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Debate

O PERCURSO DA CLASSE TRABALHADORA: CONTRIBUIÇÕES ESPACIAIS AO


MATERIALISMO HISTÓRICO A PARTIR DA OBRA ENGELSIANA

LA RUTA DE LA CLASE OBRERA: CONTRIBUCIONES DEL ESPACIO AL


MATERIALISMO HISTÓRICO DESDE LA OBRA ENGELSIANA

THE WORKING CLASS ROUTE: SPATIAL CONTRIBUTIONS FROM ENGELSIAN WORK


TO THE HISTORICAL MATERIALISM

DOI: http://doi.org/10.9771/gmed.v13i2.39230

Cláudio Rezende Ribeiro1

Resumo: O artigo aborda a obra engelsiana estabelecendo um entendimento do espaço na constituição do


materialismo histórico. Reivindica uma dialética da cooperação como experimentação aberta do materialismo
histórico capaz de alimentar interpretações fecundas sobre a classe trabalhadora. Percorre obras clássicas para
explorar as contribuições relacionadas à espacialidade a partir de um duplo ponto de vista. Primeiramente, a
demarcação classista que envolve a experimentação epistemológica de acompanhar a movimentação de trabalhadores
no espaço do capitalismo. Em segundo lugar, desdobramentos e entrecruzamentos teóricos a partir de obras
marxistas que reforçam o viés espacial para análise da realidade.

Palavras-chave: Engels. Materialismo histórico. Espaço. Metodologia. Classe trabalhadora.

Resumen: El artículo aborda la obra engelsiana estableciendo una comprensión del espacio en la constitución del
materialismo histórico. Reclama una dialéctica de la cooperación como una experimentación abierta del materialismo
histórico capaz de alimentar interpretaciones fructíferas sobre la clase trabajadora. Pasa por obras clásicas para
explorar los aportes relacionados con la espacialidad desde un doble punto de vista. Primero, la demarcación de
clases que implica la experimentación epistemológica de seguir el movimiento de los trabajadores en el espacio del
capitalismo. En segundo lugar, desarrollos teóricos de obras marxistas que refuerzan el aspecto espacial para el
análisis de la realidad.

Palabras-clave: Engels. Materialismo histórico. Espacio. Metodología. Clase trabajadora

Abstract: The paper approaches the Engelsian work establishing an understanding of space in the constitution of
historical materialism. It claims a dialectic of cooperation as an open experimentation of historical materialism
capable of feeding fertile interpretations about the working class. The paper visit classic works to explore the
contributions related to spatiality from a double point of view. First, the class demarcation that involves the
epistemological experimentation of following the movement of workers in the space of capitalism. Second,
theoretical developments and intersections from Marxist works that reinforce the spatial bias for the analysis of
reality.

Keywords: Engels. Historical materialism. Space. Methodology. Working class.

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Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.13, n.2, p.251-270, ago. 2021. ISSN: 2175-5604
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Introdução
Em março de 2020, incontáveis fluxos de capital foram interrompidos quando a Organização
Mundial de Saúde elevou o estado da contaminação do novo Corona vírus (Sars-Cov-2), devido à rapidez
de sua disseminação geográfica, para a classificação de pandemia. Os processos de troca de mercadorias
precisaram ser rapidamente adaptados, favorecendo, após ligeira instabilidade, um crescimento vertiginoso
de empresas que operam com a logística de fluxos urbanos de mercadorias como Amazon, Uber, Ifood e
demais proprietárias de sistemas que exploram as combinações de softwares georreferenciados, logística
varejista e aplicativos de celulares.
As “pernas de obra”, juntamente à categoria de “motoristas de aplicativo”, se tornarão,
progressivamente, a expressão e representação mais evidente das atualizações dos processos de trabalho
contidos no modo capitalista de produção do século XXI. Os fluxos urbanos, que se tornam cada vez
mais os lugares centrais de realização do capital, possibilitarão, do mesmo modo, a formação de novas
movimentações de resistência, como por exemplo, a realização de seguidas manifestações e paralisações de
entregadoras (es) de aplicativos organizados em coletivos que têm agitado diversas cidades brasileiras,
convocando a luta por direitos e tumultuando a redes de fluxos de veículos e dados, nos espaços digital e
presencial, simultaneamente.
O amadurecimento do século XXI indica a existência de uma complexidade das determinações
do capitalismo contemporâneo que aceleram, mesclam e reconfiguram as contradições existentes entre
tempo e espaço (da produção, do consumo, da reprodução). A velocidade atual dos fluxos de capital
organizados pela tecnologia digital-financeira encontra expressão na aceleração violenta de processos de
desemprego, migrações forçadas, desestruturações urbanas, crises sanitárias e continuados desastres
socioambientais.
Para enfrentar este cenário, é necessário aprofundar e ampliar as categorias de análise das
determinações contemporâneas. O desvelamento das aparências do capital numa era que deriva de um
longo período de sua espetacularização exige, ao mesmo tempo, experimentação e rigor teórico com o fim
de produzir uma crítica à essência do modo de produção em sua forma contemporânea. As questões mais
complexas, certamente, são identificar, compreender, localizar e reconhecer as múltiplas conformações da
classe trabalhadora enquanto sujeito social ativo e capaz de expressar as determinações e contradições
atuais do capital, seja por meio de suas reivindicações, ou através de suas formas de exploração.
Uma das maneiras de encontrar respostas para estas questões complexas e fundamentais é
compreender como elas foram perseguidas no momento original de formulação do materialismo histórico.
A obra original de Marx e Engels carrega consigo a história desta busca, isto é, o reconhecimento,
teorização e organização da classe trabalhadora é um processo complexo, com muitas contradições e,
certamente, repleto de experimentações que servem, no mínimo, de inspiração para as buscas
contemporâneas. De modo mais específico, este breve artigo pretende demonstrar como certas
contribuições engelsianas carregam uma riqueza metodológica que deve ser acionada cada vez mais. Serão
explorados alguns aspectos de sua obra que podem auxiliar o surgimento de leituras da realidade a partir
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de elementos geográficos, isto é, um entendimento da materialidade segundo aspectos espaciais que


introduzem formas de percepção das determinações concretas capazes de ampliar a utilização teórica do
materialismo histórico
Algumas áreas do saber relacionadas à produção do espaço (arquitetura e do urbanismo, por
exemplo) são pouco afeitas à utilização do materialismo histórico2, o que ocorre, em parte, devido a um
inegável viés político teórico pós-moderno que hegemoniza o campo. Mas, para além deste fator, é
inegável que a maneira através da qual estas áreas constroem teoricamente sua apreensão da realidade se
afasta da descrição do concreto mais usual do campo do materialismo histórico, isto é, uma percepção da
formação de valor a partir das relações temporais de exploração que levarão diretamente a formulações
econômicas que, muitas vezes, são descritas de maneira descolada de uma realidade geográfico-espacial.
Acontece que a reprodução capitalista contemporânea exige um envolvimento mais abrangente de
diferentes campos do saber para dar conta de suas complexidades, e as áreas que atuam na conformação
de mercadorias complexas como as cidades e suas formas adquirem papel central na circulação do capital.
É preciso, portanto, ampliar as possibilidades de percepção materialista da realidade a fim de estimular
novas contribuições ao entendimento dos fluxos contemporâneos do capital que são imprescindíveis e
incontornáveis dado o caráter urbano especulativo de parte importante do capital global.
A obra de Engels é repleta de exemplos que podem auxiliar a ampliação do arcabouço teórico a
respeito do materialismo histórico, e alguns deles serão tratados neste artigo a partir de três elementos. O
primeiro será nomeado como a dialética da cooperação, indicando a fertilidade de um certo viés coletivo de
produção da obra de Engels, que pode ser encarado como elemento metodológico capaz de contribuir
para a inclusão de vários campos do saber e fazer no que tange à centralidade da produção teórica do
materialismo histórico contemporâneo. Em seguida, será indicado um percurso metodológico de A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra como forma de apreensão material da realidade histórica a partir de
elementos da espacialidade social que remetem a possíveis aberturas dialógicas do campo do marxismo a
fim de estabelecer perguntas sobre o lugar contemporâneo da classe trabalhadora. O terceiro elemento do
texto, materialsmo, espaço e experimentação metodológica, será uma breve exploração de alguns caminhos teóricos
que partem da produção do espaço para entender a complexidade do capitalismo a fim de indicar
possibilidades de outras aberturas na mesma direção da obra de Engels.
Sem nenhuma intenção de tentar delimitar alguma originalidade que destaque a obra de Engels
como uma teoria independente, as reflexões a seguir pretendem indicar o potencial criativo e fértil do
materialismo, que só tem a ganhar com novas, desde que rigorosas, interpretações. O pensamento
engelsiano, pelo contrário, é melhor aproveitado quando estabelece uma cooperação com outras obras,
possibilitando o surgimento de formulações que podem ser capazes de construir questões necessárias para
traduzir e enfrentar a fase contemporânea do modo de produção capitalista.

A dialética da cooperação

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Não me passou pela cabeça retirar do texto as várias profecias – especialmente aquela
sobre uma iminente revolução social na Inglaterra – devidas ao meu entusiasmo
revolucionário daqueles anos. Não tenho nenhum motivo para apresentar o meu
trabalho e a mim mesmo como se fôssemos melhores do que realmente éramos.
(ENGELS, 2007, p. 351)
Esta citação foi retirada do Prefácio à edição alemã de 1892 de A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra. Quarenta e sete anos depois da primeira versão, Engels assume uma postura madura em relação
ao texto da juventude, uma obra que se tornou incontornável, ainda hoje, para a compreensão do modo
capitalista de produção. O autor situa seu texto historicamente, mantendo “a nítida marca da juventude de
seu autor” (ENGELS, 2007, p.345), e estabelecendo um diálogo a respeito das consequências da
revolução industrial que aponta também a juventude de um modo de produção em franca transformação.
De certo modo, a própria consideração a respeito das profecias não cumpridas ganha um
sentido complexo, isto é, indica que mesmo uma construção teórica rigorosa e fértil como a realizada em
A situação3 pode desembarcar em interpretações errôneas e precoces, o que significa que a teoria ali
indicada, apesar de correta, é insuficiente para abarcar a complexidade de um processo revolucionário. O
velho Engels opta por estabelecer um encontro crítico com o jovem Engels, repetindo um movimento de
cooperação de pensamentos que ele realizou a vida toda ao construir seu edifício teórico.
A obra engelsiana pode ser determinada por uma especificidade dialética historicamente
construída a partir da solidariedade intelectual de seu autor. A radicalidade de sua teoria encontra suporte
em uma práxis que assumiu a construção coletiva como uma condição necessária de trabalho orientado
para a movimentação da classe trabalhadora. Seu ápice, pelo óbvio, será o constante e infalível suporte
afetuoso, material e intelectual que manteve com Marx.
Esta solidariedade sustentou-se na certeza de que seu trabalho de cooperação com o “Mouro”
possibilitaria o surgimento de uma obra importante para a luta de classes, “de modo que se assegur[ass]e,
cada vez mais, a satisfação de todas as necessidades racionais de cada pessoa” (ENGELS, 2019, p.12). A
sensibilidade engelsiana de reconhecimento do encontro teórico ou político assume a dependência como
uma determinação positiva, isto, é a solidariedade se torna um modo de produção de textos, manifestos e
ações contestatórias que encontra rebatimento em uma cooperação entre as ideias e ações.
Pode parecer, portanto, uma contradição de termos buscar em Engels uma contribuição isolada
para o materialismo histórico, na medida em que sua obra se constitui em rigoroso e permanente esforço
metodológico estabelecido em um comportamento intelectual que será nomeado neste artigo como
dialética da cooperação. Assim, uma leitura aproximativa dos textos clássicos do materialismo histórico a
partir dos escritos de Engels pode se tornar mais fértil à medida em que é assumida uma postura de
incompletude de sua obra, isto é, uma posição metodológica que localiza os textos de Engels como uma
chave de abertura para novas contradições.
Ao mesmo tempo, a dialética da cooperação pode também ser compreendida como um
chamado à ação, como um duplo movimento entre mão e cérebro, a fim de instaurar maneiras
transformadoras de entendimento e mudança da sociedade de classes. A síntese da obra de seu

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companheiro de toda uma vida no “Discurso diante do túmulo de Karl Marx” traz elementos que ajudam
a conformar o que pode ser entendido e experimentado como uma dialética da cooperação:

Cooperar, desta ou daquela maneira, no derrubamento da sociedade capitalista e das


instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno,
a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das
suas necessidades, a consciência das condições de sua emancipação – esta era a sua real
vocação de vida. (ENGELS, 2020, p.34)
Parece revelador, ao mesmo tempo que é belo, o reconhecimento da cooperação de Marx com a
classe trabalhadora significar nestas palavras um dos maiores feitos de seu amigo e interlocutor. A
consciência da importância colaborativa é também revelada em diversas cartas dirigidas a Marx e seus
familiares, ou mesmo em prefácios de livros nos quais o revolucionário pensador sempre destacava o seu
trabalho realizado em parceria como uma maneira proposital de estabelecer uma divisão solidária do
trabalho capaz de aproveitar o melhor de cada um a fim de somar as forças em nome de uma ação
transformadora:

Em consequência da divisão do trabalho acordada entre mim e Marx, cabia-me


defender nossas concepções na imprensa periódica e principalmente, portanto, na luta
contra opiniões adversárias, para que Marx dispusesse de tempo para elaborar sua
grande obra principal. (ENGELS, 2015, p.28)
Esta “dialética da cooperação”, certamente, não deve ser direcionada a trocas teóricas fundadas
em um idealismo vazio de ação. Ela deve ser compreendida, inclusive, na centralidade que a luta política
exercerá na construção da obra materialista por parte de Engels e Marx. A cooperação encontra sua
dialética na busca constante de diálogos teóricos e políticos que ganham síntese em expressões concretas
da solidariedade de classe em suas lutas. Uma produção apoiada nas ideias engelsianas não pode se
alimentar de interlocuções afastadas das disputas sociais concretas, sob o risco da reprodução de um
idealismo, uma mera interdisciplinaridade incapaz de produzir a movimentação de categorias, de
pensamentos e das lutas.
O caráter de abertura que o pensamento de Engels estimula, além de reconhecer uma
dependência solidária entre pensamentos, orienta um reconhecimento da luta da classe trabalhadora
enquanto um gesto produtor da inteligência humana. A noção do trabalho como elemento histórico
central das transformações sociais será compreendida como uma síntese da indissociável cooperação entre
ação e pensamento:

Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada


indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a executar
operações cada vez mais complexas, a se propor e alcançar objetivos cada vez mais
elevados. (ENGELS, 2020, p.429)
Uma dialética da cooperação, portanto, sugere experimentar os textos de Engels como uma obra
receptível, sempre em busca de uma complementaridade compromissada e fértil. Visto por outro lado,
seus textos podem servir como um constante convite à experimentação de interpretações materialistas
que, ao buscar elementos de cooperação, sejam capazes de enxergar e evidenciar questões ocultas dentro

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do complexo desenvolvimento do modo capitalista de produção, identificando chaves de interpretação


capazes de abrir novos posicionamentos dialéticos e inaugurando outros ciclos de abertura teórica.
Esta forma de apropriação dos seus textos pode abrir uma gama de interpretações capazes de
ventilar as ideias necessárias para o tratamento de questões teóricas e políticas complexas, como a respeito
do lugar e atuação da classe trabalhadora na contemporaneidade. Retomar de forma aberta, por exemplo,
os textos do jovem Engels, exercitando uma dialética da cooperação, isto é, reconhecendo seus elementos
de incompletude e seu esforço em preenchê-los, pode ser um exercício importante na construção de
perguntas necessárias para a interpretação histórica das lutas contemporâneas. Esta possibilidade se
ampara na busca pela compreensão das questões feitas por Engels, e da maneira através da qual ele as
construiu, ao interpelar qual a configuração da classe.. Pode surgir, assim, uma contribuição valiosa para
que as dúvidas originais sejam retomadas a fim de fomentar atualizadas formas de entendimento a respeito
da configuração da classe trabalhadora no século XXI.
A busca pelas determinações contemporâneas da realidade capitalista exige experimentações do
materialismo histórico por novas áreas, ou por campos tradicionalmente pouco afeitos à crítica marxista
de forma geral ou com pouco acúmulo teórico a partir dele (arquitetura, urbanismo, design, computação,
publicidade, programação etc.). O método do materialismo histórico, quando dialoga com campos pouco
estudados nos textos originais, cria categorias que abrem novas perspectivas e tornam mais densa a
camada teórico-política, contribuindo assim de maneira estratégica para a apreensão da totalidade. Esta
cooperação sugere que a constituição do materialismo histórico deve incorporar críticas advindas de
diversas áreas a fim de alimentar de forma abrangente as críticas a uma realidade contraditória e cada vez
mais complexa. Isto pode ampliar a capacidade de conquista e convencimento da construção deste
método de análise que toma como pressuposto a visão social de mundo da classe trabalhadora. A seguir,
será experimentada uma interpretação da delimitação da classe trabalhadora feita pelo jovem Engels, na
primeira metade do século XIX, a fim de evidenciar uma determinação chave: o espaço, que possibilita a
abertura de caminhos para cooperações teóricas contemporâneas capazes de incorporar o materialismo
histórico.

O percurso metodológico de “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”

Se era realidade o que Marx estava procurando, ele a encontrou em Manchester. Antes
dessa viagem jamais conhecera efetivamente a vida proletária, e era improvável que já
tivesse experimentado alguma coisa que pudesse prepará-lo para a degradação da
humanidade que viu ali. Ele havia encontrado trabalhadores de Paris, mas apenas para
ouvir suas histórias. Agora estava afundado até os joelhos em detrito industrial, físico e
espiritual. As visões, os cheiros e os sons angustiados daquele lugar devem ter sido
chocantes. Marx era, afinal, um intelectual da classe média casado com uma aristocrata,
que viajava percorrendo círculos de cultura. Embora havia muito criticasse aqueles que
enganavam com a teoria, a verdade é que também fizera o mesmo. Mas não o faria
mais." (GABRIEL, 2013, p.1843)
Quem conduziu Marx nesta imersão à realidade material da classe trabalhadora inglesa foi
Engels, quando levou seu amigo para conhecer diversas cidades industriais daquele país no ano de 1845.
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Para além do caráter antropológico da experiência, é importante ressaltar seu componente geográfico que
inclui uma materialidade percebida através da concretude incorporada em elementos que constituem o
próprio espaço. Trata-se de um percurso metodológico (RIBEIRO, 2009, p.91), um deslocamento no
espaço que movimentou também o pensamento, isto é, uma compreensão da realidade que é tributária de
uma posição (e lugar) político-epistemológica, condição que se tornará fundamental para o materialismo
histórico que estava em pleno desenvolvimento.
O fator espacial desta experiência de Marx proporcionada por Engels deve ser posto em relevo
para identificar um elemento da obra engelsiana que pode se tornar uma chave de diálogo com diversos
campos do saber. Uma abordagem de aproximação (e descoberta) do materialismo histórico a partir de
um reposicionamento epistemológico, a partir do deslocamento da visão social de mundo que conforma
uma movimentação teórica. Esta abordagem materialista, que pode ser, inclusive, capaz de auxiliar a
delimitar o perfil da classe trabalhadora contemporânea, está ancorada em um elemento profundamente
material, mas que muitas vezes não é enxergado como tal, que é o próprio espaço. A materialidade do
espaço é tão notória e imprescindível que se torna, em muitas interpretações, naturalizada, a-histórica, ou
mesmo inexistente; pode ser necessário retornar a enxergar o espaço, a percebê-lo como algo concreto
para que ele comece a ser compreendido, também, como um operador metodológico indispensável. A
dialética da cooperação, portanto, ao mesmo tempo em que pode permitir um entendimento do
materialismo histórico a partir de uma leitura espacial da realidade, deve ser capaz de permitir um
entendimento do espaço como operador metodológico que aprofunda a utilização do método do
materialismo histórico.
A obra de Engels continua a conduzir seus leitores da mesma forma que seu autor fez,
presencialmente, com Marx. Para expor a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, no livro que é um
dos mais citados por Marx no Volume 1 de “O capital”, lança mão de um argumento estruturado na
espacialidade das grandes cidades industriais inglesas a fim de revelar uma materialidade eclipsada pela
lógica dominante.
Este movimento aparece de maneira condensada no segundo capítulo do livro, “As grandes
cidades”, e um de seus principais objetivos reside na denúncia de uma alienação social coletiva: a ocultação
do lugar da produção. Trata-se de um dos capítulos que melhor representa a proeminência e a necessidade
da construção de uma visão social de mundo alimentada pela lógica da produção, guiando o pensamento
para além da aparente esfera do consumo que, sem desconsiderar sua importância, é conformadora de
uma visão enviesada da realidade quando tomada enquanto totalidade. Entretanto, este debate não aparece
de maneira óbvia, tampouco surge como a construção mais acabada de uma determinada categoria, como
mais tarde será elaborado por Marx. Engels, neste momento de amadurecimento e experimentação do
método, demonstra, a partir da materialidade espacial encarnada na desigualdade urbana, que o lugar de
reprodução social das classes proprietárias se torna a representação hegemônica da cidade, o que impõe
necessariamente a ocultação dos espaços de reprodução social da classe trabalhadora. Ao exigir e
reivindicar estes espaços periféricos como uma centralidade da cidade capitalista, denunciando inclusive a
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condição desigual das cidades industriais, seu argumento apresenta de maneira muito inteligente a
necessidade de situar este lugar da classe no centro da história, o que deve ser extrapolado, obviamente,
para a percepção da realidade através da esfera da produção.
Este famoso capítulo de “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” costuma ser
destacado, sobretudo, pela maneira precisa e crítica das descrições das condições de vida de trabalhadoras
e trabalhadores da Inglaterra do século XIX que, por sua vez, tornaram-se quase um “equivalente
universal” das condições de reprodução social das cidades industriais capitalistas mundo afora. Além de
precisa, a testemunha ocular assumida por Engels possui um caráter raro e precioso de um sujeito
observador (e participante) que transitava com facilidade pelos salões e festas dos proprietários dos meios
de produção assim como pelas festas e salas da classe trabalhadora.
A originalidade de sua obra é inconteste, Engels é considerado, inclusive, um dos formuladores
da expressão revolução industrial, confirmando sua perspicácia em apontar as mudanças materiais latentes
na sociedade; e esta obra também apresenta o conceito, cada vez mais contemporâneo, de assassinato
social, confirmado cotidianamente na reprodução das grandes cidades capitalistas de todo o globo. Do
mesmo modo, antes mesmo da primavera dos povos acontecer, antes mesmo das reformas
Haussmannianas reafirmarem Paris e França no centro do poder do mundo ocidental, o autor apontará
que a nação que prevalecerá como organizadora do mundo capitalista em amadurecimento será os
Estados Unidos da América. Sua perspicácia analítica, mesmo com as “várias profecias” oriundas de um
“entusiasmo revolucionário” revelam uma solidez metodológica que já estava presente em seu
pensamento.
A consistência de seu método encontra uma formação plena neste segundo capítulo que, de
maneira superficial, costuma ser reduzido a uma parte mais descritiva da obra. Esta apreensão aligeirada
acaba por ocultar um aspecto fundamental para a compreensão de um lugar essencial da obra de Engels
para o desvelamento da situação da classe trabalhadora contemporânea. Como já relacionado, da mesma
forma que Engels conduziu Marx pelas cidades inglesas, ele direciona o leitor de sua obra. Este percurso
possui um elemento pedagógico e metodológico que pode ser percebido como uma introdução, ou uma
apresentação, à necessária mudança de posição em relação à visão social de mundo por parte de quem
almeja construir um pensamento e uma teoria classistas. Podemos afirmar que existe, neste capítulo, de
forma subentendida, uma experimentação de um materialismo geográfico:

Não conheço nada mais imponente que a vista oferecida pelo Tâmisa, quando se sobe
o rio, do mar até a ponte de Londres. A massa constituída pelo casario, os estaleiros em
ambos os lados, sobretudo acima de Woolwich, os incontáveis navios dispostos ao
longo das duas margens, apertando-se sempre mais uns contra os outros a ponto de só
deixarem livre uma estreita passagem no meio do rio, na qual se cruzam velozmente
centenas de barcos a vapor – tudo isso é tão extraordinário, tão formidável, que nos
sentimos atordoados com a grandeza da Inglaterra antes mesmo de pisar no solo inglês.

[...]Depois de pisarmos, por uns quantos dias, as pedras das ruas principais, depois de
passar a custo pela multidão, entre as filas intermináveis de veículos e carroças, depois
de visitar os “bairros de má fama” desta metrópole – só então começamos a notar que
esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor parte de sua condição de homens para

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realizar todos esses milagres da civilização de que é pródiga a cidade […] (ENGELS,
2007, p.67)
Ora, o trajeto de chegada da mercadoria pelo porto que, mais tarde, conduzirá o leitor para
outros caminhos que excedem as vitrines de exposição e venda, nada mais é do que uma forma original de
apresentar a esfera da produção como o lugar oculto, a história não revelada da mercadoria. O
deslocamento geográfico de sua escrita é um potente instrumento de movimentação do pensamento que
exercita a crítica necessária que o materialismo exige para desvelar o fetiche da mercadoria: afinal elas não
são deus ex machina, muito pelo contrário, possuem história mas, também, possuem um percurso:

Manchester é construída de um modo tão peculiar que podemos residir nela durante
anos, ou entrar e sair diariamente dela, sem jamais ver um bairro operário ou até
mesmo encontrar um operário – isso se nos limitarmos a cuidar de nossos negócios ou
a passear. […]

Manchester tem, em seu centro, um bairro comercial bastante grande, com cerca de
uma milha e meia de comprimento e outro tanto de largura, composto quase
exclusivamente por escritórios e armazéns (warehouses). […] Nessa zona há algumas
ruas grandes, que concentram o tráfego, e o térreo das edificações é ocupado por lojas
luxuosas; aí se encontram uns poucos pavimentos superiores habitados e nela reina, até
alta noite, uma certa animação. Excetuada essa zona comercial, toda a Manchester
propriamente dita […] não é mais que um único bairro operário que, com uma largura
média de uma milha e meia, circunda como um anel a área comercial. A alta e a média
burguesia moram fora desse anel. (ENGELS, 2007, p.89)
Em toda obra original de Marx e Engels, dificilmente será encontrada passagem tão elucidativa a
respeito da contradição entre a esfera do consumo, seu lugar ideológico, e a ocultação da produção. Como
já foi dito, isto não aparece de maneira óbvia, mas a partir das relações que organizam a vida do sujeito
coletivo que vivencia esta esfera de maneira impositiva: a classe trabalhadora. Caso a pessoa se limite a
cuidar de negócios ou passear pela cidade de Manchester, hábitos que configuram o cotidiano da classe
proprietária – mas também uma referência geral devido à imposição da visão social da classe dominante –
ela não encontrará, ou reconhecerá, um operário, tampouco seu lugar de moradia e reprodução social –
mesmo se esta pessoa for um operário, podemos acrescentar. Entretanto, de forma profundamente
contraditória, Manchester se apresenta, materialmente, como uma ilha de consumo cercada de produção
por todos os lados já que toda a cidade “não é mais que um único bairro operário”. É descrevendo o
sujeito social que opera na esfera da produção que Engels constrói a crítica à hegemonia da esfera do
consumo como senso comum organizado pela classe dominante. Ao mesmo tempo, a crítica engelsiana
reivindica a esfera produtiva como lugar privilegiado de análise social sem descuidar de evidenciar a
importância daquelas e daqueles que lá habitam. A mercadoria que circula pela cidade não foi apenas
produzida em um lugar oculto pela esfera imediata do consumo, mas por trabalhadoras e trabalhadores.
A busca constante do caminho percorrido pelas mercadorias, conforme organizado pelo
materialismo histórico, faz parte de um método que propicia, ou garante, a desvelação do lugar
aparentemente estático e imediato da mercadoria pronta para o consumo, percorrer sua história significa
revelar o trabalho como a substância de seu valor, criando questões transformadoras durante este
caminhar. As formulações engelsianas, acompanhadas da descrição dos locais de habitação da classe

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trabalhadora, podem ser identificadas como constituidoras, não de forma exclusiva, porém determinante,
de uma espécie de embrião metodológico do que será apresentado mais tarde nas demais obras dos dois
autores originais.
É possível experimentar, portanto, a ideia de que o materialismo histórico se ancora, também,
na geografia, isto é, numa crítica que se revela a partir da configuração da materialidade espacial como
fonte de constituição ideológica e, também, da condição metodológica de deslocamento do lugar, ou da
posição, de observação da realidade. O desvelamento do trabalho como substância do valor, elemento
indispensável para as formulações marxianas referentes à lei geral da acumulação, por exemplo, percorre
necessariamente um caminho de ruptura com a epistemologia da classe dominante. Para que isso ocorra, é
fundamental que o pensamento seja reposicionado, redirecionado e assuma uma direção e um sentido de
combate, resistência e contraponto a uma visão de mundo que se apoia num horizonte de acomodação na
medida em que é incapaz de “encontrar um operário”, e é formulada por quem trabalha para aqueles que
se limitam “a cuidar de nossos negócios”.
Este mesmo elemento pode ser identificado em O Capital. Marx, em sua obra maior, realiza uma
movimentação que se aproxima de um deslocamento espacial do pensamento, adotando um percurso
metodológico preciso e explícito para evidenciar parte de sua formulação crítica à economia política
burguesa4. Com sua peculiar carga teatral, a mudança de posição assumida no texto de Marx é anunciada
em uma transição importante de seu livro, entre a Seção II “A transformação do dinheiro em capital” e a
Seção III “A produção do mais-valor absoluto”. Esta última, por sua vez, inicia-se com o revelador e
fundamental capítulo 5 “O processo de trabalho e o processo de valorização”. Para alcançar, portanto, o
lugar da produção como revelador da geração de valor, e para descrever como caráter social do trabalho se
torna história, Marx apresenta, ao final do capítulo 4 uma mudança do cenário em que seu texto vai atuar
a partir daquele ponto:

[…] O consumo da força de trabalho, assim como o consumo de qualquer outra


mercadoria, tem lugar fora do mercado ou da esfera da circulação. Deixemos, portanto,
essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e
acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto
da produção, em cuja entrada se lê: No admittance except on business [Entrada permitida
apenas para tratar de negócios]. Aqui se revelará não só como o capital produz, mas
como ele mesmo, o capital, é produzido. O segredo da criação de mais-valor tem,
enfim, de ser revelado. (MARX, 2013, p.250).
Adentrar o lugar onde “apenas se trata de negócios” é um deslocamento epistemológico
necessário para a apresentação do funcionamento do modo capitalista de produção. A cooperação entre
os dois textos aqui trabalhados pode ser percebida através de duas formas diferentes de adentrar este
espaço. Por um lado, Engels parte da consideração que encarar a cidade com o olhar de quem apenas
cuida dos negócios significa ocultar os trabalhadores desta paisagem para, então, conduzir o leitor aos
espaços, antes fantasmagóricos, onde a classe trabalhadora realiza sua materialidade. A movimentação de
Marx reforça este caráter, mas inverte o sentido do percurso para chegar no mesmo lugar. Em vez de
demonstrar qual é o lugar da reprodução da classe trabalhadora na cidade, Marx invadirá a esfera da
produção para observá-la de perto. Se em Engels, o percurso denunciava a maneira como o olhar do
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capitalista oculta a vida do trabalhador, em Marx o percurso denunciará, através do olhar do trabalhador, a
farsa do capitalista que, na esfera do consumo, apresenta-se como o produtor da riqueza social:

Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de


onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar
a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa
transformação, ao que parece, na fisiognomia de nossas dramatis personae
[personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como
capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com
um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante,
como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a
esperar além da...despela. (MARX, 2013, p.251)
Este possível percurso geográfico do materialismo histórico contido nas duas obras é repleto de
uma dialética permanente. Parece salutar uma apropriação de “A situação...” como uma obra aberta e que
deve ser lida de maneira complementar a “O capital”, e vice-versa, reforçando, como apresentado no
início deste texto, mais um aspecto originado de certa dialética da cooperação. Obviamente, a leitura
conjugada de textos é uma prática conformadora da academia de forma geral, e tampouco as relações
entre as obras citadas se encerram no que foi apresentado, mas o destaque indicado neste artigo surge
como uma especificidade metodológica, oriunda da espacialização do pensamento, que pode proporcionar
apreensões necessárias ao desvelamento do capitalismo contemporâneo.
O materialismo histórico produziu, ao longo do século XX e XXI, diversas interpretações da
realidade a partir de apreensões e aproximações do método organizadas segundo determinações oriundas
da produção do espaço, acompanhando um dos temas que Engels se dedicou de maneira mais detida que
seu parceiro. De modo geral, são obras que necessitam extrapolar uma ortodoxia marxista, isto é, são
produções teóricas que demandam a criação de categorias específicas pois enfrentam problemas originais.
Estas obras carregam uma certa audácia teórica que se remete a um momento de criação teórica no qual o
método do materialismo ainda estava em construção, experimentando interpretações e formulando suas
categorias, como também ocorre em “A situação...”. Estas produções indicam uma diversidade teórica que
deve ser estimulada dentro do campo do materialismo a fim de apontar elementos que podem passar
despercebidos de uma apropriação da realidade que trate o método com rigidez e tenha pouca
disponibilidade à cooperação teórica.

Materialismo, espaço e experimentação metodológica

A relação da obra engelsiana com o espaço não se encerra em “A situação...” e, mesmo naquela
obra, não se limita aos termos já indicados. A fertilidade de seu pensamento relacionado à espacialidade
encontra eco em muitas outras produções teóricas tais como o período “urbano” de Henri Lefebvre, ou a
obra de Milton Santos. O diálogo com Engels, que varia em intensidade, surge como um fator
determinante para a construção de uma tradição materialista organizada segundo o estudo da produção do
espaço, seja, por exemplo, através de críticas à sua negação das utopias como faz Lefebvre, ou através da

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incorporação de sua percepção a respeito do caráter necessariamente classista expresso na organização


urbana como, por exemplo, também o faz Lefebvre.
O filósofo francês, ao formular o conceito de “direito à cidade”5 (LEFEBVRE, 2004), parte do
pressuposto de que, para entender as contradições do capitalismo contemporâneo (final da década de
1960) é preciso acompanhar sua movimentação no espaço e, assim, adentrar a condição urbana como
fator inexorável e hegemônico de seu desenvolvimento. Para interpretar o espaço urbano como síntese
das múltiplas determinações daquele momento histórico, Lefebvre lançará mão do conceito de “direito à
cidade” que apresenta uma interpretação sobre a relação entre tempo, espaço e trabalho. Resumidamente,
a reivindicação pelo direito à cidade parte de uma consideração de que a cidade se torna um espaço
alienado, de onde a classe trabalhadora quer fugir para se reencontrar consigo mesma, durante seus finais
de semana, suas férias, em direção à natureza. A alienação do trabalho, que produz um não
reconhecimento (e uma não apropriação) pela classe trabalhadora de sua própria obra, é percebida de
maneira original por Lefebvre. Sua formulação, portanto, identifica na fuga da cidade uma expressão da
fuga do trabalho, e a busca pela natureza como apenas uma ilusão de encontro consigo mesmo, mas uma
real expansão da mercantilização da vida que alcançará novas fronteiras. Assim, seu conceito produz uma
contestação, uma necessidade de retomada da cidade, e do trabalho (e da produção) pela classe
trabalhadora em uma direção de construção de um poder político emancipatório e revolucionário. O
direito à cidade requer uma ruptura com as condições de trabalho organizadas segundo o modo de
produção capitalista. Assim como Engels localiza, na espacialidade desigual, uma condição de realização
da desigualdade capitalista, Lefebvre encontrará no espaço alienado uma expressão da alienação capitalista
de forma geral.
A inspiração dialética engelsiana é bastante fértil e as determinações observadas por ele
demonstram como a presença material do espaço deve ser incorporada por formulações teóricas na
direção da construção de uma totalidade transformadora e crítica. Alguns exemplos que auxiliam a
compreensão sobre este lugar de crítica podem ser extraídos de sua obra “Sobre a questão da moradia”,
escrita entre 1872 e 1873. Primeiramente, uma possibilidade de compreensão, pelo viés espacial, das
diferentes configurações do modo capitalista de produção dentro do próprio continente europeu. O
entendimento histórico do amadurecimento do capitalismo é um elemento fundamental para qualquer
análise a respeito das contradições materiais oriundas deste sistema. Logo na apresentação da obra
mencionada, Engels constrói um panorama teórico para situar o problema de inadequação da tentativa de
importação alemã das propostas de soluções habitacionais inglesas que são criticadas no corpo do texto.
Para esse fim, Engels incorpora relações espaciais da lógica produtiva que ajudam a revelar que a forma de
amadurecimento do capitalismo alemão não pode ser a mesma que ocorreu em França e Inglaterra:

Contudo, com a expansão da indústria doméstica, as regiões camponesas são arrastadas


uma a uma para o movimento industrial do presente. É essa revolução dos distritos
rurais pela indústria doméstica que faz a Revolução Industrial na Alemanha expandir-se
por um território bem mais vasto do que aquele na Inglaterra e na França; o que torna a
expansão geográfica de nossa indústria tanto mais necessária é sua qualidade
relativamente baixa. Isso explica por que, na Alemanha, em contraste com a Inglaterra e
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a França, o movimento revolucionário dos trabalhadores se disseminou tão


poderosamente por grande parte do campo, ao invés de permanecer ligado
exclusivamente aos centros urbanos. (ENGELS, 2015, p.34-5)
Sua argumentação adianta reflexões de um campo próximo ao planejamento regional,
ancorando a crítica a partir do entendimento material e locacional das determinações da produção. A
espacialidade conformada pela disseminação do capital em formações tais como nações, regiões, estados
ou subcontinentes, contém determinações concretas para a compreensão de sua forma específica de
desenvolvimento, inclusive sua desigualdade, e Engels sabe explorar o espaço como elemento gerador de
uma crítica que evidencia as contradições da transformação social em andamento.
Este modo de utilização da leitura do território como fator de interpretação da realidade total
será refeito em trabalhos fundamentais para a compreensão do desenvolvimento do capitalismo na
periferia. Um exemplo incontornável será a obra do geógrafo Milton Santos. Em sua tese de
doutoramento, publicada em 1959 no Brasil como O centro da Cidade do Salvador, o autor baiano criará
original interpretação do espaço social e econômico da Bahia, e do Brasil, a partir da condição portuária
periférica da capital daquele estado. Sua compreensão passará pelo entendimento das transformações
urbanas como um elemento que possibilitará uma descrição apurada do amadurecimento do capitalismo
naquele espaço-tempo, revelando, dentre outras coisas, aspectos de um desenvolvimento desigual e
combinado expresso na paisagem:
Um novo dinamismo sacode agora a cidade e se reflete sobre o seu centro de negócios
e de atividades. Ele reforça a oposição entre as tendências de renovação representadas
pelo próprio dinamismo e as tendências conservadoras, apresentadas pelas condições
socioeconômicas e jurídicas.
[…] Os cortiços são os palacetes deserdados de seu papel histórico, inutilizáveis, hoje,
por atividades mais rentáveis. Ficam à margem do tempo, cujas marcas são agravadas
pela falta de cuidados. Os arranha-céus são a manifestação da força das atividades
diretoras da vida urbana e regional. Uns e outros representam aspectos aparentemente
opostos, mas verdadeiramente complementares, de um mesmo e único fenômeno, que
é a especulação. (SANTOS, 2008, p.187-8).

O desenvolvimento do corpo teórico de Milton Santos aprofundará as possibilidades exploradas


em sua tese e criará inúmeras categorias que compõem um campo imprescindível de interpretação da
formação capitalista periférica e dependente. A fertilidade de seu trabalho serve de exemplo de como uma
leitura aberta do materialismo histórico é capaz de construir chaves de sentido originais que traduzem
aspectos específicos do modo de produção capitalista. Os conceitos elaborados por Santos, ao mesmo
tempo em que dialogam com temas presentes na configuração clássica do materialismo histórico, como o
trabalho, surgem de maneira renovada, extrapolando limites dados pela ortodoxia e ampliando a utilização
do materialismo histórico. Uma das categorias que melhor traduzem esta relação de cooperação teórica,
isto é, a utilização das bases do materialismo histórico para construir um diálogo com campos pouco
explorados que assume uma postura de criação e descoberta, é a noção de técnica e seu desdobramento
territorial, o meio técnico-científico-informacional.
De forma breve, a relação entre tempo e trabalho será sintetizada de forma diferentemente, mas
em complementação, com a categoria lefebvriana de direito à cidade. Santos parte de uma interpretação da

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categoria “técnica” que surge como “tempo congelado e revela uma história” (SANTOS, 2009, p.48). Mas
tempo e trabalho, entretanto, estarão profundamente relacionados ao espaço a partir destas técnicas: “é
por intermédio das técnicas que o homem, no trabalho, realiza essa união entre espaço e tempo”
(SANTOS, 2009, p.54). Assim, através de uma certa história das técnicas, a transformação social
organizada pelo capital será identificada, no espaço, segundo a configuração do meio técnico-científico-
informacional:

A fase atual, do ponto de vista que aqui nos interessa, é o momento no qual se
constitui, sobre territórios cada vez mais vastos, 0 que estamos chamando de meio-
técnico-científico, isto é, o momento histórico em que a construção ou reconstrução do
espaço se dará com um crescente conteúdo de ciência, de técnicas e de informação. [...]

Esse meio técnico-científico (melhor será chamá-lo de meio técnico-científico-


informacional) é marcado pela presença da ciência e da técnica nos processos de
remodelação do território essenciais às produções hegemônicas, que necessitam desse
novo meio geográfico para sua realização. A informação, em todas as suas formas, é o
motor fundamental do processo social e o território é, também, equipado para facilitar
a sua circulação. (SANTOS, 2002, p.37-8)
Estas categorias, que reúnem elementos chave da formulação original do materialismo histórico,
mas incorporam novas determinações em sua formulação e aplicação, inauguram fronteiras interpretativas
a respeito da realidade brasileira que aprofundam o entendimento das configurações do capitalismo
periférico. Como exemplo mais direto, a interpretação da urbanização brasileira feita por Santos (2002)
através da aplicação do materialismo histórico consegue desvelar elementos específicos da formação
capitalista nacional que são expostos a partir da tecnificação do território. Este exercício gera uma crítica
original à espacialidade brasileira que, em primeiro lugar, retira a história da formação urbana nacional de
uma linhagem eurocêntrica, linear e praticamente rostowiana, ou seja, consegue situar as determinações
capitalistas brasileiras em um diálogo profundo com sua materialidade geográfica. Em segundo lugar, por
incorporar o trabalho enquanto fator constitutivo de sua técnica, que é territorializada a partir da categoria
do meio-técnico-científico-informacional, a interpretação de Santos apresenta as especificidades da relação
entre cidade e campo (urbano e agrícola) de modo a demonstrar como o desenvolvimento do agronegócio
é produtor de urbanização, o que é uma constatação profundamente original que vai dialogar, inclusive,
com elementos oriundos da teoria marxista da dependência (sobretudo a de Florestan Fernandes) que, por
sua vez, parte de interpretações que utilizam categorias mais tradicionais do marxismo. Este
entrelaçamento das interpretações a respeito da realidade periférica, que podem partir de diferentes lugares
do materialismo histórico, mas que, de maneira rigorosa, conseguirão levantar elementos originais que
dialogarão entre si pode ser interpretado como uma aplicação da cooperação entre diferentes campos que,
de forma fértil, se apropriam deste método a fim de explorar fronteiras, renovado um sentido de
renovação teórica que o materialismo carregou consigo, sobretudo, no período de sua gênese.
Poderíamos ressaltar outras contribuições semelhantes, como é o caso de um texto marcante de
ermínia maricato chamado “as ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias” (ARANTES, MARICATO,
VAINER, 2000) que parafraseia o clássico de roberto schwarz para confrontar a tradição do urbanismo
brasileiro em importar ideias estrangeiras com a consequente inibição de soluções autônomas. A autora
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lança mão daquele mesmo caminho percorrido por Engels ao indicar que as soluções pensadas para a
Inglaterra não se encaixavam no espaço alemão. Este texto de Maricato, por sinal, integra uma das
primeiras reflexões brasileiras a respeito da maneira como o urbanismo promoverá uma nova etapa da
configuração da cidade mercadoria, que passará a ser organizada a partir de grandes projetos urbanos
alinhados com megaeventos culturais e esportivos ao longo das duas primeiras décadas do século XXI.
Trata-se, na realidade, de uma atualização da maneira como a burguesia organiza seu modo de intervenção
na cidade, tornando a produção do espaço uma atividade organizadora da concentração de capital
necessária para a constituição de monopólios e, junto a isso, a disseminação de uma espacialidade
impregnada de ideologia que forja a cidade como um espaço de dominação da lógica do consumo. Engels
também identificou este modo de operação da classe dominante e fez importantes considerações através
da crítica às importantes reformas urbanas parisienses que ele pode testemunhar no século XIX:

Na realidade, a burguesia só tem um método para resolver a questão da moradia do seu


jeito – isto é, resolvê-la de tal maneira que a solução sempre volta a suscitar o problema.
Esse método se chama “Haussmann”.

Entendo por “Haussmann” aqui não só o jeito especificamente bonapartista do


Haussmann parisiense, ou seja, o de abrir ruas retas, longas e largas através da
aglomeração de casas dos bairros de trabalhadores e cercá-las de ambos os lados de
prédios luxuosos, procurando atingir, ao lado da meta estratégica de dificultar a luta de
barricadas, o objetivo de formar um proletariado da construção civil especificamente
bonapartista e dependente do governo, além de conferir um aspecto luxuoso à cidade.
Entendo por “Haussmann” a práxis generalizada de abrir brechas nos distritos dos
trabalhadores, em especial nos distritos localizados no centro de nossas grandes
cidades, quer tenha sido motivada por considerações de saúde pública e
embelezamento, pela demanda por grandes conjuntos comerciais localizados no centro
ou pela necessidade de circulação, como a instalação de ferrovias, ruas etc. O resultado
em toda parte é o mesmo, não importa qual seja o motivo alegado: as vielas e os becos
mais escandalosos desaparecem sob a enorme autoglorificação da burguesia em virtude
de tão retumbante êxito, mas reaparecem imediatamente em outro lugar e muitas vezes
na vizinhança mais próxima. (ENGELS, 2015, p.104)

Este conteúdo referente à produção do espaço presente na contribuição engelsiana é bastante


conhecido e poderia ser apresentado a partir de inúmeros outros recortes de obras importantes para a
compreensão da formação do Brasil contemporâneo e de todo globaritarismo atual. Exemplo muito
importante pode ser percebido na obra de David Harvey, que experimenta a formulação de um
materialismo histórico-geográfico e tem contribuído de maneira impactante no debate contemporâneo do
marxismo. A identificação e interpretação de processos como a contradição entre a lógica capitalista do
poder e a lógica política/territorial; ou mesmo a constatação de um fator de ordenação espaço-temporal
que envolve a produção, controle e disseminação de crises através das relações da produção do espaço
que, por sua vez, ocorrem segundo uma lógica de acumulação via espoliação, uma reprodução programada
de novos ciclos de acumulação primitiva (HARVEY, 2005), são alguns exemplos da possibilidade que o
entendimento da materialidade pelo viés espacial pode proporcionar para a interpretação do
funcionamento contemporâneo do capitalismo. Suas obras, que incluem uma visita à Paris de Haussmann
(com o mesmo senso crítico de Engels) para compreender a relação entre produção do espaço e produção
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de crises, conseguem apresentar interpretações também a respeito da classe trabalhadora e suas


contradições. Suas críticas aprofundam os questionamentos sobre a delimitação no reino da produção
estar limitada à esfera da reprodução expandida, das indústrias tradicional, apontando para fenômenos
urbanos de movimentação da classe que precisam ser reconhecidos, interpretados e teorizados sem
aventuras e romantizações, mas também sem ocultações de reivindicações legítimas oriundas de diferentes
formas de organização histórica da luta classista.
A propósito deste tema, mas retornando a Engels, existe um outro caráter da sua obra de que
não pode ser colocado em segundo plano. A opção metodológica adotada em “A situação”, conforme
apresentado, pode ser extremamente valiosa para a compreensão da configuração contemporânea da
classe trabalhadora. Dito de outro modo, o segundo caráter do viés geográfico adotado por Engels não
encontra continuidade em seu conteúdo espacial, mas no reforço radical de sua aplicação metodológica.
Sua capacidade analítica é capaz de contribuir para a uma posição epistemológica necessária para
compreender e identificar a classe trabalhadora contemporânea assim como suas diversas atuações na
esfera de produção.
Apesar de não ser organizado como um tratado sobre as classes, “A situação...” parte de um
pressuposto classista, como o próprio título não deixa dúvidas, e descreve um momento fundamental da
conformação da classe trabalhadora e de sua luta:

A relação entre o industrial e o operário não é uma relação humana: é uma relação
puramente econômica – o industrial é o “capital”, o operário é o “trabalho”. E quando
o operário se recusa a enquadrar-se nessa abstração, quando afirma que não é apenas
“trabalho”, mas um homem que, entre outras faculdades, dispõe da capacidade de
trabalhar, quando se convence que não deve ser comprado e vendido enquanto
“trabalho” como qualquer outra mercadoria no mercado, então o burguês se assombra.
Ele não pode conceber uma relação com o operário que não seja a da compra-venda;
não vê no operário um homem, vê mãos (hands), qualificação que lhe atribui
sistematicamente. (ENGELS, 2007, p. 308)
Além do mais, apresenta desdobramentos fundamentais para um entendimento mais
amadurecido a respeito da conformação das classes, como aparecerá, por exemplo, em O Manifesto
Comunista. Vale destacar, entretanto, como Engels demonstra a conformação do proletariado e da
burguesia a partir de uma relação de oposição entre elas. É a partir da adoção de uma posição contrária à
burguesia que a teoria classista consegue enxergar, de forma panorâmica, o comportamento da classe
dominante:

Para compreender suficientemente toda hipocrisia dessas belas promessas, basta


observar a realidade. Ao longo de nossa investigação, vimos como a burguesia explora,
em seu benefício e de todos os modos possíveis, o proletariado. Contudo, até agora só
vimos o proletariado ser objeto de maus-tratos por burgueses tomados
individualmente; cabe, portanto, examinar as relações através das quais a burguesia se
confronta com o proletariado como partido e poder estatal. (ENGELS, 2007, p.312)
Esta possibilidade metodológica, isto é, esta necessária posição de conflito entre as classes como
forma de defini-las, o que pode ser encarado como um desdobramento do caráter geográfico do
pensamento engelsiano, deve ser levado em consideração no momento em que a identificação da classe

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trabalhadora contemporânea torna-se um desafio tanto mais complexo quanto necessário. Reflexões
estanques dentro do próprio marxismo perseguem a classe trabalhadora a partir de uma posição única de
observação, criando comportamentos refratários à incorporação de determinações, por exemplo,
relacionadas a gênero e raça como elementos fundamentais para a composição de um pensamento, teoria,
movimentação e luta da classe trabalhadora.
Este debate guarda relação, obviamente, com a configuração de um racismo e machismo
estruturais que atravessam a própria reflexão de parte da classe trabalhadora que se recusa a adotar um
posicionamento ampliado em relação às formas de opressão e exploração. Assim, ancorados em uma
definição historicamente complexa que interpõe o termo “classe operária” à “classe trabalhadora”
(MATTOS, 2019), parte da movimentação de resistência ao capitalismo limita seu horizonte de definição
do proletariado na tradicional indústria com linhagem diretamente relacionada às do século XIX – que,
aliás, ainda persiste e não pode ser desprezada, mas de modo algum deve ser compreendida como a
totalidade da produção contemporânea.
Incorporar um pensar geograficamente referenciado no materialismo histórico, além de encarar
clássicos como obras abertas, pode possibilitar um importante meio de identificação mais atualizada,
complexa e difusa do que venha a ser a classe trabalhadora contemporânea. É fundamental perceber que o
espaço onde havia uma “Entrada permitida apenas para tratar de negócios” ampliou-se significativamente,
diversificando-se, aliás, como era previsto segundo as próprias descobertas realizadas pelos fundadores do
materialismo histórico.
Abrir mão de aplicar a movimentação de pensamento realizada por Engels, e também por Marx,
significa construir um pensamento que, mesmo que possua uma aparência historicamente correta, estará
estático segundo uma posição de confronto com a classe dominante. Dito de outra forma, para manter a
posição de um combate, inclusive teórico, em oposição radical à classe dominante, é preciso compreender
que seu panorama de dominação se ampliou em múltiplas direções, portanto, a classe trabalhadora
enfrenta, hoje, questões cuja dialética não pode prescindir de uma expansão de seu alcance espacial de
confronto. Esta movimentação, ao contrário do que pode aparentar, não significa mudar a posição a tal
ponto que seja realizado um giro epistemológico para o consenso entre as classes, muito pelo contrário,
indica uma urgente retomada de um caminho crítico fértil que possibilitará o aumento do campo de
enfrentamentos que, em conjunto com suas contradições, determinarão a situação atual da classe
trabalhadora.

Considerações finais

Este artigo assume como pressuposto a necessidade de ampliar os rumos de interpretações


vinculadas ao materialismo histórico a fim de promover interpretações teóricas capazes de reconhecer a
complexidade da classe trabalhadora contemporânea, delimitando sua atuação de forma a evidenciar suas
lutas, contradições e reivindicações. A partir desta determinação teórica, constrói uma leitura da obra

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engelsiana como fonte de interpretação metodológica capaz de inspirar leituras atuais das determinações
do capitalismo de maneira fértil, o que será identificado como a dialética da cooperação.
Em um segundo movimento, a abertura teórica da obra de Engels será apresentada a partir da sua
contribuição à formulação do materialismo histórico conforme sua experimentação de apreensão da
realidade concreta a partir de elementos espaciais, o que indicará uma forma de apreensão deste método
científico por um viés capaz de articular inúmeros fenômenos contemporâneos oriundos da inexorável
urbanização capitalista.
Esta espacialidade marcante na obra de Engels indica a possibilidade de experimentar um caráter
geográfico intrínseco ao materialismo histórico. Num terceiro movimento, são apresentadas algumas obras
do campo do marxismo cuja riqueza propositiva, percebida a partir das categorias não ortodoxas
construídas por seus autores, indica a fertilidade potencial do método da classe trabalhadora evidenciada a
partir da incorporação do espaço na sua construção.
Esta condição de ampliação das categorias de interpretação da realidade é coerente com a
demanda contemporânea por uma versatilidade teórica que seja capaz de incorporar as novas expressões
de um fortalecido – ainda que em crise – modo capitalista de produção, sem desconsiderar oum rigor
teórico. Trata-se, portanto, de uma contribuição de caráter epistemológico na direção de promover uma
abertura, uma movimentação de pensamento segundo a espacialidade contemporânea, a fim de revelar as
expressões da luta entre capital e trabalho e delinear as configurações atuais da classe:

Marx não produziu uma teoria da estratificação social e, por isso, não forneceu
parâmetros econométricos para a delimitação das classes, até porque não reduziu a
classe a um fenômeno econômico. Tampouco alimentou uma fé fetichista numa
sociedade do trabalho ou da classe trabalhadora, pois apostou na potencialidade
histórico-transformadora dessa classe justamente porque compreendeu que sua luta
pela emancipação só poderia ser bem-sucedida caso resultasse na emancipação de todo
o gênero humano da lógica do trabalho abstrato, explorado, alienado. Não apresentou
definições homogeneizantes ou estáticas, pois se referiu a um processo histórico
dinâmico, que engendrou um conjunto de relações sociais. (MATTOS, 2019, p.146)
Identificar as formas, lugares e momentos de implementação do trabalho “abstrato, explorado,
alienado” atual exige uma movimentação de pensamento veloz e espraiada tal como são os espaços
urbanos contemporâneos, e um rigor necessário para a compreensão das formas de oposição que
configuram as atualizadas e situadas expressões de classe.
A teoria classista enfrenta, sempre, desafios gigantescos para se desenvolver, mas estes nunca
são maiores que as próprias condições de exploração de cada período e de cada lugar. O enfrentamento
necessário para a produção de formulações que deem conta da atualidade exige, cada vez mais, uma
abrangência de entendimentos conjunturais que são mais plurais, globais e fragmentados. Diante da
quantidade de mudanças imediatas e simultâneas que ocorrem dentro do modo de produção capitalista
contemporâneo, a ilusão idealista de que uma apropriação a priori da totalidade é necessária para construir
uma interpretação adequada de nosso tempo pode gerar paralisias do pensar, consequência de uma
superexposição espetacular a fenômenos novos que acabam se desdobrando em uma fabricação de
novidadismos sem limites.
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O materialismo histórico, entretanto, trabalhado como método de maneira rigorosa e fértil, é


capaz de contornar este aparente problema segundo uma movimentação epistemológica que se situa na
contínua experimentação de pensamentos posicionados segundo o direcionamento da classe trabalhadora.
É a partir dela que a reflexão poderá, numa movimentação categórica, reconstruir diversos cenários
totalizantes, confrontando as realidades concretas enfrentadas segundo a materialidade das diversas
expressões desta classe.
A fase contemporânea do capitalismo é repleta de novas contradições que redefinem a maneira
como a classe proprietária explora e retém suas rendas e seus lucros. Entretanto, estas transformações
significam apenas ampliações, e não substituições, das formas existentes de apropriação da riqueza
produzida. Portanto, da mesma maneira que Engels, em conjunto com Marx e a partir de um diálogo
constante com o tempo e o espaço, foi capaz de enxergar e descrever as principais determinações de seu
momento histórico. Nenhuma reflexão condizente com os tempos contemporâneos deve abrir mão da
compreensão da espacialidade de sua materialidade, correndo o risco de não enxergar a forma como a
classe dominante se opõe ao trabalho neste terreno imprescindível para a sua crescente e insaciável
acumulação. Não é porque a placa “No admittance except on business” mudou de lugar que o espaço da
produção deixou de existir.
Voltar a Engels neste momento significa uma movimentação do pensar que procura
acompanhar trajetórias e percursos metodológicos capazes de acompanhar as favelas, os coletivos
urbanos, os povos da floresta, as organizações camponesas; deve ser capaz de construir formas de
acompanhamento das diferentes facetas da privatização do espaço urbano e também das suas
consequências para os “motoristas de aplicativo”, para os imigrantes que não param de desembarcar em
terras hostis , para as mulheres exploradas nas redes de prostituição e pornografia presencial e digital; e
todas as novas condições de escravidão racialmente delimitadas em várias partes do mundo, incluindo a
exploração ininterrupta do trabalho infantil globalizado. Por fim, é necessário que o pensamento se
movimente pelas cidades junto com entregadoras e entregadores que circulam, com suas motos e
bicicletas, carregando nas suas costas as bags que, em seu interior, comportam as condições atualizadas de
compressão espaço-temporal dos outros trabalhadores que, cada vez mais, são explorados de forma
confinada nas esferas de produção domésticas apelidadas de sistema de home office. De forma breve, se o
pensamento não partir de uma dialética de cooperação entre a classe trabalhadora, em toda a sua
diversidade seus matizes, incorrerá em erros que Engels, conjuntamente com Marx, já indicou os trajetos
para sua superação.

Referências:

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Debate

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SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2009

Notas
1 Doutor em Urbanismo. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa Direito e
Urbanismo nas práticas sociais instituintes - dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9882847495597702. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0376368538938913. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9124-3395. E-mail: claudioribeiro@fau.ufrj.br.
2 A minha experiência no curso de pós-graduação em urbanismo (PROURB-FAU-UFRJ) demonstra, entretanto, que o interesse

pelo materialismo histórico não é pequeno. Entretanto, a introdução do método de maneira fértil e criativa, que seja capaz de
construir conhecimento coletivo não é uma tarefa simples na medida em que deve ser construído, de maneira sensível e rigorosa,
formas não ortodoxas de aproximação das categorias marxistas. O entendimento da materialidade do espaço produzido como
ponto de contato com o marxismo, isto é, reflexões que exercitam aspectos geográficos e urbanísticos dos textos clássicos, tem
sido uma das mais eficazes proposições experimentadas em sala de aula a fim de construir uma apropriação crítica e mais sólida
do método. Parte das reflexões deste texto são oriundas da experiência de ensino na pós-graduação.
3 Para facilitar a leitura adotaremos “A situação” em substituição do longo título “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.

4 Obviamente, não é intuito deste artigo indicar que a construção do marxismo se deu a partir de um materialismo geográfico,

como que impondo um deslocamento geral do método. Entretanto, parece importante identificar elementos mais amplos e
abrangentes desta formulação metodológica a fim de encontrar chaves de entendimento capazes de produzirem uma cooperação
de novos campos do saber a partir do materialismo histórico.
5 O livro “O direito à cidade” foi publicado por Lefebvre em 1968. Entretanto, já em 1967 havia sido publicado, pelo mesmo

autor, um artigo com o mesmo nome na revista L’Homme et la société, N. 6, 1967. pp. 29-35. Trata-se de um dos capítulos que
será reproduzido na íntegra no livro que já estava em processo de editoração, como aponta o autor em nota de rodapé no artigo
original. Como o artigo e o livro possuem o mesmo nome (que permanece também como nome do capítulo na edição completa),
é comum haver uma certa confusão sobre a data correta da publicação da obra de Lefebvre (o que, aliás, não altera em nada a
importância e a essência do debate que ele propõe). O artigo original, digitalizado, está disponível em:
https://www.persee.fr/doc/homso_0018-4306_1967_num_6_1_1063.

Recebido em: 30 de setembro de 2020


Aprovado em: 31 de julho de 2021

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Germinal: marxismo e educação em debate, Salvador, v.13, n.2, p.251-270, ago. 2021. ISSN: 2175-5604

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