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Coletânea da Jurisprudência

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

22 de fevereiro de 2022 *

«Reenvio prejudicial — Estado de direito — Independência do poder judicial — Artigo 19.o,


n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia — Primado do direito da União — Falta de habilitação de um órgão jurisdicional
nacional para examinar a conformidade com o direito da União de uma legislação nacional
declarada conforme com a Constituição pelo tribunal constitucional do Estado-Membro em
causa — Procedimentos disciplinares»

No processo C-430/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do
artigo 267.o TFUE, pela Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia), por
Decisão de 7 de julho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de julho de 2021, no
processo instaurado por

RS,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen (relator), vice-presidente, A. Arabadjiev, C.


Lycourgos, E. Regan, S. Rodin, I. Ziemele e J. Passer, presidentes de secção, F. Biltgen, P. G.
Xuereb, N. Piçarra, L. S. Rossi, N. Wahl, D. Gratsias e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado-geral: A. M. Collins,

secretário: C. Di Bella, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 23 de novembro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

— em representação do Governo romeno, por E. Gane, L. Liţu e L.-E. Baţagoi, na qualidade de


agentes, assistidas por M. Manolache,

— em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, M. Jacobs e C. Pochet, na


qualidade de agentes,

— em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e J. Langer, na qualidade de


agentes,

* Língua do processo: romeno.

PT ECLI:EU:C:2022:99 1
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

— em representação da Comissão Europeia, por P. J. O. Van Nuffel, I. Rogalski e K. Herrmann, na


qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 20 de janeiro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o e do artigo 19.o, n.o 1,
segundo parágrafo, TUE, bem como do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia (a seguir «Carta»).

2 Este pedido foi apresentado no âmbito de uma ação intentada por RS para contestar a duração do
tratamento de processos penais instaurados na sequência de uma queixa apresentada pela sua
mulher.

Quadro jurídico

Constituição romena

3 O artigo 148.o, n.os 2 e 4, da Constituția României (Constituição romena) prevê:

«(2) Na sequência da adesão, as disposições dos Tratados constitutivos da União Europeia e as


outras regulamentações comunitárias vinculativas prevalecem sobre as disposições em contrário
da legislação nacional, em conformidade com o disposto no Ato de Adesão.

[…]

(4) O Parlamento, o Presidente da Roménia, o Governo e a autoridade judiciária garantem o


cumprimento das obrigações decorrentes do Ato de Adesão e do disposto no n.o 2.»

Código de Processo Penal

4 O artigo 4881 do codul do procedură penală (Código de Processo Penal) prevê que pode ser
apresentada uma contestação com vista a pedir a aceleração de um processo penal pelo menos
um ano após o início da instrução penal nos processos que se encontrem nessa fase.

5 O juiz responsável por processos em matéria de direitos e liberdades ou o órgão jurisdicional


competente deve, em aplicação do artigo 4885 deste código, apreciar o caráter razoável da
duração da instrução penal, tendo em conta uma série de elementos enunciados nessa disposição.

6 O artigo 4886, n.o 1, do referido código prevê que, quando considerar a contestação fundada, o juiz
responsável por processos em matéria de direitos e liberdades fixa o prazo em que o procurador se
deverá pronunciar sobre o processo.

2 ECLI:EU:C:2022:99
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

Lei n.o 303/2004

7 O artigo 99.o, alínea ș), da Legea nr. 303/2004 privind statutul judecătorilor și procurorilor (Lei
n.o 303/2004 relativa ao Estatuto dos Juízes e dos Procuradores), de 28 de junho de 2004
(Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 826, de 13 de setembro de 2005), na sua versão
aplicável ao processo principal (a seguir «Lei n.o 303/2004»), enuncia, nomeadamente, que o
incumprimento dos acórdãos da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional, Roménia)
constitui uma infração disciplinar.

Processo principal e questões prejudiciais

8 RS foi objeto de um processo penal no termo do qual foi condenado.

9 Em 1 de abril de 2020, a esposa de RS apresentou uma queixa-crime na qual denunciava,


nomeadamente, crimes de repressão ilícita e de abuso no exercício de funções praticados, no
âmbito desse processo penal, por um procurador e por dois juízes.

10 Uma vez que a referida queixa visa nomeadamente magistrados, a sua apreciação é da
competência da Secția pentru Investigarea Infracțiunilor din Justiție (Secção de inquéritos
relativos a infrações cometidas no sistema judiciário, a seguir «SIIJ»), instituída no Parchetul de
pe lângă Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Secção do Ministério Público junto do Tribunal
Superior de Cassação e Justiça, Roménia). Por Despacho de 14 de abril de 2020, um procurador
da SIIJ deu início à instrução de um processo penal contra os magistrados visados na referida
queixa por crimes de repressão ilícita e de abuso no exercício de funções.

11 Em 10 de junho de 2021, RS intentou uma ação no órgão jurisdicional de reenvio, prevista nos
artigos 4881 e seguintes do Código de Processo Penal, destinada a contestar o caráter excessivo da
duração da instrução dos processos penais instaurados na sequência da referida queixa e a obter a
fixação, por esse órgão jurisdicional, de um prazo dentro do qual o procurador a quem foi
apresentada a queixa deveria pronunciar-se.

12 O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para conhecer desta ação, deve examinar a
legislação nacional que instituiu a SIIJ.

13 Ora, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre
questões relativas a esta legislação nacional no Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia
«Forumul Judecătorilor Din România» e o. (C-83/19, C-127/19, C-195/19, C-291/19, C-355/19
e C-397/19, EU:C:2021:393).

14 O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que resulta nomeadamente desse acórdão que o direito
da União, em especial o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, deve ser
interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê a criação de
uma secção especializada do Ministério Público com competência exclusiva para investigar as
infrações cometidas pelos juízes e pelos procuradores, sem que a criação dessa secção seja
justificada por imperativos objetivos e verificáveis decorrentes da boa administração da justiça e
seja acompanhada de garantias específicas. Estas garantias devem permitir, por um lado, excluir
qualquer risco de que a secção em causa seja utilizada como um instrumento de controlo político

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ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

da atividade desses juízes e procuradores, suscetível de prejudicar a sua independência e, por


outro, garantir que essa competência possa ser exercida em relação a estes últimos no pleno
respeito das exigências decorrentes dos artigos 47.o e 48.o da Carta.

15 O órgão jurisdicional de reenvio salienta, além disso, que, no n.o 7 do dispositivo do referido
acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio do primado do direito da União deve ser
interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de grau constitucional de um
Estado-Membro, conforme interpretada pelo seu tribunal constitucional, segundo a qual um
órgão jurisdicional de grau inferior não está autorizado a deixar de aplicar, por iniciativa própria,
uma disposição nacional abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928/CE da
Comissão, de 13 de dezembro de 2006, que estabelece um mecanismo de cooperação e de
verificação dos progressos realizados na Roménia relativamente a objetivos de referência
específicos nos domínios da reforma judiciária e da luta contra a corrupção e a criminalidade
organizada (JO 2006, L 354, p. 56), e que, à luz de um acórdão do Tribunal de Justiça, tal órgão
jurisdicional considere contrária a esta decisão ou ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

16 O órgão jurisdicional de reenvio refere-se, mais amplamente, à jurisprudência constante do


Tribunal de Justiça segundo a qual qualquer juiz nacional tem a obrigação de não aplicar, no
litígio que lhe foi submetido, qualquer disposição nacional contrária a uma disposição de direito
da União que tenha efeito direto, bem como ao caráter vinculativo dos acórdãos proferidos a
título prejudicial pelo Tribunal de Justiça.

17 A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que o artigo 148.o, n.os 2 e 4, da
Constituição romena, prevê o primado das regras de direito da União.

18 No entanto, esse órgão jurisdicional salienta que, através do Acórdão n.o 390/2021, de 8 de junho
de 2021, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) julgou improcedente uma exceção de
inconstitucionalidade suscitada relativamente a várias disposições da legislação que regem a SIIJ.

19 Nesse acórdão, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) precisou, nomeadamente,


antes de mais, que, na medida em que o primado reconhecido ao direito da União é limitado, na
ordem jurídica romena, pela exigência de respeito da identidade constitucional nacional,
cabia-lhe assegurar a supremacia da Constituição romena em território romeno.
Consequentemente, considerou que, embora um órgão jurisdicional comum esteja habilitado a
examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição da legislação nacional, esse
órgão jurisdicional não está habilitado a examinar a conformidade com o direito da União de
uma disposição nacional que foi declarada conforme com o artigo 148.o da Constituição romena
pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional).

20 Acresce que, segundo a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), o n.o 7 do dispositivo do


Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor Din România» e o. (C-83/19,
C-127/19, C-195/19, C-291/19, C-355/19 e C-397/19, EU:C:2021:393), não tem fundamento no
que respeita à Constituição romena. Com efeito, embora o artigo 148.o da referida Constituição
consagre o primado do direito da União sobre as disposições contrárias da legislação nacional, as
relações estabelecidas em aplicação da Decisão 2006/928, em virtude do seu conteúdo e efeitos,
não constituem regras de direito da União que o juiz nacional deva aplicar com prioridade,
afastando a regra nacional contrária.

4 ECLI:EU:C:2022:99
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

21 Por último, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) precisou nesse mesmo Acórdão
n.o 390/2021, de 8 de junho de 2021, que, se por iniciativa própria alguns órgãos jurisdicionais
deixassem de aplicar disposições nacionais que consideram contrárias ao direito da União, ao
passo que outros as aplicariam considerando-as conformes com esse direito, a segurança jurídica
seria seriamente afetada, o que implicaria uma violação do princípio do Estado de direito.

22 Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que tem de determinar se lhe incumbe
agir em conformidade com a jurisprudência da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional),
como prevê o direito romeno, ou com a do Tribunal de Justiça, para decidir se está habilitado a
examinar a conformidade da legislação que instituiu a SIIJ com o direito da União.

23 Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, na hipótese de decidir atuar em
conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ao apreciar a compatibilidade dessa
legislação com o direito da União, os juízes em causa expor-se-iam a um processo disciplinar e a
uma eventual suspensão das suas funções, uma vez que o incumprimento de uma decisão da
Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) constitui, segundo o direito romeno, uma
infração disciplinar. O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a compatibilidade com o
direito da União, em particular com o princípio da independência dos juízes, de uma legislação
nacional que permite aplicar sanções disciplinares contra um juiz que, por força do princípio do
primado do direito da União, analisou a conformidade de uma disposição nacional com esse
direito, contrariando uma decisão do tribunal constitucional do Estado-Membro em causa.

24 Por outro lado, resulta de informações surgidas na imprensa e de dados disponíveis na Curtea de
Apel Pitești (Tribunal de Recurso de Pitești, Roménia) que já foi instaurado um processo
disciplinar contra um juiz que considerou, no âmbito de um litígio comparável ao que está em
causa no processo principal, que a legislação romena que instituiu a SIIJ é contrária ao direito da
União. Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a compatibilidade de tal processo disciplinar
com o direito da União suscita dúvidas.

25 Nestas circunstâncias, a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia)


decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo,
TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe-se a uma
disposição nacional, como a do artigo 148.o, n.o 2, da Constituição da Roménia, tal como
interpretada pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) na sua Decisão
n.o 390/2021, [de 8 de junho de 2021,] segundo a qual os juízes nacionais não podem
examinar a conformidade com as disposições do direito da União Europeia de uma
disposição nacional declarada constitucional por uma decisão da Curtea Constituțională?

2) O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo,
TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe-se a uma
disposição nacional, como a do artigo 99.o, alínea ș), da [Lei n.o 303/2004], que permite a
instauração de um processo disciplinar e a aplicação de sanções disciplinares a um juiz pela
inobservância de um acórdão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), quando o
juiz seja chamado a estabelecer o primado da aplicação do direito da União Europeia, face aos
considerandos de uma decisão da Curtea Constituțională, disposição nacional que proíbe o
juiz de aplicar um acórdão do Tribunal de Justiça […] e ao qual esse juiz reconhece o primado?

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ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

3) O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo,
TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe-se às práticas
judiciais nacionais que proíbem esse juiz, sob pena de sanções disciplinares, de aplicar a
jurisprudência do Tribunal de Justiça […] em processos penais como a reclamação relativa à
duração razoável do processo penal, regulada pelo artigo 4881 do [Código de Processo
Penal]?»

Quanto à tramitação do processo no Tribunal de Justiça

26 O órgão jurisdicional de reenvio pediu ao Tribunal de Justiça que o presente reenvio prejudicial
fosse submetido a tramitação prejudicial urgente ou, a título subsidiário, a tramitação acelerada,
previstas no artigo 23.o-A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

27 Em apoio deste pedido, o órgão jurisdicional de reenvio alegou que o processo que está na origem
do presente reenvio prejudicial diz respeito a uma violação grave da independência dos órgãos
jurisdicionais romenos e que as incertezas ligadas à legislação nacional em causa no processo
principal são suscetíveis incidir no funcionamento do sistema de cooperação judiciária
constituído pelo mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE.

28 Em primeiro lugar, o pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente foi indeferido pela
Primeira Secção do Tribunal de Justiça por Decisão de 30 de julho de 2021, sob proposta do
juiz-relator, ouvido o advogado-geral.

29 No que toca, em segundo lugar, ao pedido de aplicação da tramitação acelerada, importa recordar
que o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça prevê que, a pedido do
órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal
pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o
juiz-relator e o advogado-geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.

30 Em 12 de agosto de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz-relator e o


advogado-geral, deferir o pedido de tramitação acelerada do presente reenvio prejudicial.

31 Com efeito, quando um processo suscita graves incertezas que dizem respeito a questões
fundamentais de direito constitucional nacional e de direito da União, pode ser necessário, tendo
em conta as circunstâncias particulares desse processo, examiná-lo em prazos curtos, em
conformidade com o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo (Despacho do presidente do
Tribunal de Justiça de 19 de outubro de 2018, Wightman e o., C-621/18, não publicado,
EU:C:2018:851, n.o 10 e jurisprudência referida).

32 Ora, tendo em conta a importância fundamental, para a Roménia e para a ordem jurídica da
União, das questões relativas às relações entre os órgãos jurisdicionais comuns e o tribunal
constitucional desse Estado-Membro, bem como o princípio da independência dos juízes e o
primado do direito da União que o presente processo suscita, uma resposta do Tribunal de
Justiça num curto espaço de tempo é suscetível de eliminar as graves incertezas a que o órgão
jurisdicional de reenvio faz face, circunstância que justifica o tratamento deste processo nas
condições definidas no artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

6 ECLI:EU:C:2022:99
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

33 Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o


artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o
artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a
uma prática nacional que implique que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado-Membro
não estão habilitados a examinar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação
nacional que o tribunal constitucional desse Estado-Membro declarou conforme com uma
disposição constitucional nacional que impõe o respeito do princípio do primado do direito da
União.

34 A título liminar, na medida em que a primeira questão respeita à interpretação do artigo 47.o da
Carta, importa sublinhar que o reconhecimento do direito à ação, num determinado caso,
pressupõe que a pessoa que o invoca se baseie em direitos ou liberdades garantidos pelo direito
da União [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de outubro de 2020, Estado luxemburguês (Direito de
recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal), C-245/19 e C-246/19, EU:C:2020:795,
n.o 55, e de 20 de abril de 2021, Repubblika, C-896/19, EU:C:2021:311, n.o 41] ou que essa pessoa
seja objeto de procedimentos que constituem uma aplicação do direito da União, no sentido do
artigo 51.o, n.o 1, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box
Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 204).

35 Ora, não resulta da decisão de reenvio que RS invoque um direito de que esteja investido ao abrigo
de uma disposição do direito da União, nem que seja objeto de um procedimento que constitua
uma aplicação do direito da União.

36 Nestas condições, o artigo 47.o da Carta não é, enquanto tal, aplicável ao processo principal.

37 Contudo, uma vez que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE impõe a todos os
Estados-Membros que estabeleçam as vias de recurso necessárias para assegurar, nos domínios
abrangidos pelo direito da União, uma tutela jurisdicional efetiva, na aceção, nomeadamente, do
artigo 47.o da Carta, esta última disposição deve ser devidamente tomada em conta para efeitos
da interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (Acórdão de 20 de abril de 2021,
Repubblika, C-896/19, EU:C:2021:311, n.o 45 e jurisprudência referida).

38 No que toca às relações entre os órgãos jurisdicionais comuns e o tribunal constitucional de um


Estado-Membro, que constituem o objeto da primeira questão, cabe recordar que, embora a
organização da justiça nos Estados-Membros, incluindo o estabelecimento, a composição e o
funcionamento de um tribunal constitucional, seja da competência destes últimos, no exercício
dessa competência os Estados-Membros não deixam de estar vinculados a respeitar as obrigações
que para eles decorrem do direito da União e, em particular, dos artigos 2.o e 19.o TUE [v., neste
sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo
Tribunal), C-619/18, EU:C:2019:531, n.o 52, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion
e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 216].

39 Quanto às obrigações decorrentes do artigo 19.o TUE, importa sublinhar que esta disposição, que
concretiza o valor do Estado de direito afirmado no artigo 2.o TUE, confia aos tribunais nacionais e
ao Tribunal de Justiça o ónus de garantir a plena aplicação do direito da União em todos os
Estados-Membros, bem como a proteção jurisdicional que este direito confere aos particulares

ECLI:EU:C:2022:99 7
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

[Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal),


C-619/18, EU:C:2019:531, n.o 47, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o.,
C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 217].

40 Em conformidade com jurisprudência constante, para garantir esta proteção, todos os


Estados-Membros devem, em virtude do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, assegurar que
as instâncias que, enquanto «órgãos jurisdicionais» no sentido definido pelo direito da União, são
chamadas a pronunciar-se sobre questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação desse
direito e que fazem parte do seu sistema de vias de recurso nos domínios abrangidos pelo direito
da União, satisfazem as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva, nomeadamente em matéria
de independência (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion
e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.os 220, 221 e
jurisprudência referida).

41 A exigência de independência dos tribunais que decorre do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo,
TUE, comporta dois aspetos. O primeiro aspeto, de ordem externa, requer que a instância em
causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar sujeita a nenhum vínculo
hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou
instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra intervenções ou pressões
externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as
suas decisões. O segundo aspeto, de natureza interna, está relacionado com a noção de
imparcialidade e é relativo à equidistância em relação às partes em litígio e aos seus respetivos
interesses no que diz respeito ao objeto do litígio. Este último aspeto requer o respeito da
objetividade e a inexistência de qualquer interesse na solução do litígio além da estrita aplicação
do direito [v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência
do Supremo Tribunal), C-619/18, EU:C:2019:531, n.os 72 e 73, e de 21 de dezembro de 2021, Euro
Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034,
n.o 224].

42 Em conformidade com o princípio da separação de poderes que caracteriza o funcionamento de


um Estado de direito, a independência dos órgãos jurisdicionais deve ser garantida face aos
poderes legislativo e executivo [Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência
da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C-585/18, C-624/18 e C-625/18, EU:C:2019:982,
n.o 124, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19,
C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 228].

43 Ora, à semelhança do que foi recordado no n.o 38 do presente acórdão, no que respeita à
organização da justiça, nem o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, nem
nenhuma outra disposição do direito da União impõem aos Estados-Membros um modelo
constitucional preciso que regule as relações e a interação entre os diferentes poderes estatais,
nomeadamente quanto à definição e à delimitação das suas competências. Com efeito, em
virtude do artigo 4.o, n.o 2, TUE, a União respeita a identidade nacional dos Estados-Membros,
refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles. Todavia, na
escolha do respetivo modelo constitucional, os Estados-Membros são obrigados a respeitar,
nomeadamente, a exigência de independência dos órgãos jurisdicionais que decorre destas
disposições do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box
Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 229 e
jurisprudência referida).

8 ECLI:EU:C:2022:99
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

44 Nestas condições, o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como a Decisão
2006/928, não se opõem a uma regulamentação ou a uma prática nacional segundo a qual as
decisões do tribunal constitucional vinculam os órgãos jurisdicionais comuns, desde que o direito
nacional garanta a independência do referido tribunal constitucional, nomeadamente em relação
aos poderes legislativo e executivo, conforme exigido por essas disposições. Em contrapartida, se o
direito nacional não garantir essa independência, estas disposições do direito da União opõem-se
a tal regulamentação ou prática nacional, uma vez que esse tribunal constitucional não está em
condições de assegurar a tutela jurisdicional efetiva exigida pelo artigo 19.o, n.o 1, segundo
parágrafo, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o.,
C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 230).

45 Decorre do exposto que, sem prejuízo da reserva expressa no número anterior, o artigo 19.o, n.o 1,
segundo parágrafo, TUE não se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que preveja
que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado-Membro, por força do direito constitucional
nacional, estão vinculados por uma decisão do tribunal constitucional desse Estado-Membro que
declare uma legislação nacional conforme com a Constituição do referido Estado-Membro.

46 Não obstante, o mesmo não se pode dizer de um caso em que a aplicação de tal regulamentação ou
prática implica excluir toda e qualquer competência desses órgãos jurisdicionais comuns para
apreciar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal
constitucional desse Estado-Membro declarou conforme com uma disposição constitucional
nacional que prevê o primado do direito da União.

47 Com efeito, na sua jurisprudência constante relativa ao Tratado CEE, o Tribunal de Justiça
declarou que os Tratados comunitários, diferentemente dos tratados internacionais ordinários,
instituíram uma nova ordem jurídica própria, integrada no sistema jurídico dos
Estados-Membros aquando da entrada em vigor dos Tratados e que se impõe aos seus órgãos
jurisdicionais. Os Estados-Membros limitaram os seus direitos soberanos nos domínios definidos
pelos Tratados em benefício desta nova ordem jurídica dotada de instituições próprias e cujos
sujeitos são não apenas os Estados-Membros mas também os seus nacionais (v., neste sentido,
Acórdãos de 5 de fevereiro de 1963, van Gend & Loos, 26/62, EU:C:1963:1, p. 23; de 15 de julho de
1964, Costa, 6/64, EU:C:1964:66, pp. 1158 e 1159; e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box
Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 245).

48 Assim, no Acórdão de 15 de julho de 1964, Costa (6/64, EU:C:1964:66, pp. 1158 a 1160), o
Tribunal de Justiça declarou que a criação pelo Tratado CEE de uma ordem jurídica própria,
aceite pelos Estados-Membros numa base de reciprocidade, tem como corolário a
impossibilidade de estes fazerem prevalecer contra essa ordem jurídica uma medida unilateral
posterior ou oporem ao direito emergente do Tratado CEE regras de direito nacional, sejam elas
quais forem, sem que esse direito perca o seu caráter comunitário e sem pôr em causa a base
jurídica da própria Comunidade. Além disso, o Tribunal de Justiça sublinhou que a força
executiva do direito comunitário não pode variar de um Estado-Membro para outro a favor das
legislações internas posteriores, sem pôr em perigo a realização dos objetivos do Tratado CEE,
nem provocar uma discriminação em razão da nacionalidade proibida por esse Tratado (Acórdão
de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19
e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 246).

49 Estas características essenciais da ordem jurídica da União e a importância do respeito que lhe é
devido foram, de resto, confirmadas pela ratificação, sem reservas, dos Tratados que alteram o
Tratado CEE, nomeadamente do Tratado de Lisboa. Com efeito, ao adotar esse Tratado, a

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ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

conferência dos representantes dos Governos dos Estados-Membros recordou expressamente, na


sua declaração n.o 17 relativa ao primado, anexada à ata final da conferência intergovernamental
que adotou o Tratado de Lisboa (JO 2012, C 326, p. 346), que, «em conformidade com a
jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito
adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas
condições estabelecidas pela referida jurisprudência» (v., neste sentido, Acórdão de
21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19
e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 248).

50 Após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o Tribunal de Justiça confirmou reiteradamente a


jurisprudência anterior relativa ao princípio do primado do direito da União, princípio que impõe
que todas as instâncias dos Estados-Membros confiram pleno efeito às diferentes normas da
União, não podendo o direito dos Estados-Membros afetar o efeito reconhecido a essas
diferentes normas no território dos referidos Estados (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro
Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034,
n.o 250 e jurisprudência referida).

51 Resulta desta jurisprudência que, por força do princípio do primado do direito da União, o facto
de um Estado-Membro invocar disposições de direito nacional, ainda que de ordem
constitucional, não pode afetar a unidade e a eficácia do direito da União. Com efeito, em
conformidade com jurisprudência assente, os efeitos associados ao princípio do primado do
direito da União impõem-se a todos os órgãos de um Estado-Membro, sem que, nomeadamente,
as disposições internas, incluindo de ordem constitucional, o possam impedir (Acórdãos de
17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft, 11/70, EU:C:1970:114, n.o 3, e de
21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19
e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 251).

52 Assim, dado que o Tribunal de Justiça tem competência exclusiva para fornecer a interpretação
definitiva do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da
Moldávia, C-741/19, EU:C:2021:655, n.o 45), cabe-lhe, no exercício dessa competência, precisar o
alcance do princípio do primado do direito da União à luz das disposições pertinentes desse
direito, pelo que esse alcance não pode depender da interpretação de disposições do direito
nacional, nem da interpretação de disposições do direito da União levada a cabo por um órgão
jurisdicional nacional, que não corresponde à interpretação do Tribunal de Justiça (v., neste
sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19,
C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 254).

53 A este respeito, importa nomeadamente lembrar que, por força do princípio do primado do
direito da União, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação
nacional conforme com as exigências do direito da União, o juiz nacional encarregado de aplicar
as disposições do direito da União no âmbito da sua competência tem a obrigação de garantir o
pleno efeito das mesmas, não aplicando, se necessário, por iniciativa própria, qualquer
regulamentação ou prática nacional, ainda que posterior, contrária ao direito da União, sem que
tenha de pedir ou aguardar pela sua eliminação prévia por via legislativa ou por qualquer outro
procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal,
106/77, EU:C:1978:49, n.o 24; de 24 de junho de 2019, Popławski, C-573/17, EU:C:2019:530,
n.os 61 e 62; e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19,
C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 252).

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ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

54 Como recordado no n.o 39 do presente acórdão, o respeito desta obrigação de aplicar


integralmente qualquer disposição do direito da União de efeito direto deve ser considerado
indispensável para garantir a plena aplicação do direito da União em todos os Estados-Membros,
conforme exigida pelo artigo 19.o, n.o 1, TUE.

55 O respeito da referida obrigação também é necessário para assegurar o respeito da igualdade dos
Estados-Membros perante os Tratados, a qual exclui a possibilidade de fazer prevalecer, contra a
ordem jurídica da União, uma medida unilateral, seja ela qual for (v., neste sentido, Acórdão de
21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19
e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 249), e constitui uma expressão do princípio de cooperação leal
enunciado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, o qual impõe que não seja aplicada qualquer disposição
eventualmente contrária da legislação nacional, quer a mesma seja anterior ou posterior à regra
de direito da União de efeito direto (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de setembro de 2010, Winner
Wetten, C-409/06, EU:C:2010:503, n.o 55, e de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export,
C-308/19, EU:C:2021:47, n.o 31).

56 No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, para se pronunciar sobre o
processo principal, deve apreciar a compatibilidade da legislação nacional que instituiu a SIIJ
com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, e com os objetivos de referência específicos em
matéria de reforma do sistema judicial e de luta contra a corrupção enunciados no anexo da
Decisão 2006/928.

57 Nestas condições, importa recordar, por um lado, que o Tribunal de Justiça já teve ocasião de
declarar que essa legislação nacional está abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão
2006/928 e que deve, consequentemente, respeitar as exigências decorrentes do direito da União,
em especial do artigo 2.o e do artigo 19.o, n.o 1, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 18 de maio de
2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o., C-83/19, C-127/19, C-195/19,
C-291/19, C-355/19 e C-397/19, EU:C:2021:393, n.os 183 e 184).

58 Por outro lado, tanto o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE como os objetivos mencionados
no n.o 56 do presente acórdão estão formulados em termos claros e precisos e não estão sujeitos a
nenhuma condição, pelo que têm efeito direto (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de maio de 2021,
Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o., C-83/19, C-127/19, C-195/19, C-291/19,
C-355/19 e C-397/19, EU:C:2021:393, n.os 249 e 250, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box
Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 253).

59 Daqui resulta que, não podendo proceder a uma interpretação conforme das disposições nacionais
com a referida disposição ou com os referidos objetivos, os órgãos jurisdicionais comuns romenos
devem afastar, por iniciativa própria, as disposições nacionais.

60 A este respeito, importa salientar que, em virtude do quadro jurídico nacional pertinente
conforme descrito pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses órgãos jurisdicionais comuns são, em
princípio, competentes para apreciar a compatibilidade de disposições legislativas romenas com as
normas de direito da União em causa, sem terem de submeter ao tribunal constitucional nacional
um pedido para esse efeito.

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ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

61 No entanto, resulta da decisão de reenvio que os órgãos jurisdicionais comuns estão privados
dessa competência quando o tribunal constitucional nacional tiver declarado que as disposições
legislativas em causa são conformes com uma disposição constitucional nacional que prevê o
primado do direito da União, uma vez que são obrigados a dar cumprimento à decisão do tribunal
constitucional.

62 Neste contexto, importa recordar que o poder de, no próprio momento da aplicação do direito da
União, fazer tudo o que for necessário para afastar uma regulamentação ou uma prática nacional
que eventualmente constitua um obstáculo à plena eficácia das normas de efeito direto do direito
da União faz parte integrante da função de juiz da União que incumbe ao juiz nacional, o qual está
encarregado de aplicar tais normas no âmbito da sua competência, pelo que o exercício desse
poder constitui uma garantia inerente à independência dos juízes decorrente do artigo 19.o, n.o 1,
segundo parágrafo, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box
Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 257).

63 Assim, seria incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União
qualquer regulamentação ou prática nacional que tenha como efeito diminuir a eficácia daquele
direito por recusar ao juiz competente para o aplicar o poder de, no momento desta aplicação,
fazer tudo o que é necessário para afastar uma disposição ou uma prática nacional que possam
impedir a plena eficácia das normas de efeito direto da União (v., neste sentido, Acórdãos de
9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 22, e de 21 de dezembro de 2021,
Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034,
n.o 258). Seria esse o caso se, na hipótese de conflito entre uma disposição do direito da União e
uma lei nacional, a solução desse conflito fosse reservada a uma autoridade diferente do juiz
chamado a assegurar a aplicação do direito da União, investido de um poder de apreciação próprio
(v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 23, e de
22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C-188/10 e C-189/10, EU:C:2010:363, n.o 44).

64 Além disso, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o mecanismo de reenvio
prejudicial estabelecido pelo artigo 267.o TFUE visa assegurar que, em quaisquer circunstâncias,
o direito da União tem o mesmo efeito em todos os Estados-Membros e, assim, evitar
divergências na interpretação desse direito, cuja aplicação incumbe aos órgãos jurisdicionais
nacionais, sendo que o referido mecanismo se destina a garantir essa aplicação. Para este efeito, o
referido artigo oferece ao juiz nacional um meio de eliminar as dificuldades que poderia suscitar a
exigência de aplicação plena do direito da União no âmbito dos sistemas jurisdicionais dos
Estados-Membros. Assim, os órgãos jurisdicionais nacionais têm a faculdade muito ampla, ou
mesmo a obrigação, de recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem que um processo neles
pendente suscita questões relativas à interpretação ou apreciação da validade de disposições do
direito da União sobre as quais têm de decidir [Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o.
(Revogação de uma amnistia), C-203/20, EU:C:2021:1016, n.o 49 e jurisprudência referida].

65 Por conseguinte, a eficácia da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais


nacionais instituída pelo mecanismo de reenvio prejudicial e, portanto, do direito da União,
ficaria comprometida se o resultado de uma exceção de inconstitucionalidade perante o tribunal
constitucional de um Estado-Membro pudesse ter como efeito dissuadir o juiz nacional,
chamado a pronunciar-se sobre um litígio regido pelo direito da União, de exercer a faculdade ou
cumprir a obrigação, resultante do artigo 267.o TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça as
questões sobre a interpretação ou a validade de atos desse direito, a fim de lhe permitir decidir se
uma regra nacional é ou não compatível com ele [v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de

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ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
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2010, Melki e Abdeli, C-188/10 e C-189/10, EU:C:2010:363, n.o 45; de 5 de julho de 2016,
Ognyanov, C-614/14, EU:C:2016:514, n.o 25; e de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do
despacho de reenvio), C-564/19, EU:C:2021:949, n.o 73].

66 Ora, na hipótese de o tribunal constitucional de um Estado-Membro ter declarado que as


disposições legislativas são conformes com uma disposição constitucional nacional que prevê o
primado do direito da União, uma regra ou uma prática nacional como a descrita no n.o 61 do
presente acórdão obsta à plena eficácia das normas de direito da União em causa, na medida em
que impede o órgão jurisdicional comum chamado a assegurar a aplicação do direito da União de
apreciar, ele próprio, a compatibilidade dessas disposições legislativas com esse direito.

67 A aplicação de tal regra ou de tal prática nacional prejudicaria igualmente a eficácia da cooperação
entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo mecanismo do
reenvio prejudicial, dissuadindo o órgão jurisdicional comum chamado a decidir o litígio de
submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, a fim de dar cumprimento às
decisões do tribunal constitucional do Estado-Membro em causa.

68 As constatações enunciadas nos números anteriores impõem-se tanto mais numa situação como a
referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, em que um acórdão do tribunal constitucional do
Estado-Membro em causa recusa dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial
pelo Tribunal de Justiça, baseando-se, nomeadamente, na identidade constitucional deste
Estado-Membro e na consideração de que o Tribunal de Justiça excedeu a sua competência.

69 A este respeito, note-se que o Tribunal de Justiça pode, nos termos do artigo 4.o, n.o 2, TUE, ser
chamado a verificar se uma obrigação decorrente do direito da União infringe a identidade
nacional de um Estado-Membro (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de julho de 2014, Torresi,
C-58/13 e C-59/13, EU:C:2014:2088, n.o 58, e de 5 de junho de 2018, Coman e o., C-673/16,
EU:C:2018:385, n.o 46).

70 Em contrapartida, esta disposição não tem por objeto nem por efeito autorizar um tribunal
constitucional de um Estado-Membro, em violação das obrigações decorrentes, nomeadamente,
do artigo 4.o, n.os 2 e 3, e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, às quais está sujeito, a
afastar a aplicação de uma norma de direito da União com o fundamento de que essa norma viola
a identidade nacional do Estado-Membro em causa conforme definida pelo tribunal
constitucional nacional.

71 Se o tribunal constitucional de um Estado-Membro entende que uma disposição de direito


derivado da União, como interpretada pelo Tribunal de Justiça, não cumpre a obrigação de
respeitar a identidade nacional desse Estado-Membro, este tribunal constitucional deve
suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, em
virtude do artigo 267.o TFUE, para que a validade desta disposição seja apreciada à luz do
artigo 4.o, n.o 2, TUE, uma vez que o Tribunal de Justiça tem competência exclusiva para
constatar a invalidade de um ato da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de outubro de 1987,
Foto-Frost, 314/85, EU:C:1987:452, n.o 20, e de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami
e o./Parlamento e Conselho, C-583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 96).

72 Além disso, uma vez que, como foi recordado no n.o 52 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça
tem competência exclusiva para fornecer a interpretação definitiva do direito da União, o tribunal
constitucional de um Estado-Membro não pode, com base na sua própria interpretação de
disposições do direito da União, incluindo do artigo 267.o TFUE, decidir validamente que o

ECLI:EU:C:2022:99 13
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
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Tribunal de Justiça proferiu um acórdão que ultrapassa a sua esfera de competência e, por
conseguinte, recusar dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal
de Justiça.

73 A este respeito, cabe recordar que o processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE,
que constitui a pedra angular do sistema jurisdicional instituído pelos Tratados, institui um
diálogo de juiz a juiz entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros,
que tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União, permitindo assim
assegurar a sua coerência, o seu efeito pleno e a sua autonomia, bem como, em última análise, o
caráter particular do direito instituído pelos Tratados [v., neste sentido, Parecer 2/13 (Adesão da
União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454, n.o 176, e Acórdão de 6 de outubro
de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C-561/19, EU:C:2021:799, n.o 27].

74 Um acórdão proferido no âmbito deste processo vincula o juiz nacional quanto à interpretação do
direito da União para a solução do litígio que lhe foi submetido (v., neste sentido, Acórdãos de
3 de fevereiro de 1977, Benedetti, 52/76, EU:C:1977:16, n.o 26, e de 11 de dezembro de 2018,
Weiss e o., C-493/17, EU:C:2018:1000, n.o 19).

75 O juiz nacional que exerceu a faculdade que lhe confere o artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE
deve, portanto, se for caso disso, afastar as apreciações de um órgão jurisdicional nacional superior
se considerar, tendo em conta a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça, que estas não são
conformes com o direito da União, eventualmente deixando de aplicar a regra nacional que o
obriga a dar cumprimento às decisões desse tribunal superior (v., neste sentido, Acórdão de
5 de outubro de 2010, Elchinov, C-173/09, EU:C:2010:581, n.os 30 e 31).

76 Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta solução também se aplica quando um
órgão jurisdicional comum está vinculado, por força de uma regra processual nacional, por uma
decisão de um tribunal constitucional nacional que entende ser contrária ao direito da União (v.,
neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2013, Križan e o., C-416/10, EU:C:2013:8, n.o 71).

77 Além disso, dado que a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma regra do direito da
União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267.o TFUE, esclarece e precisa o
significado e o alcance dessa regra, como a mesma deve ou deveria ter sido entendida e aplicada
desde a data da sua entrada em vigor [v., neste sentido, Acórdãos de 27 de março de 1980,
Denkavit italiana, 61/79, EU:C:1980:100, n.o 16, e de 18 de novembro de 2021, Estado belga
(Formação de pilotos), C-413/20, EU:C:2021:938, n.o 53], há que considerar que um órgão
jurisdicional comum, para assegurar a plena eficácia das regras de direito da União, deve afastar,
num litígio que lhe foi submetido, as apreciações de um tribunal constitucional nacional que
recusa dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça,
ainda que esse acórdão não proceda de um pedido de decisão prejudicial submetido no contexto
desse litígio por esse órgão jurisdicional comum.

78 Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 19.o, n.o 1,
segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o, o artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o
artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da União, deve ser interpretado no
sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que implica que os
órgãos jurisdicionais comuns de um Estado-Membro não estão habilitados a examinar a
compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional
desse Estado-Membro declarou conforme com uma disposição constitucional nacional que impõe
o respeito do princípio do primado do direito da União.

14 ECLI:EU:C:2022:99
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
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Quanto à segunda e terceira questões

79 Com a segunda e terceira questões, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional
de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em
conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido
de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que permite desencadear a
responsabilidade disciplinar de um juiz nacional pelo facto de este ter aplicado o direito da
União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, afastando-se da jurisprudência do
tribunal constitucional do Estado-Membro em causa, que é incompatível com o primado do
direito da União.

80 A título preliminar, recorde-se que o artigo 47.o da Carta não é, enquanto tal, aplicável ao processo
principal, como foi salientado no n.o 36 do presente acórdão.

81 Como foi recordado no n.o 41 do presente acórdão, o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE
exige que sejam preservadas a independência e a imparcialidade das instâncias que podem ser
chamadas a pronunciar-se sobre questões ligadas à aplicação ou à interpretação do direito da
União.

82 Estas garantias de independência e de imparcialidade exigidas pelo direito da União pressupõem a


existência de regras que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes,
quanto à impermeabilidade da referida instância em relação a elementos externos e à sua
neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdão de 21 de dezembro de 2021,
Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034,
n.o 225 e jurisprudência referida).

83 No que respeita, mais precisamente, à responsabilidade disciplinar em que os juízes de direito


comum podem incorrer, ao abrigo da regulamentação nacional em causa, em caso de
incumprimento das decisões do tribunal constitucional nacional, é verdade que a salvaguarda da
independência dos órgãos jurisdicionais não pode nomeadamente ter como consequência excluir
inteiramente que, em certos casos absolutamente excecionais, a responsabilidade disciplinar de
um juiz possa ser acionada devido a decisões judiciais por si proferidas. Com efeito, a referida
exigência de independência não se destina, evidentemente, a justificar eventuais condutas graves
e totalmente indesculpáveis de juízes, como, por exemplo, a violação deliberada e de má-fé, ou
com negligência especialmente grave e grosseira, das regras de direito nacional e da União cujo
respeito devem assegurar, ou a adoção de uma conduta arbitrária ou de denegação de justiça,
quando, enquanto depositários da função de julgar, os juízes são chamados a dirimir litígios que
lhes são submetidos pelos particulares [Acórdãos de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia
(Regime disciplinar aplicável aos juízes), C-791/19, EU:C:2021:596, n.o 137, e de 21 de dezembro
de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19,
EU:C:2021:1034, n.o 238].

84 Todavia, para preservar a independência dos órgãos jurisdicionais e assim evitar que o regime
disciplinar possa ser desviado das suas finalidades legítimas e utilizado para fins de controlo
político das decisões judiciais ou de pressão sobre os juízes, afigura-se essencial que o facto de
uma decisão judicial comportar um eventual erro na interpretação e aplicação das regras de
direito nacional e da União, ou na apreciação dos factos e das provas, não possa, por si só,
implicar a responsabilidade disciplinar do juiz em causa [Acórdãos de 15 de julho de 2021,

ECLI:EU:C:2022:99 15
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

Comissão/Polónia (Regime disciplinar aplicável aos juízes), C-791/19, EU:C:2021:596, n.o 138, e de
21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19
e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 239].

85 Constitui, além disso, uma garantia inerente à independência dos juízes nacionais o facto de estes
não estarem expostos a processos ou a sanções disciplinares por terem exercido a faculdade de
recorrer ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.o TFUE, que é da sua competência exclusiva
(Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19,
C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 227 e jurisprudência referida).

86 Por conseguinte, é necessário que a responsabilidade disciplinar de um juiz com fundamento


numa decisão judicial seja limitada a casos absolutamente excecionais, como os referidos no
n.o 83 do presente acórdão, e enquadrada, a este respeito, por critérios objetivos e verificáveis,
baseados em imperativos resultantes da boa administração da justiça, bem como por garantias
destinadas a evitar qualquer risco de pressões externas sobre o conteúdo das decisões judiciais e a
afastar, assim, no espírito dos litigantes, qualquer dúvida legítima quanto à impermeabilidade dos
juízes em causa e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto [Acórdãos de
15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar aplicável aos juízes), C-791/19,
EU:C:2021:596, n.o 139, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19,
C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 240].

87 Daqui resulta que o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE devem ser
interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação ou a uma prática nacional que
permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional por qualquer
incumprimento das decisões do tribunal constitucional nacional (v., neste sentido, Acórdão de
21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19
e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 242).

88 À luz da resposta dada à primeira questão, a violação da independência dos juízes nacionais que
essa regulamentação ou prática nacional implica também é incompatível com os princípios da
igualdade entre os Estados-Membros e da cooperação leal entre a União e os Estados-Membros,
reconhecidos pelo artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do
primado do direito da União quando a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional assentar
na circunstância de este ter afastado a aplicação de uma decisão do tribunal constitucional do
Estado-Membro em causa através qual este último se recusou a dar cumprimento a um acórdão
proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça.

89 Esta interpretação impõe-se tanto mais quanto tal responsabilidade disciplinar de um juiz
nacional é suscetível de reforçar o caráter atentatório das exigências do direito da União de uma
regulamentação nacional que implica que os órgãos jurisdicionais comuns de um
Estado-Membro não podem examinar a compatibilidade com o direito da União de uma
legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado-Membro, ao recusar dar
cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça, julgou
conforme com uma disposição constitucional nacional que prevê o primado do direito da União
(v., por analogia, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C-357/19,
C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034, n.o 259).

90 Além disso, embora o Governo romeno tenha declarado na audiência que não tinha sido imposta
qualquer sanção nos termos da disposição legislativa nacional a que se referem a segunda e
terceira questões, deve ter-se em conta que a mera perspetiva da abertura de uma investigação

16 ECLI:EU:C:2022:99
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

disciplinar é, enquanto tal, suscetível de exercer pressão sobre aqueles a quem compete julgar (v.,
neste sentido, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România»
e o., C-83/19, C-127/19, C-195/19, C-291/19, C-355/19 e C-397/19, EU:C:2021:393, n.o 199).

91 Ora, as indicações que figuram na decisão de reenvio não revelam que a responsabilidade dos
juízes nacionais de direito comum pela inobservância das decisões da Curtea Constituțională
(Tribunal Constitucional), prevista no artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004, esteja
subordinada a condições que permitam garantir que tal responsabilidade se limita aos casos
absolutamente excecionais mencionados no n.o 83 do presente acórdão, nos termos exigidos,
como foi recordado nos n.os 84 e 86 do presente acórdão, pelo artigo 19.o, n.o 1, segundo
parágrafo, TUE.

92 Importa ainda salientar que, no n.o 241 do Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box
Promotion e o. (C-357/19, C-379/19, C-547/19, C-811/19 e C-840/19, EU:C:2021:1034), o
Tribunal de Justiça já tinha constatado que, dos pedidos de decisão prejudicial nos processos que
deram lugar a esse acórdão, não resultava que tal responsabilidade estivesse limitada a tais casos.

93 Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira


questões que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o e o
artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da
União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática
nacional que permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional por este ter
aplicado o direito da União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, afastando-se da
jurisprudência do tribunal constitucional do Estado-Membro em causa, incompatível com o
princípio do primado do direito da União.

Quanto às despesas

94 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado


perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas
efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são
reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1) O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o, o
artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do
direito da União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação
ou a uma prática nacional que implica que os órgãos jurisdicionais comuns de um
Estado-Membro não estão habilitados a examinar a compatibilidade com o direito da
União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado-Membro
declarou conforme com uma disposição constitucional nacional que impõe o respeito do
princípio do primado do direito da União.

2) O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o e o
artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do
direito da União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação
ou a uma prática nacional que permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um

ECLI:EU:C:2022:99 17
ACÓRDÃO DE 22. 2. 2022 — PROCESSO C-430/21
RS (EFEITO DOS ACÓRDÃOS DE UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL)

juiz nacional por este ter aplicado o direito da União, conforme interpretado pelo
Tribunal de Justiça, afastando-se da jurisprudência do tribunal constitucional do
Estado-Membro em causa, incompatível com o princípio do primado do direito da União.

Assinaturas

18 ECLI:EU:C:2022:99

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