em consequência, a percepção da Realidade, no caso, jurídica,
estará condicionada ao dispositivo do Direito. A questão é a de que as
premissas fundantes operam por meio da redução (demasiada) da com-
plexidade. Não se pode julgar os antepassados pelo que foi descoberto
e/ou estabelecido posteriormente. Seria injusto. O contrário também
é verdadeiro: podemos julgar os contemporâneos por sustentarem um
discurso jurídico incompatível com os achados de outros domínios,
especialmente os das Ciências do Cérebro indicadas por Rosivaldo:
Neurologia, Neuropsicologia, Neurociência Cultural, Neurociência
Comportamental e Neuropolítica.
Enquanto os achados revolucionaram o saber convencional em diversos
domínios, o Direito continua operando por meio de (a) Sistemas Lógicos
(formais); (b) Agente Racional (decide exclusivamente sob o controle da
razão); (c) Procedimentos para atribuição da Verdade (alguns chegam
ao ponto de acreditar em Verdade Real); (d) Livre arbítrio (plena e total
liberdade da decisão); (e) Decisões Judiciais Racionais, exclusivamente
orientadas pela Mente.
O Esquema Convencional do Direito opera por dois mecanismos: (a)
Desconhecimento; ou, (b) Desfaçatez. É que ao sermos “formados” pelo
paradigma prevalente, tendemos a “performar” conforme as coordenadas
internas do Paradigma Científico, para usar Thomas Kuhn. Segue-se a
tendência à inércia teórica e à reprodução do saber convencional, lugar
dos “desconhecedores”. Aliás, o “desconhecimento” pode se dar por
ausência de acesso, negação ou limitações cognitivas. Em todos os casos,
embora não seja culpado, o agente “reprodutor” é “responsável” por
manter o estado de coisas. Já a Desfaçatez opera por meio da plena ciência
da insustentabilidade das premissas que supostamente organizam o saber
convencional, mas pelos mais variados interesses, em geral ideológicos,
faz funcionar o Sistema Jurídico. Se nos mantivermos na redoma (ou na
bolha do Volpone, dirijo-me aos “cringe”), desconhecemos para além da
nossa janela, parafraseando Fernando Pessoa.
Neste sentido, o saber convencional do Direito se orienta a partir
do suporte teórico construído quando não havia a distinção forte entre
Mente e Cérebro, nem os achados da Física Quântica. Em relação à
Física Quântica, embora pudéssemos falar de Teoria das Cordas, Teoria
de Tudo, Múltiplos Mundos, Universos Paralelos, para o fim de determi-
nar as questões jurídicas, acontecidas no contexto da realidade tangível,
extrapolaríamos os limites de entendimento mínimo. Aliás, invocar
Física Quântica, Incerteza, Efeito Borboleta, dentre outros temas, é uma
profanação jurídica, justamente porque são rejeitados pelo saber jurídico,
com “absoluta razão”. É que se forem acolhidos, explodem o “mundinho
da relação de causalidade”, em que tudo é uma sequência linear de causa-
-e-efeito, ordenadora e suposta garantia do Sistema Jurídico. Os autores
que tentam dar o passo são tratados como extraterrestres jurídicos. Por
todos, vale citar Goffredo Telles (Direito Quântico). Então, paro por
aqui: E.T, telefone, minha casa (E.T. phone, home).
Voltando para a casa do Direito, então, cabe indagar qual o efeito
da distinção entre Cérebro e Mente. É aí que o livro de Rosivaldo Tos-
cano dos Santos Júnior altera substancialmente as coordenadas, com
a demonstração do colapso do modelo prevalecente no Direito. Mas
fique tranquilo porque você sempre poderá se apoiar em algum viés
ou na crença do pleno domínio da sua vida. Basta julgar inválidas as
conclusões apresentadas por Rosivaldo. Eu até recomendo que você não
leia o livro, nem leve a sério os achados indicados. Do contrário, será
necessário desaprender muita coisa e aprender muitas outras. Faça como
a maioria: finja que nada mudou, mesmo que por “desconhecimento”
ou por “desfaçatez”. É mais seguro.
Se você continuou a ler, o risco é seu. Ainda que Rosivaldo não queira
“salvar” ninguém, joga os salva-vidas cognitivo das definições necessárias
ao entendimento do tamanho do problema. Em verdade, ele implode
o prédio ao retirar o axioma de sustentação. Já voltarei ao tema. Antes,
para tornar mais precisa a abordagem, cabe dizer que somos herdeiros,
pelo menos, de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant e Kelsen. Embora
muitos não saibam, o modo como “pensamos que pensamos” o mundo
jurídico é atribuível ao legado dos antepassados. Tudo bem que poderiam
ser outros. Dê um desconto porque é um prefácio. A leitura do livro
poderá explicar melhor.
A autonomia do domínio do Direito como ramo científico exigia a
definição de objeto e de método, motivo pelo qual prevaleceu a definição
do objeto normativo (Monismo: normas estatais) e o Sistema Jurídico,
articulado por meio da estruturação lógica e hierárquica associada à
contribuição de René Descartes. O Ordenamento Jurídico, por definição,
é (a) único; (b) coerente; e, (c) completo. O Sistema Jurídico, de inspi-
ração kantiana, a partir de um Princípio Unificador, organiza a estrutura
dos relacionamentos hierárquicos, qualitativos e quantitativos entre os
componentes. O importante é que por razões históricas, principalmente
a necessidade de superação da influência de outros domínios (moral,
ética, religião etc.), em oposição ao modelo Jusnaturalista, o Positivismo
prevaleceu (são vários positivismos, aliás). Tanto assim que a pirâmide
de Hans Kelsen performou a nossa construção sobre o a estrutura e o
funcionamento do domínio do Direito. Embora continuemos a “operar”
no modelo colapsado, o salto promovido por Rosivaldo ajuda a entender
o real funcionamento do processo de tomada de decisão, autorizando a
adoção de nova forma de enquadramento do fenômeno jurídico.
Além da crença em Deus, René Descartes construiu o Método a partir
da seguinte premissa: “Todo o método resume-se em ordenar os objetos
nos quais devemos concentrar o olho de nossa mente para descobrir a
verdade”. A receita está indicada. Por meio da decomposição dos objetos,
reduzidos a partes menores, poderemos ordená-los diante dos olhos
da “mente” e, então, “descobrimos” a Verdade. É mentira da Mente.
Mas funciona, parcialmente. Em geral, o pensamento racional associou
racionalidade à certeza. O estado de certeza adviria de operações lógico
racionais aptas a conferir a “sensação de certeza”. No entanto, o paradoxo
é inerente à racionalidade suportada pela “sensação de certeza”. É que
se há sensação, algo comparece de modo distinto da exclusiva operação
lógica. Mesmo assim, o mecanismo padrão excluiu o aspecto subjetivo,
como se a “sensação” pudesse ser obtida exclusivamente por meio de
inferências lógicas. Aliás, diz-se que sentença e “sentire” guardam relação
etimológica.
Se a certeza é uma “sensação”, comparável a “saber sobre algo”, o
acionamento do dispositivo da certeza não é vinculado aos métodos
de raciocínio e às inferências, justamente porque opera no Cérebro e
não na Mente. A distinção entre Cérebro e Mente será fundamental
para compreender que a certeza se aproxima mais da crença do que
da razão. O momento em que atribuímos certeza a algo comparece na
Mente “como se fosse” o resultado de processos racionais. No entanto,
os achados indicados por Rosivaldo apontam no sentido de que boa
parte de nossas certezas são comunicados à mente pela atividade do
cérebro, isto é, não somos conscientes da maioria das nossas certezas,
embora possamos explicá-las (e nos convencermos) retrospectivamente.
A questão fundamental é que a razão, como herdada da Modernidade,
opera somente no Plano da Mente, apagando a relevância e o prota-
gonismo dos mecanismos cerebrais aos quais não somos conscientes e
funcionam independentemente do que aprendemos a denominar de
racionalidade. Em consequência, as limitações da racionalidade herdada
da Epistemologia da Modernidade são reais no domínio do Direito, em
que sob o axioma de que os agentes procedimentais, especialmente os
julgadores, tomam decisões com suporte exclusivo na razão, compartilha
a atividade decisória com mecanismos cerebrais silenciosos, desprovidos
de causalidade aparente, emergentes do Cérebro.
Fazia tempo que não lia algo tão encantador, com exemplos e muito
bom humor. Quem sabe por força do viés poético, afetuoso e marcado
desde a infância, como aponta o próprio autor. Um texto de quem en-
frenta o problema de frente, sem chicanas, com a pretensão de conhecer,
sem desfaçatez, o funcionamento das coisas. E a disfuncionalidade do
Sistema Jurídico, ainda que contraintuitivo, é o que faz com que possa
funcionar. Segue-se que o traço marcante da pesquisa de Rosivaldo, rica
em exemplos, sacadas magníficas e coragem, coloca-nos perante o dilema:
como continuar operando num dispositivo inválido? As novas coorde-
nadas tendem a ser rejeitadas pelo saber convencional, obrigando-nos
a operar em um mundo jurídico alienado da dimensão do Cérebro. A
resposta padrão seria apostar no livre-arbítrio. Mas, como você verá, é
mais um mecanismo apaziguador da Mente.
Se você conhecer o estado de todas as entidades de um sistema em de-
terminado momento e, também, as forças incidentes, isto é, as “condições
iniciais”, o futuro passa a ser determinado. Se, na condição de humanos,
estamos incluídos na Realidade, a premissa afasta a disponibilidade
pessoal denominada de livre-arbítrio. No entanto, o conhecimento total
do universo em um determinado momento é da ordem do impossível
(não podemos parar o universo, nem medir todas as entidades com
precisão.). Haverá sempre um “resto”. Sorte e azar nosso. Embora o
livre-arbítrio seja uma coordenada funcional de uma “Teoria Efetiva”,
disse Stephen Hawking, opera no nível das crenças estabelecidas no
Ocidente. O Oriente assume outra noção do Todo. Em consequência,
o que se denomina de “livre-arbítrio” foi construído socialmente. A
passagem ao ato pode simplesmente acontecer sem uma causa (racional)
aparente. Em geral, denominamos de aleatoriedade, a situação em que
o Cérebro apenas “comunica” e, sem o filtro ou o freio da Mente, o ato
“acontece”. Embora não possamos excluir a responsabilidade do agente,
podemos colocar em xeque a elegante explicação do livre-arbítrio. Mas
aí é demais para o jurista Moderno que, adotando um dos vários vieses
disponíveis no cardápio mental, poderá rejeitar categoricamente a objeção
(Rosivaldo mostra como fazer nas primeiras páginas e, também, com a
culpa que carrega até hoje).
Enfim, fico por aqui, porque já falei demais. O livro de Rosivaldo é um
deleite para quem pretende, de fato, ampliar os horizontes do que pode
ser compreendido. Li de uma tacada só. Devorei as páginas. Fiquei com
vontade de bater um longo papo com o autor, como fizemos várias vezes,
embora ainda iludidos com a metafísica embalada em papel de presente
hermenêutico. O maior desafio é o de chegarmos ao Fórum e operarmos
dentro de coordenadas inválidas; colapsadas. Poderia dizer que o livro
é um sopro de esperança, embora seja mais uma Tempestade Tropical.
Antes de terminar quero contar um acontecimento típico dos equí-
vocos da linguagem. Rosivaldo mandou um artigo sobre Raymundo
Faoro para um site de artigos jurídicos, discutindo os Donos do Poder.
O funcionário, alheio ao universo teórico, precisava escolher uma ima-
gem para ilustrar o texto. Ao ler o título não hesitou nem um segundo e
mandou um “Faraó Tutanckamon”, em alusão ao “Faoro”, de Raymundo,
entendido como “Faraó”. O acontecimento serve de metáfora do que
provavelmente acontece com quem confunde Cérebro e Mente.
Por fim, conheci Rosivaldo em condições distintas das atuais, em que
as coordenadas que utilizamos para dar sentido à Realidade eram outras.
Compartilhamos sonhos, angústias e muita Metafísica, ainda que com
outros nomes. Fazer um Detox Metafísico é quase impossível, dadas as
armadilhas da formatação do dispositivo. Seguimos tentando. Talvez
tenhamos o mau hábito de explorar domínios diversos, com o desafio
posterior de traduzir à linguagem jurídica. Tendemos à ingenuidade ou
ao sacrilégio, você escolhe, com seu suposto e sagrado livre-arbítrio. Só
que não. Obrigado pela paciência e por me deixar fazer parte deste livro
que é um marco no Direito para quem não quer confundir “Faoro” com
“Faraó” ou Cérebro com Mente, claro. Na voz de Margareth Menezes,
Olodum ou Ivete Sangalo: “Eu falei Faró. Ê, Faraó”. Entendeu? É um
livro que eu queria poder ter escrito. Minhas homenagens. Boa leitura.
Um abraço de quem te quer bem, do seu amigo,

Alexandre Morais da Rosa


Doutor em Direito (ufpr). Mestre em Direito (ufsc). Professor do Programa
de Graduação, Mestrado e Doutorado da univali (Linha de Pesquisa Direito,
Jurisdição e Inteligência Artificial. Juiz de Direito do tj/sc. orcid 0000-0002-
3468-3335. Pesquisador do SpinLawLab (univali). Cursa rehab Metafisico
Eterno, além de participar dos Vigilantes Antimetafísicos Anônimos.
APRESENTAÇÃO
Foi com imensa alegria que recebi o convite para escrever a apresenta-
ção do mais novo livro de Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior. Aquiesci
imediatamente, imaginando que essa honrosa e desafiadora tarefa poderia
ser mais fácil a mim, considerando ser uma espécie de anamnese a partir
do laço de afeto que construímos ao longo de tríplice experiência que
logrei ter com o seu autor: atuação funcional, aprendizado e amizade.
Conheci o autor quando exerci as funções de promotor de justiça do
Ministério Público do Rio Grande do Norte, junto à vara criminal de Pau
dos Ferros onde o tinha como magistrado titular. Juiz de Direito à frente
do seu tempo, com Rosivaldo, pude perceber como o conhecimento
teórico poderia ter potencialidade transformadora. No período de 2003
a 2005, contemplei o seu compromisso com os elementos fundantes do
sistema de justiça criminal.
Desse período, fui presenteado com muitas lições, as quais levei comigo
e referencio os dias atuais. Como juiz, Rosivaldo marcava presença con-
tínua junto ao estabelecimento penitenciário local, com o cumprimento
rigoroso dos deveres fulcrais do juiz da execução penal. Como acadêmico,
mestre e doutor em direito, revelava construção de ponte entre a teoria e
a prática, obstinado a implantar sistemas de controle de fases processuais
e guias de execução penal eletrônica, com repercussão de sua contribuição
a nível nacional. Como ser humano, Rosivaldo mantinha compromisso
intransigível com leituras de vanguarda que reunia conhecimento orga-
nizado das bases para uma justiça de caráter progressista, acompanhando
o horizonte do seu tempo e se preparando para o futuro, com ênfase no
respeito aos direitos e garantias fundamentais.
Ao saber levar em consideração o ponto de vista distinto, nos casos
concretos que lhes eram distribuídos a julgamento, Rosivaldo me ensinou
o que se deve esperar da compostura dos atores que se situam no salutar
ambiente de diversidade e que conduzem papeis que devem ser bem
contornados e que constituem a dialética própria do sistema processual
democrático. Nesse primeiro momento, identifiquei os lindes da fun-
ção jurisdicional, os limites da interferência do Ministério Público e a
importância nuclear da advocacia.
À época, Rosivaldo já reunia a sensibilidade de quem transcendia
o conhecimento jurídico. Com ele muito aprendi, seja por avivar o
repertório dos conceitos fundantes do Direito em seu cotidiano, seja
por transitar, com maestria, no âmbito da música e da literatura, seja no
romance e seja na poesia, seja, notadamente, por sua virtude de construir
e de conservar seus amigos.
São ingredientes que tornam o autor dessa obra um espírito elevado.
Enfeixa, de uma órbita, a autoridade empírica de sua experiência prática,
da judicatura à sua peculiar atenção com as pessoas submetidas ao poder
estatal; e, de outra, a envergadura teórica constatada pela qualidade de
sua intelecção sobre os assuntos que constituem problemas centrais do
interesse da filosofia geral e do direito.
O horizonte atual da maturidade intelectual do autor não se constituiu
apenas por sua vocação e notável inspiração. Muito antes, foi se formando
paulatinamente pelo seu esforço diário na busca do equilíbrio que deve
caracterizar os sistemas humanos. Rosivaldo se insere na categoria das
mentes que não se acomodam com o alcance de um conhecimento ime-
diato que, aliás, deve ser recebido com a ideia de estar sempre incompleto.
Decerto, o autor reúne características essenciais ao desenvolvimento da
ciência: abnegação e irresignação, obstinação e inconformismo, dedicação
e reflexão. A relação entre esses atributos possibilita o processamento
dos sentidos humanos em três degraus: informação, conhecimento e
sabedoria. A renovação desse ciclo permite a construção de uma síntese
mais elaborada, toda vez que se reproduzir.
Em estado bruto, está a informação, tomada do âmbito dos objetos
empíricos, digitais ou intelectivos, que o ser humano pode trazer à luz
de sua inteligência (método). A capacidade de ordenar as informações
em eixos situados em um sistema de referência é apta a formar conheci-
mento, por meio de estratégia corretamente demarcada pelo pensamento
(metodologia). O patamar mais elevado desse processo é essencialmente
relacional (metódica), isto é, consiste na identificação do elo entre a
matéria bruta (informação) e a estrutura (conhecimento), abrindo espaço
para a formação de um campo analítico-filosófico (sabedoria).
Considero o livro de Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior posto em
permeio à metodologia e à metódica, entre a dogmática estratégica e a
filosofia analítica que, a seu turno, é refratária a qualquer dogmática. É
uma obra essencialmente dialética, com referencial teórico adequado para
atender ao seu propósito de estudar o cérebro humano, tema instigante
e fascinante, campo de dúvidas e de certezas.
Diante desse aspecto semântico-estrutural, que retrata os elementos
condicionantes do cérebro (estática), bem como as suas perspectivas
enquanto ato e potência (dinâmica), o nosso autor confere realce à
sua aplicação sob a órbita da função de julgar, âmbito comunicativo
reconhecidamente difícil e que revela o aspecto pragmático na qual se
classifica sua nova obra.
No entanto, esse encargo não poderia estar em melhores mãos.
Isso porque Rosivaldo é um estudioso, cientista e literato, com a sen-
sibilidade de quem cultiva a poiesis, tanto no sentido de já ter dado todas
as provas de saber como alinhar razões para a ação enquanto juiz (práxis)
com efetiva atividade judicante modificadora da realidade social; quanto
sob o ponto de vista semântico da poesia e do romance, em escritos que
têm a especial virtude de conquistar nossa atenção e de alimentar a alma
dos que se propõem a conhecê-los.
O leitor constatará que este livro que ora tem em mãos é um primor e
que fui privilegiado em ter seus originais, em primeira mão. Também sob
essa ótica, enxergamos um prisma tríplice. A uma, a magistratura ganha
substancioso livro, que toca ponto nevrálgico da prestação jurisdicional,
eis que é cediço que o juiz compõe o vértice das normas individuais e
concretas documentadas nas decisões emitidas pelo Poder Judiciário. A
duas, a comunidade jurídica recebe produção com abordagem inédita,
com otimização do espaço das reflexões dogmáticas e filosóficas. Por fim,
prestigioso selo da editora emais é contemplado com conteúdo revestido
de talento e ineditismo, estando de parabéns por ter, em seu quadro, o
jurista Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior.
Maceió, 31 de agosto de 2022.

Rosmar Rodrigues Alencar


Doutor em Direito (puc-sp). Mestre em Direito (ufba).
Professor Adjunto da ufal. Professor Titular da UNIT (al).
Juiz Federal.
INTRODUÇÃO 23

DAS NEUROCIÊNCIAS AO NEURODIREITO 31


Anatomia e fisiologia cerebrais 40
Funcionamento do cérebro 47
Os quatro princípios das redes neurais 51

PERCEPÇÃO 61
Limites e peculiaridades 67
Ilusões perceptivas 75

CONSCIÊNCIA, RAZÃO E LIVRE-ARBÍTRIO 81


Livre-arbítrio 88
(IR)Racionalidade 97

MEMÓRIA 105
Tipos de memória 116
Pré-ativação (priming) 119
Falsas memórias 130

O CÉREBRO SOCIAL 135


O cérebro tribal 138
Conformidade social, prazer social e dor social 145
Obediência à autoridade 147
TOMADA DE DECISÃO JUDICIAL 153
Dissonância cognitiva 155
A (ilusão da) certeza 163
Raciocínio motivado 170

PROCESSAMENTO DUAL 173


Heurísticas, vieses e ruídos 179
Vieses 184
Ruídos 188

VIESES MAIS IMPORTANTES PARA O TOMADOR


DE DECISÃO JUDICIAL 193
Ponto cego de viés 193
Ancoragem 195
Viés de disponibilidade 201
Viés de confirmação 202
Viés de enquadramento 206
Viés de representatividade 208
Efeito halo (e efeito chifre) 208
Efeito de primazia 211
Aversão à perda 214
Efeito dotação 217
Viés de omissão e viés do expectador 219
Viés retrospectivo 222
Efeito contraste 225
Efeito da vítima identificável 226
Viés egocêntrico (ou efeito acima da média) 229
Efeito Carryover 233
Efeito Dunning-Kruger 235

OUTROS FATORES INFLUENCIADORES INTERNOS


E EXTERNOS 237
Gênero, idade, ideologia política e religião 242
Fatores ambientais 250
DESENVIESAMENTO 255
Preconceito implícito, mas efeitos nem tanto 255
Enfrentando os demais vieses cognitivos 257

CONCLUSÃO 267

CAPÍTULO EXTRA 271


Estruturas e funções do sistema nervoso 271
Sistema nervoso central 272
Sistema nervoso periférico 278
Células nervosas 279
A evolução do cérebro e seus ecos 282

REFERÊNCIAS 291
23

INTRODUÇÃO a
A primeira lembrança que tenho de contato com a leitura é muito
poderosa: lendo revistas em quadrinhos com meu pai antes de dormir.
É também a primeira memória emocional boa com ele e, por isso, tão
marcante. Era um momento só nosso. Eu, meu pai, Tio Patinhas, Pato
Donald, Pateta e o resto da trupe em mil aventuras!
A pilha de revistas era renovada em sebos periodicamente. Mal sabia
meu pai, que hoje voltou a ser criança, quanto aqueles minutos quase
diários antes de dormir seriam tão importantes para mim no futuro.
Ou talvez ele soubesse, já que amava ler e escrever, mas esteve entre os
milhões de vítimas do trabalho infantil, que o arrancou da sala de aula
no que hoje seria o quinto ano do ensino fundamental.
Até hoje me pergunto qual carreira o meu pai teria seguido se a fome
e a pobreza não o houvessem forçado a deixar a escola para vender sabão
na feira de Campina Grande, quando ainda era uma criança. Talvez não
se tornasse cabo do Exército e depois padeiro. Talvez o Campina do Meu
Passado, um poema épico sobre sua infância e adolescência na cidade,
não tivesse sido o único livro que escreveu.
Aquelas noites de leitura despertaram em mim a busca pelo conhe-
cimento. Conforme eu crescia, nossas leituras evoluíram e os gibis
ganharam a companhia do Almanaque Abril – um antepassado nível
Tiranossauro Rex da Wikipedia, cuja edição anual saía sempre no final
do mês de fevereiro. Chegando à adolescência, eu estava lendo com ele
os Clássicos de Bolso da Ediouro. Lembro-me de que os primeiros foram
comprados de um catálogo e enviados pelos Correios. Madame Bovary,
Hamleto (era assim mesmo no título da Ediouro), O Elogio da Loucura, A
Utopia e tantos outros. Foi também nessa época que dei meus primeiros

a. Advertimos que neste material buscamos garantir a fluidez da leitura. Portanto, optamos por fa-
zer uso da linguagem padrão, que se reporta ao masculino. Apesar dessa opção, estamos cientes e
atentos a toda discussão a respeito da linguagem de gênero.
24

passos em direção a uma literatura que me aproximava do mundo do


direito, como Crime e Castigo, O Mercador de Veneza, A Colônia Penal
e O Processo.
Minhas primeiras experiências na escrita foram poemas ingênuos,
compostos em uma agenda de capa dura que meu pai tinha recebido de
brinde de Natal e que nunca usou. Durou anos comigo! Pena que a perdi
e, com ela, uma parte de minha memória sentimental adolescente. Não
foi à toa que o primeiro livro, ainda durante os bancos da faculdade, foi
de poemas. Chamava-se Noventa Quase Cem – Poesias. Em 2002, escrevi
minha segunda obra literária, um romance intitulado O Escultor da Alma.
Meus escritos acadêmicos – artigos jurídicos, inicialmente – come-
çaram na faculdade, mas se intensificaram durante a carreira na magis-
tratura. Terminei lançando dois livros, um deles sobre hermenêutica
jurídica e teoria da decisão judicial, sob a orientação do querido Lênio
Streck, chamado Controle Remoto e Decisão Judicial: Quando se Decide
sem Decidir, de 2014. Sob a luz do meu orientador no doutorado, o
grande professor Enoque Feitosa, saiu o A Guerra ao Crime e os Crimes
da Guerra: Direitos Humanos e Sistema de Justiça Criminal na Periferia,
de 2017 (a segunda edição).
Como cada filho tem seu temperamento, este livro tem um bem dife-
rente. Não é recheado de poemas nem narra uma história de ficção, mas
resolvi escrevê-lo unindo duas pontas. De um lado, o saber técnico, com
referências bibliográficas de mais de duzentas obras na interseção entre
as ciências do cérebro e o direito. Do outro lado, histórias da carreira na
magistratura. Histórias que eu vivenciei ou que me foram contadas por
colegas ao longo desses 22 anos como juiz de direito. Se a minha toga
falasse... Já que ela não fala, fui seu porta-voz.
A finalidade de compor a obra neste formato (storytelling – em outro
idioma soa sempre mais chique do que “contando histórias”) é tornar
a leitura mais agradável e leve e, claro, porque foi também uma forma
prazerosa de construí-la tentando (espero) instigar e provocar emoções em
quem lê. Por isso, trago questões da vida real na carreira, várias delas até
pitorescas e engraçadas, que se tornam o ponto de partida para reflexões
na interseção do direito com as ciências do cérebro (aqui entendidas
25

como neurologia, neuropsicologia, neurociência cultural, neurociência


comportamental e neuropolítica) e ciências afins, como psicologia social,
psicologia evolucionista e economia comportamental.
Ao mesmo tempo, tive o cuidado de não me afastar das evidências
científicas, essenciais à construção do estado da arte sobre o tema, trazen-
do quase uma centena de pesquisas empíricas envolvendo peculiaridades
sobre o funcionamento do cérebro, erros de julgamento e o processo de
tomada de decisão em geral e, especificamente, o judicial. Procurei trazer
uma variada gama de pesquisas em cada tópico abordado e as reflexões
doutrinárias mais recentes sobre o tema.
Basicamente este livro tratará duas formas de estudos empíricos:
os que têm por objeto arquivos sobre decisões judiciais, geralmente
avaliando as tendências na tomada de decisão a partir de um volume de
dados colhidos; e os que fazem experimentos controlados, analisando
como determinados fatores interferem ou influenciam o processo de
tomada de decisão (em muitos casos a judicial) em ambiente simulado.
Esse segundo tipo de pesquisa costuma ter ao menos dois grupos, sendo
um deles o de controle, e o outro (ou outros), o de experimento, em
que um elemento que visa a analisar o objeto do estudo é incluído no
experimento. Após a coleta de dados, os resultados são confrontados,
para que se possa concluir se a variável inserida no grupo experimental
influenciou ou quanto explica o desfecho observado e, em caso positivo,
em qual medida. Embora o ambiente controlado do experimento nunca
reflita na inteireza a realidade da práxis forense, seus resultados podem
ser muito informativos.1
Por falar nisso, não se espante com a bibliografia estrangeira. Embora
tenhamos um corpo de autores nacionais crescente e qualificado, por
ser um campo que lida com muitas pesquisas empíricas – as fontes de
outros países, notadamente estadunidenses (onde esse tipo de pesquisa
mais evoluiu), predominam. Desde já, peço perdão aos autores brasileiros
que não estão aqui. Pretendo, em uma segunda edição, acolhê-los como
merecem.
Nunca esqueci um letreiro na fachada de um escritório de advoca-
cia: “Dr. Fulano: especialista em direito trabalhista, penal, de família,
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contratual, administrativo, sucessões, consumidor e empresarial”. Se


é especialista em tudo, não é em nada, assim como não há prioridade
se tudo é tratado como prioritário. Para que você tenha uma ideia da
complexidade dos assuntos aqui tratados, somente um dos livros que usei
como referência, o excelente Comporte-se, de Robert Sapolsky, tem quase
mil páginas! Assim, esta obra não visa a substituir as obras de referência
em cada tema. Este livro é um compêndio. Preferi um texto que trou-
xesse uma imagem ampla do cenário da tomada de decisão judicial sob
incerteza a detalhes minudenciosos de um ponto único no horizonte.
Em pouco mais de trezentas páginas, é o que se pode conseguir.
O objetivo deste livro é ajudar estudantes e atores jurídicos a compreen-
derem melhor o processo cognitivo de tomada de decisão e a empregarem
meios que minorem, dentro do possível, os erros de julgamento. Mas
também é útil aos tomadores de decisão que exercem funções de gestão
de alto nível em empresas e no setor público. Trata-se de uma obra para
não iniciados no neurodireito ou para quem já tem um pouco de leitura
e quer conhecer mais. Minha pretensão é de gerar um texto sobre a
tomada de decisão judicial que seja de divulgação científica, leve, que
traga pesquisas e experimentos interessantes, úteis e ilustrativos para
estudiosos do direito e para quem atua na prática forense. Se ele for
saboroso o bastante para abrir o apetite a conteúdos mais complexos e,
aí sim, especializados, ficarei feliz, pois terá cumprido seu objetivo.
Outro alerta que faço: se pensa que vai ler um livro dogmático, melhor
dar meia volta e trocá-lo por um que lhe traga uma visão acalentadora
de como deveria ser o neurodireito, com soluções simples e recheado de
hipostasias (tomar como real o que só existe no ideal).
Não é um livro de ênfase prescritiva, mas descritiva – como a ciência é.
Não se trata de pensar como o cérebro deveria funcionar, mas sim como
funciona; nem como os juízes deveriam decidir, mas como decidem.
Talvez você perceba que não há separação entre sujeito e objeto, que está
tudo junto e misturado e que, ao final, talvez saia com mais questões do
que soluções. Mas quem sabe desperte em você o desejo de saber mais
sobre esse campo de conhecimento em que se tem avançado muito e que
influencia a prática forense cada dia mais.
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Em vez de uma viagem sobre o mundo e o que acontece lá fora, pode


ser, também, que você se surpreenda em um processo de autorreflexão e
autoconhecimento enquanto ser humano e estudante ou profissional do
direito. Pelo menos, foi isso que senti com as leituras que fiz nesse espaço
entre as neurociências e o direito. Foi transformador. E é isso que relatam
meus alunos magistrados nos cursos que ministro sobre essa temática.
Este livro, aliás, é fruto das reflexões que fiz para as aulas e da participação
dos alunos com perguntas, reflexões e debates, enquanto elas ocorriam.
Assim como o cérebro processa as informações em várias regiões (em-
bora possa haver alguma eventualmente mais implicada), em relação ao
método de divisão dos assuntos ao longo do texto, alguns tópicos resolvi
não abordar apenas em um momento. Resolvi agir assim, porque há uma
interseccionalidade nos temas e para não tornar a leitura enfadonha.
A obra está dividida em 10 capítulos e mais um capítulo extra, que é
opcional.
No primeiro capítulo, faço uma aproximação inicial sobre a interseção
entre o direito e as ciências do cérebro. Além disso, abordo a anatomia
e a fisiologia cerebrais, de modo a se ter uma compreensão básica sobre
o que será tratado no resto da obra. Visando a manter a proposta inicial
de uma redação mais leve e agradável, resolvi deixar para um capítulo
extra, como apêndice, as questões mais aprofundadas (e áridas) sobre a
estruturação e o funcionamento do sistema nervoso.
Já ouviu falar em epigenética? Ainda no Capítulo 1, abordarei seus
efeitos em nosso cérebro e como impactam na tomada de decisão.
Por fim, nesse capítulo abordo um tema que estará presente ao longo
do livro, que são os princípios que regem o funcionamento das redes
neurais: associação, compatibilidade, retenção e foco. Aliás, sempre que
um conceito importante surgir pela primeira vez, será destacado em
negrito, explicando-o ou remetendo à página ou ao capítulo que o expli-
ca, onde a palavra ou expressão também estará em negrito para facilitar
sua localização. Com isso, busco facilitar a compreensão, porque muitas
informações serão novidade para um jurista leigo nas ciências do cérebro.
O segundo e o terceiro capítulos abordarão dois temas entrelaçados: a
percepção e a consciência. Será que enxergamos o mundo como realmente
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ele é? Quais os limites de nossa percepção? Teremos a oportunidade de


nos deparar com experimentos científicos que demonstram como esses
processos atuam por trás da cortina do palco da consciência. E que tal
experimentá-los você mesmo? Vamos refletir sobre como o discurso
jurídico costuma partir de um ponto de vista racionalista e formalista,
mas que não se sustenta em pé. A consciência será posta no seu devido
lugar, muito menos glamoroso do que o senso comum imagina. Quanto
ao livre-arbítrio, como veremos, não é tão livre assim. Trarei alguns
experimentos que demonstram isso – alguns dos quais você também
poderá participar.
O quarto capítulo abordará a memória, seus tipos, como se dá seu
armazenamento, sua evocação e alguns fenômenos importantes relativos
a ela, já dando as primeiras nuances diretamente sobre o processo de
tomada de decisão, como é o caso do efeito priming, objeto de experi-
mentos que você também poderá fazer. As lacunas da memória também
serão abordadas, porque deve ser do interesse do tomador de decisão
judicial e das partes igualmente, compreender como, por exemplo, provas
testemunhais podem ser inconsistentes e até manipuláveis por meio de
artimanhas simples.
O cérebro social é título e tema do quinto capítulo. Trata de como nos
sujeitamos às influências grupais, cujo processo que as expõe remonta a
nosso passado evolutivo. Veremos como somos sujeitos à conformidade
social. Prazer social versus dor social: decidir contra a pressão grupal é
doloroso. Eis um dos grandes desafios a quem exerce a jurisdição: ser
contramajoritário quando necessário, enfrentando as nossas tendências
de conformação ao grupo (vide conformidade social, página 171).
Entremos, então, no sexto capítulo. Esse trará uma explicação mais
detida acerca dos processos que atuam em nossa tomada de decisão, de
modo a fazê-la fugir da lógica e do pensamento normativo. Trataremos
nesse capítulo também da dissonância cognitiva, a que todos nós estamos
sujeitos, e seus reflexos na tomada de decisão judicial. Abordaremos
ainda o raciocínio motivado, quando as emoções e desejos interferem
na interpretação. E como se formam nossas certezas? Elas são factuais
ou um sentimento? Você terá que ler, para saber!
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No sétimo, o processamento dual. Como nosso cérebro tem dois mo-


dos de funcionamento, um mais ligado à intuição e outro ao pensamento
analítico, veremos como isso se origina da evolução de nossa espécie e, o
mais importante, em que medida é bom ou ruim. Sistema 1 e Sistema 2
(ou processamentos do Tipo 1 e do Tipo 2), já ouviu falar? Se não, nesse
capítulo você compreenderá o que são e sua importância para os atores
jurídicos. Veremos o que são atalhos mentais, as chamadas heurísticas, e
os vieses e ruídos que delas decorrem e produzem erros de julgamento.
Como diferenciar viés de ruído também será uma tarefa nesse capítulo.
A todo tempo você será confrontado com os princípios das redes neurais
(associação, compatibilidade, retenção e foco) para melhor compreender
a estrutura neural que há por trás dos vieses e ruídos.
O capítulo oitavo, para mim o mais empolgante de escrever, trará os
vieses que considero cruciais no dia a dia da prática forense. Embora ao
longo da obra eu aborde muitos vieses e ruídos, nesse capítulo, quinze
deles serão tratados separadamente. Você terá a oportunidade de expe-
rienciar como eles acontecem por meio de atividades. Acho que isso será
muito interessante para facilitar sua compreensão sobre cada um deles
e poder trazer esse conhecimento para seus estudos jurídicos ou sua
atividade enquanto ator jurídico, seja você juiz, advogado ou parquet. A
todos muito aproveita, só muda o lado da mesa.
O capítulo nono – que também gostei muito de pesquisar e formatar
– cuidará de questões pontuais que resolvi destacar por serem também
bastante importantes para o processo de tomada de decisão em juízo.
Questões que dizem respeito a características demográficas dos juízes e
das partes, por exemplo. Será que elas influenciam a decisão? Ou circuns-
tâncias externas às pessoas dos atores jurídicos ou partes, como fatores
ambientais externos ou internos (local em que os atores jurídicos atuam),
geográficos e até topográficos, relativos às peculiaridades da estruturação
e funcionamento do Judiciário em nada influenciam. Enfim, questões
individuais, situacionais ou sistêmicas.
Por fim, no décimo capítulo, o enfrentamento dos preconceitos e dos
vieses. Como desenviesar. É uma tarefa fácil o desenviesamento? Nem um
pouco. Mas há estratégias que serão apresentadas e que podem, dentro do
possível e dos limites da racionalidade humana – que é limitada – obter
algum sucesso.
O capítulo extra é para quem quer se aprofundar um pouco mais
em termos de neurociências. Ele desce a minudências da anatomia e
da fisiologia cerebral e, por isso, pode parecer um pouco árido para um
jurista. Abordo temas como as divisões do sistema nervoso em central-
-periférico, voluntário-autônomo etc., e do cérebro em si, como córtex,
neocórtex, lobos e o sistema límbico. Além disso, falo sobre as células
que formam nosso sistema nervoso e trago uma ideia geral da evolução
do nosso cérebro. Busquei fatos e fundamentos que considero interes-
santes para que possamos compreender melhor o neurodireito, mas que
não necessariamente são essenciais ao entendimento desta obra. No que
possa ser importante aos não iniciados em leituras sobre neurociências,
ao longo do texto, farei remissões pontuais a informações desse capítulo
(como o funcionamento de um neurônio, por exemplo).
Então, vamos começar?
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DAS NEUROCIÊNCIAS
AO NEURODIREITO
“Quem o Direito só sabe, nem o direito sabe”
San Tiago Dantasb

Estava numa comarca do interior, no início da carreira. Havia uma


ação penal que tratava de um acusado que, juntamente com um desco-
nhecido, ingressou numa padaria, anunciou um assalto, levou o dinheiro
do caixa e tomou a chave da moto de uma cliente, dizendo que era só
para fugir. Então, saiu pilotando em disparada. A motocicleta foi largada
uns quarteirões à frente.
A tese do Ministério Público (mp) era de que tinha havido dois roubos
– o da padaria e o da moto, o chamado concurso material de crimes. A
tese da defesa (por um defensor dativo) era de crime continuado, em que
se condena por um só crime, com um pequeno aumento pelo segundo.
Quando fui fazer a sentença, veio-me à cabeça uma dúvida: se a moto
foi mesmo subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela
fora abandonada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo
por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum
impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo
técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda juiz substituto, inexperiente e inseguro, faltou-me coragem para
rechaçar a pretensão do Ministério Público (mp) naquele momento, pois
temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha
uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui conversar
sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o
combativo promotor de justiça, que também chamamos de parquet. Por
b. Advogado, professor e político brasileiro (1911-1964).

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