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Helena M. C. Tourinho
1. FUKUYAMA,1989 apud WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo: Ubu, 2018.
2. KEHL, Maria Rita. Melancolia e Criação. In: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify,
2013.
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adaptar ou refazer. Por outro lado, o poeta lamenta também a alienação do indivíduo em meio
ao anonimato da multidão no contexto moderno9. A partir da Revolução Industrial e aumento
demográfico nas metrópoles, houve um recrudescimento na separação entre as classes
operária e burguesa, acentuando o sentimento de desamparo entre os habitantes da cidade do
século XIX.
A partir de então, a esfera privada se sobrepôs à pública, movimento que se consolidou
no século XX e foi tensionado ao que parecem as últimas consequências no século XXI.
Zygmunt Bauman classifica a modernidade como processo contínuo e sempre incompleto de
modernização através da violenta, e também contínua, destruição criativa10. A destruição
constante das referências e a velocidade exigida para que os novos laços sejam refeitos pode
levar à incapacidade de reconhecimento de si ou do outro, indicando o estágio melancólico.
Para lidar com o ausente, de modo que o luto se conclua numa marcação em outras
esferas do presente, é necessário que a relação com o objeto perdido aconteça sob a forma do
tempo11. Na contemporaneidade ocidental existe uma abstração tanto temporal quanto
espacial e o luto parece ter perdido força, sem chance de ser trabalhado, e sem o tempo
necessário para a contemplação e assimilação do real, transformando-se em melancolia, a
recair sobre cada pessoa individualmente, em meio à perda de referência em relação a seu
próprio contexto.
Se nos poemas de Baudelaire o spleen acontecia em parte pela crescente separação
entre público e privado12, na sociedade atual, ele existe porque não há mais separação entre
eles: o coletivo é composto de um conjunto de individualidades sem capacidade ou
ferramentas de se relacionarem13. A alienação continua cada vez mais hegemônica pelo
afastamento da coletividade em prol da individualidade da sociedade de desempenho. Parte do
sofrimento contemporâneo aumenta exatamente porque os muros de divisa entre público e
privado pararam de existir, ou estão sobrepostos sem clareza entre os limites de onde começa
um e termina o outro. “Há cada vez menos conforto em se perceber como parte de uma
comunidade de semelhantes indiferenciados”14. O spleen contemporâneo parece ser
precisamente o nevoeiro de que trata Guilherme Wisnik15: a dissolução entre os limites das
referências conceitualmente sólidas e compreensíveis e as novas formas instantâneas e virtuais
9. LOPES, Diogo Seixas. Melancolia e arquitetura. Em Aldo Rossi. Lisboa: Orfeu Negro, 2016.
10. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; WISNIK, op. cit.
11. CHAUÍ-BERLINCK, op. cit.
12. BAUDELAIRE, 1857 apud. LOPES, op. cit.
13. BAUMAN, op. cit.
14. DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017,
p. 29
15. WISNIK, op. cit.
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de exercício de poder e controle, que se mostram extremamente práticas, mas sem definição
clara de suas consequências finais. A semelhança com o lamento de Baudelaire é o
desaparecimento dos vínculos de referência com a história e a acelerada mutação do mundo
circundante.
O arquiteto Aldo Rossi, à maneira de Beaudelaire, reflete continuamente sobre
questões de transitoriedade, perda e memória ao longo de sua prática tanto arquitetônica
quanto textual. Diogo Seixas Lopes16 examina sua produção sob o viés melancólico
desenvolvido a partir de Aristóteles que, diferentemente do conceito freudiano, associava a
condição a um desequilíbrio da mistura da bílis negra (melaina cholè) em alguns indivíduos, e
que estes seriam “seres de exceção”, no sentido de abundância e excesso, devido à instabilidade
da substância17. Ao longo do Renascimento, o conceito volta a ser explorado, e termina por
associar a melancolia à busca pelo conhecimento racional, reforçando igualmente o exemplo
de seres excepcionais, mas no sentido de indivíduos acima da média. No desenrolar dos
séculos, a melancolia passa a adquirir o sentido de sensibilidade e reflexão18. Embora a
melancolia freudiana não indique genialidade ou sensibilidade romantizada, existe uma
similaridade com o sentimento de perda de lugar, de deslocamento do sujeito em relação ao
mundo. Contudo, as manifestações das angústias particulares de Rossi podem ser entendidas
como luto antecipado pelos conceitos psicanalíticos.
O arquiteto menciona por diversas vezes o inevitável fim dos objetos no mundo:
edifícios, cidades e indivíduos. Considerações muito atravessadas pelos resultados da Segunda
Guerra Mundial, que devastou as referências do próprio Rossi ao ponto de ruínas vagamente
reconhecíveis19. Ao longo de suas pesquisas, Rossi tenta mapear as formas repetidas pela
história da arquitetura europeia, e a relação delas com a cidade como tempos passados ainda
vivenciados, dando a esses elementos a qualidade de permanência, como consolidação
histórica e, implicitamente, tentativa de eternidade. Ora, em seu texto Sobre a
Transitoriedade20, Freud questiona-se a respeito da manifestação do luto quando ligado à
percepção inquietante da finitude do mundo em que se está inserido. O texto termina com
uma reflexão sobre o saldo da Primeira Guerra, numa nota otimista quando sugere que o luto
chegará ao fim, permitindo à população fazer as pazes com os objetos perdidos e reestabelecer
os vínculos de estima com novos objetos, talvez de forma reforçada, como que a acrescentar
sobre eles o entendimento e o valor do transitório.
A valorização do monumento no pensamento de Aldo Rossi parece uma expressão do
luto antecipado de que fala Freud, de desalento contra o desaparecimento. Apesar de admitir a
possibilidade propulsora ou patológica dos monumentos, Rossi os considera atrativos por
excelência, tornando-os especiais e valorosos na constituição da cidade21. A intenção do
arquiteto é dar à cidade os meios de manter os laços com sua paisagem, e mesmo que
reconheça que os fatos urbanos mantém um certo grau de transitoriedade, já que suas formas e
funções podem mudar ao longo dos tempos, ainda assim, indica uma vontade de permanência
e memória. Contudo, a definição que parece melhor representar a situação real é a de Argan,
de que os acontecimentos históricos marcados na cidade passam a ser interpretáveis dentro de
seu contexto atual, e raramente à maneira do que representaram à época de sua construção22.
Por exemplo, apesar de Rossi explorar tipologias representativas ao longo da história, suas
formas sofreram críticas pela proximidade daquelas adotadas pelo fascismo23. A permanência
da forma não é garantia da permanência de significado.
Desavenças à parte, o Cemitério San Cataldo é a obra rossiana que se utilizou dos tipos
históricos ao mesmo tempo que materializava as angústias e desconsolo de seu autor. Em meio
ao contexto pessoal e histórico em que explorava sua própria linguagem, o arquiteto parece
chegar na compreensão de que a morte era o “ponto final das coisas materiais, incluindo a
arquitetura. Para um edifício era também o último limiar, no qual poderia ainda fazer sentido
enquanto testemunho cultural”24. Seu partido mimetiza um esqueleto, ecoando as reflexões a
respeito da fragilidade humana devido a uma experiência pessoal: a recuperação de um
acidente de carro sofrido por Rossi em Istambul25. As construções áridas e desornamentadas
do cemitério reforçam a ideia de ruína, espelhamento da própria vida e seu implacável final.
O projeto vencedor do concurso para a extensão do cemitério de Modena constituía-se
do terreno retangular circundado pelo edifício do columbário, enquanto santuário e vala
comum demarcavam um eixo central ladeado pelos ossários, dispostos como uma sequência
de edifícios que ficam mais estreitos à medida que sobem em altura. O aspecto tridimensional
é uma pirâmide, enquanto em planta, desenham um triângulo que se assemelha a uma espinha
de peixe, culminando na vala comum, um edifício com formato de tronco de cone, oposto ao
santuário, um cubo vazio perfurado com janelas sem vedação e sem cobertura. Todas as
formas fazem alusão a tipos arquitetônicos recorrentes na Europa, como que reduzidos ao
essencial, à ruína sobrevivente ao tempo e ao abandono.
Além das paisagens inóspitas que o cemitério proporcionaria, o percurso indicado pela
disposição dos edifícios levaria à construção mais carregada de desconforto: a vala comum,
reservada aos “mortos cujas ligações ao mundo se dissiparam, geralmente pessoas vindas de
manicômios, hospitais e prisões – vidas desesperadas e esquecidas”26, como que a reforçar a
banalidade à qual o transitório nos reduz, e a lembrar-nos da indiferença póstuma a que
estamos fadados.
Dessa forma, o cemitério funciona como monumento fúnebre e memento mori,
representação de nosso desaparecimento, já que a lembrança da própria condição se dá
quando perde-se um ente querido, e o cemitério é o local onde a separação se consolida.
Curiosamente, o próprio cemitério permanece com sua construção inacabada, condição que
termina por agregar valores e leituras sobre o tema da morte, reforçando o sentimento de luto
pelo que foi perdido, e pelo que não se chegará a ter.
Pode-se dizer que a produção de Rossi passa a ser mais desencantada depois de sua
própria experiência de quase morte. Os confrontos psicológicos decorrentes desse tipo de
trauma, de acordo com Freud, evidenciam que a própria morte é inconcebível ao sujeito:
Então, em sua dor, foi forçado a aprender que cada um de nós pode
morrer, e todo seu ser revoltou-se contra a admissão desse fato, pois cada
um desses antes amados era, afinal de contas, uma parte de seu próprio eu
amado27.
San Cataldo foi concebido em 1971, e sua construção iniciou-se em 1976. Se o fim da história
se deu no ano de 1989, é interessante comparar o cemitério de Rossi e suas representações com
manifestações arquitetônicas e artísticas posteriores, “pós-históricas”. Como o luto mudou ao
longo da virada tecnológica? Isto é, caso tenha mudado. O sofrimento pela perda pode ser
reconhecido na descrição da cena do filme Asas do Desejo, de Wim Wenders, por Guilherme
Wisnik28, e o lamento pelo desaparecimento da Potsdamer Platz se assemelha aos poemas de
Baudelaire e às angústias particulares inscritas no projeto para San Cataldo. No século do
desempenho, a arquitetura, naturalmente, teve seu lugar na representação do fim e marcação
do novo começo. Suas megaestruturas se apoiam e justificam em conceitos que podem ser
***
A construção da atual Potsdamer Platz foi tratada como exemplo do triunfo capitalista, livre,
tecnológico e globalizado, com sedes de grandes marcas, em grandes edifícios, mas terminou
por representar o Junkspace de Rem Koolhaas29, sem acolher ou incentivar a permanência de
seus ocupantes em contextos que não envolvam necessidade específica. Considerando que a
nova praça:
29. KOOLHAAS, Rem. Espaço-lixo. In: Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.
30. WISNIK, op. cit., p. 135-137
31. Ibid.
32. LOPES, op. cit.
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que prenunciando seu desaparecimento. Essa leitura se parece com a lógica por trás da
compreensão de rigidez da arquitetura até o século XX, preceito que também guia Aldo Rossi
nos seus escritos e na concepção do Cemitério San Cataldo:
Já a fotografia de Wesely não só impede o registro dos ocupantes da cidade, mas faz o mesmo
com a arquitetura, contradizendo a ideia de firmeza material que poderia implicar uma
resistência ao desaparecimento. A Potsdamer Platz surge ao longo da exposição da foto, e,
como seus habitantes, ela mesma resiste a se deixar capturar, transforma-se em fantasmagoria,
resultando na própria representação de sua transitoriedade.
Apesar da interpretação enlutada da fotografia, a arquitetura construída exemplifica a
atual melancolia subentendida no modo de vida da sociedade. Os edifícios erigidos na praça
são a formalização da imagem sem profundidade temporal, determinando a “nova cara” do
mundo e o que devem ser os desejos atrelados a ele, impedindo o sujeito de elaboração
própria, sem possibilidade de nomear suas necessidades e, consequentemente, sem satisfazê-
las, já que essas lhe são impostas34. Andreas Huyssen questiona-se a respeito dessa transição e
suas consequências, comparando a transformação berlinense do fim dos anos 1990 com as
leituras semióticas da cidade feitas nos anos 197035, base essencial para o pensamento de Aldo
Rossi. San Cataldo mantém, mesmo incompleto, um apelo visual extremamente forte, para
além de sua representação de sentimentos fúnebres, comparado a pinturas de de Chirico36, e
nesse aspecto poderia até caber na prerrogativa de Huyssen que afirma que: