Você está na página 1de 241

Salvaguarda do Património Arquitetónico

Projeto e Identidade, Práticas de

Ailton António Ramos Correia


em Cabo Verde
MESTRADO INTEGRADO
ARQUITETURA

M
2019

Ailton António Ramos Correia. Projeto e Identidade, Práticas


M.FAUP 2019
de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde
Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do
Património Arquitetónico em Cabo Verde
Ailton António Ramos Correia
FACULDADE DE ARQUITETURA
Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico
em Cabo Verde

Ailton António Ramos Correia

Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura


Orientador: Professor Doutor Nuno Valentim Lopes
Co-orientador: Arquiteto Miguel Tomé
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
Porto 2019
Nota Prévia

A presente dissertação encontra-se ao abrigo do novo acordo ortográfico.


Em memória do meu avô Leão Lopes e do meu tio Jacinto Lopes.
“Do we know why “island” is the unconditional poetic word? It only needs be
mentioned from afar and we mobilize everything in us that wishes to flee. From
banality to entrancement, from worry to meditation, from terra firma to controlled
waters. Before the bird, the angel, the demon, the island is the key term that describes
the human essence.”1

Peter Sloterdijk

1 THE DRUNKEN ISLE – Peter Sloterdijk in INSULAR INSIGHT – Where Art and Architecture Conspire
with Nature – NAOSHIMA, TESHIMA, INUJIMA – Fukutake Foundation, Lars Müller Publishers, 2011. p.33
SUMÁRIO
Agradecimentos
Resumo
Abstract
INTRODUÇÃO
20 Um Território, Várias Motivações
21 Objeto, Objetivos
22 Inquietações e Pertinência
26 Metodologia e Estrutura

CAPÍTULO 1 – ENQUADRAMENTO
30 1.1- Património, Identidade e Valor
39 1.2- Cabo Verde, Geografia e Arquitetura Vernacular
49 1.3- Temáticas de Salvaguarda do Património Arquitetónico em Cabo Verde
83 1.4- Património, Turismo e Desenvolvimento

CAPÍTULO 2 – ANÁLISE e INTERPRETAÇÃO


95 2.1- Caracterização da Amostra
2.2- Cidade Velha, o impulso para a salvaguarda do património cabo-verdiano
99 Da Ribeira Grande à Cidade Velha
105 Plano de Recuperação e Transformação
119 Salemi versus Cidade Velha

2.3- Museu da Resistência, o despertar do museu da memória


127 Uma colónia penal isolada
135 O Museu da Resistência
149 Memórias difíceis

2.4- Spinguera Ecolodge, um modelo alternativo possível


155 Espingueira, entre o calcário e as dunas
161 Uma aldeia alternativa
169 Um continuar inovando

2.5- Ribeira da Torre, o lugar, a habitação tradicional na atualidade


175 Um belo vale
181 Um projeto para a comunidade
189 De Lagedos para Ribeira da Torre
2.6- Sede do Parque Natural do Fogo, entre a tradição e a inovação
193 Um lugar singular
197 Da construção tradicional ao edifício contemporâneo
207 Centros interpretativos

CONCLUSÃO
217 Contribuições para a Valorização da Identidade Arquitetónica
Cabo-verdiana
225 Perspetivas

227 Bibliografia
235 Lista de Imagens
241 Lista de acrónimos
AGRADECIMENTOS

Ao professor Nuno Valentim pela disponibilidade, pertinência e pragmatismo


que mostrou ao longo do trabalho, também pelas sábias palavras que partilhou
em momentos de algumas inquietações.
Ao Miguel Tomé pela disponibilidade, pelo interesse, e principalmente pelo
apelo a um pensamento crítico sobre o trabalho.
Aos inúmeros que contribuíram ao longo do trabalho, entre os quais Leão
Lopes, Ângelo Lopes, José Paiva, Larissa Lazzari, Ricardo Barbosa Vicente,
Jaylson Monteiro, Adalberto Tavares, Egas Vieira, Helena Albuquerque, Ana
Filipa Marques, Francisco Moreira e muitos outros.
Aos que disponibilizaram o seu tempo e aos me acolheram durante as visitas
realizadas.
Aos amigos pelo apoio e a minha família por tudo, especialmente a minha mãe
pela constante motivação.
Ao Lucas e a Inês pela alegria.
RESUMO

A presente dissertação faz uma contextualização histórica da salvaguarda


patrimonial no arquipélago de Cabo Verde. Uma reflexão sobre as práticas
construtivas contemporâneas no confronto com as tradições culturais e
construtivas dos lugares, estimulando o debate em torno dos valores de
permanência e transformação.
Reconhecendo a singularidade da arquitetura vernacular, acentuada pela
condição de insularidade, considera-se que esta poderá constituir um
importante meio de aprendizagem e de desejado enriquecimento cultural.
Assim sendo, realiza-se uma análise de algumas caraterísticas das construções
de raiz tradicional e vernácula, estabelecendo pontos de relação com cinco
casos de estudo, que constituem exemplos de intervenções no construído que
materializam programas de turismo cultural associados a ações de salvaguarda
patrimonial numa perspetiva de desenvolvimento.
Esses casos incluem temas de reabilitação, restauro, valores patrimoniais,
processos de musealização, tradições construtivas e arquitetura contemporânea.
A operação de análise destes projetos procura estudar os processos construtivos
tradicionais e verificar a forma como esse modus operandi foi retomado
nos casos estudados, considerados exemplares e potencial matéria para
o enriquecimento disciplinar e para afirmação dos valores da identidade
arquitetónica cabo-verdiana.

Cabo Verde; Arquitetura; Património; Vernacular; Reabilitação; Salvaguarda;


Identidade; Musealização;
ABSTRACT

This thesis makes an historical contextualization of the patrimonial protection


of Cape Verde’s islands. It’s a reflection on the contemporary practices against
the cultural traditions, encouraging the debate around the values of continuity
and transformation.
Recognizing the singularity of traditional architecture, emphasized by the
island’s isolation, one can consider that this might be an important way of
learning and cultural enrichment.
Therefore, an analysis of some construction’s characteristics, developed within
the traditional and vernacular criteria was made, establishing a connexion
between the five case studies. These case studies are examples of interventions
that represent tourism programs, linked by patrimonial protection actions in a
development perspective.
The case studies include rehabilitation, renovation, heritage, musealization
processes, building traditions and contemporary architecture.
The analysis of these projects aims to study the traditional building processes
and to see how the modus operandi was revived on the case studies, considered
an example and a potential source for the subject’s development as well as an
affirmation of the identity heritage of Cape Verde architecture.

Cape Verde; Architecture; Patrimony; Vernacular, Rehabilitation, Protection,


Identity, Musealization
INTRODUÇÃO
Um Território, Várias Motivação

Após a independência de Cabo Verde, as elites intelectuais e políticas


promoveram um amplo debate em torno de questões ligadas à história e às
memórias do seu povo, na tentativa de refundar a sua identidade cultural. Essa
inquietação estava já presente durante o período de luta pela descolonização,
como se deduz da afirmação de Amílcar Cabral: “No quadro da conquista
da Independência Nacional, na perspectiva da construção do progresso
económico do povo, o desenvolvimento de uma cultura popular e de todos
os valores positivos autóctones é um objectivo a atingir.”2 Para Cabral, este
objetivo não se esgotava na exaltação da cultura do seu povo, mas também na
redescoberta do passado do país, o que implicava a concretização de políticas
de conservação e preservação de vestígios materiais que representassem esse
processo histórico.
A presente dissertação pretende desenvolver uma reflexão em torno da
problemática da salvaguarda do património arquitetónico e da identidade
arquitetónica em Cabo Verde. Esta temática é, especialmente relevante por duas
razões fundamentais: Primeiramente, responde à vontade de conhecer melhor
a cultura arquitetónica e as práticas de projeto concretizadas na multiplicidade
das paisagens insulares de onde é oriundo o autor do trabalho. Por outro
lado, o facto de se tratar de um universo cultural tão distinto, permite um
distanciamento em relação ao objeto de estudo, pertinente para consubstanciar
uma perspetiva crítica e multicultural relativamente ao confronto dos valores
locais e globais que agem naquele território.
A singularidade da arquitetura vernacular, das tradições construtivas e da
utilização dos materiais endógenos, acentuada pela condição de insularidade
manifestada no modo de vida, motivou e poderá constituir um importante
meio de aprendizagem e de desejado enriquecimento cultural. Nesse sentido,
o desenvolvimento desta dissertação constituiu uma oportunidade para
redescoberta do arquipélago, das suas paisagens e das suas gentes.

2 LOPES FILHO, João - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa:
ed. Ribeiro, José A. 1985. p.10

20
Objeto, Objetivos

O trabalho foi desenvolvido com base num estudo exploratório sobre a história
da salvaguarda patrimonial em Cabo Verde, com particular enfoque em
acontecimentos marcantes, assim como nas personalidades que protagonizaram
essas ações. Além desta abordagem mais global, foram abordados cinco
casos de estudo, exemplares de processos que fomentaram o debate e
reflexão sobre a salvaguarda do património arquitetónico cabo-verdiano na
contemporaneidade. Foram então selecionados os seguintes projetos: o Plano
de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, o Museu da Resistência, o
projeto de reabilitação e adaptação a hotel da antiga aldeia de Espingueira, o
projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre e o
edifício da Sede do Parque Natural do Fogo.
Tendo como título Projeto e Identidade, Práticas de Salvaguarda do
Património Arquitetónico em Cabo Verde, a dissertação aponta os seguintes
objetivos:
- estudar casos que concretizem a renovação de tradições construtivas e a
integração de valências contemporâneas, nomeadamente ao dos dispositivos
formais ou das instalações técnicas, por forma a responder às novas
necessidades programáticas;
- reconhecer processos e metodologias de trabalho fundadas no diálogo entre
agentes diversificados, entre os quais se podem identificar instituições locais
e atores estrangeiros, portadores de culturas exógenas capazes de induzir o
necessário desenvolvimento económico e cultural;
- identificar de que forma os projetos assinalados promoveram discursos sobre
a identidade cultural, qual o impacto na cultura arquitetónica do país e como
foram assimilados pela população local;
- esboçar uma posição crítica em relação a algumas opções de projeto,
apontando os aspetos mais interessantes e com possibilidades de aplicação
noutros contextos;
- inferir, a partir da análise dos projetos, também os processos de negociação
entre impulsos de transformação e vontades de permanência dos valores
identificados.
- propor comparações com projetos semelhantes a nível de programa, tipologia
e contexto.

21
Inquietações e Pertinência

A defesa do património e sua reabilitação, em Cabo Verde, são problemáticas


complexas que se afirmaram ainda antes da independência, durante a década
de vinte de novecentos, momento em que personalidades começaram a
demonstrar preocupações com a salvaguarda de edifícios ou de territórios
dotados de especial significado coletivo. Sem grandes consequências, a estes
movimentos embrionários seguiram-se algumas ações concretas, encetadas
pelo governo português nos finais da década de sessenta 3, ainda que
circunscritas a um único aglomerado. Em paralelo, o eclodir dos movimentos
independentistas, desencadeou uma reflexão, de teor nacionalista, sobre
os valores culturais específicos daquele povo, expressos não só nos bens
construídos, mas também no património imaterial. Com a independência,
a nação depara-se com questões prementes de (re)encontro com os valores
identitários desse povo, então entendidos como sendo o resultado da
miscigenação orgânica de culturas de raiz europeia e africana 4. A preocupação
pela sua preservação, apesar de constantemente invocada pelos vários governos,
só ganha efetiva expressão quando alguns representantes da UNESCO visitaram
Cabo Verde na década de oitenta 5 e reconheceram o valor especial da Cidade
Velha 6, a primeira fundação urbana em Cabo Verde e porto importante nas
transações atlânticas na época esclavagista. Data de 1992 a primeira tentativa
de candidatura dessa urbe a património da humanidade. Só alguns anos
depois, após terem sido criadas condições para a realização do plano de gestão,
que envolveu a participação do arquiteto Álvaro Siza no desenvolvimento do
projeto de revitalização urbana, trabalho esse que passou pelo envolvimento
da população local na definição das premissas gerais. A candidatura foi aceite
e a antiga cidade de Ribeira Grande, passou a pertencer à lista do património
mundial da humanidade. Como afirma José Manuel Fernandes: “Em termos de
património construído, a classificação da Ribeira Grande / Cidade Velha de

3 AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana –
Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007).
p.16
4 “A nação cabo-verdiana é o resultado da mistura étnica e cultural de portugueses com
mais de vinte nações africanas.” Idem, ibidem.
5 “Esta primeira missão da UNESCO no campo da preservação dos bens culturais teve
como objectivo avaliar os bens de Cabo Verde e formular sugestões para a elaboração de um
plano de valorização do mesmo. A missão realizou-se de 27 de Novembro a 27 de Dezembro de
1980 e permaneceu a maior parte do tempo na ilha de Santiago, mas visitou também as ilhas do
Fogo (4 dias), de S.Vicente (4 dias), e de Santo Antão (2 dias).” Idem, ibidem.
6 “A Ribeira Grande, hoje conhecida como a “Cidade Velha" de Santiago (classificada
pela UNESCO como Património da Humanidade), que constituiu a primeira cidade europeia
em África, desenvolveu-se a partir do século XV ao longo de uma ribeira escavada entre
vales, espaço propicio para protecção e obtenção de água - num território geralmente árido e
inóspito.” in FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África
Portuguesa, Lisboa: Caleidoscópio, 2015. p.35

22
Santiago como património mundial / World Heritage pela UNESCO, em 2009,
foi sem dúvida um marco de dimensão internacional para a vida cultural do
arquipélago 7.” Depois de atingir esse objetivo, tem-se trabalhado de forma mais
intensa e abrangente na valorização, preservação e classificação do património
nas suas diferentes tipologias (tanto materiais como imateriais), sendo algum
destes monumentos recuperados. Um dos exemplos mais recentes é o atual
Museu da Resistência, instalado no antigo Campo de Concentração do Tarrafal.
Estas ações trazem esperança numa melhor abordagem desse tema, no entanto
é possível identificar ainda algumas lacunas, nomeadamente no que se refere a
alguns casos de arquitetura vernacular.
Para além da investigação concretizada no âmbito académico, a administração
pública nomeadamente o Instituto do Património Cultural, órgão do
ministério da cultura, tem realizado trabalhos de salvaguarda do património
arquitetónico cabo-verdiano. Por sua vez, entidades privadas como o Atelier
Mar 8 tem trabalhado tanto na sensibilização para o reconhecimento de valores
culturais, como na dinamização e preservação de técnicas ligadas a construções
tradicionais, artes e ofícios do país. A ONG dispõe de um Centro de Formação
na cidade do Mindelo onde forma artesãos oriundos de várias ilhas do país, nas
mais variadas tecnologias 9.
Partindo do reconhecimento da pertinência do tema e das lacunas existentes
nos trabalhos que abordam o património arquitetónico cabo-verdiano, a
dissertação irá procurar desenvolver os seguintes pontos:
1- fazer o enquadramento histórico do processo de salvaguarda de bens
culturais, apresentando alguns dos seus protagonistas e das suas iniciativas.
Procuramos colmatar algumas das lacunas identificadas em trabalhos anteriores
da mesma natureza, que restringem a abordagem ao período histórico da
colonização portuguesa, pelo que a diacronia contemplada nesta dissertação se

7 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo
Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA,
2014. p.13
“Em 2013 o governo assinalava, no quadro do património cultural e construído, a existência
de cinco urbes classificadas como Património Nacional: O Plateau (núcleo histórico) da Praia, o
Mindelo, São Filipe, Ribeira Brava e Nova Sintra (esta reconhecida em Outubro de 2013) – para
além dos dois sítios classificados, a Pedra de Lume e o “Campo” do Tarrafal.” Idem, p.13
8 “O ATELIER MAR - Mais do que recuperar e promover as artes e ofícios de Cabo
Verde, o Atelier Mar (onde Leão Lopes é um os mentores desde o seu inicio) desenvolve um
trabalho exemplar junto da população mais carenciada, não só de São Vicente mas também na
ilha de Santo Antão, no Concelho de Porto Novo, em Lajedos. A formação, integração social,
preservação dos recursos hídricos e ambientais e a preservação da cultura e identidade das
populações rurais são algumas das iniciativas que esta ONG desenvolve. ‘Atelier Mar – Centro
de Artes e Ofícios.” in SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP,
2009. p.111
9 Idem, ibidem.

23
estende até à atualidade 10.
2 – fundamentar a análise da práxis de intervenção patrimonial anterior ao
momento da independência nacional em estudos exemplares, conhecer e
analisar os dinamismos anteriores à independência e expor acontecimentos da
pós-independência, as dinâmicas e os contributos que guiaram a exaltação da
cultura e a preservação do património cabo-verdiano. Investigadores como José
Manuel Fernandes, Ana Vaz Milheiro e Vera Mariz têm vindo a desenvolver
um vasto trabalho, que engloba temas como o urbanismo e a arquitetura no
ultramar, que incluem algum enfoque sobre Cabo Verde 11. Para a fase pós-
independência recorreu-se aos inúmeros trabalhos produzidos em contexto
académico que focam temas como a arquitetura doméstica, o património
monumental e os museus em Cabo Verde 12.
3- mostrar alguns dos traços da arquitetura vernacular de matriz popular, no
sentido de expor as suas características e o seu contributo para a identidade
arquitetónica tradicional. Também são exibidos projetos de reabilitação com
análises aos métodos utilizados, as tradições recuperadas, as permanências,

10 Os estudos teóricos desenvolvidos, nomeadamente por intelectuais que, de certa


forma, contribuíram para a definição da cultura local e ao mesmo tempo para a valorização
patrimonial no arquipélago. A nível teórico é de destacar que existem abordagens diversas de
forma a enaltecer os valores da cultura cabo-verdiana. Luís Benavente para além de dirigir dos
trabalhos de reabilitação dos monumentos da Cidade Velha na década de sessenta, também
produziu alguns trabalhos teóricos acerca dos monumentos e do património cabo-verdiano,
por sua vez, Orlando Ribeiro no seu livro “A ilha do Fogo e as suas erupções” deixou um legado
importante sobre a cultura e arquitetura da ilha do Fogo, do mesmo modo, o geografo Ilídio
Amaral produziu um trabalho de investigação exaustivo sobre a ilha de Santiago reproduzido
na monográfica “Santiago de Cabo Verde, A Terra e os Homens” publicado em 1964. Na pós-
independência João Lopes Filho, antropólogo cabo-verdiano, contribuiu de forma ativa com a
produção de estudos sobre a antropologia cultural e o património sociocultural do arquipélago.
11 Exemplos de livros desses autores:
- Cidades e Casas da Macaronésia, José Manuel Fernandes (1993)
- NOS TRÓPICOS SEM LE CORBUSIER, Ana Vaz Milheiro (2012)
- Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, José Manuel Fernandes, Maria de Lurdes
Janeiro, Ana Vaz Milheiro (2014);
- Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa, José Manuel Fernandes
(2015);
- a “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património
arquitectónico português ultramarino (1930-1974), Vera Félix Mariz (2015)
12 Exemplos de trabalhos académicos:
- Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha, Ana Filipa Marques
(2001)
- Habitação rural em Santo Antão, Catarina Sampaio (2006)
- Áreas protegidas e/ou zonas de desenvolvimento turístico em Cabo Verde: o caso da Boa
Vista, L. LIMA (2008)
- Arte / desENVOLVIMENTO, José Carlos Paiva Silva (2009)
- O Museu da Resistência: Museutransnacional, Carlos Mendes (2010)
- Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência, Paulo
Alexandre Monteiro Lima (2010)
- A prática de uma aprendizagem, Ângelo Lopes (2014)
- Uma Proposta de Valorização para o Museu da Resistência do Tarrafal, Claudino Borges
(2014)

24
como também as inovações introduzidas.
4- mostrar como algumas manifestações do turismo cultural podem constituir
um caminho alternativo de desenvolvimento e salvaguarda do património
arquitetónico, capaz de assegurar a preservação do espírito dos lugares e das
suas identidades.
5- mostrar como as construções contemporâneas ligadas ao turismo,
maioritariamente de massas, que, perseguindo modelos globalizados,
configuram identidades e imaginários estranhos à essência cultural do
arquipélago, podem constituir um entrave à preservação do legado patrimonial,
contrariamente às arquiteturas que reinterpretam as características construtivas
tradicionais.

25
Metodologia e Estrutura

O estudo empírico baseia-se na análise de intervenções arquitetónicas


recentes, concretizadas em diversas ínsulas, e considerados exemplares. Para
isso foram selecionados cinco casos de estudo, resultantes de projetos com
naturezas, programas e modus operandi díspares, têm em comum o facto, em
conjunto, materializarem um amplo espectro de questões e um quadro teórico
mais abrangente, tais como, a reabilitação urbana, reabilitação de edifício e
equipamento, restauro, musealização e construção nova.
A abordagem aos casos de estudo propõe, numa primeira parte, a exposição
descritiva de cada situação, após o que será feita uma reflexão crítica individual,
apoiada pelo confronto com outros projetos de natureza similar. Objetivamente,
a observação analítica dos casos procura dar a conhecer a geografia, os
contextos físicos e sociais e o processo de desenvolvimento dos trabalhos,
pela identificação dos intervenientes e das características do projeto. A
caraterização social e física do território onde o edifício se insere é estruturada
de forma a contemplar questões que vão do macro espaço até à envolvente
próxima, procurando transmitir nuances da experiência real dos espaços. A
apresentação dos programas de ação é feita através da descrição das motivações
e negociações entre atores, mostrando a especificidade de cada situação. A
abordagem ao projeto de arquitetura é formulada no sentido analítico da
forma, exibindo as opções de projeto, as dificuldades e descortinando os valores
promovidos. Nesse sentido, também procura conhecer a fase de construção da
obra e, consequentemente, os resultados atingidos. Contudo, a abordagem aos
casos de estudo procura expor os contributos para a salvaguarda patrimonial
inerentes a cada um, como também verificar possibilidades de uso dos valores
reconhecidos na arquitetura contemporânea.
Neste sentido, o estudo implicou a realização de tarefas distintas, mas
complementares, tais como: análise de fontes bibliográficas (monografias
e ensaios); abordagem dos casos de estudo, recorrendo a referências
monográficas, periódicos, fontes arquivísticas, desenhos técnicos e informações
orais; realização de entrevistas aos protagonistas dos casos a analisar, a partir
das quais foi possível reunir dados objetivos. Foram ainda recolhidas fontes
primárias na investigação de campo com registo dos objetos de estudo através
de diferentes meios, tais como, visita às obras, fotografia e desenhos.
A dissertação está estruturada em quatro partes interdependentes. A primeira
faz a exposição das motivações, objeto e objetivos, pertinência e a metodologia
do estudo.
No primeiro capítulo expõe-se o quadro teórico e tenta-se caracterizar
os principais conceitos associados às temáticas da dissertação e faz-se o
enquadramento histórico da salvaguarda do património em Cabo Verde, a

26
caracterização geográfica do arquipélago e da sua arquitetura vernacular.
No segundo capítulo será feita a análise e a interpretação de cada um dos casos
de estudo, identificando-se alguns modelos que lhes serviram de referências ou
que por elas foram informados. Será assim feita uma reflexão sobre o projeto e
uma comparação com outros casos, em contexto nacional ou internacional.
Em modo de conclusão, a última parte da dissertação expõe uma consideração
final e lança algumas perspetivas para futuros trabalhos.

27
CAPÍTULO 1
ENQUADRAMENTO
1.1 - Património, Identidade e Valor

“Pouco ou nada vem do génio ou do acaso. Aquilo que somos é daquilo


que fomos construindo ao longo do tempo, e é sempre, inequivocamente,
uma construção da história. Em todos os tempos e em todas as épocas,
houve sempre quem considerasse que, antes de si o caos…Estultícia apenas,
menoridade dos humanos. Os chamados «génios» foram sempre, de um modo
geral, os primeiros a reconhecê-lo. E em património, enquanto disciplina,
impõe-se desde logo, como estética profissional, uma atitude de humildade e
respeito perante o legado que devemos trabalhar.”13
Elísio Summavielle
O moderno conceito de património14 cultural, cuja origem remonta aos finais
do século XVIII, evoluiu bastante no seu recorte conceptual, ganhando maior
abrangência e diversidade. Inicialmente centrado no monumento isolado ou em
pequenos setores da sua envolvente, posteriormente passa a integrar conjuntos
edificados, espaços urbanos e, por fim, o território, nas suas dimensões material
e imaterial.
As diferentes cartas doutrinárias e convenções internacionais que versam sobre
as problemáticas patrimoniais foram contribuindo para a contínua revisão da
definição de monumento e das respetivas ferramentas de gestão e salvaguarda15.
A Carta de Atenas, que fixa as conclusões da Conferência Internacional
sobre o Restauro dos Monumentos, realizada em 1931, procurou estabelecer
critérios gerais de intervenção no património arquitetónico, de entre os quais
se pode destacar o apelo para a importância do uso e da preservação da função
do monumento, associadas à sua manutenção regular, de modo a garantir a
conservação e assim evitar as tão prejudiciais reconstituições integrais. O apelo
ao respeito pela dimensão autoral da obra e pela necessidade de preservar e
respeitar o carácter não só do monumento como da sua envolvente. Retomando
alguns dos princípios doutrinais de autores consagrados, nomeadamente de
Camillo Boito, reconhece-se a pertinência de suprimir partes do edifício que
constituam ruídos e ofusquem a sua leitura, ou então de acrescentar novos

13 SUMMAVIELLE, Elísio - “Memória e identidade”. in Instituto de Gestão do


Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P. - 100 Anos de Património Memória e Identidade.
Portugal 1910-2010, Lisboa: IGESPAR, 2010. p.5
14 “Património (Bem de herança que passa, de acordo com as leis, dos pais e das
mães para os filhos). Esta bela e muito antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas
familiares, económicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo.”
in CHOAY, Françoise – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2016. p.11
15 “A primeira Conferência Internacional para a Conservação dos Monumentos
Históricos, realizada em Atenas em 1931, reuniu apenas europeus. Na segunda, realizada em
Veneza em 1964, participaram três países não europeus: a Tunísia, o México e o Perú. Quinze
anos mais tarde, oitenta países pertencendo aos cinco continentes tinham assinado a Convenção
do Património Mundial.” Idem, p.14

30
elementos, mas sempre garantindo a diferenciação entre o novo e a matéria
original. No caso de restauros de ruínas preconiza a colocação no primitivo
lugar das partes do edifício que estavam derrubadas, através dum processo
de anastilose. Para além dessas recomendações especificas e de caráter
eminentemente operativo, os técnicos lançaram um apelo generalizado a todos
povos para respeitarem e cuidarem dos monumentos 16, numa antevisão do que
seria o conceito de património da humanidade.
Em 1964 teve lugar a segunda conferência internacional, da qual resultou a
Carta de Veneza. É de destacar que nesta edição do congresso houve uma
ampliação do objeto de estudo relacionado com o património pois a carta
refere-se não só a monumentos, mas também a sítios. A própria definição
de monumento histórico ganhou maior amplitude, englobando agora todo
o “testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa
ou de acontecimento histórico”, onde cabem também as obras modestas e
anónimas, que tenham adquirido com o tempo um significado cultural. Nesse
sentido, ficam abrangidas as arquiteturas vernaculares. Também foram feitos
apelos a uma mais cuidada salvaguarda do valor de documento histórico
do monumento, convocando diferentes áreas científicas e tecnológicas para
participarem no processo de salvaguarda. Quanto à intervenção material,
surgiram as seguintes recomendações:
- proceder a estudos arqueológicos e históricos antes da intervenção;
- conservar os estilos das diferentes épocas encontradas no edifício;
- respeitar os materiais originais;
- estabelecer processos de distinção e reversibilidade, no caso de ser necessário
introduzir novos elementos na composição;
- como também todos os elementos novos têm de respeitar a composição
original;
- cuidar da salvaguardar não só da integridade do edifício isolado, mas
igualmente do contexto físico onde se inserem
- preservar a função do edifício, ou introduzir novos usos, desde que
compatíveis, de modo a que este se possa manter útil à sociedade 17.
Após o encontro de Veneza, aconteceram inúmeros momentos de debate e
reflexão sobre a salvaguarda patrimonial, embora se pressinta uma cada vez
maior especialização dos assuntos. O reconhecimento do valor das arquiteturas

16 Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos , Atenas (Grécia), 1931.


17 Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, Veneza
(Itália), 1964.

31
anónimas e, por vezes, da arquitetura popular fora já afirmado no século XIX,
por Ruskin que “teorizou a inclusão no património edificado a preservar,
dos conjuntos urbanos históricos, da arquitectura anónima que, ao longo de
inúmeras gerações, construiu a cidade” 18, essas arquiteturas constituem valores
que englobam a identidade, as tradições e as vivências de um povo. Neste
sentido, no caso específico deste trabalho, para nos dar uma apreciação dos
valores inerentes a arquitetura vernacular poderá ser importante, e tal como foi
observado na convenção sobre a arquitetura vernacular no México em outubro
de 1999,
“The built vernacular heritage occupies a central place in the affection and
pride of all peoples. It has been accepted as a characteristic and attractive
product of society. It appears informal, but nevertheless orderly. It is
utilitarian and at the same time possesses interest and beauty. It is a focus
of contemporary life and at the same time a record of the history of society.
Although it is the work of man it is also the creation of time. It would be
unworthy of the heritage of man if care were not taken to conserve these
traditional harmonies which constitute the core of man's own existence.”19

Será ainda de referir a Carta da Cracóvia, publicada no ano 2000, que lança
o desafio de se estabelecer planos para a gestão integrada e sustentável dos
bens, fundamentada no reconhecimento dos impactos futuros e mudanças
de paradigmas de as ações poderão ser objeto, de modo a prever riscos de
degradação física ou destruição do significado cultural do património. Para
isso, defendem que deve haver maior preocupação com o fator humano, no
sentido de garantir a preservação da autenticidade e da identidade culturais.
A formação e a educação generalizada da população é fundamental para se
assegurar maior envolvimento dos diferentes grupos sociais no processo de
atuação. No caso de ser necessária a realização de intervenções, alerta para a
importância do conhecimento prévio dos bens a proteger e para a necessidade
de mobilizar equipas multidisciplinares ao nível dos processos de avaliação e
de reflexão sobre os valores socioculturais e os contextos socioeconómicas dos
lugares, para promover a preservação dialética dos diferentes estratos históricos.
Também houve um apelo para a necessidade de compreensão e respeito
pelo carácter das paisagens nos processos de intervenção, pois “as paisagens
reconhecidas como património cultural são o resultado e o reflexo da
interacção prolongada nas diferentes sociedades entre o homem, a natureza e
o meio ambiente físico. São testemunhos da relação evolutiva das comunidades
e dos indivíduos com o seu meio ambiente.”20

18 AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do


património. Porto: FAUP, 2002. p.81
19 CHARTER ON THE BUILT VERNACULAR HERITAGE (1999), México
20 Carta de Cracóvia sobre os Princípios para Conservação e o Restauro do Património

32
Reportando a um paradigma no qual as identidades demonstram ser
importantes, uma das conclusões da conferência afirma que “o objectivo
da conservação dos monumentos e dos edifícios com valor histórico, que
se localizem em meio urbano ou rural, é o de manter a sua autenticidade
e integridade, incluindo os espaços interiores, o mobiliário e a decoração,
de acordo com o seu aspecto original.” A conservação pode ser efetuada
através de diferentes modalidades operativas diferenciadas e, porventura,
complementares, tais como: o controle do meio ambiental, a manutenção, a
reparação, o restauro, a renovação e a reabilitação.
Hoje, é geralmente reconhecido que a atuação sobre o património e o vasto
espectro de questões que esta comporta, exige um trabalho consciente, contínuo
e pluridisciplinar, em que haja uma permanente atualização de conhecimentos
e debate crítico sobre os princípios teóricos. O reconhecimento e a salvaguarda
do património, nas suas dimensões material e imaterial, envolvem decisões
por parte das entidades reguladoras, tendo em vista não só a conservação
dos valores herdados, mas a criação de novos valores para o futuro. Embora
complexo, poderá ser a forma mais prudente para informar o trabalho de
salvaguarda e preservação desses bens. As questões nunca se esgotam nem
existem soluções definitivas, sendo necessário enfrentar constantemente novos
desafios, através dum processo contínuo de autorreflexão, de teor coletivo e
interdisciplinar. Como afirma Nuno Valentim:“Os problemas do património
despertam “…nos nossos dias, um interesse sem precedentes, afectando
decisões políticas e grandes correntes culturais”. Este interesse e a perceptível
mediatização do tema necessitam de ser acompanhados por reflexão sobre as
práticas, investigação e produção de conhecimento.” 21

Um dos temas que mais tem mobilizado o esforço intelectual é a questão das
identidades, num momento em que se assiste a uma mais intensa e rápida
metamorfose cultural, por processos globalizados de contaminação, aos que se
opõem geralmente reações locais.
“A questão das identidades – pessoais ou coletivas, sociais, locais ou
nacionais – é sem dúvida das mais controversas, levantando problemas
filosóficos e epistemológicos demasiadamente mal resolvidos até hoje, na
minha opinião, por resvalarem com excessiva frequência para o essencialismo
identitário. Foi por isso, creio eu, que a historiografia convencional se
manteve cética e mesmo distante perante a questão das identidades.”22

Construído, Cracóvia (Polónia), 2000.


21 LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação
Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016. p.2
22 CABRAL, Manuel Villaverde - A Identidade Nacional Portuguesa: Conteúdo e
Relevância. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003. p.513

33
Manuel Vilaverde Cabral expõe assim a complexidade que envolve a questão da
identidade cultural, apontando o essencialismo identitário como um caminho
que leva ao impasse, pois reporta para um entendimento rígido e fixo dos
valores em causa. No mesmo sentido, podemos afirmar que “as identidades
colectivas nunca são, portanto, nem definitivas nem sempre estáveis (embora
muitas vezes estáveis), mas frequentemente, works in progress. São, quase por
regra, constitutivamente incompletas: daí a sua plasticidade, o seu dinamismo,
a sua contingência, a sua impureza.”23
Assumir a nossa origem e dizer que pertencemos a um lugar faz parte da nossa
identificação, não ter isso faz com que alienemos da realidade 24. Sabendo que
a identidade é construída por meio do reconhecimento das semelhanças e da
diferença em relação ao outro, nesse sentido, podemos assumir que
“a identidade é, por isso, um processo dinâmico de negociação radicado no
presente, sugerindo a constante construção e reconstrução das suas fronteiras
simbólicas […]. A identidade não é, portanto, uma propriedade natural e
essencial inscrita nas coisas e nas pessoas. É, antes, algo que os indivíduos
ou os grupos decidem voluntária e estrategicamente construir […]. Neste
sentido, toda a formulação da identidade é apenas uma versão da mesma,
podendo coexistir diversas versões de uma mesma identidade, sendo que toda
a versão da identidade é sempre ideológica, pois estabelece uma relação
dialéctica entre a realidade, as ideias, os valores e os interesses de quem a
propõe e activa.”25

No caso das identidades culturais e urbanas, onde existe um coletivo a


formular as suas identificações, tudo poderá ser mais complexo pelas entidades
envolvidas e pela maneira difusa que as coisas podem suceder. Como refere
Boaventura Sousa Santos,
“sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito
menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos
de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas,
como a mulher, o homem, país africano, país latino-americano ou país
europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques
de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis

23 MOREIRA, Carlos Diogo – “Prefácio”. in PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.]
Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006.
24 “Ter uma identidade significa, de facto, ter tomado posse de um mundo,
compreendido com um acto de idenficação. Somente quando se alcançar essa identificação,
poder-se-á dizer que se habita no verdadeiro sentido da palavra (…) Assim, dizemos como auto
- identificação: sou 'florentino', ou sou “romano”. Se este aspecto do viver for perdido, surge a
alienação, o alheamento e, na sua relação com o mundo, o Homem perde a sua base existencial.”
in AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património.
Porto: FAUP, 2002. p.115
25 PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] - Patrimónios e Identidades: Ficções Contem-
porâneas. Oeiras: CELTA EDITORA, 2006. p.2

34
em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de
época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades, são, pois,
identificações em curso.”26

Tentado direcionar estes pressupostos para o campo das identidades urbanas,


e sabendo que as cidades estão em permanente transformação, tanto das
suas gentes como das suas arquiteturas e paisagens, podemos afirmar que a
interpretação das suas identidades pode ser aferida a partir das permanências,
sobre os elementos que asseguram alguma continuidade de sentido aos lugares.
Ou seja, entendemos que as características mais estáveis de um lugar podem
ser reconhecidas durante mais tempo, enquanto que as características fugazes
podem não permanecer nas nossas memórias, por outro lado, a identidade
pode também ser reconhecida nesse dinamismo de transformações e nas
novidades que uma cidade ou um lugar pode oferecer. A identidade pode
assim ser forjada pelo aspeto mutante que a realidade carrega. Tema de grande
complexidade pelo seu carácter polissémico, os processos de construção
identitária implicam o constante acompanhamento das dinâmicas culturais.

Um outro conceito, intrínseco à própria noção de património, que implica uma


abordagem atenta por conter possibilidades de interpretação carregadas de
subjetividades é o de valor. Nós atribuímos valores aos objetos, aos lugares e às
coisas em geral, através de juízos que possuem uma carga relativa e que, como
tal, obrigam a que sejam estabelecidos processos de negociação intersubjetiva
de que resultem critérios comuns que informem uma apreciação objetiva e
coerente dos bens patrimoniais.
O reconhecimento dos mecanismos de afirmação dos valores, sua estratificação
e coexistência por vezes conflitual deve-se ao trabalho do historiador
vienense Aloïs Riegl (1858-1905), publicado em 1903, “O Culto Moderno dos
Monumentos”. Ainda hoje este documento constitui a base para a reflexão sobre
a identificação dos valores da obra arquitetónica.

“Riegl entendeu como valores contemporâneos dos monumentos os seguintes:


(i)valores artísticos relativos, referentes a uma sensibilidade contemporânea;
(ii) valor de novo, que a sociedade sempre atribuiu a uma aparência fresca,
de récem-acabado, no apresso ou preferência da coisa nova sobre a coisa
velha (iii) finalmente, o valor de uso, tomado sobretudo como critério de
distinção entre o monumento histórico e as ruínas, as quais não possuem
valor de uso, mas apenas valor memorial e histórico.”27

26 SANTOS, Boaventura de Sousa - Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-


modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1994. p.119
27 AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do
património. Porto: FAUP, 2002. p.48

35
É de salientar que os valores expostos por Riegl estão presentes não só nos
monumentos 28, mas também num campo mais difuso que pode incluir a
arquitetura popular, a arquitetura corrente, os equipamentos urbanos. Os
critérios estabelecidos por Riegl alertam-nos para o facto de algumas categorias
de valores se oporem entre si, o que gera situações de grande complexidade
quando se pretende atuar sobre esses organismos. Segundo Nuno Valentim,

“a análise e a percepção precursoras de Riegl põem ainda a descoberto


as exigências simultâneas e contraditórias dos valores que envolvem o
edificado patrimonial – também estes dependentes das circunstâncias e por
isso negociáveis caso a caso: “0 valor de antiguidade opõe-se ao valor
de novo e ameaça o valor de uso, enquanto este, por sua vez, pode criar
incompatibilidades com o valor artístico e o valor histórico. Estes valores
contraditórios produzem compromissos que, na óptica do autor [Riegl], são
negociáveis caso a caso, em função do estado do monumento e do respectivo
contexto social e cultural. (…) A percepção dos conflitos latentes no interior
da noção de monumento histórico explica, de certo modo, a ambiguidade em
que, por vezes, caem os doutrinadores e práticos do restauro e que assombra,
de forma geral, as iniciativas de salvaguarda do patrimônio histórico no
século XX.”29

28 Os valores de monumento e seu desenvolvimento histórico - “Por monumento no


sentido mais antigo e originário compreende-se uma obra de mão humana, construída com
fito determinado de conservar sempre presentes e vivos na consciência das gerações seguintes
feitos ou destinos humanos particulares (ou conjuntos de tais feitos e destinos). Pode ser um
monumento artístico ou escrito, conforme se dá a conhecer ao espectador o acontecimento a
imortalizar com os meros meios expressivos da arte plástica ou valendo-se de uma inscrição; o
mais frequente é encontrarem-se unidos em igual grau em dois géneros.” in RIEGL, Alois - O
Culto dos Modernos dos Monumentos. Lisboa: Edições 70, 2016. p.9
29 LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação
Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016.
p.19. - Citando: NETO, Maria João Baptista. Memória, Propaganda e Poder: O Restauro dos
Monumentos Nacionais (1929-1960). Porto: FAUP, 2001. p. 51.

36
500km
500 km
01 Cabo Verde, situação
geográfica

38
1.2- Cabo Verde, Situação Geográfica e Arquitetura
Vernacular

Cabo Verde é um país insular formado por dez ilhas vulcânicas. Situa-se a cerca
de quinhentos quilómetros de distância da costa ocidental de África 30. “Pela
sua situação geográfica na zona tropical atlântica, o Arquipélago de Cabo
Verde é tipicamente um estado do «Sahel»: «Le Sahel en pleine mer»”,31 facto
que lhe confere um clima tropical seco de aridez acentuada. As ilhas compõem
paisagens diversificadas, entre a tropical e a aridez desértica,32 e, “tal como
os países do Continente Africano, o Arquipélago conhece um longo período
de seca de 9 meses e um período irregular de chuvas no Verão/Outono de 5
meses.”33

As ilhas de Cabo Verde foram descobertas durante as expansões portuguesas


“entre 1460 e 1462, por António da Noli, Diogo Gomes e Diogo Afonso,
constituídos lugares inicialmente desabitados, que foram seguidamente
povoados pelos portugueses” 34. Encontradas desérticas e sem condições
favoráveis para constituição de povoados, o certo é que estavam numa posição
favorável de ligação aos novos portos mirados pelas frotas portuguesas, o que
impulsionou a fixação humana. Anos após o descobrimento, a ilha de Santiago
foi o principal porto de escala e tráfego esclavagista,35 constituindo uma
paragem obrigatória nas ligações marítimas transatlânticas 36. Fundaram-se aqui

30 “As Ilhas de Cabo Verde ficam situadas a cerca de 500 Km a ocidente da ponta mais
ocidental de Africa - o «Cap Verd» (Senegal), do qual as ilhas receberam o nome. Situando-se
entre 14° 48' e 17° 12' de latitude norte', assim como entre 22° 41' e 25° 42' de longitude oeste,
são as componentes mais a sul do grupo de ilhas constituídas pelas ilhas dos Açores, Madeira,
Canãrias e Cabo Verde. Na direcção do principal vento dominante de nordeste, o Arquipélago
é dividido em Ilhas do Barlavento a norte, que são compostas pelas Ilhas de Santo Antão, São
Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista e os Ilhêus Branco e Razo, e a sul pelas Ilhas
de Sotavento, que se compõem das Ilhas de Maio, Santiago, Fogo, Brava, às quais se juntam os
Ilhéus Secos: Grande, Luís Carneiro e Cima.” in KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo
Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Instituto
Caboverdiano do livro, 1987. p. 13-14
31 Idem, p.24
32 “Sub-tropicais e áridas, escassamente povoadas desde a sua descoberta na segunda
metade do século XV, as dez ilhas de Cabo Verde representaram por séculos uma escala útil
nas longas viagens transatlânticas, e na articulação com a costa africana.” in FERNANDES, José
Manuel - Luso Africana – Arquitectura e Urbanismo na África Portuguesa, Casal de Cambra;
Caleidoscópio, 2014. p.35
33 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecoló-
gicos e económicos: tentativa de análise. Instituto Caboverdiano do Livro, 1987. p.24
34 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo
Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA,
2014. p.7
35 Idem, p. 8
36 “O arquipélago serviu de apoio às passagens marítimas transatlânticas ao longo dos
séculos, criando-se em várias das suas ilhas diversos núcleos urbanos, o mais antigo dos quais
constitui hoje um precioso vestígio em ruínas (Cidade Velha de Santigo), classificado como

39
02 A Ribeira Grande vista do mar,
gravura holandesa de 1635

40
vários núcleos urbanos, sendo o primeiro a cidade da Ribeira Grande. Depois
da fixação nesta, num processo lento, os ocupantes foram explorando as outras
ilhas 37, não havia quem se disponibilizasse para habitar nas outras ilhas mais
isoladas e com escassez de recursos. A ilha do Fogo foi a segunda a ser povoada
e estabeleceu-se com atividades ligadas à agricultura.
A confluência de várias culturas, motivadas pelo tráfego esclavagista de que
o arquipélago foi palco, implicou uma readaptação do modo de vida das
comunidades, num lugar climática e geograficamente diferente. A consolidação
de uma cultura local resultou desse fenómeno de adaptação, e a identidade do
país foi construída a partir daí. A ideia seguinte traduz certamente esse processo
de miscigenação:

“Cabo Verde parece ser um lugar onde dois mundos conluiram para se
encontrarem, onde duas raças se esforçaram por se cruzar e onde a história
é feita mais de estórias de sofrimento do que de alegria. A realidade, porém,
é outra: há um só mundo, e é novo, não há raça, existe o cabo-verdiano, e as
histórias são estórias de esperança.” 38

Cada uma destas ilhas tem as suas particularidades físicas, do que resultam
quadros socioeconómicos específicos, determinados pelos recursos disponíveis.
Pela diversidade das atividades produtivas, Santiago é a ilha que se apresenta
como a mais polivalente. Santa Luzia permanece despovoada e tem sido
preservada praticamente no seu estado natural, constituindo uma reserva
ecológica. Atualmente, estas ilhas da “morabeza” já não representam uma escala
indispensável para as frotas que atravessam o atlântico, mas possuem um
encanto que atrai visitantes, principalmente na procura de refúgio e descanso
no aconchego e calor do povo e das ilhas.

Relativamente às expressões de arquitetura cabo-verdiana, verifica-se que,


num momento inicial, as construções seguiam modelos semelhantes aos da
metrópole, o que parecia corresponder às necessidades dos colonizadores,
no entanto, com o tempo e acompanhando a mudança das circunstâncias,
os nativos foram criando tipologias arquitetónicas e processos construtivos
próprios. Em Cabo Verde, a edificação vernácula de cariz popular é o resultado

Património da Humanidade pela UNESCO.” in FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria


de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa,
Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014. p.7
37 “A colonização de Cabo Verde faz-se lentamente. Meio século depois de descobertas,
ainda a maior parte das ilhas eram despovoadas”. in RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas
Erupções; Comissão Nacional Para As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; (1ª
Edição de1954); Lisboa, 1997. p.153
38 Marques, Ana Filipa. (2001), Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde
na Cidade Velha. Prova Final, Porto, FAUP. p.25 – in “O erro de A. Carreira” de Humberto
Cardoso, artigo publicado em “Cultura, Cabo Verde”, Publicação Semestral, nº2, julho de 1998,
p.33.

41
03 Esquema de planta da casa rural cabo-verdiana
por Ilídio Amaral

42
do processo enraizamento do homem às circunstâncias daquela geografia,
constitui uma resposta ao clima, à topografia e às necessidades primárias da
habitação. Com base nos escassos recursos oferecidos por aquelas ínsulas,
o engenho utilizado para a construção procurou adaptar os materiais
endógenos, em construções de volumetrias simples, que procuram coabitar
com as topografias acidentadas dos lugares. Estas arquiteturas desempenham
maioritariamente funções habitacionais e integram a paisagem rural das ilhas.
São construções de pequenas dimensões, de volume único na sua génese e que,
ganhando vizinhança, acabam por compor pequenos aglomerados.
A materialidade da construção é definida por materiais endógenos: a pedra -
basalto ou calcário, dependendo da ilha; o colmo (constituído por folhas de
cana-sacarina, folhas de coqueiro ou de tamareiras); o sisal e a madeira de
coqueiro, para a armação da cobertura e para a construção das portadas dos
vãos.
Construtivamente, a habitação vernacular cabo-verdiana apresenta-se de forma
robusta. As suas paredes em alvenaria de pedra, têm espessuras generosas (entre
40 a 60cm), o que permite dar estabilidade e a inércia térmica necessária à
adaptação ao clima quente. Essas paredes geralmente são de junta seca, embora,
em casos mais raros, possam integrar o barro como elemento aglutinante.
Habitualmente não têm revestimento, nem exterior nem interiormente,
excetuando-se casos em que os recursos económicos dos seus proprietários, ou
os recursos físicos da ilha em que se encontra, possibilitam a sua utilização. Este
é o caso da ilha da Boavista, onde é comum a produção da cal como inerte para
a composição de rebocos e para acabamento das superfícies.
No geral, as habitações apresentam poucos vãos, que se concentram nos
alçados frontais, organizados por porta central (com dimensão de dois metros
de altura por um metro de largura) e duas janelas laterais (com um metro por
setenta centímetros) dispostas simetricamente. Nos alçados tardozes existem
dominantemente vão único, correspondente a uma porta, posicionado em
linha com a porta da fachada oposta. Só excecionalmente existem vãos nos
alçados laterais, o que depende da existência ou não de volumes adjacentes
na composição, porém, são sempre de pequenas dimensões. As caixilharias,
em madeira, podem ser pintadas, o que também depende dos meios de cada
proprietário.
A cobertura geralmente é de duas águas com inclinações de aproximadamente
45º. A sua estrutura é feita em barrotes de madeira sobre o qual apoia o
revestimento em colmo, composto por ripados em cana de carriço que contém
as camadas de palha, amarradas entre si com sisal.
O interior organiza-se em dois espaços apenas, uma sala e um quarto. As
duas portas que se rasgam na fachada e no tardoz permitem o acesso e o
atravessamento da sala, espaço que poderá acolher tanto a função de estar
como de serviço, caso não existam outras dependências, como a cozinha
ou a despensa, esse espaço poderá ser adaptado de modo a permitir essas
ocupações. O quarto é um espaço de dimensão menor, tem uma entrada
central perpendicular à sala e está reduzido a esse acesso. Os pavimentos, na
sua génese, seriam em terra batida, mas posteriormente começou-se a utilizar a
pedra como acabamento para o piso.

43
04 Aglomerado de casas em ambiente rural
anos 60

44
A habitação “prima pela simplicidade da sua planta e da construção,
exprimindo bem o nível social e económico daqueles que a habitam” 39.
Como foi já referido, a construção tem volumetria elementar, de piso único e
cobertura de duas águas. O núcleo fundamental tem planta retangular, com
dimensões que variam de 6 a 8 metros de comprimento por 3 a 4 metros de
largura, contudo, há situações em que são adicionados outros corpos, que
poderão ter diferente volumetria, dependendo da função e das condicionantes e
geometria do terreno.
A implantação das partes que compõem a habitação exige algum cuidado,
pela disposição em relação à incidência da luz solar. Habitualmente evitam-
se as grandes aberturas viradas para sul e procuram-se garantir efeitos
de sombreamento, recorrendo à plantação estratégica de árvores. Em
complemento, o uso de sistemas passivos de ventilação, garantidos pela
inteligente distribuição dos vãos, contribui para o nível de conforto deste tipo
de construções. As habitações possuem geralmente um logradouro, organizado
em dois espaços, um frontal em relação ao edifício e outro posterior, designados
localmente por pátio e quintal, respetivamente. O núcleo da habitação
unifamiliar tradicional, nas situações mais simples, é formado por sala e quarto,
aos quais podem ser adicionados, de acordo com a necessidade e possibilidade
do proprietário, a cozinha, a dispensa, a casa de banho.
Em contexto rural, verifica-se uma complementaridade entre o habitar e
laborar, sem que haja uma clara segregação espacial destas funções. A habitação
elementar, enquanto extensão do espaço de trabalho e produção, que é o campo,
acrescentam-se outros corpos, funcionalmente especializados e autónomos,
interligados por espaços exteriores polivalentes, resultando num conjunto
mais ou menos complexo de volumes que se adequam, organicamente às
características orográficas formando uma composição orgânica. Entre essas
áreas está o quintal, o pátio frontal, espaços de apoio à cozinha e às atividades
agrícolas. A junção dos vários núcleos permite a formação de aldeamentos com
base em arquiteturas vernaculares.
A implantação, de modo a rentabilizar a reduzida área fértil, procura
geralmente lugares periféricos aos terrenos agrícolas e inapropriados ao cultivo,
devido à topografia acidentada ou ao difícil acesso. Estes fatores estimulam o
engenho dos construtores que promovem uma integração, muitas das vezes,
bem conseguida pelo respeito à orografia do terreno. São construções que
dialogam fortemente com os aspetos geomorfológicos do lugar, o artificial e
o natural parecem fundir-se num só organismo, o que cria uma harmoniosa
ligação do edifício com o terreno, acrescentando valor ao lugar e compondo
paisagens de beleza singular.

39 AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta


de Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964.

45
05 Paisagem rural Cabo Verde
anos 60

46
A arquitetura vernacular popular cabo-verdiana está a perder caráter e
presença na paisagem, devido às transformações dos sistemas de produção,
do quadro socioeconómico das ilhas, dos sistemas construtivos trazidos pela
contemporaneidade e das práticas do habitar, factos que determinam uma
perda irreparável do património arquitetónico nacional 40.
A pertinência da preservação dessas construções, tal como aponta Ana Filipa
Marques no estudo que efetuou sobre a casa tradicional da Cidade Velha, “[…]
também da arquitectura vernácula cabo-verdiana, “podem-se extrair lições
de coerência, de seriedade, de economia, de engenho, de funcionamento, de
beleza.” 41

40 “As tradições são postas em causa pela modernidade mas, no momento em que se
anuncia um mundo novo, (re)descobre-se o valor do que se perde.” in AGUIAR, José - Cor e
cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património, Porto, FAUP, 2002. p.38
41 (interesse de recuperar as técnicas tradicionais) in MARQUES, Ana Filipa - Construir
e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade Velha. Prova Final, Porto: FAUP, 2001.
p.74

47
06 Ruínas da Sé Catedral da Cidade Velha
anos 60

48
1.3 - Temáticas de Valorização do Património Arquitetónico
em Cabo Verde

Diferentes momentos marcaram o processo histórico de reconhecimento,


valorização e atuação sobre o património arquitetónico no arquipélago, os
quais, informados pelas diferentes conjunturas políticas e ideológicas. Apesar
de submetidos a um quadro jurídico e administrativo comum, durante o
período colonial, os territórios ultramarinos assimilaram e adequaram as
diretivas emanadas pela metrópole, no entanto, aquilo que se constata é que
as ações relativas a identificação e a salvaguarda dos monumentos suscitaram
preocupações em momentos distintos nos dois territórios.
Uma das primeiras medidas jurídicas para proteção de vestígios documentais
do passado do reino 42, data do reinado de D. João V e traduz uma prática
comum às monarquias europeias, que tinha como propósito reafirmar as
vetustas origens da nação e a importância do seu devir histórico. De acordo
com Ana Cristina Martins,

“foi D. João V (1706-1750) a personificar este movimento cientifico-cultural


que fecundava as vivências intelectuais de Setecentos e assumia o património
histórico-artístico como riqueza de toda uma colectividade, num exercicio de
despotismo ilustrado e de acção exercida directamente pelo Estado sobre a
sua salvaguarda.”43

Entre as medidas tomadas por este monarca, contam-se a criação da Academia


Real de História em 1720 e, no ano seguinte, a publicação dum alvará que
defendia a preservação das memórias do passado 44. O registo e a preservação
da memória das antiguidades nacionais passaram então a ser concretizados, não
apenas através da redação de memórias descritivas, mas sobretudo pelo registo
gráfico através do desenho 45.
Apesar desta iniciativa precoce, é somente no século seguinte, após a instalação
do regime liberal, que são desenvolvidas as primeiras reflexões em torno do

42 RODRIGUES, Paulo Simões “O longo tempo do património. Os antecedentes da


República (1721-1910)”. Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P., -
100 Anos de Património Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa, 2010. p.20
43 MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas
(do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.41
44 Idem, ibidem.
45 Idem. p.42

49
07 Mosteiro da Batalha
08 Mosteiro dos Jerônimos

50
conceito moderno de “monumento nacional” e das modalidades teóricas para a
sua salvaguarda e valorização, em boa parte impulsionadas pelo pensamento
romântico de Almeida Garrett. Alexandre Herculano, bibliotecário-
mor do reino, deu uma significativa contribuição para a disseminação
destas questões, com a criação, em 1840, da Sociedade Conservadora dos
Monumentos Nacionais e a publicação, na revista O Panorama, da coluna
sobre os “monumentos pátrios” 46. A fundação da Associação dos Architectos
Civis e Archeologos Portuguezes (AACAP) e da mais tardia Comissão dos
Monumentos Nacionaes, instituições imbuídas da missão de salvaguarda do
património arquitetónico e arqueológico, em convergência com instituições
congéneres anteriormente fundadas em França, Espanha, Alemanha e
Inglaterra, assinala a participação pioneira da sociedade civil neste campo de
ação.

Este movimento associativo permitiu construir e consolidar um património


teórico no campo disciplinar, nomeadamente através dos textos e dos exemplos
que publicavam no Boletim de Architectura e Archeologia. No início,
informado pelas teorias experiências práticas do arquiteto francês Viollet-
le-Duc, que desde 1830 vinha aferindo os critérios de restauro estilístico no
estaleiro da catedral de Nôtre Dame de Paris, a práxis do restauro em Portugal
tem particular expressão em dois dos mais celebrados monumentos pátrios: os
Mosteiros da Batalha e dos Jerónimos 47. Desenvolvido ao longo de um século,
este processo embrionário, culmina, já após a implantação da república, na
publicação dos primeiros instrumentos jurídicos de proteção, nomeadamente
da lista de classificação dos Monumentos Nacionais em 1910. Neste grupo não
estava contemplado nenhum exemplar localizado em território africano.
Apesar da distância geográfica e cultural, em Cabo Verde, que nessa
altura era colónia portuguesa, não deixaram de ter expressão algumas
destas preocupações relativas à salvaguarda patrimonial. Foi o risco de
desaparecimento dos vestígios de antigos monumentos abandonados que
levou o bispo radicado no arquipélago, em meados do século XIX, a alertar
as autoridades para o estado de conservação em que se encontravam as

46 “… também na senda do modelar periódico O Panorama, da responsabilidade da


Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, em cujas colunas ganhou forma a versão
portuguesa das antiquitées nationales - os “monumentos pátrios” -, por mão de A. Herculano,
para quem a filosofia Kantiana deveria sobrepor-se à aristotélica, num primado do mundo
“interior”, introspectivo, sobre o exterior, mais próximo da Natureza, que o estilo gótico tão bem
soubera traduzir.” in MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das
reformas (do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.50
47 MARTINS, Ana Cristina - Património histório-cultural: a emergência das reformas
(do Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003. p.33-50

51
09 Cidade Velha, vista sobre a Sé
anos 60

52
construções da Cidade Velha:

«Algumas igrejas e capelas pareciam-lhe cavalariças, cobertas de palha,


com chão de terra, sem portais nem reboco. A Ribeira Grande, actual
Cidade Velha, com “edifícios quase destruídos e os que restavam cobertos de
palha”. Os objectos de prata da Sé Catedral foram, nessa época, fundidos e
transformados em moeda. Os grandes edifícios desabitados eram demolidos
e as suas pedras de cantaria enviadas por barco a Praia. Nem se quer a Sé
foi poupada. Em 1875, O Secretário-geral do Governo solicitava ao bispo
autorização para demolir e para aproveitar o seu material.» 48

A perda de importância económica do arquipélago, em consequência da


interrupção do tráfego esclavagista, associado à falta de recursos naturais e à
inospitalidade daquele território, determinou a secundarização deste território,
em relação às demais colónias que possuíam recursos naturais com valor
económico. A fragilidade política da I República, envolvida em constantes
problemas financeiros que se viram agravados com a participação portuguesa
na Primeira Guerra Mundial, limitaram bastante a capacidade de intervenção
nas colónias, algumas das quais foram também cenário de guerra. Por outro
lado, as instituições administrativas locais não tinham condições financeiras
nem autonomia política para a implementação duma estratégia concertada de
salvaguarda do “património histórico e artístico”.
Apesar disso, assinala-se a tentativa do governador de Cabo Verde, Filipe
Carlos Dias de Carvalho, de proteger os vestígios monumentais da Cidade
Velha, através do seu estudo e pela intervenção arquitetónica: atribuindo à
Direção de Obras Públicas o ónus da sua conservação 49. Uma década mais
tarde, no âmbito da celebração dos 400 anos da criação da Diocese de Cabo
Verde e Guiné, o Deão da Sé de Cabo Verde, António José de Oliveira Bouças,
escreveu uma carta aberta à população, intitulada “Apelo em Pró das Ruínas
da Antiga Cidade da Ribeira Grande em Santiago – C. Verde 1533-1933”, onde
demonstrava a sua insatisfação perante a ineficiência das ações de salvaguarda
desse património 50. Associado a esta carta, o manifesto de João Lopes, alerta

48 Ofício de maio de 1850 do bispo D. Patrício Xavier Moura. in AYMERICH, Carlo;


PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do
Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p.16
49 através da Portaria nº40, [Boletim Oficial da Província de Cabo Verde], citado por
MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português
ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974) - LISBOA, 21-23 de
Junho de 2012, IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical e ISCSP-UTL - Instituto
Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2013. p.2
50 MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património portu-

53
10 João Lopes em Ribeira Grande

54
para o valor histórico da Sé Catedral da Cidade Velha, no contexto patrimonial
do império, acentuando que a ruína desse edifício “é o principal monumento
da primeira cidade da primeira ilha da primeira Colónia Africana Portuguesa!”,
assinalando em simultâneo o desconhecimento que a população local,
nomeadamente a elite intelectual, tinha deste local. Produtos duma educação
que privilegiava o conhecimento da realidade metropolitana em detrimento
da especificidade geográfica e histórica dos contexto local, bem traduzido na
expressão:

“Como bom cabo-verdiano, naturalmente desconheces a histórica Cidade


Velha, pois levaste 6 anos nos Liceus a estudar Geografia e não estudaste a
Corografia da tua terra em 7 meses! Que importa isto, se conhecer todos os
ramais dos caminhos-de-ferro da Metrópole e os afluentes de todos os rios
espanhóis que passam por Portugal!!!” 51.

A ação de João Lopes em torno da causa da reabilitação da Cidade Velha


prolongou-se, ele fundou em 1936 a revista Claridade, editada em Mindelo,
que “marca como que o início de uma tomada de consciência com o propósito de
se interessar pela terra, defendendo o cabo-verdiano como uma entidade social
e psicológica e dedicando-se ao estudo do meio sócio-economico e cultural do
arquipélago.”52 De forma algo camuflada, o manifesto de João Lopes denuncia a
“politica de sujeição”, dominante até à II Guerra Mundial, em que a colónia era
um mero espaço de exploração e em que as populações locais eram mantidas
em regime de menoridade e marginalidade cívica, controladas por um apertado
funcionalismo administrativo dependente da metrópole 53.
A partir da década de 1950, a pressão da ONU para que as potências imperiais
abandonassem os territórios ocupados obrigou, como reação, a que Portugal
revisse a sua política colonial, no sentido de tentar integrar das colónias num
todo nacional, sempre governado a partir da metrópole. Em 1952, o ato colonial
é revogado e revisto o estatuto dos indígenas. As colónias passam então a ser

guês ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974) - IICT - Instituto
de Investigação Científica Tropical e ISCSP-UTL - Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, 2013. p.2
51 FUNDAÇÃO JOÃO LOPES, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIA-
GO. Praia: Publicom, 2015. p.15
52 LOPES FILHO, João - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa:
ed. Ribeiro, José A. 1985, p.154. (in “Presença Cabo-verdiana” – nº 19/20. Lisboa, Julho / Agos-
to, 1974)
53 Idem, ibidem.

55
11 Bairro Craveiro Lopes, Cidade da Praia
terceiro plano
anos 60

56
designadas de “Províncias Ultramarinas” 54, e o estado português incrementa
os investimentos nesses territórios nomeadamente com a construção de
infraestruturas, equipamentos e habitação para as populações indígenas.
Cabo Verde usufruiu dos programas de fomento lançados pelo governo a
partir de 1953 55. Dois anos depois, aquando a deslocação do chefe do estado
português ao arquipélago, o programa de visita envolvia a inauguração
de um conjunto de equipamentos administrativos, do bairro habitacional
Craveiro Lopes, de algumas obras de fomento agrícola e industrial, numa clara
manifestação dum ideal de progresso económico em detrimento da valorização
cultural 56.
A oportunidade para a afirmação do valor patrimonial dos vestígios da
ocupação colonial existentes no arquipélago sucedeu mais tarde, e por impulso
dum evento externo, as comemorações do V centenário da morte do Infante D.
Henrique, cujos festejos estavam centrados na cidade de Lisboa e no Algarve.
A coincidência desta data com a do V Centenário da Descoberta das ilhas de
Cabo Verde, em 1960, foi um motivo para que o Ministério do Ultramar desse
início a um processo concertado de salvaguarda do património local, pois
os monumentos foram chamados a participar, como testemunhas de factos
históricos, integrados num programa assumidamente de defesa do império e
que procurava manipular a opinião pública 57.
O facto dessas comemorações preconizarem a glorificação da nação portuguesa
permitiu que a colónia beneficiasse de apoio logístico por parte da entidade
pública responsável pela salvaguarda do património em Portugal: a Direcção
Geral dos Monumentos Nacionais. Foi esta instituição que cedeu o técnico
responsável pela coordenação das intervenções nos monumentos que
integraram às cerimónias comemorativas, o arquiteto Luís Benavente, o qual
mobilizou uma equipa local para desempenhar de tarefas diferenciadas, entre
as quais a identificação e inventariação do património, a elaboração de estudos

54 Lei orgânica do Ultramar Português - Lei n.° 2.066, de 27 de Junho de 1953.


55 II Plano de Fomento 1959-1964 - Agência Geral do Ultramar (1961) - II Plano
de Fomento 1959-1964 atribui a Cabo Verde cerca de 250 milhões. Mais de metade para
comunicações e transportes seguindo-se fomento da agro-pecuária, instrução e saúde. in Cabo
Verde, pequena monografia. Lisboa. p.35
56 -1955 16 maio - O Chefe do Estado inaugurou o bairro de moradias para funcionário
na Cidade da Praia – 62 residências com 2 divisões, cozinha e quintal; in Jornal O Século
-1955 17 maio - O Chefe do Estado inaugurou um posto de fomento pecuário em Santa
Catarina, Ilha de Santiago. Tem uma exposição de produtos agrícolas e artesanato com “Uma
casa típica da região, com pocilga e nora, especialmente construída na exposição, representa a
vida nesta província. É a casa do “badiu”, o camponês cabo-verdeano.” in Jornal O Século, 25 de
Maio 1955
57 MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património portu-
guês ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013. p.3

57
12.1 Levantamento Luís Benavente - Igreja Nossa Senhora do Rosário
12.2 Projeto de restauro Luís Benavente - Igreja Nossa Senhora do Rosário

58
prévios e a participação nas ações construtivas 58. Também esse impulso
promoveu a criação de uma legislação protetora para esses bens patrimoniais.
A iniciativa teve especial impacto na Cidade Velha, localizada na ilha de
Santiago, do que resultou a concretização de um conjunto de intervenções de
conservação e restauro dos monumentos mais antigos, mais representativos e
que estavam em melhor estado de integridade, caso da Fortaleza de S. Filipe e
da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, considerada o templo mais
antigo do arquipélago.

Ainda, no âmbito das comemorações, foi realizada uma exposição fotográfica


dedicada às ruínas da Ribeira Grande, promovida e organizada pelo “Grupo
de Amigos da Cidade Velha” 59 . A importância científica e documentais dos
exemplares apresentados, pelas informações que davam das ruínas, determinou
que as mesmas fotografias fossem posteriormente postas ao serviço do
governo da província 60. Depois das comemorações, mais sensibilizadas para a
importância dos bens patrimoniais do arquipélago (neste caso, dos mais antigos
vestígios da ocupação e da soberania portuguesa), as instituições públicas
intensificam as ações de salvaguarda do património na província, num processo
que se prolongou por mais de uma década, pois a maioria das intervenções
físicas datam do final dos anos sessenta. O arquiteto Luís Benavente, que dirigiu
todos os trabalhos de restauro, foi o protagonista desta ação. Entre 1960 e 1970,
Benavente deslocou pelo menos quatro vezes ao arquipélago 61, promoveu a
formação de moradores locais para as intervenções de restauro, acompanhou
o processo de restauro e desenvolveu vários trabalhos teóricos acerca dos
monumentos e do património cabo-verdiano 62.

58 NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder


(1929-1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 2001.
59 “Acerca das actividades promovidas no âmbito das celebrações centenárias de 1960
interessa-nos destacar a exposição fotográfica dedicada às ruínas da Ribeira Grande, cuja
organização foi assumida pelo “Grupo de Amigos da Cidade Velha”, nomeadamente por Aníbal
Barbosa da Silva, José Delgado Freire, Luís Pires de Bastos, Mário Lima Furtado e pelo fotógrafo
Francisco Delgado Freire, também conhecido como “FRANK”.” in MARIZ, Vera Félix - A
“memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do património arquitectónico
português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL, 2016. p.287
60 Idem, ibidem.
61 “[…] arquitecto Luís Benavente que, em missão para o Ministério do Ultramar, foi
quatro vezes a Santiago, entre 1960 e o principio da década seguinte.” in AYMERICH, Carlo;
PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”. edarq – Editorial do
Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007). p. 16
62 -1967 - Luís Benavente: “Relatório acerca dos monumentos de Cabo Verde”
-1969 - Luís Benavente: “Relatório acerca da salvaguarda e protecção do património de Cabo
Verde”
-1971 - Luís Benavente: “Processo para a classificação da Antiga Cidade da Ribeira Grande”

59
13 Pelourinho em ruína
14 Pelourinho após restauro

60
Apesar das dificuldades financeiras e técnicas que limitaram o alcance das
intervenções, os trabalhos denunciam a tentativa de assimilação de alguns dos
critérios estabelecidos pela Carta de Veneza 63 , recentemente redigida. Segundo
o depoimento do arquiteto:

“Todos os trabalhos serão executados dentro das normas seguidas neste


género de obra de acordo com a Carta Internacional para o Restauro e
Conservação de Monumentos outorgada em Veneza em Maio de 1964 pela
comissão internacional de que o signatário fez parte, documentando-se as
respectivas fases do trabalho no sentido de uma publicação demonstrativa da
obra realizada.”64

A capacidade do arquiteto de interpretar e adequar metodologicamente as


ações às particularidades da circunstância geográfica e social do arquipélago,
nomeadamente no que se refere à inexistência de recursos humanos
qualificados para a execução dos trabalhos, levou-o a promover a sua formação
nos próprios estaleiros. A intervenção na Igreja Nossa Senhora do Rosário foi
pioneira neste aspeto, pois possibilitou não só o envolvimento da população
local em diversas atividades de salvaguarda, mas também criação dum grupo
habilitado para cooperar em futuros trabalhos de restauro e de consolidação
dos monumentos, não apenas da Ribeira Grande, mas também noutros edifício
localizados nas diferentes ilhas 65. Os benefícios obtidos com a integração da
comunidade local nos trabalhos de restauro, serviria para estimular o apreço
pelos monumentos da urbe 66 e habilitava-os a realizar tarefas regulares de
manutenção. O que, mais uma vez, denuncia a tentativa de aplicação na prática
dos princípios da Carta de Veneza.

63 MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguar-


da do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa:
FLUL, 2016.. p.329
64 Idem, p.324
65 Idem, p.327
66 - Para Benavente, a salvaguarda do património arquitectónico de Cabo Verde
não implicava apenas a protecção e divulgação dos edifícios mas, também, o benefício da
comunidade local, a sua integração nos trabalhos como forma de travar a emigração e de
fomentar o desenvolvimento de uma consciência patrimonial que travasse o recorrente
problema da “caça à cantaria”, valendo-se, por exemplo, da realização de visitas guiadas aos
monumentos. Nesta tentativa de estimular o apreço da comunidade pelos monumentos da
Ribeira Grande, de garantir a sua fixação e de potencializar os resultados alcançados pelas
obras de restauro, Benavente propôs, também, a instalação de redes de esgotos, de água
e de electricidade, a pavimentação das ruas e o desenvolvimento do artesanato. Estamos,
portanto, tal como afirmámos anteriormente, perante uma tentativa de estabelecimento de
um desenvolvimento sustentável na Cidade Velha, local ao qual Luís Benavente reconheceu,
também, um extraordinário potencial turístico. Idem, p.296

61
15 Fortim Del Rei, ilha da Boavista

62
As tarefas do arquiteto Luís Benavente não se esgotariam nos trabalhos
em torno dos monumentos da Cidade Velha, sinal de que já existia uma
preocupação com outras ilhas para além de Santiago. Também visita a ilha da
Boavista com intenção de promover ações concretas de salvaguarda dos fortins,
demonstrando o reconhecimento dos valores inerentes ao território.
Durante a sua estadia, para além de dois relatórios de trabalho que serviriam
como documentos de gestão, o “Relatório acerca dos monumentos de Cabo
Verde” e o “Relatório acerca da salvaguarda e protecção do património de Cabo
Verde”, elabora, ainda nos finais da década de sessenta e no início da seguinte,
uma proposta para a criação de legislação mais apropriada às necessidades de
proteção do património histórico artístico das ilhas 67.

A partir da década de 1950, em oposição às forças de unificação nacional,


promovido pelo governo do Estado Novo, assiste-se ao início dum processo de
desagregação do império, com o surgimento de sentimentos protonacionalistas
que levam ao despoletar dos movimentos descolonizadores nas várias colónias.
Apesar autonomia que os diferentes grupos políticos assumiram, havia um
aspeto ideológico agregador: as várias colónias tentam a independência e
para isso procuram reforçar os laços africanos, configurando um ideal de
“pan-africanismo”. O momento, geralmente designado por “fase da tomada
de consciência”, caraterizou-se pela atividade pioneira de algumas elites
culturais, a partir da qual surgiram núcleos que deram origem às futuras
estruturas políticas 68. Em 1951, um conjunto de estudantes universitários
africanos que estudavam em Lisboa e se reunia na Casa dos Estudantes do
Império, interessados no conhecimento da identidade dos países de onde
eram originários, fundaram o Centro de Estudos Africanos 69. A tomada da
consciência da situação em que estavam as suas pátrias promoveu a afirmação
do espírito “nacionalista” por parte dos estudantes africanos que frequentavam
esse local, contaminando as futuras gerações de alunos. Após o regresso a Cabo
Verde, os inúmeros estudiosos que concluíam os estudos nas universidades
estrangeiras, sentiam-se no dever de contribuírem com os seus saberes para o
progresso do país.

67 MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a


salvaguarda do património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento.
Lisboa: FLUL, 2015. p.298
68 CORREIA, Pedro Pezerat - A descolonização. in REIS, António(coord.) – PORTUGAL
20 ANOS DE DEMOCRACIA, Círculo de Leitores, 1994. p.43
69 Contributos históricos para a Independência de Cabo Verde [consultado em: 23 08
18] Disponível em http://nosgenti.com/contributos-historicos-para-a-independencia-de-cabo-
verde/

63
16 Amílcar Cabral e Pedro Pires

64
Enquanto estudante em Lisboa, Amílcar Cabral também frequentou a
Casa dos Estudantes do Império e mobilizou um grupo entre guineenses e
cabo-verdianos que, em conjunto, criaram os fundamentos para a luta pela
independência das duas colónias.

“Após uma análise científica do colonialismo português, Cabral defendeu


que a política de assimilação e alienação imposta por Portugal tinha
levado a população cabo-verdiana, principalmente a “pequena burguesia”,
culturalmente desenraizada, alienada ou mais ou menos assimilada, a
renegar a sua herança cultural africana e a desenvolver um certo complexo
em relação à sua origem negra. Além disso, a classe assimilada passou a
manifestar uma atitude de distanciamento e desprezo em relação à cultura
das massas populares. Perante tal realidade, tornava-se necessário libertar
a população assimilada desse complexo e levá-la a tomar consciência da
dimensão africana da sua cultura e assumir esta sua africanidade. Para isso
acontecer, era primordial um “regresso às origens”, que Cabral designou
de “reafricanização dos espíritos”, que consistia na negação da cultura
assimilada da potência dominante e, por conseguinte, na busca e valorização
dos traços culturais de origem africana que caracterizam o homem cabo-
verdiano.” 70

Outros intelectuais cabo-verdianos 71 e guineenses juntaram-se e constituíram


uma força mental e física que partilhava das mesmas estratégias e ideologias
para combater a força colonizadora. Existia a consciência de que essa luta
não se ficava apenas na exaltação da independência, mas havia que definir
o rumo para o futuro. Cabral projeta então um caminho próspero para o
país, afirmando que, “no quadro da conquista da Independência Nacional, na
perspectiva da construção do progresso económico do povo, o desenvolvimento de
uma cultura popular e de todos os valores positivos autóctones é um objectivo a
atingir.”72 Para Amílcar Cabral, este objetivo não se esgotava na exaltação da
cultura viva do seu povo, mas também na redescoberta do passado do país
e das suas memórias, que se concretizava em políticas de salvaguarda dos
vestígios materiais que representavam esse processo histórico. Embora existisse
a intenção/vontade de preservação da tradição cultural cabo-verdiana, Cabral
estava ciente de que o caminho para o desenvolvimento do país passaria

70 Contributos históricos para a Independência de Cabo Verde [consultado em: 23 08


18] Disponível em http://nosgenti.com/contributos-historicos-para-a-independencia-de-cabo-
verde/
71 Desse grupo fazia parte a elite intelectual cabo-verdiana: Amílcar Cabral, Aguinaldo
Fonseca, Gabriel Mariano, José Leitão da graça, Onésimo Silveira, entre outros.
72 LOPES FILHO, João; Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa:
ed. Ribeiro, José A. -1985, p.10.

65
17 Amílcar Cabral com grupo
da Casa dos Estudantes do Império

66
igualmente pela sua abertura ao mundo 73.
Os traços culturais cabo-verdianos foram sendo delineados ao longo dos
séculos que se seguiram à descoberta do arquipélago. Apesar da existência de
uma identidade cultural consolidada, na sequência da luta pela independência,
os seus protagonistas foram chamados a refletir sobre aquilo que seriam
os valores culturais a assumir. Com a independência de Portugal, obtida
oficialmente em 5 de julho de 1975, o país entrou numa fase de restruturação,
que implicou a criação das condições para a afirmação de um estado de direito
que garantisse o funcionamento de um governo próprio e para a exaltação do
carácter da cabo-verdianidade.
Num processo coletivo, conduzido por intelectuais, tanto locais como ligados à
Guiné, em boa parte formados no estrangeiro e imbuídos de ideais atualizados,
procuraram reconhecer e identificar os traços e os valores essenciais que
poderiam suportar uma nova identidade, fundamental para a afirmação do país
como uma nação única e independente. Daqui resultou a exaltação dos valores
mais diretamente relacionados com as tradições africanas daqueles povos em
detrimento daquilo que poderia representar era a cultura do colonizador.
O processo de estruturação do novo governo cabo-verdiano decorreu quase
que em simultâneo com a rutura das relações com a Guiné, pelo que, a
partir de 1980 o partido que tinha suportado as ideologias da luta nos dois
territórios acabou por se separar e o caminho seguido pelo dois países divergiu,
condicionados pelas circunstâncias históricas de cada uma das nações, uma
vez que o passado pré-colonial de ambos era distinto pois em Cabo Verde não
existiam antecedentes à época colonial 74. Nesse sentido, nunca houve uma
rutura com a matriz deixada no território, independentemente se provinham de
épocas de escravatura ou da ditadura política, edifícios relativos a essas épocas
tinham as suas histórias na memoria do povo, no entanto, a visão sobre esse
legado foi sendo desmitificada e tais construções ganharam uma importância
histórico-cultural. Nessa fase de consolidação da jovem nação, em que se
mostrava determinante a promoção de novos valores e da identidade histórica

73 “Temos que criar uma cultura nova baseada nas tradições também, mas respeitando
tudo quanto o mundo hoje tem de conquista para servir o homem” in LOPES FILHO, João -
Cabo verde – subsídios para um levantamento cultural. Lisboa: Plátano Editora, 1981. p.52
74 “No memorando que endereça ao Governo português, a 15 de Novembro de 1960,
o PAIGC na pessoa do seu líder, Amílcar Cabral, propõe um conjunto de medidas com vista
à libertação pacífica de Guiné e Cabo Verde. Assim, após a independência, Guiné e Cabo
Verde passaram a ser dirigidos pelo PAIGC. No dia 14 de Novembro de 1980 o projecto de
unidade caiu por terra por causa de um golpe Estado na Guiné, empreendido pelo Movimento
Reajustador, liderado pelo então primeiro-ministro João Bernardo Vieira. Contrariamente a
Cabo Verde, a vida democrática em Angola e Guiné-Bissau experimentou momentos de grande
agitação.” in MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional.
Mestrado em Museologia. Porto: FLUP, 2010. p.59

67
18 Independência nacional de Cabo Verde
5 de julho de 1975

68
e cultural do país, houve o contributo dum conjunto de atores sociais, entre os
quais diferentes departamentos do aparelho de estado, algumas organizações
não governamentais afetas à cultura, agentes intelectuais e, finalmente,
entidades com origem externa. Foram vários os momentos que marcaram esse
processo de promoção da cultura nacional e sua difusão internacional.
Desde a independência e até ao início da década de 90, o quadro institucional
e jurídico que estruturara o campo cultural sofre um grande incremento e
complexificação. Logo em 1975, foi criado o Instituto de Nacional de Promoção
da Cultura, incumbido da valorização do património cultural e da consolidação
da identidade cultural nacional, a que se seguiu a constituição da Comissão de
Investigação e Divulgação Cultural, em clara demonstração de interesse pelo
enriquecimento e valorização da cultura local. Em maio de 1975 foi criada a
Comissão de Investigação e Divulgação Cultural, cujos objetivos compreendiam
a inventariação do património cultural e a sua divulgação, de modo a promover
o envolvimento ativo da população. Data de 1978 a criação da “Comissão
Nacional para promover o restauro, a reabilitação, defesa e a conservação dos
monumentos nacionais e de outros valores do património artístico e cultural do
país”75 e da Direcção-Geral, responsável pelas áreas de investigação, linguística,
tradições orais, animação cultural, audiovisual e levantamento do património
cultural 76.
A Constituição Nacional, elaborada em 1980, atribuiu ao Estado um papel
fundamental na promoção de condições favoráveis à salvaguarda da identidade
cultural à preservação, defesa e valorização do património cultural do
povo cabo-verdiano 77. Na década seguinte, a legislação procura integrar a
preservação do património imaterial, preconizando uma visão integrada dos
valores culturais 78. Na prática, uma vez que a área patrimonial se integrava num
ministério que tutelava igualmente as pastas da educação, cultura, juventude
e desporto, a política de salvaguarda viu-se secundarizado em função de um
enfoque prioritário na promoção da educação.
Este fator explica porque foi tão tardia a constituição dos museus nacionais, de
que é exemplo o processo de criação do Museu Etnográfico da Praia. Apesar
da sua criação ter sido, pioneiramente, proposta pelo antropólogo Mesquitela

75 AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana –
Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007).
p.32.
76 [consultado em 26 08 18] http://www.ipc.cv/index.php/sobre-ipc
77 Constituição da República de Cabo Verde (1980) – artigo 16º
78 TAVARES, Osvaldo dos Reis - Subsídios para o Estudo do Espaço Rural da Ilha de
Santiago: Picos e o seu Património. Praia: Universidade de Cabo Verde. p.25

69
19 Ruína da Igreja da Misericórdia, Cidade Velha

70
Lima em 1965 79, o projeto não foi posto imediatamente em prática, havendo
nova tentativa por iniciativa do governo em 1979, igualmente sem resultados.
Somente na década de 90 o governo providenciou a recolha de objetos
etnográficos para atingir esse fim 80, até que o projeto é concretizado no ano
de 1997 com a constituição do Museu Etnográfico da Praia, agora com outros
protagonistas. Após a fundação deste primeiro museu nacional, na viragem
do século, assiste-se à cração de várias instituições museológicas orientadas
para diversas temáticas, caso do Museu da Resistência, do Museu da Arte
Tradicional ou do Museu da Água 81, em boa parte concentrados na ilha de
Santiago. As dificuldades financeiras e a falta de recursos humanos qualificados
têm limitado a sua proliferação e distribuição mais equitativas por todo o
território nacional. Na atualidade é o Instituto do Património Cultural – IPC 82
que regula a salvaguarda do património em Cabo Verde 83.
As questões patrimoniais envolvem diversas áreas e uma certa complexidade,
e que pelas debilidades do país muitas vezes não existem meios técnicos
suficiente para orientar esses trabalhos. Para além da ação pública estatal, ativa
praticamente desde o momento da independência, Cabo Verde contou com o
interesse de organismos de caráter internacional ou de outras nações. Logo, em
1978, aconteceu a primeira consultoria da UNESCO à Cabo Verde, que não
foi bem-sucedida 84. Mas, dois anos mais tarde, o arquiteto Paulo Ormindo de

79 “Em 1965, Mesquitela Lima, numa conferência proferida nas cidades do Mindelo e
da Praia, lança o repto às autoridades locais para a criação de um museu em Cabo Verde. Após
a independência de Cabo Verde, em 1979 havia interesse por parte das autoridades cabo-
verdianas em criar um Museu Nacional que representasse a alma cabo-verdiana. O projecto
museológico foi encomendado ao antropólogo Mesquitela Lima. Por razões várias o projecto
não foi materializado, sobretudo devido a falta de recursos materiais e humanos, associada ao
conformismo ligado aos aspectos sociopolíticos.” in MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da
Resistência: museu transnacional. Porto: FLUP, 2010. p.90
80 MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Porto:
FLUP, 2010. p.91
81 MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Porto:
FLUP, 2010. p.89
82 “O Governo de Cabo Verde aprovou o estatuto do Instituto do Património Cultural
(IPC), pelo Decreto-lei nº 22/2014, de 18 de março. Um decreto que revogou, portanto, o
Decreto-Regulamentar nº 2/2004, de 17 de maio. Um decreto que o definiu como um instituto
público criado com a finalidade de identificar, inventariar, investigar, salvaguardar, defender
e divulgar os valores da cultura, o património móvel e imóvel, material e imaterial do povo
cabo-verdiano. O IPC sucede na universalidade dos direitos e obrigações, sem necessidade
de quaisquer formalidades, ao Instituto da Investigação e do Património Culturais (IIPC).
Entrando em vigor, após aprovação em Conselho de Ministros do dia 22 de maio de 2014.”
[consultado 26 ago 18] Disponível em http://www.ipc.cv/index.php/sobre-ipc
83 A instituição tem como finalidade “identificar, inventariar, investigar, salvaguardar,
defender e divulgar os valores da cultura, o património móvel e imóvel, material e imaterial do
povo cabo-verdiano.” [consultado em 26 08 18] Disponível em http://www.ipc.cv/index.php/
sobre-ipc
84 “An initial UNESCO mission took place in 1978. This was, however, not taken further
because of a lack of human and financial resources.” in UNESCO - evaluations of cultural

71
20 Projeto financiado pela União Europeia

72
Azevedo empreende uma nova missão às ilhas, agora com resultados efetivos,
de que se destacam a publicação, em 1981, do primeiro inventário sistemático
do património cultural, designado por “Preservação do património cultural e
arquitectural histórico de C.V.”.
A cooperação portuguesa foi facilitada pelo facto de não ter havido uma
ruptura das relações bilateriais, talvez pelo facto do processo de descolonização
não ter envolvido um conflito armado. Entre os diversos apoios institucionais
obtidos, contam-se, para a área da cultura, a promoção de ações de preservação
do património através do trabalho em parceria com o Instituto Português de
Património Arquitectónico (IPPAR), que apoiou a criação de uma instituição
congénere, a Comissão Nacional para a Salvaguarda do Monumento Cabo-
Verdiano. Esta tinha como objetivo a conservação e restauro dos monumentos
em estado de degradação a fim de evitar a sua ruína completa, como foi o caso
da consolidação das ruínas da Sé Catedral 85.
Para além da cooperação com Portugal, são também de referir as parcerias
com instituições espanholas, alemãs, inglesas, entre outras. Já antes da
independência, o arquipélago havia recebido apoio através da cooperação
helvética, e dois anos depois da independência foi apoiado nos trabalhos
de contenção das dunas e no desenvolvimento da pesca artesanal na ilha da
Boavista pela SWISSAD 86.
As atividades de salvaguarda do património arquitetónico em Cabo Verde não
se esgotaram na esfera governamental. Durante um longo período algumas
das mais significativas iniciativas nesta matéria partiram de organizações não
governamentais, constituídas no período pós-independência, e orientadas para
a defesa e valorização das tradições culturais do país. Foi prática corrente a
intervenção de individualidades ou de associações culturais alertando para a
necessidade de preservação de alguns bens patrimoniais fundamentais para a
afirmação identitária do país. Embora com manifestações mais centradas em
individualidades detentoras de níveis de formação académica mais elevada,
verificou-se uma participação efetiva da população em geral nestes assuntos,
no entanto, uma vez que estas entidades estavam geralmente implantadas em
espaços urbanos, nomeadamente na cidade de Mindelo, o seu impacto no seio
das comunidades rurais foi mais reduzido.
Em Cabo Verde, um território culturalmente e etnicamente homogéneo o pós-
independência não envolveu situações de rutura absoluta e conflitual com o

properties. 2009. p. 29
85 MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Mestrado
em Museologia. Porto: FLUP, 2010. p.90
86 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista Cabo Verde Aspectos Históricos. 1987. p.7

73
21 Capa do livro Defesa do Património Socio-Cultural de
Cabo Verde

74
passado, não houve a necessidade de se fazer “tábua rasa” ou de apelar a um
regresso às origens, como se verificou noutras ex-colónias portuguesas. As
diferentes atividades, dinamizadas por associações ou intelectuais nacionalistas,
conduziram a uma revisitação dos aspetos culturais mais enraizados nas
tradições, nos hábitos e nos costumes do povo, afirmando-os como plataforma
para construir um país novo. Nesse período de consolidação da jovem nação, as
dinâmicas e o ideário construído durante a luta pela libertação ainda estavam
presentes.
A consciência dos intelectuais e dos artistas cabo-verdianos da limitada
capacidade de atuação do governo, fez com que se manifestassem em prol do
desenvolvimento cultural do povo.
Os diferentes teóricos estariam em completa liberdade de expressão para
exporem as suas teses e pesquisarem sobre histórias da cultura cabo-verdiana,
e nos anos que se seguiram após a independência já haviam sido publicadas
estudos variados, principalmente afetos à cultura do país. De entre este grupo
de intelectuais, destaca-se, pela abrangência da sua intervenção, o antropólogo
João Lopes Filho.
Com a sua personalidade ativa, Lopes Filho dedicou-se à escrita sobre a
antropologia cultural cabo-verdiana, escreveu vários livros sobre o tema. Na
década após a independência escreveu cinco livros com temas relacionados
com a cultura cabo-verdiana, as tradições, a etnografia, o património. Em 1976
publica o livro, “Cabo Verde – Apontamentos Etnográficos” que inclui alguns
textos mais interventivos, no sentido de chamar a atenção sobre alguns casos
preocupantes, de modo a consciencializar a população e os poderes públicos
para despoletar processos de salvaguarda. Além do caso da Cidade Velha,
denunciou situações de degradação ou destruição intencional de monumentos e
sítios em estado de abandono e de ruína. Entre os casos referidos estão: a igreja
Nossa Senhora do Rosário e o Fortim Príncipe Real ambos em São Nicolau
87
. Do mesmo modo a arquitetura corrente, e os aglomerados urbanos como
centros históricos eram objetos que incentivavam preocupações secundadas
por outros inteletuais e intervenientes na cena política. É exemplo a afirmação
do deputado Rolando Lima Barber referente a São Filipe:
“demos ordens claras para ninguém tocar na arquitectura das casas e das
praças, que têm muitas semelhanças com as aldeias de Portugal. As próprias
casas, feitas de novo, as varandas e as janelas se reconstruídas, têm de
obedecer rigorosamente ao risco original. Não queremos deixar perder esta
relíquia e este museu.”88

87 LOPES FILHO, João – Defesa do património sócio-cultural de Cabo Verde. Lisboa:


Ulmeiro, 1985. p.162
88 Idem p.71

75
22 Logotipo Atelier Mar
23 Capa Facsmile da revista Ponto & Vírgula

76
Além da preocupação expressa com esta urbe o governo demonstrou interesse
na preservação de outros centros urbanos do arquipélago. Mesmo com essas
forças ativas, existiram resultados negativos na salvaguarda do património.
Lopes Filho denuncia esses males manifestando-se contra as incúrias com
o património arquitetónico e o falso progresso que muitas das vezes foram
conduzidas pelo próprio governo. Ele afirma que, “com a degradação dos
edifícios-monumentos, grave é o estado a que se deixou chegar o nosso “património
arquitectónico”,89 e apela ao zelo pela manutenção e recuperação do património
arquitetónico, segundo um modelo de recuperação integrada em conjunto com
o desenvolvimento urbanístico.
O livro “Defesa do Património Sócio-Cultural de Cabo Verde” data de 1985, e
aborda de forma mais incisiva a preservação do património imaterial, sempre
associado ao seu contexto físico e social 90. Considera fundamental convocar a
participação de toda a população na missão de valorização cultural, capaz de
construir uma síntese entre passado e vontade de devir:
“é preciso, pois, despertar nas populações o interesse e a confiança nos
seus valores culturais, estimular a sua capacidade criativa e entregar-lhes
a responsabilidade de preservarem as suas raízes e, desta forma, afirmar a
“Identidade Nacional Caboverdiana”. 91

Associaram-se ao referido movimento cultural outros criadores e pensadores


que, intervindo em diferentes domínios, por ativa participação de jovens que se
formaram no exterior e dentro de uma linha política definida. Entre estes conta-
se Leão Lopes, formado pela ESBAL e que, regressando em 1979 a Cabo Verde,
fundou o Atelier Mar 92, uma associação cultural que trabalha em contacto
com populações de diversas ilhas e promove ativamente a tradição e a cultura

89 LOPES FILHO, João – Defesa do património sócio-cultural de Cabo Verde. Lisboa:


Ulmeiro, 1985. p.71
90 “Assim, um conjunto mais alargado de circunstâncias impõe a Cabo Verde
independente a necessidade de vivificar a sua “cultura” e, ao mesmo tempo, preservar os
testemunhos e valores do seu próprio Património.” in Idem, p.12
91 Idem, p. 21
92 “O Atelier Mar é uma organização autónoma criada em 1979 na ilha de S.Vicente,
vocacionada para a promoção da cultura caboverdiana, centrada, na sua fase inicial, na
revalorização da cerâmica. Através de iniciativas de animação cultural e de formação
profissional, desde sempre se vinculou ao estímulo de jovens, interligando em práticas
interculturais a arte, a cultura e o desenvolvimento. Em 1987 foi reconhecido como organização
não governamental (ONG) sem fins lucrativos, e alargou a sua área de actividades, estreitando
a sua ligação com o desenvolvimento comunitário, ampliando a sua vocação formativa
e abraçando novas tecnologias (serigrafia, carpintaria, audiovisual, design gráfico e de
equipamento, design de habitação e fabricação de materiais de construção com tecnologias
adaptadas). Dispondo de um Centro de Formação na cidade do Mindelo, aí tem formado, ao
longo da sua actividade, dezenas de artesãos oriundos de várias ilhas do país, nas mais variadas
tecnologias.” in SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP, 2009.
p.110

77
24 Revista ponto & vírgula nª6
dezembro de 1983

78
cabo-verdiana numa vertente de preservação do património artístico cultural,
preservação da arquitetura tradicional, turismo e desenvolvimento através da
exploração e promoção de materiais endógenos. O empenho da associação é
visível também na amplitude das suas atividades, existe tanto a formação ligada
às artes, como o empenho na promoção de comunidades empreendedoras tanto
desenvolvimento de produtos como no acolhimento turístico.
Quatro anos mais tarde, num ato de iniciativa privada e numa tentativa de
partilha de conhecimento, Leão Lopes - artista plástico, Rui Figueiredo -
psicólogo, e Germano Almeida -advogado que se iniciava como escritor,
decidiram criar uma revista de intercâmbio cultural, fundaram a revista ponto
& vírgula - revista de intercâmbio cultural (1983). A revista foi lançada de modo
a exaltar a cultura do povo dessas ilhas, de certo modo herdando a missão que
motivou a criação da revista Claridade, quase meio século antes. Segundo Vera
Duarte, na altura
“havia uma ideia de corte com o passado, jovens a quererem conhecer e
inovar alguma coisa e P&V começou também sobre este prisma inovador. Até
aquela altura a única revista que nós tínhamos tido com alguma publicidade
tinha sido a Claridade, as outras tentativas de revistas, a Certeza, o Seló,
tinham sido extremamente precárias.” 93

A revista constituiu uma alternativa e um meio de expor ideias, identificar,


reunir, exibir valores da cultura do arquipélago, por isso, muitos artistas,
intelectuais e políticos aderiram à revista. Foi um meio para se expressarem
várias opiniões, acolher vários novos talentos e constituir uma grande fonte de
informação, saudando e criticando acontecimentos do arquipélago. A revista
serviu como meio para diversos apelos em relação à salvaguarda do património,
no sentido de preservação do legado histórico, também a vertente educativa da
revista se manifestou nesse sentido, definindo diversos temas.
“P&V também possui a sua vertente pedagógica e não apenas em desenho.
P&V falará também de arquitectura, património arquitectural e artístico.
Tratará, por exemplo, do sobrado de Maria Chaves, em Fogo, dos armazéns
do cabo submarino, da Cidade Velha, a primeira capital fundada nos
trópicos… Não se trata de nostalgia. O objetivo é de sensibilizar para
esta riqueza patrimonial que é muitas vezes é destroçada, negligenciada,
esquecida. A revista exprime uma vontade de conservar, salvaguardar o que
é fruto do passado do arquipélago. Será que pode haver uma verdadeira
política cultural sem a preocupação de preservar o que faz parte da memória
das ilhas?”94

93 ponto & vírgula - revista de intercâmbio cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas
editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições – Cabo Verde, 2006. p.9
94 Françoise Massa, Rennes, 2006 in ponto & vírgula - revista de intercâmbio cultural.
(1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições –
Cabo Verde, 2006. p.14

79
25 Maria Chaves - O Sobrado de"Ilhéu de Contenda"

80
Pode-se afirmar que a revista teve um grande enfoque nas artes, fazia incentivo
à criação artística e reflexão sobre a arte em Cabo Verde. Temas como
arquitetura, artesanato, música, poesia, literatura, faziam parte do conteúdo
da revista, mas também a culinária, a saúde pública eram temas habituais, na
revista cabia tudo aquilo que servia de benefício para o povo cabo-verdiano
não só nas ilhas como na diáspora. Desde o início, já sabiam as dificuldades
que poderiam enfrentar, tanto a nível financeiro, como de aceitação do público,
porém, apesar da boa aceitação, a revista contou com um público reduzido
o que, de certa forma, não permitiu a continuidade do periódico. Ponto &
vírgula contou apenas com edição de 17 números, lançados entre março de
1983 e dezembro de 1987. De curta duração, contudo, rica de conteúdos, e
inquietações que continuam presentes. O legado deixado faz parte de um
contributo amplo sobre o património material e imaterial de Cabo Verde.
Um dos aspetos fundamentais da atuação do Atelier Mar está na capacidade
de estabelecer redes com alcance simultaneamente locais e internacionais e de
atrair pensadores estrangeiros, que enriquecem bastante o debate interno. Um
romance de Teixeira de Sousa, Ilhéu de Contenda, despertou a atenção de dois
professores da Universidade de Rennes – França, Jean Michel Massa e Françoise
Massa, o que levou à descoberta da ilha do Fogo pela intenção de conhecer os
personagens e os espaços onde desenrolaram aquelas histórias. Foi em 1986
que visitaram a ilha e procuraram conhecer os sobrados onde se desenvolviam
as cenas, tendo encontrado aquelas arquiteturas em ruína. Reconhecendo o
valor daquelas construções, tiveram a ideia de recuperação de um dos edifícios,
conseguiram apoio do Ministério de Desenvolvimento Rural, que apoiaram a
ideia e obtiveram a colaboração do Atelier Mar através de Leão Lopes 95.
“Maria Chaves, um projecto que parte do passado para se perspectivar no presente
da cultura caboverdiana; um projecto dinâmico que visa a defesa do património
cultural como motor de desenvolvimento.”96 O projeto foi então feito a partir da
reabilitação do edifício e a implementação de um programa de cariz cultural,
incluindo um ecomuseu, circuito turístico e a produção de artesanato. A ideia
concretizada neste projeto é um exemplo necessário para expor uma atitude que
será preciso perante tantas arquiteturas que fazem parte do património dessas
ilhas e que anseiam por ações de salvaguarda.

95 L. LOPES; J. M. MASSA; F. MASSA. in ponto & vírgula - revista de intercâmbio


cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas no MINDELO - PONTO & VÍRGULA,
Edições – Cabo Verde, 2006. p.54
96 “Maria Chaves - “O Sobrado de “Ilhéu de Contenda” de Teixeira de Sousa, Suporte
de um projecto cultural na Ilha do Fogo” – (…) A primeira ideia surgiu: reabilitar um marco
histórico-literário da ilha, a partir de um trabalho de restauro de Maria Chaves e transportar o
romance de Teixeira de Sousa para um outro plano de vivência cultural.” Idem, p.53

81
26 Propaganda turístico - Ilha da Boavista 1972

82
1.5 - Património, Turismo e Desenvolvimento

Desde a década de sessenta que o turismo balnear se vem assumindo como uma
das atividades económicas mais viáveis e rentáveis para o arquipélago. Tanto
nas ilhas como na metrópole já havia a consciência da possível importância
dessa atividade, o que motivou o lançamento de programas de investimento
e de ações de planeamento, em boa parte canalizados para os territórios
algarvio e madeirense e centrados na construção de grandes equipamentos
hoteleiros, que conduziram a uma transformação intensiva da paisagem. Nesse
período, as atenções dirigem-se também para Cabo Verde, e ainda numa fase
embrionária foram estudados os potencias das ilhas para acolher investimentos
similares, com objetivo de tirar partido do crescimento da indústria de
turismo internacional. Ainda que menos acarinhado, houve também a
vontade e recorrer aos bens patrimoniais do arquipélago para se promover
uma modalidade diferentes de turismo, com vocação cultural. A “Pequena
Monografia de Cabo Verde”, editada em Lisboa em 1961, destaca como atração as
ruínas da Cidade Velha, não tanto pelo seu valor patrimonial, mas associado às
“óptimas condições para a prática de pesca subamarina” e acrescenta um elenco
de paisagens naturais, tais como “o vulcão do Fogo: as paisagens amenas da ilha
Brava, de abundante vegetação; a maravilhosa baía de S. Vicente, que é marginada
por um morro enorme cujos recortes lembram uma figura humana…”. É de salientar
que a maioria das atrações anunciadas remetiam para a apreciação de elementos
naturais, denunciando assim a falta de interesse para os patrimónios urbanos,
monumentais ou arquitetónicos 97.
No período da pós-independência, o governo cabo-verdiano, reconhecendo a
importância económica do turismo nesta geografia, continuou com a anterior
política, no sentido de capitalizar de forma progressiva os investimentos,
para o estabelecer vários planos estratégicos para regular o desenvolvimento
deste setor. Tratava-se, inicialmente, do intensificar o turismo balnear, devido
às óbvias condições climáticas e paisagísticas das ilhas, procurando atrair
investidores e público para esse tipo de lazer.

“A indústria do turismo em Cabo Verde tem sido pautada por estas premissas,
orientando a promoção do país como um destino turístico alternativo,
próximo da Europa, de clima ameno e recursos naturais bem conservados. O
Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), elaborado em 1995, considera o
turismo um setor estratégico para o desenvolvimento social e econômico do

97 Cabo Verde - Pequena Monografia, 1961. p.39

83
27 Hotel riu-karamboa - Ilha da Boavista 2009
28 Hotel riu-karamboa - Ilha da Boavista 2009

84
país. Esta perspectiva é reforçada no PND 2002-2005. O governo acredita
que o setor é capaz de mobilizar e atrair recursos que a longo prazo poderão
ser utilizados em outros setores estratégicos no desenvolvimento. Por este
motivo, diversos são os incentivos para investimentos nesta área.”98

Para concretizar estes objetivos, foram criadas ferramentas para controlo do


ordenamento dos territórios das ilhas com maiores aptidões turísticas, de
forma a valorar as áreas abrangidas por essa atividade. Essas Zonas Turísticas
Especiais foram desenhadas consoante a potencialidade dos seus solos Zonas de
Desenvolvimento Turístico Integral e Zonas de Reserva e Protecção Turística 99.
Na atualidade, o turismo de massas é o que tem maior domínio no arquipélago
e, por conseguinte, é o que causa maiores impactos urbanos no ordenamento
territorial, induzindo efeitos negativos pela forma como permitem a construção
de grandes equipamentos, incapazes de dialogar com as estruturas preexistentes
e sobrecarregando a exploração de infraestruturas e dos recursos naturais.
Alguns dos investimentos com maior impacto arquitetónico e urbanístico
surgem maioritariamente na ilha do Sal e da Boavista, onde se assiste à
introdução de modelos exógenos para servir as vontades de um público
estrangeiro, projetos que não se enquadram na realidade do país, causando um
contraste estético, volumétrico, urbanístico e até uma fragmentação social 100.
Andreia Moassab traduz bem este fenómeno, denunciando que
“a política de ocupação do território em Cabo Verde, pautada pelos grandes
empreendimentos imobiliários e pela valorização excessiva do cimento e
vidro, tem colaborado para uma fragilização identitária. A massificação dos
empreendimentos apaga as potencialidades e especificidades locais.”

98 ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre


a (frágil) construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado
[consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-
em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx
99 “O país apresenta 20 áreas classificadas em ZDTI e 12 ZRPT.” in COSTA, João Miguel
Caroço da - Plano Detalhado de Chã de Caldeiras na Ilha do Fogo – Cabo Verde. Lisboa,
Universidade Nova, 2015. p.41
100 “Cabo Verde tem observado nos últimos anos uma gama de projetos pontuais
de intervenção urbanística, muitos dos quais feitos por arquitetos estrangeiros que nunca
estiveram no país, apresentando propostas fantasiosas, economicamente inviáveis e de alto
impacto ambiental e social. Não obstante todos estes problemas, tais propostas são fortemente
abraçadas pelo poder público, media e população locais, todos, de um modo geral, ávidos
pelo “desenvolvimento”, em sua acepção mais conservadora.” ANDRÉIA MOASSAB (2012)
Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil) construção identitária em
contextos recém-independentes no mundo globalizado. [consultado 12 set 2019] Disponível
em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-
fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx

85
29 Batucadeiras

86
Acrescenta ainda que, “a arquitetura destes hotéis é bastante reveladora deste
pastiche cultural: domos árabes misturam-se a máscaras africanas, nivelando, por
meio da arquitetura, perspectivas históricas e temporais distintas.”101

Formas alternativas de turismo, de caráter cultural, não tiveram o mesmo


investimento por parte do estado, apesar de esse se assistir ultimamente a uma
transformação deste quadro, devido à repercussão internacional obtida pela
atribuição da categoria de património mundial ao conjunto urbano da Cidade
Velha. Existe hoje um crescimento da procura de valores culturais específicos,
numa visão integrada do património que concilia as dimensões “material” e
“imaterial”. É o caso da música cabo-verdiana que ganhou grande visibilidade
com os ritmos de “Mornas” glorificada pela Cesária Évora 102. Atualmente já não
se visitam as ilhas apenas para usufruir do clima solarengo e das suas praias,
há quem procure conhecer as tradições culturais do arquipélago, o que faz com
que haja uma maior preocupação com a oferta cultural.
O estatuto conseguido pela Cidade Velha poderá ter dado um novo ênfase
ao trabalho do ministério da cultura, o que se reflete nos lançamento de duas
novas candidaturas junto da UNESCO, com objetivo de conseguir a atribuição
da categoria de património mundial ao antigo “Campo de Concentração do
Tarrafal” e de património imaterial da humanidade à “Morna” 103, factos que
demonstram uma mudança do paradigma, relativamente aos investimentos.
Para além destas iniciativas de maior alcance, tem sido dada continuidade aos
trabalhos de classificação e proteção do património arquitetónico em geral,
sendo de referir que este processo tem sido mais dirigido para os edifícios
isolados, em detrimento dos centros históricos das cidades, ainda necessitados
de programas abrangente de reabilitação e dos aglomerados rurais. Desta
forma é possível reconhecer que há ainda um certo défice de atenção, por parte
das autoridades públicas, em relação à proteção de exemplares da habitação
tradicional e vernacular das ilhas, de que a exceção verificada no conjunto

101 ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre
a (frágil) construção identitária em contextos recém-independentes no mundo globalizado.
[consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-
em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx
102 Cesária Évora (1941-2011), cantora cabo-verdiana com maior reconhecimento
internacional e responsável pela globalização da música popular do país, mais especificamente
da Morna. Ela também é conhecida como “Rainha da Morna” ou “A diva dos pés descalços”, que
é como se apresentava no palco.
103 Candidatura da Morna já está na UNESCO [consultado em 22 ago 18] Disponível
em https://expressodasilhas.cv/cultura/2018/03/26/candidatura-da-morna-ja-esta-na-
unesco/57311

87
30 Cidade Velha

88
classificado na Cidade Velha, tem pouca expressão. No entanto, a rápida
transformação dos paradigmas socioeconómicos tem-se refletido na perda
de muitas das estruturas tradicionais, pelo que se torna urgente a valorização
pública desta tipologia, que foi a que historicamente respondeu da melhor
forma às circunstâncias.

O ecoturismo e o turismo rural, práticas que primam pelo respeito pelo meio
ambiente e pela educação ambiental, têm ganho adeptos no arquipélago e
apresentam-se como alternativas válidas em relação aos modelos de exploração
requeridos pelo dominante turismo de massas. Este fenómeno poderá vir a ter
efeitos positivos, num contexto de considerável privação dos recursos naturais,
caso da escassez da água. O turismo rural tem vindo a contribuir de forma
positiva para a preservação da paisagem. Algumas modalidades deste género
de turismo, que têm surgido nas montanhas de Santo Antão, de Santiago ou
na ilha do Fogo, constituem práticas que fomentam o estreito contacto com
os lugares, os habitats, possibilitando o conhecimento das tradições culturais,
expressas na autenticidade dos modos de vida e da arquitetura vernácula.
Em tudo divergem da tendência para a criação cenográfica de simulacros,
enganadoramente considerados típicos, pelas quais a indústria do turismo de
massas é responsável.
O aparecimento, nos últimos anos, de instituições de carácter museológico,
configurando novos modelos de gestão cultural, pela abrangência da
dimensão territorial em que manifestam a sua tutela, pelo facto promoverem
a participação das comunidades e de procurarem articular tematicamente a
cultura e a natureza, entrosando as tradições locais com os valores naturais e
paisagísticos dos lugares.
Entre essas instituições está o ecomuseu que promove uma abordagem
museológica que procura perpetuar hábitos e costumes, nesse sentido as
populações são convidadas a envolverem em práticas tradicionais e a darem
continuidade a essas atividades 104. Esta tipologia museológica encaminha-
nos para uma leitura mais polivalente e fiel àquilo que o território representa,

104 (…) “um espelho onde a população se contempla, para nele se reconhecer, onde ela
procura a explicação do território a que está ligada, juntamente com a das populações que a
precederam, da descontinuidade ou continuidade das gerações. Um espelho que a população
mostra aos seus hóspedes para que eles a compreendam melhor, no respeito pelo seu trabalho,
pelo seu comportamento, pela sua intimidade”. Assim o ecomuseu combina o tempo, o espaço
e o contexto social, ou seja, tem que ter obrigatoriamente por base um território determinado,
no qual vive uma população com uma identidade própria, caso contrário, como atesta Rivière,
não conseguirá subsistir. in TEIXEIRA, David José Varela - O Ecomuseu de Barroso. A nova
museologia ao serviço do desenvolvimento local. Universidade do Minho, 2005. p.3

89
ao mesmo tempo promove um desenvolvimento sociocultural comunitário,
“pois faz parte do ecomuseu tudo quanto tem valor cultural e tudo o que está vivo
e é utilizável pela população” 105. Por sua vez o centro interpretativo, embora
associado ao modelo do ecomuseu, procura a disseminação do património
cultural o que é positivo porque essas tipologias museológicas escolhem
lugares, por vezes, mais remotos no contexto do arquipélago, o que tem um
impacto positivo que poderá garantir a sobrevivência e o desenvolvimento
dessas comunidades, garantindo, com naturalidade, alguma estabilidade e
continuidade das tradições culturais.
Cabo Verde conta na atualidade com o turismo, tanto para o bem como para o
mal. A promoção de modelos alternativos de desenvolvimento, associados ao
turismo rural, ao ecoturismo, ao ecomuseu e poderá criar dinâmicas positivas
na salvaguarda da cultura e das tradições, e consequentemente do habitat
tradicional. Exemplos recentemente concluídos poderão ajudar a fundamentar
e justificar esta ideia. Alguns destes, apesar da relevância da sua contribuição
para o debate destas questões e enriquecimento da cultura arquitetónica
nacional, têm conhecido pouca divulgação.

105 TEIXEIRA, David José Varela - O Ecomuseu de Barroso. A nova museologia ao


serviço do desenvolvimento local. Universidade do Minho, 2005. p.4

90
CAPÍTULO 2
ANÁLISE e INTERPRETAÇÃO
Santo Antão
Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre

São Vicente

Santa Luzia

Sal
São Nicolau

Spinguera Ecolodge

Boavista

Museu da Resistência

Maio

Plano de Recuperação e Transformação


Sede do Parque Natural da Cidade Velha
doFogo

Fogo Santiago
Brava

31 Cabo Verde, localização dos casos de estudo

94
2.1 – Caracterização da amostra

Os casos de estudo escolhidos situam-se em diferentes ilhas do arquipélago


cabo-verdiano, entre as quais a ilha de Santiago, Fogo, Boavista e Santo
Antão, as duas primeiras pertencentes ao grupo das ilhas de Sotavento e as
duas últimas ao grupo das ilhas de Barlavento. Apesar de apresentarem um
denominador comum, que é a sua situação insular, a sua seleção responde à
vontade de integrar situações com características físicas díspares, decorrentes da
forma como se confrontaram com particularidades de cada lugar e ao facto de
conformarem programas singulares. Deste modo, acredita-se, poderão induzir
uma reflexão plural mais enriquecedora.
Na ilha de Santiago, no município de Ribeira Grande de Santiago, localiza-se
um pequeno aglomerado urbano situado, comummente conhecido por Cidade
Velha, antiga cidade de fundação portuguesa, que foi um ponto estratégico de
escala na ligação Europa, África e América. “Situada entre montes e rochedos tão
altos que não tem outra vista se não o mar” 106, a cidade aconchega-se na ribeira
verde e extensa, abre-se para o mar e adapta-se à topografia acidentada do vale.
O projeto de renovação, designado de Plano de Recuperação e Transformação da
Cidade Velha, foi fundamental para o sucesso da candidatura a património da
humanidade, conseguida em 2009.
Igualmente situado em Santiago, na localidade de Chão Bom, no extremo norte
da ilha, o Museu da Resistência foi instituído na antiga Colónia Penal do Tarrafal.
O antigo campo de concentração do Tarrafal, como é normalmente conhecido,
é símbolo da ditadura portuguesa e foi classificado como património nacional
de Cabo Verde em 2006. Na perspetiva de salvaguarda das memórias desse
espaço, desencadeou-se um processo de musealização que contou com a
reabilitação do sítio.
Numa das ilhas mais antigas do arquipélago, a Boavista, encontramos o
Spinguera Ecolodge, um hotel de caráter alternativo. O aldeamento turístico
foi integrado numa antiga aldeia de pescadores, situada na localidade de
Espingueira, na costa nordeste da ilha. O projeto contemplou um trabalho
intenso de reabilitação e recuperação das ruínas dessa antiga aldeia,
reinterpretando os sistemas construtivos tradicionais da ilha. O projeto
constitui caso particular e uma exceção, num contexto em que dominam
equipamentos hoteleiros que se opõem aos princípios tradicionais de

106 SANTOS, Maria Emília Madeiro [et al.] coord. - História geral de Cabo Verde –
Volume II. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia: Direcção Geral do
Património Cultural de Cabo Verde, 1995. p.226

95
construção e alienados realidade sociocultural.
Na ilha de Santo Antão, na localidade de Ribeira da Torre, o projeto de
Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre foi guiado pela
ONG cabo-verdiana Atelier Mar. Um projeto de turismo e desenvolvimento
implementado nessa ribeira afluente da Ribeira Grande, inseridas nas encostas
daquela topografia montanhosa de beleza singular. O projeto procura o
envolvimento da comunidade local em processos de salvaguarda da identidade
cultural e arquitetónica tradicional daquele vale.
No sopé do vulcão da ilha do Fogo, na localidade de Chã das Caldeiras, o
projeto da Sede do Parque Natural do Fogo é produto da relação bem-sucedida
entre engenho e circunstância. Um edifício contemporâneo que procurou
conciliar tradição e inovação, vocacionado não só para a receção de turistas
temporários, mas também para o envolvimento ativo da população local.
A sua relevância deriva da forma como reinterpretou as características
geomorfológicas do lugar e a cultura construtiva da ilha.

96
32 Cidade Velha - Território
33 Cidade Velha - Povoado

98
2.2 - Cidade Velha, o impulso para a salvaguarda do
património arquitetónico cabo-verdiano

Da Ribeira Grande Cidade Velha foi o primeiro povoado de Cabo Verde. Localizado em Santiago,
à Cidade Velha que é a maior ilha do arquipélago, tipicamente vulcânica, e com algum contraste
paisagístico. O lado norte da ilha apresenta orografia mais acentuada, com a
presença dominante de algumas elevações, como o Pico de Antónia ou a Serra
Malagueta. A sul, os relevos tornam-se menos expressivos. Essa variação da
morfologia entre montanhas e vales, ou planaltos e vales, cria contrastes. Por
vezes, o leito dos vales é de solos férteis com nascentes de água e paisagens de
corpo verdejante, o que diferencia dos solos áridos do território envolvente.
O local onde a cidade se implantou reunia condições naturais particularmente
favoráveis, pois, por um lado, oferecia solos férteis que garantiam a subsistência
e, por outro, a sua topografia facilitava a implementação de um sistema de
defesa. As paredes rochosas que ladeiam o vale, de grande imponência, formam
uma proteção natural para a cidade, que, durante alguns séculos se revelou
essencial para a sua sobrevivência. O papel de entreposto internacional que
rapidamente adquiriu, imprimiu-lhe uma dinâmica de crescimento que lhe deu
o estatuto de segunda urbe mais rica do império português 107.
Essa importância económica e estratégica tornaram a cidade suscetível aos
ataques de piratas, que foram constantes ao longo dos tempos, o que acelerou o
seu declínio e ditou, por fim, o abandono. A vizinha povoação da Praia oferecia
melhores condições de defesa e aos poucos foi acolhendo os que abandonavam
a Ribeira Grande. Deste modo, em 1858, viu-se consumada a transferência das
funções administrativas, com a elevação de Praia a capital da colónia.
A população que permaneceu na Ribeira Grande ficou economicamente mais
débil e teve que se adaptar às vicissitudes do lugar, erguendo novas habitações
mais modestas entre as ruínas da antiga cidade, para o que utilizaram materiais
que recuperados dos antigos edifícios. Atualmente a Cidade Velha é uma
pequena vila de agricultores e pescadores, com população reduzida. Segundo os
sensos de 2010, possuía perto de dois milhares de habitantes, o que a classifica
como uma das vilas mais pequenas da ilha de Santiago.
A chegada à cidade acontece com alguma surpresa, o caminho solitário é
interrompido pelo aparecimento de um conjunto de edificado sobre a colina

107 Artigo de Ana Gerschenfeld, [consultado 11 nov 2015] Disponível em https://www.


publico.pt/2015/11/11/ciencia/noticia/desenterrada-em-cabo-verde-a-igreja-mais-antiga-dos-
tropicos-1713994

99
34 Cidade Velha - Vista da Sé
35 Cidade Velha - Vista do Convento São Francisco
36 Cidade Velha - Vista da Baía

100
árida que encima o mar. Ao aproximar, mira-se em baixo o vale, com o seu
casario que se ergue por entre um conjunto verdejante e se estende ribeira
dentro. O centro histórico da Cidade Velha tem uma densidade de construção
pouco expressiva. O seu núcleo principal, onde se localizam os edifícios
administrativos, mantém-se ao largo da baía da cidade. Na praça central
encontra-se ainda o pelourinho que foi símbolo do tráfico esclavagista 108. É este
o lugar que serve de receção aos que chegam, tanto por terra, como vindos do
mar, sendo uma característica implícita na estrutura desta malha urbana é de
cidade construída para o exterior. Neste lugar dá-se a confluência de diversas
ruas, das quais se destacam a Rua Banana e a Rua Carreira, as mais antigas da
vila, e que estão ladeadas pelas construções vernaculares mantendo o ambiente
típico da vila 109. Entre ruas e becos, surge o edificado, os pequenos quarteirões
são de baixa densidade e demarcam-se em relação aos arruamentos confinantes
pois formam plataformas com cota mais elevada, onde se fundam as casas.
De carácter vernacular, as habitações são tendencialmente unifamiliares e
apresentam piso único, construídas em alvenaria de pedra basáltica, a mesma
que pavimenta as ruas, mas que aqui é caiada. Os monumentos possuem maior
imponência, no entanto, a sua presença não é contrastante em relação ao resto,
pois existe um equilíbrio e uma relação de escala entre os vários edifícios.
A reduzida frequência de veículos torna as ruas praticamente pedonais e
contribuem para a quietude do lugar. Os muros e os bancos em pedra que
delimitam essas ruas e fazem a transição para o espaço privado das habitações,
são elementos convidativos para o assento e o convívio 110. Todos esses fatores
contribuem para a harmonia da vila.
Podemos enquadrar os edifícios que se encontram na povoação em três grupos:
as construções que datam dos momentos áureos, a habitação vernacular,

108 República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-
Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan
2008), p.35
109 “L’habitat - Petit bourg d’environ 200 maisons aujourd’hui, Cidade Velha comptait 500
maisons en pierres au milieu du XVIe siècle, dont certaines grandes maisons appartenant aux
marchands, armateurs et trafiquants qui orchestraient la vie économique de la ville. La plupart
d’entre elles ont disparu. L'habitat actuel est dominé par la maison capverdienne typique qui
utilise les mêmes matériaux queles maisons d’origine […], c'est-à-dire une maison rectangulaire
en pierre d’un étage avec sa grande façade orientée sur la rue, très souvent sans cloisonnement
interne. Sa toiture est de deux ou quatre pans couverts de chaume ou de tuiles. La composition
de la façade principale se limite à l'ouverture d'une porte, presque toujours centrale, avec sur les
côtés une ou deux fenêtres. Cette façade est souvent en recul par rapport à la rue, pour ménager
un espace convivial de transition entre la vie privée et l’espace public, qui peut se traduire par
un petit pátio entouré de murets, ou par un simple banc de pierre. La maison s’ouvre à l’arrière
sur une cour. Les rues Banana et Carrera sont aujourd'hui les meilleurs exemples de cette
architecture minérale traditionnelle qui perdure, tant au niveau du plan que de la façade, même
si la pierre est aujourd’hui parfois remplacée par les parpaings de sable-ciment.” Idem, ibidem.
110 Idem, p.37

101
37 Cidade Velha - Rua Banana, ano 2000

102
construída após a perda do estatuto de cidade e, por último, os edifícios
de construção recente, que recorrem a materiais e sistemas construtivos
contemporâneos.
O primeiro grupo integra casas senhoriais, equipamentos de defesa e edifícios
religiosos. Eram dotados de materiais nobres, à luz daquilo que eram as
soluções construtivas da época na metrópole. A maioria deles encontra-se hoje
em ruínas. Em posição dominante sobre a baía, implantada a meia encosta,
os vestígios da antiga catedral; nascente da povoação e no topo da colina, o
Forte Real de São Felipe, que se mantém em bom estado de conservação. No
vale, o Convento de São Francisco e a igreja Nossa Senhora do Rosário, que,
como antes foi referido, beneficiou duma intervenção de restauro de sentido
reintegrador, concretizada na década 1960 sob orientação de Luís Benavente.
Com o declínio da urbe a partir de meados do século XIX, consolida-se um
modelo de habitação bastante modesto que substitui as anteriores construções.
Este modelo, de grande simplicidade e com um único piso, implanta-se a
toda a largura do lote, formando frentes contínuas de construção, embora
recuadas em relação ao alinhamento das vias. Isto permite a criação de um
pátio, delimitado por muros baixos, que antecede a habitação e ao qual se
contrapõe um logradouro nas traseiras. Originalmente, as casas eram dotadas
de dois compartimentos, sala e quarto, a que corresponde a um alçado sobre a
via pública rasgado por porta central axial e duas janelas laterais. A construção
utiliza pedra local, por vezes empregando alvenarias retiradas das ruínas de
antigas construções. Geralmente, as paredes são caiadas e a cobertura tem
estrutura em madeira de coqueiro e acabamento em colmo. A homogeneidade
e unidade que resulta da repetição desta fórmula pode ser observado na rua
Carreira e Banana 111.
O último grupo referenciado corresponde às construções recentes que recorrem
a materiais e sistemas modernos e de origem exógena, tais como a alvenaria
de blocos de cimento, a cobertura plana em laje de betão armado, a caixilharia
em alumínio. Estas construções denunciam a tendência generalizada para
entrar em rotura com as tradições construtivas locais e com o uso de materiais
tradicionais, vistos como pobres e pouco eficientes.

111 UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009), p.30.

103
38 Cidade Velha - Planta

104
A requalificação urbana da Cidade Velha (1999 - 2008), antiga Ribeira
Plano de
Grande, 112 foi fortemente impulsionada pelo objetivo de atingir o estatuto de
Recuperação Património Mundial da Humanidade. A motivação para essa candidatura deve-
e transformação se ao reconhecimento da importância deste sítio histórico. Os documentos da
candidatura identificam valores patrimoniais, de caráter material e imaterial,
relacionados com a dimensão multicultural do lugar, uma vez que, enquanto
entreposto fundamental do tráfico esclavagista, serviu de lugar confluência de
diversos povos, de origem europeia e africana, os quais estiveram na génese do
povo e da cultura cabo-verdiana.
Os trabalhos prévios à candidatura convocaram instituições nacionais e
internacionais e teve como principal dinamizador o Instituto de Investigação
e Património Cultural, em representação do Ministério da Cultura de Cabo
Verde. O governo cabo-verdiano estabeleceu parcerias de âmbito internacionais
para apoiar o desenvolvimento de distintas tarefas. A Cooperação Espanhola
financiou o projeto de requalificação urbana 113, a Cooperação Portuguesa,
através da participação de técnicos da Direcção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais e do Ministério da Cultura, permitiu a elaboração de
estudos prévios e de ações de salvaguarda dos monumentos, a Cooperação
Inglesa teve particular enfoque na realização de escavações arqueológicas em
áreas conotadas com as primitivas ocupações da urbe.
Com o apoio do estado espanhol, o desenvolvimento do projeto de
requalificação patrimonial esteve a cargo duma equipa coordenada pelo
arquiteto Álvaro Siza Vieira, em colaboração com a arquiteta Helena
Albuquerque, que ainda contou com o apoio de um gabinete técnico do
município da Ribeira Grande e o envolvimento da população local.
O programa estabelecido para requalificação da atual vila apresentava os
seguintes objetivos:
- a consolidação das ruínas e reabilitação dos monumentos;
- a restruturação do espaço público e das principais vias da urbe;
- o apoio aos moradores na reabilitação/construção das suas moradias;
- o projeto de equipamentos, entre os quais um centro cívico, uma escola, um
restaurante e uma pousada;

112 UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009), p.29


113 República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-
-Vert, Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan
2008), p.85

105
39 Sé Catedral, Cidade Velha - Intervenção IPPAR
40 Arquitetos Helena Albuquerque e Álvaro Siza - Cidade Velha

106
- o apoio ao desenvolvimento de um plano de gestão urbana.
A intervenção nos principais monumentos foi definida como uma das
ações primárias, sendo a Sé Catedral o primeiro objeto intervencionado. A
consolidação de caráter arqueológico, foi realizada, numa primeira fase, em
colaboração com Instituto Português do Património Arqueológico (IPPAR),
sendo operações de caráter meramente técnico, foi fundamental a participação
do IPPAR, uma instituição com grande experiência na realização desse tipo
de trabalhos. Para isso esteve o arquiteto Alexandre Braz Mimoso encarregue
dos trabalhos, enquanto que, na segunda fase tratando-se de trabalhos de
requalificação do espaço público, foi fundamental o envolvimento do arquiteto
Álvaro Siza 114.
Igualmente no âmbito das ações principais, estavam a recuperação das
habitações tradicionais, cujo processo de trabalho implicava a colaboração dos
proprietários no desenvolvimento do projeto.
A tipologia tradicional de habitação estava a cair em desuso, adulterada
com a mudança da volumetria, do sistema construtivo e a introdução de
novos materiais. A população alegava que esses tipos de habitações não
proporcionavam conforto, implicavam a realização de obras regulares de
manutenção, além disso, associavam-nas a uma ideia de pobreza. Porém,
para o processo de candidatura a Património Mundial seria fundamental
salvaguardar e valorizar essas construções, pelo que, através da intervenção do
arquiteto e da equipa técnica, foi desenvolvido um trabalho junto a população,
de modo a sensibilizar e apoiar os trabalhos de construção e reabilitação. No
entanto, no decorrer dos trabalhos de reabilitação desencadeou um processo
turbulento, houve um desfasamento entre objetivos da população em relação
aos estabelecidos pela entidade reguladora.
Os moradores pretendiam casas modernas com outros tipos de materiais,
como blocos de betão em substituição da pedra, cobertura em laje de betão
ou em telha em vez de palha, reboco em vez de pedra à vista, dois pisos em
vez de um. Acreditando que ficava mais barato a execução de uma casa com
materiais modernos, contrariam a cobertura em colmo por não existir matéria-
prima (palha da cana sacarina), e por exigir mão-de-obra artesanal em que os
artesãos já são escassos e precisa de manutenção 115. E, no entanto, defendem
a cobertura em laje de betão na ideia de que fica mais barata a execução, ficam

114 MIMOSO, Alexandre Brás – Sé da Cidade Velha de Santiago (Cabo Verde).


PATRIMÓNIO, estudos. Salvaguarda Patrimonial. Lisboa. n.6 (mai 2004) p.208
115 MARQUES, Ana Filipa – Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na
Cidade Velha. Porto: FAUP, 2001. Prova Final, p.73- 74

107
41 Esquisso Álvaro Siza - Cidade Velha
42 Perfil e planta - Plano de Recuperação e Transformação Cidade Velha

108
melhor abrigados e conseguem com o processo de “djunta-mon” (entre ajuda)
gastar menos do que se optarem pela cobertura em colmo. Também a telha é
defendida por ser mais impermeável que a palha, mas é um material que não
é local. Toda essa vontade fez contrariar o processo de reabilitação da cidade.
Como se constata no documentário “O Arquitecto e a Cidade Velha” 116. Quem
estava a construir a sua habitação teve de esperar pelo apoio técnico e submeter-
se às burocracias do estado e às sucessivas mudanças governamentais o que
provocou reações de desconforto e a constatação de que “os pobres não ganham
com o histórico”, como afirmou um dos residentes. Por sua vez, o arquiteto
defende a intenção de manter as características construtivas e a imagem da
arquitetura vernacular local, entendendo que estas definem a identidade do
lugar e a especificidade que o distinguem como um bem patrimonial único.
Seria preciso manter os materiais, a tipologia existente, a cércea, o método
construtivo, o que permite estabelecer ou manter o equilíbrio dos grandes
monumentos em ruína com o casario. A ideia do arquiteto foi sempre no
sentido de manter o legado histórico local, como se pode ler no seguinte
excerto:

“É claro que podemos perguntar se é certo manter este tipo de ambiente, este
tipo de vida, porque as cidade evoluem, agora o que penso é que se pretende
manter o património, recuperar, consolidar as ruínas, dos conventos, das
igrejas, etecetera, sem manter o tecido tal como ele ainda é…desenvolvendo
de forma limitada, perde-se tudo, quer dizer os monumentos sem estarem
rodeados por esse tipo de casas perdem completamente escalas e… Agora
pôr em ações as decisões tem-se mostrado muito difícil, e tem-se mostrado
muito difícil de ambos os lados, cooperação portuguesa/espanhola e governo
de Cabo Verde. De resto houve mudanças políticas que motivaram paragens,
enfim, tempo…tempo de reorganização, quer em Portugal, quer em Cabo
Verde. E é isso, é muito simples, mas pelos vistos muito complicado de
realizar.”117

A dicotomia criada nesse processo é interessante, pois coloca em confronto o


arquiteto e o interesse das instituições ligadas a salvaguarda e, por outro lado
estão os habitantes que anseiam por melhores condições de habitabilidade
do local. O diálogo entre os envolvidos teve o seu resultado, mas o processo
vagaroso gerou algum desconforto para a população.

116 O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal:
midas, 2003. (DVD)(72 min)
117 Álvaro Siza Vieira in O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina
Alves Costa. Portugal: midas, 2003. (DVD)(72 min)

109
43 Planta, alçados e corte da Pousada São Pedro

110
Como referido, o programa de ação previa o projeto e construção de vários
equipamentos, dos quais apenas a pousada foi executada e concluída em 2003,
ficando os outros projetos, um restaurante, o centro cívico, uma escola, em
papel. A par das ações de requalificação de elementos preexistentes, o arquiteto
considerou necessário construir alguns edifícios de raiz, cirurgicamente
localizados em diferentes lugares da povoação. Em todos houve a preocupação
em manter uma relação de escala com as construções existentes. Os
equipamentos propostos são de pequenas dimensões, procurando responder
as necessidades dos residentes e do turismo. O arquiteto sempre quis manter o
carácter do lugar, por isso não pretendeu criar equipamentos que chamassem
grandes multidões, ele manteve sempre uma postura em prol do equilíbrio do
carácter do lugar. Isto, apesar dos promotores, o governo e os financiadores,
terem outras expetativas 118.
A Pousada São Pedro foi implantada num lugar afastado da foz e isolado em
relação às demais construções. O projeto do arquiteto Siza Vieira exibe traços
construtivos sinónimos da arquitetura tradicional existente. A construção do
edifício procura conciliar o desenho dos espaços ao estilo de vida da população,
a descrição seguinte explica a composição do equipamento:

“A pousada é construída por quatro pequenos pavilhões, dispostos em torno


de um páteo quadrangular. Este páteo é a zona de estar protegida e espaço
de distribuição entre quartos, a recepção, o restaurante e a cozinha. A
articulação das edificações, bem como a escolha dos materiais e das técnicas
de construção, têm como referência o tipo de ocupação a as dimensões e
aparência das casas tradicionais existentes. Foram feitas as adaptações
necessárias para a utilização destes espaços como pousada. Pretendeu-
se construir um exemplo para outras realizações, seguindo a construção
tradicional, a mais adaptada ao meio e aos meios.” 119

De pedra talhada e sem reboco no exterior, cobertura em telha, esses volumes


que confinam espaços entre eles e na relação com a envolvente, refletem um
adaptar aos costumes do lugar, bem como uma resposta as condições climáticas
do sítio, tanto pela definição da sua volumetria como pelo cuidado tido na
abertura dos vãos.
De modo a proteger o núcleo histórico foram definidos limites de afetação.

118 Conversa com a arquiteta Helena Albuquerque.


119 arqa nº25 – Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo
Verde. p.33

111
44 Maqueta Escola - Plano de Recuperação e Transformação Cidade Velha
45 Maqueta Pousada São Pedro - Plano de Recuperação e Transformação Cidade Velha

112
A área definida como património nacional foi de 50 hectares, que incluem o
sítio histórico, por sua vez esta área está protegida por uma zona de tampão de
250 hectares. Além dessas áreas terrestres, parte da costa marítima foi definida
como área protegida, por possuir vestígios de naufrágios, que poderão vir a ser
explorados e que pertencem ao legado histórico da antiga cidade.
Foi estipulado um plano de gestão do sítio histórico num período de quatro
anos, com objetivo de dar continuidade ao processo iniciado. A gestão do
sítio histórico ficou a cargo da agência privada Poim-Tur, que teve a concessão
através do Estado, por intermédio do IPC. Tinha como principais atividades
a manutenção dos monumentos, a organização de visitas ao sítio histórico, a
exploração da Pousada São Pedro e de um serviço de restauração na Praça do
Pelourinho.
O plano urbano e os projetos de arquitetura aconteceram entre 1998 a 2003,
enquanto que os trabalhos foram desenvolvidos até ao ano de 2008. Nessa
altura, o dossier de candidatura a património mundial exibiu o relatório dos
trabalhos feitos e apresentou um plano de gestão do sítio que prolongava até
2012. No final das intervenções, foi preparado um dossier de candidatura
pelo Instituto de Investigação e do Património Cultural, um departamento
do Ministério da Cultura, apresentada à UNESCO em 2008 de modo a ser
avaliada por essa comissão. A avaliação feita foi positiva, o sítio histórico
que tinha sido declarado Património Nacional em 1990 ganhou o status de
Património Mundial da Humanidade a partir do ano 2009. O relatório da
ICOMOS transmitiu que houve a preservação das ruínas da cidade, dos
vestígios arqueológicos e da própria topografia, sendo que este último permite o
entendimento da implantação da antiga urbe que preserva a sua autenticidade e
integridade 120.
O plano de recuperação da área urbana antiga estabeleceu alguns critérios de
intervenção e transformação das construções tradicionais e, além disso, com
vista à preservação arquitetónica, e de modo a evitar impactos negativos de
futuras transformações, delinearam um plano para a zona de expansão da
cidade circunscrita a parte da área envolvente, como também uma vasta área
denominada de zona de tampão, que constitui uma faixa livre de construção.
Esta estratégia permite preservar a paisagem urbana do local, tanto na
dimensão da urbe, como na relação com o território da sua envolvente que,
por sua vez, mantém o seu aspeto característico de território árido e livre de
construção, com um vale verdejante rasgado na sua superfície.

120 UNESCO - evaluations of cultural properties (Jun 2009). p.32

113
46 Pousada São Pedro, vista do pátio
47 Pousada São Pedro, vista lateral do conjunto
48 Pousada São Pedro, vista a partir do vale

114
A reabilitação urbana da Cidade Velha e a consequente salvaguarda do seu
património arquitetónico teve um impacto bastante positivo na valorização do
património no arquipélago. Houve um incentivo à preservação patrimonial que
dinamizou processos semelhantes a nível nacional.
A posição crítica assumida pelos arquitetos relativamente ao programa de
intervenção, elaborado pelas instâncias administrativas foi determinante
para a proteção da identidade arquitetónica, paisagística e cultural do sítio. A
tentativa de preservar o delicado equilíbrio existente entre natureza, construção,
ambiente humano e vivência do espaço, o que compõe a beleza do sítio foi
uma atitude importante que contrariou as ambições das entidades envolvidas.
O diálogo entre o arquiteto e os promotores permitiu definir os critérios
de projeto, que além da consolidação das ruínas e da reabilitação urbana,
definiu a elaboração de projetos de pequenos equipamentos necessários ao
funcionamento da povoação e ao acolhimento dos seus visitantes. Houve
uma contradição, por parte dos arquitetos, em relação a espectativa de criar
equipamentos de grandes dimensões que pudessem atrair um maior número
de turistas, o que poderia vir a perturbar o equilíbrio e autenticidade que a
pequena vila preservava.
Os processos de trabalho na urbe envolveram a população local e no caso
da reabilitação da habitação tradicional houve um contacto direto com cada
proprietário. Esse trabalho conjunto serviu para informar e transmitir as
ideias e os objetivos do governo que esmerava uma candidatura a património
mundial. Embora se tenha tornado num processo conturbado por causa da
inércia encontrada na execução do projeto, interrupção da construção forçada
por mudanças políticas, o diálogo estabelecido serviu para expor os valores das
arquiteturas locais, como também criar um espírito comum para a preservação
de toda a urbe com os seus valores e costumes.
Conseguiram preservar a arquitetura tradicional local na sua volumetria,
linguagem e materialidade, o que beneficiou não apenas o lugar, mas também
teve um impacto importante para valorização da arquitetura vernacular cabo-
verdiana na qualidade da casa popular.
Atualmente o sítio já não oferece os mesmos recursos naturais que permitiram
a criação da habitação vernacular, é o caso do colmo utilizado na cobertura
que era concebido com base nas folhas de cana-sacarina, que já não abunda
neste vale. Esse tipo de cobertura necessita de uma manutenção regular o
que atualmente não consegue ser suportado pela matéria-prima produzida
localmente. Porém, já são visíveis nas construções locais uma adaptação do
sistema construtivo da cobertura que passa pela introdução de uma chapa
metálica inferiormente ao colmo. A introdução desse elemento, algo que
também já é aplicado em construções similares noutros contextos, possibilita
uma impermeabilização eficaz da cobertura, que reduz substancialmente a

115
49 Pousada São Pedro, vista de uma porta
50 Pousada São Pedro, vista de um espaço interior

116
camada de colmo e prolonga a manutenção desse elemento.
A construção da Pousada São Pedro foi idealizada tendo em conta a tradição
construtiva e os recursos naturais do lugar, de modo a criar um edifício que
respondesse às vicissitudes do lugar e que servisse de modelo para futuras
construções. É de salientar que o projeto constitui tanto uma síntese do modo
de habitar e apropriação dos espaços da população local, como traduz uma
escolha sensata dos materiais com base nos recursos do sítio. Este modelo
idealizado e construído segundo as circunstâncias atuais do lugar já influencia
as construções recentes, que seguem o sistema construtivo e a linguagem
do edifício. Além da abordagem construtiva à imagem das tradições locais,
a tipologia do projeto implica uma atuação consoante modelos globais, no
entanto, a atuação do arquiteto procurou um aproximação ao sítio e às suas
características, o que vai de encontro a uma ideia de projeto defendida pelo
arquiteto, o que pode ser interpretado na seguinte afirmação do arquiteto:

“Outro hábito que também senti foi o de quando se concebe um hotel, e


sendo da mesma cadeia, ter de se fazer o mesmo ambiente em Paris, Tóquio,
Porto… Parece-me uma tristeza, porque qualquer pessoa em negócios ou sem
ser em negócios, se vai para outro país ou outra cidade, pretende inserir-se
no ambiente dessa cidade.”121

A ideia de ambiente da cidade referido pelo arquiteto está certamente implícita


no projeto da pausada, que representa a atmosfera desse lugar.
O trabalho desenvolvido no processo de candidatura a património mundial
é notável, no entanto, sabemos que existe uma exigência para a preservação
e manutenção do sítio histórico, bem como uma necessidade de salvaguarda
que poderá abranger aspetos ainda não explorados. São sabidas as dificuldades
financeiras existentes no país que impossibilitam dinâmicas tanto de proteção
como de potencialização do sítio histórico. Apesar desse entrave, podemos
reconhecer que existem lacunas que poderão ser colmatadas as quais poderão
beneficiar tanto os locais como os seus visitantes. A nível da proteção do
património arquitetónico e do contexto urbano local, podemos afirmar
que será necessário promover incentivos para a reabilitação, vários edifício
típicos encontram se em ruína, por outro lado, deve existir especial atenção
na linguagem das construções novas aprovadas para a urbe e sua envolvente,

121 Álvaro Siza Vieira in PEREIRA, Luís Tavares - Reacção em Cadeia – Transformações
na Arquitectura do Hotel. Algarve. 2008. p.159

117
51 Bairro São Victor, Porto
52 Álvaro Siza, Haia

118
tanto os materiais como a volumetria poderão influenciar o ambiente do lugar,
pelo que tem de haver regras estabelecidas que ajudem a manter a integridade,
a autenticidade e a identidade do lugar, o que vai de encontro às demandas
deixadas pela avaliação da UNESCO 122.
Por sua vez, podemos apontar algumas perspetivas mais especificas que
poderão contribuir para a preservação e potencialização deste sítio histórico.
A criação de um museu da cidade constitui uma ação que poderá ser de
“fácil” implementação e que pressupõem um trabalho aberto e com um
desenvolvimento progressivo. Existem bases para essa criação e grandes
viabilidades para a potencialização de tal criação que poderá passar pela
exploração da riqueza histórica do lugar e das suas relações com o exterior.
Igualmente as diversas escavações arqueológicas feitas no local constituem
documentos úteis para um futuro museu da cidade, além disso, já havia sido
apontada a proteção de uma vasta orla costeira no sentido de proteger os
vestígios dos naufrágios. Essas áreas subaquáticas possuem centeúdos que
poderão vir a ser explorados, e que certamente reúnem elementos de grande
interesse para o espólio esmerado. Em conjunto com os apontamentos feitos
previamente, a cultura deste lugar, que foi o berço da cabo-verdianidade,
contém traços singulares que certamente serão transmitidos com agrado num
futuro museu da cidade.

Antes de ter sido convidado para desenvolver os trabalhos para a Cidade


Cidade Velha Velha, o arquiteto Álvaro Siza Vieira já contava com uma vasta experiência
e Salemi
em programas e circunstâncias de trabalho semelhantes. Um dos momentos
mais significativos foi a experiência no SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio
Local), um programa de construção de habitações económicas para a população
mais carenciada de diversos espaços urbanos do país, lançado na sequência da
revolução de abril, orientado pela tentativa de manutenção das populações no
local de origem, garantindo a preservação dos seus hábitos, redes familiares e
sociais. Primavam os processos participativos com base no diálogo próximo
com os futuros moradores, principalmente no projeto do Bairro São Victor, no
Porto. Este projeto procurou integrar os novos edifícios numa malha densa de
memórias, preservando algumas ruínas que assinalavam o anterior cadastro e
ajudavam a caracterizar os espaços exteriores comuns.

122 “Preserve in the future management of the property the relationship between the city
and the rural and natural space of the valley, in order to conserve the spirit and, if possible, the
evidence of the rich agricultural history of Cidade Velha.” in UNESCO - evaluations of cultural
properties (Jun 2009). p.38

119
53 Salemi

120
As experiências de trabalho que se seguiram, concretizadas em Berlim e Haia
e que previam da mesma forma a construção de habitações sociais em tecidos
urbanos históricos, também contaram com o diálogo com as comunidades
locais. Programas de requalificação de espaço público e de reestruturação de
redes pedonais de circulação foram determinantes no desenvolvimento do
projeto de recuperação da zona ardida do Chiado, em Lisboa, e do centro
histórico de Salemi.
Localizada na província de Trapani, na Sicília, Salemi foi parcialmente destruída
por um terremoto ocorrido em 1968. A igreja matriz foi das estruturas mais
afetadas e permaneceu em ruínas até à intervenção de reabilitação. O projeto
de “Riqualificazione del centro storico di Salemi” decorreu entre 1991-1998 e
foi coordenado pelos arquitetos Álvaro Siza Vieira e Roberto Collovà, teve
como principais objetivos a requalificação do espaço público e a consolidação
das ruínas. Foram estabelecidas ações especificas para a intervenção, que
compreenderam a restruturação dos percursos através do redesenho dos
pavimentos, a introdução de rampas e escadas, também elementos auxiliares
como corrimãos, guarda-corpos e lâmpadas de iluminação pública. As ideias
que vieram a ser desenvolvidas com o projeto foram lançadas num workshop
promovido pela faculdade de arquitetura de Palermo em 1980. Dois anos
depois a câmara de Salemi interessa-se pelo projeto que o Siza e o Colová
desenvolveram, então encomendaram a recuperação da igreja matriz quase
completamente demolida pelo terremoto de 68. O projeto da Piazza Alicia foi
desenvolvido em 1991, está praça forma uma verdadeira acrópole no cimo
da colina, juntamente com o castelo e a igreja. Entre 1992 a 1997 o terceiro
projeto foi lançado, promovia a reconstrução do quarteirão de Piano Cascio,
que fica nas traseiras da igreja, no entanto não foi construído. O impulso dado
pela reconstrução da igreja levou também ao desenvolvimento de plano para o
centro histórico.
A intervenção na igreja procurou aflorar dois aspetos, a anatomia construtiva,
porque além do sistema, podia ver-se a consistência da estrutura, o segundo
aspeto refere a uma abordagem romântica e nostálgica sobre a ruína. O
objetivo era fazer conviver a excecionalidade da ruína e a nova identidade da
sua transformação por subtração. A esta operação opunha-se a simplicidade
do trabalho de recuperação das casas adossadas à abside, com alterações
tipológicas mínimas, necessária para acolher um programa mais articulado
e complexo. Procedeu-se à libertação da ábside, sem perder a compacidade
do quarteirão que contém a igreja 123. Depois do projeto da igreja, o clima da

123 CREMASCOLI, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di
architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014. p.81 – 87

121
54 Salemi -axonometria igreja matriz e Piazza Alicia
55 Salemi -axonometria conjunto

122
administração mudou, devido à mudança do presidente da câmara, havendo
então uma ausência de interlocutores para o projeto.
Para o projeto da Piazza Alicia e para as ruas do centro histórico as
lições do workshop inicial foram fundamenais, devido ao levantamento
e reconhecimento do sítio, em que foram produzidos imensos desenhos,
minuciosamente. Foi desenvolvido um trabalho de ordenamento das superfícies
pavimentadas e das diversas tipologias de acessos às casas e lojas em formas de
escadas e rampas. Essas intervenções fazem parte de um complexo sistema de
vias, que englobam escadas, rampas e pequenos espaços públicos que ligam a
Piazza della Libertà no vale à Piazza Alicia no topo.
Toda a transformação tende a modernizar a cidade sem esquecer o sucedido,
sendo a aceitação do desastre como matéria do projeto de transformação.
O projeto para Piano Cascio previa uma reconversão de uma espécie de
esventramento natural causado pelo terramoto numa nova praça, em volta
da qual se recuperariam os edifícios. Os trabalhos da igreja e praça foram
concluídos em 1998.
A consolidação das ruínas foi feita de forma estratégica, nem todas as ruínas
foram reabilitadas, por vezes apenas limitaram os espaços e consolidaram os
muros em risco de desabamento, enquanto que noutros casos promoveram
a reabilitação funcional dos espaços. Foi um critério de projeto distinguir o
novo do velho, o que foi conseguido através do uso de materiais com cores
contrastantes em relação cor à bege característica desse tecido urbano. Manter a
atmosfera local e delinear percursos com ritmos simultâneos de continuidade e
interrupções, foi a intenção do projeto, o que permite uma maior dinâmica para
quem visita.
A abordagem na antiga igreja matriz foi particular. A construção encontrava-se
em ruína, apenas a zona envolvente a abside continha a estrutura das paredes,
enquanto que a nave estava arruinada por completo. A igreja foi reabilitada
de forma parcial, a sua ábside foi reconstruída, a nave permaneceu descoberta
com a sua plataforma elevada definindo o perímetro da mesma. Foi marcada
a disposição anterior das colunas, essa marcação foi feita com a introdução da
base, sendo em dois casos introduziram-se os elementos que compõem a coluna
no seu todo até ao capitel. Essas duas colunas ficaram dispostas em ambos os
lados da nave desfasadas entre si, é percetível o uso das colunas como pontos
de referência com grande relacionamento geométrico entre si. A intervenção
na igreja ficou reduzida a isso e a sua disposição atual, sem involucro na parte
da nave, possibilita uma maior ligação com a Piazza Alicia. A praça também foi
objeto de intervenção, sofreu uma reestruturação e foram definidos os acessos
adaptados a envolvente.
Podemos encontrar semelhanças na metodologia de abordagem dos dois
projetos. Na Cidade Velha foi estrutural para o projeto a consolidação das

123
56 Salemi após intervenção
57 Salemi, escada em espaço público
58 Salemi, vista igreja matriz após intervenção

124
ruínas dos monumentos, em Salemi a reabilitação e consolidação das ruínas da
igreja matriz assemelha ao que aconteceu a antiga Sé catedral da Cidade Velha,
embora esta última tenha sido apenas conservada como ruína perdendo o valor
de uso.
Em ambos os casos os percursos foram reestruturados e, por vezes
restabelecidos, de modo a criar permeabilidade na malha urbana. Os
dois projetos podem ser relacionados muito pela forma subtil que foram
desenvolvidos, no entanto, existe uma diferença de abordagem, distinta nos dois
projetos, enquanto que na Cidade Velha previu-se um processo praticamente de
restauro com o uso dos mesmos materiais de modo a consolidar a linguagem
existente; em Salemi ficou clara a ideia do uso de contraste nas intervenções
na malha urbana, os materiais utilizados para conceber os novos elementos
urbanos seriam diferentes, de modo a confrontar com o preexistente. No
entanto, pode-se afirmar que as técnicas utilizadas respeitam as tradições
construtivas em ambos os lugares.
O projeto desenvolvido em Cabo Verde teve uma forte componente de ação
sobre o construído, mais especificamente sobre a habitação tradicional,
também foram construídos edifícios de raiz que funcionam como modelos
para a construção do novo ou para a reconstrução, o que não se verificou em
Salemi. Também é de referir que a componente de trabalho e envolvimento da
comunidade local teve maior presença na Cidade Velha.
As dificuldades encontradas nesses projetos são distintas, na Cidade Velha o
arquiteto teve de mostrar uma postura conservadora perante as intenções que
das entidades, e além disso teve uma relação mais próxima com a comunidade
local, enquanto que em Salemi podia já ter existido a intenção por parte do
governo para a reabilitação da malha urbana, e com mote dado pelo workshop
realizado escolheram uma proposta praticamente estabelecida e que seguiam as
ideias esmeradas.
Em ambos os casos concretizaram algumas intenções do projeto, no entanto,
também em ambos ficaram projetos apenas em papel. No caso da Cidade Velha
as condições financeiras deficitárias ditaram esse desfecho, enquanto que, em
Salemi a mudança do governo poderá ter influenciado esse desfecho, contudo,
pode-se afirmar que as duas urbes ganharam uma melhor integridade com as
intervenções sofridas.

125
59 Antiga Colónia Penal do Tarrafal

126
2.3 - Museu da Resistência, o despertar do museu da memória
em Cabo Verde

O Museu da Resistência foi fundado no início deste século e funcionou ao


Uma colónia longo dos anos com serviços mínimos, estabelecidos num dos edifícios que
penal
isolada
compõem a Colónia Penal do Tarrafal. Mais recentemente, foi desenvolvido
pelo Instituto do Património Cultural (IPC), sob orientação dos técnicos
Adalberto Tavares e José Landim 124, um projeto de musealização e reabilitação
que tem sido posto em prática de forma faseada. A inauguração das novas
instalações do Museu da Resistência aconteceu no dia 20 de janeiro de 2016,
transformando a antiga prisão isolada num ponto de referência naquela área
remota da ilha.
Tarrafal situa-se na costa noroeste da ilha de Santiago. Cercada por elevações
de pouca imponência, com exceção da Monte Graciosa que atinge 654 metros
de altitude, o pequeno núcleo urbano implanta-se numa encosta de suave
declive e termina formando uma baía. Centralizado pela praça onde se localiza
a igreja e a câmara municipal, apresenta traçado regular, segundo a matriz de
fundações coloniais portuguesas, bem explicada por José Manuel Fernandes. O
ambiente árido condicionou particularmente as atividades desenvolvidas, onde
predominam a pesca e os serviços turísticos, estando a agricultura dependente
do índice de pluviosidade, que é bastante irregular. Um pouco a sul do Tarrafal
situa-se a vila de Chão Bom, um povoado de origem espontânea que fica na
proximidade do antigo campo de concentração, implantado a menos de um
quilómetro da costa. As características climáticas tornam o lugar hostil e
configuram uma paisagem com pouca vegetação.
A escolha de Tarrafal de Santiago para a construção da prisão seguiu-se a uma
primeira experiência, concretizada em 1931, de instalação da unidade prisional
na ilha de São Nicolau, curiosamente numa localidade com o mesmo nome
125
. Entre os fatores que determinaram a escolha desse lugar para a construção

124 Respetivamente arquiteto e curador. in MONTEIRO, Jaylson - Relatório dos trabalhos


realizados no processo de musealização do Ex. Campo de Concentração do Tarrafal. 2015. (IPC,
Cabo Verde)
125 “São Nicolau foi o primeiro destino escolhido tanto pela Ditadura como também pelo
Estado Novo para a materialização do primeiro modelo de prisão especial, metodicamente
concebido para o encerramento de presos políticos portugueses que eram enviados para Cabo
Verde. Se o ano de 1931 constitui a primeira tentativa de encenação de uma prisão especial
em Cabo Verde, é, o ano de 1936 que marca efectivamente a data da sua materialização. […]
No local escolhido foram armadas umas barracas de madeira desmontáveis para quatro mil
condenados que, posteriormente, foram transferidas para o Tarrafal de Santiago no início
da fundação da colónia penal instalada em 1936.” in LIMA, Paulo Alexandre Monteiro -
Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência. Coimbra:
FCTUC, p.85

127
60 Antiga Colónia Penal do Tarrafal, vista da entrada do setor prisional
61 Antiga Colónia Penal do Tarrafal, vista das casernas

128
da colónia penal podem-se destacar a condição de isolamento em relação
aos principais centros urbanos, a falta de condições de habitabilidade e o
afastamento em relação aos meios de comunicação com o exterior, que impedia
que testemunhos da vida no campo pudessem ser tornados públicos. Estas
características permitiam concretizar o ideal deste sistema penal: a liquidação
dos adversários políticos tirando-lhes a liberdade física e de expressão.
Assim,

“o presídio foi planeado para servir de isolamento e desterro daqueles que


se opunham à ditadura fascista, seja em Portugal, numa primeira fase, ou
nas então colónias africanas, com o eclodir das lutas de libertação nacional.
Os arquitectos do “campo de morte lenta” pretendiam aniquilar física e
psicologicamente aqueles que ousassem desafiar o anacrónico sistema
político então vigente.”126

Em 1936, instalaram-se em Chão Bom de forma improvisada, onde


correspondia as instalações doze barracas de lona de sete metros de
comprimento e quatro de largura, para além disso, para esse primeiro momento
limitaram o campo com a escavação de um fosso a volta. A construção, tal
como conhecemos hoje, foi conseguida com base na mão de obra dos presos
que também executavam trabalhos agrícolas dentro e fora do estabelecimento,
trabalhos oficinais e trabalhos de construção civil. O projeto foi desenvolvido
em Portugal, não havendo registos da deslocação do arquiteto ao sítio, e
executado conforme as tradições construtivas locais. A primeira fase de
trabalhos decorreu entre 1936-1938 donde resultou a construção das casernas,
da administração, das celas de isolamento, a cozinha, o posto médico, o
alojamento dos guardas, etc., sendo posteriormente desenvolvidos outras
construções, como aconteceu em 1967 quando foi proposto a melhoria do
perímetro de proteção do campo, que até então era composta apenas por
arame farpado, a vala e o talude, disso resultou a proposta para a construção da
muralha de proteção que foi executada entre 1967 e 1970, incluindo as torres de
vigia 127.

126 Pedro Pires, antigo presidente de Cabo Verde in Fundação Mário Soares, Fundação
Amílcar Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)
127 “Pode-se dizer que a construção do campo conheceu duas fases distintas, sendo
a primeira (1936-1938) em que se utilizou apenas a mão-de-obra civil e os trabalhos se
reduziram ao mínimo dispensável, devido à grande urgência de albergarem os quatrocentos
presos. Construíram a administração, os dormitórios/casernas, as celas de isolamento, as
celas disciplinares, a cozinha99, os balneários, o hospital e o alojamento das tropas indígenas,
entretanto sem acabamentos”. in LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da
penitenciária e a sua reinserção urbana: Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC. p.87

129
62 Museu da Resistência, 2016

130
O equipamento funcionou entre os anos de 1936 e de 1974, tendo uma
interrupção de 1954 a 1961. O equipamento foi criado a imagem dos campos
de concentração nazis, no primeiro momento funcionou com o nome de
Colónia Penal de Cabo Verde 128, sendo no segundo momento designado por
Campo de Trabalho de Chão Bom 129 destinado principalmente aos agentes da
luta pela independência das colónias portuguesas, o enceramento definitivo do
campo aconteceu no dia 1 de maio de 1974. Após o fecho da prisão, o complexo
acolheu ainda outras funções: foi centro de recrutamento militar e dependência
da antiga empresa abastecimento nacional.
O setor prisional ocupa uma vasta superfície, onde se destaca o campo, um
quadrilátero murado com dimensões aproximadas de 200 metros por 150
metros. O acesso processa-se pelo lado maior do retângulo, mas excêntrica,
voltado a sul, sendo a entrada é definida por um túnel abobadado, inserido
num volume que contém também a antiga casa dos guardas. O percurso de
acesso prolonga-se retilineamente no interior e organiza, de forma simétrica os
principais volumes e remata no posto de socorros. Os dois primeiros edifícios,
de menor dimensão serviam de quartos de visita, seguindo-se os dois grandes
pavilhões das celas que se estendem por aproximadamente quarenta metros.
Dos dois lados do posto de socorros, criando um alinhamento perpendicular
ao percurso anteriormente descrito, estão dispostos outros pavilhões. Estas
construções definem uma área de desenho mais regular do interior do
campo onde estão dispostas as celas, a oficina, a cozinha, o refeitório, o posto
de socorros, e para além dos espaços que abrigam essas funções surgem
construções pontuais de ambos os lados seguindo a mesma lógica de desenho
ortogonal, mas com menor imponência volumétrica.
No exterior do campo, dois núcleos de construção, um deles fronteiro à entrada
e outro localizado a nascente da estrada. Nesses dois núcleos ficam os serviços
administrativos e equipamentos de apoio ao funcionamento do campo e as
habitações, criando uma unidade funcionalmente autónoma e completa. A

128 “O Campo de Concentração do Tarrafal foi formalmente instituído pelo regime


fascista português, no Tarrafal da Ilha de Santiago, em 23 de Abril de 1936, sob o nome de
Colónia Penal de Cabo Verde. Criado à imagem dos campos de concentração nazis, a “Colónia
Penal” do Tarrafal ou “campo da morte lenta”, nome por que ficou conhecido por aqueles que
por lá passaram, visava então aniquilar física e psicologicamente os opositores portugueses à
ditadura fascista de Salazar, colocando-os longe dos olhares do Mundo em condições infra-
humanas de cativeiro, maus tratos e insalubridade.” Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar
Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)
129 “A luta contra as forças nacionalistas impele o poder colonial fascista a reutilizar o
Campo de Concentração do Tarrafal a partir de 1961, com o nome de “Campo de Trabalho de
Chão Bom”, destinado desta vez a encerrar no seu isolamento os militantes da luta anticolonial
de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.” Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar Cabral -
Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)

131
63 Antiga Colónia Penal - construção das casernas
64 Antiga Colónia Penal - vista entrada setor prisional

132
disposição do edificado é simples e de grande clareza, com rigor geométrico
e ortogonalidade, pavilhões de volumetria simples, piso único e, na grande
maioria, cobertura em duas águas em chapas de fibrocimento, e telha cerâmica
nos mais pequenos. Estes edifícios, assim como as casernas exteriores e anexos
têm uma linguagem semelhante, no entanto, no interior da cerca construíram-
se volumes com diferentes tamanhos e surgiram outros tipos de construções,
mas da mesma simplicidade daquilo que existe no exterior.
O sistema construtivo dos edifícios é composto maioritariamente por materiais
com origem local, à exceção de alguns deles que foram certamente levados
da metrópole, caso das telhas cerâmicas e as chapas de fibrocimento. Um dos
corpos, que continha a secretaria, foi construído em madeira, assente sobre
um alto embasamento. As paredes geralmente são construídas em alvenaria
de pedra basáltica seguindo os processos tradicionais – alvenaria de blocos
irregulares, com junta em argamassa e acabamento em reboco, enquanto que
a compartimentação interior é assegurada por alvenaria de blocos de cimento,
igualmente rebocados e pintados. Os muros que delimitam o campo, assim
como os que definem os fossos, são densos e foram construídos em betão
ciclópico, por sua vez, os torreões de vigia que marcam os quatro cantos do
perímetro do campo foram construídos em betão armado. Os pavimentos
interiores geralmente são formados por betonilha lisa sobre massame de betão.
A cobertura é em telha marselha ou chapa de fibrocimento e são apoiados
em vigas de madeira ou de ferro. A caixilharia e portas são em madeira de
casquinha, enquanto que os portões e as portas das celas são em formadas por
gradeamento ou preenchidos por chapa metálica.
Os elementos referidos conjugam materiais e processos de tradição local,
implicando a redução dos elementos morfológicos ao essencial, imprimindo às
construções um carácter funcional e austero. Pode-se afirmar que o edificado
aproxima da arquitetura tradicional cabo-verdiana e possui uma “linguagem
moderna”, a composição do plano urbano, a organização funcional do conjunto,
o desenho sóbrio do edifício, os detalhes bem resolvidos e o sistema construtivo
aplicado contribuem para essa afirmação 130. Os edifícios não demonstram
grandes preocupações em garantir condições de conforto para os diferentes
ocupantes.
Praticamente desde o encerramento da prisão e com as posteriores ocupações,
os edifícios começam a apresentar sinais de degradação, estando alguns deles
em avançado estado de ruína. No entanto, preservou-se a integridade geral
do plano original elaborado pelo arquiteto Cottinelli Telmo 131. A envolvente

130 LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção


urbana: Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC. p.93
131 Arquiteto e cineasta português do Estado Novo, José Ângelo Cortinelli Telmo (Lisboa,

133
0 25 50

65 Planta do conjunto - Projeto Musealização

134
próxima mantém-se desprovida de construções apesar da presença de acácias,
que formam uma barreira visual e conservam o lugar quase que introspetivo.
A qualidade evocativa e simbólica do lugar levou e que, em 2000, se criasse
o museu que, numa primeira fase, foi dotado de uma pequena galeria de
exposições, instalada na antiga “Secretária do Campo”, foi reabilitada para
o efeito. Além do acesso a essa exposição, eram permitidas visitas livres
ao interior do campo, onde o “Posto de Socorros” continha outra parte do
espólio132.
A classificação do equipamento como património nacional aconteceu em 2006,
dando maior ênfase ao valor de património reconhecido no equipamento133.
Três anos mais tarde foi organizado o “Simpósio Internacional sobre o
Campo de Concentração do Tarrafal” que contou com a exposição “Memória
do Campo de Concentração do Tarrafal”, alusiva aos trinta e cinco anos do
encerramento do campo. Este evento contou com apoio e participação de
entidades e instituições nacionais e internacionais, tais como as fundações
Amílcar Cabral e Mário Soares. Para o efeito, foi aproveitado o espaço das
grandes celas e de salas adjacentes, sem que se alterasse significativamente o seu
estado de integridade por forma a manter o espírito do lugar.

Em 2015 foi desenvolvido um projeto global de musealização do sítio,


O Museu da financiado pela Secretária de Estado da Cooperação Portuguesa, com o
Resistência
apoio do Ministério da Cultura local, ficando o IPC responsável pela gestão
do processo. Tal como é apresentado na texto de abertura da exposição
permanente atualmente instalada,

“O presente “Museu do Campo de Concentração do Tarrafal” trata-se


da primeira experiência em Cabo Verde de uma musealização in situ,
procurando valorizar e perpetuar a memória, as emoções contidas no próprio
local, a passagem do tempo, o passado recente do Campo, colocando a
memória no estado atual das coisas, incluindo a apropriação pelos atuais
moradores, como principais guardiões da história dinâmica do Campo de
Concentração.”134

13 de novembro de 1897 – 18 de setembro de 1948)


132 MENDES, Carlos - O Museu da Resistência: Museutransnacional. Porto: FLUP. p.73
133 “Uma das mais significativas qualidades destes objectos patrimoniais é precisamente o
seu caracter de documento, enquanto fonte de informação histórica, testemunho de dados ar-
tísticos, técnicos e culturais.” in Tomé, Miguel - Património e Restauro em Portugal (1920-1995)
FAUP Publicações, 2002. p.15
134 Exposição permanente Museu da Resistência (sinalética entrada)

135
66 Museu da Resistência - sinalética rua principal
67 Museu da Resistência - após intervenção
68 Museu da Resistência - percurso

136
O projeto foi desenvolvido por uma equipa pluridisciplinar, seguindo um
método faseado, e a obra de reabilitação envolveu diversas entidades, de
modo a garantir os diversos trabalhos, tanto a nível técnico como construtivo.
Num primeiro momento, foram realizadas a inventariação dos elementos
e o levantamento arquitetónico de todas as células do complexo, a que se
seguiram ensaios e prospeções para avaliar o seu estado de conservação.
Para além dos tradicionais estudos históricos de teor arquivístico, os técnicos
procederam à recolha de histórias de vida e de depoimentos sobre as vivências
dos antigos presos políticos, por forma a melhor preservar as suas memórias.
Em complemento, um estudo sociológico das famílias que ainda habitam nas
antigas dependências do campo, fundamental para a definição do programa de
intervenções.
Foram assim estabelecidas as orientações para o delineamento de uma
estratégia de distribuição do programa funcional que abrangia todos os
edifícios do complexo. Este programa organizava-se basicamente em três
grupos de exigências. Um deles definia os requisitos para funcionamento da
unidade museológica propriamente dita, contemplando espaços de receção/sala
multimédia, salas de exposição, biblioteca/sala de leitura. O outro reportava-se
aos arranjos do espaço exterior ao campo e preconizava a definição do circuito
de visita e, em complemento, dos acessos, do estacionamento automóvel e
duma praça. Por fim, os elementos de comunicação museológica, formados por
sinalética, painéis explicativos e suportes para peças.
O projeto de arquitetura, adequando-se ao conceito museológico, procurou
manter o estado de integridade do sítio e a pátina dos principais elementos
construtivos. A partir desta orientação geral, orientou-se por diferentes
critérios, aplicados à especificidade das situações que havia de resolver.
De entre os trabalhos definidos, contam-se:
- a limpeza do interior do campo e seus compartimentos.
- a restituição das coberturas em algum dos pavilhões.
- a conservação dos caixilhos, que foram parcialmente substituídos por
elementos novos, ainda que repetindo o desenho e homogeneizados pela
pintura.
- adaptação da casa do guarda, localizada no torreão da entrada e composta por
dois compartimentos, de ambos os lados do eixo da entrada, a sala multimédia
e a núcleo interpretativo da Colónia Penal. Como exceção e por motivos
funcionais, a sala multimédia foi pintada a preto.
- a reintegração do posto de socorros, sendo tratado o seu interior como galeria
de arte típica “white cube”, minimalista, parede branca e chão uniforme cinza.
Aqui o texto foi integrado na parede similarmente a uma instalação, como
“páginas brancas”, tendo um aspeto “clean”.
- a reintegração do pavilhão da sala de leitura, que mantém a sua função;

137
69 Museu da Resistência - interior do campo
70 Museu da Resistência - vista parcial da muralha

138
- remodelação do pavilhão das instalações sanitárias;
- As estruturas mais arruinadas foram intencionalmente preservadas,
mas também reconhecidas como elementos expectantes para possíveis
transformações posteriores.
- No processo de recuperação do edificado elegeram matérias da mesma
natureza da construção original, fez-se a pintura do edificado, repondo as
cores originais, como foi o caso dos edifícios anexos que tinham sido alteradas,
utilizaram a cal com um pigmento ocre para o efeito. Fizeram também pinturas
e reparações de alguns espaços para servirem as instalações do museu, entre
outros arranjos técnicos 135.
Para o projeto de museologia implementaram uma curadoria local que esteve
a cargo do técnico José Landim. O projeto museológico retrata o passado dos
presos políticos que passaram pela prisão e das personagens que estiveram
envolvidas na “vida do campo”. Com o objetivo de contar a história dessa
antiga prisão colonial, o programa estabelecido teve como princípio utilizar os
edifícios como espólio museográfico explorando as memórias subjacentes aos
espaços da antiga penitenciaria.
Os dispositivos museográficos introduzidos foram pensados de modo a
coabitarem com o espaço sem interferir na leitura do mesmo, e caso seja
necessário podem ser removidos ou alterados, cumprindo o princípio de
reversibilidade. Em resposta às necessidades subjacentes ao projeto de
comunicação museológica desenvolveram:
- painéis informativos e sinalética dos percursos que definem o circuito de
visita, estabeleceram elementos mais invisíveis, sendo, por vezes destacados em
relação ao plano onde se inserem.
- memorial, formado por um prisma em granito preto de Angola, segundo a
descrição do arquiteto, “o memorial como podemos constatar, é um elemento
novo que, foi construído para enquadrar com as características do complexo
prisional, o objetivo é ele não interferir ou afetar em termos visuais o complexo
e nem os edifícios individuais. É, um elemento de fácil remoção caso for
recomendado a sua remoção.”
- além dessas transformações existe também uma exploração sensorial que
procura transmitir aos visitantes “sensações” da vida no campo.

135 TAVARES, Adalberto – Memória descritiva do projeto de musealização do antigo


Campo de Concentração. 2015. (IPC, Cabo Verde)

139
71 Museu da Resistência - espólio interior Posto Socorros
72 Museu da Resistência - espolio interior cozinha

140
A instalação do museu não se restringiu apenas ao setor do campo, como afirma
o arquiteto Adalberto Tavares: “a musealização do ex. campo de concentração do
Tarrafal foi elaborada no intuito de valorizar as infraestruturas e memória do espaço
como também incluir todos os anexos ao complexo prisional no circuito da visita.”136
Na praça, o objetivo da intervenção não era promover um espaço de lazer para
a população, mas sim “transformá-la” num espaço de memória do sofrimento
dos presos, por isso foi colocado a “jorra” com a sua cor negra. Houve a criação
de um parque de estacionamento exterior com 30 lugares, como também a
recuperação campo de futebol. Entre os trabalhos realizados está a definição de
um circuito de visita, um caminho pedonal com pavimento em pedra basáltica
formando os percursos com os limites pintados em branco.
A reabilitação foi feita de forma pontual, envolvendo os trabalhos essenciais
que possibilitassem que o museu funcionasse após a conclusão dessa primeira
fase. A reabilitação do conjunto edificado e da zona envolvente fazem parte
das premissas do projeto do museu, no entanto, é visível que ainda falta um
processo longo para poder atingir esse objetivo por completo. É um processo
que depende de vários fatores e que pode envolver outras entidades. Um dos
objetivos será recuperar todo o edificado e mantê-lo como espaço de visita,
o que implica a expropriação dos morados das casas/casernas, o que poderá
envolver outras entidades. Também é de salientar que ainda não existe um
projeto definido para a reabilitação dessas construções, permanecendo assim
como parte expectante do projeto, não sabendo o poderá vir a abrigar.
Houve uma abordagem direta à população que ocupa o perímetro e os
espaços do ex-Campo de Concentração do Tarrafal, no sentido de fazer um
levantamento de dados estatísticos, sociais, culturais e habitacionais, por forma,
a definir melhor estratégia de inclusão da mesma dentro do projeto. Tinham
presente o facto que as famílias que ocupam as casas/casernas na sua maioria
são famílias extremamente carenciadas e com alguns problemas de higiene e
saneamento.
Todas essas ações fazem parte da metodologia de estabelecida para o projeto,
ainda existe a intenção englobar tudo o que se encontra no campo num circuito
da visita pelo que se pressupõe transformações futuras.
Como já foi referido, estamos perante um museu da memória, sendo que, de
todas as formas de materialização de passados traumáticos, os memoriais são os
que mais se destacam, alertam a geração presente e as futuras a não permitirem
uma repetição dos horrores. São espaços éticos capazes de afirmarem certas
identidades e de proporem reflexões humanistas. Existe um compromisso

136 TAVARES, Adalberto – Memória descritiva do projeto de musealização do antigo


Campo de Concentração. 2015. (IPC, Cabo Verde)

141
73 Museu da Resistência - alguns dos pavilhões

142
emocional que é conseguido através da experiência de locais reais/autênticos,
como, por vezes existe uma encenação contida nos museus de memória, que
cria uma certa interação com o público de modo a promover experiências e
transmitir certas emoções criando espaços com cenários performativos. Esses
géneros de museus procuram autenticidade, contudo a presença física desses
tipos de edifícios/complexos tornam o esquecimento mais complicado. Deste
modo possibilitam a reflexão, sendo isso parte da identidade museológica.

“Apesar do desafio da constituição de um museu em torno destas temáticas,


que evocam algo que não é físico, a memória, e que, por vezes, não encontram
um substrato material significativo, no sentido do objeto museológico
tradicional, os museus de heranças difíceis tentam constituir os seus acervos
através da recolha in sito, aquisição de bens relacionados com o que
representam […] e através da doação.” 137

Pode se acrescentar que nessas instalações a arquitetura representa ou conta


a própria história do local, enquanto que os dispositivos museológicos como
painéis descrevem pormenores de diferentes pontos como as condições a que os
presos estavam sujeitos, regras de comportamento no espaço, as fugas, ou seja,
retratam a vida desses espaços, como também procuram potenciar a capacidade
imaginativa do visitante 138.
Os museus de “heranças difíceis”, assentes na memória traumática, vão
emergindo em diferentes países como espaços reconhecedores de uma história
que não é acarinhada, tiveram grande emergência no século XX e estão
relacionados com os grandes flagelos da humanidade como a escravatura
e o holocausto. Segundo Sharpley faz parte da história das viagens o gosto
por locais, atrações ou eventos que se encontram, de uma forma ou outra,
associadas à morte, ao sofrimento, à violência, ao desastre e ao macabro,
tendência que tem vindo a aumentar na contemporaneidade e que se define,
segundo o mesmo autor, por turismo negro. Os locais mais negros são aqueles
em que ocorreram as atrocidades e mortes, como, por exemplo, Auschwitz-
Birkenau 139.
É bem conhecida a existência de uma “indústria de memória” relacionada
com eventos como a Segunda Guerra Mundial, os debates sobre o Holocausto

137 MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do
Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, 2015. p.30
138 Idem, p.33
139 Idem, ibidem.

143
74 Museu da Resistência - interior do campo
75 Museu da Resistência - vista posterior Posto Socorros

144
e sobre a justiça transnacional. Na Alemanha, Áustria e Polónia, alguns dos
campos de concentração utilizados pelos nazis durante a 2ª Guerra Mundial,
transformam-se em lugares de peregrinação e isso motivou a sua salvaguarda
e musealização. De entre estes, o mais celebrado é o de Auschwitz, cujo núcleo
inicial foi criado em 1940, nos arredores de Oswiecim, e dois anos depois
complementado com os campos de Birkenau, em Brzezinka, e de Monowitz,
um complexo histórico formado pelos edifícios originais 140.

“The purpose of these Memorial Museums is to commemorate victims of


State, socially determined and ideologically motivated crimes. The institutions
are frequently located at the original historical sites, or at places chosen by
survivors of such crimes for the purposes of commemoration. They seek to
convey information about historical events in a way which retains a historical
perspective while also making strong links to the present.”141

As antigas instituições utilizadas pelos regimes autoritários/fascistas procuram


demonstrar as memórias do passado nesses espaços, em Portugal são exemplos
o Museu Municipal de Peniche e o Museu do Aljube, sendo fora de Portugal,
mas com influência portuguesa os museus da resistência do Tarrafal e do
Timor Leste. Em ambos os exemplos apontados, a Fundação Mário Soares tem
colaborado, através da salvaguarda e do tratamento de acervos documentais 142.
O projeto do Museu da Resistência além de testemunhar uma das facetas
do Estado Novo, procurará promover, pelo confronto com uma situação
histórica controversa, a vida nos campos de concentração, uma reflexão sobre
a sociedade e a política, como também procurar despertar consciência cívica.
Condicionado por limitações, tanto financeiras como de recursos humanos
qualificados o museu demonstrou fragilidade no dinamismo e visão sobre os
processos de trabalho, de certo modo falta de experiência ao nível da criação e
gestão de unidades museológicas, por parte da equipa e, mais latamente, pela
própria administração central.
De um modo geral, procuraram responder às exigências programáticas e
implementar um museu com base nos ideais estabelecidos para museus
de memória numa relação entre o programa e a forma arquitetónica. Essa

140 MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do
Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, 2015. p.23
141 ICMEMO, 2019
142 MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do
Museu do Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, 2015. p.55

145
76 Museu da Resistência - vista interior do campo
77 Museu da Resistência - antiga Secretaria do campo parcialmente aruínada

146
estratégia é positiva porque consegue cumprir com a exigência científica desse
tipo de equipamento sem pôr em causa a génese do lugar e preservando da
pátina dos espaços mais íntimos a vivência dos presos.
Existiu uma boa colaboração entre a equipa de museologia e a equipa de
arquitetura, o que deve estar associado ao facto dessas equipes estarem ligadas à
mesma instituição. O relatório feito pelo IPC afirma que os trabalhos não foram
concluídos por limitação financeira, no entanto, podem aproveitar as dinâmicas
já estabelecidas e manter a progressão dos trabalhos provavelmente mais a
nível de investigação, o que poderá exigir menos recursos. Sendo um projeto de
interesse nacional e não só, os presos que passaram pelo campo eram oriundos
de diferentes países, a estratégia de dinamização dos trabalhos também poderá
passar pelo envolvimento de entidades como universidades, outras instituições
museológicas, de preferência com maior experiência e trabalhos em áreas
semelhantes, algo que já aconteceu no simpósio internacional realizado com a
participação da Fundação Mário Soares.
O funcionamento do museu demonstra algumas debilidades, pois apesar de
possuir uma estrutura montada, nem todos os espaços funcionam ativamente,
a sala de leitura só é aberta com agendamento, os dispositivos multimédia nem
sempre estão a funcionar. Também as visitas guiadas não são possíveis, o que
igualmente pode estar associado à conhecida falta de recursos humanos. Por
sua vez, segundo os relatórios apresentados, o museu irá incluir o complexo, o
que poderá implicar maiores esforços pelo estado avançado de ruína de alguns
edifícios. Além disso, pelo processo desenvolvido até agora, observou-se uma
falha penalizadora nos trabalhos de reabilitação, que foi a destruição do edifício
correspondente a antiga secretaria do campo.
No que refere ao conteúdo do museu e ao seu programa, notamos atividades
esporádicas que ocupam os espaços do museu, como a exposição montada pela
curadora Marzia Bruno, Glimmer of freedom, algo que é positivo pelo dinamismo
provocado e pela quebra da monotonia. Explorar esses aspetos poderá servir de
meio também para chamar mais público ao museu, visto que não existe ainda
uma conquista de visitantes, e os que aparecem são maioritariamente turistas.
Será necessário trabalhar primeiramente em conjunto com a comunidade local
e possivelmente com habitantes de outras localidades do arquipélago. Também
o museu deverá possuir estratégias de comunicação e de atração do público
com uma abrangência as diversas faixas etárias e a diversos públicos. É sabida
a importância do museu para a cultura, a história e a própria demonstração
da identidade do país, sendo a identidade construída a dois é essencial o
envolvimento dos locais que, de certa forma, vêm esse equipamento como
algo que lhes pertencem. Além disso, seria uma mais valia constituir o museu
como espaço de debate, interpretação e salvaguarda da memória, pelo que a
participação da população se torna fundamental.

147
78 Aljube, Lisboa (cerca de 1900)

148
Memórias O Aljube, em Lisboa, foi utilizado desde 1928 como cadeia para presos políticos
difíceis e, a partir de 1934 passou prisão da PIDE (a polícia política), que construiu
o conjunto de celas solitárias, conhecidas por “curros” ou “gavetas”. Com a
mudança de regime, após a revolução de 1974, o edifício é ocupado, pela
Direcção-Geral da Reinserção Social do Ministério da Justiça, que aí permanece
até 2009. A vontade de aí instalar um museu de memória, segue-se ao anúncio
de saída desta instituição e foi protagonizada pelo movimento cívico “Não
Apaguem a Memória”, preocupado com a intenção de alguns investidores
privados em reconverter o edifício num condomínio habitacional de luxo.
No mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa adere à ideia da adaptação
do edifício em espaço museológico, para o que organiza, em parceria com
o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e
da Fundação Mário Soares, uma primeira exposição, denominada “A Voz
das Vítimas”. A exposição desenvolvia-se em três pisos e compunha-se de
vários módulos com conteúdos que recriam as vivências dos presos políticos,
utilizando diferentes técnicas museográficas.
Após o enceramento da exposição, em 2013, foi constituída uma equipa
operacional para a definição do programa museológico documentação
especializado, simbolicamente o museu foi inaugurado no dia 25 de Abril de
2015, designado Museu do Aljube - Resistência e Liberdade.

O projeto arquitetónico de “Recuperação e Adaptação do Edifício da Antiga


Cadeia do Aljube” foi dirigido pelo Atelier Contemporânea e coordenado pelos
arquitetos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, que se confrontaram com
um edifício em avançado estado de degradação. Foi realizado previamente um
estudo arqueológico que revelou pistas sobre aquilo que poderia ser a história
da evolução construtiva do equipamento e que permitiu concluir que o edifício
foi sempre uma prisão. O passado complexo do edifício reflete-se na sua
construção, feita de sobreposições e mistura de elementos de cronologias muito
diversas, como consta na memória do projeto. A antiga prisão política possui
traços de distintas épocas, como da cidade romana, islâmica, medieval, barroca
e iluminista e ostenta uma fachada austera com traços da época pombalina.
Tanto pela sua construção, como pelas diversas funções que abrigou, o
processo de reabilitação teve o desafio de respeitar a complexa estratigrafia da
construção. Intencionalmente, os arquitetos procuraram mostrar os sinais que
contavam esse passado e procuraram "descascar" e mostrar o edifício a cru,
como de deduz da memória descritiva do projeto: “foi nossa intenção respeitar e
dar a ver os sinais que contavam o passado do edifício.”
Os critérios apontados não se restringiram ao respeito pelos traços de
antiguidade do edifício, também assumiram o valor de novidade de Riegl,
tiveram de ser ajustados à necessidade de responder a um programa que previa
a instalação de funções particulares, próprias de uma unidade museológica.

149
79 Museu do Aljube

150
Foi necessária a definição de dois tipos de ambientes: um que mantinha os
traços e a pátina dos espaços, dos elementos construtivos e da própria ruína
quase que em sua apologia 143; outro que renovava os interiores, através de uma
reabilitação integral, tentando sempre não misturar estes dois universos.
No que refere à distribuição do programa funcional, o projeto usa diferentes
técnicas que resultaram na criação de um espaço performativo, no piso
0 encontra-se o espaço dedicado às exposições temporárias e nos pisos
superiores a exposição permanente. O último piso foi o que sofreu maiores
alterações, correspondente à ampliação mais recente segundo indica a memória
descritiva, dada a irrelevância espacial e fraca estruturação claramente pela
adição desproporcional de que é fruto. Para além das alterações circunscritas
a esse espaço, no edifício recuperaram-se ou copiaram-se, em novo, as grades,
caixilharias e portadas. Os "curros", destruídos em 1960, mas reproduzidos
aquando da exposição Aljube - A voz das vítimas, foram repostos. Além disso o
projeto ilustra estes dois caminhos, a reabilitação da arquitetura e o projeto de
exposição.

Neste caso a equipa de projeto de reabilitação atuou em conjunto com a equipa


de museologia.

“Em todos os pisos, uma leitura "labiríntica" do espaço pretende não só


surpreender o visitante como sugerir, a uma museologia exigente, vários
trechos não imediatamente "oferecidos", antes "escondidos": por trás, ao
lado, em frente dos vários planos que são as paredes existentes ou as novas,
driblada a mais óbvia colocação dos vãos que as atravessam.”144

Para além dessa intenção espacial desenvolvida pelo projeto, constatamos que
nas zonas expositivas, existe uma sobreposição dos elementos construtivos
e compositivos, que contrastam com o rigoroso acabamento da superfície
das abóbadas, elementos esses que servem como refletores para a iluminação
artificial, o que, de certo modo, ofusca uma leitura desimpedida desses espaços.

As opções de projeto do Museu do Aljube assemelham-se a situação do Museu


da Resistência, ambos os projetos procuram expor o carácter do edifício e

143 “é correcto afirmar que as ruínas se tornam cada vez mais pitorescas, quando mais
partes suas entrarem em dissolução.” in: Riegl, Alois; O Culto dos Modernos dos Monumentos,
Lisboa; Edições 70 – setembro 2016. p.31
144 Memória descritiva do projeto, cedida pelo arquiteto Egas Vieira.

151
80 Museu do Aljube, após intervenção
81 Museu do Aljube, após intervenção

152
a sua história. No exemplo cabo-verdiano essa tarefa mostrou-se mais fácil
porque o edifício manteve-se praticamente inalterado após a extinção da
prisão, enquanto que, no Aljube o edifício por si só tinha mais tempo de vida
e a construção se processou em diferentes épocas, isso implicou um estudo
científico para obter esse reconhecimento.
No que refere ao projeto de museologia houve em ambos a exploração de
conteúdos que exibissem a histórica do lugar, bem como uma tentativa de
aproximação a atmosfera que se vivia nesses espaços. Contudo, o projeto de
museologia, elaborado após a conclusão das obras de recuperação arquitetónica,
por uma equipa de museólogos do atelier Henrique Cayatte “sobrepôs ao
projeto de arquitetura”, criou um cenário diferente àquilo que a reabilitação
tinha assumido e os arquitetos pretendiam. Evidenciam não ter havido um
trabalho/colaboração bem-sucedido entre a equipa de museologia e arquitetura,
o que no projeto do Museu da Resistência não foi problema porque as duas
equipas, de museologia e de arquitetura, pertenciam a mesma instituição o que
permitiu o desenvolvimento do trabalho em conjunto.
Por fim, é de salientar que são dois projetos com resultados específicos e
adaptados as circunstâncias e condições financeiras que envolveram cada um
dos casos, apesar de existirem vários princípios comuns entre os dois. O projeto
para o Museu do Aljube teve um orçamento completo, que permitiu suportar
tanto o restauro como a musealização da melhor forma, por sua vez, o projeto
do Museu da Resistência contou com poucos recursos, o que implicou a não
conclusão dos trabalhos.

153
82 Ilha da Boavista

154
2.4 - Spinguera Ecolodge, um modelo alternativo possível

Espingueira, O hotel Spinguera Ecolodge, situado em Espingueira, na costa norte da ilha


entre o da Boavista, resultou da recuperação de uma antiga aldeia que se encontrava
calcário e
as dunas
desabitada e em ruína. A reabilitação do conjunto foi orientada pela
proprietária e artista plástica Larissa Lazzari, que contou com a colaboração de
operários locais, num processo de trabalho que foi desenvolvido entre 1999 e
2003.
A Boavista posiciona-se na área de barlavento no grupo das ilhas do
arquipélago cabo-verdiano e é ilha que se encontra na faixa mais oriental, tendo
maior proximidade ao continente africano. Possui uma superfície de 620km²,
um comprimento de 31km por 29km de largura, de forma arredondada, similar
à ilha do Fogo, embora esta última tenha uma configuração mais regular. No
contexto do arquipélago cabo-verdiano é uma das ilhas em que o processo de
erosão do solo demonstra estar mais acelerado. A sua superfície predominante
é de baixa altitude, contrariamente à maioria das insulas de origem vulcânica
que possuem relevo acentuado. A proeminência máxima da ilha está no Pico de
Estância, que atinge os seus 387 metros. O solo é formado por cordões dunares
e terrenos áridos, em que as dunas de areia preenchem praticamente toda a
paisagem costeira e parte do interior da ilha. A variação cromática da superfície
transita do bege à sépia e até ao solo pardo - avermelhados, constituem
paisagens que merecem apreço, como afirma Josef Kasper 145. As rochas que
compõe as superfícies arenosas e as zonas de transição destas para o interior
da ilha fazem parte do processo de criação das dunas, sendo muitos deles
compostos por calcários-arenitos. Para além desses solos calcários, existem
outros tipos geológicos, mas todos eles pobres em matéria orgânica, exibindo
uma vegetação compostas por xerófilas, típica de zonas áridas 146. Apesar disso,
o valor paisagístico na ilha é denunciado pela sucessiva constituição de reservas
naturais e áreas protegidas, de que é exemplo o Parque Natural do Norte, onde
se localiza o Spinguera Ecolodge.
Boavista é das ilhas menos povoadas do arquipélago, com menos de 9 000
habitantes, segundo os censos de 2016 147. Sal Rei é o maior centro urbano e
acolhe grande parte da população. A ilha só teve população fixa a partir do

145 KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais,
ecológicos e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro,
1987. p.31
146 Idem, p.83-84
147 http://ine.cv/wp-content/uploads/2017/11/aecv-2016.pdf

155
83 Vila Sal-Rei, 1986

156
século XVIII, sendo até então a manutenção da atividade da ilha feita pelo
trabalho escravo. O primeiro povoado foi a Povoação Velha e manteve-se como
principal centro urbano até 1810, no entanto, perdeu a sua primazia e hoje têm
cerca de três centenas de habitantes. Localizada na parte sul da ínsula, a cerca
de quatro quilómetros da costa, um lugar que assegurava mais direta ligação
com as restantes ilhas então povoadas, e dispostas a sotavento. Como afirma
Duncan,

“Em 1650 habitavam na Boa Vista cerca de 150 pessoas e em 1667 a Boa
Vista recebeu o primeiro pároco. É provável que uma primeira e verdadeira
colonização da Ilha tenha sido efetuada a partir da primeira metade do
século XVII. Para além do mais, a partir do princípio do século XVII, os
ingleses começaram a exploração do sal […] o que foi sem dúvida uma razão
suplementar para o começo de uma ocupação constante.”148

Os povoados da ilha desenvolveram-se de acordo com as possibilidades


oferecidas pelo território, normalmente associadas à exploração de recursos
materiais. Pelo facto de possuir uma paisagem de pouca vegetação, o que seria
adaptável para os caprinos, os primeiros tempos da ocupação deste território
foram marcados preponderantemente pela criação de gado e produção de
derivados dos animais que seriam exportados para as outras ilhas e para o
exterior, consolidando assim uma atividade económica importante. Foram
também conhecidas a extração do sal natural, a pesca e a produção de conserva
de peixe, o cultivo do algodão, a apanha da urzela, a produção da cal e o fabrico
da cerâmica 149. A produção da cal, iniciada na década de trinta do século XIX
150
, foi uma atividade que teve um papel importante na subsistência das famílias.
A matéria-prima abundava e o produto tinha mercado, tanto a nível nacional
como internacional. No entanto, teve o seu declínio com a introdução do
cimento na construção em Cabo Verde. O isolamento de alguns dos povoados,
associado às dificuldades na deslocação, à escassez de infraestruturas e serviços
e á perda dos meios de subsistência ditam muitas a redução do número de
habitantes ou mesmo o total abandono. Esta situação verificou-se na antiga
aldeia de Espingueira, um desses povoados vocacionados para a pastorícia, a
pesca e a produção da cal, sendo esta última a mais rentável. A alteração do

148 Descrição de T. B. Duncan referida por KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo
Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e económicos: tentativa de análise. Instituto
Caboverdiano do Livro, 1987. p.38
149 Idem, p.109
150 Idem, p.151

157
84 Spinguera Ecolodge, vista geral da aldeia
85 Spinguera Ecolodge, vista geral da aldeia

158
quadro económico, pela decadência da principal fonte de rendimento, provocou
o processo de abandono, que começou em 1974, de forma progressiva, até
ao completo abandono que aconteceu no ano de 1985, quando os últimos
moradores se mudam para Sal Rei e Bofareira 151. Duas décadas após o
completo abandono, os edifícios encontravam-se em avançado estado de ruína,
despojados de portas e janelas e com ausência da cobertura.
Implantada na costa norte da ilha, a antiga aldeia fica a cerca de treze
quilómetros de Sal Rei, a quatro quilómetros da Bofareira e a cerca de
seiscentos metros da praia. Abrigada pela encosta e inserida numa baía,
com o Porto de Derrubado numa das extremidades, formava uma pequena
comunidade isolada, cujos contactos com o exterior aconteciam no momento
de comercialização dos seus produtos, recorrendo, fosse na deslocação às
outras localidades, ou aos barcos que atracavam no porto de Derrubado. A
povoação, formada por construções elementares, desenvolve-se numa faixa
com aproximadamente 200 metros de comprimento, por 35 metros de largura
marcando a transição da encosta para a superfície dunar. À volta deste núcleo
mais compacto são visíveis algumas construções devolutas e em ruínas, tanto de
antigas habitações como de antigos fornos de produção da cal, as texturas das
ruínas aproxima a cor do terreno e da paisagem envolvente.
O hotel Spinguera Ecolodge resultou do investimento principiado por um
grupo privado, que adquiriu a partir 2001 a propriedade à Câmara Municipal
da Boavista 152. Enquadra-se na política de atração de investidores estrangeiros,
explorada pelos vários governos do país, que teve ao longo de décadas
como principal alvo o turismo. A intenção inicial passava por implementar
um modelo tradicional de hotel, porém uma alteração no curso dos
acontecimentos faz com que a responsabilidade fosse transferida para Larazzi,
que, reequacionando o projeto, promove uma alteração de estratégia, em favor
da preservação dos vestígios construtivos, por forma assegurar a valorização
patrimonial da antiga aldeia de Espingueira.

151 SANTOS, José António – Spinguera, Resenha Histórica. 2005.


152 Larissa Lazzari – Spinguera Eco Lodge: tempo e espaço para viver emoções.
[consultado 05 set 2018] http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-
espaco-para-viver-emocoes/

159
0 25 50

86 Spinguera Ecolodge, planta

160
Uma aldeia
O Spinguera Ecolodge é um pequeno aldeamento de carácter alternativo com
alternativa a capacidade para nove quartos duplos, três apartamentos com cozinha, um
bar, um espaço de leitura e uma zona de estar coletivo 153. O hotel não forma
um conjunto compacto, pois o programa foi distribuído pelas construções que
formavam o antigo povoado, o que permite alguma autonomia física, sem perda
da qualidade funcional. As zonas de uso comum concentram-se no núcleo
central e os apartamentos e quartos estão distribuídos pelo resto do conjunto.
A ideia inicial do projeto previu uma abordagem equilibrada na relação
com a natureza e que estivesse ciente do lugar nas suas múltiplas facetas,
com base nessa premissa procuraram sempre trabalhar em parceria com
a vizinha comunidade de Bofareira. Dava assim inicio à reconstrução das
antigas casas, procurando a reintegração do conjunto respeitando as plantas e
a arquitetura original. Prosseguiu-se atento às potencialidades materiais com
uma intervenção mais específica e adequada às circunstâncias, redirecionou
a recuperação para moldes mais tradicionais e contou com a colaboração dos
artesãos locais, num processo que teve a duração de quatro anos.
A estratégia passava por um mínimo de transformações. No que refere a
intervenção nas ruínas, as ações passavam pela consolidação e reintegração das
alvenarias, a reconstrução das coberturas e a reorganização dos vãos. Foram
construídos alpendres associados ao corpo de espaços comuns.
Houve a reconstrução e reintegração das paredes exteriores dos diferentes
corpos, em alvenaria seca e irregular de calcário, com argamassa no lado
interior, para reforço e, nalguns casos, rebocada exteriormente e caiada a
branco. Aqui foram redesenhadas a composição das aberturas, respondendo
à função de unidades de alojamento, nomeadamente relacionando interior/
exterior, mais francamente o lado da praia. Apresentam um maior número
de vãos do que é costume em Cabo Verde. As técnicas utilizadas previam
manter as tradições construtivas com base no uso de matérias locais: construir
alvenaria de pedra e argamassas à base de cal.
Também com base nos materiais locais foram reinterpretados os sistemas
construtivos da cobertura e das caixilharias. Na cobertura reintroduziram
os materiais tradicionais e redesenharam a estrutura com a sua disposição
anterior, com duas águas e aproximadamente 45º de inclinação ou, mais
raramente, de uma água com uma pendente ligeira. O sistema construtivo da
cobertura foi melhorado, pela introdução de uma chapa metálica, que funciona

153 Larissa Lazzari – Spinguera Eco Lodge: tempo e espaço para viver emoções.
[consultado 05 set 2018] http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-
espaco-para-viver-emocoes/

161
87 Spinguera Ecolodge, forna de fabrico da Cal
88 Spinguera Ecolodge, fase de construção
89 Spinguera Ecolodge, aldeia antes do processo de reabilitação

162
como elemento de retenção e canalização das águas pluviais. Esta adaptação
permitiu a redução da espessura da camada do colmo, que, perdendo a função
de barreira para as águas pluviais, assume exclusivamente papel de acabamento,
preservando a imagem e a expressão. Esta solução reduz bastante a necessidade
de trabalhos de manutenção e permite uma maior durabilidade do conjunto.
Nos vãos mantiveram o uso das venezianas e das portadas exteriores, além
disso foram criadas portadas internas para as portas. Fizeram alterações
compositivas no desenho das portadas em relação aos moldes tradicionais que
seriam compactas e sem molduras, além disso houve a introdução de pinturas,
o que fez com que esses elementos ganhassem uma linguagem cromática
diversificada.
A compartimentação interior, nomeadamente das unidades de alojamento,
integrou a cozinha que nunca existira e instalações sanitárias. A aplicação de
novos materiais aconteceu apenas na compartimentação interior, onde foram
introduzidos blocos de cimento, no entanto, utilizaram o mesmo tipo de reboco
com argamassas à base de cal. Também introduziram azulejos na cozinha,
uma novidade para a construção, mas a aplicação desse material, tal como a
própria construção da cozinha, aconteceu com base num trabalho desenvolvido
artesanalmente e sem requinte, no próprio local.
Os arranjos exteriores contribuíram para a diferenciação das vias de circulação,
sendo recuperados antigos caminhos. Esses percursos contêm símbolos que
comunicam a linguagem criada para o projeto, o que da mesma forma acontece
no edifício. Houve o redesenho dos arranjos exteriores, dos percursos e dos
pavimentos, sendo este último concebido de forma a dar maior unidade a
envolvente próxima dos edifícios. A aldeia preservou uma imagem que se
aproximaria do original, houve a agregação dos edifícios reabilitados pela
definição de uma plataforma que envolve o conjunto, onde se aplicou um
pavimento em pedra irregular e foi construído um murete que delimita a
periferia da pequena aldeia.
Foram introduzidas redes de eletricidade e de água, de modo a cumprir as
exigências contemporâneas. Para isso, previu-se a construção de espaços
destinados às suas áreas técnicas. Um gerador eólico, destacado em relação
ao conjunto e assumido sem querer esconder, uma atitude que demonstra a
postura ecológica do projeto. Também numa perspetiva ecológica e de defesa
da integridade ambiental, recorreram a 36 painéis solares e um aerogerador
elétrico, que em conjunto garantem o fornecimento de 95% da energia elétrica
consumida pelo equipamento hoteleiro.
Para assegurar uma reconstrução fiel ao original, criaram condições para
obterem a matéria-prima necessária no local e adotaram técnicas tradicionais

163
90 Spinguera Ecolodge, vista parcial
91 Spinguera Ecolodge, vista parcial
92 Spinguera Ecolodge, alpendre frontal

164
de produção, é o caso da obtenção da cal 154. Por sua vez, foi assegurado
o talhe da pedra de forma tradicional, que implica uma mão de obra
específica e constitui processos de trabalho mais vagarosos. Parte das novas
compartimentações do interior foram feitas com paredes em blocos de cimento,
algo que diferencia do sistema construtivo anterior, contudo, o fabrico desse
material foi feito no local e o acabamento feito com argamassas à base de cal, tal
como as paredes tradicionais.
O projeto de reabilitação da antiga aldeia de Espingueira constitui uma
intervenção que valoriza a habitação tradicional cabo-verdiana. De certa forma
o projeto, sendo uma unidade hoteleira, questiona os modelos recorrentes de
hotel em Cabo Verde e promove um modelo alternativo, desenvolvido à luz das
tradições construtivas locais.
O projeto do Spinguera Ecolodge segue um modelo de turismo alternativo,
o ecoturismo, que explora um conceito de diálogo próximo com a cultura, as
tradições locais, preservando as suas identidades. Esse modelo procura adaptar
às diversas circunstâncias do lugar e potenciar os seus valores, neste caso essa
atitude levou ao reconhecimento por parte das entidades locais que integraram
o aldeamento turístico no Parque Natural do Norte 155. Esse parque representa
a área protegida mais extensa da ilha e foi reajustada de modo a incluir o
aldeamento turístico no seu perímetro, algo que aconteceu após a análise da
intervenção de reabilitação feita.
Os princípios do projeto do hotel Spinguera Ecolodge podem ser revistos
na abordagem ao projeto da Valorização Turística do Habitat Tradicional na
Ribeira da Torre em Santo Antão. Primeiramente, ambos os projetos têm como
objeto de trabalho habitações tradicionais e em segundo lugar são projetos
desenvolvidos para fins turísticos. Os métodos utilizados procuram manter
as tradições construtivas e consequentemente salvaguardar e potenciar essas
práticas. Os vários componentes do projeto foram pensados e adaptados com
resposta a uma linguagem arquitetónica especifica. Houve a adaptação do
programa à matriz das construções preexistentes, o que traduziu com rigor na
resposta as exigências e complexidades do setor. A volumetria e a disposição
dos edifícios mantiveram-se, o que também proporciona a relação harmoniosa
da aldeia com a paisagem envolvente.

154 [consultado 05 set 2018] Disponível em https://www.departures.com/restored-village-


retreats/4
155 “O Parque Natural do Norte representa a área protegida mais extensa da ilha Boa Vista,
ocupando todo o quadrante nor-oriental da ilha (8.910 ha) e uma importante área marinha
(13.137 ha) ao longo de toda a sua área costeira e que corresponde a três milhas náuticas.” in
Parque Natural do Norte (Decreto-Regulamentar nº 5/213 de 5 de Abril), [consultado 08 jul
2018] Disponível em http://areasprotegidasboavista.blogspot.com/p/espacos-protegidos-da-
boa-vista.html

165
93 Spinguera Ecolodge, interior de um quarto

166
A preservação dos restos materiais, com valor patrimonial, ainda que não
classificadas, garante a continuidade ou a “ressurreição” duma povoação antiga,
ainda que com função completamente diferente, remetendo a alguns modos
de habitar e de vivência deste território. Existe uma clara preocupação com
a matriz urbana da aldeia preservando os seus traços, além disso, o conjunto
edificado foi recuperado, mantendo os traços volumétricos e a composição
original, bem como a materialidade da construção. Também é notável o
respeito, tanto pelas preexistências físicas do lugar como pela história e os
costumes.
Houve a recuperação de técnicas construtivas ancestrais, nomeadamente o
uso da cal, num momento em que a construção no arquipélago está a aderir
a vários novos materiais, novos sistemas construtivos e até novas tipologias
habitacionais, é positivo o desenvolvimento de projetos como este que
procura preservar a construção tradicional. Este projeto procura retomar os
processos construtivos tradicionais e mantê-los ativo, essa postura demonstra
a preservação de um legado importante que faz parte da génese construtiva
principalmente da ilha da Boavista. O processo procurou o envolvimento dos
artesãos locais tendo como base para a construção os seus conhecimentos,
assemelhando-se aos processos de construção das habitações unifamiliares que
são guiadas da mesma forma sem o auxílio do arquiteto.
O processo procurou preservar as tradições construtivas, mas também
demonstrou uma tentativa de melhorar a resposta do sistema construtivo,
adequando-o a novas exigências e desafios, houve a introdução, sem complexos,
dos meios tecnológicos de produção de eletricidade; correção de elementos de
construção, como a cobertura e os caixilhos. As alterações foram assumidas,
as camadas da cobertura não são escondidas mostrando assim a “verdade”
construtiva, do mesmo modo pode-se observar que as alterações compositivas
dos vãos demonstram uma postura assumida, tanto pelo desenho como pelo
uso da cor.
Esse aspeto lúdico é visível pela introdução de cores nos vãos, o uso de
vegetação, o desenho de pavimentos, as plataformas, o que remete para a nova
função. A inovação trazida pelo uso de cores nos vãos mostra a exploração
de uma expressão comunicativa. Provavelmente é algo que não corresponde
à composição original dos edifícios, mas pode-se justificar esta ação porque
todos os esses elementos foram construídos novamente. Ainda assim, seguem
os detalhes tradicionais, mas assumem o valor de novidade que lhes são
introduzidos.
Na cobertura, devido a escassez de matéria prima para sua execução e frequente
manutenção desse elemento, foi feita uma adaptação da sua composição com
a introdução de uma chapa inferiormente ao colmo. Essa adaptação permitiu
criar uma superfície impermeável que dispensa o uso de uma camada espessa

167
94 Casas da Comporta, vista interior tipo 1
95 Casas da Comporta, vista interior tipo 2
96 Casas da Comporta, vista conjunto

168
de colmo como seria exigido pelo sistema tradicional, sendo assim, existe pouca
necessidade de manutenção e o colmo utilizado mantêm o aspeto identitário
desse sistema.
O projeto serve de referência, na medida em que exibe outras possibilidades
e caminhos novos, que contraria a tendência das construções associadas
a instalações turísticas. Nomeadamente a maioria dos hotéis e resorts em
Cabo Verde estão a surgir com lógicas arquitetónicas de linguagens, sistemas
construtivos e materiais que diferem por completo da arquitetura tradicional,
exibindo construções anárquicas, sem respeito pela paisagem e desenquadradas
da realidade local.

Com o propósito de enriquecer esta análise, faz-se um paralelo com dois


Um continuar projetos, as Casas em Comporta e as Moradias da Praia do Estoril. O primeiro
inovando
projeto desenvolvido pelo escritório Aires Mateus em Grândola, as Casas em
Comporta 156, fazem parte de uma intervenção de recuperação de edificado, em
que existe uma procura de manutenção, tanto dos volumes, como da imagem
exterior dos edifícios. Podemos encontrar semelhanças na fragmentação do
programa pelos volumes de construção, neste caso volumes que correspondem
a espaços de estar, outros que correspondem a quartos e instalações sanitárias.
O pátio informal serve de elemento agregador para os volumes, com percursos
definidos por plataformas de madeira do género de passadiço.
Em contradição ao Spinguera Ecolodge, no projeto das Casas da Comporta,
podemos afirmar que há maior artifício, ainda que o resultado parece mais
“primitivo”. Existe uma atualização dos elementos de construtivos, integrando
novas exigências técnicas e de conforto. É percetível a sofisticação dos materiais,
dos elementos e do próprio sistema construtivo.
O betão é introduzido no pavimento da zona de estar, porém a sua aplicação
fica camuflada porque é reposta a areia que serve de elemento de acabamento.
O projeto demonstra um desenho com uma composição nova, tanto na fachada
como nos vãos, mesmo assim existe a evocação da situação preexistente. Sendo
uma habitação temporária, um “hotel”, daí permitir soluções que uma habitação
permanente não admitiria, como é o caso do uso da areia no pavimento. O
projeto demonstra uma reinterpretação de modos ancestrais de construção
neste tipo de ambiente, mas sem a recuperação de sentido arqueológico
dos restos materiais, mesmo porque estão absolutamente degradados e não

156 El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011. p.224 –
233

169
97 Moradias Praia do Estoril, relação entre volumes
98 Moradias Praia do Estoril, alçado
99 Moradias Praia do Estoril, vista conjunto

170
respondem às exigências do novo programa. Por sua vez, a intervenção na
Boavista apenas completa ou complementa o sistema construtivo encontrado
e com isso mantém os materiais tradicionais. Irregularidade na disposição dos
volumes e dos passadiços, tal como no Spinguera, mas regularidade de cada
unidade, de cada volume possuindo planta retangular.
Um outro paralelo que pode ser feito, estando numa proximidade geográfica,
ainda que num contexto urbano, tratando-se de construções de raiz, em zona de
expansão da cidade, mostra como se pode continuar inovando. Em plena vila
de Sal Rei foram construídas as Moradias da Praia do Estoril, com o projeto do
atelier de José Adrião Arquitectos, concluído em 2012. A obra refere a primeira
fase de construção, com 18 habitações, ocupando uma área de 2300m². O
edifício apresenta uma linguagem contemporânea que integra as condições
climáticas da ilha e procura integrar-se na morfologia da envolvente que,
embora de carácter heterogénea, aponta já para uma regra de desenho urbano.
Foi eleito uma tipologia de “casa pátio”, que pouco tem a ver com as povoações
litorâneas, onde impera a construção do volume isolado. Desenvolveram
um sistema de pátio murado, que remete um pouco para as construções em
ambiente rural, que são compostos por núcleos habitacionais com vários
volumes em torno de pátio ou em relação com vários, de que resultam
conjuntos compactos, estruturadas sob a forma de quarteirões, dimensionados
de forma a integrar-se na escala da envolvente urbana numa tentativa de
continuidade do tecido.
O conjunto está disposto num sistema de azinhaga, o que promove uma relação
entre volumes e espaços que se assemelha aos aglomerados tradicionais da
ilha. A tipologia de dois pisos também responde ao contexto, uma vivência
contemporânea, de raiz mais cosmopolita. A fragmentação volumétrica
também reporta à diversidade da envolvente. Certo espontâneo, contido por
uma geometria de grande rigor. A composição aproxima-se a uma casa pátio,
existe o uso do alpendre como elemento de proteção contra a insolação e a
chuva. Esse elemento igualmente serve de “caixa de ar”, o que permite um
melhor arejamento interior e também serve de zona de estar. Dispositivos que
tentam melhorar a resposta às condições locais, entretanto têm poucas relações
com as tradições, o caso do alpendre. Isso poderá também abrir perspetivas
para desenvolvimento, visto que demonstram uma boa adaptação ao contexto.
Podemos apontar algumas relações com o Spinguera Ecolodge, como já foi
referido o contexto geográfico é igual e ambos os edifícios foram implantados
num areal, tendo composições semelhantes. A volumetria do edificado é de
formas puras surge numa composição simples e de linguagem sóbria sem
causar grandes impactos na relação com a envolvente. As opções da composição
volumétrica permitem uma maior fruição dos ventos, a proteção do interior
da casa contra insolação direta dos raios solares, algo ideal para o clima local.

171
A materialidade procura traços da arquitetura tradicional, a pavimentação dos
percursos da envolvente ao edifício são em calcário. O branco utilizado nas
paredes exteriores permite maior frescura ao edifício, tal como acontece em
muitas habitações tradicionais da ilha com acabamentos a base da cal.
O projeto assume a condição do seu tempo, mas não deixa de seguir os traços
da habitação tradicional, e tal como na reabilitação da aldeia de Spinguera dá-
se a continuidade à tradição construtiva. O edifício é de acabamento simples
e informal, não cria fantasias, o que lhe difere das construções atuais da ilha.
Essa simplicidade vai ao encontro dos princípios da arquitetura tradicional e
ao próprio ambiente da ilha, que na sua matriz é singeleza. Sendo um edifício
novo não contém a “irregularidade” ou a espontaneidade da implantação das
construções das aldeias típicas da ilha, contudo, compõem um desenho sóbrio e
sofisticado que oferece qualidade ao lugar e a quem o habita.

172
100 Porto Novo - Santo Antão, 2019

174
2.5 - Ribeira da Torre, o lugar, a habitação tradicional na
atualidade

O “Projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre”,


Um belo vale foi um projeto desenvolvido para esse vale de Ribeira da Torre, no âmbito
da promoção do turismo sustentável. ONG cabo-verdiana Atelier Mar foi o
seu promotor e mobilizou o envolvimento da população local. A localidade
abriga uma população de cerca de três mil habitantes e tem como principal
atividade a prática da agricultura, ainda ligada a processos tradicionais. Apesar
de atualmente já não seguirem fielmente os traços do passado, o habitat local
preserva arquiteturas de carácter vernacular. Também neste lugar prevalecem
atividades integradas à cultura local, pelo que o projeto em questão tentou
revitalizar e exponenciar os seus valores em conjunto com a salvaguarda desta
arquitetura tradicional.

“Santo Antão, a ilha mais sententrional e ocidental do arquipélago, e a segunda


maior de Cabo Verde, é montanhosa com a Tope de Coroa atingindo 1.979 metros de
altitude. Ilha de intensos contrastes, climáticos e de paisagem.”157 Pelo seu carácter
periférico e pela sua orografia extremamente acidentada, a ilha manteve-se
deserta durante muitos anos após o início do povoamento do arquipélago. A
sua identidade paisagística é fortemente marcada pela origem vulcânica,158
existindo um elevado contraste morfológico, composto por montanhas, vales,
penhascos, planícies. Por sua vez, a atuação humana nessa geografia provocou
uma composição embelezadora da paisagem. Tanto a paisagem artificial como a
paisagem natural contêm uma beleza cénica merecedora de contemplação.

Pode-se observar as diferenças, muitas vezes abruptas, que existem do lado


sudeste em relação ao lado noroeste da ilha, separados por uma cordilheira.
O efeito de massas de ar dos alísios manipula essas paisagens, se o setor norte
é influenciado pelos ventos húmidos, já o que está exposto a sul recebe os
ventos quentes e secos, apresentado solo árido e estéril com pouca vegetação,
normalmente sobrevivem as acácias 159.

157 FERNANDES, José Manuel; JANEIRO, Maria de Lurdes; MILHEIRO, Ana Vaz - Cabo
Verde, Cidades, Territórios e Arquitecturas. Lisboa: Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA,
2014. p.53
158 Fase 1 – Análise e Caracterização – Esquema Regional de Ordenamento do Território
da Ilha de Santo Antão, (2007), p.98
159 “A ilha, de origem vulcânica, é caracterizada por uma dorsal central que a divide ao

175
101 Santo Antão, paisagem interior da ilha

176
O primeiro impacto, para quem chega de barco em direção a Porto Novo,
depara-se com um ambiente árido marcado por uma encosta com um povoado
no sopé, e em segundo plano vêem-se montanhas altas que se elevam até se
perderam nas nuvens. Do lado nordeste as montanhas e os vales que compõe
essa área presenciam um clima que difere muito em relação ao outro lado da
ilha. A paisagem verdejante encobre as montanhas e ganha maior expressão nos
vales extensos, dando origem a diferentes microclimas. Nas partes mais baixas,
que normalmente foram domesticadas com a introdução de diques e socalcos,
surgem as áreas agrícolas a ocuparem os terrenos mais férteis 160. Nesses lugares
existe uma produção agrícola contínua ao longo do ano, o que acaba por
colmatar a inadaptação de cultivos que existe nas zonas secas. Uma das culturas
de eleição é a de Cana-de-açúcar que resulta na produção intensiva do “grogue”,
uma das bebidas típicas do país.
O povoamento de Santo Antão, motivado pelo reconhecimento das
características da ilha favoráveis para práticas de pastorícia e da agricultura,
seguiu-se às experiências de Santiago e Fogo 161. Colonos e escravos
participaram no povoamento, da metrópole foram povos algarvios, alentejanos
e minhotos , por sua vez os escravos que participaram desse processo eram
provenientes da costa ocidental africana 162. As circunstâncias da época
permitiram-lhes estar num ambiente praticamente isolado em relação aos
núcleos principais do arquipélago, o que com o passar do tempo criou um
estado ambíguo em relação as restantes ilhas. Em 1732 foi permitido aos
escravos a produção e o comércio, como também construir conforme as suas
possibilidades, tinham apenas de pagar o foro estipulado 163. Devido ao seu
isolamento, a ilha esteve no mínimo três anos sob a exploração de um feitor
inglês,164 algo que sucedeu sem a perceção do rei. No entanto, ao descobrir
tal acontecimento, teve de anular o contrato feito. O lapso fez com que
posteriormente houvesse maior interesse por parte da coroa sob a ilha. De facto,
esses acontecimentos ocorreram muito pela localização periférica da ilha que
proporcionou um estado de governo diferente das demais ilhas.
Como aponta Catarina Sampaio, a humanização desse território apresenta

meio, até climaticamente.” in SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra,
FCTUC, 2006. p.44
160 SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.48
161 Idem, p.65
162 citado por SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC,
2006. p.97
163 SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006. p.76
164 Idem, p.67

177
102 Ribeira da Torre, vale e monte
103 Ribeira da Torre, construção na encosta
104 Ribeira da Torre, aglomerado habitacional

178
duas vertentes, a ocupação dispersa, dominante nas zonas de relevo marcado,
e a concentrada, com expressão em lugares de relevos suave e junto à
desembocadura dos vales, onde se concentram as principais povoações. Porto
Novo e Ribeira Grande representam esses casos, que agregam cerca de oitenta
por cento dos 50 mil habitantes da ilha.

“A ocupação humana, ao nível da implantação da arquitectura doméstica, em Santo


Antão, efectua-se essencialmente ao longo do leito das ribeiras que cruzam toda
ilha, vales escarpados e de difícil acesso, principalmente na vertente norte da ilha. A
humanização destes vales traz a vantagem da habitação se situar próxima de terrenos
férteis…”.165

Tradicionalmente, a ilha é conhecida pelas suas atividades culturais,


reconhecidas a nível nacional. É de destacar a romaria de “Colá San Jon”, um
género musical e de dança de Cabo Verde, tradição ligada as festividades
religiosa e popular, que junta a população residente e atrai visitantes.
Como foi referido, a escolha do lugar de implantação da habitação está ligada
a qualidade dos solos, normalmente libertam as zonas aráveis e a implantação
acontece nas áreas posteriores, que podem estar imediatamente a seguir ou,
por vezes, em linhas de festo destas colinas. A habitação adapta-se ao lugar,
quase que numa relação mística e a cumplicidade que existe entre eles traduz
na harmonia desta paisagem 166. A construção da casa tradicional na ilha de
Santo Antão aconteceu num segundo momento em relação ao início do seu
povoamento. Inicialmente, a tipologia implementada foi importada pelos
colonos, num segundo momento os escravos tiveram a liberdade de fazer as
suas próprias construções. Escolheram materiais endógenos, a pedra basáltica,
madeira de coqueiro, palha de cana sacarina, sisal entre outros matérias
vegetais que existiam em abundância no local, que são diferentes dos materiais
importados e utilizados na construção das casas senhoriais, surgindo assim a
habitação vernacular da ilha 167 .
Ribeira Grande tem a sua urbe maior no leito do vale, enquanto que as
pequenas aldeias estão distribuídas pelo vale dentro, nos diferentes afluentes.
Ribeira da Torre, sendo um desses afluentes, é das mais emblemáticas
ribeiras neste contexto, e tal como os vales descritos anteriormente, é de
corpo verdejante e abunda de nascentes de água que brotam das imponentes
montanhas, este lugar é caracterizado pela sua vocação para a prática da

165 SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006.
p.109
166 Idem, ibidem.
167 Idem, p.102.

179
105 Percurso - "Os Caminhos do Blimundo"

180
agricultura, compõe este cenário cultivos de bananeiras, cana de açúcar,
mandioca, fruta pão, entre outras verduras. Esta ribeira típica deve a sua
toponímia ao monte existente no leito do vale que apresenta um volume
ascendente e redondo que aparenta uma torre. É neste ambiente rural que
encontramos os espaços escolhidos para receber o projeto.

O projeto de valorização turística foi financiado pela União Europeia, também


Um projeto para contou com o apoio do governo cabo-verdiano. Desenvolvido entre abril de
a comunidade 2009 a outubro de 2010, guiado pelo seu mentor Leão Lopes, em colaboração
com o arquiteto Ângelo Lopes. O projeto também contou com a participação da
população local e de diversos artesãos que chegaram de vários pontos da ilha 168.
O programa previa a transformação em alojamento turístico de pequenas
dimensões, transformados em unidades autónomas, a funcionarem a partir do
modelo “Bed and Breakfast”, que compreende convívio com a vida familiar. Para
atingir esses objetivos, o projeto tinha de cumprir um programa que abrangia
as funções de estar, dormir e banho, também como garantir condições de
habitabilidade necessárias, como eletricidade e água canalizada. O redesenho
das casas implicou a inclusão dessas novas funções.
Os critérios de escolha dos edifícios a serem recuperados tiveram em
consideração a tipologia, que aproximassem do modelo ideal de construção
vernacular, edifícios que mantiveram as suas identidades construtivas
tradicionais. Também seriam considerados a situação económica dos seus
proprietários, considerando as famílias com maiores carências financeiras, para
tal foi desenvolvido um estudo de teor sociológico para eleição dos benificiários
do projeto 169.
Assim, os seis conjuntos reabilitados no âmbito do projeto apresentam
características morfológicas semelhantes: habitações populares de pequena
dimensão e piso único, em exceção da que se localiza em Água Nascida, esta
última é uma habitação de tipologia de sobrado, um modelo de arquitetura
de maior nobreza. Todos os edifícios estão circundados por terrenos agrícolas
e implantados a meia encosta, distribuídos pelas aldeias de Água Nascida,
Longueira, Fajã Domingas Bento, Ribeirinha Curta, Ribeirinha do Jorge, à
exceção de um deles, inserido no leito do vale. O único equipamento que
integra o grupo é um Curral de Trapiche/Casa de Calda, fica em Longueira,
no leito do vale, e forma um conjunto representativo da indústria que produz

168 Conversa com o arquiteto Ângelo Lopes


169 Conversa com o arquiteto Ângelo Lopes

181
106 Vista de um dos edifícios, Fajã de Domingas Benta
107 Vista do conjunto de edifícios, Ribeirinha Curta
108 Vista parcial do edifício, Ribeirinha de Jorge

182
derivados da cana-sacarina como a aguardente e o mel, atividade típica desta
comunidade.
O projeto de arquitetura foi pensado de forma a adaptar e criar condições
necessárias ao uso cotidiano, neste sentido mantiveram as pré-existências e
adaptaram o programa a estes espaços. O alojamento e o centro interpretativo
são as funções desenvolvidas pelo projeto, apropriando-se de seis parcelas de
edifícios onde receberam essas funções, todos eles distribuídos pelo extenso
vale. O projeto do centro interpretativo implicou uma construção nova, o
edifício acrescentado foi desenhado com semelhanças em relação ao pré-
existente e encontra-se inserido no conjunto.
O projeto foi desenvolvido de maneira a preservar as características
fundamentais das habitações, no que se refere à sua volumetria, organização
espacial e sistema construtivo. Para tal, houve a reabilitação de um espaço
doméstico conhecido como cuznhola, espaço que está a perder presença nas
novas construções 170. O projeto deu igualmente enfâse ao espaço de estar
exterior ao edifício, onde no passado as funções domésticas tinham múltiplos
usos. No novo programa construíram bancos e utilizaram vegetações e outros
elementos decorativos ligados às tradições locais. As unidades de alojamento
foram desenhadas a partir de construções pré-existentes, o que implicou a
materialização de um projeto, de forma a proporcionar condições necessárias ao
uso turístico. O objetivo foi ter em cada alojamento infraestruturas básicas, algo
que não existia previamente em todos os casos, o que exigiu uma adaptação dos
espaços às circunstâncias, no caso da casa de banho, que implicava mudanças
maiores, houve um reajuste do espaço interior ou, por vezes, uma adaptação
no exterior à zona de dormida. Os vãos são os elementos que sofreram maiores
alterações. Portas e janelas foram redesenhadas de maneira a garantirem um
maior conforto a quem habita o espaço. Foram introduzidos vigias em vidro,
de forma a garantir maior insulação no interior. A portada deixou de ser uma
peça única para ser composta por partes autónomas. Tais partes podem ser ora
fixas, ora móveis, ou as duas moveis em simultâneo, que podem ser utilizadas
de forma independente. Com essas alterações a habitação melhorou a sua
eficiência, ao conseguir uma maior iluminação e ventilação natural.
A materialidade dos edifícios manteve-se ligada à arquitetura existente
tradicional, com o uso de materiais locais. Preservaram muros, caminhos,
volumetrias das construções, de um modo geral preservou o que estava ligado
as tradições de vida da comunidade. Também aproveitaram para introduzir

170 “termo em crioulo para cozinhas tradicionais, que eram originalmente construídas de
modo isolado do resto da casa por questões de fumo, cheiros, …” in LOPES, Ângelo - A prática
de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014. p.140

183
109 Sítio Museológico (centro interpretativo), Longueira
110 Loja pertencente ao Sítio Museológico, Longueira
111 Casa de Calda em construção, Longueira

184
materiais feitos à base da pozolana, um tufo vulcânico rico em sílica, que é
uma matéria ligante e serve para fabrico de argamassas. Esse material tem sido
utilizado em processos de construção guiados pelo Atelier Mar. Na cobertura
da construção nova foram usadas telhas de sisalocimento produzidas na
comunidade de Lajedos. Apenas essa construção teve maiores inovações, o que
é visível na volumetria e na composição dos alçados.
Foi criado um centro interpretativo, que reporta a ocupação e exploração
agrícola neste território. O centro também reúne utensílios tradicionais,
empregados no processo do fabrico da aguardente, do mel de cana e no
cultivo ligado as terras. Houve a recuperação do Conto do Blimundo, que é uma
narrativa popular de Cabo Verde e principalmente da ilha. Esta tradição oral foi
incorporada no itinerário, as habitações recuperadas fazem parte do “Circuito
Turístico – Os Caminhos do Blimundo”, ilustrando o percurso do Boi Blimundo,
que é o protagonista deste conto popular e por sua vez metaforizando o
percurso estabelecido entre os edifícios pertencentes ao projeto 171. No local de
cada edifício encontra-se a sua identificação e posição em relação ao circuito,
também a estratégia de comunicação passa pelo uso da cor como elemento
agregador e simbólico do projeto. Na loja do centro interpretativo foram
expostos onze cartazes relativos ao Conto do Blimundo, em que ilustra e descreve
a vida e o percurso desse boi que amava a liberdade. A reabilitação é visível
pela linguagem dos edifícios. O uso de uma cor comum a todos, a cor laranja,
que aparece nos vãos dos edifícios, cria uma identidade ao conjunto que é
facilmente percetível a quem visita a localidade. O uso do logótipo do projeto,
associado ao nome de cada espaço e a presença do cartaz dos itinerários junto
às intervenções facilita também essa comunicação.
O projeto constitui, em parte, a musealização do território apropriando-se
do modelo de ecomuseu que compreende a requalificação das habitações
para alojamento, também inclui dispositivos de comunicação e receção de
público. Houve a criação de um centro interpretativo com o envolvimento da
população local criando um meio para a exibição da história e das vivências
do lugar, para além dos circuitos de visita que foram criados que englobam as
diversas habitações e promovem a contemplação da paisagem agregado por
uma narrativa ficcionada que se torna a “marca” turística e imagem/identidade
gráfica do projeto.
A visita ao local, tendo o privilégio de dialogar com os diferentes interlocutores
do projeto, possibilitou uma compreensão mais vasta da intervenção e do
processo que envolveu o seu desenvolvimento. Segundo o testemunho do

171 LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014. p.139

185
112 Esquisso
113 Planta - edifício Fajã de Domingas Benta

186
arquiteto Ângelo Lopes, a execução do projeto não aconteceu conforme o
planeado, tiveram primeiramente dificuldade em obter mão de obra qualificada
para a execução dos sistemas construtivos tradicionais, praticamente em desuso.
Além disso, houve um deficitário cumprimento dos prazos, o que causou
certos embaraços e tornou o processo complicado, a exposição dos materiais
às intempéries, o que teve consequências futuras, como foi o caso da madeira
utilizada tanto na estrutura da cobertura, como na construção de portas e
janelas, ou no fabrico dos móveis, que exposta às chuvas, apodreceu.
O projeto promoveu a introdução de inovações tanto a nível arquitetónico
como material, primeiramente em termos de desenho arquitetónico, mais
especificamente dos vãos houve a adaptação que promove o conforto da
habitação na medida em que permite uma maior ventilação e iluminação
dos compartimentos, algo que é benéfico. A exploração de novos materiais
de origem endógena, mais propriamente a pozolana, possibilita o acesso a
um recurso interessante e praticamente sem custos e que possibilita uma
abordagem ecológica.
Globalmente, o projeto demonstra valores positivos, tanto na ideia como no
resultado, contudo aconteceram transformações posteriores que contrariam os
princípios do projeto. Na habitação em Fajã Domingos Benta aumentaram o
muro que circunda o pátio, criando uma barreira física e visual. Essa construção
foi feita com base em alvenaria de blocos de cimento diferenciando-se da
pedra utilizada no muro preexistente, o que fez perder a linguagem plástica
tradicional.
Na Ribeirinha de Jorge, o edifício que dantes tinha a cobertura de duas
águas em colmo, foi substituído por uma cobertura plana em betão armado.
Segundo o proprietário da habitação o que levou a essa transformação foi
a rápida degradação da anterior cobertura, relatou que a obra foi vagarosa
e houve paragens em épocas de chuva deixando a estrutura da cobertura
exposta as intempéries o que provocou tais consequências. Pelo que, quando
terminou o período de fidelização com o programa, optou por construir uma
cobertura plana em betão. Embora a alteração difere dos ideais da preservação
da arquitetura tradicional, pode ser visto como legitimo, essa atitude, visto
que é sempre necessário procurar conforto e os proprietários por vezes ficam
condicionados e procuram as soluções mais fáceis para eles.
O início do funcionamento desses alojamentos correu de forma normal, o
trabalho de agenciamento estava a funcionar a partir da ilha de São Vicente,
no entanto, segundo relata um dos proprietários, com o passar do tempo
começou a ser menos frequente a visita de um turista para estadia. Constatou-
se que a divulgação e a promoção do empreendimento não atingiram grandes
públicos, o que tornou difícil a manutenção do próprio edificado, bem como a
rentabilidade do projeto. Atualmente, a maioria dos alojamentos encontram-se

187
114 Vista frontal da loja (uma construção nova) - Sítio Museologico, Longueira
115 Espaço museológico em fase de construção, Lajedos

188
desativados e em declínio construtivo. O programa teve apenas dois anos de
fidelização e não houve preparação que desse autonomia para os comtemplados
darem continuidade à atividade, principalmente o agenciamento e na cativação
de clientes.
Contudo, o processo de reabilitação preservou a linguagem tradicional dos
edifícios, sendo assim deixa um legado importante para o lugar, estando
numa região com inúmeras construções similares é positivo demonstrar
possibilidades de intervenções nessas construções que estão a perder presença.
Também foi positivo recuperar modus operandi que possam valorizar a
construção tradicional e a cultura local.

O projeto de Valorização Turística do Habitat Tradicional na Ribeira da Torre


De Lagedos para acontece depois de décadas de experiências em programas de desenvolvimento
Ribeira da Torre integrado promovidos pelo Atelier Mar. Igualmente na ilha, na localidade
de Lajedos 172, desde 1990 que a ONG tem vindo a trabalhar de modo a
criar formas alternativas de emprego, na pesquisa e produção de materiais e
tecnologias de construção a partir de matéria prima autóctones, com isso, a
construção de edifícios de habitação e equipamentos. Muitos edifícios, entre os
quais o núcleo museológico e a escola, foram erguidos através de um processo
de autoconstrução, com a participação da comunidade. Alguns dos residentes
da comunidade possuem quartos para acolher turistas, sedimentando o turismo
sustentável e solidário 173.
A implementação de ações educativas, ao nível da formação técnica na
comunidade, acontece com o objetivo da promoção cultural e do turismo, o que
será depois também concretizado no projeto desenvolvido no vale da Ribeira
da Torre. Em Lajedos, embora não haja uma intervenção sobre a construção
tradicional, os princípios construtivos seguem o processo tradicional. Além
disso, potenciam as suas intervenções através da exploração de novos materiais
a partir de matérias-primas endógenas como a pozolana, cuja utilização
possibilita a produção de materiais com um teor mais sustentável.
Com o objetivo de criar medidas de sustentabilidade e eficiência energética

172 «Lajedos é uma comunidade rural isolada, no interior da ilha de Santo Antão,
com cerca de 900 habitantes. O Atelier Mar é uma ONG que trabalha com esta comunidade
desde 1990 no planeamento e implementação de um projecto de desenvolvimento integrado
– o “Projecto de Desenvolvimento Comunitario de Lajedos”.» in Guedes, Manuel Correia
(coordenação) - Arquitectura Sustentável em Cabo Verde – Manual de Boas Práticas. Lisboa:
CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2011. p.105
173 Idem, ibidem.

189
116 Lagedos, vista do vale

190
para a comunidade fizeram as seguintes ações: construção de espaços públicos
revestidos com ladrilhos produzidos no estaleiro da comunidade; construção
de um núcleo museológico, uma loja e um bar; construção de fornos e de um
estaleiro para produção local de blocos de materiais autóctones, afirmando a
autonomia de materiais para construção e a não dependência de importações;
integração de painéis solares com capacidade para abastecer vários edifícios da
comunidade 174.
A criação do sítio museológico de Lajedos faz parte de uma estratégia alargada
do Atelier Mar de promover o turismo local e regional, com ênfase cultural
numa matriz de turismo e desenvolvimento. O sítio museológico está integrado
numa crescente rede de intervenções comunitárias que pretendem intensificar o
seu potencial global. Para a construção desse equipamento utilizaram materiais
locais como a pozolana, criaram a zona de entrada voltada a sudoeste, com
varanda sombreada por cobertura fixa, o que permite criar um maior conforto
perante o clima local. Criaram vãos e com um sistema de aberturas em grelha
nas paredes para iluminação e ventilação. Na cobertura aplicaram uma técnica
local, uma telha com argamassa armada de sisal, que constitui uma cobertura
leve e a sua produção tem custos reduzidos 175.
Ambos os projetos tiveram o mesmo promotor, o Atelier Mar, ainda assim os
resultados são distintos e podem estar relacionados com diversos fatores. Em
Lajedos, o trabalho é comunitário o que pressupõe um maior dinamismo e ao
mesmo tempo envolve diversas áreas, por sua vez, na Ribeira da Torre o projeto
envolveu apenas parte da comunidade, algumas famílias, o que supõe ser mais
frágil. Além deste aspeto apontado, pode-se associar o maior sucesso do projeto
de Lajedos ao facto dessa comunidade possuir um dinamismo inicial inerente
aos seus moradores que em conjunto com a ONG conseguiram potenciar o seu
desenvolvimento, no outro caso a ideia do projeto foi levada e implementada,
segundo José Paiva poderá estar nesse aspeto a diferença entre as duas
intervenções.

174 Guedes, Manuel Correia (coordenação) - Arquitectura Sustentável em Cabo Verde –


Manual de Boas Práticas. Lisboa: CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2011.
p.106
175 Idem, p.107

191
117 Ilha do Fogo, localização de Chã das Caldeiras

192
2.6 - Sede do Parque Natural do Fogo, entre a tradição e a
inovação

“A ilha do Fogo é um grande aparelho vulcânico complexo, ainda ativo e


conservado, portanto admirável frescura de forma; muito semelhante ao
Vesúvio, tem dimensões mais de duas vezes superiores. O enorme cone emerge
das ondas por um contorno arredondado, o mais simples e regular de todas as
Ilhas Atlântidas.”176
Orlando Ribeiro

Seguindo as descrições de Orlando Ribeiro no livro “A ilha do Fogo e as suas


Um lugar Erupções”, ainda podemos acrescentar que a ascensão da sua topografia se
singular
aproxima da forma de um cone. Numa zona acima dos 1800m, surge o Pico
do Fogo, que atinge os seus 2829m. Para além da simplicidade de forma
que afirma Orlando Ribeiro, é também de salientar que esta é uma das ilhas
mais singulares de Cabo Verde, pela sua biodiversidade 177. A sua paisagem é
marcada pela pigmentação lávica, típica de solo vulcânico, apresentando-se nos
seus diferentes estados de desgastes, provocado pela erosão, o que confere à
ilha uma beleza cénica única. A paisagem da ilha continua em transformações,
principalmente pelo efeito do vulcão que mantém a sua atividade de forma
periódica, o que afeta principalmente a envolvente próxima do vulcão. O clima
da ilha é subtropical seco, com uma curta estação de chuvas entre os meses
de julho a outubro e, como tal, semelhante ao resto do arquipélago. Porém,
a amplitude térmica elevada é uma particularidade desta ilha, facto que se
acentua nos pontos mais elevados, o que lhe confere um microclima particular
que estimula uma produção agrícola variada.
As condições do solo e o clima da ilha revelaram-se propícios para a exploração
da agricultura e para a criação de gado, permitindo a fixação humana na ilha.
O Fogo foi povoado logo após a fixação na ilha de Santiago, nos finais do século

176 RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções. Lisboa: Comissão Nacional Para
As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, (1ª Edição de1954), 1997. p.23
177 “A maior parte da Bordeira e de Chã das Caldeiras situa-se na zona semi-árida da ilha.
Os solos são cobertos com diferentes espessuras de saibros de lava e suportam uma vegetação
que de forma natural se compõe, na sua maioria, por espécies endémicas. Das 82 espécies
endémicas de plantas superiores existentes em Cabo Verde, 37 aparecem na Ilha do Fogo
(anexo, tab. A-1, BROCHMANN 1997, HANSEN 1993), 31 espécies, isto é, 38% das espécies
endémicas de Cabo Verde aparecem no parque, 5 são endémicas locais que são conhecidas
apenas no Fogo, mais propriamente na referida zona.” in República de Cabo Verde Ministério
do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos Marinhos Direcção Geral do Ambiente (2009)
- Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo Verde. p.49

193
118 Parque Natural do Fogo, posto de informações

194
XV, sendo o primeiro aglomerado São Felipe.
Chã das Caldeiras encontra-se num dos pontos mais elevados da ilha, no
interior de uma depressão topográfica formada por uma cratera e no sopé
do Pico do Fogo. “A Chã das Caldeiras corresponde ao «Átrio»; é uma depressão
de 2 km de largura, em forma de ferradura, de fundo plano, embora acidentado
por vários cones adventícios e correntes de lava.”178 Só nas últimas décadas de
oitocentos se assinala a presença regular das pessoas em Chã, no entanto, a sua
ocupação permanente efetua-se a partir de 1917, o que reflete as dificuldades
oferecidas pelo lugar para a fixação do habitat. Antigamente, eram conhecidas
as culturas do cafeeiro e do algodão, sendo esta última dominante, no entanto,
foi substituída gradualmente pela agricultura de sequeiro. A fixação do conde
de Montrond neste lugar, em 1870, fez com que se iniciasse o cultivo da vinha e
a produção do vinho, aproveitando as especiais condições naturais das encostas
interiores da primitiva cratera vulcânica.
A população local está distribuída maioritariamente por dois aglomerados,
Portela e Bangaeira, que formam uma malha urbana praticamente contínua
de origem espontânea. Na construção das casas tradicionais usam-se pedras
vulcânicas, criando assim uma pele quase homogénea em relação ao solo que as
circunda.

“As construções são rudimentares, térreas, feitas de blocos de lava não


aparelhadas e cobertas de palha. Existem de dois tipos: retangulares (as mais
numerosas), de telhados de quatro águas, e redondas, de cobertura cónica; o
“funco” ou cozinha, separado geralmente da habitação, é sempre construção
redonda. Não se usa telha, nem vidraças nas janelas, nem a maior parte das
vezes divisões interiores.”179

Na análise feita pelo geógrafo Orlando Ribeiro acerca das habitações na Chã,
quando em junho de 1951 foi acompanhar a erupção do vulcão, descreve
a génese da arquitetura vernácula do lugar. Atualmente a introdução de
materiais contemporâneos nas construções locais de forma desequilibrada,
alterou essa imagem homogénea que identificava a aldeia, contudo muitas das
características apontadas ainda permanecem.

178 RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções. Lisboa: Comissão Nacional Para
As Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, (1ª Edição de1954), 1997. p.40
179 Idem, p.105.

195
119 Sede do PNF, primeiro proposta
120 Sede do PNF, primeiro proposta

196
“O Parque Natural do Fogo abrange toda a área da ilha acima dos 1.500
metros na vertente oriental da ilha, e acima dos 1.800 metros na vertente
ocidental, o arco da Serra que limita a escarpa de falha que forma a Bordeira
com o flanco externo e escarpa, o planalto interno designada de Chã das
Caldeiras e o cone vulcânico. Esta zona central da Ilha do Fogo corresponde
às maiores altitudes de Cabo Verde.”180
As superfícies abrangidas pelo parque são ricas pela diversidade da flora que é
composta por plantas endémicas, como o tortolho e a língua de vaca, e também
pela própria beleza cénica da paisagem. O objetivo da criação do parque passa
por envolver a população e com o seu contributo criarem hábitos de proteção
ambiental, de combate a erosão e restabelecimento do ecossistema local.

O primeiro edifício de apoio ao parque era relativamente pequeno, servindo


Da construção como centro de informação e receção de visitantes, de espaço expositivo e local
tradicional ao
edifício
de venda de artesanato, seguindo a matriz construtiva tradicional. As paredes
contemporâneo em blocos de pedra vulcânica, com planta circular, e a cobertura cónica em
colmo representam a tradição arquitetónica de Chã das Caldeiras.
O plano de gestão do parque, designado por “Projecto de Protecção dos Recursos
Naturais na Ilha do Fogo”, foi elaborado com o apoio de técnicos alemães, sendo
consultor permanente do projeto o Dr. Berthold Seibert. A necessidade de obter
melhores instalações levou o governo de Cabo Verde a promover a construção
do novo edifício, cujo programa foi idealizado de modo a acolher os serviços
administrativos e técnicos do parque natural. O financiamento do projeto foi
garantido, na sua maioria pela cooperação alemã, que investiu 4,45 milhões de
euros, complementado pela participação do governo de Cabo Verde, no valor
de 250 mil euros. O concurso público para a seleção dos autores do projeto
foi lançado pelo Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos
Marinhos no ano de 2007 181 e podiam concorrer escritórios de arquitetura
nacionais ou internacionais, desde que residentes em Cabo Verde. O vencedor
foi o gabinete OTO Cabo Verde, com o escritório principal em Lisboa, formado
pelos arquitetos André Castro Santos, Miguel Ribeiro de Carvalho, Nuno
Teixeira Martins e Ricardo Barbosa Vicente. Na época do concurso o gabinete

180 MANGA, Lembem Essamai - Cooperação Institucional e Gestão de Áreas Protegidas


em Cabo Verde: O Caso do Parque Natural da ilha do Fogo. Praia: ISE, 2013. p.62
181 «O Ministério do Ambiente e Agricultura, através do Projecto “Protecção dos
Recursos Naturais na Ilha do Fogo” pretende construir a sede da administração do Parque
Natural do Fogo (PNF), na localidade de Chã das Caldeiras. Assim, promove um concurso
para o desenho artístico da referida sede, tendo em conta a paisagem específica daquela área
protegida.» in Boletim Informativo Agosto 2008 - Ministério do Ambiente, Desenvolvimento
Rural e Recursos Marinhos – Delegação do Fogo – Projecto de Proteção do Recursos Naturais
na Ilha do Fogo (PRNF)

197
0 5 10
0 5 10
121 Sede do PNF, planta de implantação

198
estaria a iniciar o seu percurso, pelo que ainda não apresentava nenhuma obra
construída.
O terreno para implantação do edifício localizava-se a escassos metros do
centro do povoado de Portela, entre solos vulcânicos de superfície irregular
e tufos lapilíticos, que são minúsculos grãos de material resultantes das
erupções vulcânicas. O local é árido, de aparência inóspita e com escassez de
vegetação, o que confere ao lugar uma paisagem lunar. A envolvente do edifício
apresenta poucas construções, sendo as existentes pequenas habitações. A
solução apresentada na fase de concurso previa uma volumetria parcialmente
enterrada, o que demonstra a vontade de dissimular o edifício, escavando o
terreno envolvente. O interior dominado pela sala polivalente integra a receção,
cafetaria, loja e um escritório autónomo, o acesso seria por escada escavada no
solo, pois o piso implanta-se a uma cota bastante inferior em relação ao nível do
terreno envolvente.

O projeto foi desenvolvido entre 2007 e 2010, entretanto o programa foi


sendo ajustado conforme o decorrer do processo e apenas foi estabelecido
após o concurso e adjudicação do projeto. Houve alterações significativas que
incrementaram significativamente a área de construção dos 400m² iniciais para
5000m², garantindo assim a inclusão de componentes culturais e científicas
com o objetivo de envolver a comunidade local numa colaboração recíproca de
proteção e recuperação ambiental 182. Um dos ideais estabelecidos pelo plano de
proteção do parque foi o de conceber um edifício com programa que permitisse
o envolvimento da população local e com isso estimular a valorização da
tradição local e a proteção da paisagem singular daquela área protegida.
O programa foi distribuído em três partes, sendo a disposição a seguinte:

“O corpo administrativo fica virado para um pátio com espécies virado sobre
o vulcão. O corpo cultural fica repartido em 3 partes a parte expositiva virada
para o vulcão, o auditório exterior a olhar para a Bordeira e o auditório
semi-enterrado com cafetaria em cima com uma zona em sombra com vista
para o parque das espécies e vulcão. A zona técnica fica na parte mais alta do
edifício e escondida e o percurso é desenhado por forma a passar por todos
os espaços e todas as espécies do parque.”183

182 COSTA, Pedro Campos, BARBAS, Isabel - “Na terra do fogo. Sede do Parque Natural
Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde”. J-A 250, Mai - Ago 2014, p.378 - 389
183 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

199
122 Sede PNF, vista conjunto
123 Sede PNF, vista conjunto
124 Sede PNF, vista conjunto

200
Como é descrito na memória do projeto a distribuição dos diferentes
programas está associado as diferentes funções, a integração desses espaços fica
pontuado por espaços de pausa e contemplação como também de atividades
lúdicas e culturais.
Um dos primeiros imperativos encontrados na conceção do projeto foi o
próprio lugar, que pelas suas características geográficas, morfológicas e
paisagísticas singulares exigiram uma abordagem especial ao projeto. O lugar
de implantação do edifício é no interior do Parque Natural, que é uma área
protegida, logo pressupõe-se um cuidado especial no impacto paisagístico da
obra. Consequentemente, o projeto da sede do PNF 184 foi idealizado de forma
a coabitar a administração, os laboratórios e um núcleo cultural. Todo o projeto
tinha de ser apelativo, de modo a chamar a população a usufruir e dinamizar
o equipamento, como também incutir o sentido de pertença do património
natural do sítio.
Como referido, a envolvente ao edifício é de origem vulcânica, a bordeira da
antiga cratera protege a aldeia e o edifício. A área circundante ao edifício é
constituída por solos com diferentes aspetos, consoante o tempo de exposição
à erosão, o que confere ao lugar uma variação paisagística diversa, existindo
tanto rochas vulcânicas de formação recente como solos vulcânicos de saibro
ou areia. A topografia varia entre zonas acidentadas e pequenas planícies. O
local de implantação tem relevo estável, apresentando uma pequena depressão
no solo, que é preenchido pela construção, procurando minorar o impacto
visual. Essa paisagem tem uma dimensão telúrica única, pelo que, contrariar ou
modificar é tarefa difícil.
Houve uma procura de integração profunda do edifício na paisagem, o
resultado da composição e disposição volumétrica ajudam nessa incorporação.
A solução final apresenta uma volumetria que constrói e desconstrói ao
mesmo tempo, criando enquadramentos ora para o pico do vulcão, ora para a
bordeira da cratera envolvente 185. Essa ideia reflete-se na volumetria do edifício.
Dobra-se para formar um pátio e ascende-se de forma ligeira, a partir do solo,
fragmentando-se simultaneamente para estabelecer relações entre as suas partes
e os espaços exterior semicerrados, por vezes com pátios que servem de espaços
de lazer e contemplação. Esta osmose com a morfologia dinâmica topográfica
da envolvente permite adossar o edifício ao terreno, quase ao ponto de se
confundir com a própria materialidade do solo, fazendo-o pertencer ao sítio.

184 República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos


Marinhos Direcção Geral do Ambiente - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo
Verde (2009). p.64-65
185 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

201
125 Sede PNF, vista parcial pátio
126 Sede PNF, relação entre volumes

202
“O edifício procura apenas mimetizar a sua envolvente para pertencer ali,
para ser e resistir, não como um ser estranho àquele mundo mas como um
organismo que lhe pertence. Aliás, como as casas da povoação de Chã das
Caldeiras, que se envolvem e fundem na paisagem pela materialidade do
tecido geológico. A cor e a textura da construção parecem desmaterializar
a forma. As volumetrias construídas com pedra de lava agarram-se ao
território pela mão de quem o quer habitar e, com o próprio território,
procura construir as suas casas e cultivar os seus alimentos." 186

O edifício consegue juntar tanto a tradição como a contemporaneidade. A sua


construção teve como base a estrutura em betão e acabamento em blocos de
cimento, com pigmento negro. Tal como a habitação tradicional, que é revestida
pela própria rocha vulcânica do lugar, o material que reveste o volume procura
criar a sua textura semelhante ao solo que a envolve, que é rugosa e de cor
negra. Seguindo o exemplo das casas tradicionais da Chã, a solução construtiva
e a materialidade do edifício procuraram criar uma simbiose com o lugar,
ou seja, procuram chegar à textura e a tonalidade cromática das construções
tradicionais do sítio. Os blocos de cimento definem o invólucro exterior da
construção, portanto, usam cinzas pozolânicas e um pigmento preto. Também
o fabrico artesanal in loco desse material ajudou a conferir um certo grau
de imperfeição, principalmente na sua textura. A isso, ainda se acrescenta a
manualidade do processo de colocação das peças, que confere também uma
certa imperfeição. Tudo isso define a pele do edifício, próxima das construções
tradicionais da Chã, com as suas texturas porosas. Para além das paredes, os
pavimentos dos pátios e da periferia do edifício tiveram soluções cromáticas
semelhante. Utilizaram pedra basáltica, microbetão com pigmento e terreno
vegetal vulcânico, todos esses materiais com texturas e cores semelhantes à
envolvente.
O projeto foi “elaborado tendo como linha orientadora uma abordagem holística
da Sustentabilidade.”187 Essa abordagem definida para o projeto, teve em parte
influência das próprias características e condições do lugar, uma vez que é
um território relativamente remoto, de clima agreste, carente de redes de
infraestruturas básicas como água, eletricidade e esgoto. Estabeleceram-se
premissas de aproveitamento dos recursos naturais, como águas pluviais,
energia solar, uso de materiais endógenos, bem como o uso de sistemas de
aquecimento e arrefecimento passivos, a maximização da iluminação natural,
dado que as próprias soluções assumidas para o edifício poderiam vir a

186 COSTA, Pedro Campos, BARBAS, Isabel - “Na terra do fogo. Sede do Parque Natural
Do Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde”. J-A 250, Mai - Ago 2014, p.378 - 389
187 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

203
127 Sede PNF, estereotomia
128 Sede PNF, relação com a envolvente
129 Sede PNF, cobertura com uso de tufos vulcânicos

204
contagiar toda a povoação da Chã 188.
Como afirma o arquiteto Ricardo Barbosa Vicente, surgiram várias alterações
durante o desenvolvimento do projeto, das quais podemos destacar a
alteração exponencial da área, desde a fase do concurso de ideias para as fases
posteriores. Além disso e dos acontecimentos comuns nesses tipos de processos,
o que veio a ser determinante na vida do edifício foi a fatídica erupção, que
acabou por destruí-lo juntamente com grande parte da localidade de Portela.
O sistema construtivo e a composição volumétrica do edifício foram pensados
de forma a serem eficientes, tanto do ponto de vista estrutural como em relação
às condições climáticas e paisagísticas do lugar. O clima é conhecido por ser
seco e pela ampla variação da amplitude térmica, pelo que todo o sistema
construtivo e de ventilação do edifício foi calculado de modo a responder
às exigências climáticas e criar o conforto necessário ao seu funcionamento,
através de soluções passivas.
Num lugar com traços característicos de uma tradição construtiva singular, foi
possível fazer uma intervenção com uma solução de princípios sustentáveis, o
que, de certa forma, representa a postura do lugar que na sua génese construtiva
usa materiais endógenos e uma tipologia construtiva eficiente. O conjunto
procura uma síntese entre a paisagem e a tradição sem deixar de exibir traços
da arquitetura contemporânea na sua linguagem.
A relação que o edifício estabelece com o lugar é de clara adaptação, integração
e respeito à identidade local. O corpo construído funde-se com a envolvente,
pela materialidade da construção e faz por pertencer a paisagem. A volumetria
é trabalhada de modo a criar proporções equilibradas entre si e na relação
com a envolvente, o que também ajuda que a integração aconteça de forma
natural. A linguagem do edifício aproxima-se dos traços da construção
tradicional, o seu revestimento procura estar próximo da materialidade do solo
da sua envolvente assim como a materialidade das casas tradicionais da Chã.
É claramente uma construção de características contemporâneas com uma
linguagem inovadora e com uma solução construtiva que procura conciliar com
dois mundos. O edifício procura tanto relacionar com as tradições construtivas
da Chã como também inova, de modo a dar resposta as necessidades funcionais
do equipamento. A volumetria singela integra-se na paisagem sem sobressair
em demasia e faz-se por pertencer ao lugar. A sua composição fragmentada
pode ser associada à composição dos aglomerados das construções vernáculas
da localidade que constituem diferentes partes, e criam espaços e relações entre
eles. Essas construções constituem uma resposta ao clima e aos costumes. O
edifício procura, de maneira subtil, refletir as formas da paisagem envolvente,

188 Memória descritiva cedida pelo arquiteto Ricardo Barbosa Vicente

205
130 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos, Ilha do Faia, Açores
131 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos Ilha do Faia, Açores

206
como também adaptar-se às necessidades do programa e ao clima do lugar,
procurando ser autosuficiente. O trabalho de procura da materialidade do
edifício teve uma vasta pesquisa. A solução passou pelo uso da pedra local
triturada para a produção de blocos, com o uso de um pigmento próximo da
cor do solo do local. A obra foi concluída em 2013 e a inauguração aconteceu
em março do ano seguinte.
O lugar escolhido para a implantação da Sede do Parque Natural do Fogo
acabou por trair o edifício, que não resistiu a última erupção vulcânica. Esse
facto demonstra que talvez não houve um estudo prévio do local previsto
para a construção que apontasse para os perigos do sítio. Não se sabe se foi
por ambição ou desafio que ousaram implantar o edifício nesse lugar, onde
a natureza não deixa de se apresentar adversa, pois o vulcão do Fogo está
ainda ativo. Efetivamente, o poder da natureza desse elemento manifestou-se,
quase dois anos após a conclusão do edifício e ele foi consumido pelas lavas.
Apesar da perda física da construção é inevitável o legado deixado. Previa-se
que o investimento pudesse contagiar a sua envolvente e potenciar futuras
construções. O edifício teve um curto tempo de existência, apesar disso, ou
talvez por causa disso, a construção provocou um impacto positivo. A obra
foi bem aceite, tendo recebido distinções positivas sobre a sua qualidade
arquitetónica, tanto a nível nacional como internacional.
A solução construtiva do edifício é plausível e contemporânea, inserindo-se
de forma equilibrada no lugar, respeitando a tradição construtiva. Para isso
houve um processo que contou com experiências a nível de experimentação
de materiais e soluções construtivas, pelo que seria importante o envolvimento
da população local, visto que existiu uma preocupação com a identidade
do lugar e as tradições e esteve sempre presente os problemas dessas aldeias
através da preocupação com mutações que as construções recentes estão a
provocar na paisagem. Esse envolvimento também seria uma maneira fácil
de criar interesse pela preservação da identidade da construção tradicional e
servir de aprendizagem de métodos construtivos contemporâneos à imagem
das tradições locais. A produção dos blocos para a construção, algo que na
localidade está a ser utilizado na atualidade, mas com características que
diferem da arquitetura tradicional, com a textura e cor similares a pedra local
poderia ser partilhada de forma a que a população da aldeia ganhasse esse
conhecimento. Também a ideia do envolvimento da população local na fase de
concessão do projeto e da construção poderia criar uma ligação maior àquilo
que viria a ser um espaço por eles utilizado, visto que o programa incluiu um
centro interpretativo.

Na ilha do Faial, nos Açores, num terreno de solo vulcânico, com ligeira
Centros pendente voltada sobre o mar, pontuado pela presença de um antigo farol, foi
interpretativos
construído o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos. Vulcão esse que

207
132 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos, rampa de entrada
133 Centro interpretativo do vulcão dos Capelinhos, cobertura

208
fica na proximidade do lugar de implantação do edifício, embora não evidencie
a sua presença. A erupção do vulcão dos Capelinhos, de setembro de 1957,
tornou-se um momento histórico, o vulcão manteve a sua atividade por treze
meses. O centro interpretativo foi proposto como lugar de retrato científico
desse fenómeno e da história da formação vulcânica do arquipélago do Açores.
O arquiteto Nuno Ribeiro Lopes foi o autor desse projeto, que teve o início
em 2003 e cuja construção foi finalizada em 2008. A solução arquitetónica do
projeto procurou uma linguagem simples e funcional e com uma postura de
respeito pela identidade do lugar e o seu valor paisagístico. Do mesmo modo,
o projeto procurou não interferir na mística do lugar e respeitar a construção
preexistente do farol. Para isso toda a construção nova foi feita no subsolo,
deixando apenas pontuado o desenho circular do foyer e o rasgo da rampa de
acesso 189.
O programa é distribuído pela construção nova e estende-se até ao edifício
do farol que é recuperado e mantido apenas como espaço de visita. O betão
aparente foi o material eleito para a construção, sendo os demais materiais
que compõem a construção integrados de modo equilibrado e a criarem uma
linguagem sóbria entre os diferentes espaços do edifício.

“O cerne da especialidade maior é a sala da coluna central, numa escala não


habitual entre nós, que nos sugere uma “citação arquitectónica” dos tempos
experimentais da arquitectura brasileira dos anos 50/60, onde a arquitectura
e a engenharia eram audazes e por vezes se (com)fundiam, associando-se
“para além do limite”.”190

Ainda podemos ressalvar que existe, tanto uma minuciosidade na intervenção,


como também uma força intrincada ao gesto arquitetónico e aos espaços
concebidos. Como afirma Ana Paula Pereira Marques,
“Além da componente lúdica e científica, este Centro vive, claramente,
do rasgo arquitectónico. A ideia de construir um edifício enterrado, para
não estragar a poesia e o sono do Vulcão adormecido, dá-lhe um encanto
extraordinário. No seu interior, desde o imponente pedestal do foyer até ao
detalhe de design de cada estante, tudo foi pensado para que ficasse bonito,
prático e harmónico. Cumpre-me constatar que foi conseguido!”191

189 LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:


ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008. p.11
190 MESTRE, Victor “A luz como metáfora ou como rememorizar o património
arquitectónico intangível” LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do
Vulcão. Açores: ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008. p.45-50
191 LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:
ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008. p.4

209
134 Centro de Visitantes da Gruta das Torres
135 Centro de Visitantes da Gruta das Torres

210
O Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos e a sede do Parque
Natural do Fogo têm em comum vários aspetos, tais como a natureza do lugar,
a semelhança do programa e o desafio da construção em lugares singulares.
A singularidade desses espaços é destacada pela excecionalidade paisagística,
assim como no valor simbólico a que cada um desses lugares está associado.
Além disso, os desafios associados ao projeto, tanto na solução construtiva
como na resposta ao programa, permitiu a relação entre os dois projetos.
Ambos os edifícios procuram a integração no lugar. Na sede do PNF, a
volumetria é resolvida através de uma composição que procura coabitar com a
topografia da envolvente e no CIV a forma suave da colina é mantida como se
nada tivesse acontecido, integrando assim no lugar. Em termos de linguagem
e plasticidade dos materiais, nos Capelinhos, pela solução do projeto em que a
construção é oculta, não foi preciso se preocupar com pele externa ao edifício.
Apesar disso, a própria solução respeita de tal forma a paisagem que mantém a
sua morfologia natural. Na sede do PNF esse desafio foi maior, a plasticidade do
edifício foi um tema de especial importância para a integração da construção.
Essa relação mística de integração com o lugar, que acontece em ambos os
projetos tem um resultado que reverte para a valorização da paisagem. A
exigência ou o desafio que esses projetos enfrentaram, trabalhar no limiar da
iminência de transformação da natureza sobre o homem por si só constituí
um aprendizado, sendo que, conseguir atingir a qualidade que os dois projetos
apresentam merece destaque. Nos Capelinhos temos um edifício oculto,
mas com um impacto tremendo, tanto pela solução arquitetónica como pela
polarização do lugar. Na Chã, o edifício não se intimida perante a imponência
do lugar, faz por pertencer ao lugar e ao mesmo tempo ser ele próprio. Ambos
os projetos ressumem-se de forma clara à essência dos seus programas e
respondem de forma eficiente, tornando-se funcionais, sem deixarem de ser
belos e acrescentar valor ao lugar, embora sendo eles lugares singulares.

Um outro projeto que se assemelha a sede do PNF, tanto no programa como


na função, ainda que mais reduzido e com menos valências, como também no
contexto de ilha vulcânica e associado a um monumento natural é Centro de
Visitantes da Gruta das Torres. O edifício situa-se na ilha do Pico nos Açores e
foi desenvolvido pelo ateliê SAMI, dos arquitetos Inês Vieira da Silva e Miguel
Vieira.
Ainda antes da classificação da Gruta como monumento natural em 2004, foi
promovida pelo Governo Regional dos Açores a construção de um centro de
receção de visitantes, que organiza o acesso público. O espaço inaugurado em
2007 corresponde a uma construção de pequena dimensão, definida por um
muro alto que envolve a proeminência topográfica e que, enrolando-se, no
interstício cria o espaço interior.

211
136 Centro de Visitantes da Gruta das Torres, relação com a envolvente

212
O edifício “[…] apresenta uma geometria circular, um extrato volumétrico
de origem topográfica, elaborado como uma continuidade do tubo rochoso
que penetra o território vulcânico. A curiosidade da dupla de arquitectos
por texturas, por possibilidades de expressão a partir de sistemas de
construção, o gosto pela compatibilização de técnicas antigas e tecnologias
novas é levada a um extremo radicalizado na artificialidade da forma
orgânica do volume. Construído com “duas linguagens”, o edifício, de um
lado difunde-se na paisagem, num sistema de osmose que estende um muro
circular reorganizando o território, e de outro lado molda-se no acabamento
betuminoso da parede que se estende para a pendente da cobertura,
abstraindo a sua percepção, alisando num só tom a sua superfície. A noção de
superfície constitui uma metodologia de projeto que o SAMI incorpora, para
melhorar ascender á figuração que procura para caracterizar os espaços.
O espaço organiza-se, mimetizando a superfície exterior e estabelecendo
relações visuais com a sua envolvente material que filtra a paisagem antes de
desvendar.”192

A geometria do edifício distingue-se da racionalidade volumétrica da


construção vernacular. A forma orgânica do volume é assumida quase como
um facto topográfico ou geológico, nesse sentido pode-se relacionar com o
edifício da sede do PNF. Esta última também compõe uma volumetria distinta
e procura uma relação íntima com a topografia do lugar onde se insere. Existe
também uma procura de relação de escala com a natureza e com a envolvente.
Também demonstra proximidades com a construção da Chã pela exploração
dos materiais locais, com soluções construtivas inovadoras, neste caso na
exploração do valor textural da parede de alvenaria de basalto e a capacidade
de criar uma superfície translúcida. Gradação entre os valores de opacidade
e transparência, enquanto que o vidro preto dá unidade, não se afirma por
oposição. As paredes foram revestidas com uma camada betuminosa negra em
que se aproxima da cor da lava que é presente dentro da caverna.
Segundo os arquitetos, “perante uma paisagem tão forte procurámos a integração
do edifício, não deixando de desenhá-lo de forma contemporânea, perseguindo a sua
adequação à escala, e natureza, do contexto em que se insere.”193 Isso demonstra
o respeito pela paisagem local. Num contexto em que a natureza mostra um
poder enorme sobre a arquitetura, o edifício consegue manifestar a sua própria
identidade e fazer por pertencer ao sítio, tal como acontece na sede do PNF.

192 COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de
Portugal – la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade –
Veneza, 2018. p.69 - 78
193 Sobre o projeto da Gruta das Torres. [consultado 12 set 2019]Disponível em http://
www.sami-arquitectos.com/pt/works/show/gruta-das-torres-visitor-centre

213
CONCLUSÃO
Contribuições para a Valorização da Identidade
Arquitetónica Cabo-verdiana.

“Costuma-se definir Património como herança comum dum povo e do Homem


em geral. Um povo herda uma cultura, uma história, uma memória colectiva.
São esses os seus valores (materiais e imateriais) que o identificam e o
orientam no seu crescimento. Uma velha lamparina de petróleo, a Praça de
Estrela, uma morna de Eugénio Tavares, uma árvore, o romance Chiquinho de
Baltazar Lopes ou Chuva Brava de Manuel Lopes, uma história de Ti Lobo,
uma cantiga de aboio, um hábito sociocultural, um provérbio, um remédio de
terra… são valores desse património e geralmente estabelecem-se critérios
para a sua defesa e valorização.” 194

A definição exposta por António Jorge Delgado, que mostra ser consequência
da época, parece manter-se atual e traduz um programa conceptual que em
boa parte tem sido cumprido pelas entidades públicas, de que são exemplos a
candidatura da Morna a património imaterial, a classificação da Cidade Velha e
do seu património intangível, a criação de reservas naturais.
É possível, no entanto, apontar algumas lacunas neste processo de classificação
patrimonial. Apesar do impulso que o assunto ganhou no período pós-
independência, em boa parte dinamizado pelas elites intelectuais - de que
resultou a proteção jurídica da Cidade Velha - mas também por iniciativa
de privados, caso da associação Atelier Mar ou de empresários com intuitos
comerciais. É ainda de assinalar o contributo dado pela UNESCO e por outras
instituições estrangeiras, movidas pelos protocolos de cooperação internacional,
contributo fundamental perante o quadro de restrições orçamentais e
financeiras do país.
A singularidade das 195
coisas evidentes

Os casos de estudo aqui apresentados, no seu conjunto, consubstanciam uma


ideia de património que não se esgota no tradicional conceito monumento
submetido a proteção jurídica estatal, mas inclui um universo de objetos
sinalizados e valorizados por iniciativa de privados.
O desenvolvimento de Cabo Verde desde o momento da independência,
configurou um duplo percurso, polarizado entre a revisitação das raízes

194 Numa entrevista a António Jorge Delgado sobre o Património, in Ponto & Vírgula –
revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez 1983) - p.49
195 Siza, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009. p.29

217
culturais no sentido de recuperar as tradições e a introdução de novos hábitos
de vida que conduzem à gradual transformação do espaço do habitar.
O primeiro caminho reconhece a pertinência da preservação da arquitetura
tradicional cabo-verdiana, aquela que, por um processo histórico, melhor se
adaptou às circunstâncias. Por oposição, verifica-se a tendência para conotar
as velhas construções com a pobreza, o desconforto, o baixo estatuto social,
pelo que são abandonadas ou profundamente transformadas e ampliadas com
novos materiais e processos de construção, por vezes pouco adaptados ao clima
do arquipélago. Esta situação é denunciada no Manual Básico de Construção,
elaborado para o uso no arquipélago, através da seguinte afirmação “a habitação
responde sempre às condições do clima e não o clima à habitação. Um dos erros mais
frequentes na construção no país é a inadaptação das soluções ao clima.”196
O processo de crescimento económico do país, teve ao longo das últimas
décadas, o turismo como principal impulsionador, e os seus benefícios
alargam-se, ainda que de forma assimétrica, a quase todas as ilhas. Como foi
referido anteriormente, ainda antes da independência, foram parcialmente
concretizados alguns planos públicos de dinamização e transformação dos
territórios litorais, que incidiram principalmente na ilha do Sal mas também na
Boavista.
Em consequência, têm surgido inúmeros equipamentos hoteleiros que tentam
corresponder às exigências globalizadas do turismo balnear internacional,
consolidando um imaginário ligado às formas da arquitetura muçulmana de
África, responsável pelo desejado exotismo das novas paisagens balneares,
mas que, alheia às tradições arquitetónicas locais e às disponibilidades dos
recursos naturais [nomeadamente de água que é um bem escasso nessas
ilhas], promovem emprego de materiais importados. No seu conjunto, estes
hotéis configuram vastas unidades construtivas, bem delimitadas por vias de
circulação rápida e com impactos negativos no território, pois estabelecem
pouca interação com as povoações preexistentes. Como bem caracterizou
Andréia Moassab, “a monocultura do turismo e a decorrente fragilidade identitária
têm colaborado para acirrar a segregação espacial e as desigualdades sociais, ao
invés de amenizá-las, como era esperado pelo governo ao colocar em curso o Plano
Nacional de Desenvolvimento, em 1995.”197

196 LOPES, Leão - Manual Básico de Construção – Guia Ilustrado para a Construção de
Habitação, São Vicente: MIH, Gráfica do Mindelo, Lda. 2001. p.22

197 ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre
a (frágil) construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado
[consultado 12 set 2019] Disponível em http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-

218
Tentando contrariar este quadro, os casos de estudo incluídos nesta dissertação
promovem programas turísticos inovadores, atentos à microgeografia dos
lugares e ambicionando a salvaguarda e valorização de preexistências,
potenciando os seus valores simbólicos e de uso. Os programas desenhados
e implementados associam turismo com cultura numa perspetiva de
desenvolvimento, um dado fundamental para garantir as condições de
implementação e de funcionamento económico dos projetos. Todos os
exemplos apontados tiveram que se confrontar com orçamentos restritos,
mesmo nas situações em que a iniciativa partiu da esfera pública. De certa
forma, esta limitação foi contornada com a mobilização e envolvimento ativo
entre os promotores, os membros da equipa projetista e as comunidades locais,
sob diferentes modalidades de cooperação, durante as fases de programação e
projeto. A relevância do método de trabalho que corporiza formas de diálogo e
de participação coletiva é evidenciada por Álvaro Siza que nos recorda que “[…]
o projecto é um personagem com muitos autores, e faz-se inteligente apenas quando é
assim assumido, é obsessivo e impertinente em caso contrário.”198
O envolvimento direto da população local, no caso da Cidade Velha, permitiu
criar dinâmicas de sensibilização para a preservação da arquitetura tradicional
- diga-se habitação própria, em muitos casos - e para a valorização do centro
histórico. A participação foi ativa, visto que se tratava, em parte, de um
processo de reabilitação da habitação própria. Os dinamismos criados em
volta da classificação do património contribuíram para o reconhecimento do
património desse lugar. Esta preocupação com a esfera educativa refletiu-se
igualmente no desenvolvimento do projeto para uma escola. A componente
social do processo de requalificação expressou-se também no projeto de um
centro cívico, embora este, assim como o anterior, não tenham sido ainda
concretizadas.
Um pequeno equipamento hoteleiro, localizado no extremo da povoação,
permite responder à necessidade de oferecer alojamento aos visitantes. Esta
pousada, com um programa pouco convencional e relacionado com os modos
de habitar da população local, concretizados na organização dos espaços da
pousada em torno de um pátio exterior, questiona o tipo de arquitetura turística
produzido nas últimas décadas no país, A solução apresentada reflete os traços
da arquitetura cabo-verdiana com o uso de volumes autónomos na relação com
os vários pátios.

em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx
198 Siza, Álvaro “Construir”. Siza, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009.
p.26

219
Um dos fatores essenciais para assegurar o sucesso das intervenções aqui
analisadas, é a pertinência cultural/social do programa funcional que informou
os diferentes projetos. O sucesso do plano de requalificação da Cidade Velha
deveu-se em boa parte ao facto de procurar responder às necessidades
multifacetadas da povoação, nas componentes sociais, culturais, patrimoniais,
educativas e turísticas.
O programa de reabilitação do antigo campo de concentração do Tarrafal
revela-se também particularmente acutilante, num momento em que
questões dos direitos humanos ainda têm que ser continuamente negociadas
e conquistadas, não só num plano global, mas também local. Aqui o
envolvimento da comunidade local deu-se pela participação nos inquéritos
efetuados aos moradores que ocuparam as antigas casernas do campo, ou
o registo das memórias de antigos ocupantes daquela prisão, sob a forma
de histórias de vida, prementes para o enriquecimento dos conteúdos
museológicos.
Os modelos de hotelaria relacionados com o turismo rural e o ecoturismo
- debatidos em Cabo Verde desde meados 1975 - têm contribuído para a
valorização e preservação da arquitetura tradicional e deram origem a alguns
museus de território e a vários centros interpretativos, geralmente associados a
bens classificados, como é o caso do centro interpretativo do forte de S. Filipe,
na Cidade Velha, ou da Colónia Penal do Tarrafal, ou associados a parques
naturais, de que é exemplo o do PNF.
Em Espingueira e na Ribeira da Torre, projetos de índole comercial, o fator de
sustentabilidade económica colocou-se de forma determinante. Este último
caso, influenciado pelo conceito de museu de território, previa a reabilitação de
habitações tradicional para uso como unidades de alojamento turístico, apoiado
na participação dos próprios proprietários, integradas num circuito de visita
que compreendia ainda um pequeno espaço cultural funcionando como centro
interpretativo e museu de alfaias agrícolas, dinamizado por guias turísticos. O
projeto de Espingueira, na fase de estaleiro, convocou artesãos locais a apoiarem
a execução da obra. Na fase de funcionamento, contou com a população como
funcionários do equipamento hoteleiro
Os exemplos estudados mobilizaram a participação de equipas projetistas
nacionais e estrangeiras. O projeto do Museu da Resistência foi concretizado
por técnicos - arquiteto e curador - ligados às estruturas administrativas,
no caso, Ministério da Cultura. O plano da Ribeira da Torre foi coordenado
por técnicos ligados à associação Atelier Mar, que, desde há década tem
concretizado investigação de caráter laboratorial e prática, que recorrem a
materiais endógenos e reinterpretam técnicas tradicionais com o objetivo
de melhorar os sistemas construtivos e de os adequar às exigências
contemporâneas. Muitas das suas experiências constituem plataformas de

220
partilha de saberes, entre artesãos, arquitetos e população em geral.
A constituição de equipas estrangeiras foi motivada por circunstâncias diversas,
mas todas aspiravam a tornar os processos de trabalho mais enriquecedores
pela participação de profissionais com culturas disciplinares diferentes,
mas capazes de propor leituras pertinentes dos lugar e encontrar respostas
adequadas para a situação. Apesar de aparentemente serem alheios a realidade
do país antes da participação nesses projetos, as soluções construtivas
apresentadas demonstram uma capacidade de interpretação e adaptação
às circunstâncias com mais acutilância dos valores locais que os próprios
habitantes. A equipa projetista da sede Parque Natural do Fogo foi selecionada
por concurso internacional, enquanto que, para a intervenção na Cidade
Velha se procedeu ao convite direto do arquiteto, cujas competências foram
evidenciadas por anteriores projetos de teor semelhante.
De entre os casos estudados, assinala-se uma situação de “arquitetura
sem arquiteto”. A concretização do projeto de transformação da aldeia de
Espingueira, conduzido pela promotora de formação em artes plásticas, exigiu
o apoio dos saberes assegurados pela equipa de artesãos locais que intervieram
no estaleiro para, em colaboração, resolverem os problemas do projeto e da
construção.
Os cinco trabalhos aqui abordados, apesar de distintos na sua natureza e
programa, contribuíram positivamente para o enriquecimento da qualidade
arquitetónica dos lugares que procuraram transformar. E, por essa razão, foram
assumidos como casos exemplares, vocacionados para alimentar o debate em
torno da Valorização da Identidade Arquitetónica Cabo-verdiana.
Todos concretizam um pressuposto essencial: o reaproveitamento
de construções anteriores, adaptadas com inteligência às exigências
contemporâneas pois, como ensinou Leon Batiista Alberti:
“… é, sem dúvida, vergonhoso não poupar as obras dos antigos, nem respeitar
as vantagens de que os cidadãos usufruem, acostumados aos lares dos seus
antepassados; pelo que, destruir, demolir e arrasar completamente o que quer que
seja, em qualquer parte, deve ser uma opção a pôr de lado, sempre.” 199

199 Citado por LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e


Regulamentação Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto:
FAUP, 2016. p.2

221
Um segundo pressuposto alimentou os critérios fundamentais de projeto. Todos
informaram uma atitude de “[…] continuar-inovando, num movimento constante
de modificação para melhores condições, mas respeitando os valores positivos
que porventura possam existir e que não deverão, portanto, ser destruídos […] 200,
Reinterpretando com sensibilidade as condicionantes, o existente e as tradições
que representam um esforço centenário de adaptação ao meio, assumem
descomplexadamente a construção do novo, sempre que necessário, mas sem
exibir estratégias de diferenciação ou confrontação entre estruturas novas e
preexistências.
Em todos foi constante a tentativa de inovar no sentido de melhorar a
organização e os dispositivos espaciais e formais, as tecnologias construtivas
ou o desenho e desempenho de alguns elementos, caso de caixilharias, de
coberturas. Alguns recursos materiais têm sido explorados, no sentido de tornar
mais eficientes as alvenarias e argamassas, de que é exemplo a recente aplicação
da pozolana e dos tufos vulcânicos. Na sede do PNF, estas preocupações
afirmam-se mais claramente que nas restantes situações estudadas. A
necessidade de adequar sistemas construtivos contemporâneos (caso do
sistema de cobertura invertida ou da fachada ventilada) às possibilidades locais,
fomentou a produção e aplicação de blocos de betão formados por inertes de
lava que tentam imitar a textura rochosa da envolvente.
Perante os processos globais que contaminam as particularidades socio-
económicas das regiões e a especificidade das práticas de projeto, existem forças
locais que promovem uma espécie de resistência e obrigam ao questionamento
criativo dos modelos e estereótipos, no sentido de reabilitação do edificado
tradicional, adaptando os modelos às circunstâncias. O confronto entre as
forças atuantes não pode acontecer sem conflitos, o que implica, por parte do
arquiteto, uma atitude dialogante capaz, de conduzir à síntese, sempre instável e
provisória.

“Dizem-me de obras minhas, recentes e antigas: baseiam-se na arquitectura


tradicional da região.
Também essas obras me fizeram conhecer a resistência de um operário, a ira
de quem passa e de quem julga.
A Tradição é um desafio à inovação. É feita de enxertos sucessivos. Sou
conservador e tradicionalista, isto é: movo-me entre conflitos, compromissos,
mestiçagem, transformação.”201

200 REVISITAR FERNANDO TÁVORA in https://revisitavora.wordpress.com/plano-de-


reabilitacao-do-barredo/ (consultado em 14 08 18)
201 Siza, Álvaro “Construir”. Siza, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009.
p.28

222
Perspetivas
O desenvolvimento da dissertação permitiu adquirir conhecimento, como
também levantou dúvidas e despertou algumas curiosidades. Reconhecendo
a pertinência desta investigação, pela novidade do tema, existe também a
necessidade de aprofundar algumas das pistas de análise aqui despertadas. O
desenvolvimento do trabalho motivou uma maior vontade de investigação e
esclarecimento sobre a arquitetura cabo-verdiana e as suas diferentes influências
e manifestações.
As futuras investigações poderão ser guiadas de modo a possibilitarem o
conhecimento dos aspetos seguintes:
- de que maneira as influências exógenas, africanas e europeias, contribuíram
para a definição dos traços da arquitetura cabo-verdiana;
- o modo de habitar do cabo-verdiano suas variações no contexto rural e
urbano;
- estudar a composição dos aglomerados habitacionais e dos seus diversos
espaços;
- conhecer a arquitetura dos sobrados;
- novas possibilidades do uso da pedra e da pozolana;
- que recursos podemos explorar, de modo a conseguir produzir uma
arquitetura mais genuína e com maior proveito dos recursos endógenos do país;
- que futuro poderá ter a arquitetura contemporânea produzida nessas ilhas;
Também o contributo deste trabalho poderá possibilitar a outros o
aprofundamento da abordagem desses temas.

225
Bibliografia

Livros
AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de
Investigações do Ultramar. Lisboa, 1964.

AGUIAR, José - Cor e cidade histórica, estudos cromáticos e conservação do património. Porto:
FAUP, 2002.

CABRAL, Manuel Villaverde - A Identidade Nacional Portuguesa: Conteúdo e Relevância.


Lisboa: Universidade de Lisboa, 2003.

CHOAY, Françoise – A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 2016.


CABO VERDE - Pequena Monografia, 1961.

FILHO, João Lopes - Defesa do Património Sócio - Cultural de Cabo Verde, Lisboa: ed. Ribeiro,
José A. 1985.

FERNANDES, José Manuel - Luso Africana – Arquitecturas e Urbanismo na África Portuguesa,


Lisboa: Caleidoscópio, 2015.

FERNANDES, José Manuel; Janeiro, Maria de Lurdes; Milheiro, Ana Vaz - Cabo Verde,
Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014.

FUNDAÇÃO JOÃO LOPES, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIAGO. Praia:


Publicom, 2015.

GUEDES, Manuel Correia (coordenação) - Arquitectura Sustentável em Cabo Verde – Manual


de Boas Práticas. Lisboa: CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2011.

INSULAR INSIGHT – Where Art and Architecture Conspire with Nature – NAOSHIMA,
TESHIMA, INUJIMA – Fukutake Foundation, Lars Müller Publishers.

Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arquelógico, I,P. - 100 Anos de Património


Memória e Identidade. Portugal 1910-2010, Lisboa: IGESPAR, 2010.

KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos e
económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 1987.

227
LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:
ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008.

LOPES, Leão - Manual Básico de Construção – Guia Ilustrado para a Construção de Habitação,
MIH, São Vicente, Grá¬fica do Mindelo, Lda. 2001.

NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder (1929-
1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 2001.

PERALTA, Elsa; ANICO, Marta, [et al.] Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas.
Oeiras: CELTA EDITORA, 2006.

PEREIRA, Luís Tavares - Reacção em Cadeia – Transformações na Arquitectura do Hotel.


Algarve. 2008.

REIS, António(coord.) – PORTUGAL 20 ANOS DE DEMOCRACIA, Círculo de Leitores, 1994.

RIBEIRO, Orlando - A Ilha do Fogo e suas Erupções. Lisboa: Comissão Nacional Para As
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, (1ª Edição de1954), 1997.

RIEGL, Alois - O Culto dos Modernos dos Monumentos. Lisboa: Edições 70, 2016.

SANTOS, Boaventura de Sousa - Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-modernidade.


Porto: Edições Afrontamento,1994.

SANTOS, Maria Emília Madeiro [et al.] coord. - História geral de Cabo Verde – Volume II.
Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical; Praia: 1995.

SIZA, Álvaro - 01 Textos,. Porto: Civilização Editora, 2009.

TOMÉ, Miguel - Património e restauro em Portugal 1920-1995, Porto: FAUP, 2002.

Artigos e Revistas
arqa nº25, (2004)– Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo
Verde.

AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana – Mindelo”.
edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007).

BOLETIM INFORMATIVO AGOSTO 2008 - Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural


e Recursos Marinhos – Delegação do Fogo – Projecto de Proteção do Recursos Naturais na Ilha
do Fogo (PRNF)

228
Carta de Atenas sobre o Restauro de Monumentos, Atenas (Grécia), 1931.

Carta de Veneza sobre a Conservação e o Restauro de Monumentos e Sítios, Veneza (Itália),


1964.

Carta de Cracóvia sobre os Princípios para Conservação e o Restauro do Património


Construído, Cracóvia (Polónia), 2000.

CHARTER ON THE BUILT VERNACULAR HERITAGE (México), 1999.

COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal – la
Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018.

COSTA, Pedro Campos, BARBAS, Isabel (2014), “Na terra do fogo. Sede do Parque Natural Do
Fogo, Chã das Caldeiras, ilha do Fogo, Cabo Verde”. J-A 250, (Mai - Ago 2014)

CREMASCOLI, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di
architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014.

Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)

El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011

Fundação Mário Soares, Fundação Amílcar Cabral - Simpósio Internacional. 2009. (Tarrafal)

ICMEMO, 2019

MARTINS, Ana Cristina - Património histórico-cultural: a emergência das reformas (do


Liberalismo ao Republicanismo) - 1.ª parte. Património Estudos nº5, 2003.

MIMOSO, Alexandre Brás – Sé da Cidade Velha de Santiago (Cabo Verde). PATRIMÓNIO,


estudos. Salvaguarda Patrimonial. Lisboa. n.6 (mai 2004)

MONTEIRO, Jaylson Relatório dos trabalhos realizados no processo de musealização do Ex.


Campo de Concentração do Tarrafal. Praia. (IPC, 2015)

Presença Cabo-verdiana” – nº 19/20. Lisboa (Julho / Agosto, 1974)

Ponto & Vírgula - revista de intercâmbio cultural. (1983 - 1987) Facsimile das revistas editadas
no MINDELO - PONTO & VÍRGULA, Edições – Cabo Verde, 2006.

229
República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)

República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos


Marinhos Direcção Geral do Ambiente - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo
Verde (2009)

República de Cabo Verde Ministério do Ambiente, Desenvolvimento Rural e Recursos


Marinhos Direcção Geral do Ambiente - Plano de gestão do Parque Natural do Fogo – Cabo
Verde (2009)

SANTOS, José António – Spinguera, Resenha Histórica. 2005.

O Século, 25 de Maio 1955

UNESCO - evaluations of cultural properties. 2009.

Património Estudos nº5, IPPAR (2003)

TAVARES, Adalberto – Memória descritiva do projeto de musealização do antigo Campo de


Concentração. 2015. (IPC, Cabo Verde)

Teses e dissertações
COSTA, João Miguel Caroço da - Plano Detalhado de Chã de Caldeiras na Ilha do Fogo – Cabo
Verde. Lisboa, Universidade Nova, 2015.

ESTRELA, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto:


FAUP, 2016.

LIMA, Paulo Alexandre Monteiro - Reconversão da penitenciária e a sua reinserção urbana:


Museu da Resistência. Coimbra: FCTUC, 2010.

LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014.

LOPES, Nuno Valentim - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação


Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016.

MANGA, Lembem Essamai - Cooperação Institucional e Gestão de Áreas Protegidas em Cabo


Verde: O Caso do Parque Natural da ilha do Fogo. Praia: ISE, 2013.

MARQUES, Ana Filipa - Construir e Habitar a Casa Tradicional de Cabo Verde na Cidade
Velha. Prova Final, Porto: FAUP, 2001.

230
MARTINS, Ana Rita Nunes Lopes – “A musealização de heranças difíceis: o caso do Museu do
Aljube - Resistência e Liberdade”. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, 2015.

MARIZ, Vera Félix - A “memória do império” ou o “império da memória” a salvaguarda do


património arquitectónico português ultramarino (1930-1974). Doutoramento. Lisboa: FLUL,
2016.

MENDES, Carlos Jorge Silva - o Museu da Resistência: museu transnacional. Mestrado em


Museologia. Porto, FLUP, 2010.

PIRES, Fernando, “Da cidade da Ribeira Grande à cidade velha em Cabo Verde: análise
histórico-formal do espaço urbano (séc. XV - séc. XVIII)”, Tese de Mestrado em Desenho
Urbano, ISCTE, Lisboa.1999.

SAMPAIO, Catarina - Habitação Rural em Santo Antão. Coimbra, FCTUC, 2006.

SILVA, José Carlos de Paiva e - ARTE/desenvolvimento. Porto: FBAUP, 2009.

TAVARES, Osvaldo dos Reis - Subsídios para o Estudo do Espaço Rural da Ilha de Santiago:
Picos e o seu Património. Praia: Universidade de Cabo Verde.

TEIXEIRA, David José Varela - O Ecomuseu de Barroso. A nova museologia ao serviço do


desenvolvimento local. Universidade do Minho, 2005.

Documentos onlines
Cabo Verde: Praia do Estoril, projecto na ilha da Boavista in http://www.diarioimobiliario.pt/
Espacos-de-Autor/Cabo-Verde-Praia-do-Estoril-projecto-na-ilha-da-Boavista

MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português


ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974). (2013) in https://
coloquiocvgb.files.wordpress.com/2013/06/vera-mariz-final.pdf

Centro storico Salemi in https://pt.scribd.com/document/343923044/


MTQzODMyOTY2Ny0zNjc1ODk1MTUwLTc0MDYtNw

Larissa Lazzari – Spinguera Eco Lodge: tempo e espaço para viver emoções. in http://nosgenti.
com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-emocoes/

Áreas Protegidas da Boa Vista in http://areasprotegidasboavista.blogspot.com/p/espacos-


protegidos-da-boa-vista.html

231
ANDRÉIA MOASSAB (2012) Território e identidade em Cabo Verde: debate sobre a (frágil)
construção identitária em contextos recém independentes no mundo globalizado in http://
www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-fragil-
construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx

REVISITAR FERNANDO TÁVORA in https://revisitavora.wordpress.com/plano-de-


reabilitacao-do-barredo/ (consultado em 14 08 18)

Sobre o projeto da Gruta das Torres. [consultado 12 set 2019]Disponível em http://www.sami-


arquitectos.com/pt/works/show/gruta-das-torres-visitor-centre

Documentários e filmes
O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas,
2003. (DVD)(72 min)

232
Lista de Imagens

01 - Arquivo do autor
02 - Fernandes, José Manuel; Janeiro, Maria de Lurdes; Milheiro, Ana Vaz - Cabo Verde,
Cidades, Territórios e Arquitecturas, Lisboa, Printer Portuguesa – Indústria Gráfica, SA, 2014
03 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de
Investigações do Ultramar; Lisboa - 1964
04 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de
Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964.
05 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de
Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964
06 - AYMERICH, Carlo; PESSÓA, José; ATZENI, Carlo; [et al.] – “Reabilitação urbana –
Mindelo”. edarq – Editorial do Departamento de Arquitectura, Coimbra: ecdj.10. (mar 2007)
07 - O Panorama nº141 (1840)
08 - O Occidente nº26 (15 jan 1879)
09 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de
Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964
10 - Fundação João Lopes, CIDADE VELHA – RIBEIRA GRANDE DE SANTIAGO. Praia -
Publicom, 2015
11 - AMARAL, Ilídio - Santiago de Cabo Verde: A Terra e os Homens; Memórias da Junta de
Investigações do Ultramar; Lisboa, 1964
12.1 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português
ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013
12.2 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português
ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013
13 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português
ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013
14 - MARIZ, Vera Félix - Cabo Verde no programa de salvaguarda do património português
ultramarino – o caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário (1962-1974), 2013
15 - KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos
e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 1987
16 - NETO, Maria João Baptista - Monumentos Nacionais - Memória, proganda e Poder (1929-
1960). COSTA, Marisa (coord.) - Propaganda e Poder. Lisboa, Edições Colibri, 2001
17 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-
emocoes/
18 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-
emocoes/
19 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
20 - Arquivo do autor
21 - LOPES FILHO, João – Defesa do património sócio-cultural de Cabo Verde. Lisboa,
Ulmeiro. 1985
22 - Estrela, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto:
FAUP, 2016
23 - Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez
1983)
24 - Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez
1983)

235
25 - Ponto & Vírgula – revista de intercâmbio cultural, Edições – Cabo Verde, 2006. (Nº8, dez
1983)
26 - Presença Cabo-verdiana – nº 19/20. Lisboa, Julho / Agosto, 1974
27 - http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-
fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx
28 - http://www.buala.org/pt/cidade/territorio-e-identidade-em-cabo-verde-debate-sobre-a-
fragil-construcao-identitaria-em-context#footnoteref9_wjjdakx
29 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
30 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
31 - Arquivo do autor
32 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
33 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
34 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
35 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
36 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
37 - http://www.monumentos.gov.pt/site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=7336
38 - arqa nº25 – Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha, Cabo Verde.
39 - Património Estudos nº5, IPPAR (2003)
40 - O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal:
midas, 2003. (DVD)(72 min)
41- O Arquitecto e a Cidade Velha. [filme] Realização de Catarina Alves Costa. Portugal: midas,
2003. (DVD)(72 min)
42 - República de Cabo Verde – “Cidade Velha, Centre historique de Ribeira Grande, Cap-Vert,
Proposition d’inscription sur la Liste du patrimoine mondial”. Ministre de la Culture, (Jan 2008)
43 – arqa nº25, (2004)– Pousada, Plano de Recuperação e Transformação da Cidade Velha,
Cabo Verde.
44 - Arquivo do autor
45 - Arquivo do autor
46 - Arquivo do autor
47- Arquivo do autor
48 - Arquivo do autor
49 - Arquivo do autor
50 - Arquivo do autor
51 – Valentim Lopes, Nuno - Projecto, Património Arquitectónico e Regulamentação
Contemporânea. Sobre Práticas de Reabilitação do Edificado Corrente. Porto: FAUP, 2016.
52 – Arquivo do autor
53 – Centro storico Salemi in https://pt.scribd.com/document/343923044/
MTQzODMyOTY2Ny0zNjc1ODk1MTUwLTc0MDYtNw
54 – Cremascoli, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di
architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014

236
55 – Cremascoli, Roberto - Álvaro Siza – Inside the Human Being – Mart, Quaderni di
architettura, Nouva serie 02 – Electa. Trento e Rovereto, 2014
56 – Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)
57 – Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)
58 – Domus nº 813. Milão: Editoriale Domus S.p.A (mar1999)
59 – Cortesia Adalberto Tavares
60 – Cortesia Adalberto Tavares
61 – Cortesia Adalberto Tavares
62 – Cortesia Elves Andrade
63 – Arquivo do autor
64 – Arquivo do autor
65 – Arquivo do autor
66 – Arquivo do autor
67 – Arquivo do autor
68 – Arquivo do autor
69 – Arquivo do autor
70 – Arquivo do autor
71 – Arquivo do autor
72 – Arquivo do autor
73 – Arquivo do autor
74 – Cortesia Elves Andrade
75 – Arquivo do autor
76 – Arquivo do autor
77 – Cortesia Elves Andrade
78 – Cortesia Egas Vieira
79 – Cortesia Egas Vieira
80 – Cortesia Egas Vieira
81 – Cortesia Egas Vieira
82 – Arquivo do autor
83 - KASPER, Josef E. - Ilha da Boa Vista – Cabo Verde: aspectos históricos, sociais, ecológicos
e económicos: tentativa de análise. Cabo Verde: Instituto Caboverdiano do Livro, 1987
84 - Cortesia Larissa Lazzari
85 - Cortesia Larissa Lazzari
86 – Arquivo do autor
87 – Cortesia Larissa Lazzari
88 – Cortesia Larissa Lazzari
89 – Cortesia Larissa Lazzari
90 – Cortesia Larissa Lazzari
91 – Cortesia Larissa Lazzari
92 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-
emocoes/
93 - http://nosgenti.com/larissa-lazzari-spinguera-eco-lodge-tempo-e-espaco-para-viver-
emocoes/
94 - El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011
95 - El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011
96 - El Croquis - AIRES MATEUS n. 154. Madrid: El Croquis Editorial, 2002-2011

237
97 - Cabo Verde: Praia do Estoril, projecto na ilha da Boavista in http://www.diarioimobiliario.
pt/Espacos-de-Autor/Cabo-Verde-Praia-do-Estoril-projecto-na-ilha-da-Boavista
98 - Cabo Verde: Praia do Estoril, projecto na ilha da Boavista in http://www.diarioimobiliario.
pt/Espacos-de-Autor/Cabo-Verde-Praia-do-Estoril-projecto-na-ilha-da-Boavista
100 - Cortesia de João Abel Mota
101 – Arquivo do autor
102 – Arquivo do autor
103 – Arquivo do autor
104 – Arquivo do autor
105 - Cortesia de Leão Lopes
106 – Arquivo do autor
107 - Cortesia de José Silva Paiva
108 – Arquivo do autor
109 - Cortesia de José Silva Paiva
110 - Cortesia de José Silva Paiva
111- LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014
112 – Arquivo do autor
113- LOPES, Ângelo - A prática de uma aprendizagem. Coimbra: FCTUC, 2014
114 – Arquivo do autor
115 - Estrela, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto:
FAUP, 2016
116 - Estrela, Paloma - SEDE DO ATELIER MAR, PROJECTO DE REABILITAÇÃO. Porto:
FAUP, 2016
117 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
118 - MANGA, Lembem Essamai - Cooperação Institucional e Gestão de Áreas Protegidas em
Cabo Verde: O Caso do Parque Natural da ilha do Fogo. Praia: ISE, 2013
119 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
120 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
121 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
122 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
123 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
124 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
125 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
126 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
127 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
128 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
129 – Cortesia de Ricardo Barbosa Vicente
130 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:
ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008
131 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:
ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008
132 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:
ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008
133 - LOPES, Nuno Ribeiro - Capelinhos – Centro de Interpretação do Vulcão. Açores:
ARGUMENTUM – Edições, Estudos e Realizações, 2008
134 - COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal –
la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018

238
135 - COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal –
la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018
136 - COSTA, Nuno Brandão; MAH, Sérgio - Public Without Rhetoric – Pavilhão de Portugal –
la Biennale di Venezia, 16.ª Exposição Internacional de Arquitetura. monade – Veneza, 2018

239
Lista de Acrónimos

IPC – Instituto do Património Cultural


UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
IPPAR – Instituto Português do Património Cultural
ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
PNF – Parque Natural do Fogo
CIV – Centro Interpretativo do Vulcão dos Capelinhos

241

Você também pode gostar