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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS


DEPARTAMENTO DE DIREITO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

BRUNA UTYAMA FELICIANO

A PROBLEMÁTICA DA EROTIZAÇÃO INFANTIL À LUZ DA DOUTRINA DA


PROTEÇÃO INTEGRAL.

NATAL/RN
2017
BRUNA UTYAMA FELICIANO

A PROBLEMÁTICA DA EROTIZAÇÃO INFANTIL À LUZ DA DOUTRINA DA


PROTEÇÃO INTEGRAL.

Monografia apresentada como pré-requisito


parcial de Conclusão do Curso de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Orientadora: Professora Mestra Anna
Emanuella Nelson dos Santos Cavalcanti da
Rocha

NATAL/RN
2017
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Bruna Utyama Feliciano.
A problemática da erotização infantil à luz da doutrina da proteção integral
/ Bruna Utyama Feliciano. - Natal, RN, 2017.
67f.

Orientador: Profa. Me. Anna Emanuella Nelson dos Santos Cavalcanti da


Rocha.
Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Direito.

1. Direitos da criança – Monografia. 2. Doutrina da Proteção Integral -


Monografia. 3. Erotização infantil - Monografia. I. Rocha, Anna Emanuella
Nelson dos Santos Cavalcanti da. II. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. III. Título.

RN/BS/CCSA CDU 342.7-053.2


AGRADECIMENTOS

É chegado ao fim mais um ciclo e me sinto repleta de gratidão. Foram cinco


anos de grande aprendizado e amadurecimento no Glorioso Curso de Direito da
UFRN e, sem dúvidas, esse trabalho é um marco no encerramento dessa jornada.
Não obstante, diante da realização de mais um sonho, tenho a plena
consciência de que não é apenas uma conquista minha chegar até aqui. Assim, sou
grata a Deus, na certeza de que sem Ele nada seria possível; aos meus pais, por me
inspirarem a ser um ser humano melhor; aos meus amigos de infância, e aos novos
que o Direito me presenteou, por dividirem comigo tantas experiências inesquecíveis;
aos mestres, por todo o conhecimento compartilhado; ao meu namorado, por todo o
apoio e paciência; e aos meus familiares, por me incentivarem a superar os desafios
e ir atrás dos meus sonhos. Além do mais, dedico um agradecimento especial a minha
orientadora Anna Emanuella, por ter aceitado, prontamente, participar comigo dessa
pesquisa.
Enfim, agradeço a todos que de alguma forma contribuíram para a
concretização deste trabalho – conclusão de mais uma etapa. Sem o apoio e torcida
de cada um, chegar até aqui não teria o mesmo sentido. Minha gratidão!
“Todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas
poucas se lembram disso”.
Antoine de Saint-Exupéry – O Pequeno Príncipe
RESUMO

A questão do erotização infantil é uma constante na atual realidade da sociedade


brasileira, onde percebe-se que o corpo erotizado é frequentemente colocado em
discurso através de diferentes artefatos culturais. Com efeito, percebe-se que as
representações sobre sexualidade, corpo e gênero veiculadas pela mídia acabam
interferindo na formação das identidades infantis, em virtude de o infante ainda não
ter organizado todos os impulsos e impressões eróticas dispersos, num todo coerente.
Desta feita, procura-se estabelecer ao longo dessa pesquisa quais os limites do
exercício da sexualidade quando as crianças estão, de algum modo, envolvidas. A
discussão, portanto, reside na contradição presente na sociedade brasileira, tendo em
vista que a mesma sociedade que cria leis para proteção da infância, legitima
determinadas práticas sociais, seja através da mídia, da música, filmes, etc., em que
o público infantil é acionado de forma extremamente sedutora, com modos de ser e
de se comportar bastante erotizados. Analisa-se, assim, a problemática da erotização
infantil no Brasil levando em consideração o que preleciona a Doutrina da Proteção
Integral, que se caracteriza, sobretudo, pela valorização da condição de pessoa em
situação peculiar de desenvolvimento, considerando as crianças como verdadeiros
sujeitos de direitos.

Palavras-chave: Direitos da criança. Doutrina da Proteção Integral. Erotização


infantil.
ABSTRACT

Child eroticizing is a constant in the present reality of Brazilian society where the
eroticized body is often shown through several different cultural artifacts. In fact, one
can see representations regarding sexuality, body and gender provided by the media
end up interfering with the child identity formation considering they have not organized
all diffuse impulses and erotic impressions into a coherent whole yet. Therefore this
research will try to settle the limits of sexuality whenever children are somehow
involved. Consequently the present discussion is in the contradiction we face in
Brazilian society since the same society that creates laws for childhood protection
legitimates certain social practices through the media, songs, movies, etc., in which
the child public is shown seductively being and behaving extremely eroticized. Thus
the problem of child eroticizing in Brazil is analyzed taking into account what the Full
Protection Doctrine establishes, overall characterized by the person condition
appreciation in development peculiar condition, considering children as true subjects
of rights.

Key-Words: Children's rights. Full Protection Doctrine. Child eroticizing.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................10

2 PROTEÇÃO JURÍDICA DA CRIANÇA...................................................................13

2.1 DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL..............................................................26

3 O ENCADEAMENTO PRECOCE DE IMPULSOS SEXUAIS DE FORMA


INCOMPATÍVEL COM A FASE DA INFÂNCIA .........................................................30

3.1 O DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS...........................................................36

3.2 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA EROTIZAÇÃO PRECOCE DAS CRIANÇAS.........41

4 A PROBLEMÁTICA DA EROTIZAÇÃO INFANTIL NO CENÁRIO BRASILEIRO À


LUZ DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL.....................................................47

5 CONCLUSÃO..........................................................................................................61

REFERÊNCIAS..........................................................................................................64
10

1. INTRODUÇÃO

Devido às violações de direitos humanos cometidas no século XX, despertou-


se a necessidade de uma discussão político-jurídica internacional acerca da proteção
da dignidade da pessoa humana como um princípio universal e absoluto. Logo, após
o fim da segunda grande guerra, em 1945, promulgou-se a Carta das Nações Unidas,
na qual instituiu-se a Organização das Nações Unidas, composta pelos países
comprometidos em assegurar tal princípio. Posteriormente, a Declaração Universal de
Direitos Humanos, em 1948, reafirmou como ideais a serem perseguidos
universalmente a igualdade, liberdade e fraternidade. Ademais, para melhor
desenvolver o conteúdo desse dispositivo, a Assembleia Geral da ONU proclamou o
Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assim como o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos com força
coercitiva.
No entanto, apesar da ONU proporcionar com os mencionados instrumentos
internacionais a tutela geral da pessoa humana, certos grupos sociais, devido às suas
peculiaridades, ainda necessitaram de tutela especial por não encontrarem na geral
uma efetividade satisfatória de seus direitos. Este seria o caso das crianças e
adolescentes. Destarte, para além da tutela geral conferida a toda e qualquer pessoa,
os referidos sujeitos passaram a ser contemplados com documentos internacionais
específicos, como tentativa de assegurar universalmente seu pleno e harmonioso
desenvolvimento.
No que tange à proteção internacional específica das crianças, a Assembleia
Geral das Nações Unidas adotou, em 1989, a Convenção sobre os Direitos da
Criança, documento de Direitos Humanos mais amplamente ratificado da história. Por
sua vez, a Convenção sobre os Direitos das Crianças aclamou a doutrina da proteção
integral, que reconhece à criança sua condição de sujeito de direito e lhe confere um
papel de protagonista na construção de seu destino.
Por conseguinte, justifica-se a proteção integral e a prioridade absoluta pelo
fato natural de serem pessoas em situação especial, em processo peculiar de
desenvolvimento e suscetíveis a graves violações, cabendo ao Estado, à sociedade e
à família o dever de propiciar o adequado desenvolvimento dos infantes, com o pleno
aproveitamento de suas potencialidades.
11

Nesse sentido, em atenção à doutrina da proteção integral, foi inserido na


Constituição – e consolidado com a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) – um sistema de proteção especial para o público infanto-juvenil,
reconhecendo sua condição peculiar de ser que ainda não desenvolveu
completamente sua personalidade humana e está em processo de amadurecimento.
Entretanto, a consciência da necessidade de uma proteção especial e integral
das crianças faz com surja uma inquietação diante das contradições percebidas na
sociedade brasileira, isto é, ao mesmo tempo em que se criam leis para proteção da
infância, por outro lado, essa mesma sociedade legitima determinadas práticas sociais
em que o público infantil é acionado de forma extremamente sexualizada, com modos
de ser e de se comportar bastante erotizados.
Diante desse cenário, surgem as seguintes questões: quais os limites do
exercício da sexualidade quando as crianças estão, de algum modo, envolvidas? As
fronteiras entre as faixas etárias e, consequentemente das práticas – inclusive as
sexuais – permitidas para cada uma delas, estão sendo cada vez mais borradas em
virtude de qual(is) motivo(s)?
Destarte, em atenção a tal problemática, o tema proposto irá explorar a
questão da erotização infantil no Brasil levando em consideração o que preleciona a
Doutrina da Proteção Integral. Para tanto, o primeiro capítulo abordará a evolução da
proteção jurídica da criança, em âmbito internacional e nacional, esmiuçando o que
caracterizaria a mencionada doutrina da proteção integral.
Posteriormente, o segundo capítulo esbouçará a questão do encadeamento
precoce de impulsos sexuais de forma incompatível com a fase da infância,
primeiramente sendo realizada uma breve análise de como o conceito de infância se
desenvolveu no passar dos séculos, e de como a construção social da infância mostra-
se um fenômeno histórico e não meramente natural – levando ao questionamento se
estaríamos diante do fim da infância ou de uma nova forma de ser criança. Outrossim,
serão abordados os elementos específicos do desenvolvimento infantil e de como o
surgimento das novas tecnologias e da mídia têm afetado demasiadamente as
vivências infantis ao ponto de influenciar no processo de erotização precoce dos
infantes.
Em seguida, o terceiro capítulo desenvolverá a problemática da erotização no
cenário brasileiro à luz da doutrina da proteção integral. Desta feita, este capítulo
versará sobre como, em nossa sociedade, corpos masculinos e femininos não têm
12

sido percebidos e valorizados da mesma forma, bem como a construção social da


identidade feminina está calcada em grande parte na objetificação do corpo, o que
tem legitimado projeções e padrões corporais para as crianças, em especial para as
meninas. Será explanado também a importância de uma educação sexual, adaptada
a cada faixa etária, a fim de fornecer meios de as crianças saberem como se proteger
de uma gravidez, como postergar sua vida sexual, como se resguardar de doenças
ou até mesmo como identificar abusos sexuais.
Por fim, será tratado o fenômeno dos funkeiros mirins, crianças que
interpretam a música funk brasileira nas redes de Internet e em shows ao vivo,
tornando-se famosas. Ocorre que esses MCs mirins cantam e desempenham
coreografias inadequadas para suas faixas etárias, em especial pelo forte conteúdo
erótico e de apelos sexuais, com termos depreciativos, apologia a drogas, a crimes e
prostituição.
Com isso, a pesquisa se dá pelo método hipotético-dedutivo e tem como
alicerce metodológico dispositivos internacionais, normas constitucionais e
infraconstitucionais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, além de livros,
teses, artigos científicos, reportagens, bem como relatórios e opiniões consultivas da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Por fim, é pertinente ressaltar que a análise do tema proposto é relevante em
virtude do que vivenciamos no cenário brasileiro atual. Isto é, percebe-se a erotização
constante dos corpos infantis, sem levar em consideração quais os prejuízos que tal
atitude pode causar à formação dos infantes, desrespeitando-se o primado da
Doutrina da Proteção Integral. Portanto, a presente pesquisa traz à baila a importante
reflexão de qual tipo de projeto, enquanto produtores de determinada cultura, estamos
a desenvolver para nossas crianças.
13

2. A PROTEÇÃO JURÍDICA DA CRIANÇA

Apesar de o Brasil possuir formação cultural, econômica e social singular,


necessária se faz, num primeiro momento, a compreensão da evolução protetiva
internacional das crianças, especificamente no que tange aos Direitos Humanos, de
modo a extrair lições aplicáveis ao próprio sistema brasileiro.
Na antiguidade greco-romana, o modelo de família existente era o patriarcal,
caracterizado pela submissão de todos os membros à autoridade absoluta do chefe
de família, o pater familiae. Assim, enquanto os filhos estivessem sob a autoridade do
pater, independentemente da idade, deveriam se submeter obrigatoriamente às suas
decisões e, caso não o fizessem, o pai poderia dispor sobre os seus destinos da
maneira que lhe fosse conveniente – o que inclui expor, alugar, vender ou matar os
próprios filhos.
Já no período medieval, houve uma amenização do pátrio poder, em virtude
do advento do cristianismo, que pregava o direito à dignidade para todos, inclusive
para os menores. Todavia, a Igreja Católica ao passo que determinava que os pais
não deveriam abandonar seus filhos e previa penas para os que viessem a maltratá-
los, também criava uma diferenciação entre os filhos oriundos do casamento e os
filhos “ilegítimos”, que estariam desamparados, por representar uma afronta ao
modelo de família cristã.
Em seguida, a partir dos séculos XVI e XVII, a sociedade passou a dispensar
um tratamento especial e diferenciado às suas crianças, surgindo a consciência da
especificidade infantil, que distingue essencialmente a criança do adulto. Por seu
turno, no século XIX, a história da infância ficou marcada por um crítico quadro de
exploração e trabalho forçado, sendo as crianças submetidas a trabalhos braçais
próprios de adultos, em virtude da Revolução Industrial.1
No início do século XX, com o fim da Primeira Guerra Mundial, especialmente
na Europa, houve um crescente número de crianças miseráveis e sem famílias. Em
virtude disso, constatou-se que as referidas crianças vítimas do conflito bélico, para
sobreviver, passaram a praticar delitos patrimoniais, bem como eram utilizadas na

1 OLIVEIRA, José Sebastião de; DOMINGO, Cíntia Oliveira. Do direito à absoluta prioridade na
efetivação dos direitos da criança e do adolescente: o papel das políticas públicas no cumprimento
deste desiderato. p. 9-10. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=31ab328e47c4ea3f>. Acesso em: 04 out. 2017.
14

execução de infrações penais. Paralelamente a isso, outro fator que teve grande
influência na criação do rótulo de que criança pobre seria sinônimo de delinquente,
também chamada de menor, foi a invenção do primeiro Tribunal para Menores de
Illinois, nos Estados Unidos, em 1899 que, consequentemente, desencadeou a
criação da Doutrina do Menor em Situação Irregular.2
Desse modo, até o século XX, a defesa dos direitos das crianças e dos
adolescentes foi adotada de forma difusa, precária e judicial, visto que as ações
protetivas possuíam nítido caráter repressivo e autoritário. Outrossim, nessa época,
as crianças eram consideradas meros objetos de políticas filantrópicas, religiosas e
assistenciais que se revelavam insuficientes no combate dos problemas existentes.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, houve o aprimoramento da defesa dos
direitos humanos, na medida em que o ser humano, individualmente considerado,
passou a ser colocado no primeiro plano do direito internacional público, espaço que
outrora era reservado apenas aos Estados Nacionais. Assim, dentro da concepção
atual acerca dos direitos humanos, a dignidade passou a ser apontada como
fundamento não só dessas garantias, mas do sistema jurídico como um todo.
Por sua vez, a dignidade da pessoa humana seria uma qualidade intrínseca,
distintiva e irrenunciável reconhecida em cada ser humano, que o faz merecedor de
respeito, pelo Estado e sociedade, assegurando-o contra todo ato de cunho
degradante e desumano. Outrossim, garantiria ao indivíduo condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, com a preservação de sua integridade física e
moral, além de propiciar a sua participação ativa e corresponsável nos destinos da
própria existência e dos demais seres humanos, mediante o devido respeito aos
demais seres que integram a coletividade da qual faz parte.3
À vista do exposto, após as nefastas consequências das guerras mundiais,
constatou-se a necessidade de ofertar uma proteção integral, com prioridade absoluta,
para crianças e adolescentes, pelo fato natural de serem pessoas em situação
especial, em fase de desenvolvimento, faltando-lhes maturidade física e intelectual,
além de encontrarem-se vulneráveis frente à omissão da família, da sociedade e do
estado. Desse modo, para além da proteção jurídica ofertada a todos os seres

2 SOUZA, Jadir Cirqueira de. A Efetividade dos Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo:
Editora Pillares, 2008. p. 58.
3 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado, 2010. p. 70.
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humanos, eles ainda seriam merecedores de direitos próprios e especiais, bem como
de uma assistência especializada, diferenciada e integral.
Destarte, o início do amparo qualificado dos direitos das crianças e
adolescentes, deu-se, especialmente, com a criação da Organização das Nações
Unidas (ONU), em 1945, e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1946. No que lhe diz respeito, a
UNICEF assumiu como missão a promoção integral da proteção dos direitos das
crianças e dos adolescentes, inclusive com o estabelecimento de regras jurídicas
internacionais uniformes, com o propósito de garantir o bem-estar e completo
desenvolvimento do público infanto-juvenil.
Não obstante, em que pese a proteção jurídica da criança ter se aperfeiçoado
a partir da criação da ONU, é possível destacar algumas iniciativas anteriores em favor
da proteção da infância: a Convenção aprovada, em 1919, pela Conferência
Internacional do Trabalho, que adotou idade mínima para o trabalho; a Convenção
para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, adotada pela Liga das Nações,
em 1921; a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, em 1924,
considerada marco histórico, tendo em vista que declarou a necessidade de proclamar
uma proteção especial à criança; e o Congresso Pan-Americano da Criança, que deu
origem ao Instituto Interamericano da Criança, em 1927.
Por seu turno, em 1959, por meio da resolução 1386 (XIV) da AGNU, houve
a criação da Declaração dos Direitos da Criança, composta por dez princípios que
reafirmaram o propósito de proporcionar às crianças, antes e após o nascimento, os
cuidados necessários diante de sua imaturidade. Ademais, a referida declaração
manifestou o início da nova concepção da criança como sujeito, titular de direitos e
obrigações próprios da sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Assim,
tem-se como algumas das garantias presentes na declaração: o direito de ser criada
num ambiente de afeto e segurança e, sempre que possível, sob os cuidados e as
responsabilidades dos genitores; receber educação; ser resguardada contra todas as
formas de negligência, crueldade e exploração; bem como, a proteção contra
quaisquer atos que possam ocasionar alguma forma de discriminação.4

4 RICHTER, Daniela; TERRA, Rosane Mariano da Rocha Barcelos; VIEIRA, Gustavo Oliveira. A
Proteção Internacional da Infância e Juventude: Perspectivas, Contextos e Desafios. In: PES, João
Hélio Ferreira (coord.). Direitos Humanos: crianças e adolescentes. 2. Ed. Curitiba: Juruá, 2012. p.
50-51.
16

Insta salientar que, embora a Declaração dos Direitos da Criança tenha tido
grande influência no surgimento de outros documentos em prol dos infantes, os
direitos estabelecidos no próprio documento possuíam apenas natureza moral, de
princípios programáticos. Isto é, não representavam verdadeiras obrigações para os
Estados signatários, mas sugestões que eles teriam a faculdade de colocar em
prática.
Posteriormente, em 1979, a ONU estabeleceu o ano internacional da criança,
com uma programação que colocou em debate a urgência de uma rede de proteção
especial à criança e ao adolescente. Outrossim, em 1985, a AGNU estabeleceu as
regras de Beijyng, consideradas como normas mínimas à administração da infância e
juventude.
Finalmente, dez anos após o ano internacional da criança e, diante do amplo
reconhecimento da necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial,
consolidada em diversos instrumentos internacionais – quais sejam, Declaração de
Genebra de 1924, Declaração dos Direitos da Criança, Declaração Universal dos
Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (em particular nos
artigos 23 e 24), bem como Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (especialmente no artigo 10) – em 20 de novembro de 1989, a Assembleia
Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança, tida como
Carta Magna para as crianças de todo o mundo, que, no ano seguinte, foi oficializada
como lei internacional.
A Convenção sobre os Direitos da Criança se tornou o instrumento de direitos
humanos mais aceito na história universal, ratificado por 196 países, sendo os
Estados Unidos o único país a não ratificar o documento. Por oportuno, cabe
esclarecer que enquanto uma declaração internacional, embora importante, não
vincula ou obriga os Estados signatários a incluírem as normas internacionais em sua
legislação pátria, visto que possui natureza de simples recomendação, a convenção
internacional tem natureza vinculativa, ou seja, obrigatória e requer seu cabal
reconhecimento legislativo.
Desse modo, a Convenção surge como instrumento que complementa a
Declaração dos Direitos da Criança, retomando seus princípios, bem como
estabelecendo compromissos e medidas específicas, com o objetivo de adquirir um
caráter coativo em relação àqueles países signatários, obrigando-os a realizar
efetivamente os direitos nela expressos. Num cenário ideal, portanto, o direito
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internacional e o direito interno se integrariam para uma proteção mais eficaz dos
direitos da criança e do adolescente. 5
Insta ressaltar que para dar força às provisões da aludida convenção, também
foram adotados dois protocolos facultativos, quais sejam, um protocolo relativo à
venda de crianças, prostituição e pornografia infantil, que se tornou válido em
18.01.2002, e outro protocolo que faz menção à inclusão de crianças em conflitos
armados, que passou a vigorar em 12.02.2002.
Assim, notavelmente, a Convenção reconhece sem distinção de raça, cor,
sexo, língua, religião, opinião pública, origem nacional ou social, posição econômica
e nascimento, que toda a criança tem direito a um desenvolvimento harmonioso e
sadio em um ambiente familiar repleto de felicidade, amor e compreensão. Firma,
ademais, que deverá haver a cooperação internacional, mediante responsabilidade
dos estados-partes, para que este direito efetivamente se realize.6
É pertinente esclarecer, ainda, que a Convenção sobre os Direitos da Criança
definiu, objetivamente, criança como pessoa que possua menos de dezoito anos de
idade, excetuando-se os jovens que alcancem antes a maioridade em razão das leis
aplicáveis. Dessa forma, até que atinjam tal idade, esses indivíduos são incapazes de
assumir responsabilidade plena por seus atos, uma vez que não integralizaram seu
desenvolvimento físico e mental. Destarte, foi reconhecido em âmbito internacional
que as expressões criança e adolescente abrangem os indivíduos que não
completaram dezoito anos de idade, salvo nos casos expressos.
Além do mais, com o advento da referida Convenção, modificou-se a forma
de tratamento reservada aos jovens. Com isso, houve o abandono da ideia de crianças
como objeto de proteção, sob a doutrina da situação irregular – a qual concebia que
os jovens não possuíam qualquer possibilidade de participação ativa nas decisões
que os envolviam, legitimando a submissão à intervenção protecionista ou repressiva
estatal.7 Dessa forma, a partir do marco jurídico em questão, foi consagrada a
chamada doutrina da proteção integral, que se caracteriza, sobretudo, pela

5 Ibidem, p. 55.
6 ONU. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Convenção Sobre Os Direitos da Criança.
Brasília, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm>.
Acesso em: 17 set. 2017.
7 CORTE I.D.H., Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança. Opinião Consultiva OC-17/02
de 28 de agosto de 2002. Série A Nº 17. p. 15.
18

valorização da condição de pessoa em situação peculiar de desenvolvimento,


considerando as crianças como verdadeiros sujeitos de direitos.
Com isso, é necessária a criação de um conjunto articulado de ações por parte
do Estado e da sociedade que englobam desde políticas públicas até a realização de
programas locais de atendimento implementados por entidades governamentais ou
não governamentais.8 Ademais, o Estado passou a ter o dever de garantir o exercício
dos referidos direitos, bem como impor limites às suas intervenções.
Ante o exposto, percebe-se que há um verdadeiro corpus juris em matéria de
infância, reconhecendo a existência de um conjunto de normas fundamentais que se
encontram vinculadas com o fim de garantir os direitos humanos das crianças. Por
conseguinte, a existência desse corpus juris é resultado da própria evolução do Direito
Internacional dos Direitos Humanos em matéria de infância, que possui como eixo o
reconhecimento da criança como sujeito de direito.9
Não obstante, o corpus juris em matéria de infância não é composto apenas
pelo texto dos diversos diplomas internacionais já mencionados, mas também inclui
as decisões adotadas pelo Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas. Por fim,
tal perspectiva representa um avanço significativo que coloca em evidência não só a
existência de um quadro jurídico comum no que tange ao Direito Internacional dos
Direitos Humanos aplicável em matéria de infância, como também demostra a
interdependência que existe, no âmbito internacional, entre os diversos sistemas
internacionais de proteção dos direitos humanos da criança.10
No que lhe concerne, o Brasil ratificou a Convenção, incorporando as referidas
determinações em seu ordenamento através do decreto presidencial nº 99.710/1990,
harmonizando-se, assim, com os esforços internacionais. Dessa forma, as normativas
mencionadas podem ser efetivadas a partir da aplicação estatal, visando a assegurar,
no cenário brasileiro, uma vida digna e o desenvolvimento das potencialidades do
público infanto-juvenil.
No que tange ao ordenamento jurídico brasileiro, este deixou por um longo
período de tempo os direitos das crianças e dos adolescentes fora de seu sistema
protetivo, assumindo apenas um caráter essencialmente punitivo no que se

8 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e Adolescente: Doutrina e Jurisprudência. 18. ed. Editora
Jus Podium, 2017. p. 26.
9 COMISSÃO I. D. H. Relatório sobre Castigo Corporal e os Direitos Humanos das Crianças e
Adolescentes. 2009. p. 7.
10 Ibidem.
19

relacionava a esses indivíduos. Desse modo, como poderá ser observado na linha
evolutiva da proteção desses direitos no Brasil, a mudança de uma visão punitiva para
uma protetiva foi deveras recente.
Com isso, no período colonial, eram aplicadas no Brasil-Colônia as
Ordenações do Reino de Portugal, as quais traziam uma posição patriarcal, cuja
autoridade máxima dentro da família era o pai, que deveria ser respeitado pelos seus
filhos. Ainda nesse período, para que os portugueses conseguissem dominar e
conquistar os índios, utilizaram a ajuda dos jesuítas para catequizar as crianças
índias, de maneira a levar a educação e entendimento português aos seus pais.
Já no período imperial, o Estado passou a se preocupar com os infratores,
menores ou não. Dessa forma, o Código Penal do Império determinou que os menores
de 14 anos eram considerados inimputáveis, no entanto, caso os que se
encontrassem na faixa dos 7 aos 14 anos possuíssem discernimento, eles poderiam
ser encaminhados para as casas de correção. Ademais, o movimento crescente de
abandono de crianças presente na Europa acaba sendo refletido no Brasil e, como
forma de solucioná-lo, no século XIX, surge a Roda dos Expostos11. No que tange à
educação, o ensino obrigatório passou a ser regulamentado no ano de 1854, todavia,
a Lei não era aplicada para todas as crianças, pois o acesso era negado aos negros,
bem como àquelas crianças que viessem a apresentar doenças contagiosas ou ainda
não tivessem sido vacinadas. Logo, a falta de acesso à saúde acarretava o não acesso
à educação.12
Por sua vez, no período republicano, os menores de 9 anos eram
considerados inimputáveis, sendo que os que se encontrassem entre nove e quatorze
anos de idade passariam pela análise do discernimento. Outrossim, nessa época, as
casas de recolhimento foram inauguradas, com o objetivo de defender a sociedade
dos menores, e eram subdivididas entre Escolas de Prevenção, destinadas a educar
menores em situação de abandono, e Escolas de Reforma e Colônias Correcionais,
que tinham o objetivo de recuperar os menores que estavam em conflito com a lei.

11 Mantidas pelas Santas Casas de Misericórdia, a Roda dos Expostos era constituída por um cilindro
oco de madeira que girava em torno do próprio eixo com uma abertura em uma de suas faces, que era
colocada em uma espécie de janela por onde eram depositados os bebês, de maneira se proteger o
anonimato das mães. Somente veio a ser abolida no ano de 1927 com o advento do Código de
Menores.
12 VILAS-BÔAS, Renata Malta. Compreendendo a criança como sujeito de direito: a evolução

histórica de um pensamento. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 101, jun 2012. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11583>. Acesso em:
set 2017.
20

No ano de 1927, foi promulgado o Código de Menores (Decreto 17.923-A),


também conhecido como Código Mello Mattos, documento voltado para os menores
de 18 anos que se encontravam em situação irregular, isto é, abandonados ou
delinquentes, conforme o art. 1º do referido diploma13. Com isso, o Código de Menores
tinha como objetivo trazer as diretrizes para o trato dos menores considerados
excluídos, regulamentando questões como o trabalho do menor, tutela e pátrio poder,
delinquência e liberdade vigiada. Em contrapartida, a família teria a obrigação de
suprir as necessidades básicas dos menores.14
Por seu turno, na época da ditadura militar, houve a presença de dois marcos.
O primeiro foi a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM)
e FEBEMs (fundações estaduais), com o propósito de formular e implementar a
Política Nacional do Bem-Estar do Menor e que possuía como principal linha de
atuação a internação de menores abandonados e carentes, assim como de menores
em conflito com a lei. Com efeito, era possível perceber que, sem o respeito às
mínimas garantias constitucionais, os adolescentes pobres eram, muitas vezes,
apenas presos, sendo retirados das ruas e lançados no interior das FEBEMs.15
O segundo marco caracterizou-se pela promulgação do Código de Menores
de 1979, Lei 6.697/79. O referido diploma legal permaneceu com a visão
assistencialista e repressiva já vigente e, ao utilizar a expressão do “menor em
situação irregular”16 e definir o que era considerado como situação irregular17,

13 Art. 1º. O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de
idade será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste
Código
14 VILAS-BÔAS, op. cit.
15 SOUZA, op. cit., p. 71.
16 Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores:

I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular;


II - entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei.
Parágrafo único - As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de dezoito anos,
independentemente de sua situação.
17 Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que
eventualmente, em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
21

oficializou a doutrina da situação irregular no Brasil – mesmo que já se encontrasse


implícita no código anterior. Dessa forma, a doutrina da Situação Irregular fez com que
os menores passassem a ser objeto da norma jurídica por apresentarem uma espécie
de patologia social, ou seja, por não se enquadrarem no padrão social existente.18
Destarte, após avanços e retrocessos, a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 adotou, finalmente, a doutrina da proteção integral, harmonizando-
se com o cenário internacional e revogando explicitamente a doutrina do menor em
situação irregular. Logo, o legislador constituinte insculpiu na Carta Magna sua
vontade do que a criança e o adolescente tenham prioridade absoluta no cenário
brasileiro, conferindo, assim, ao referido princípio, força, superioridade e
inafastabilidade.
A doutrina das Nações Unidas da proteção integral da criança, que consiste
na necessidade da implementação de instrumentos jurídicos capazes de garantir
todos os direitos fundamentais e sociais de crianças e adolescentes, está
contemplada no caput do art. 227 da Constituição Federal, ao dispor que a família,
sociedade e Estado devem assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Desse modo, além dos direitos fundamentais do homem, que também
alcançam integralmente as crianças e os adolescentes, serão a esses seres em
condição especial ofertada uma proteção integral, com absoluta prioridade, para que
vivam sem violência e preservem a sua saúde física e mental, bem como seu
desenvolvimento moral, intelectual e social.19
Quebrando o paradigma até então vigente, da doutrina do menor em situação
irregular, a Constituição Federal de 1988 determinou que, para a preservação dos
direitos das crianças, deveria haver uma responsabilização conjunta dos pais, da
sociedade, por intermédio do Conselho Tutelar, assim como do Estado. Dessa forma,

Parágrafo único. Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a qualquer
título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia,
independentemente de ato judicial.
Cabe ressaltar que as questões que não se enquadrassem no supracitado artigo seriam analisadas
pelos magistrados da Vara de Família, sob a incidência do Código Civil.
18 VILAS-BÔAS, op. cit.
19 ISHIDA, op. cit. p. 24-25.
22

a proteção com prioridade absoluta não mais seria obrigação exclusiva da família e
do Estado, mas se trataria de um verdadeiro dever social, visto que as crianças e
adolescentes devem ser protegidos em razão de serem pessoas em condição peculiar
de desenvolvimento.
Com isso, o referido artigo, mais que uma recomendação, trata-se
verdadeiramente de uma diretriz nas relações da criança e do adolescente com a
família, sociedade e Estado. Ademais, a palavra prioridade denota a precedência dos
seus direitos em confronto com outros, devendo existir um regime especial de
proteção.20
Com efeito, foi inserido na Constituição um sistema de proteção especial para
o público infanto-juvenil, reconhecendo sua condição peculiar de ser que ainda não
desenvolveu completamente sua personalidade humana e está em processo de
amadurecimento físico, psíquico, intelectual, emocional, moral e social. Desse modo,
crianças e adolescentes encontram-se em situação especial de maior vulnerabilidade,
ensejadora da outorga de um regime especial de salvaguardas, que lhes proporcione
a construção plena de suas potencialidades humanas.21
Esse sistema especial de proteção na Constituição Federal é composto pelo
§ 3º22 do artigo 227, no entanto, não se encerra apenas nele. Deveras, ele inclui todo

20 Ibidem.
21 MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os
direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 109.
22 Art. 227, §3º:

§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:


I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII;
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola;
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação
processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos
da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem
dependente de entorpecentes e drogas afins.
23

o artigo 22723 e artigo 22824, e manifesta-se, ainda que subsidiariamente, no disposto


nos artigos 226, caput25 e §§3º26, 4º27 e 22928, primeira parte. Não obstante, ainda se
comunica com outros dispositivos da Constituição, como o inciso XXXIII 29 do artigo 7º
e o § 3º do artigo 20830, além dos demais direitos e princípios fundamentais
espalhados ao longo da CF, destinados a qualquer cidadão. Destarte, em que pese
os direitos elencados no caput do artigo 227 e no seu parágrafo 3º, bem como no
artigo 228 da Carta Magna serem, em razão de sua própria natureza, direitos
fundamentais da pessoa humana, eles se referem especificamente às garantias
fundamentais da pessoa humana em condição especial, ainda em fase de
desenvolvimento.31

23 Art. 227. [...]


§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do
jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e
obedecendo aos seguintes preceitos;
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de
deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem
portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do
acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as
formas de discriminação.
§ 2º A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de
fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras
de deficiência.
[...]
§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
§ 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições
de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
§ 7º No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto
no art. 204.
§ 8º A lei estabelecerá:
I - o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens;
II - o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do
poder público para a execução de políticas públicas.
24 Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação

especial.
25 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
26 § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher

como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.


27 § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e

seus descendentes.
28 Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores

têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.


29 XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer

trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
30 Art. 208, § 3º: Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes

a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.


31 MACHADO, op. cit. p. 108.
24

Cabe mencionar também que a partir da Constituição de 1988 foi


constitucionalizada a igualdade no âmbito das relações paterno-filiais, ao assegurar
aos filhos os mesmos direitos e qualificações e vedar designações discriminatórias.
Nesse sentido, não existe mais a distinção entre filhos legítimos, ilegítimos ou
adotivos. Ademais, em que pese a tendência de buscar, em atenção à garantia de
convivência familiar, o fortalecimento dos vínculos familiares e a manutenção das
crianças e adolescentes no seio da família natural, em certas circunstâncias, o que
melhor atende aos interesses do infante é a destituição do poder familiar. O que deve
prevalecer, portanto, é o direito à dignidade e ao desenvolvimento integral que nem
sempre são preservados pela família biológica ou extensa, daí a necessidade de
intervenção do Estado, colocando-os a salvo junto a famílias substitutas. Destarte, o
direito à convivência familiar não está ligado à origem biológica da filiação, mas traduz-
se numa relação construída no afeto.32
Outrossim, como forma de consolidar as diretrizes da Carta Magna, foi
promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 13 de julho de 1990,
que possui perfeita simetria e harmonia com o texto constitucional vigente, tanto em
relação aos direitos e princípios fundamentais, quanto a outros direitos ou interesses
especificamente infanto-juvenis. Com isso, a leitura do ECA deve ser previamente
precedida, sistemática e obrigatoriamente, da análise da Constituição Federal, tendo
em vista que são diplomas legislativos complementares e indissociáveis, que devem
ser empregados conjuntamente no processo de interpretação, integração e aplicação
prática dos direitos das crianças e adolescentes.33
Insta mencionar que o estatuto dedicou uma parte considerável de seu
conteúdo para clarificar as funções e as atividades administrativas que deverão ser
desempenhadas pelos integrantes dos órgãos públicos dos entes federativos, bem
como pelos particulares. Além disso, seu texto possui os seguintes princípios
norteadores: da dignidade humana, da prioridade absoluta, da cooperação (Estado,
família e sociedade têm o dever de promover os direitos da criança e do adolescente,
bem como protegê-los de qualquer violação), da municipalização (para um efetivo
atendimento das necessidades das crianças e dos adolescentes é necessária a

32 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Revista do Tribunais,
2015. p. 50.
33 SOUZA, op. cit. p. 25.
25

municipalização do atendimento, objetivando-se atender as características


específicas de cada região), além do princípio do melhor interesse da criança.
No que concerne ao princípio do melhor interesse da criança, cabe destacar
que Estado, sociedade e família devem respeitar e contemplar objetivamente a
vigência dos direitos das crianças e adolescentes na elaboração e interpretação de
normas e decisões que os afetem, direta ou indiretamente, de modo que seu interesse
seja considerado como princípio primordial, assegurando-lhes bem-estar físico, social
e psíquico. Ademais, a determinação de seu conteúdo ocorrerá nos casos concretos,
variando diante do contexto e necessidades específicas de cada criança, tendo-se
como base para sua aplicação a interpretação do artigo 3º, § 1º, da Convenção sobre
Direitos da Criança34.
Com a promulgação do ECA, também houve a distinção técnica entre criança
e adolescente – diferenciação ausente no Código de Menores de 1979, bem como na
Convenção sobre os Direitos das Crianças, que considera criança todo ser humano
menor de 18 anos. Com isso, na leitura do mencionado estatuto, criança é o indivíduo
entre 0 e 12 anos e o adolescente entre 12 e 18 anos. Dita diferenciação fez-se
necessária em razão da regulamentação de alguns institutos, como a aplicação da
medida socioeducativa e a necessidade da autorização de viagem, que variarão a
depender de ser criança ou adolescente.
Ademais, o motivo da alteração técnica de “menor” para criança e adolescente
teve como objetivo evitar a rotulação da palavra menor como aquele em “situação
irregular”, pois a referida expressão estigmatizava e vinculava ao conceito de infrator/
delinquente, geralmente associado ao menor pertencente à classe baixa. Dessa
forma, o ECA objetivou romper esse paradigma para que os menores de 18 anos
passassem a se denominar criança ou adolescente.35
Diante do exposto, pode-se concluir que, no período colonial, as crianças e os
adolescentes não possuíam direitos, sendo meros objetos das práticas religiosas.
Depois, passaram a receber parcial proteção do Estado, para logo em seguida serem
meros objetos de punição, em virtude da prática de crimes, ou alvos políticas públicas
meramente assistencialistas, em caso de estado de miserabilidade.

34 Artigo 3º da CDC: 1. Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou
privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão
primacialmente em conta o interesse superior da criança.
35 ISHIDA, op. cit. p. 31-32.
26

Então, finalmente, com a implementação da Convenção sobre os Direitos da


Criança, a doutrina da proteção integral passou a incorporar-se tanto na Constituição
Federal de 1988, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, adquirindo status
de direito fundamental e conferindo às crianças e aos adolescentes tratamento de
sujeitos de direitos. E, acerca da doutrina da proteção integral que se passa a expor.

2.3 DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

As declarações de Genebra, de Direitos Humanos, dos Direitos da Criança e


as regras internacionais muito contribuíram para a construção do direito da criança e
do adolescente, no entanto, foi a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
das Crianças (1989) que consagrou o princípio fundamental da doutrina da proteção
integral, rompendo de vez com o paradigma da doutrina da situação irregular. Sob a
ótica desta, crianças e adolescentes em situação de abandono ou de conduta ilícita
eram enquadrados na situação de seres irregulares e, em ambas as situações, esses
indivíduos eram submetidos às vontades centralizadoras e verticalizadoras do Juiz de
Menores.36
Logo, as crianças eram tidas como incapazes de assumir completamente a
responsabilidade por suas ações e tornavam-se objetos passivos da intervenção
protecionista ou repressiva do estado. Outrossim, a jurisdição era altamente
discriminante e excludente, e os juízes detinham ampla faculdade discricionária sobre
como proceder em relação à situação do público infanto-juvenil. Nesse interim, houve
a necessidade da transição de um sistema tutelar repressivo, para um de
responsabilidade e com viés garantista, no qual a jurisdição especial deveria ser
marcada pelo princípio da legalidade, bem como observar as devidas garantias.37
Desse modo, a Convenção sobre os Direitos das Crianças aclamou a doutrina
da proteção integral, que reconhece à criança sua condição de sujeito de direito e lhe
confere um papel de protagonista na construção de seu destino. Em matéria penal,
por exemplo, essa doutrina ocasionou a mudança para uma jurisdição punitivo-
garantista, na qual se reconhece plenamente os direitos e garantias às crianças e
adolescentes, na medida em que a intervenção da justiça penal se limita ao mínimo

36 SAUT, Roberto Diniz. O Direito da criança e do adolescente e sua proteção pela rede de garantias.
Revista Jurídica - CCJ/FURB, Blumenau, v. 11, nº 21, p. 45 - 73, jan/jun. 2007. p. 47.
37 CORTE I.D.H., op. cit. p. 7.
27

indispensável, bem como se amplia a gama de sanções, baseadas em princípios


educativos, mas se reduz ao máximo a aplicação de penas privativas de liberdade.38
Destarte, é reconhecido em âmbito internacional a existência de uma doutrina
universal de proteção especial à infância, em razão de crianças e adolescentes
possuírem necessidades específicas e encontrarem-se numa posição de
desvantagem e maior vulnerabilidade frente aos demais indivíduos. Ademais, a
referida Convenção possui uma gama de outros princípios que juntos devem orientar
e reger a matéria da infância. Com isso, houve uma verdadeira transformação
qualitativa na interpretação e compreensão das pessoas menores de idade e,
consequentemente, de sua condição social e jurídica.
Nesse sentido, a doutrina da proteção integral reconheceu a necessidade da
implementação de políticas básicas, através da ação conjunta da família, sociedade e
Estado, destinadas às crianças e adolescentes, em virtude da imprescindibilidade de
uma assistência especializada, diferenciada e integral. Assim, justifica-se a proteção
integral e a prioridade absoluta pelo fato natural de serem pessoas em situação
especial, em processo peculiar de desenvolvimento e suscetíveis a graves violações,
em decorrência das desigualdades sociais, de concentração de riquezas, da
marginalização, além de serem vítimas frágeis e vulneráveis diante da omissão da
família, da sociedade e do Estado.
Cabe ressaltar, ainda, que a vulnerabilidade das crianças e adolescentes se
dá em virtude do reduzido grau de maturidade física e mental desses indivíduos, da
dependência de adultos para o exercício de certos direitos, bem como da falta de
conhecimento acerca dos direitos humanos que lhes são próprios e dos seus
mecanismos de exigibilidade. Isto posto, para que haja igualdade substancial, a
criança e o adolescente não podem ser tratados como adultos, cabendo ao Estado, à
família e à sociedade a execução de medidas positivas e preventivas em consonância
com as condições especiais daqueles indivíduos.
Nessa perspectiva, levando em consideração que os pais são os primeiros e
principais cuidadores de seus filhos, compete a eles o dever de educar e preparar
seus descendentes para vida, conduzindo o seu processo de socialização através da
transmissão dos valores que reputam como essenciais. Desse modo, os pais, diante
da tarefa de criação e educação do filho, passam a desenvolver um conjunto de

38 CORTE I.D.H., op. cit. p. 15-16


28

atividades com o objetivo de lhes proporcionar a formação da sua consciência moral,


social, física, psicológica, religiosa, cívica e política ou, resumindo, a formação da sua
personalidade humana.39
Por oportuno, a partir da aprovação da Convenção sobre os Direitos das
Crianças, os Estados que a ratificaram passaram por um processo de adequação de
sua legislação pátria, para que esta estivesse em conformidade com a vigente
doutrina da proteção integral da criança.
Dessa forma, num resgate constitucional e mais contemporâneo do cenário
brasileiro, reporta-se que com o implemento da referida Convenção, a doutrina da
proteção integral passou a incorporar-se tanto a nossa Constituição Federal de 1988,
quanto, posteriormente, no Estatuto da Criança e do Adolescente, atribuindo assim, a
essa garantia, um status de direito fundamental específico das crianças e
adolescentes.40
Nessa seara, cabe reprisar que no ordenamento constitucional vigente, a
mencionada doutrina encontra-se insculpida, principalmente – mas não
exclusivamente – no art. 227, afirmando o valor da criança como ser humano, e
assegurando a ela garantias e proteções, tendo em vista, sobretudo, a condição
peculiar de criatura em desenvolvimento. Diante disso, a Constituição e o ECA
encaram a criança e o adolescente como sujeitos merecedores de direitos próprios e
especiais, que estão a necessitar de uma proteção especializadas, diferenciada e
integral.41
À vista do exposto, a promulgação da Doutrina da Proteção Integral passou a
ser reconhecida como um marco histórico no que se refere à proteção da infância,
uma vez que até então, os menores eram tratados como objetos passivos,
praticamente sem direitos. Assim, este processo legitimador de direitos introduziu os
conceitos jurídicos de criança e adolescente, em detrimento da terminologia “menor”,
que designava aqueles que se encontravam em situação irregular.
Não obstante, a proteção integral não se resume a fornecer à criança apenas
cuidado e proteção, mas inclui reconhecer, respeitar e garantir a personalidade
individual de cada uma, na qualidade de sujeito de direitos, a fim de propiciar seu
adequado desenvolvimento, com o pleno aproveitamento de suas potencialidades.

39 OLIVEIRA, op. cit. p.5.


40 RICHTER, op. cit. p.57.
41 Ibidem. p. 58.
29

Assim, levando-se em consideração o que é defendido pela doutrina da


proteção integral, cabe a análise de como o encadeamento de impulsos sexuais
incompatíveis com a fase da infância prejudica o adequado desenvolvimento dos
infantes, de modo a infringir toda a conquista legal em defesa dos direitos das crianças
já mencionada nesse capítulo. Para tanto, necessária se faz, primeiramente, a
abordagem evolutiva da representação da infância, até a atualidade, a fim de
descobrir o que seria característico dessa fase.
30

3. O ENCADEAMENTO PRECOCE DE IMPULSOS SEXUAIS DE FORMA


INCOMPATÍVEL COM A FASE DA INFÂNCIA

A representação da infância lentamente foi surgindo em nossa civilização,


tendo em vista que até fins do século XVIII era indiferenciada e confundida com a do
adulto, desconhecendo-se as características próprias da criança. Logo, a infância
como é entendida hoje, era inexistente até essa época. Por esse motivo, o único
modelo a ser seguido era o do adulto, forçando as crianças a comportarem-se como
tal, sob a imposição de regras previamente determinadas.42
Desse modo, mesmo sem ter como negar a existência de aspectos biológicos
que definissem esses indivíduos, os estágios da vida não eram bem definidos,
fazendo com que o tratamento fosse relativamente igual para todas as idades. Assim,
ultrapassado o período de dependência física da mãe, os indivíduos passavam a
incorporar plenamente o mundo dos adultos, o que demonstrava a ausência, na
consciência social, de uma categoria autônoma e diferenciada da infância.
Durante a Idade Média, antes da escolarização das crianças, estas e os
adultos compartilhavam os mesmos lugares e situações, fossem eles domésticos, de
trabalho, de festa, inclusive na comunidade sexual. Logo, não havia a divisão de
atividades em função da idade dos indivíduos, bem como não havia o sentimento de
infância ou uma representação elaborada dessa fase da vida.43
Na Idade Moderna, surge, em meio às classes dominantes, a primeira
concepção real de infância, a qual passou a designar a primeira idade de vida, isto é,
a idade cuja necessidade de proteção e dependência dos adultos resta evidente.
Pode-se perceber, portanto, que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância e
só a partir das noções de proteção, amparo, dependência, que ela passa efetivamente
a existir como uma fase específica da vida.44 Ademais, a partir da Revolução
Francesa, em 1789, modificou-se a função do Estado e, com isso, a responsabilidade
para com a criança e o interesse por ela.

42 PICELLI, Lucyelena Amaral; PICELLI, Lucineyde Amaral. Concepções de Infância e de educação


infantil construídas no decorrer da história. Akrápolis, v. 10, n. 2, p. 288-294, out/dez, 2002. Disponível
em: <http://revistas.unipar.br/index.php/akropolis/article/view/1903>. Acesso em: 09 out. 2017. p. 288.
43 BRANCHER, Vantoir Roberto; NASCIMENTO, Cláudia Terra do; OLIVEIRA, Valeska Fortes de. A

construção social do conceito de infância: algumas interlocuções históricas e sociológicas.


Disponível em: < http://coral.ufsm.br/gepeis/wp-content/uploads/2011/08/infancias.pdf>. Acesso em: 31
jul. 2017. p. 4.
44 Ibidem, p. 5.
31

Desse modo, a partir do século XVIII, com o iluminismo e as demais


transformações sociais, inaugurou-se um período de inocência infantil, de modo a
afetar as concepções de infância, bem como sua educação. As crianças passaram a
ser percebidas como sujeitos possuidores de características próprias para a idade,
quais sejam, inocência, fragilidade, ingenuidade, pureza, sensibilidade, imaturidade e
maleabilidade. Deste modo, passou-se a veiculação de uma imagem infantilizada e
dessexualizada das crianças, de maneira que elas deveriam ser protegidas, pelos
adultos, de determinados conhecimentos, em especial questões referentes ao sexo e
à sexualidade. Destarte, partir de tais concepções, a erótica infantil foi invisibilizada
ou mesmo negada.45
Em vista disso, a tentativa de dessexualizar a criança trata-se de um
fenômeno recente na história ocidental, uma vez que, até meados do século XVII,
meninos e meninas conviviam com o mundo adulto em todos os seus aspectos, sendo,
a partir de então, a dessexualização da infância um valor humano fundamental da
civilização judaico-cristã.
Por conseguinte, na sociedade contemporânea é possível constatar a
separação das faixas de idade, com as gerações vivendo segmentadas em espaços
apropriados a sua idade – seja a creche, escola, universidade, trabalho. Não obstante,
a exceção se dá na família, dado que é no contexto familiar que ocorrem, por vezes,
o encontro entre as gerações, mesmo que não tenha propriamente o encontro afetivo,
pelo menos a proximidade física.
É possível perceber que para além das determinações biológicas e naturais,
culturalmente são produzidas significações para cada uma das etapas da existência
do homem. Consequentemente, regras de conduta são institucionalizadas para as
diferentes fases da vida, bem como cada uma é responsável pelo desempenho de um
papel social distinto, o que leva a conclusão de que as gerações são socialmente
construídas.46
Levando isso em consideração, a construção social da infância mostra-se um
fenômeno histórico e não meramente natural e se concretiza pelo estabelecimento de
valores morais, bem como expectativas de conduta para ela. Desse modo, na
civilização ocidental contemporânea, é possível perceber que a infância possui

45 FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 201-223, 2006.
p. 204-205.
46 BRANCHER, op. cit. p. 7.
32

características delineadas, como a ausência de autonomia, necessidade de proteção,


inocência, além de dependência e obediência ao adulto.
Ocorre que as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais das
últimas décadas, combinadas com o acesso infantil às informações sobre o mundo
adulto e, especialmente, o surgimento de novas tecnologias têm afetado
demasiadamente as vivências infantis.
Nesse sentido, em que pese o rápido avanço das tecnologias proporcionar
diversos benefícios – na medida em que possibilita um amplo acesso a informações
de diferentes temas, entretenimento e novas modalidades de relacionamentos – tais
avanços e suas múltiplas possibilidades têm gerado preocupação, em especial
quando se trata do acesso das crianças à rede.47
Isto porque, o desenvolvimento acelerado de novas tecnologias e
modalidades de comunicação além de possibilitar um amplo acesso a informação,
também incrementa novas formas de experimentação do desejo afetivo-sexual nas
suas mais diversas modalidades. Com isso, novas estratégias de prazer são
reinventadas, muitas vezes pautadas pela lógica do consumo, onde o sexo é acionado
como protagonista. 48
Por conseguinte, com a facilidade de acesso às referidas informações, cada
vez mais crianças têm contato com conteúdo extremamente sexualizado ou, por
vezes, tornam-se objeto dessa sexualização – como nos casos da pornografia infantil
e pedofilia. Em virtude disso, a representação de pureza e ingenuidade, associada à
imagem da criança, é invariavelmente ameaçada por outra extremamente erotizada,
principalmente em relação às meninas.
Outrossim, outro elemento que influencia demasiadamente na erotização
precoce das crianças são comentários e atitudes, tidos como “brincadeiras inocentes”,
que partem, muitas vezes, dos próprios familiares. Exemplos bastante comuns, que
expõem esses seres a condutas próprias da idade adulta: a conhecida frase “e o

47 FELIPE, Jane. “Vinde a mim as criancinhas”: pedofilização e a construção de gênero nas mídias
contemporâneas. In: PELÚCIO, Larissa... [et. al] (organizadores). Olhares plurais para o cotidiano:
gênero, sexualidade e mídia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 92.
48 FELIPE Jane; PRESTES, Liliane Madruga. Erotização dos corpos infantis, pedofilia e
pedofilização na contemporaneidade. Disponível em: <
http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2538/820>. Acesso
em: 04 out. 2017. p.1.
33

namoradinho (a) da escola?”49 e os beijos na boca da criança. Tais atitudes podem


ganhar outra conotação para os infantes e acabar antecipando uma sexualidade
incompatível com a fase da infância. Consequentemente, a frequente reprodução dos
referidos atos pode passar para as crianças a ideia de que seria normal namorar ou
beijar na sua idade.
Atualmente, o que se percebe é que está cada vez mais comum as crianças,
meninas em sua maioria, voltarem a ser uma imitação dos adultos, especialmente em
relação à maneira de se vestir, borrando-se, novamente, as fronteiras entre as idades.
Com isso, a beleza tem assumido a condição de mercadoria e o próprio corpo se
tornado objeto de consumo, inclusive na infância.
Dessa forma, no contexto social atual, a escola, a família, o Estado, a
sociedade e os meios de comunicação deveriam assumir o importante papel de
respeitar e conservar cada uma das etapas da vida. Isto é, o caminho mais adequado
para evitar uma hiperssexualização nas crianças seria deixar claro o que é próprio de
cada fase da vida, sem supervalorizar determinadas situações, bem como reservar a
descoberta da sexualidade para o momento mais oportuno.
Insta salientar que ao longo da vida o corpo passa por transformações tanto
sociais quanto biológicas. Desse modo, não existe o corpo na sua materialidade, sem
os discursos e as representações que estruturam e conferem forma às nossas
experiências, bem como sem os sentidos que a ele atribuímos. Não obstante, dessa
produção simbólica sobre o corpo também participam as crianças, uma vez que em
suas negociações, interpretações e significações estão a reproduzir as formas de sua
corporeidade.50
À vista disso, a infância como noção cultural encontra-se intimamente
relacionada com as práticas sociais e políticas, que influenciam as formas de pensar
e atuar das crianças, assim como as formas como entendem a si mesmas. Destarte,

49Com relação a isso, o Governo do Amazonas lançou a campanha “Criança não


namora! Nem de brincadeira” com o objetivo de alertar sobre os riscos de expor
meninos e meninas muito jovens a condutas próprias da idade adulta, sobretudo
quando o assunto são as relações amorosas. Para mais detalhes: DUMONT, Patrícia
Santos. Nem de brincadeira: campanha 'Criança não namora...' alerta para os riscos da erotização
infantil. 2017. Disponível em: <http://hojeemdia.com.br/mais/nem-de-brincadeira-campanha-criança-
não-namora-alerta-para-os-riscos-da-erotização-infantil-1.459605>. Acesso em: 14 out. 2017.
50 SALGADO, Raquel Gonçalves; SOUZA, Leonardo Lemos de. Infância e juventude no contexto

brasileiro: gêneros e sexualidades em debate. Cuiabá, MT: EdUFMT, 2012. p. 15.


34

os infantes capturam dentro da cultura e da sociedade os elementos que permitem


fazer, desfazer e refazer seus próprios corpos e, por conseguinte, suas identidades.
Nesse sentido, convém o questionamento se estaríamos diante do fim da
infância ou de uma nova forma de ser criança. Com isso, aqueles que defendem a
premissa de que a infância que conhecemos está desaparecendo atribuem a
responsabilidade por tal fato aos meios de comunicação, especialmente a televisão e
a Internet. Além disso, consideram que a fronteira que separa o mundo adulto do
infantil tem se enfraquecido devido a transformação da organização familiar, ao déficit
das estruturas e organizações governamentais, bem como às novas formas de
comunicação e informação – visto que a mídia tem exposto amplamente a infância a
conteúdos e informações, dos quais era protegida, que podem tirar-lhe a inocência.51
Por outro lado, há quem argumente que os referidos fatores propiciam o
surgimento de uma infância diferente e, com ela, um mundo e uma cultura infantil
particular, que precisa de reconhecimento e atenção. Tratar-se-ia, portanto, do
deslocamento de uma concepção de infância, que predominou na sociedade ocidental
nos dois últimos séculos, para uma nova concepção, na qual a figura infantil estaria
adaptada às condições e às tensões contemporâneas. 52 Isto é, haveria o nascimento
de uma infância pós-moderna, cuja representação seria uma criança ativa, criativa,
questionadora, que toma decisões sobre o que vestir, comer e beber. A referida figura,
no entanto, não seria apenas uma criação das mídias, mas fruto do discurso
psicopedagógico do final do século XIX e do início do século XX, que se promoveu e
expandiu graças às tecnologias da comunicação e da informação.53
Por sua vez, acerca do uso que se faz atualmente da inocência como atributo
característico da infância, acredita-se que as indústrias culturais – tais como o cinema,
a televisão, a rádio, os videogames, a Internet e a música – seriam os principais
responsáveis pelas mudanças nas formas de ser, de se comportar, consumir, falar,
pensar e desejar das crianças – apagando a moderna noção da infância. Diante disso,
a condição de inocência da infância tem sido afetada por forças sociais, econômicas
e políticas que, durante as últimas décadas, dominam e exploram a figura infantil por
meio de dinâmicas de sexualização, conversão em mercadoria e comercialização.54

51 MARÍN-DIAZ, Dora Lilia. Morte da Infância Moderna ou Construção da Quimera Infantil?. Educação
& Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 193-214, set/dez, 2010. p. 195.
52Ibidem, p. 194.
53 Ibidem, p. 206.
54 Ibidem, p. 204.
35

Evidência de tal processo seria tanto a homogeneização das formas de vestir, comer
e divertir-se de adultos e crianças, quanto o incremento da delinquência, o consumo
de drogas e a atividade sexual entre e com os infantes.55
Com isso, haveria uma cultura infantil em andamento, criada pelas
corporações multinacionais com o objetivo de conquistar novos consumidores,
fazendo dessa cultura uma pedagogia do prazer, ou seja, um cenário de
aprendizagem, onde essas corporações operam como educadoras e formadoras da
identidade infantil a partir do desejo. Não obstante, atrelado aos interesses comerciais,
ainda haveria interesses sociais e políticos que, muitas vezes, promovem o racismo,
a discriminação pela classe social, bem como dinâmicas de gênero hegemonicamente
machistas.56
Com efeito, diante de uma sociedade que constantemente produz novas
identidades sexuais e de gênero, a partir da objetificação de seus corpos, bem como
levando-se em consideração a velocidade das transformações sociais e psicológicas,
impulsionadas pelas transformações tecnológicas, a criança de hoje torna-se
completamente diferente da de algumas décadas atrás – em virtude de estar inserida
num contexto cultural e social distinto.
Portanto, pode-se concluir que as formas de se conceber a infância variam
conforme a época e a sociedade, uma vez que, para além do fator biológico – que
aponta para características anatômicas e fisiológicas específicas às crianças – cada
contexto cultural é capaz de criar uma maneira particular de concepção de criança.
Isto se dá em virtude de a infância encontrar-se em constante processo de
ressignificação e transformação, se adaptando ao tempo, à classe social, ao gênero
e à cultura em que estão inseridas, visto que o seu próprio papel na sociedade resulta
de uma complexa rede de valores e regras sociais.
Como pôde ser observado, o conceito de infância é uma construção
cultural/social, logo, a divisão do ciclo de vida em períodos varia de acordo com
determinada cultura ou sociedade. Isto porque, objetivamente, não há nenhum
momento definível em que uma criança passa a se tornar adulta e o adulto torna-se
idoso.57Diante disso, necessário se fazem os esclarecimentos acerca dos aspectos

55
Ibidem, p. 196.
56
Ibidem, p. 203.
57
FELDMAN, Ruth Duskin; MARTORELL, Gabriela; PAPALIA, Diane E. Desenvolvimento humano.
12. ed. Porto Alegre: AMGH Editora, 2013. p. 39.
36

relacionados ao desenvolvimento específico das crianças, de forma a tentar


compreender como o estímulo de impulsos sexuais, incompatíveis com sua fase, pode
afetá-las.

3.1. O DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS

O desenvolvimento humano se dá pela interação entre as características


herdadas, os fatores ambientais ou experienciais – contextos como a família,
vizinhança, nível socioeconômico, raça/etnia e cultura – bem como os processos
maturacionais, isto é, a maturação do corpo e do cérebro, com a sequência natural de
mudanças físicas e padrões de comportamento.58
Com efeito, os cientistas do desenvolvimento estudam os três principais
domínios ou aspectos do eu: o físico, o cognitivo e o psicossocial. O crescimento do
corpo e do cérebro, das capacidades sensórias, das habilidades motoras e da saúde
dizem respeito ao desenvolvimento físico. A mudança e a estabilidade nas
capacidades mentais, como aprendizagem, atenção, raciocínio, memória, linguagem,
pensamento, julgamento moral e criatividade constituem o desenvolvimento cognitivo.
Por sua vez, a mudança e a estabilidade na personalidade, emoção e nos
relacionamentos sociais constituem juntos o desenvolvimento psicossocial. Os três
aspectos estão intimamente relacionados uns com os outros.59
Desde o nascimento até à adolescência, o corpo e a mente do ser humano
sofrem diversas alterações que influenciam na formação da personalidade do futuro
adulto. Desse modo, existem vários aspectos e teorias sobre as fases da infância.
Uma teoria muito enraizada na psicologia infantil é a Teoria do Desenvolvimento
Cognitivo de Jean Piaget, segundo a qual o crescimento cognitivo ocorre através de
três processos inter-relacionados, quais sejam, organização, adaptação e
equilibração.
A organização corresponde à tendência de criar categorias para as coisas,
observando as características que membros individuais de uma categoria têm em
comum. Por sua vez, a adaptação ao ambiente engloba dois processos
complementares: a assimilação, que é absorver uma informação nova e incorporá-la

58
Ibidem, p. 43.
59
Ibidem, p. 37.
37

às estruturas cognitivas existentes, e a acomodação que se trata de ajustar as próprias


estruturas cognitivas para encaixar a informação nova. Por fim, a equilibração
corresponde ao esforço constante para atingir um equilíbrio estável entre os
processos de assimilação e adaptação.60
Por conseguinte, para Piaget, o desenvolvimento cognitivo da criança avança
em uma série de quatro estágios universais, que envolvem tipos qualitativamente
distintos de operações mentais: o sensório-motor (do nascimento aos 2 anos), o pré-
operacional (dos 2 aos 6 anos), o das operações concretas (dos 6 aos 12 anos) e o
das operações formais (a partir dos 12 anos até à fase adulta). Assim, cada fase
corresponde a um processo de desenvolvimento em que a criança constrói estruturas
cognitivas, se adaptando e aprendendo a pensar de uma maneira nova, podendo
responder, em cada fase, de forma diferente a um mesmo estímulo. Ademais, em
virtude das diferenças culturais e ambientais em que se encontram inseridas, as
idades nas quais as crianças atravessam cada uma das fases podem sofrer
variação.61
À vista disso, pode-se afirmar que, em regra, no primeiro estágio de
desenvolvimento o bebê identifica o que pertence a ele e aos demais, apresenta noção
de tempo e de espaço, bem como interage com o ambiente utilizando seus esquemas
sensoriais e motores. No segundo estágio, as crianças têm raciocínios intuitivos, isto
é, assimilam e memorizam comportamentos, imitando outros, assim como adquirem
esquemas simbólicos, como linguagem e fantasia, que usam para pensar e se
comunicar. No terceiro estágio, o sentido de socialização é desenvolvido, a lógica
passa a predominar no cérebro da criança, que questiona tudo ao seu redor, assim
como ela cria a capacidade de reconstruir o seu raciocínio, o que lhe permite criar
uma estabilidade entre os mecanismos de assimilação e acomodação, e aprender e
aceitar como válido o que aprendeu. Por fim, no quarto estágio, a criança ganha a
capacidade do pensamento lógico, de tirar conclusões das informações disponíveis e
de construir uma lógica formal diante de ideias abstratas e situações hipotéticas.
Destarte, o desenvolvimento cognitivo se dá a partir do crescimento da criança e dos
estágios que ela atravessa para construir conhecimentos durante a sua infância.62

60 Ibidem, p. 65.
61 ALVES, Mónica Almeida. Marketing Infantil: um estudo sobre a influência da publicidade televisiva
nas crianças. 2011. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
Coimbra, 2011. p. 2.
62 Ibidem.
38

Cabe destacar que para haver a progressão através dos estágios, dois fatores
externos/ambientais são importantes, quais sejam, a transmissão social, isto é, as
informações que a criança obtém de outras pessoas, e experiência, que diz respeito
às oportunidades da criança de influenciar o ambiente ao seu redor e de observar os
resultados de suas próprias ações.63Outrossim, em que pese certo grau de
amadurecimento cerebral ser necessário para cada estágio, apenas o
desenvolvimentos cerebral, por si só, não pode fazer uma criança progredir para o
estágio seguinte. Todos os fatores causais – equilibração, amadurecimento,
transmissão social e experiência – devem interagir para que o desenvolvimento
cognitivo prossiga.64
Ainda de acordo com Piaget, os estágios de aprendizagem e desenvolvimento
da criança são essenciais para a construção e a formação da sua personalidade; esta
entendida como os padrões permanentes do indivíduo de resposta aos outros e ao
ambiente, bem como suas interações com eles. 65 Nesse sentido, para esse estudioso,
a infância deveria ser preenchida com ensinamentos equilibrados sobre a vida e a
realidade, utilizando-se da linguagem figurativa e artística, tendo em vista que são os
ensinamentos primários que auxiliarão na construção das concepções de mundo,
perspectivas, valores e, inclusive, o entendimento sobre a sexualidade e o
desenvolvimento da afetividade dos infantes.
É oportuno esclarecer que no campo da psicologia, em especial da
psicanálise, o humano precisa atingir a sua condição de sujeito, pois esta não lhe é
dada desde o nascimento. Assim, para a criança ultrapassar a condição de objeto, ela
deverá aprender a arranjar-se com o que vem do outro.66 Isto é, para que surja o
sujeito é preciso que haja, pela criança, uma separação do lugar de objeto, aquele
tido como complemento do outro, da carência e desamparo inicial. Este é, pois, um
dos maiores trabalhos da criança: acender à condição e sujeito, não aceitando mais
ser o que completa o outro, nem o que é por ele complementado. 67 Assim, é que o

63 BEE, Helen; BOYD, Denise. A criança em desenvolvimento. 12. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.
p. 170.
64 Ibidem, p. 177.
65 BREI, Vinicius Andrade; GARCIA, Luciana Burnett; STREHLAU, Suzane. A Influência do Marketing
na Erotização Precoce Infantil Feminina. Teoria e Prática em Administração, Rio de Janeiro, v. 1, n.
1, p. 97-116, 2011. p. 100.
66 HELENO, Camila Teixeira; RIBEIRO, Simone Monteiro (organizadoras). Criança e adolescente:

sujeitos de direitos. Belo Horizonte: Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, 2010. p. 37.
67 Ibidem, p. 38.
39

tempo da infância, como o tempo para essa transformação, precisa ser garantido,
precisa ser um direito, posto que é justo neste tempo que o trabalho de se descolar
dessa posição de objeto se realiza.68
Com efeito, entre os 15 e 24 meses a criança parece criar a consciência da
sua própria identidade ou autoconsciência, ou seja, adquire compreensão cognitiva
de que possui uma identidade reconhecível, separada e diferente dos demais. Nessa
toada, a autoconsciência é necessária para que a criança possa estar consciente de
ser o foco da atenção, como também identificar-se com o que outras pessoas estão
sentindo. Já por volta dos 3 anos, tendo adquirido autoconsciência e mais algum
conhecimento sobre os padrões e regras aceitos pela sua sociedade, a criança torna-
se mais apta a avaliar seus próprios pensamentos, planos, desejos e comportamentos
com relação àquilo que é considerado socialmente apropriado.69 Cabe destacar,
ainda, que o senso de identidade possui um aspecto social, em virtude de a criança
incorporar a sua autoimagem a compreensão da forma como os outros a enxergam. 70
Acerca da sexualidade, no final do século XIX e início do século XX, Freud,
com a Psicanálise, contesta a ideia da inocência da criança e aponta a sexualidade
infantil, provocando protestos na sociedade conservadora do final do século XIX. Não
obstante, o conceito de sexualidade para Freud é bem específico, pois ela não
designaria apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do
aparelho genital, mas leva em consideração uma série de excitações e de atividades
presentes desde a infância, que relacionam prazer à satisfação de uma necessidade
fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.).71
Nessa perspectiva, a noção freudiana de sexualidade defende a ideia de que
a sexualidade humana não é instintiva, uma vez que o homem busca o prazer e a
satisfação através de diversas modalidades, que seriam baseadas em sua própria
vivência e ultrapassariam as necessidades fisiológicas fundamentais. Assim, mesmo
que a sexualidade se inicie com o nascimento, sua conquista dependeria de um longo
percurso, durante a construção da subjetividade da criança. Ademais, para esse autor,
a sexualidade das crianças seria perverso-polimorfa, pois se afasta do modelo genital
de relação sexual, procurando formas de prazer derivadas de qualquer área ou órgão

68 HELENO, op. cit. p. 39.


69 FELDMAN, op. cit. p. 211.
70 Ibidem, p. 284.
71 PRISZKULNIK, Léia. A criança sob a ótica da Psicanálise: algumas considerações. Psic: revista da
Vetor Editora, São Paulo, v.5, n.1, 2004.
40

do corpo. Destarte, na infância a sexualidade é autoerótica, ou seja, o corpo da criança


é o único meio que ela possui para obter gratificação, em circunstâncias normais.72
Deveras, Freud, em seus estudos, deu grande ênfase à sexualidade infantil,
pois a reconhecia como valor estruturante. Logo, para ele, as teorias sexuais infantis
permitiriam à criança interpretar o enigma de sua existência, construindo, através de
sua fantasia, um lugar subjetivo, descolando-se da posição de alienação original no
discurso parental.73Não obstante, mesmo em nossa cultura pós-moderna, na qual a
delimitação entre o mundo adulto e o infantil é tênue, aceitar a sexualidade das
crianças, da forma como o fundador da psicanálise defendia, muitas vezes é
complicado, causando estranheza e choque, assim como na época em que Freud a
propôs.74
Nesse sentido, por mais que a criança possua certa sexualidade, desde seu
nascimento, esta sexualidade possui características diferentes da adulta, em virtude
de o infante ainda não ter organizado todos os impulsos e impressões eróticas
dispersos, num todo coerente. Num cenário normal, apenas gradativamente a criança
desenvolverá e organizará seu erotismo na direção da genitalidade, ou seja, da
relação sexual em si. Dessa forma, em que pese os infantes possuam a curiosidade
pela descoberta de seu corpo, o processo deve ocorrer de forma natural e gradual,
devendo-se evitar forçar a chegada precoce de uma sexualidade voltada para a
genitalidade.75
Todavia, observa-se que, na atualidade, as crianças são constantemente
bombardeadas por conteúdos midiáticos que estimulam sua erotização excessiva,
mesmo que devido à sua imaturidade, ainda não tenham condições de assimilar de
forma adequada essas informações – ocasionando mudanças profundas no seu
comportamento. Assim, por mais que Freud defenda a sexualidade na infância como
parte do desenvolvimento humano, a erotização precoce, na qual a criança é
estimulada a uma sexualidade adulta, quando ainda não tem condições de assimilá-
la, pode trazer prejuízos significativos ao desenvolvimento psíquico do infante.

72 ZORNING, Silvia Maria Abu-Jamra. As teorias sexuais infantis na atualidade: algumas reflexões.
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 1, p. 73-77, jan/mar, 2008. p. 74.
73 Ibidem, p. 76.
74 Ibidem, p. 73.
75 MUZZETI, Luci Regina; REIS, Fernanda. Sexualidade e infância: contribuições da educação sexual

em face da erotização da criança em veículos midiáticos. Revista Contrapontos - Eletrônica, v. 14,


n. 3, p. 634-650, set/dez. 2014. Disponível em: <www.univali.br/periodicos>. Acesso em: 24 out. 2017.
p. 642.
41

Por sua vez, levando-se em consideração a teoria de Piaget, crianças entre


dois e sete anos de idade, isto é, pertencentes aos estágios pré-operacional e
operacional concreto, são mais receptíveis à influência da mídia, uma vez que suas
estruturas ainda estão em formação e elas são mais sensíveis às influências externas.
Por conseguinte, as crianças em idade pré-escolar já compreendem a natureza
simbólica e podem reproduzir os comportamentos que observaram representados
nesses meios midiáticos.76
Com isso, a exposição à televisão durante os primeiros anos de vida pode
estar associada a um desenvolvimento cognitivo mais pobre, ao passo que as
crianças acima dos 2 anos expostas a programas que seguem um currículo educativo,
demonstram aumento das habilidades cognitivas. Percebe-se, portanto, que o
conteúdo do programa é um mediador importante e que pais que limitam o tempo de
uso da televisão, bem como selecionam programas adequados para a idade do seu
filho e compartilham como eles esse momento, podem aumentar os benefícios da
mídia.77
Dentro dessa lógica, nos dias atuais, é notório que as crianças se encontram
muito vulneráveis aos conteúdos e às mensagens oriundas de diversos veículos
midiáticos, em virtude de tais elementos instigarem um consumismo, objetificação e
exagero de erotização que os infantes ainda não possuem discernimento e
maturidade para compreender de forma adequada. Ante o exposto, necessária se faz
a análise de como a mídia tem efetivamente influenciado no processo de erotização
infantil.

3.2. A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA EROTIZAÇÃO PRECOCE DE CRIANÇAS

Como visto, a concepção de infância variou muito ao longo do tempo, sendo


que, atualmente, a representação social infantil é marcada pela forte influência
exercida pelos meios de comunicação de massa. Diante desse cenário, um problema
que causa preocupação é como esses meios podem provocar a erotização infantil.
Com efeito, a mídia engloba qualquer dispositivo – como televisão,
propagandas, livros, revistas, Internet, etc. – que esteja relacionado ao processo de
construção de ideias, valores e comportamentos, produzindo efeitos tanto no modo

76 FELDMAN, op. cit. p. 275-276.


77 Ibidem.
42

de agir dos adultos, quanto das crianças. Desse modo, a mídia apresenta-se como
um meio para diversos tipos de aprendizagem, desde formas sobre como enxergar e
tratar o próprio corpo, até modos de compreender as diferenças de gênero, sendo,
portanto, uma importante fonte de referências simbólicas para o processo de
composição dos corpos na contemporaneidade.78
Não obstante, a mídia, enquanto meio de grande importância social,
representa um dos principais estimulantes no processo de erotização na infância,
tendo em vista que as crianças são mais sensíveis, ou menos protegidas, aos seus
estímulos. Diante disso, tal fato pode ocorrer por influência dos estímulos eróticos que
esses meios produzem, inundando massivamente, principalmente por intermédio da
televisão, os infantes com uma sexualidade adulta, induzindo-os a uma estimulação
erótica que ainda não possuem condições de absorver completamente.
Isto posto, com o desenvolvimento acelerado de novas tecnologias e
modalidades de comunicação, tem sido possível introduzir novas possibilidades de
experimentação do desejo afetivo-sexual, criando novas estratégias de prazer
pautadas pela lógica do consumo, onde o sexo é acionado como atrativo e a criança
colocada como possibilidade de experimentação do desejo sexual adulto.
O que se percebe é que o público infantil, visto como potenciais pequenos
consumidores, representa um mercado em ascensão, sendo alvo constante de
investimentos. Outrossim, ao mesmo tempo em que as crianças têm sido vistas como
veículo de consumo, torna-se cada vez mais comum a ideia da infância como objeto
a ser apreciado, desejado e sexualizado, criando-se uma erótica infantil, ou seja, uma
erotização da imagem da criança, amplamente veiculada pela mídia.79
Com isso, as representações sobre sexualidade, corpo e gênero veiculadas
pela mídia acabam interferindo na formação das identidades infantis da atualidade.
Os corpos vêm sendo instigados a uma crescente erotização, amplamente veiculada
através da TV, do cinema, da música, em jornais, revistas, propagandas, outdoors, e,
por intermédio da Internet – tendo sido possível vivenciar novas modalidades de
exploração dos corpos e da sexualidade. Nessa perspectiva, o referido processo de
erotização tem produzido efeitos significativos na construção das identidades de
gênero e identidades sexuais infantis, especialmente com relação às meninas, cujas

78 FELIPE, Jane; GUIZZO, Bianca. Erotização dos corpos infantis na sociedade de consumo. Pro-
Posições, Campinas, v. 14, n. 3 (42), p. 119-132, set./dez, 2003. p. 121.
79 Ibidem, p. 124.
43

imagens são altamente erotizadas, refletindo grande similaridade com imagens


provenientes da pornografia infantil.80
Destarte, as experiências relativas à sexualidade, sobretudo aquelas
encenadas no mundo midiático, têm ganhado espaço no universo infantil, perdendo,
cada vez mais, a aura de atos próprios da vida adulta. Insta salientar que os referidos
meios midiáticos ainda ecoam valores sobre a sexualidade feminina, permeando o
imaginário infantil, muitas vezes, por intermédio do paradoxo da inocência misturada
à sedução. Assim, a beleza feminina é intensificada no corpo da menina inocente,
mas, ao mesmo tempo, sedutora.
É sabido que a mídia é uma parte natural da vida cotidiana da maioria das
crianças ocidentais, que são rápidas em adotá-la e usá-la. Logo, observa-se que as
crianças mantêm um contato diário com a televisão e, frequentemente, são expostas
a programas voltados para o público adulto, como, por exemplo, novelas, filmes,
reality show, programas de auditório, etc., que, por sua vez, apresentam mulheres
sensuais com comportamentos extremamente erotizados. Consequentemente, as
crianças são cada vez mais influenciadas no seu modo de vestir, nas suas emoções,
bem como no uso da linguagem, apresentando atitudes e comportamentos tidos como
inapropriados para sua idade.
Com efeito, a mídia gera vários impactos no comportamento do público,
positivos ou negativos, sendo imprevisível o seu efeito, em virtude de a mensagem da
mídia se mesclar e produzir seus efeitos de acordo com as experiências, sentimentos
e frustrações vividas por cada indivíduo. Nesse sentido, os meios de comunicação
podem acabar estimulando a sexualidade em indivíduos que ainda não estão maduros
o suficiente para ter uma vida sexual, assim como que não possuem a capacidade de
assumir as consequências resultantes do exercício da sexualidade. Não obstante, a
mídia, como qualquer outra instituição de socialização, não pode ser analisada
isoladamente, isto é, a produção do seu efeito resultará também da família, escola,
religião, época, lugar e contexto social no qual o indivíduo se encontra inserido.81
Percebe-se, pois, que cada vez mais cedo as crianças estão deixando de viver
a fase infantil em sua plenitude, para adotar comportamentos e itens de consumos

80 Ibidem, p. 129.
81 GUTJAHR, Mayara; JOHN, Valquíria Michela. Erotização precoce: uma análise das representações
da infância nas páginas do suplemento infantil Folhinha. REVISTA AÇÃOMIDIÁTICA, Paraná, v. 2, n.
2, 2012. p. 4.
44

característicos de jovens e adultos, como o uso de determinadas roupas íntimas,


sapatos com saltos altos, cosméticos, maquiagens, etc. No que diz respeito ao
consumo, as crianças aprendem sobre o ato de comprar por três grupos de referência,
quais seja, a família, os amigos e as instituições sociais (meios de comunicação e
propaganda). Nesse sentido, a influência pode se dar intencionalmente, na forma de
instruções, conselhos ou ordens, ou de maneira indireta, pela repetição; logo, as
imagens e atos em propagandas podem acabar servindo de modelo de
comportamento a ser imitado pelas crianças.82
Desse modo, hoje se observa uma maior visibilidade da sexualidade, sendo
que a questão sexual se encontra indiretamente vinculada ao consumo. Por
conseguinte, as crianças têm se transformado em miniadultos superinformatizados e
as meninas, cada vez mais, tornam-se meninas-mulheres, que frequentam salões de
beleza, dançam funk, usam sapato de salto alto e sutiã com enchimento. Assim, as
informações que chegam aos lares, pela mídia, ressaltam a sexualidade e o corpo
erotizado, o que faz com que as crianças também fiquem expostas a essas
informações e acabem ingressando na vida sexual ativa mais cedo do que
anteriormente.83
Em um estudo sobre a oferta de produtos e serviços para crianças na faixa
etária de cinco a doze anos, identificou-se uma importante relação entre ações de
marketing que se valem de apelos eróticos ou sensuais e o comportamento de
consumo. Com efeito, vários produtos destinados às crianças apresentaram algum
tipo de apelo erótico ou sensual, além de estarem ao alcance dos infantes em diversos
pontos de venda. Ademais, as estratégias de comunicação das empresas levam as
informações do consumo desses produtos com apelo erótico/sensual através de
diversos meios de comunicação, como a televisão, bem como websites de produtos e
de entretenimento na Internet.84
Importa destacar que a indústria midiática tem como principal interesse que a
motiva o lucro. Por conseguinte, a mídia fomenta objetivos de corpo e comportamento
tidos como “ideais”, que só poderão ser atingidos mediante o consumo de
determinados produtos. Todavia, a satisfação prometida pela mídia é suplantada
constantemente por novos desejos e objetivos, alimentando a indústria de maneira

82 BREI, op. cit. p. 102.


83 Ibidem.
84 Ibidem, p. 112.
45

ininterrupta, ou seja, independente do ideal que o consumidor alcance, certamente a


satisfação terá curta duração.
Uma das organizações responsáveis por limitar a publicidade enganosa ou
abusiva, bem como defender a liberdade de expressão comercial, é o Conselho
Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR)85. Segundo o CONAR, os
esforços de pais, educadores, autoridades e da comunidade devem encontrar na
publicidade fator coadjuvante na formação de cidadãos responsáveis e consumidores
conscientes. Diante de tal perspectiva, nenhum anúncio deveria dirigir apelo
imperativo de consumo diretamente à criança, tendo em vista suas características
psicológicas, presumindo-se sua menor capacidade de discernimento.86 Não
obstante, não é isso que se percebe na sociedade.
Por oportuno, em prol da proteção da infância, foi criado, em 2006, o Projeto
Criança e Consumo, do Instituto Alana87. Esse projeto possui o objetivo de divulgar e
debater ideias sobre as questões relacionadas à publicidade dirigida às crianças,
assim como apontar caminhos para minimizar e prevenir os prejuízos decorrentes
dessa comunicação mercadológica, uma vez que as crianças são mais vulneráveis às
informações transmitidas pelos meios de comunicação. Destarte, além de tentar
proibir as práticas relativas ao consumo extremado entre crianças e adolescentes, o
projeto visa a minimizar também a violência na juventude, o materialismo excessivo,
o desgaste das relações sociais, bem como a erotização precoce.
Interessante chamar atenção para o fato de que no Brasil, provavelmente, por
influência da mídia, muitos pais também já estejam tendentes a acreditar no padrão
social imposto do que vem a ser uma filha bonita, tendo sua percepção sobre beleza
infantil moldada conforme esses meios de comunicação. Outrossim, se os produtos e
serviços destinados às crianças contêm forte apelo erótico e sensual, isso significa
que o mercado e a sociedade estão colaborando para o ingresso de apelo sexual em
indivíduos que ainda não possuem maturidade para julgar o que é certo e errado.
Desse modo, tal atitude pode afetar a formação da personalidade e o
comportamento do futuro adulto que um dia se tornarão, tendo em vista que ao
ingressar precocemente no mundo adulto, com o corpo e a mente ainda em formação,

85 CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA. Disponível em: <


http://www.conar.org.br/>. Acesso em: 16 out. 2017.
86 BREI, op. cit. p. 100.
87 ALANA. Criança e Consumo. Disponível em: <http://alana.org.br/project/crianca-e-consumo/>.
Acesso em: 15 out. 2017.
46

a criança não possui estrutura física e psicológica formada para defender seus
direitos, controlar seus impulsos, reivindicar respeito, nem identificar
espontaneamente um desejo de relacionar-se sexualmente. Portanto, ao induzir os
infantes a desejarem determinadas coisas, bem como a adotarem valores distorcidos
e artificiais, a mídia acaba contribuindo para o atropelamento da fase da infância,
mudando o curso natural do desenvolvimento infantil que vigorou durante a
modernidade.
Diante do exposto, passa-se à contextualização da erotização infantil no
cenário brasileiro, fazendo uma abordagem crítica à luz do que defende a doutrina da
proteção integral, que foi recepcionada e constitucionalizada pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
47

4. A PROBLEMÁTICA DA EROTIZAÇÃO INFANTIL NO CENÁRIO BRASILEIRO


À LUZ DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Com o acelerado avanço tecnológico das mídias eletrônicas, em particular a


Internet, adultos e crianças começam a ter acesso às mesmas informações, ao passo
que os infantes também se transformam em alvo de forte apelo comercial, sendo
descobertos como consumidores e, ao mesmo tempo, como objetos a serem
consumidos. Nesse sentido, uma série de produtos têm sido direcionados para eles
nos mais variados segmentos, além de ser possível observar que, cada vez mais, os
espaços têm sido planejados de modo a contemplar e atrair o público infantil.88
No Brasil, percebe-se que as propagandas, os programas de televisão, os
sites de jogos infantis e etc. reproduzem concepções preconceituosas tanto com
relação às identidades de gênero, quanto com às identidades sexuais.
Nesse viés, em um estudo realizado, procurou-se analisar o que os conteúdos
no universo virtual, destinados ao público infantil, especialmente através de sites de
jogos, veiculam no que diz respeito às narrativas sobre relações de gênero e
sexualidade. Os resultados apontam que, no caso de sites voltados para as meninas
a ênfase recai sobre atividades voltadas ao culto e embelezamento do corpo, aos
cuidados da casa e a busca do par perfeito. No que tange aos meninos, as atividades
propostas, em sua maioria, compreendem jogos de ação e velocidade, bem como que
estimulam o raciocínio lógico-matemático. Destarte, é possível perceber que esses
sites reproduzem uma visão extremamente binária, em que meninos e meninas
seguem em mundos completamente separados, bem como são repletos de linguagem
sexista, estabelecendo padrões heteronormativos, com estratégias de sedução
associadas a um processo de embelezamento e à produção de um corpo erotizado,
para a contemplação masculina.89
Com isso, da análise desses jogos, depara-se com uma excessiva exposição
dos corpos e da sexualidade, incrementadas por uma indisfarçável desigualdade de
gênero, onde as mulheres são visibilizadas de forma discriminatória. Desse modo, a
responsabilidade sobre o controle dessas informações, do que é considerado

88 FELIPE, Jane; GUIZZO, Bianca. Erotização dos corpos infantis na sociedade de consumo. Pro-
Posições, Campinas, v. 14, n. 3 (42), p. 119-132, set./dez, 2003. p. 120.
89 FELIPE, Jane. “Vinde a mim as criancinhas”: pedofilização e a construção de gênero nas mídias

contemporâneas. In: PELÚCIO, Larissa... [et. al] (organizadores). Olhares plurais para o cotidiano:
gênero, sexualidade e mídia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 89.
48

apropriado para determinada faixa etária, fica a cargo, principalmente, das famílias.
No entanto, ao transferir essa responsabilidade apenas para o âmbito doméstico,
despolitiza-se o tema, pois esta é uma discussão que as políticas públicas, os diversos
segmentos da sociedade civil, bem como a escola deveriam abraçar a fim de promover
uma visão crítica dos temas que envolvem tais questões.90
Fato é que, em nossa sociedade, corpos masculinos e femininos não têm sido
percebidos e valorizados da mesma forma, existindo uma tendência em hierarquizá-
los, de modo que o masculino ainda se encontra em posição mais vantajosa. Levando
isso em consideração, a construção social da identidade feminina está calcada em
grande parte, nos dias atuais, na objetificação do corpo, o qual é cirúrgico, esculpido
e produzido, verdadeiro fetiche de consumo. Não obstante, as práticas corporais e
estéticas em torno do embelezamento também têm legitimado projeções e padrões
corporais para as crianças, em especial para as meninas, que em suas falas e
comportamentos demonstram grande preocupação com a aparência.
Com efeito, muito do conteúdo midiático voltado às meninas investe na ideia
de cultivo à beleza como algo inerente ao feminino, aliada sempre ao supérfluo, ao
consumo desenfreado, na tentativa de reafirmar a beleza e a vaidade como uma
essência feminina.91 Ademais, é possível verificar que a representação de pureza e
ingenuidade, suscitada pelas imagens infantis, tem sido substituída por outra
extremamente erotizada, principalmente com relação às meninas.
Diante disso, é comum que a mídia mostre as meninas manifestando-se num
misto de inocência e erotização, o que produz uma contradição entre a inocência
infantil, vista como algo que precisa ser conservado, e a erotização, que é
recorrentemente estimulada.92 A despeito disso, tal processo de erotização tem
produzido efeitos significativos na construção das identidades de gênero e identidades
sexuais das crianças, especialmente as do sexo feminino. Por conseguinte, o discurso
do prazer voyeurista, erotizado e sedutor é uma forma de objetivação das meninas, o
que mostra como a história do indivíduo se confunde também com a história de sua

90Ibidem, p. 93.
91 FELIPE, Jane; GUIZZO, Bianca. Erotização dos corpos infantis na sociedade de consumo. Pro-
Posições, Campinas, v. 14, n. 3 (42), p. 119-132, set./dez, 2003. p. 128.
92 DORNELES, Leni Vieira. Sobre Meninas no Papel: inocentes/ erotizadas? As meninas hoje.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 175-192, set/dez, 2010. p. 186.
49

objetivação, que produz formas de subjetivação que influenciam no modo pelo qual
as pessoas se enxergam.93
Dentro dessa lógica, as crianças, em especial as meninas, têm sido colocadas
em contato com o desejo sexual adulto, bem como têm sido estimuladas a produzirem
seus corpos, de acordo com os ditames culturais de embelezamento vigentes em
nossa sociedade. Com isso, o referido processo traz consigo reiterados apelos a
erotização dos corpos das meninas, em um movimento que a doutora em Educação
da UFRGS e especialista nas áreas de Sexualidade e Relações de Gênero, Jane
Felipe de Souza, chama de pedofilização como prática social contemporânea.
Insta salientar que o conceito de pedofilização não deve ser confundido com
o de pedofilia, pois esta é entendida como uma parafilia, em que o sujeito adulto sente
desejo sexual por crianças. Por sua vez, o conceito de pedofilização é mais amplo e
pretende problematizar a conivência dos corpos infantis com a erotização. Assim, ao
abordar a erotização dos corpos infantis, a Dra. Jane Felipe não nega toda e qualquer
possibilidade erótica dos sujeitos infantis, nem defende a ideia de que os corpos
infantis sejam assexuados, tendo em vista que os infantes aprendem rapidamente que
o corpo pode ser fonte de prazer, de dor, de experiências múltiplas.
Com efeito, o que essa estudiosa procura destacar e problematizar é qual tipo
de projeto que, enquanto produtores de determinada cultura, estamos a desenvolver
para as crianças. Isso porque os infantes começam a aprender desde cedo qual é o
valor atribuído a determinados corpos nesta sociedade e notam que alguns corpos e
comportamentos são mais valorizados que outros. Desse modo, a sociedade ocidental
atual coloca como centro um estereótipo de corpo belo que deve ser alcançado, o
erotizando, de forma que os sujeitos muitas vezes são avaliados de acordo com a sua
capacidade de sedução.
Diante disso, o conceito de pedofilização tem por objetivo problematizar as
contradições percebidas na sociedade brasileira, pois ao mesmo tempo em que se
criam leis para proteção da infância contra os maus-tratos, a negligência, o abandono,
a violência/abuso sexual, a exploração sexual comercial e a pedofilia, por outro lado,
essa mesma sociedade legitima determinadas práticas sociais, seja através da mídia,

93 Ibidem, p. 185.
50

da música, filmes, etc., em que o público infantil é acionado de forma extremamente


sedutora, com modos de ser e de se comportar bastante erotizados.94
Cabe mencionar que a pedofilização possui estreita relação com o consumo,
uma vez que, atualmente, as crianças têm sido descobertas como consumidoras
exigentes, ao passo que também se transformaram em objetos a serem consumidos
e desejados. Assim, é possível observar a grande quantidade de programas de TV
que investem cada vez mais em quadros específicos para crianças, onde elas são as
grandes protagonistas, bem como o fato de que as meninas têm passado a imitar,
cada vez mais cedo, mulheres adultas muito sensuais.95
Diante disso, como já visto, com o conhecimento produzido a partir do século
XVIII, acerca das características e necessidades da infância, a ideia da criança como
sujeito de direitos, merecedora de dignidade e respeito, devendo ser preservada em
sua integridade física e emocional foi sendo consolidada. No século XIX foram criadas
várias leis para garantir proteção e bem-estar à infância, implicando um maior controle
do Estado, inclusive com relação à sexualidade infanto-juvenil.
Nesse sentido, à luz da doutrina da proteção integral, justifica-se a proteção
integral e a prioridade absoluta dos direitos das crianças pelo fato natural de serem
pessoas em situação especial, em processo peculiar de desenvolvimento e
suscetíveis a graves violações, diante da omissão da família, da sociedade e do
Estado. Por sua vez, a proteção integral inclui reconhecer, respeitar e garantir a
personalidade individual de cada criança, na qualidade de sujeito de direitos, a fim de
propiciar seu adequado desenvolvimento, com o pleno aproveitamento de suas
potencialidades.
Por sua vez, a partir da leitura dos arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do
Adolescente, é possível perceber a influência da doutrina da proteção integral no
ordenamento jurídico brasileiro ao disporem que a criança e o adolescente gozam de
todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata o Estatuto, sendo assegurado ao público infanto-juvenil todas as
oportunidades e facilidades necessárias ao seu adequado desenvolvimento físico,

94 FELIPE Jane; PRESTES, Liliane Madruga. Erotização dos corpos infantis, pedofilia e
pedofilização na contemporaneidade. Disponível em: <
http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/2538/820>. Acesso
em: 04 out. 2017. p. 8.
95 FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 201-223,

2006. p. 220.
51

mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Sendo,


ainda, dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e
adolescentes.
Eis, então, a contradição apontada pela Dra. Jane Felipe. Apesar das
conquistas legais já mencionadas ao longo desse trabalho, no que se refere à
proteção de crianças e adolescentes, tem-se observado de forma crescente a
visibilidade dos corpos infantis como objetos de consumo e de erotização, em tempos
de espetacularização dos corpos e da sexualidade.96
Isto posto, os programas tidos como infantis geralmente misturam inocência
com um elevado teor de sensualidade e erotização, o cenário musical brasileiro
apresenta diversas bandas que possuem uma imensa carga erótica em suas
composições, coreografias e figurinos (reproduzidos pelas crianças), a televisão,
embora torne o sexo mais precoce, não oferece a devida orientação que o tema
merece. Por conseguinte, a banalização da sexualidade, bem como a vulgarização e
exposição do corpo infantil a um amadurecimento sexual precoce, sem o devido
desenvolvimento psicológico, gera ansiedade e diversos traumas, em virtude da
dificuldade do entendimento.
Destarte, ao mesmo tempo em que a sociedade cria, por um lado, leis de
proteção à infância, incentiva-se, por outro, a exibição dos corpos infanto-juvenis
como objetos de desejo e sedução e talvez não seja por acaso que, nos últimos anos,
índices significativos de meninas estejam iniciando cada vez mais cedo sua vida
sexual ativa, bem como, há uma década, o índice de gravidez entre garotas de 10 e
14 anos não diminui97.
De acordo com os números, a gravidez entre meninas dessa idade ocorre em
todo o país, principalmente nas áreas mais pobres, alcançando os piores índices na
região Norte. Por conseguinte, percebe-se que a taxa de fecundidade entre garotas
nessa faixa etária não tem caído, ao contrário da tendência geral do país, em que se

96 FELIPE, Jane. “Vinde a mim as criancinhas”: pedofilização e a construção de gênero nas mídias
contemporâneas. In: PELÚCIO, Larissa... [et. al] (organizadores). Olhares plurais para o cotidiano:
gênero, sexualidade e mídia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 87-88.
97 Dado obtido pelo banco de dados do Ministério da Saúde (Datasus), que reúne os registros de

maternidades e cartórios pelo site: PORTAL DA SAÚDE. Estatísticas Vitais. Disponível em: <
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205&id=6936>. Acesso em: 24 out. 2017.
52

observa queda nos nascimentos tanto entre adolescentes, quanto entre mulheres
adultas.
Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) no Brasil, um dos motivos que causam essa ausência de
diminuição na taxa de fecundidade é a ausência de educação sexual. Para essa
Organização, a educação sobre sexualidade e gênero deve começar desde os cinco
anos, para meninas e meninos. Ocorre que o ensino de temas envolvendo
sexualidade e prevenção à gravidez sofreu enorme retrocesso no Brasil desde 2011,
quando a polêmica envolvendo o material educativo Escola sem Homofobia – tachado
popularmente de "kit gay"98 – gerou o recolhimento de todo o suporte didático para
educação sexual, que era distribuído desde 2003.99
Assim, diante de um ambiente muito mais sensualizado do que o de outrora,
a orientação da UNESCO é que os assuntos sobre o conhecimento do corpo e por
que se sente o desejo sejam adaptados a cada faixa etária, a fim de fornecer meios
de as crianças saberem como se proteger de uma gravidez, como postergar sua vida
sexual, como se resguardar de doenças ou até mesmo como identificar abusos
sexuais. Ademais, para a UNESCO no Brasil, aprofundar o debate sobre sexualidade
e gênero contribui para uma educação mais inclusiva, equitativa e de qualidade, sendo
de grande importância a educação, uma vez que é compreendida como canal
formador de cidadãos que respeitem as várias dimensões humanas e sociais sem
preconceitos e discriminações.100
Nesse sentido, a educação acontece numa variedade de locais sociais, além
do espaço escolar, sendo as pedagogias culturais também responsáveis por produzir
conhecimentos e ensinar modos de ser e estar no mundo. Há, portanto, a necessidade
de se ampliar a discussão em torno da sexualidade e das relações de gênero, pois
estas são compostas de relações de poder, de modo a desafiar o público infanto-
juvenil a pensar nas formas como os sujeitos estão sendo produzidos e como suas

98 Para entender sobre o kit: SOARES, Wellington. Conheça o "kit gay" vetado pelo governo
federal em 2011. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-
pelo-governo-federal-em-2011>. Acesso em: 27 out. 2017.
99 SCHREIBER, Mariana. 'Sinto saudade de ser criança': em uma década, gravidez de meninas de

10 a 14 anos não diminui no Brasil. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40969456>.


Acesso em: 27 out. 2017.
100 ONUBR. UNESCO defende educação sexual e de gênero nas escolas para prevenir violência
contra mulheres.Disponível em: <https://nacoesunidas.org/unesco-defende-educacao-sexual-e-de-
genero-nas-escolas-para-prevenir-violencia-contra-mulheres/>. Acesso em: 27 out. 2017.
53

identidades, inclusive as sexuais, vão se constituindo a partir de diferentes


discursos.101 Pressupõe-se, então, a imprescindibilidade de um trabalho educativo
comprometido em promover a autonomia do educando, bem como que busque a
superação de padrões comportamentais hierarquizados, estereotipados e
preconceituosos, por meio da compreensão dos aspectos sociais, históricos e
políticos que influenciaram a sua construção. 102
Com efeito, diante da realidade apresentada e das influências negativas dos
meios midiáticos, o contexto escolar possui grande relevância por ser o ambiente onde
a criticidade deveria ser estimulada, contribuindo na formação de cidadãos críticos e
reflexivos. Isto é, aguçando nos alunos a criticidade do que leem e veem na mídia
televisa, impressa e virtual, poder-se-ia aplacar a influência desses meios. Dentro
desta ótica, a educação sexual tem o importante papel de atenuante dos impactos
ocasionados pelos fortes apelos eróticos da mídia na formação da criança.103
Assim, a partir do momento que a educação sexual ultrapassa o domínio
sociocultural mais amplo, que faz parte da história pessoal dos indivíduos – isto é, o
conhecimento informal da educação sexual adquirido pela família, pela cultura, pela
sociedade, pela mídia, pela religião, etc. – e se converte em objeto de ensino e
aprendizagem, com planejamento, organização, objetivos, métodos e didáticas
próprias, ela baliza sua ação ao recinto escolar. No entanto, a educação sexual nas
escolas brasileiras tem se caracterizado ora pela omissão, ora pelo caráter
extremamente biológico e psicológico sob o qual é tratado, ignorando-se os aspectos
sociológicos, econômicos, políticos, históricos, religiosos e culturais que envolvem a
questão.104
Diante do crescente processo de erotização das crianças e levando em
consideração que a sexualidade é algo inerente ao ser humano, acredita-se que um
trabalho bem elaborado de educação sexual no ambiente escolar, comprometido em
respeitar o desenvolvimento natural da criança, traria contribuições importantes para
a infância. Isto porque, a criança que recebe os devidos esclarecimentos acerca de
questões relacionadas à sexualidade, tem maiores possibilidades de, futuramente,

101 FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 201-223,
2006. p. 222.
102 MUZZETI, Op. cit. p 646.
103 Ibidem, p. 642.
104 Ibidem, p. 644.
54

entender e adquirir responsabilidades com relação ao seu próprio corpo, saúde e


higiene.105
Dessa forma, em atenção à doutrina da proteção integral, é dever da família,
da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos das crianças, garantindo além do seu adequado
desenvolvimento, o aproveitamento integral de suas potencialidades. Para tanto, certo
é que deve haver a conservação de cada uma das etapas da vida, respeitando-se as
características próprias das crianças e sua condição de sujeitos de direito.
Destarte, deixar claro o que seria próprio de cada fase da vida, sem
supervalorizar determinadas situações, promover uma boa educação sexual, bem
como postergar a descoberta da sexualidade, no sentido genital, para o momento
mais adequado, seria indispensável para se evitar uma hiperssexualização das
crianças e a violação dos seus direitos.
Um exemplo emblemático, no Brasil, de tudo já explorado ao longo do
presente trabalho acerca da erotização infantil é o caso dos funkeiros mirins. No
entanto, para melhor compreensão da problemática que os envolve, necessária se faz
uma breve análise do gênero musical denominado Funk.
A raiz de todo o movimento funk que hoje se apresenta como tradução
cultural, especialmente da periferia do Brasil, não é brasileira. Na verdade, sua origem
está ligada aos Estados Unidos, sendo derivado da soul music, que é o resultado da
mistura do rhythm & blues e da música gospel.106
Por sua vez, a música funk brasileira, também chamada inicialmente de funk
carioca, se desenvolveu no Rio de Janeiro no começo dos anos 70. À época, o baile
funk era uma atividade suburbana, geralmente localizado perto das favelas e
frequentado por uma juventude proveniente das camadas de baixa renda, em grande
parte negra. Dessa forma, suas letras retratavam a realidade dos moradores das
favelas cariocas – muitas vezes com letras que faziam menção ao sexo, drogas e
violência – e seus desejos de conquista.107
Já em meados de 1976, a imprensa brasileira descobre o funk e seus bailes,
o que fez com que nos anos seguintes eles se espalhassem pelo país em movimentos

105 Ibidem, p. 645.


106 VIANA, Lucina Reitenbach. O Funk do Brasil: música desintermediada na cibercultura. Sonora,
Campinas, v. 3, nº 5, 2010.
107 VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2014. p. 18-23.
55

locais. Até então, o funk era produzido na periferia para consumo direto da própria
periferia, independente de intermediários. A partir dos anos 90, houve a consolidação
do funk nacional, com músicas com letras totalmente em português e, após o período
de consolidação nacional, o funk encontrou espaços nunca antes imaginados.108
Com efeito, nos anos 2000, o funk passa a ocupar recintos distintos de seus
bailes de origem e, com um ritmo dançante, se populariza por todo o país. Ademais,
malgrado o conteúdo sexual e erotizado estar presente desde sempre, as músicas de
letras mais explícitas foram classificadas posteriormente como “funk proibidão”, de
modo a serem distinguidas dos demais tipos utilizados, tendo em vista o impacto que
suas letras causavam.109
Destarte, pode-se afirmar que o gênero musical conhecido como funk possui
em suas composições referências explícitas a práticas sexuais, sem sutilezas, nas
quais os órgãos genitais são mencionados, bem como os atos sexuais em suas mais
variadas formas são proclamados, sendo as músicas acompanhadas de coreografias
sensuais, que remetem à exibição dos corpos femininos. Trata-se, portanto, de um
repertório repleto de referências explícitas ao exercício da sexualidade.110
Como é possível perceber, o corpo erotizado é constantemente colocado em
discurso através de diferentes artefatos culturais, sendo que um dos que mais tem
ampliado significativamente seu campo de ação, no que tange à espetacularização da
sexualidade, trata-se da música. Ocorre que, enquanto artefatos culturais, as músicas
estão a transmitir modos de ser e sentir, expressando concepções de mundo de
determinada época e cultura, auxiliando na constituição dos sujeitos. Outrossim, elas
evidenciam, entre outras coisas, formas de representar homens e mulheres e suas
relações afetivo sexuais.111
Nesse sentido, nada há de oculto nas mensagens que são transmitidas às
crianças, através dessas canções com conteúdo erótico. Cabe esclarecer, por
oportuno, que o erótico não se restringe apenas ao exercício das práticas sexuais,
mas abrange também um conjunto de práticas e estratégias que produz sentidos
sobre as práticas sexuais. Isto é, que remetem ao entendimento de que as práticas

108 VIANA, Op. cit.


109 VIANNA, Op. cit.
110 FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 201-223,

2006. P. 218.
111 Ibidem, p. 217.
56

sexuais são banais, bem como que os prazeres relacionados ao sexo devem ser
vividos intensamente por todos indistintamente.112
Destarte, atualmente, as crianças – principalmente das periferias – acabam
sendo bombardeadas pelas produções das grandes corporações midiáticas,
tornando-se expectadoras ativas e produzindo seus próprios significados quanto aos
referidos conteúdos musicais. Por conseguinte, movimento comum é o aparecimento
dos chamados MCs mirins, crianças e adolescentes que interpretam a música funk
brasileira nas redes de Internet e em shows ao vivo, tornando-se famosas.
A denúncia realizada por alguns cidadãos, que pediam a avaliação legal
acerca da exposição dos funkeiros mirins, suscitou a ação investigativa do Ministério
Público de São Paulo recaindo sobre algumas crianças – por exemplo, MCs Pedrinho,
Pikachu, Brinquedo e Melody – na pessoa de seus responsáveis, entre 2014 e 2015.
Por sua vez, o Ministério Público abriu uma investigação sobre a atuação de crianças
e adolescentes no chamado funk proibidão, em virtude desse estilo apresentar letras
e danças com apologia ao sexo, às drogas e ao crime, sendo consideradas
inadequadas para menores.113
Assim, o Ministério Público de São Paulo, no inquérito civil 103/2015, alegou
que a exposição dos funkeiros mirins viola a dignidade de crianças e adolescentes por
parte de seus produtores e dos publicadores na internet, além do direito ao respeito
consistente na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral desses "artistas
mirins", cuja imagem, identidade, autonomia, valores, ideias e crenças também
acabam sendo afrontados. 114
Portanto, visualiza-se que, nesse meio, as crianças cantam e desempenham
coreografias inadequadas para suas faixas etárias, em especial pelo forte conteúdo
erótico e de apelos sexuais, com termos depreciativos, apologia a drogas, a crimes e
prostituição. Os repertórios ainda podem ser agressivo e menosprezar a mulher,

112 SILVA, Clara Beatriz Santos Pereira da. O consumo cultural das músicas pop com conteúdos
eróticos: constituindo identidades infantis na contemporaneidade. 2016. 124 f. Dissertação (Mestrado)
- Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2016. p. 30.
113 MALDONADO, Helder. Promotor explica investigação dos funkeiros mirins: "Brasil é
democrático, mas não é um bordel". Disponível em: <https://diversao.r7.com/pop/promotor-explica-
investigacao-dos-funkeiros-mirins-brasil-e-democratico-mas-nao-e-um-bordel-13062017>. Acesso em:
29 out. 2017.
114 CARTA CAPITAL. Justiça investiga Mc Melody e os “MCs mirins”. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2015/04/27/justica-investiga-mc-melody-e-os-mcs-mirins/>.
Acesso em: 30 out. 2017.
57

colocando-a em posição de objeto, usando palavras de baixo calão. Ademais, os


acessos ao desempenho desses MCs mirins são feitos também por público da mesma
faixa etária que eles, produzindo impacto nocivo tanto a quem se exibe quanto àqueles
que o acessam.115
As crianças que interpretam este gênero musical têm sua integridade psíquica
e moral violadas, especialmente pela falta da capacidade cognitiva necessária para
compreender todo o conteúdo impróprio que está cantando ou interpretando.
Outrossim, com a disponibilidade de acesso pelas redes de Internet de vídeos e
imagens da criança interpretando funk com conteúdo erótico, a imagem da própria
criança acaba sendo sexualizada, levando ao público um estereótipo de sua
identidade, incompatível com seu desenvolvimento etário.
Um exemplo recente de funkeiro mirim é o MC Doguinha, de 12 anos, que
lançou no dia 25 de outubro deste ano o clipe da música "Vem e Brota Aqui na Base",
com mais de 6 milhões de visualizações no YouTube116. No clipe, o funkeiro mirim
assume a postura de um homem adulto – ostenta carro de luxo, mansão, cordão de
ouro, interage com mulheres muito mais velhas, faz gestos em referência ao ato
sexual – enquanto canta frases como “Vem e brota aqui na base, vamos fazer
sacanagem, sei que você tem vontade, então, senta um pouquinho”. Outro exemplo
bastante discutido na mídia foi a da Mc Melody, que canta músicas obscenas, com
alto teor sexual e se veste, dança e faz poses extremamente sensuais, para uma
menina de apenas 8 anos.
Considerando que a infância é um momento de formação e construção de
valores, deve ser respeitado o melhor interesse do menor, fornecendo à criança
condições de desenvolvimento com dignidade e educação. Por conseguinte, com a
exposição das imagens e vídeos dos MCs mirins, os pais, responsáveis e produtores
musicais excedem as recomendações do ECA e violam seu art. 17, o qual preleciona
que o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e
moral da criança o que abrangeria também a preservação da imagem, da identidade,
da autonomia, dos valores, ideias e crenças, bem como dos espaços e objetos
pessoais.

115CARTA CAPITAL, Op. cit.


116 YOUTUBE. Vem e Brota Aqui na Base. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=YsLR6UAlvaE>. Acesso em: 30 out. 2017.
58

Com efeito, muitos desses Mcs mirins apresentam-se em casas de shows,


eventos e matinês – festas mensais que ocorrem no sábado ou no domingo, das 15
às 22 horas. Ocorre que, por vezes, os próprios pais influenciam a entrada de seus
filhos no meio musical do funk, para lucrarem, sendo tal fato alvo de apuração do
Ministério Público, de modo a saber se seria o caso de exploração de menores por
parte dos pais.117
Nessa perspectiva, o direito à dignidade e ao desenvolvimento integral das
crianças nem sempre são preservados pela família biológica, assim, em que pese a
tendência de buscar, em atenção à garantia de convivência familiar, o fortalecimento
dos vínculos familiares e a manutenção das crianças e adolescentes no seio da família
natural, em certas circunstâncias, o que melhor atende aos interesses do infante é a
destituição do poder familiar.118
Por sua vez, o poder familiar converteu-se em um múnus, sendo mais um
dever do que poder. Não obstante, a expressão que mais goza da simpatia da doutrina
é autoridade parental. Esta reflete melhor a profunda mudança que resultou da
consagração constitucional do princípio da proteção integral de crianças, uma vez que
destaca que o interesse dos pais está condicionado ao interesse do filho, que legitima
e fundamenta a autoridade dos pais.119 Ademais, com a transformação do filho de
objeto de poder para sujeito de direito, o conteúdo do poder familiar precisou se
modificar, de maneira a condizer com o interesse social envolvido. Não se trata,
portanto, do exercício exclusivo de uma autoridade, mas de um encargo imposto por
lei aos pais, para servir ao interesse dos filhos de zero a dezoito anos.120
O poder familiar corresponde à deveres não apenas no campo material, mas,
também, no campo existencial, devendo os pais satisfazer outras necessidades dos
filhos, notadamente de índole afetiva. Dessa forma, o poder familiar compreende o
conjunto de faculdades encomendadas aos pais, com o objetivo de proporcionar o
pleno desenvolvimento e a formação integral dos filhos, seja física, mental, moral,
espiritual ou social. Insta salientar que o princípio da proteção integral imprimiu nova

117 SOARES, Ana Carolina. Promotores tentam enquadrar pais de funkeiros por exploração de
menores. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/cidades/funk-cantores-mirins-justica-mc-
melody/>. Acesso em: 30 out. 2017.
118 DIAS, Op. cit. p. 50.
119 Ibidem, p. 461.
120 Ibidem.
59

configuração ao poder familiar, tanto que o inadimplemento dos deveres a ele


inerentes configura infração121 susceptível à pena de multa.122
Por seu turno, o Estado, a fim de defender os interesses dos menores, tem o
dever de fiscalizar o adimplemento de tal encargo, podendo suspender e até excluir o
poder familiar. Logo, quando um ou ambos os genitores deixam de cumprir com os
deveres decorrentes do poder familiar, mantendo comportamentos que prejudiquem
o filho, o Estado deve intervir, pois a prioridade é a preservação da integridade física
e psíquica dos infantes, nem que para isso o Poder Público tenha de afastá-los do
convívio de seus pais.123
Isto posto, a suspensão e a destituição do poder familiar constituem sanções
aplicadas aos genitores por infração aos deveres que lhes são inerentes, no intuito
não de punir, mas preservar o interesse dos filhos, afastando-os de influências
nocivas. Não obstante, levando-se em consideração as sequelas que a perda do
poder familiar ocasiona, sua decretação só deve acontecer quando sua permanência
colocar em perigo a segurança ou a dignidade da prole, nesse viés, existindo a
possibilidade de recomposição dos laços de afetividade, preferível somente a
suspensão do poder familiar.124
A Lei civil dispõe de forma genérica acerca das causas de suspensão e de
extinção do poder familiar, dispondo o juiz de ampla liberdade na identificação dos
fatos que possam levar ao afastamento temporário ou definitivo das funções parentais.
Nesta perspectiva, a suspensão do poder familiar é tida como medida menos grave,
facultativa, sujeita à revisão, pode ser decretada apenas com relação a um único filho,
e não a todos, bem como pode abranger somente algumas das prerrogativas do poder
familiar. Caso sejam superadas as causas que a provocaram e for constatado que a
convivência familiar atende ao melhor interesse do filho, a suspensão poderá ser
cancelada.125
Destarte, a suspensão do exercício do poder familiar será cabível, conforme
o art.1.637 do Código Civil, nas hipóteses de abuso de autoridade, isto é, quando os
genitores faltarem aos deveres a eles inerentes ou arruinarem os bens dos filhos.

121 Art. 249 do ECA: Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou
decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar:
Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência
122 DIAS, Op. cit. p. 462.
123 Ibidem, p. 470.
124 Ibidem.
125 Ibidem, p. 471.
60

Quanto aos deveres dos genitores, segundo o art. 227 da Constituição Federal,
compreendem a obrigação de sustento, guarda e educação dos filhos, cabendo
assegurar-lhes vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura,
dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária, além de não poder
submetê-los à discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Por sua vez, a doutrina faz distinção entre perda e extinção do poder familiar,
sendo a perda medida imperativa e que abrange toda a prole – pois representa um
reconhecimento judicial que o titular do poder familiar não está capacitado para o seu
exercício – oriunda de uma sanção imposta por sentença judicial, por infringência de
um dever mais relevante, enquanto a extinção ocorre pela morte, emancipação ou
extinção do sujeito passivo. Dessa forma, de acordo com o art. 1.635 do CC, o poder
familiar é extinto pela morte dos pais ou do filho; pela emancipação; pela maioridade;
pela adoção do filho por terceiros; e em virtude de decisão judicial. Já no que diz
respeito à perda, conforme o art. 1.638 do CC, perde-se judicialmente o poder familiar
quando comprovada a ocorrência de castigo imoderado; abandono; prática de atos
contrários à moral e aos bons costumes; e reiteração de falta aos deveres inerentes
ao poder familiar. Insta salientar que as hipóteses expostas não são taxativas, mas
exemplificativas.
Cabe mencionar que a perda da autoridade parental por ato judicial leva à
extinção do poder familiar, isto é, ao término definitivo, ao fim do poder familiar. No
entanto, inclina-se a doutrina em admitir a possibilidade de haver a revogação da
medida, considerando que a perda do poder familiar não deve implicar em
impossibilidade permanente, podendo os pais recuperá-lo em procedimento judicial
de caráter contencioso, desde que comprovem a cessação das causas que
determinaram.126
Ante o exposto, como o princípio da proteção integral dos interesses da
criança, por imperativo constitucional, deve guiar qualquer medida que envolva o
público infantil, caso seja verificado que o direito à dignidade e ao desenvolvimento
integral das crianças que são Mcs mirins não são respeitados pelos genitores, e, que
pelo contrário, há uma exploração dos menores, com intuito lucrativo, seria hipótese
de análise judicial para a possível admissibilidade de suspensão ou perda do poder
familiar, em tais circunstâncias.

126 Ibidem. p. 474.


61

5. CONCLUSÃO

Assegurar direitos essenciais às pessoas adquire especial relevância no


ordenamento jurídico internacional com o fim das bárbaras guerras do século XX.
Desde então, houve significativo progresso na garantia de direitos que tutelassem a
dignidade da pessoa humana universalmente, principalmente para sujeitos em
peculiar condição de vulnerabilidade frente ao Estado, como as crianças.
Diante disso, após as nefastas consequências das guerras mundiais,
constatou-se a necessidade de ofertar uma proteção integral, com prioridade absoluta,
para crianças e adolescentes, pelo fato natural de serem pessoas em situação
especial, em fase de desenvolvimento, faltando-lhes maturidade física e intelectual,
além de encontrarem-se vulneráveis frente à omissão da família, da sociedade e do
estado.
Assim, com o advento da Convenção sobre os Direitos das Crianças, houve
o abandono da ideia de crianças como objeto de proteção, consagrando-se a doutrina
da proteção integral, que se caracteriza, sobretudo, pela valorização da condição de
pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, considerando as crianças como
verdadeiros sujeitos de direitos.
Destarte, harmonizando-se com o cenário internacional, a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 adotou, finalmente, a doutrina da proteção
integral, revogando explicitamente a doutrina do menor em situação irregular. Com
isso, foi inserido na Constituição um sistema de proteção especial para o público
infanto-juvenil, reconhecendo sua condição peculiar de ser que ainda não
desenvolveu completamente sua personalidade humana e está em processo de
amadurecimento físico, psíquico, intelectual, emocional, moral e social. Outrossim,
como forma de consolidar as diretrizes da Carta Magna, foi promulgado o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, que possui perfeita simetria e harmonia
com o texto constitucional vigente.
Insta salientar que, para além das determinações biológicas e naturais,
culturalmente são produzidas significações para cada uma das etapas da existência
do homem. Levando isso em consideração, a construção social da infância mostra-se
um fenômeno histórico e cultural, não meramente natural, concretizando-se pelo
estabelecimento de valores morais, bem como expectativas de conduta para ela.
62

Ocorre que, no cenário atual, o desenvolvimento acelerado de novas


tecnologias e modalidades de comunicação além de possibilitar um amplo acesso a
informação, também incrementa novas formas de experimentação do desejo afetivo-
sexual nas suas mais diversas modalidades. Logo, novas estratégias de prazer são
reinventadas, muitas vezes pautadas pela lógica do consumo, onde o sexo é acionado
como protagonista.
Nesse sentido, observa-se que, na atualidade, as crianças são
constantemente bombardeadas por conteúdos midiáticos que estimulam sua
erotização excessiva. Desta feita, as representações sobre sexualidade, corpo e
gênero veiculadas pela mídia acabam interferindo na formação das identidades
infantis, em virtude de o infante ainda não ter organizado todos os impulsos e
impressões eróticas dispersos, num todo coerente.
Resta clara, portanto, a contradição presente na sociedade brasileira, tendo
em vista que a mesma sociedade que cria leis para proteção da infância, legitima
determinadas práticas sociais, seja através da mídia, da música, filmes, etc., em que
o público infantil é acionado de forma extremamente sedutora, com modos de ser e
de se comportar bastante erotizados.
Com efeito, diante da realidade que vivenciamos, o contexto escolar torna-se
de extrema relevância por ser o ambiente onde a criticidade deveria ser estimulada,
aguçando nos alunos um posicionamento crítico quanto ao que leem e veem na mídia,
o que contribuiria para o abrandamento da influência desses meios. Dentro desta
ótica, a educação sexual, além de atenuar os impactos ocasionados pelos fortes
apelos eróticos da mídia na formação da criança, proporcionaria também os devidos
esclarecimentos acerca de questões relacionadas à sexualidade, o que colaboraria
na formação de uma consciência infantil com relação ao seu próprio corpo, saúde e
higiene.
Desse modo, percebe-se que o corpo erotizado é constantemente colocado
em discurso através de diferentes artefatos culturais, sendo que um dos que mais tem
ampliado significativamente seu campo de ação, no que tange à espetacularização da
sexualidade, trata-se da música. Por conseguinte, o gênero musical conhecido como
funk possui um repertório repleto de referências explícitas ao exercício da
sexualidade, tendo em suas composições referências explícitas a práticas sexuais,
sem sutilezas, além de as músicas serem acompanhadas de coreografias sensuais,
que remetem à exibição dos corpos femininos.
63

Nessa perspectiva, a exposição dos chamados funkeiros mirins viola a


dignidade da criança, além do direito ao respeito consistente na inviolabilidade da
integridade física, psíquica e moral, tendo em vista a afronta de sua imagem,
identidade, autonomia, valores, ideias e crenças. Outrossim, nesses casos, uma vez
constatada a exploração dos menores pelos pais, poder-se-ia estar diante de hipótese
de se suspender ou perder o poder familiar, com intuito de resguardar o melhor
interesse da criança.
Ante o exposto, a proteção integral inclui reconhecer, respeitar e garantir a
personalidade individual de cada criança, na qualidade de sujeito de direitos, a fim de
propiciar seu adequado desenvolvimento, com o pleno aproveitamento de suas
potencialidades. Não obstante, ao impor aos infantes uma sexualidade não condizente
com sua fase, não há preservação do desenvolvimento integral das crianças,
desrespeitando as características que lhe são peculiares, o que demonstra que a
ultrapassada visão das crianças como meros objetos, vigente na doutrina do menor
em situação irregular de direito, ainda permanece latente na sociedade brasileira.
64

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