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REFLEXÕES SOBRE O LUTO NA


ARQUITETURA DA VIRADA DO
SÉCULO: Relações com Cemitério
San Cataldo de Aldo Rossi

FAUUSP - AUH5866 | Anarquiteturas: arte e


arquitetura contemporâneas em diálogo

Helena M. C. Tourinho

Processos de separação trazem consigo o sentimento de perda, juntamente com a ideia de


ruptura e finalização. Em geral, a partir desse conjunto de sintomas, inicia-se um ajuste através
de mecanismos e representações diversas para adequação à nova realidade. Os resultados do
“fim da história”1 de 1989 já se mostram evidentes e analisados de diversas perspectivas. A
unificação alemã e o triunfo capitalista pareciam postular a ideia de uma sociedade apaziguada
e livre, representando uma abertura para o novo ciclo globalizado a se desenrolar dali para
frente: a prosperidade, a emancipação, o fim dos conflitos, da escassez e privação. Junto à ideia
que reforça que todo fim traz consigo um novo começo, cabe lembrar que a teoria psicanalítica
de Sigmund Freud discorre sobre o luto como um trabalho paulatino de desligamento da
libido em relação ao objeto de prazer2, e conclui-se com a liberação dela para fixar-se a outro
objeto. Este processo é extremamente doloroso e lento, já que a libido resiste enormemente à
separação de seus objetos, ainda que existam outros disponíveis. Sob essa perspectiva, no
contexto da reunificação, a “morte” da República Democrática Alemã significa a liberação da
libido anteriormente aferrada ao sistema comunista, desimpedindo-a para afixar-se a novos,
supostamente melhores e certamente mais abundantes objetos.
Esse processo de consolidação de um sistema econômico sobre outro vem
acompanhado do apagamento da parte vencida, e a destruição de vestígios da Alemanha
Oriental, desde nomes de ruas a demolição de edifícios, arranca bruscamente dos habitantes as
reminiscências de suas vidas anteriores, colocando-os na posição de enlutados, sem permitir
que o desligamento aconteça da forma gradual. Assim, a aparente imunização contra qualquer

1. FUKUYAMA,1989 apud WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo: Ubu, 2018.
2. KEHL, Maria Rita. Melancolia e Criação. In: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify,
2013.
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compreensão traumática ou dialética da história3 pode ser interpretada como um


impedimento do trabalho de luto na virada do século XX para o XXI. O desenrolar dos
acontecimentos históricos pode ser considerado sintomático do mal-estar contemporâneo à
luz da psicanálise, transformando o luto em melancolia, e reforçando a suposição de que a
sociedade ocidental contemporânea é essencialmente melancólica. Logo, o novo ciclo iniciado
pós-fim da história comprovou-se muito menos apaziguado do que se esperava, e sem
surpresas, tão angustiado quanto o anterior.
Freud separa o luto e a melancolia em categorias distintas. As manifestações de cada
um têm semelhanças, mas se diferenciam em aspectos específicos. Ambos são processos de
desligamento da libido de seu objeto, mas ao contrário do luto, no estado melancólico o sujeito
não consegue nomear a natureza do objeto perdido, ou sua origem4. O objeto, o “outro”, é uma
sombra que se instala no ego por identificação, ou seja, o próprio ego, caracterizando a
melancolia como essencialmente narcísica5. Outra diferença é que a melancolia não tem um
“prazo definido”, e é classificada por Freud como patologia, visto que necessitaria de assistência
para ser superada ou endereçada. A subjetividade se constitui a partir de oposições como
prazer e desprazer, sujeito e objeto, resultando em operações simbólicas e imaginárias
determinadas pelo desejo6, portanto, necessita dele para sua própria formação. Segundo
Chauí-Berlinck, o desejo:

permite a reconstituição do objeto desejado por meio de representações e,


assim, o sofrimento causado pela falta é fundamental para a constituição
do sujeito que, submetido à falta, recria psiquicamente o objeto perdido ou
ausente para poder orientar-se no real. Isso nos remete à questão do tempo
humano, ou a percepção da existência como algo que escoa e perdura na
duração. Memória e projeto, passado e futuro7.

O luto e a melancolia não estão desassociados de questões espaço-temporais. São temas


recorrentes na história das cidades ao longo de séculos, com representações diversas e
particulares dos contextos históricos aos quais pertencem. Charles Baudelaire descreveu o luto
do desaparecimento de Paris em prol de sua modernização em seu livro As Flores do Mal8. Em
parte, lamentava as mudanças citadinas que tomavam forma, e a perda de seu lugar em relação
à antiga cidade, juntamente com as mudanças de referência às quais os parisienses deveriam se

3. WISNIK, op. cit.


4. KEHL, op. cit.
5. CHAUÍ-BERLINCK, Luciana. Melancolia e Contemporaneidade. Cadernos Espinosanos. São Paulo: [s.n.],
n. 18, jun. 2008. p. 39-52
6. Ibid.
7. Ibid., p. 48
8. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
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adaptar ou refazer. Por outro lado, o poeta lamenta também a alienação do indivíduo em meio
ao anonimato da multidão no contexto moderno9. A partir da Revolução Industrial e aumento
demográfico nas metrópoles, houve um recrudescimento na separação entre as classes
operária e burguesa, acentuando o sentimento de desamparo entre os habitantes da cidade do
século XIX.
A partir de então, a esfera privada se sobrepôs à pública, movimento que se consolidou
no século XX e foi tensionado ao que parecem as últimas consequências no século XXI.
Zygmunt Bauman classifica a modernidade como processo contínuo e sempre incompleto de
modernização através da violenta, e também contínua, destruição criativa10. A destruição
constante das referências e a velocidade exigida para que os novos laços sejam refeitos pode
levar à incapacidade de reconhecimento de si ou do outro, indicando o estágio melancólico.
Para lidar com o ausente, de modo que o luto se conclua numa marcação em outras
esferas do presente, é necessário que a relação com o objeto perdido aconteça sob a forma do
tempo11. Na contemporaneidade ocidental existe uma abstração tanto temporal quanto
espacial e o luto parece ter perdido força, sem chance de ser trabalhado, e sem o tempo
necessário para a contemplação e assimilação do real, transformando-se em melancolia, a
recair sobre cada pessoa individualmente, em meio à perda de referência em relação a seu
próprio contexto.
Se nos poemas de Baudelaire o spleen acontecia em parte pela crescente separação
entre público e privado12, na sociedade atual, ele existe porque não há mais separação entre
eles: o coletivo é composto de um conjunto de individualidades sem capacidade ou
ferramentas de se relacionarem13. A alienação continua cada vez mais hegemônica pelo
afastamento da coletividade em prol da individualidade da sociedade de desempenho. Parte do
sofrimento contemporâneo aumenta exatamente porque os muros de divisa entre público e
privado pararam de existir, ou estão sobrepostos sem clareza entre os limites de onde começa
um e termina o outro. “Há cada vez menos conforto em se perceber como parte de uma
comunidade de semelhantes indiferenciados”14. O spleen contemporâneo parece ser
precisamente o nevoeiro de que trata Guilherme Wisnik15: a dissolução entre os limites das
referências conceitualmente sólidas e compreensíveis e as novas formas instantâneas e virtuais

9. LOPES, Diogo Seixas. Melancolia e arquitetura. Em Aldo Rossi. Lisboa: Orfeu Negro, 2016.
10. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; WISNIK, op. cit.
11. CHAUÍ-BERLINCK, op. cit.
12. BAUDELAIRE, 1857 apud. LOPES, op. cit.
13. BAUMAN, op. cit.
14. DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017,
p. 29
15. WISNIK, op. cit.
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de exercício de poder e controle, que se mostram extremamente práticas, mas sem definição
clara de suas consequências finais. A semelhança com o lamento de Baudelaire é o
desaparecimento dos vínculos de referência com a história e a acelerada mutação do mundo
circundante.
O arquiteto Aldo Rossi, à maneira de Beaudelaire, reflete continuamente sobre
questões de transitoriedade, perda e memória ao longo de sua prática tanto arquitetônica
quanto textual. Diogo Seixas Lopes16 examina sua produção sob o viés melancólico
desenvolvido a partir de Aristóteles que, diferentemente do conceito freudiano, associava a
condição a um desequilíbrio da mistura da bílis negra (melaina cholè) em alguns indivíduos, e
que estes seriam “seres de exceção”, no sentido de abundância e excesso, devido à instabilidade
da substância17. Ao longo do Renascimento, o conceito volta a ser explorado, e termina por
associar a melancolia à busca pelo conhecimento racional, reforçando igualmente o exemplo
de seres excepcionais, mas no sentido de indivíduos acima da média. No desenrolar dos
séculos, a melancolia passa a adquirir o sentido de sensibilidade e reflexão18. Embora a
melancolia freudiana não indique genialidade ou sensibilidade romantizada, existe uma
similaridade com o sentimento de perda de lugar, de deslocamento do sujeito em relação ao
mundo. Contudo, as manifestações das angústias particulares de Rossi podem ser entendidas
como luto antecipado pelos conceitos psicanalíticos.
O arquiteto menciona por diversas vezes o inevitável fim dos objetos no mundo:
edifícios, cidades e indivíduos. Considerações muito atravessadas pelos resultados da Segunda
Guerra Mundial, que devastou as referências do próprio Rossi ao ponto de ruínas vagamente
reconhecíveis19. Ao longo de suas pesquisas, Rossi tenta mapear as formas repetidas pela
história da arquitetura europeia, e a relação delas com a cidade como tempos passados ainda
vivenciados, dando a esses elementos a qualidade de permanência, como consolidação
histórica e, implicitamente, tentativa de eternidade. Ora, em seu texto Sobre a
Transitoriedade20, Freud questiona-se a respeito da manifestação do luto quando ligado à
percepção inquietante da finitude do mundo em que se está inserido. O texto termina com
uma reflexão sobre o saldo da Primeira Guerra, numa nota otimista quando sugere que o luto
chegará ao fim, permitindo à população fazer as pazes com os objetos perdidos e reestabelecer

16. LOPES, op. cit.


17. CHAUÍ-BERLINCK, op. cit.
18. LOPES, op. cit.
19. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
20. FREUD, Sigmund. Sobre a Transitoriedade. In: ______ . Obras psicológicas completas de Sigmund Freud:
edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV, p. 317-324
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os vínculos de estima com novos objetos, talvez de forma reforçada, como que a acrescentar
sobre eles o entendimento e o valor do transitório.
A valorização do monumento no pensamento de Aldo Rossi parece uma expressão do
luto antecipado de que fala Freud, de desalento contra o desaparecimento. Apesar de admitir a
possibilidade propulsora ou patológica dos monumentos, Rossi os considera atrativos por
excelência, tornando-os especiais e valorosos na constituição da cidade21. A intenção do
arquiteto é dar à cidade os meios de manter os laços com sua paisagem, e mesmo que
reconheça que os fatos urbanos mantém um certo grau de transitoriedade, já que suas formas e
funções podem mudar ao longo dos tempos, ainda assim, indica uma vontade de permanência
e memória. Contudo, a definição que parece melhor representar a situação real é a de Argan,
de que os acontecimentos históricos marcados na cidade passam a ser interpretáveis dentro de
seu contexto atual, e raramente à maneira do que representaram à época de sua construção22.
Por exemplo, apesar de Rossi explorar tipologias representativas ao longo da história, suas
formas sofreram críticas pela proximidade daquelas adotadas pelo fascismo23. A permanência
da forma não é garantia da permanência de significado.
Desavenças à parte, o Cemitério San Cataldo é a obra rossiana que se utilizou dos tipos
históricos ao mesmo tempo que materializava as angústias e desconsolo de seu autor. Em meio
ao contexto pessoal e histórico em que explorava sua própria linguagem, o arquiteto parece
chegar na compreensão de que a morte era o “ponto final das coisas materiais, incluindo a
arquitetura. Para um edifício era também o último limiar, no qual poderia ainda fazer sentido
enquanto testemunho cultural”24. Seu partido mimetiza um esqueleto, ecoando as reflexões a
respeito da fragilidade humana devido a uma experiência pessoal: a recuperação de um
acidente de carro sofrido por Rossi em Istambul25. As construções áridas e desornamentadas
do cemitério reforçam a ideia de ruína, espelhamento da própria vida e seu implacável final.
O projeto vencedor do concurso para a extensão do cemitério de Modena constituía-se
do terreno retangular circundado pelo edifício do columbário, enquanto santuário e vala
comum demarcavam um eixo central ladeado pelos ossários, dispostos como uma sequência
de edifícios que ficam mais estreitos à medida que sobem em altura. O aspecto tridimensional
é uma pirâmide, enquanto em planta, desenham um triângulo que se assemelha a uma espinha
de peixe, culminando na vala comum, um edifício com formato de tronco de cone, oposto ao

21. ROSSI, op. cit.


22. ARGAN, Giulio Carlo. La historia del arte como historia de la ciudad. Barcelona: Editorial Laia, 1984.
23. JENCKS, Charles. The language of post-modern architecture. New York: Rizzoli International
Publications, 1981; LOPES, op. cit.
24. LOPES, op. cit., p. 166
25. ROSSI, Aldo. A scientific autobiography. Cambridge: MIT Press, 1981.
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santuário, um cubo vazio perfurado com janelas sem vedação e sem cobertura. Todas as
formas fazem alusão a tipos arquitetônicos recorrentes na Europa, como que reduzidos ao
essencial, à ruína sobrevivente ao tempo e ao abandono.
Além das paisagens inóspitas que o cemitério proporcionaria, o percurso indicado pela
disposição dos edifícios levaria à construção mais carregada de desconforto: a vala comum,
reservada aos “mortos cujas ligações ao mundo se dissiparam, geralmente pessoas vindas de
manicômios, hospitais e prisões – vidas desesperadas e esquecidas”26, como que a reforçar a
banalidade à qual o transitório nos reduz, e a lembrar-nos da indiferença póstuma a que
estamos fadados.
Dessa forma, o cemitério funciona como monumento fúnebre e memento mori,
representação de nosso desaparecimento, já que a lembrança da própria condição se dá
quando perde-se um ente querido, e o cemitério é o local onde a separação se consolida.
Curiosamente, o próprio cemitério permanece com sua construção inacabada, condição que
termina por agregar valores e leituras sobre o tema da morte, reforçando o sentimento de luto
pelo que foi perdido, e pelo que não se chegará a ter.
Pode-se dizer que a produção de Rossi passa a ser mais desencantada depois de sua
própria experiência de quase morte. Os confrontos psicológicos decorrentes desse tipo de
trauma, de acordo com Freud, evidenciam que a própria morte é inconcebível ao sujeito:

Então, em sua dor, foi forçado a aprender que cada um de nós pode
morrer, e todo seu ser revoltou-se contra a admissão desse fato, pois cada
um desses antes amados era, afinal de contas, uma parte de seu próprio eu
amado27.

San Cataldo foi concebido em 1971, e sua construção iniciou-se em 1976. Se o fim da história
se deu no ano de 1989, é interessante comparar o cemitério de Rossi e suas representações com
manifestações arquitetônicas e artísticas posteriores, “pós-históricas”. Como o luto mudou ao
longo da virada tecnológica? Isto é, caso tenha mudado. O sofrimento pela perda pode ser
reconhecido na descrição da cena do filme Asas do Desejo, de Wim Wenders, por Guilherme
Wisnik28, e o lamento pelo desaparecimento da Potsdamer Platz se assemelha aos poemas de
Baudelaire e às angústias particulares inscritas no projeto para San Cataldo. No século do
desempenho, a arquitetura, naturalmente, teve seu lugar na representação do fim e marcação
do novo começo. Suas megaestruturas se apoiam e justificam em conceitos que podem ser

26. ROSSI, 1972 apud LOPES, op. cit., p. 192


27. FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: ______ . Op. cit., p. 303
28. WISNIK, op. cit.
7

usados como valores empresariais, e se a morte seria a máxima ineficiência do indivíduo


produtivo, a arquitetura destinada ao “ineficiente” torna-se igualmente indesejável.

***

A construção da atual Potsdamer Platz foi tratada como exemplo do triunfo capitalista, livre,
tecnológico e globalizado, com sedes de grandes marcas, em grandes edifícios, mas terminou
por representar o Junkspace de Rem Koolhaas29, sem acolher ou incentivar a permanência de
seus ocupantes em contextos que não envolvam necessidade específica. Considerando que a
nova praça:

parece ser o resultado extremamente simbólico de uma cidade que,


pretendendo curar suas feridas históricas, suas divisões internas e seus
vazios improdutivos, se preparava para assumir o posto de capital do
século XXI em uma era global, transformando-se em imagem imaculada
de um presente eterno e sem fissuras30,

seria possível afirmar que os atuais monumentos de representação de luto são as


megaestruturas anódinas do Star System? Caberia dizer que a arquitetura contemporânea traz
consigo, sob nova roupagem, o spleen metropolitano de Baudelaire?
Podemos pensar um trabalho de arte, indicado por Wisnik31, como o trabalho de luto
no século atual: a série fotográfica de Michael Wesely do conjunto Potsdamer-Leipziger Platz.
O trabalho parece exumar discussões renegadas à cidade após a unificação alemã. Na
fotografia, o complexo comercial resultante da Potsdamer Platz aparece desvelado em todas as
suas camadas, como uma espécie de raio-x pouco nítido, apresentando todas as realidades
subentendidas durante sua construção.
As formas mais legíveis na fotografia de Wesely são aquelas que permanecem estáticas
por mais tempo. O princípio é o mesmo utilizado por Louis Daguerre em Boulevard du Temple
à 8 heures du matin, mas os resultados diferem enormemente, embora ambas reflitam o luto de
suas épocas respectivas. A fotografia de Daguerre exibe com nitidez a cidade que desapareceria
com as reformas haussmanianas32, reforçando a tectônica do ambiente construído e a
transitoriedade de seus habitantes. Os únicos pedestres à vista são uma figura que tinha seu
sapato lustrado por outra pessoa, os ocupantes remanescentes de uma cidade fantasma, como

29. KOOLHAAS, Rem. Espaço-lixo. In: Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.
30. WISNIK, op. cit., p. 135-137
31. Ibid.
32. LOPES, op. cit.
8

que prenunciando seu desaparecimento. Essa leitura se parece com a lógica por trás da
compreensão de rigidez da arquitetura até o século XX, preceito que também guia Aldo Rossi
nos seus escritos e na concepção do Cemitério San Cataldo:

Tendo superado a sua relação com a história, o monumento torna-se


geografia. E a luz que cria sombras não é a mesma que corrói a matéria e
dá uma imagem mais autêntica do que os artistas querem oferecer? Por
isso, mais até do que por ser simultaneamente pessoal e coletiva, a
arquitetura é a mais importante de todas as artes e ciências. Porque o seu
ciclo é natural como o ciclo do homem, mas é o que fica do homem33.

Já a fotografia de Wesely não só impede o registro dos ocupantes da cidade, mas faz o mesmo
com a arquitetura, contradizendo a ideia de firmeza material que poderia implicar uma
resistência ao desaparecimento. A Potsdamer Platz surge ao longo da exposição da foto, e,
como seus habitantes, ela mesma resiste a se deixar capturar, transforma-se em fantasmagoria,
resultando na própria representação de sua transitoriedade.
Apesar da interpretação enlutada da fotografia, a arquitetura construída exemplifica a
atual melancolia subentendida no modo de vida da sociedade. Os edifícios erigidos na praça
são a formalização da imagem sem profundidade temporal, determinando a “nova cara” do
mundo e o que devem ser os desejos atrelados a ele, impedindo o sujeito de elaboração
própria, sem possibilidade de nomear suas necessidades e, consequentemente, sem satisfazê-
las, já que essas lhe são impostas34. Andreas Huyssen questiona-se a respeito dessa transição e
suas consequências, comparando a transformação berlinense do fim dos anos 1990 com as
leituras semióticas da cidade feitas nos anos 197035, base essencial para o pensamento de Aldo
Rossi. San Cataldo mantém, mesmo incompleto, um apelo visual extremamente forte, para
além de sua representação de sentimentos fúnebres, comparado a pinturas de de Chirico36, e
nesse aspecto poderia até caber na prerrogativa de Huyssen que afirma que:

A noção de cidade como signo, contudo, permanece tão pertinente quanto


antes, mesmo que agora talvez num sentido mais pictórico e mais
relacionado à imagem do que num sentido textual.37

O professor segue o pensamento para fazer a diferenciação entre as temporalidades descritas:


enquanto os contemporâneos de Rossi pensavam a cidade em disciplinas diversas dentro das

33. ROSSI, 1967 apud LOPES, op. cit., p. 263


34. CHAUÍ-BERLINCK, op. cit.
35. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
36. MONEO, Rafael, 1974 apud LOPES, op. cit.
37. HUYSSEN, op. cit., p. 91
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áreas de conhecimento científico, o grupo transformando a cidade em signo à época do ensaio


de Huyssen eram os empresários construindo atrativos para o turismo global, que é
precisamente o ponto onde a linguagem do cemitério se afasta da morfologia arquitetônica
atual. San Cataldo dá forma fixa (embora arruinada) à contemplação da morte, e a paisagem
resultante da construção incompleta e esparsa dos edifícios oferece tanto a leitura do vazio
deixado pelos entes queridos ecoada na imensidão circundante, como também reforça a
sensação de mera passagem e a continuação do mundo sem nós. Ao passo que, após uma
sucessão de empreitadas de demolição e construção de temporalidades na cidade38, a nova
Potsdamer Platz coroa a inauguração da versão de Berlim do século XXI. Os vazios tornam-se
oportunidade comercial a serem explorados, e a fase de separação dos objetos perdidos
pretende ser evitada com sua rápida substituição. O ensaio cita a proposta de Daniel Libeskind
para a praça, mantendo o espaço vazio e desprovido de construções, como possibilidade de
sustentação do luto e assimilação com o passado.
Entretanto, a expectativa de lucro prevalece, e o resultado é o que Huyssen classifica
como “estilo high-tech internacional, o êxtase das fachadas, a preferência por prédios banais
muito altos”39, que apesar da escala agigantada, podem desaparecer ao sabor do mercado
financeiro com a mesma velocidade em que surgiram. Em Sobre a Transitoriedade, Freud
confia na firmeza de novas construções a serem reerguidas após a guerra, marcando o fim do
luto40. Huyssen desconfia delas exatamente porque o negam41. Mas se considerarmos o
nevoeiro de Wisnik42, talvez essas construções não o afirmem ou neguem, mas representem a
suspensão da libido sem possibilidade de nomear a perda: a melancolia.
A antiga Potsdamer Platz não pode mais ser encontrada, como queria o personagem
do filme de Wim Wenders, mas a fotografia de Wesely nos exibe em camadas a atual, e dá
nome, através da forma, aos objetos perdidos, permitindo que nós, os enlutados, possamos nos
desligar deles, compreender seu percurso ao longo do tempo, e por fim, aceitar a realidade e
refazer nossos laços com ela. Talvez a construção inacabada de San Cataldo tenha a mesma
carga conceitual, de suspensão da libido, e a pausa necessária, dura e árida para que ela se
afeiçoe novamente pela vida.

38. HUYSSEN, op. cit.


39. Ibid., p. 102-103
40. FREUD, op. cit.
41. HUYSSEN, op. cit.
42. WISNIK, op. cit.

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