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Neurociências e Direito: uma interface necessária.

Prof. Dr. Eduardo Jucá

Pelo aprofundamento de uma relação multidisciplinar

A interface entre o conhecimento sobre o funcionamento do cérebro e o estudo


do Direito constitui um campo aberto para aprofundamento e novos aprendizados. De
fato, as duas últimas décadas marcaram a entrada das neurociências em campos tão
variados quanto a educação, o marketing e a economia, entre muitos outros que
envolvam necessariamente a atividade humana. No campo do estudo, da elaboração e
da aplicação das leis, entretanto, este consórcio parece caminhar ainda de maneira mais
lenta. Há, sem dúvida, importantes iniciativas no sentido, mas que ainda não permitem
deixar de soar como novidade aos ouvidos dos profissionais de ambas as áreas as
tentativas de abordagem em conjunto.
Não se trata aqui simplesmente do já habitual recurso a laudos psiquiátricos ou
psicológicos na definição da condição de inimputabilidade de pessoas portadoras de
transtornos mentais. O conhecimento de neurociência tem muito a colaborar com o
Direito, tanto na fundamentação teórica quanto na aplicação prática, ao enfocar os
processos racionais e emocionais na tomada de decisão sobre praticamente todas as
vezes em que indivíduos aceitam a tarefa de elaborar argumentos ou de julgar casos
específicos.
O estranhamento a uma falta de maior interação entre os dois campos do
conhecimento torna-se mais intenso na medida em que se verifica que o cérebro é, a
uma só vez, ator e matéria do Direito. Ator protagonista, pois a elaboração e a aplicação
das leis têm base no processo decisório cujo teatro de operações é o cérebro,
reivindicando a atuação de distintas áreas cerebrais para que se parta de um episódio
ou de uma conduta específica e se chegue a uma conclusão sobre a adequação do fato
em estudo às leis e à vida harmônica em Sociedade. Ao mesmo tempo, o cérebro é
matéria sobre a qual o Direito se debruça, pois, as condutas julgadas são resultado
também de decisões, refletidas ou impulsivas, tomadas por membros desta mesma
Sociedade, submetidos ao arcabouço legal que rege seu funcionamento.
É possível mesmo resgatar da história jurídica episódios em que a falta de
aprofundamento sobre o funcionamento cerebral pode ter tido influência decisiva nos
resultados finais. Entre estes episódios encontram-se os assassinatos dos presidentes
americanos James Garfield e William McKinley, além da acusação e condenação do
capitão francês Alfred Dreyfus no final do século 19. Estes casos serão analisados em
maior detalhe após uma análise da evolução do cérebro e da especialização de suas
regiões anatômicas estruturais, fenômenos indispensáveis para as capacidades
essencialmente humanas de executar planejamento e tomada de decisão.

A evolução de uma estrutura capaz de tomar decisões


Inicialmente, é fundamental compreender como o cérebro é organizado
estruturalmente e como se adequou ao longo da evolução da espécie humana para
funcionar no modo atual. Nesse sentido, é preciso ficar muito clara a relação estreita
entre a localização topográfica das estruturas e as funções exercidas pelo Sistema
Nervoso. Diferentemente de outros órgãos e sistemas do corpo humano, o Sistema
Nervoso exerce múltiplas funcionalidades, como a motricidade (ato de mover as partes
do corpo), a recepção e a interpretação de todos os tipos de sensibilidade (incluindo os
populares 5 sentidos: tato, visão, audição, olfato e paladar), o processamento
emocional, a linguagem, o controle de impulsos e a tomada de decisões, entre outros.
Ao se fazer comparações, por exemplo, com o sistema respiratório, cuja função única é
a troca gasosa necessária ao suprimento de oxigênio para as células ou com o sistema
digestório, dedicado exclusivamente a processar o alimento em partículas menores
capazes de serem metabolizadas pelo organismo para a obtenção de energia, percebe-
se de maneira bastante direta e objetiva a complexidade e as relações multilaterais das
partes e das regiões do cérebro.
Simplificando, enquanto o ápice do pulmão direito executa exatamente os
mesmos processos fisiológicos que a base do pulmão esquerdo, um deslocamento de
poucos milímetros no cérebro pode levar a uma localização responsável por uma função
absolutamente diferente, controlando uma parte do corpo distinta daquela controlada
por sua vizinhança. Deste modo, a relação invariavelmente presente entre estrutura e
função no Sistema Nervoso torna seu estudo bastante específico no contexto geral da
biologia, partindo de princípios não aplicáveis a outros componentes do organismo.
Este nível de especialização acaba trazendo ao cérebro uma predominância
natural sobre o corpo humano sobre o qual exerce controle quase total. Uma prova
desta predominância é que, o advento do transplante de órgãos possibilitou a troca de
partes do corpo entre indivíduos no qual o receptor mantém sua individualidade e sua
identidade prévias ao procedimento cirúrgico. Entretanto, do ponto de vista teórico, se
fosse possível tecnicamente a realização de um transplante cerebral, o cérebro levaria
consigo a identidade e a individualidade do doador, e a pessoa resultante da intervenção
seria o doador no “corpo” do receptor, visto que suas ideias, visão de mundo e modo
de sentir e de decidir seguiria sendo aquele determinado pelo cérebro “novo”.
Fenômeno que reforça estas ideias é a mudança de comportamento de pessoas que
sofrem lesões cerebrais por traumatismos acidentais ou outras condições de saúde,
situações em que passam a não ser reconhecidas como “os mesmos” pelos próprios
familiares ou pessoas próximas. Conclui-se, assim, que os processos cerebrais definem
a própria identidade de um ser humano, tornando-o único dentre todos os outros, com
base em seu modo de agir, de sentir, de pensar, de existir.
Entretanto, considerando a evolução dos seres vivos, o advento do cérebro
moderno com todas estas funções superiores é uma aquisição bastante recente. A
informação de que a existência de vida na Terra é estimada em 3,5 bilhões de anos e o
surgimento dos primatas, ordem à qual o ser humano está filiado, em 55 milhões de
anos, coloca o aparecimento do homo sapiens como algo acontecido anteontem em
termos histórico-evolutivos, por volta de 200.000 anos atrás, no vale do Rift, na África
oriental.
Seguindo esta linha evolutiva, sabe-se que durante bilhões de anos a vida na
Terra era composta por seres unicelulares bastante simples, rudimentares, cujas
relações com meio ambiente se limitavam a troca de nutrientes e ocupação de espaço.
Ao longo das etapas evolutivas, o surgimento de indivíduos mais complexos,
multicelulares, levou a relações mais complexas com o ambiente externo, de modo que
os novos seres passaram a ter a capacidade de aproximar-se de fontes de alimento mais
vantajosas e afastar-se de fontes de perigo ou de lesão. Isto só se tornou possível graças
às faculdades de captar estímulos (irritabilidade) e elaborar respostas, funções que
foram sendo concentradas em Sistemas Nervosos rudimentares que surgiram pela
primeira vez em pequenos animais marinhos (celenterados).
A existência de um Sistema Nervoso individualizado, concentrando as funções
de controle das funções do organismo e de ralação com o meio ambiente parece ter
sido uma aquisição extremamente vantajosa do ponto de vista evolutivo, pois tornou-
se elemento constante em toda a sucessão do aparecimento de novas espécies a partir
daí. A posse de uma rede neural tendo como elemento principal um cérebro cada vez
mais concentrador de funções, com tamanho maior e situado cefalicamente na porção
ântero-superior do corpo provavelmente por motivos de proteção constitui um
direcionamento evolutivo nítido que culminou com o aparecimento do cérebro mais
complexo e habilitado a executar funções elaboradas e únicas à sua espécie, o cérebro
do homo sapiens.
Nesse contexto, um princípio fundamental a ser retido é que o cérebro humano
não surgiu como uma estrutura original assentada sobre bases inéditas, mas foi
resultado de longuíssimos períodos de adaptação ao longo da evolução tal como Darwin
postulou na sua obra maior, “A Origem das Espécies”. Assim, o cérebro humano possui
estruturas responsáveis pelos fenômenos psíquicos elaborados exclusivos do último
grau da evolução, mas também é portador das maquinarias neurais mais simples que já
estavam presentes nos animais menos evoluídos, utilizadas por estes em seus próprios
processos neurológicos básicos. O conhecimento sobre esta evolução do Sistema
Nervoso é de grande importância para a compreensão de como o cérebro humano
chegou à capacidade exclusiva de julgar e decidir.
Assim, as propriedades mais básicas de controle das funções do organismo e de
resposta básica a mudanças no ambiente mantendo as condições internas ideais tem
como sede o tronco cerebral, que fica na base do crânio. Algumas fontes bibliográficas,
em uma tentativa extrema de simplificação, designem esta estrutura como cérebro
reptiliano, pois já está presente nos répteis e a eles serve para as mesmas funções que
medeia nos seres humanos, como controle dos batimentos cardíacos, da respiração e
do ajuste geral das condições internas do organismo. Basicamente é o tronco cerebral
que mantém as funções vegetativas do indivíduo, sendo que pessoas em coma profundo
e sem qualquer capacidade de interação consciente com o meio têm as funções vitais
mantidas apenas pela ação desta estrutura.
Já boa parte dos mamíferos, evolutivamente mais adiantados que os répteis,
apresentam padrões comportamentais mediados por emoções, que, do ponto de vista
neurais necessitam de estruturas subcorticais e corticais primitivas como a amigdala
cerebral e o hipocampo. Em conjunto, estas estruturas são designadas de maneira
simplificada como cérebro mamífero. De fato, é da experiência comum que os animais
domésticos são capazes de expressar reações emocionais afetivamente positivas em
relação a seus tutores humanos, sobretudo quando recebem atitudes de agrado como
oferecimento de alimento. Por outro lado, são capazes de atitude agressiva,
principalmente direcionada a estranhos e quando se sentem ameaçados.

Razão e sensibilidade
Os comportamentos emocionais são, na verdade, uma grande aquisição
evolutiva relacionada à própria busca pela sobrevivência. Considere-se uma zebra na
savana africana que sente o cheiro de um leão. De maneira instintiva e sem necessitar
de reflexão ou raciocínio, um estado emocional em tudo comparável ao medo será
despertado no animal, que adotará comportamento de fuga, aumentando suas chances
de sobrevivência com base no despertar de uma emoção. No ponto de vista oposto, o
leão, ao perceber a presença da zebra, terá despertado em estado emocional de
agressividade que o impulsionará no sentido de atacar a presa para se alimentar. Tendo
em conta que o leão tem opções alimentares limitadas e, devido a determinismo de sua
carga genética, é exclusivamente carnívoro, a emoção despertada também contribuiu
para o aumento de suas chances de sobrevivência, pois não tem a opção de não comer
a carne fresca de uma presa, sob pena de desnutrição.
Esta associação entre emoção e comportamento no reino animal pode parecer
simplória e óbvia, mas o que o senso comum tende a desconsiderar é que este tipo de
reação também está presente no ser humano. Esta negligência conceitual seletiva
provavelmente se deve, em parte, à arrogância do ser humano ao considerar sua
racionalidade algo que o torna alheio a qualquer característica animal. A contribuição
da Neurociência vem no sentido oposto, ao revelar que as estruturas neurais
relacionadas a estados emocionais como o medo e a agressividade são as mesmas no
ser humano e nos vertebrados quadrúpedes, provando que as pessoas são tão capazes
de reações impulsivas quando em estresse emocional quanto seres vivos inferiormente
situados na escala evolutiva.
O diferencial evolutivo no cérebro humano em relação a estes vertebrados são
estruturas que possibilitam o controle sobre os estados emocionais involuntariamente
instalados, o planejamento, o aprendizado, o julgamento e a tomada de decisão, entre
outros processos. A maioria destes fenômenos ocorre no córtex cerebral, parte externa
do cérebro (córtex vem do grego, casca). Por estar presente já nos primatas, que
possuem em parte estas capacidades, obviamente em grau bastante limitado, esta parte
do Sistema Nervoso é chamada de cérebro primata.
Chega-se, com o córtex cerebral, ao ápice evolutivo do Sistema Nervoso.
Composto por aproximadamente 85 bilhões de neurônios, células nervosas altamente
especializadas para a condução de estímulos elétricos (impulsos nervosos) e trilhões de
comunicações entre estes neurônios, as sinapses, o córtex permite a capacidade de
adaptação ante novas situações conhecida como Neuroplasticidade. A própria
arquitetura cerebral, com múltiplas possibilidades de comunicação entre as células,
torna possível esta notável capacidade de adaptação.

Mapa do caminho
Como dito anteriormente, o Sistema Nervoso guarda intensa relação entre
localização e função. Isto se mantém, em termos de compartimentalização e
especialização, no córtex cerebral, em que diferentes situações topográficas são
responsáveis por funções diversas. Ao longo da história da Medicina, diferentes modos
de estudo e de investigação tornaram possível estabelecer um mapa do cérebro,
incluindo a definição das áreas responsáveis pelo controle dos impulsos e da tomada de
decisões.
O primeiro meio de conhecimento, que predominou da era Hipocrática até o
século XIX, em velocidade lenta de acúmulo de dados e de informações, foi o
estabelecimento de relações entre pacientes com lesões cerebrais e as deficiências
neurológicas que apresentavam. Em um exemplo clássico, o neurologista francês Pierre
Paul Broca encontrou na necrópsia de um paciente que havia perdido a capacidade de
falar uma lesão na parte inferior do lobo frontal esquerdo. Imediatamente, esta região
foi associada à área da emissão do discurso falado. O avanço do conhecimento científico
comprovou a assertiva, e a esta região passou a ser chamada de Área de Broca, a área
da emissão da linguagem falada.
Já no século XX, um outro meio para mapear o cérebro foi obtido com o
progresso da Neurocirurgia e a possibilidade de, durante intervenções cirúrgicas, aplicar
estímulos elétricos na superfície do córtex cerebral e observar os fenômenos resultantes
da estimulação de cada região. Por exemplo, ao estimular eletricamente uma área
localizada próxima ao centro do cérebro, obteve-se a movimentação da mão do
paciente anestesiado. Assim, conclui-se que aquela é a área responsável pela
movimentação da mão. Um grande expoente deste método foi o neurocirurgião
americano que atuou principalmente na Universidade McGill, no Canadá, Wilder
Penfield. Juntando os conhecimentos prévios com aqueles obtidos em sua atividade
cirúrgica, Penfield foi capaz de elaborar um mapa básico e bastante abrangente das
funções cerebrais.
A partir do final do século XX, com o estabelecimento da imagem do cérebro por
meio de ressonância magnética, tem sido possível avançar ainda mais na identificação
das funções das regiões do sistema nervoso com o uso da chamada ressonância
funcional. Por meio de artifícios tecnológicos, é possível obter imagens cerebrais que
realçam com mais intensidade as áreas mais ativas naquele momento em que o exame
foi realizado. Assim, pode-se instalar um paciente no equipamento de ressonância e
pedir que ele se concentre, por exemplo, em situações que provoquem aversão e
repulsa. A ressonância apontará a área cerebral mais ativa naquela ocasião, indicando a
região relacionada à reação correspondente.
Em suma, a articulação destes métodos de estudo permitiu um mapeamento
bastante avançado do cérebro e um acelerado avanço na compreensão sobre o seu
funcionamento. A formação deste corpo de conhecimentos levou à possibilidade de
classificação das áreas do córtex cerebral segundo critérios determinados. Os principais
critérios utilizados para esta classificação são a situação anatômica (posição), a
filogênese (momento de aparecimento na escala evolutiva) e a funcionalidade.
Quanto a posição anatômica, a divisão do cérebro se faz em lobos frontal,
parietal, temporal, occipital e a ínsula, porção de córtex situada entre os lobos frontal e
temporal. Apesar de não dar muita informação sobre funções neurais, esta classificação
é muito importante para que haja referencial de localização e para facilitar a
comunicação. Exemplificando, quando digo que a área de controle dos impulsos e
planejamento de comportamento estratégico fica no lobo frontal, uma representação
mental situando o fenômeno na parte da frente do cérebro é automaticamente
elaborada.
A classificação filogenética explicita a sequência em que a área cortical específica
surgiu ao longo da evolução. O hipocampo, área do córtex cerebral mais primitiva e que
apareceu primeiro na evolução corresponde ao arquicórtex. Não pode passar
despercebido o fato de que a área cortical mais primitiva, evolutivamente falando, está
intensamente associada ao processamento emocional, mesmo no cérebro humano. O
giro para-hipocampal, área acessória do hipocampo, é classificada como paleocórtex.
Todo o resto do córtex, incluindo as áreas que medeiam os fenômenos mais elaborados
do ponto de vista cognitivo são classificadas como neocórtex, ou seja, surgidas mais
recentemente na escala evolutiva, o que confere aos humanos, seus portadores, a
possibilidade de realizar os processos mais modernos do ponto de vista evolutivo.
Levando em conta o critério funcional, as áreas do córtex cerebral são divididas
em primárias, secundárias e terciárias. As áreas primárias exercem diretamente a função
à qual estejam relacionadas, sejam elas sensoriais ou motoras. Assim, da área motora
primária sai a ordem direta para a movimentação de um braço ou de uma perna, por
exemplo. As áreas sensitivas primárias são responsáveis pela captação dos estímulos
associados a cada tipo de sensação. Por exemplo, à área visual primária direciona-se a
captação do sentido da visão, fenômeno análogo ocorrendo com as áreas primárias
auditiva, olfatória, gustativa e somestésica.
As áreas secundárias influenciam e aprimoram o que acontece nas áreas
primárias. Desse modo, a área motora primária auxilia na preparação e no controle do
movimento. Já as áreas sensoriais secundárias possibilitam a interpretação das
sensações captadas nas áreas primárias. Assim acontece com as áreas secundárias,
visual, auditiva e somestésica. Dessa forma, a sensação auditiva de uma melodia é
processada na área auditiva primária, mas a interpretação deste som se dá na área
auditiva secundária. Fica evidente então que, quando se trata dos estímulos do
ambiente recebidos pelo Sistema Nervoso do indivíduo, a etapa de sensação está
separada da etapa de interpretação. Deste princípio, importantes questionamentos
podem surgir, como a possibilidade de que indivíduos diferentes possam apresentar
juízos de valor distintos sobre um mesmo fenômeno, uma vez que a realidade se
apresenta como a mesma e uma só para todos, mas a maquinaria neural interpretativa
é única para cada ser humano. Fica clara a necessidade então, de estabelecimento de
critérios que visem a objetivar questões passíveis de interpretações múltiplas e
incongruentes dentro da mesma Sociedade.
Já as áreas terciárias são áreas de associação multimodais, que integram
diferentes processos neurais para mediar fenômenos sofisticados como o controle de
impulsos e o planejamento comportamental estratégico. A mais importante área
terciária do cérebro humano é a área pré-frontal, localizada na parte da frente do
cérebro. Nesta região ocorrem as etapas finais do processo de planejamento e tomada
de decisão, com a utilização de informações tão diversas quanto a memória, as
emoções, a noção de tempo passado e futuro e os diferentes tipos de sensibilidade.
Nota-se, portanto, a separação, tanto anatômica quanto funcional, das
estruturas dedicadas ao processamento das emoções e aquelas que seriam a sede do
que se pode chamar por aproximação benevolente de “racionalidade”. As estruturas
relacionadas às emoções estão classicamente agrupadas em um conjunto designado
como Sistema Límbico, grupo de regiões que contém, por exemplo, o hipocampo, a
amígdala cerebral, o giro do cíngulo e o hipotálamo. Já as regiões responsáveis pelo
controle dos impulsos provocados pelo aparecimento de intensos estados emocionais e
também pela tomada de decisões adequadas estão situadas na área pré-frontal.
O caso concreto mais estudado de toda a história das neurociências confirma
estas ideias. Phineas Gage, 27 anos de idade, era um capataz que liderava uma equipe
de trabalhadores na construção e estradas de ferro nos estados unidos no ano de 1848.
Era conhecido como bom profissional, disciplinado e cumpridor cuidadoso de seus
deveres. Naquele ano, em um dia especialmente quente, Gage sofreu um acidente ao
ajudar seus funcionários a socar pólvora com uma barra de ferro. Uma faísca provocou
uma explosão e a barra de ferro perfurou o crânio de Gage na região frontal. De modo
surpreendente para a época, após cuidados médicos intensos, o paciente recuperou-se
sem qualquer deficiência motora ou sensorial, exceto pela perda do olho esquerdo.
Entretanto, ao tentar retornar a suas atividades rotineiras, as pessoas de seu convívio
próximo perceberam que Gage apresentava importante mudança de atitude e de
comportamento, passando a ser um indivíduo impulsivo, sem controle sobre sus atos,
enfrentando constantes problemas no trabalho. Este caso e todas as análises feitas em
torno dele comprovaram que a lesão da área pré-frontal havia sido a responsável pela
perda de capacidade de comportar-se adequadamente.
Um dos principais estudiosos que se debruçaram sobre o caso de Gage em busca
de respostas sobre a influência da estrutura cerebral no comportamento humano e
sobre as consequências das lesões de áreas específicas foi Antônio Damásio,
neurocientista e pesquisador português que exerceu sua atividade nos Estados Unidos,
juntamente com sua esposa Hannah Damásio. Em sua principal obra, “O erro de
Descartes”, Damásio questiona a racionalidade como elemento absoluto e indissociável
dos processos emocionais e da memória, defendendo que razão e emoção não são
processos exclusivos ou antagônicos, mas, ao contrário, complementares para o
adequado estabelecimento das bases do comportamento e cuja sinergia é fundamental
para a adequada tomada de decisões.

Tomada de decisão: processo exclusivamente racional?


De fato, segundo Damásio, o emprego exclusivo da racionalidade na tomada de
decisões seria prejudicial ao processo decisório em si. Como em um mundo complexo
as opções de caminhos a serem tomados são ilimitadas e cada opção abre portas para
mais uma infinita gama de opções subsequentes, o processo racional puro comporia um
algoritmo infinito que impossibilitaria decisões concretas, objetivas e em tempo útil. Na
verdade, à medida em que as opções vão sendo analisadas, todo um alicerce emocional
e de memória entra em cena para direcionar o indivíduo que decide em um sentido ou
em outro, mesmo que de maneira inconsciente e acreditando que está sendo
absolutamente “racional”. Este conhecimento neurocientífico reforça a necessidade de
que profissionais que atuem com tomada de decisões difíceis e de consequências
impactantes, como médicos e operadores do Direito, acumulem tempo de experiência
para que sua atuação seja embasada por um repertório amplo o suficiente para
direcionar os julgamentos no sentido adequado.
Estudos de ressonância magnética funcional posteriores aos principais trabalhos
de Damásio corroboram suas opiniões. Sabe-se, atualmente, que a ínsula, região
cerebral situada entre os lobos frontal e temporal, encontra-se mais ativa em situações
que provocam aversão e repulsa. Isto pode sugerir que circunstâncias não racionais
podem influir em uma emissão de opinião se envolverem situações que provoquem
estas reações no observador. Por outro lado, a região anterior do giro do cíngulo
encontra-se ativada em situações de dúvida, sobretudo aquelas persistentes e de difícil
solução. Esta associação de estrutura com fenômeno neural mostrou-se tão intensa que
um dos tratamentos atuais para o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é a lesão
cirúrgica intencional do cíngulo anterior, com base na ideia de que a dúvida intensa
sobre a efetividade ou não da execução de um ato leva à compulsão para repeti-lo
indefinidamente. Desse modo, verifica-se que a racionalidade pura é posta em cheque
por estruturas pertencentes ao próprio órgão pretensamente encarregado de exercê-
la: o cérebro.
Um outro autor que estuda profundamente o processo decisório e questiona o
papel exclusivo da racionalidade é Daniel Kahneman, psicólogo israelense com atuação
em Israel e nos Estados Unidos, vencedor do prêmio Nobel de economia em 2002. Em
uma de suas principais obras, “Rápido e Devagar”(Think Fast and Slow), Kahneman
defende a existência de dois sistemas de tomada de decisão no cérebro humano. O
sistema 1, ou “rápido”, atua de maneira quase imediata, com base em pressupostos e
padrões já existentes. O sistema 2, ou “devagar”, é mais analítico, toma mais tempo
para chegar a suas conclusões e requer mais energia para atuar. Não se deve encarar
um dos sistemas como superior ao outro, mas entender que cada um tem sua função a
depender do contexto da situação em que o indivíduo se encontra. Portanto, seria tão
equivocado que o sistema 2 atuasse na decisão sobre fugir ou não de um cão agressivo
que se aproxima quanto apoiar-se na atuação do sistema 1 na análise de um julgamento
complexo com vários argumentos a serem considerados. Decisões inadequadas podem
surgir quando não se aplica adequadamente cada sistema. Ressalte-se que a utilização
destes sistemas não é consciente, mas evocada a depender de cada situação. Nesse
sistema, vieses podem aparecer no sentido de dificultar as decisões, como por exemplo
o cansaço físico e mental e a falta de alimentação adequada na necessidade de se utilizar
o sistema 2, que exige bastante energia para seu funcionamento. Nestas condições, a
fadiga e a fome podem provocar decisões apressadas e equivocadas.
Ainda no sentido de compreender adequadamente que elementos podem levar
um indivíduo a ter determinada atitude ou a apresentar uma opinião em um sentido
específico, é importante captar o conceito de “teoria da mente”. Possuir ou exercitar
teoria da mente é justamente entender que outra pessoa pode ter um pensamento
diferente do seu próprio, uma vez que é um indivíduo independente, com uma mente
própria. Este conceito pode parecer intuitivo, mas verifica-se que muitos indivíduos têm
dificuldade em entender como o pensamento de outras pessoas pode ser diverso do
seu. A faculdade de possuir teoria da mente demora alguns anos para se estabelecer no
ser humano, e pode ser demonstrada em experimentos por volta dos 4 anos de idade.
Na verificação prática mais clássica, duas crianças estão brincando em um ambiente e
uma delas é retirada do recinto, após mostrar às duas crianças que um determinado
objeto está contido em uma caixa. O examinador então retira uma das crianças da sala
e troca o objeto de caixa na frente da criança que permaneceu. Em seguida, pergunta a
esta criança onde sua colega irá procurar o objeto ao retornar par a sala. As crianças que
já desenvolveram teoria da mente respondem corretamente que a criança que havia
saído procurará o objeto na caixa original. Ou seja, mesmo sabendo que o objeto está
em um novo local, a criança que ficou sabe que a outra pode ter um pensamento
diferente, posto que baseado em outra premissa, outro conhecimento.
Ainda no campo do comportamento humano sujeito a julgamento de conduta
pela Sociedade, a corrupção é um dos fenômenos que mais tem atraído a atenção.
Questionamentos sobre a motivação da atuação de um político corrupto ou sobre
porque alguém é capaz de continuar realizando fraudes, mesmo já tendo acumulado um
vasto patrimônio, fazem parte de conversas informais em círculos profissionais ou
familiares.
Teorias neste sentido apontam um papel do centro cerebral do prazer e da
gratificação da repetição do comportamento transgressor. O principal sistema no
cérebro de disparo de bem estar e recompensa e a via mesolímbica, que proporciona a
liberação de dopamina na região do estriado ventral (em algumas fontes também
referido como núcleo accumbens). Esta é a mesma via envolvida em outros tipos de
vício, como jogos de azar ou sexo, e mesmo na adicção a drogas, lícitas ou ilícitas.
Por outro lado, trabalhos realizados com tomografia por emissão de pósitron
(PET), como o estudo de Abe e colaboradores em 2007, demonstrou a ativação de áreas
específicas do lobo frontal quando indivíduos eram solicitados a mentir
deliberadamente para terceiros, mostrando a utilização de áreas cerebrais específicas
em circunstâncias necessárias ao ato de agir de maneira desonesta ou corrupta.
Após todas estas considerações, é possível reanalisar os casos dos assassinatos
dos presidentes americanos Garfield e McKinley e da condenação do capitão Dreyfus na
França. Ambos os assassinos dos presidentes dos estados Unidos foram condenados à
morte rapidamente após os crimes. Apesar do viés trazido pela vontade impulsiva de se
fazer justiça diante do gravíssimo crime de assassinato do presidente da república,
outras análises poderiam ter sido feitas caso os assassinos tivessem seus históricos
comportamentais mais detalhadamente examinados, além de serem submetidos a
exames de imagem inexistentes na época e disponíveis hoje. Análises posteriores
sugerem fortemente que ambos os criminosos eram provavelmente portadores de
anomalias cerebrais que influíram decisivamente em seus atos, que não tiveram
aparentemente qualquer motivação política prática ou concreta.
Já no caso de Alfred Dreyfus, condenado por alta traição no final do século XIX
na França, julgamentos apressados e a negligência quanto a provas de sua inocência
levaram a um escândalo que envolveu até o famoso escritor Émile Zola. Mesmo que
houvesse razões baseadas em antissemitismo para julgar Dreyfus culpado pela
passagem de informações secretas a agentes alemães, evidências ao longo do processo
foram pouco valorizadas diante do fato assumido de que o militar tinha que ser o
culpado, independente das evidências em contrário que deveriam ser analisadas pelo
sistema analítico de tomada de decisões, tal como explicado por Kahneman.
O presente texto não tem, nem de longe, a pretensão de ensinar neurociências
a operadores do Direito em uma só abordagem, muito menos de esgotar um assunto
tão amplo como a interface entre as duas áreas do conhecimento. Entretanto, espera-
se ter levantado questões suficientes para que o desejo pelo aprofundamento desta
relação seja despertado e aprofundado, pois temos a profunda convicção que
profissionais de jaleco e de toga têm muito a progredir em associação, tanto do ponto
de vista teórico e intelectual quanto da atividade prática de suas profissões.

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