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DOI: 10.5433/1679-0383.2022v43n2p187

Aproximações do pensamento de Achille Mbembe


a partir da obra Crítica da Razão Negra

Approaches to Achille Mbembe’s thought from


the work Crítica da Razão Negra

Margarida Cássia Campos1

Resumo

O objetivo do presente texto é discutir os pontos centrais de Crítica da Razão Negra e evidenciar
que o denominado pensamento em travessia e em circulação, defendido por Achille Mbembe,
apresenta questões fundamentais para se refletir sobre como o eurocentrismo configura-se como um
conjunto de epistemologias de autoenclausuramento e autocontemplação, já que não reconhece e,
mais ainda, desmerece outras formas de conhecimento. Para tanto pautou-se em uma pesquisa do
tipo qualitativa em um esforço para unir o autor a sua obra considerando as múltiplas complexidades
de ser estar intelectuais do sul epistêmico global em um mundo onde a ciência reconhecida é a do
norte epistêmico. Como procedimento metodológico, o caminho escolhido passou por uma leitura
cuidadosa da obra Crítica da Razão Negra, sistematização das ideias principais e organização do texto
final. A problemática da discussão parte da contextualização de percepções de mundo eurocentradas
e do esforço de ofertar novas miradas decoloniais em especial para a compreensão socioespacial do
continente africano.
Palavras-chave: Achille Mbembe; Eurocentrismo; Decolonialidade.

Abstract

The objective of the present text is to discuss the central points of Crítica da Razão Negra and to
highlight that the so-called thought in crossing and in circulation, defended by Achille Mbembe,
presents fundamental issues to reflect on how Eurocentrism configures itself as a set of epistemologies
of self-enclosure and self-contemplation, since it does not recognize and, even more so, depreciates
other forms of knowledge. To do so, it was based on a qualitative research in an effort to unite the
author and his work considering the multiple complexities of being intellectuals from the global
epistemic south in a world where the recognized science is that of the epistemic north. As a
methodological procedure, the chosen path went through a careful reading of the work Crítica da
Razão Negra, systematization of the main ideas, and organization of the final text. The problematic
of the discussion starts from the contextualization of Eurocentric world perceptions and the effort to
offer new decolonial visions, especially for the socio-spatial understanding of the African continent.
Keywords: Achille Mbembe; Eurocentrism; Decoloniality.

1
Professora Pós-doutora pela Universidade de Coimbra (UC), Coimbra, Portugal. Doutora em Geografia pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), Santa Catarina, Brasil. Professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná,
Brasil. Professora do Mestrado Profissional em Sociologia em Rede Nacional e Professora do Curso de Pós-graduação em
Serviço Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bahia, Brasil. E-mail: mcassiacampos@uel.br
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Campos, M. C.

Introdução democrático neoliberal, em um movimento espiral


da história. Mbembe inicia a discussão regressando
O presente texto é fruto dos diálogos realiza- ao passado para apresentar a outra tese do livro, de-
dos com o projeto de extensão “Direitos Humanos, marcando que a “pia batismal” das concepções de
Desigualdade Racial e Indígena em tempo de pan- raça e racismo foi construída a partir do século XV
demia COVID-19”, desenvolvido pela professora no período histórico da Modernidade e do Capita-
doutora Ângela Ernestina Cardoso de Brito na Uni- lismo Mercantil. E, na última tese, são discutidas,
versidade Federal da Bahia, no segundo semestre tomando como apoio a visão de vários intelectuais,
do ano de 2020. as possibilidades da cura de um sentido de mundo
Para enquadrar as discussões no tema do demarcado pelo fardo cruel da raça. Ao final, o au-
projeto, escolheu-se contextualizar a obra Crítica tor ainda acrescenta a questão de como construir
da Razão Negra do filósofo camaronês Achille um mundo sob uma perspectiva de um humanismo
Mbembe, o qual, por contestar os conhecimentos abrangente e universal.
produzidos pela “razão branca” europeia, contribui Esperamos que o texto possa fomentar o
para o debate das chamadas “Epistemologias do debate e a leitura de obras de autores africanos,
Sul” expresso por Boaventura de Sousa Santos uma vez que a produção científica no Brasil ainda
(2019). gira, quase exclusivamente, em torno dos autores
Desse modo, o objetivo do artigo é discutir europeus ou americanos. Portanto o desafio está
os pontos centrais da obra referenciada e evidenciar posto: é possível discutir as epistemologias do Sul
que o denominado pensamento em travessia e em com a leitura dos autores africanos?
circulação, defendido por Achille Mbembe, apre-
senta questões fundamentais para se refletir sobre Questões sobre o autor e a obra
como o eurocentrismo configura-se como um con-
junto de epistemologias de autoenclausuramento Nesta secção, há um esforço para apresen-
e autocontemplação, já que não reconhece e, mais tar o intelectual africano mais conhecido no Brasil
ainda, desmerece outras formas de conhecimento. na contemporaneidade, em especial pelo uso fre-
Como procedimento metodológico, o caminho es- quente, em textos científicos e jornalísticos, do
colhido passou por uma leitura cuidadosa da obra, conceito de Necropolítica. Sobretudo, durante a
sistematização das ideias principais e organização pandemia da Covid-19, inúmeras análises dialoga-
do texto final. vam com tais concepções, com o objetivo de apon-
Tendo em vista que os sujeitos são plurais tar como o Estado atua na produção de uma política
e as leituras também seguem este caminho, é im- de morte direcionada às populações racializadas.
portante demarcar que as discussões apresentadas Joseph-Achille Mbembe nasceu próximo a
neste artigo constituem apenas uma leitura pos- Otelé na República dos Camarões em 1957, viven-
sível, havendo outras tantas, portanto as ideias ciou as lutas extremamente sangrentas pela des-
aqui consideradas como centrais podem não o ser colonização, durante sua infância e adolescência,
em outras leituras. Tendo essas afirmativas como e que custaram a vida do seu pai, de tal sorte que
premissa, o artigo divide-se em quatro seções, as crueldades engendradas pelo colonialismo são
apresentando, na primeira secção, uma problema- fundamentais para entender a formação humana
tização da obra e do autor, e constituindo as outras inicial de Mbembe, marca que atravessa toda sua
três, teses consideradas como centrais no livro: a obra.
primeira delas aparece na introdução e no primeiro Mbembe deixa Camarões ainda na ado-
capítulo e aponta discussões em relação a como as lescência, como ele destaca em Sair da Grande
concepções de raça e racismo ganham novos con- Noite, e, em razão desse fato, a formação de filóso-
tornos atualmente, sob o comando de um Estado fo, historiador e cientista político ocorreu fora do
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continente africano, na França, onde obteve o tí- A consciência dessa imbricação do aqui e do
tulo de doutorado na Sorbonne em 1989. Depois alhures, a presença do alhures no aqui e vice-
versa, essa relativização das raízes e dos perten-
ocupou, entre a década de 90 e o início dos anos
cimentos primários e essa maneira de abraçar,
2000, vários cargos em universidades americanas com todo conhecimento de causa, o estranho,
(Universidade de Colúmbia, Instituto Brookings, o estrangeiro e o distante, essa capacidade de
Universidade da Pensilvânia, Universidade da Ca- reconhecer sua face no rosto do estrangeiro e
lifórnia em Berkeley e Universidade Yale). Atual- de valorizar os traços do distante no próximo,
de domesticar o in-familiar, de trabalhar com
mente, é professor de História e Ciência Política aquilo que possui aspecto de ser contrário por
na Universidade Duke (Virgínia, Estados Unidos), completo – é precisamente essa sensibilidade
na Universidade de Harvard (Instituto Brookings) cultural, histórica e estética que o termo ‘afro-
e na Universidade Witswatervand (Joanesburgo, politanismo’ indica. (MBEMBE, 2015, p. 3).
África do Sul). Esse percurso eclético demonstra,
primeiramente, um intelectual com formação ini- Portanto, o objetivo dos seus escritos é des-
cial na cultura e filosofia francesas, seguido de centralizar o pensamento e abri-lo para o mundo,
uma atuação profissional nos Estados Unidos, na posição a priori de crítico severo do pensamen-
ou seja, com trânsito em dois países que Santos to eurocêntrico, em um momento da história que
(2002) classifica como nações que compõem a ele considera como aquele em “[...] que a história
“monocultura de saberes”. Também é importante das coisas se volta para nós, em que a Europa
pontuar que, nas últimas décadas, fixou residência deixou de ser o centro da gravidade no mundo”
na África do Sul (sociedade marcada pelas cruel- (MBEMBE, 2018, p. 11). O autor ainda apresen-
dades de uma segregação racial legalizada pelo ta um diálogo fecundo com a psicanálise na obra
Estado), com escalas de trabalho nas universidades Crítica da Razão Negra, sendo possível perceber
americanas. esse debate quando centraliza, no texto, o pen-
A amplitude da vivência intelectual, políti- samento de Frantz Fanon, ao discutir, no último
ca, cultural e social de Mbembe constitui, sem capítulo, sobre “A clínica do sujeito”.
sombra de dúvida, fator fundamental para a escrita Em relação à Crítica da Razão Negra, pri-
problematizadora de mundo e de sentido de mun- meiramente é importante assinalar que se trata
do dado ao continente africano, sobretudo quando de um livro erudito até mesmo para filósofos, de
coloca à prova a visão direcionada à África pelo difícil leitura, mas de grandeza teórica sem igual.
pensamento eurocêntrico. Portanto, um corpo ne- Mbembe utiliza, nessa obra, uma escrita no estilo
gro vivendo na França, nos Estados Unidos e na figurativo, por vezes poética, que nos leva a refletir
África do Sul constrói práxis extremamente reve- sobre o significado, por exemplo, de: “o réquiem
ladoras do ser e estar negro no mundo, e o impacto para o escravo”, “cadáver da modernidade” ou
dessas múltiplas vivências no autor é apresentado “poço dos fantasmas”. Acredita-se que esse estilo
no primeiro capítulo do livro Sair da Grande Noite de escrita enriquece a leitura da obra e leva os lei-
(MBEMBE, 2014). tores a mergulharem no processo de descoberta do
As obras produzidas por Mbembe são, por sentido expresso pelo autor em uma determinada
vezes, classificadas como pós-coloniais ou decolo- figura de linguagem, bem como sua contextuali-
niais, porém, em vários trechos dos seus escritos e zação nas problemáticas centrais da obra.
conferências, o autor apresenta-se como sendo um A primeira edição da obra foi em francês no
intelectual de pensamento mundo, de circulação e ano de 2013. Em 2014, a Editora Antígona lançou-
travessia, ainda acrescentando que suas obras de- a em português de Portugal, e foi por meio dessa
vem ser enquadradas em um movimento denomi- tradução que a maioria do público brasileiro teve
nado Afropolitanismo, que assim pode ser enten- acesso à obra. Apenas em 2018 é que foi publicada
dido, segundo o autor: no Brasil pela N-1 Edições. É importante ressaltar
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que Crítica da Razão Negra figura como a segunda apontando como as concepções de raça e racismo
obra que compõe uma trilogia: sendo a primeira foram forjadas na modernidade para dar suporte
lançada em 2010, Sair da Grande Noite. ao processo cruel de acumulação de riquezas nos
Nos livros Sair da Grande Noite e Crítica primórdios do modo de produção capitalista, de-
da Razão Negra, Mbembe apresenta aos leitores nominado de capitalismo mercantil e comercial.
os problemas gerados pela descolonização em uma O livro é dividido em seis capítulos (1 – O
perspectiva de problematização e complexidade sujeito racial; 2 – O poço dos fantasmas; 3 – Dife-
do processo, na busca de compreender a África rença e autodeterminação; 4 – O pequeno segredo;
contemporânea e seu futuro, um continente que 5 – Réquiem para o escravo e 6 – Clínica do su-
procura seu caminho e deseja livrar-se do sentido jeito) e uma introdução com uma tese instigante
imposto pela Modernidade aos africanos e ao cor- – “O Devir Negro no Mundo” – em que proble-
po físico e geográfico de África. O terceiro livro, matiza a questão, na contemporaneidade, sob a
Políticas de Inimizade, lançado em francês em égide do Neoliberalismo, de quais são os corpos
2016 e publicado em português no ano seguinte, que recebem o sentido dado ao corpo racial negro
fecha a trilogia e, nele, Mbembe (2017) problema- durante o colonialismo. Esse ensaio inicial revela e
tiza um diálogo profundo com vários pensadores, contextualiza, de forma brilhante, as metamorfoses
em especial Frantz Fanon, sobre a história da es- do racismo nas sociedades atuais. Nas considera-
cravização e a produção dos sujeitos raciais na ções finais, também propõe uma tese no sentido
colonialidade, fazendo ainda sua correlação com de pensar como podemos construir uma sociedade
as sociedades contemporâneas, sob a égide dos Es- pós-racial.
tados democráticos liberais, que agem de forma a
produzir uma política de morte, tendo como base O Devir Negro no Mundo: a persistência
instrumentos utilizados na colonização. e as metamorfoses da raça e do racismo
Mbembe (2018) deixa evidente que Crítica na contemporaneidade
da Razão Negra busca uma maneira de questio-
nar a razão e o sentido de mundo branco, que pre- A introdução e parte do primeiro capítulo
dominaram em toda a produção do conhecimento do livro Crítica da Razão Negra apresentam ele-
pós-moderno, de tal sorte que procura deslegitimar mentos contundentes para compreender as dis-
a razão branca em seus modos de agir genocida, cussões sobre raça e racismo na contemporanei-
que desautorizou pessoas, conhecimentos, experi- dade. Mbembe utiliza o termo “recalibragem” para
ências e crenças, denunciando, portanto, os crimes discutir quais são as novas configurações desses
cometidos sob a proteção da razão do pensamento conceitos na atualidade que, pela originalidade das
eurocêntrico. E ainda busca se contrapor à visão ideias apresentadas nesta discussão, merecem ser
de África como um “poço de fabulações”, buscan- objeto de debate do presente texto.
do construir e produzir outros conhecimentos que Para tanto, Mbembe, logo de início, ques-
possam tecer histórias, recompor imagens, refazer tiona qual o sentido dado ao negro durante a colo-
enunciados e discursos sobre África. nização e a escravização, tempo histórico que o
A obra também nos convida a pensar o mun- autor denomina de início do “delírio da Moderni-
do atual não mais a partir da centralidade do pen- dade”, devido aos significados distorcidos atribuí-
samento eurocêntrico (razão branca), mas por meio dos aos corpos negros, vinculados a um projeto de
de outros conjuntos de teorias em que a experiên- conhecimento de mundo e de domínio ideológico,
cia negra torna-se central para a compreensão dos econômico e político de governo. Se a raciona-
sentidos de mundo. Para tanto, Mbembe centraliza lidade pautada nas ideias positivistas tinha como
algumas ideias como raça, racismo, colonialismo, pressuposto que a única forma de conhecer ocorre-
modernidade e modo de produção capitalista, ria pelo uso da razão e sendo o negro considerado
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como um ser com designações primárias, dese- no Atlântico, as lutas pelos direitos civis nos Esta-
quilibradas e, ainda, um símbolo de intensa crença dos Unidos, a descolonização de África e o fim do
e repulsa, que desencadeia dinâmicas passionais, Apartheid na África do Sul.
não poderia este fazer parte de uma humanidade O terceiro momento, que é o que nos in-
capaz de produzir conhecimentos válidos para o teressa neste debate, se inicia no século presente,
mundo. Por conseguinte, seria um ser que “abala que Mbembe (2018) destaca como sendo a era do
a racionalidade”. “devir negro no mundo”, numa época cujo sistema
Mbembe ainda ressalta que essa imagem político e econômico é o Neoliberalismo, herança
extremamente estereotipada e negativa do negro maldita do colonialismo, marcado pela globaliza-
produziu, no curso da história, repulsa e medo em ção dos mercados e privatização do mundo, sob o
todo o resto da humanidade de nunca desejar ser controle rígido das tecnologias digitais. Segundo
englobado neste sistema de desumanização. No o autor, todo ser humano é hoje reduzido a um
início desse debate, o autor apresenta uma dis- código composto por alguns números, atravessa-
cussão, que desenvolverá melhor nos capítulos do pela mercantilização de todas as dimensões da
seguintes, sobre a crueldade produzida na colonia- vida, em uma produção miraculosa de tudo que
lidade que, em nome da acumulação das riquezas, há no mundo em mercadoria fetiche, processo que
destituiu o outro de humanidade e produziu um sis- vai reprogramar o debate a respeito de raça e ra-
tema de sentido de mundo que perdura até os dias cismo, dando-lhe novas configurações, sentidos e
atuais. Nesses trechos, as discussões se aproximam recalibragens.
de um tom de denúncia, um grito pela urgência de Com a finalidade de problematização do
reconhecimento e reparação, para que a Europa debate sobre as metamorfoses sofridas nas ideias
reconheça os horrores e as crueldades produzidas de raça e racismo, Mbembe (2018, p. 16) ressalta
em nome do lucro e da cobiça desmedida pela mer- como se realiza a espoliação do trabalho humano
cadoria fetiche. no Neoliberalismo:
A elaboração da racialização da própria
construção da Razão Negra, segundo o autor, foi Já não há trabalhadores propriamente ditos.
marcada por três momentos históricos de produção Só existem nômades do trabalho. Se antes, o
de processos hegemônicos e contra-hegemônicos, drama do sujeito era ser explorado pelo capi-
tal, a tragédia da multidão hoje é já não poder
demonstrando que a história está aberta para ser
ser explorada de modo nenhum, é ser relegada
construída, afirmando que os negros sempre se a uma “humanidade supérflua”, entregue ao
levantaram e lutaram por liberdade, mesmo sob abandono, sem utilidade para o funcionamento
a égide de todos os horrores da colonialidade. O do capital.
primeiro período foi caracterizado pelo Tráfico
Atlântico do século XV até o XIX, quando os Analisando tais condições, Mbembe desen-
corpos negros foram transformados em mercado- volve a tese de que parte da humanidade, não ape-
ria, moeda e metal, bem como começaram a ser nas o corpo negro como dantes, torna-se supérflua
elaboradas as ideias de raça, negro e África. O se- e, portanto, passível de ser explorada. Se não há
gundo momento, que se iniciou no século XVIII mais emprego, não existem mais trabalhadores
e perdurou até o século XX, caracterizou-se pela com garantias trabalhistas, bem como as mínimas
contraofensiva dos negros, com “faíscas” de au- condições de vida digna assegurada, pois, no Neo-
tonomia e autoria, quando foi possível reivindicar liberalismo, somente existem “nômades do traba-
o estatuto de sujeitos plenos de mundo, de ma- lho” e “empreendedores de si mesmos”, o que vem
neira que a luta antirracista ganha força. O autor acompanhado da flexibilização total das garantias
chama atenção, em especial, para a Revolução do trabalhistas, chamada também de “Uberização do
Haiti (1804), a proibição do tráfico de africanos trabalho” por Antunes e Filgueiras (2020). Portanto
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o risco sistemático de desumanização ao qual o que os códigos e leis que tornaram o potentado da
negro foi exposto desde o início do capitalismo, colônia mais repressivo após a Revolução do Haiti,
atualmente é para todos, o que Mbembe (2018) de- agora também é uma estratégia de parte dos Esta-
nomina de “Universalização da Condição Negra”. dos democráticos de direitos.
Sendo assim, Mbembe (2018) estabelece um Importante, nesta etapa da reflexão, é pen-
paralelo e demonstra as similaridades entre o capi- sar a necropolítica, conceito cunhado por Mbembe
talismo comercial, que deu suporte à colonização, (2016). Para o autor, em pleno século XXI, como
com o neoliberalismo contemporâneo, que tem uma dantes na colônia, há uma presença constante do
lógica de produção e reprodução da exploração e necropoder, pensado como instrumento de controle
opressão baseada na raça. Foi preciso, então, in- político e econômico de uma nação e operacionali-
ventar e sustentar classificações, argumentos de que zado por meio das ideias de raça, o que gera a eli-
não somos iguais, mesmo em Estados democráticos minação contínua dos “Condenados da Terra”. Sen-
liberais, de que existem subumanidades. do assim, quais os corpos que podem ser abatidos
Mbembe (2018) não tem dúvida de que, na na guerra urbana em nome da paz social? Mbembe
contemporaneidade, os novos negros, ou os Con- (2018, p. 20) nos leva a refletir sobre isso e con-
denados da Terra, à maneira de Fanon (2005), são clui que “a essa nova condição fungível e solúvel,
os imigrantes, os refugiados e os muçulmanos. à sua institucionalização enquanto padrão de vida e
Para eles, também, o ódio racial é destilado, a todo à sua generalização pelo mundo inteiro, chamamos
momento, nas redes sociais e nos meios de comu- o devir-negro do mundo”.
nicação, tanto na Europa como nos Estados Uni-
dos, país que, por meio da sustentação de um con- Modernidade, colonialismo, capitalismo
junto de ideias xenófobas e racistas, levou ao poder mercantil e liberalismo: implicações para
político, de 2016 a 2020, um governo de orientação as concepções de raça e racismo
de extrema-direita, mas que, por outro lado, deu
“combustível” para a insurgência do movimento Nesta secção, o escopo é discutir, de forma
“Vidas Negras Importam” que, de certa maneira, breve, as ideias centrais que atravessam os capítu-
foi uns dos responsáveis, no final de 2020, pela los do primeiro até o quinto do livro em questão.
eleição de um governo mais aberto ao diálogo a fa- Mbembe (2018) diz ao leitor que a “pia batismal”
vor de uma sociedade antirracista. Portanto, o ciclo da Modernidade e o sentido dado à África têm
da história demonstra que o poder não se exerce relação direta com o comércio negreiro e as colô-
apenas de forma unilateral visando à opressão, mas nias de plantation, além de mostrar que as concep-
se constitui em um campo aberto de disputa. ções de negro, raça e racismo foram forjadas neste
Ao elaborar seu pensamento sobre o “devir período histórico, portanto final do século XV e
negro no mundo”, Mbembe alerta que, para con- início do século XVI com a invasão dos europeus
trolar as subumanidades, os descartáveis, há um na América. Esse empreendimento só foi possível
sistema de segurança muito bem organizado a sob a égide do capitalismo mercantil ou comer-
partir do meio técnico-cientifico e informacional, cial, braço político e econômico da colonização.
utilizado para fiscalizar, em especial, os estrangei- Mbembe também argumenta como o capitalismo
ros nas fronteiras, com práticas de zoneamento de mercantil criou o fetichismo da mercadoria, uma
território, monitoramento terrestre e aéreo, encar- ideologia que comandava os desejos humanos
ceramento em massa e novas técnicas de controle tanto do colonizador como do colonizado, e gerou
genético, ou seja, a produção de uma sociedade eu- o que Mbembe denomina de “Pequeno Segredo”,
gênica, que vive sob o constante medo da ameaça debate polêmico apresentado no quarto capítulo.
da raça, receio de que os subalternizados possam O capitalismo mercantil, que transformou o negro
se insurgir, como ocorreu no Haiti. De maneira em mercadoria, aparece no quinto capítulo como o
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motor da produção da morte do corpo negro, o que sentido quanto ao domínio dos corpos negros, e
o autor denomina de “Réquiem para o escravo”. sempre reforçado do ponto de vista repressivo, em
Mais tarde, no século XIX, com a denominada especial, após algum esforço por liberdade feito
partilha de África entre os europeus, o liberalismo, pelos colonizados, exemplificando o autor que,
como analisa Mbembe (2018), com seus ideais de após a Revolução Haitiana, as leis de repressão
liberdade aparentemente contrários à escravização, foram reforçadas em todo o mundo colonial.
na verdade, nunca foi um empecilho para sua con- Com a execução de tanta violência e conse-
tinuidade, bem como para o postulado político e quente genocídio, a Modernidade produziu o que
econômico de sociedades pautadas na segregação Mbembe (2018) denomina de “Cadáver da Moder-
racial. nidade”, em uma linguagem figurativa, para refle-
Ressaltando essas ideias expressas no pará- tir sobre a violência imposta ao corpo negro, tanto
grafo anterior, achamos necessário discutir como física como psicologicamente. O autor alerta como
a Modernidade Ocidental elaborou uma nova cos- esse sujeito racial foi marcado pela produção diária
movisão de mundo, pois é neste momento que a e continua de morte e fabulações quanto ao seu ca-
visão de Homem ligada a Ocidente é inventada, ráter e moral, tido como não humano, como ser que
com a intenção pretensiosa da Europa de dominá- causava medo e horror, portanto a raça e o racis-
lo e construí-lo a sua semelhança, o que o autor mo e as ideias sobre o negro foram forjadas neste
chama de “delírio da Modernidade”. Para tanto, momento histórico e, evidentemente, modificadas
foi preciso produzir um conjunto de ideias no sen- ao longo da história, pois ganha, em cada país e
tido de que havia pessoas naturalmente superiores em momentos históricos distintos, novas configu-
(racionais) e inferiores (emocionais e irracionais), rações, continuidades e rupturas. Importante refor-
daí por que a colonização, o genocídio, a explo- çar que, quando Mbembe discute o “Devir Negro”
ração e a espoliação foram justificados, tanto do na introdução do livro, ele chama a atenção para
ponto de vista econômico quanto político, militar, como essas ideias estão sendo realimentadas na
ideológico e humanitário. Esta última justificativa contemporaneidade.
foi reivindicada como necessária para ofertar civi- O autor ainda argumenta que o nascimento
lização e evangelização aos povos colonizados, ou do sujeito racial está ligado à história do capita-
seja, uma dádiva da Europa para os corpos negros. lismo ainda na sua primeira fase, denominada de
Ao dividir o mundo entre civilizados e não mercantil ou comercial. Nesse período histórico,
civilizados, a Modernidade cria a zona do ser e a houve um processo de fabricação dos sujeitos ra-
zona do não ser, como destacam Césaire (1978) e ciais (sob a égide de uma extensa construção ju-
Fanon (2005), ou seja, territórios com existência de rídica, códigos e legislação escravocrata), sendo o
códigos e leis e, portanto, aptos à cidadania, e ou- negro visto como um ser ameaçador, pertencente a
tros territórios que Santos (2019) classifica como uma humanidade à parte, um farrapo humano, tor-
pertencentes à linha pós-abissal, constituídos, so- nando-se, portanto, um espectro da Modernidade.
bretudo, por pessoas que eram governadas pelo O capitalismo mercantil na Modernidade não ape-
uso indiscriminado da violência, por não terem nas assassinou o corpo negro (projeto genocida)
direitos, onde estavam liberadas a pilhagem e a ex- como também o transformou em homem-moeda,
torsão, e a lei era construída a partir “daqueles com homem-mercadoria e homem-metal, completando
mais poder bélico”. Sendo assim, aos povos colo- seu processo de desumanização, o que garantiu a
nizados, não era permita a cidadania, pelo simples sustentação econômica e política do empreendi-
fato de não serem considerados como humanos, mento colonial. Neste sentido, o capitalismo, desde
pois apenas eram vistos como exterioridade. Outro sua essência, sustentou-se em um projeto necropo-
ponto levantado pelo autor nesta discussão é que lítico porque imputou ao corpo negro apenas o de-
os códigos de leis das colônias confirmavam esse ver de ser explorado até a morte, sendo talvez um
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fantasma muito presente na mente do escravizado, produzidos pelo capitalismo mercantil, portanto
já que, como podemos exemplificar com Schwartz foram envolvidos, seduzidos, deixaram-se enganar
(1988), ao final do século XIX, a expectativa de pelo enorme cordel que é a maquinaria imaginária
vida dos escravizados no Brasil ao nascer variava da mercadoria. Ou seja, a ideologia mercantil, que
em torno de 19 anos. deu suporte à colonização, primeiramente desen-
Portanto, o autor deixa muito evidente, nes- volve-se enquanto poder sobre a vida, transfor-
ta obra, como o racismo compõe parte da mais- mando os corpos racializados em mercadoria e, em
valia nos processos de reprodução de privilégios e seguida, a partir da produção do fetiche da merca-
subalternidades, engendrados primeiramente pelo doria, que reforçou os dispositivos da sujeição dos
capitalismo mercantil e sustentados, nos dias de colonizados (MBEMBE, 2018, p. 209). Também
hoje, pelo neoliberalismo. Nesse sentido, o livro é preciso que os estudos de colonialidade reflitam
constitui leitura obrigatória para todos aqueles que sobre os processos de continuidade da ordem colo-
buscam entender como o sistema capitalista, antes nial após a independência dessas colônias e até que
e atualmente, age como um motor pujante e fun- ponto certos grupos africanos foram e são cúmpli-
damental para entender a desumanização e a espo- ces dos arranjos de submissão e dependência. Em
liação dos corpos negros. um debate muito próximo da psicanálise, Mbembe
No quinto capítulo, denominado de “O Pe- (2018) ressalta que a admissão dessa cumplicidade
queno Segredo”, o autor apresenta uma tese deli- passa pela busca da cura das memórias dos horro-
cada e polêmica para os estudos da colonialidade. res produzidos na colonização, debate que é mais
Para Mbembe, quando se discutem os modelos de bem problematizado no último subitem do texto.
representação da consciência produzidos tanto no Com a experiência que os europeus adqui-
colonizado como no colonizador, é preciso cen- riram na colonização e escravização dos povos
tralizar a memória, a história e os esquecimentos, americanos desde o século XV, utilizando-se das
no sentido de refletir sobre os desejos, a força e concepções de raça e racismo solidificadas, a Eu-
o apetite gerados no comportamento cotidiano da ropa no século XIX, sob a égide do capitalismo in-
colônia. Para isso, Mbembe apresenta duas carac- dustrial, incorporava as concepções sociobiológi-
terísticas da colonização e, para discutir a primeira, cas de raça e, portanto, estava pronta para um
remete às ideias de Césaire (1978) e Fanon (2005), novo extermínio, que foi a invasão da África. Se-
que apontam a colônia como uma máquina de gundo Mbembe (2018), para dar continuidade ao
guerra e de anticomunidade, por causa de seu po- empreendimento civilizatório e evangelizador, os
tencial em produzir a violência e a morte, além da povos europeus deixaram evidente que não havia
total ignorância sobre os povos colonizados, que barreiras a serem derrubadas e nem santuários que
os europeus “não conheciam e nem queriam co- não pudessem ser profanados em nome da implan-
nhecer”. Uma segunda característica seria a con- tação da cultura europeia pretensamente tida como
cepção de que a colônia se constituía como uma superior.
prodigiosa máquina de desejos pela riqueza que, Esta liberdade e esta legitimidade que a Eu-
segundo o autor, habitava os redutos da fantasia e ropa supunha ter, em especial por induzir a ideia
da psique, a cobiça desmedida da mercadoria, ex- de que a missão era evangelizadora e, portanto,
tremamente desejada tanto pelo colonizador como cristã, deram suporte ideológico para a invasão da
pelo colonizado. África no século XIX. Tal sustentação ocorreu por
Seguindo essa ideia, Mbembe conta-nos o meio de um conjunto de teorias filosóficas, políti-
‘Segredo’ não revelado por alguns estudiosos da cas e econômicas denominado de liberalismo, que
colonialidade. O fetiche pela mercadoria gerou pregava o direito das nações à livre concorrência.
certa cumplicidade no processo de colonização, As ideias iluministas que garantiam o suporte in-
pois os negros foram embebecidos pelos desejos telectual a essa doutrina parecem, à primeira vista,
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contraditórias à colonização, à escravização e ao preciso estimular o autorreconhecimento do su-


racismo, porque pregavam a liberdade, a igual- jeito para que este possa libertar-se da opressão.
dade e a fraternidade entre os povos, porém o au- Tais questionamentos aparecem de maneira central
tor, em uma ‘sacada’ brilhante, aponta para o fato no último capítulo do livro, intitulado “Clínica do
de que o liberalismo nunca foi um empecilho ao Sujeito”. Em meio a tantos processos de destruição
empreendimento colonial na África, sendo na ver- do “eu”, como produzir lutas e cotidianos marca-
dade uma doutrina de sustentação dos princípios de dos por liberdade?
livre concorrência e livre ação para o domínio e a Na construção desse diálogo, Mbembe
exploração do espaço geográfico africano. O autor (2018, p. 264) questiona sobre a ontologia do
ainda define o liberalismo como uma “arte especí- substantivo “negro”, alertando que, para pensar
fica de governar financiada pelo livre comércio de a respeito de um mundo livre do peso da raça, é
escravos” (MBEMBE, 2018, p. 145-146). necessário contextualizar as determinações que fo-
Mbembe vai nos provar, em Crítica da ram dadas ao corpo negro. Sendo assim, o nome
Razão Negra, que o liberalismo, além de ser com- negro está ligado a um vínculo de submissão a
patível com o reforço e a produção dos sujeitos ra- um senhor, um nome forjado em uma equação de-
ciais e os projetos necropolíticos, deu sustentação sonesta, um tratado de violados, de violência, de
para a sociedade segregada americana. Essa tese é cobiça e de ódio racial como foi o colonialismo.
evidente nas ideias de um dos seus principais pen- Quem sou eu negro em um mundo branco, já ques-
sadores, Alexis de Tocqueville, o qual afirma que a tionava Fanon (2008). Para Mbembe (2018), seria
democracia liberal americana apenas seria viável aquele que não pode olhar diretamente nos olhos de
por meio da “lógica do curral”, códigos de leis co- alguém, aquele que carrega o nome da escuridão,
nhecidas como Jim Crow, implantadas nos Estados um nome que remete ao insulto, à coisificação e à
Unidos nas décadas finais do século XIX, tendo degradação. E, finalmente, aquele que bate à porta,
como princípio a máxima liberal, “separados, mas bate de novo, na esperança de que alguém abra
iguais”. Para Tocqueville, não havia outra forma uma porta que nunca existiu?
de construir a sociedade americana se não fosse Sobre a porta que nunca existiu, é possível
separar aqueles que não tinham o mesmo estatuto refletir sobre como latino-americanos, africanos e
de humanidade, ou seja, a diferença radical e in- asiáticos são lidos na Europa, mesmo aqueles que
transponível, confirmada pelo racismo científico têm cidadania, obtida a duras penas por meio de
em auge na época e que justificava a separação. O longos processos movidos pelo desejo de serem
intrigante é pensar que, em vários países reconhe- aceitos, de pertencer ao mundo branco, que no fun-
cidos hoje como democráticos, em que o racismo é do constitui-se como um ledo engano, pois nunca
estrutural e estruturante das relações sociais, tal for- serão reconhecidos como um deles e terão para
ma de governo encontra-se ameaçada pela questão sempre seus corpos lidos pela posição do espaço
racial, o que ficou perceptível no movimento Black geográfico de suas origens de nascença ou, ainda
Lives Matter nos Estados Unidos em 2020. mais, de “sangue”. É a situação perfeitamente vi-
sível dos filhos dos imigrantes africanos oriundos
Conclusão: é possível a cura? Qual seria do Magreb (constituído por países do noroeste da
o caminho? África, ex-colônias francesas) na França ou do
PALOP (países africanos de língua oficial portu-
Toda luta por autodeterminação passa pelo guesa) em Portugal, que, mesmo tendo nascido em
reconhecimento de quem sou e/ou como meu corpo solo francês ou português, não são vistos como
é lido no mundo, ensinamentos que estão presentes europeus e têm inúmeras dificuldades para acessar
na pedagogia libertadora de Paulo Freire (1974), a documentação legal, além de sofrerem violência
segundo a qual, sendo o ato de educar político, é psicológica de dúvidas quanto a sua identidade,
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Campos, M. C.

pois não são reconhecidos como europeus e nunca ainda acrescenta as ideias de Aimé Césaire, Frantz
pisaram no país ao qual são heteroidentificados. Fanon e, por último, de Nelson Mandela. Em Cé-
Importante refletir, na contraofensiva de des- saire (1978), o autor recupera as ideias de busca da
tituição de humanidade dos grupos racializados, pluralidade, da declosão do mundo a partir da des-
sobre o investimento no adoecimento psicológico construção da tradição cristã ocidental, da não exis-
e físico do povo negro a partir de todas as formas tência de um universal absoluto e, sim, do sentido
possíveis de violência, que talvez não tivessem tido de mundo de multiplicidades, de singularidades,
o efeito esperado, de total submissão e obediência. pautado na diferença. Esse autor ainda propõe uma
Mas isso também se constitui em um motor de celebração da negritude, portanto, ao focar a afir-
lutas a favor da soberania e da autodeterminação mação da diferença, Césaire cai na armadilha de
desde o início da colonização, porém, com mais reforçar o próprio pensamento colonial que tanto
ênfase, a partir do século XVIII como já discutido criticava.
anteriormente. Em Fanon (2005; 2008), o autor vai bus-
Segundo Mbembe (2018), essa luta por au- car subsídios para pensar na afirmação de uma
todeterminação e emancipação passa por uma re- comunidade humana, refutando as ideias de raça
flexão crítica sobre as diversas variantes do pan- e de diferença, despindo-se da posição de vítima,
africanismo (pensamento negro que marcou o na procura de uma reflexão sobre “curar-se”, que
século XX) que, em alguns casos segundo o autor, passa pelo diálogo da construção de um novo hu-
reforçou concepções que alimentam o discurso da manismo universalista. O autor recupera também,
segregação e da exclusão, ao reafirmar a diferença de Fanon, as discussões de um projeto de elevação
radical entre nós e os outros; instrumento, como já coletiva de humanidade. Aponta a atualidade da
visto, utilizado pela Europa na Modernidade para obra do martinicano, quando ele apresenta a tese
dividir a zona do ser e a zona do não ser. Assim, de que estamos imersos em uma grande noite de
alguns autores do pan-africanismo tentaram buscar que é preciso sair. A concepção de “práxis vio-
a autodeterminação dos povos africanos a partir de lenta”, ou seja, a violência emancipadora, que
concepções que corroboram a existência de raça, permitiria curar quem foi estuprado, violentado,
sendo para o autor um discurso problemático que amputado, enlouquecido e explorado e acima de
reforça as ideias colonialistas em um viés essen- tudo de quem teve todos os direitos usurpados, são
cialista. A crítica de Mbembe (2018) remete à obra debates de Fanon apresentados no livro para pen-
de Marcus Garvey, que propõe, na década de 20 do sar em processo de “cura”. Neste sentido, Mbembe
século passado, um projeto de Redenção da África, (2018) afirma que devemos a Fanon, a ideia de
ao afirmar que, depois do trabalho de destruição, que a “violência do colonizado” move a busca por
o negro deveria tornar-se outro, autoproduzir-se e, restituição, reparação e reconstrução de um novo
para tanto, todos os negros em diáspora deveriam projeto de sociedade, bem como de que existe um
regressar à África. Outro ponto fulcral na crítica do ser humano que não se pode domar, eliminar ou
autor sobre o pan-africanismo é o autocompadeci- reprimir, pelo menos não totalmente.
mento, o reforço quase sempre na ideia de vítimas, Porém, mesmo utilizando as ideias de Fanon
sem realizar uma reflexão de que, muitas vezes, o como ponto de partida para sua tese final, no que
colonizado foi cúmplice do projeto colonial ou deu diz respeito às ideias de “cura”, Mbembe (2018)
continuidade à ordem colonial, em especial após a discorda de que a violência poderia ser um instru-
independência, movido pelo desejo quase libidinal mento de luta. É evidente que as ideias de Fanon
pela mercadoria fetiche. são datadas, escritas em um período histórico de
Na continuidade de diálogo com o pan- descolonização em um contexto de guerra cruel e
africanismo, Mbembe (2018), no que talvez se po- sangrenta pela libertação dos países da África. Mas
deria chamar de propostas de “cura do racismo”, Mbembe recupera parte de suas concepções para
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propor o que ele acredita ser a construção de um raça produzidas na primeira etapa do sistema capi-
humanismo abrangente e universal, que não seja talista, o Mercantil. E ainda argumenta que as teori-
marcado pelo discurso de vítima, de existência de as de que, atualmente, os seres humanos são trans-
raça ou diferença, ideias defendidas no Epílogo. formados em mercadoria – teorias estas discutidas
Na etapa final do livro, Mbembe desenvolve por autores que contextualizam a “Sociedade do
a sua tese do que seria a possível “cura” do sistema Consumo” – não reconhecem ou desconsideram
de opressão e submissão construído sob a égide da que este processo de desumanização, coisificação
Modernidade e do Capitalismo Mercantil, que im- e abstração do corpo humano é muito mais antigo,
primiu nos corpos negros processos de abstração e tendo seu início no século XIX, por ocasião do
coisificação. O autor ressalta que é preciso produ- Tráfico Atlântico de africanos para as Américas.
zir a ideia de que “Existe um só mundo” que todos Acreditamos que as discussões levantadas
desejam partilhar e onde querem ser reconhecidos por Mbembe no presente livro nos impõem inú-
como humanos por inteiro. Sendo assim, é fulcral meras questões. É possível construir uma socie-
investir na ideia de reparação, justiça e restituição dade pós-racial, uma sociedade que reconheça os
à humanidade do que lhe foi roubado. Para tanto, é erros do passado, que clame por justiça distributiva
preciso construir projetos de decolonização, tanto e reparação? A Europa está pronta para reconhecer
da Europa, que ainda acredita que a colonialidade as atrocidades cometidas em nome do apetite vo-
foi um projeto civilizatório, quanto dos países raz da mercadoria fetiche? Os movimentos negros
dantes colônias, que reproduzem práticas colonia- pelo mundo podem pautar sua luta e a proposição
listas nos seus sistemas políticos e econômicos. De por uma sociedade livre do fardo da raça? Ou o
tal sorte esse movimento já começou a caminhada, Neoliberalismo fortalece o sentido de mundo que
embora com passos lentos, que a derrubada de es- remete à diferença radical entre raças e à existên-
tátuas ou o questionamento de sua presença assom- cia de uma sub-humanidade, e, em consequência,
brando a memória dos colonizados nos espaços há poucas condições para se contrapor?
geográficos do mundo inteiro, parece ser o começo Tais questionamentos atravessam o brilhan-
da gestação deste “novo” sentido de mundo. te livro, e pensamos que, ao final de sua exposi-
Para que esse projeto de um só mundo pos- ção, Mbembe mais apresenta indagações do que
sa ser construído, sem a demarcação profunda da certezas, suscitando um campo aberto para futuras
diferença e do essencialismo, mas como uma ideia pesquisas com temas diversos sobre teoria racial.
inicial de que todos somos seres humanos, a hu- É, portanto, um convite ao desvelamento das pos-
manidade de agora precisa refletir, portanto, sobre sibilidades de existir, no futuro, UM SÓ MUNDO!
“o projeto de um mundo por vir, de um mundo a
nossa frente, cuja destinação é universal, um mun- Referências
do livre do fardo da raça e livre de ressentimento e
do desejo de vingança que toda e qualquer situação ANTUNES, Ricardo; FILGUEIRAS, Vitor. Plata-
de racismo suscita” (MBEMBE, 2018, p. 315), ou formas digitais, Uberização do trabalho e regula-
seja, um projeto de mundo que clame por um hu- ção no Capitalismo contemporâneo. Contracampo,
manismo universal e abrangente, sem hierarquia Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.
de raça, nação e pessoas, e livre da necropolítica, CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a colonização.
responsável por assassinar diariamente corpos ne- Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1978.
gros nos Estados liberais e democráticos em nome
da segurança e da paz social. FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Juiz de
Fora: Editora UFJF, 2005.
Em Crítica da Razão Negra, o autor une
pontas que pareciam dispersas ao demonstrar que, FANON, Frantz. Peles negras máscaras brancas.
hoje, o Neoliberalismo remodela as concepções de Salvador: EDUFBA, 2008.
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Janeiro: Paz e Terra, 1974.

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Recebido em: 26 out. 2022


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