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Razão e sensibilidade
Os comportamentos emocionais são, na verdade, uma grande aquisição
evolutiva relacionada à própria busca pela sobrevivência. Considere-se uma zebra na
savana africana que sente o cheiro de um leão. De maneira instintiva e sem necessitar
de reflexão ou raciocínio, um estado emocional em tudo comparável ao medo será
despertado no animal, que adotará comportamento de fuga, aumentando suas chances
de sobrevivência com base no despertar de uma emoção. No ponto de vista oposto, o
leão, ao perceber a presença da zebra, terá despertado em estado emocional de
agressividade que o impulsionará no sentido de atacar a presa para se alimentar. Tendo
em conta que o leão tem opções alimentares limitadas e, devido a determinismo de sua
carga genética, é exclusivamente carnívoro, a emoção despertada também contribuiu
para o aumento de suas chances de sobrevivência, pois não tem a opção de não comer
a carne fresca de uma presa, sob pena de desnutrição.
Esta associação entre emoção e comportamento no reino animal pode parecer
simplória e óbvia, mas o que o senso comum tende a desconsiderar é que este tipo de
reação também está presente no ser humano. Esta negligência conceitual seletiva
provavelmente se deve, em parte, à arrogância do ser humano ao considerar sua
racionalidade algo que o torna alheio a qualquer característica animal. A contribuição
da Neurociência vem no sentido oposto, ao revelar que as estruturas neurais
relacionadas a estados emocionais como o medo e a agressividade são as mesmas no
ser humano e nos vertebrados quadrúpedes, provando que as pessoas são tão capazes
de reações impulsivas quando em estresse emocional quanto seres vivos inferiormente
situados na escala evolutiva.
O diferencial evolutivo no cérebro humano em relação a estes vertebrados são
estruturas que possibilitam o controle sobre os estados emocionais involuntariamente
instalados, o planejamento, o aprendizado, o julgamento e a tomada de decisão, entre
outros processos. A maioria destes fenômenos ocorre no córtex cerebral, parte externa
do cérebro (córtex vem do grego, casca). Por estar presente já nos primatas, que
possuem em parte estas capacidades, obviamente em grau bastante limitado, esta parte
do Sistema Nervoso é chamada de cérebro primata.
Chega-se, com o córtex cerebral, ao ápice evolutivo do Sistema Nervoso.
Composto por aproximadamente 85 bilhões de neurônios, células nervosas altamente
especializadas para a condução de estímulos elétricos (impulsos nervosos) e trilhões de
comunicações entre estes neurônios, as sinapses, o córtex permite a capacidade de
adaptação ante novas situações conhecida como Neuroplasticidade. A própria
arquitetura cerebral, com múltiplas possibilidades de comunicação entre as células,
torna possível esta notável capacidade de adaptação.
Mapa do caminho
Como dito anteriormente, o Sistema Nervoso guarda intensa relação entre
localização e função. Isto se mantém, em termos de compartimentalização e
especialização, no córtex cerebral, em que diferentes situações topográficas são
responsáveis por funções diversas. Ao longo da história da Medicina, diferentes modos
de estudo e de investigação tornaram possível estabelecer um mapa do cérebro,
incluindo a definição das áreas responsáveis pelo controle dos impulsos e da tomada de
decisões.
O primeiro meio de conhecimento, que predominou da era Hipocrática até o
século XIX, em velocidade lenta de acúmulo de dados e de informações, foi o
estabelecimento de relações entre pacientes com lesões cerebrais e as deficiências
neurológicas que apresentavam. Em um exemplo clássico, o neurologista francês Pierre
Paul Broca encontrou na necrópsia de um paciente que havia perdido a capacidade de
falar uma lesão na parte inferior do lobo frontal esquerdo. Imediatamente, esta região
foi associada à área da emissão do discurso falado. O avanço do conhecimento científico
comprovou a assertiva, e a esta região passou a ser chamada de Área de Broca, a área
da emissão da linguagem falada.
Já no século XX, um outro meio para mapear o cérebro foi obtido com o
progresso da Neurocirurgia e a possibilidade de, durante intervenções cirúrgicas, aplicar
estímulos elétricos na superfície do córtex cerebral e observar os fenômenos resultantes
da estimulação de cada região. Por exemplo, ao estimular eletricamente uma área
localizada próxima ao centro do cérebro, obteve-se a movimentação da mão do
paciente anestesiado. Assim, conclui-se que aquela é a área responsável pela
movimentação da mão. Um grande expoente deste método foi o neurocirurgião
americano que atuou principalmente na Universidade McGill, no Canadá, Wilder
Penfield. Juntando os conhecimentos prévios com aqueles obtidos em sua atividade
cirúrgica, Penfield foi capaz de elaborar um mapa básico e bastante abrangente das
funções cerebrais.
A partir do final do século XX, com o estabelecimento da imagem do cérebro por
meio de ressonância magnética, tem sido possível avançar ainda mais na identificação
das funções das regiões do sistema nervoso com o uso da chamada ressonância
funcional. Por meio de artifícios tecnológicos, é possível obter imagens cerebrais que
realçam com mais intensidade as áreas mais ativas naquele momento em que o exame
foi realizado. Assim, pode-se instalar um paciente no equipamento de ressonância e
pedir que ele se concentre, por exemplo, em situações que provoquem aversão e
repulsa. A ressonância apontará a área cerebral mais ativa naquela ocasião, indicando a
região relacionada à reação correspondente.
Em suma, a articulação destes métodos de estudo permitiu um mapeamento
bastante avançado do cérebro e um acelerado avanço na compreensão sobre o seu
funcionamento. A formação deste corpo de conhecimentos levou à possibilidade de
classificação das áreas do córtex cerebral segundo critérios determinados. Os principais
critérios utilizados para esta classificação são a situação anatômica (posição), a
filogênese (momento de aparecimento na escala evolutiva) e a funcionalidade.
Quanto a posição anatômica, a divisão do cérebro se faz em lobos frontal,
parietal, temporal, occipital e a ínsula, porção de córtex situada entre os lobos frontal e
temporal. Apesar de não dar muita informação sobre funções neurais, esta classificação
é muito importante para que haja referencial de localização e para facilitar a
comunicação. Exemplificando, quando digo que a área de controle dos impulsos e
planejamento de comportamento estratégico fica no lobo frontal, uma representação
mental situando o fenômeno na parte da frente do cérebro é automaticamente
elaborada.
A classificação filogenética explicita a sequência em que a área cortical específica
surgiu ao longo da evolução. O hipocampo, área do córtex cerebral mais primitiva e que
apareceu primeiro na evolução corresponde ao arquicórtex. Não pode passar
despercebido o fato de que a área cortical mais primitiva, evolutivamente falando, está
intensamente associada ao processamento emocional, mesmo no cérebro humano. O
giro para-hipocampal, área acessória do hipocampo, é classificada como paleocórtex.
Todo o resto do córtex, incluindo as áreas que medeiam os fenômenos mais elaborados
do ponto de vista cognitivo são classificadas como neocórtex, ou seja, surgidas mais
recentemente na escala evolutiva, o que confere aos humanos, seus portadores, a
possibilidade de realizar os processos mais modernos do ponto de vista evolutivo.
Levando em conta o critério funcional, as áreas do córtex cerebral são divididas
em primárias, secundárias e terciárias. As áreas primárias exercem diretamente a função
à qual estejam relacionadas, sejam elas sensoriais ou motoras. Assim, da área motora
primária sai a ordem direta para a movimentação de um braço ou de uma perna, por
exemplo. As áreas sensitivas primárias são responsáveis pela captação dos estímulos
associados a cada tipo de sensação. Por exemplo, à área visual primária direciona-se a
captação do sentido da visão, fenômeno análogo ocorrendo com as áreas primárias
auditiva, olfatória, gustativa e somestésica.
As áreas secundárias influenciam e aprimoram o que acontece nas áreas
primárias. Desse modo, a área motora primária auxilia na preparação e no controle do
movimento. Já as áreas sensoriais secundárias possibilitam a interpretação das
sensações captadas nas áreas primárias. Assim acontece com as áreas secundárias,
visual, auditiva e somestésica. Dessa forma, a sensação auditiva de uma melodia é
processada na área auditiva primária, mas a interpretação deste som se dá na área
auditiva secundária. Fica evidente então que, quando se trata dos estímulos do
ambiente recebidos pelo Sistema Nervoso do indivíduo, a etapa de sensação está
separada da etapa de interpretação. Deste princípio, importantes questionamentos
podem surgir, como a possibilidade de que indivíduos diferentes possam apresentar
juízos de valor distintos sobre um mesmo fenômeno, uma vez que a realidade se
apresenta como a mesma e uma só para todos, mas a maquinaria neural interpretativa
é única para cada ser humano. Fica clara a necessidade então, de estabelecimento de
critérios que visem a objetivar questões passíveis de interpretações múltiplas e
incongruentes dentro da mesma Sociedade.
Já as áreas terciárias são áreas de associação multimodais, que integram
diferentes processos neurais para mediar fenômenos sofisticados como o controle de
impulsos e o planejamento comportamental estratégico. A mais importante área
terciária do cérebro humano é a área pré-frontal, localizada na parte da frente do
cérebro. Nesta região ocorrem as etapas finais do processo de planejamento e tomada
de decisão, com a utilização de informações tão diversas quanto a memória, as
emoções, a noção de tempo passado e futuro e os diferentes tipos de sensibilidade.
Nota-se, portanto, a separação, tanto anatômica quanto funcional, das
estruturas dedicadas ao processamento das emoções e aquelas que seriam a sede do
que se pode chamar por aproximação benevolente de “racionalidade”. As estruturas
relacionadas às emoções estão classicamente agrupadas em um conjunto designado
como Sistema Límbico, grupo de regiões que contém, por exemplo, o hipocampo, a
amígdala cerebral, o giro do cíngulo e o hipotálamo. Já as regiões responsáveis pelo
controle dos impulsos provocados pelo aparecimento de intensos estados emocionais e
também pela tomada de decisões adequadas estão situadas na área pré-frontal.
O caso concreto mais estudado de toda a história das neurociências confirma
estas ideias. Phineas Gage, 27 anos de idade, era um capataz que liderava uma equipe
de trabalhadores na construção e estradas de ferro nos estados unidos no ano de 1848.
Era conhecido como bom profissional, disciplinado e cumpridor cuidadoso de seus
deveres. Naquele ano, em um dia especialmente quente, Gage sofreu um acidente ao
ajudar seus funcionários a socar pólvora com uma barra de ferro. Uma faísca provocou
uma explosão e a barra de ferro perfurou o crânio de Gage na região frontal. De modo
surpreendente para a época, após cuidados médicos intensos, o paciente recuperou-se
sem qualquer deficiência motora ou sensorial, exceto pela perda do olho esquerdo.
Entretanto, ao tentar retornar a suas atividades rotineiras, as pessoas de seu convívio
próximo perceberam que Gage apresentava importante mudança de atitude e de
comportamento, passando a ser um indivíduo impulsivo, sem controle sobre sus atos,
enfrentando constantes problemas no trabalho. Este caso e todas as análises feitas em
torno dele comprovaram que a lesão da área pré-frontal havia sido a responsável pela
perda de capacidade de comportar-se adequadamente.
Um dos principais estudiosos que se debruçaram sobre o caso de Gage em busca
de respostas sobre a influência da estrutura cerebral no comportamento humano e
sobre as consequências das lesões de áreas específicas foi Antônio Damásio,
neurocientista e pesquisador português que exerceu sua atividade nos Estados Unidos,
juntamente com sua esposa Hannah Damásio. Em sua principal obra, “O erro de
Descartes”, Damásio questiona a racionalidade como elemento absoluto e indissociável
dos processos emocionais e da memória, defendendo que razão e emoção não são
processos exclusivos ou antagônicos, mas, ao contrário, complementares para o
adequado estabelecimento das bases do comportamento e cuja sinergia é fundamental
para a adequada tomada de decisões.