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FACULDADE DE DIREITO
SÃO PAULO
2023
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
SÃO PAULO
2023
2
Tese de Láurea apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo por
Mário Henrique Quintanilha Augusto do Nascimento,
orientada pelo Prof. Dr. Mauricio Stegemann
Dieter, intitulada “O precesso de criminalização
das torcidas organizadas paulistas
nas década de de 90”, sujeita à
aprovação da Banca Examinadora abaixo
indicada.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
________________________________________________________
Prof. Dr.
Membro
3
Created by the poor, stolen by the rich
4
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, essa tese é dedicada a minha família. Vocês que sempre me
estimularam a ser melhor e a me dedicar mais, essa conquista é para vocês. Mãe com seu
apoio gentil sempre presente e Pai com todos os valores que me passou, meus irmãos, Caca e
Bia, sempre camaradas e afetuosos, todos tem uma parte.
Essa tese também é dedicada a minha namorada. Lu, você é minha maior alegria,
enche-me de vida e me sustenta com a sua gentileza, a sua ternura e o seu amor. Todas as
provações que esta tese nos gerou,você tem uma parte.
Aos meus amigos, velhos camaradas que sempre compartilharam o meu amor pelo
futebol e novos colegas sob as arcadas, essa tese não seria possível sem vocês, porque eu não
seria quem sou sem vocês, vocês tem uma parte.
Ao meu orientador, Mauricio Dieter, sem o qual essa tese não seria possível, não só
pelas orientações e críticas que a direcionaram, mas pelas aulas que despertaram em mim
tanto interesse pelo Direito Penal e pela Criminologia, dando rumo a uma graduação perdida,
você tem uma parte.
Ao Palmeiras, meu time do coração, ao qual minha mãe atribuiu o título infeliz de “a
única coisa que em desperta emoção”, também é dedicada uma parte.
Dizem que as coisas são mais que a soma de suas partes e escrevendo essas palavras
agora eu não tenho qualquer dúvida que são.
5
RESUMO
6
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 8
4 A DÉCADA DE 90 26
5. CRIMINOLOGIA 46
5.1 O INIMIGO 49
5.2 ESTIGMA 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 99
7
1 INTRODUÇÃO
Desde sua introdução na sociedade brasileira no final do século XIX, o futebol
assumiu papel de destaque no país. Principal esporte do Brasil, sua operação envolve diversas
estruturas complexas de organização e financiamento, assim como movimenta as paixões de
milhões de pessoas. A dualidade entre o aspecto cultural e o aspecto econômico do futebol
gera diversas tensões entre os torcedores, em sua maioria identificados com a classe proletária
e apegados aos aspectos culturais desse esporte, e os operadores das estruturas do futebol
profissional, formados por membros da burguesia brasileira em cargos de dirigentes dos
clubes, federações, além ainda dos que operam as instituições do Estado que afetam esse
meio.
Presentes nesse cenário, as torcidas organizadas surgiram nos últimos anos da década
de 60 como agremiações de torcedores, formadas sobretudo por jovens pobres, visando
cumprir diferentes papéis logísticos, lúdicos e políticos considerados necessários entre a
população que frequentava os estádios de futebol. A atuação desses grupos vai sofrer
alterações conforme as transformações políticas e econômicas sofridas pela sociedade
brasileira nas décadas de 70 e 80 geram efeitos nas estruturas do futebol. Essas alterações vão
se configurar, especialmente, no crescimento do papel das práticas violentas entre membros
dessas torcidas dentro da configuração desses grupos, ocupando parte relevante de suas
práticas.
8
Esse deslocamento começa a ser sentido ainda na década de 80, momento em que a
cobertura jornalística passa a abordar a violência praticada por hooligans ingleses, e que ao
longo da década tem o foco gradualmente transferido ao contexto nacional (CORDEIRO e
LOPES, 2015)
A partir daí as organizadas passam a ser vistas apenas como gangues violentas,
brigando por território, retirando os outros aspectos desses grupos da atenção midiática e,
eventualmente, do imaginário popular. Com isso, se fixaria um estigma danoso a essas
agremiações que se tornaria parte do senso comum.
Essa estigmatização veio acompanhada de uma ofensiva dos dirigentes das federações
e das autoridades estatais contra esses grupos, especialmente nas ações do Ministério Público
de São Paulo, nas ações do então promotor Fernando Capez.
1
LOPES, F.T.P; CORDEIRO, M.P. Futebol, visibilidade e poder: lógicas da violência nos espetáculos
futebolísticos. Revista Comunicação Midiática, v. 10, n. 3, p. 119-134, 2015, p. 126.
9
Os efeitos desse processo de criminalização serão analisados não somente no referido
as agremiações de torcedores, mas também nos efeitos que a expansão do poder penal contra
esses grupos gerou no controle social de todos os que compartilham esse mesmo ambiente.
Embora o aspecto cultural do futebol, com seus usos e costumes, tenha relevância
nesse meio, a forma como essas relações político-econômicas operam na prática indica que as
10
estruturas sociais ligadas ao futebol profissional estão inseridas dentro da mesma lógica que
orienta a sociedade capitalista como um todo, com suas próprias estruturas se assemelhando a
uma versão culturalmente inserida e reduzida das formas pela qual a sociedade capitalista se
organiza, sendo afetado diretamente pelas estruturas da sociedade.
2
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
3
Nomeclatura utilizada em referência aos dirigentes dos clubes brasileiros.
11
intensificação dos campeonatos na década de 30, a barreira que impedia pessoas negras e
pobres de se tornarem jogadores de futebol foi definitivamente abandonada4.
Um dos grandes responsáveis por estimular essa difusão do esporte foi o governo de
Getúlio Vargas5, que via o futebol como um elemento e uma ferramenta de formação da
identidade nacional, capaz de aglutinar as paixões nacionais em um mesmo objetivo. Para
além dessa concepção unificadora, o estímulo ao esporte se enquadrava nas concepções
eugenistas e fascistas que tinham trânsito privilegiado nos altos círculos da sociedade e do
governo nesse período.
A popularização do jogo atinge seu crescimento mais intenso e sua consolidação nas
décadas de 50 e 60 em razão de diversos fatores: A realização da primeira Copa do Mundo no
país, a consolidação dos principais clubes de futebol e de diversos campeonatos, as
campanhas bem-sucedidas da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970
e, especialmente, o surgimento e difusão dos aparelhos televisores que permitia a transmissão
dos jogos. Santos (2004) considera que:
4
A inserção de jogadores negros no futebol profissional não significou à época e ainda não significa o abandono
do preconceito de raça em relação a esses atletas. O cruel tratamento dispendido ao goleiro Moacyr Barbosa do
Nascimento após a final da Copa de 1950 e os habituais episódios de ofensas racistas nos estádios modernos
demonstram que essa chaga permanece na sociedade brasileira e, por conseguinte, no futebol brasileiro.
5
Ver Os Gramados do Catete: Futebol e Política na Era Vargas (1930-1945). Costa, Maurício da Silva
Drummond. In Memória Social dos Esportes: Futebol e Política: a construção de uma identidade nacional
6
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
12
mais numerosos. Essa magnitude demonstra bem o caráter de massa que o futebol assumiu no
Brasil nesse período e sua centralidade nos interesses nacionais.
Outro importante ator na difusão desse desporto foi a Ditadura Militar brasileira, que
utilizou o futebol profissional como ferramenta política em diversos campos. A utilização da
Seleção Brasileira como propaganda do Regime foi ampla e irrestrita, servindo como símbolo
nacional que aglutinava os brasileiros. Lemas como “Ninguém segura este país”, “Todos
juntos, vamos pra frente Brasil” e, o mais revelador, “Brasil, ame-o ou deixe-o" eram
repetidos em profusão nas rádios e na televisão. A construção de novos estádios e reformas
dos antigos foram relevantes dentro da política de desenvolvimento econômico do Regime
Militar, que estimulava grandes obras capazes de gerar empregos.
7
Entidade responsável pela administração do futebol no país até sua extinção e transposição de sua estrutura
para a Confederação Brasileira de Futebol em 1979.
8
RODRIGUES, Vinícius Soares. O FUTEBOL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO DURANTE A
DITADURA. Trabalho de Conclusão de Curso. Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo.
Centro Universitário do Sul de Minas – UNIS/MG, 2021. P. 25
13
o interesse político dos militares, as federações começam um processo de reorganização dos
seus campeonatos buscando “modernizar” o futebol, ao simular os moldes europeus:
De qualquer forma, o impulso à modernização tinha uma razão de ser muito clara.
No novo contexto futebolístico dos anos noventa, a transformação dos principais
campeonatos em produtos altamente valorizados no mercado publicitário e na
programação televisiva passaria a render aos grandes clubes receitas ponderáveis.
Além de incrementar o valor da publicidade no uniforme e da propaganda estática
nos estádios, intensificou-se o interesse pela transmissão de torneios entre os canais
de televisão (inclusive entre os canais por assinatura, que começavam a ganhar
espaço nas grandes metrópoles), elevando os valores pagos pelo direito de
exclusividade10.
Com isso, ocorre uma redução na influência dos valores obtidos por meio da bilheteria
no orçamento total dos times. O estádio e a arquibancada passam a desempenhar um papel
financeiro menor, ainda que não sem importância nas receitas dos clubes. Nesse contexto, o
antigo modelo de estádios “de massa”, grandes arquibancadas que eram preenchidas por
inúmeros torcedores, com pouquíssimo conforto e nenhum luxo, muitas vezes acompanhando
em pé os jogos, mas a um preço bastante reduzido, passa a não ser rentável na proporção
trazida pelas cotas de televisão.
Esses movimentos vão gerar uma nova transformação no futebol profissional, que terá
também que se adaptar as transformações da sociedade brasileira ocorridas na década de 90
com a introdução de influências neoliberais no país. Um esforço de “modernização do
futebol” é empreendido por seus organizadores e atores, que passam a buscar uma
reorganização do esporte em torno de novos pressupostos. Com a aprovação da chamada Lei
Zico em 1993 e da Lei Pelé em 1998, o futebol nacional se reorganiza em torno de novas
9
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. P. 103
10
PRONI, Marcelo Weishaupt. A metamorfose do futebol. Campinas: UNICAMP. IE, 2000.
14
perspectivas mais ligadas ao mercado do que ao Estado, instituição que até então havia sido a
força motriz do esporte11.
Importante destacar que apesar dessa iniciativa declarada de separação entre o futebol
e a política, as relações entre os dois âmbitos em momento algum foram rompidos. Um dos
principais símbolos do neoliberalismo no Brasil, o ex-presidente Fernando Collor de Mello
começou sua carreira política como cartola do CSA, clube cearense que já possuía laços fortes
com a família do político alagoano12. Mesmo na atualidade não é difícil encontrar figuras
importantes em que as carreiras políticas nos clubes e na nação se interrelacionam. Alexandre
Kalil, prefeito de Belo Horizonte entre 2017 e 2022 e importante figura na política mineira,
foi presidente do Clube Atlético Mineiro entre os anos de 2008 e 2014 13, antes de iniciar sua
carreira pública.
Um dos efeitos desse processo foi a concentração dos recursos esportivos e até mesmo
da atenção nacional a uns poucos times. A diversidade de agremiações esportivas que eram
estimuladas pelos campeonatos estaduais perde o pouco estímulo que recebia em favor de 20
times (com generosidade 40) com o gradual declínio de valores e de importância desses
11
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. P. 103
12
Ver https://ludopedio.org.br/arquibancada/fernando-collor-de-mello-presidente-do-csa/
13
Sem mandato, Kalil critica o Atlético-MG enquanto espera 2026. Folha de S.Paulo, São Paulo. 09 out. 2023.
Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/10/sem-mandato-kalil-critica-o-atletico-
mg-enquanto-espera-2026.shtml>. Acesso em 12.10.2023
14
A recente tentativa de alguns dos principais clubes europeus de abandonar suas ligas nacionais e a Champions
League em favor de uma ”Superliga” que seria composta apenas pelos principais clubes dos principais países
europeus e na qual não haveria o risco de rebaixamento ou desclassificação não deixa de ser um ponto mais
avançado dessa mesma lógica de organização esportiva que se verificava no desporto nacional já na década de
90. <Ver https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56838569>
15
campeonatos para as grandes divisões nacionais. Nesse sentido Castellari é preciso ao
consignar que:
15
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. P. 104.
16
modernização como identificam HOLLANDA e LOPES (2017). Nesse sentido, como será
descrito em maiores detalhes no próximo capítulo, as agremiações de torcedores organizados,
apontados pelos meios de comunicação como responsáveis pelos episódios de violência,
passam a ser enxergados enquanto inimigos desse processo e excluídos do ambiente
futebolístico:
Uma definição legal poderia ser encontrada na recém aprovada Lei 14.597/2023, que
em seu artigo 178, parágrafo 2º, dispõe que:
Art. 178. Torcedor é toda pessoa que aprecia, apoia ou se associa a qualquer
organização esportiva que promove a prática esportiva do País e acompanha a
prática de determinada modalidade esportiva, incluído o espectador-consumidor do
espetáculo esportivo
(...)
Embora seja adequada a seu objetivo normativo, a caracterização legal trazida pela Lei
Geral do Esporte, resquício da Lei 12.299/2010 que alterou o hoje revogado Estatuto do
Torcedor (Lei 10.671/2003), é consideravelmente abrangente, classificando qualquer
organização dedicada a torcida por uma organização esportiva, e, portanto, oferece pouco
esclarecimento quanto as características materiais dos grupos investigados.
16
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 182
17
Para encontrar uma definição mais restrita desse fenômeno no período que serão
analisados, é relevante expor suas raízes culturais e os eventos que alteraram suas
configurações e resultaram nos grupos hoje conhecidos
Não demorou muito para que essas bandas fossem acompanhadas pelo fenômeno das
torcidas uniformizadas, conjunto de torcedores que se reuniam com as mesmas roupas para
tentar estimular seus times por meio de cantos acompanhados de uma bateria, normalmente
associadas a um torcedor em particular, cuja paixão pelo clube era bem conhecida.
17
CORREIA SOBRINHO, José. Violência de massa no futebol: um olhar clínico sobre o fenômeno das torcidas.
Folha do Campus. Ano II, n10, p.02, set-97. Apud SILVA, Thiago. TORCIDAS ORGANIZADAS E A
VIOLÊNCIA NO FUTEBOL. Trabalho de Conclusão de Curso. Curso de Bacharelado em Educação Física.
Centro de Educação Física e Esporte. Universidade Estadual de Londrina, 2008, p. 8.
18
época, esses grêmios possuíam um caráter dirigente capaz até mesmo de estimular e
manter a ordem da assistência. 18
Outro fator que estimulou o crescimento dessas agremiações foi o incentivo dado pelo
governo de Getúlio Vargas que no contexto do estímulo ao desporto já citado, estimulou a
concessão de espaço a esses grupos na mídia e na sociedade civil. A participação das torcidas
uniformizadas de Corinthians, São Paulo e Palmeiras em eventos cívicos durante datas
comemorativas da cidade foi comum ao longo dos anos 40, sempre com demonstrações de
apreço a Getúlio Vargas.
Inicialmente, esses grupos estavam ligados a necessidade de viajar para torcer pelo
clube em jogos realizados em outras cidades ou outros estados, sendo inicialmente uma
reunião sobretudo logística e também uma forma de proteção em um ambiente que, se não era
explicitamente violento, era hostil aos torcedores de outros clubes. Foi nesse período que o
campeonato brasileiro assumiu o lugar de principal campeonato do país, aumentando a
quantidade de viagens dos clubes pelo território nacional.
18
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 19
19
Ibid. P. 23
19
A diferenciação dos torcedores comuns para os organizados passa a criar um senso de
identidade próprio que atraí diversas pessoas, especialmente torcedores jovens com idades
entre 15-17 anos, com um forte componente de pertencimento. Se antes a torcida
uniformizada carregava a imagem do torcedor fanático, cuja paixão pelo clube superava a dos
demais, as torcidas organizadas se tornam uma “torcida dentro da torcida”, com hábitos e
costumes particulares, e cujas manifestações não se limitavam apenas ao apoio ao time.
Para além do seu papel na estrutura política dos clubes, as torcidas organizadas
compuseram também um movimento de retomada das associações populares, especialmente a
partir dos anos 70, quando essas torcidas passaram a intensificar suas atividades fora dos
espaços dos estádios. Ainda que não tivessem uma pretensão política clara e imediata, eram
grupos formados por pessoas das camadas mais pobres da sociedade, com claro caráter
popular, se incluindo no mesmo processo de retomada das associações de bairro, fábricas,
igrejas, em um retorno dos movimentos sociais que gradualmente assumiriam protagonismo
na sociedade civil, especialmente na década de 1980.
20
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e
a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967- 1988) / Bernardo Borges Buarque de
Hollanda; orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008. P. 88
20
durante sua atuação nas arquibancadas durante os jogos, pendurava faixas e realizava gritos
contra o Regime Militar.
Não terá sido por acaso, só como um exemplo qualquer, que a primeira faixa pela
Anistia no Brasil a aparecer para um grande público tenha sido desfraldada
exatamente no meio da torcida corintiana, numa partida contra o Santos, no
Morumbi com mais de 110 mil pessoas, dia 11 de fevereiro de 1979. 21
Até esse momento essas torcidas organizadas estavam unidas em torno de um objetivo
em comum: a busca por melhores condições aos torcedores o que envolvia melhoras na
infraestrutura dos estádios, preços mais acessíveis, diminuição dos episódios de violência
entre torcedores e proteção contra os abusos cometidos pelas autoridades policiais. Visando a
ação conjunta na reivindicação dessas pautas, havia sido criada a ATOESP (Associação das
Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo) em 1976, que realizaria a interlocução entre as
agremiações de torcedores, as federações de futebol e o Governo do Estado de São Paulo.
21
19 Cf. KFOURI, J. A emoção Corinthians. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 36. O ex-presidente dos Gaviões
da Fiel, Douglas Deúngaro, confirma a informação: “Numa época de ditadura a Gaviões foi a primeira entidade
que abriu uma faixa – „anistia ampla e irrestrita‟ – para cem mil pessoas. Na época o pessoal que estava saindo
do país veio pedir para a Gaviões, porque eles aceitaram a idéia Gaviões. Eles disseram que ninguém tinha
coragem de abrir uma faixa para cem mil pessoas: „vocês vão ter que abrir‟ e os Gaviões compraram a briga. (...)
Na época foi todo mundo para o banquinho do Doi-Codi. O presidente na época era o Julião e os policiais vieram
aqui e pegaram todo mundo. Ninguém tinha feito isso na época da ditadura, então, os Gaviões eram uma força
diferente das outras torcidas.” Apud Hollanda, Bernardo Borges Buarque de O clube como vontade e
representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-
1988) / Bernardo Borges Buarque de Hollanda; orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp062693.pdf>
21
Morumbi e do Pacaembu e criar estratégias para diminuir os crescentes
enfrentamentos entre torcedores, organizados ou não. 22
O marco dessa mudança dos grêmios é o ano de 1983 devido a dois acontecimentos
centrais: o fim do pacto de não agressão entre as agremiações e a fundação da Mancha Verde,
torcida organizada ligada ao Palmeiras que reivindicava uma atuação violenta objetivando
“recuperar o respeito” como aspecto central do grupo.
Importante destacar que a criação da Mancha Verde23 com essa orientação mais
belicosa não foi surgiu espontaneamente, mas foi uma reação a experiências anteriores.
Conforme destaca CANALE (2020), a criação da Mancha Verde é consequência das relações
entre as torcidas paulistas na década de 1970, em que torcedores palmeirenses eram vítimas
na maioria dos enfrentamentos, gerando essa lógica revanchista e a necessidade de
autoafirmação nesse ambiente. Como o mesmo destaca:
22
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 184
23
Fundada em 11 de janeiro de 1983.
24
Ibid. P. 324.
22
violência. A gente deve ter exagerado um pouco, porém, foi um mal necessário. A
gente conseguiu o nosso espaço e adquirimos o respeito das demais „torcidas‟ 25
Os debates sobre a violência nas décadas de 1980 e 1990 se justificam em uma série
de fenômenos característicos da vida urbana. Do processo de redemocratização, com
suas nuances sobre o legado da ditadura militar, até a recessão econômica em função
do desmantelamento do “Milagre” econômico, a recorrência de incidentes de
violência se tornou a tônica dos debates, exponencialmente no Rio de Janeiro, que
ainda viu o debate resvalar no advento do funk no estado. No microcosmo das
torcidas, o perímetro se amplia a São Paulo, cenário dos dois casos considerados
marcos na associação entre violência e torcidas organizadas.26
25
In PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol: Identidade e identificações, dimensões cotidianas. In
Futbologias: Futbol, identidad y violencia en America Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires 2003.
26
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 155
23
Nesse cenário, a definição de torcidas organizadas abarca diversas características,
sendo definida, conforme os entendimentos expostos por Carlos Alberto Máximo Pimenta
enquanto:
A relação entre violência e futebol não era novidade no país. Já nos anos 20, momento
em que a prática do desporto ainda era restrita em grande medida restrita a elite burguesa do
país já eram registrados casos de hostilidade e violência entre torcedores de futebol. O jogo
era inclusive considerado especialmente promotor da violência pela maneira como os
espectadores se excediam em suas manifestações, chegando a ser mal vistos em certos
círculos. Um dos principais críticos do esporte foi o jornalista e escritor Lima Barreto, que
chegou a fundar a “Liga contra o Football”, associação dedicada a combater o esporte que, em
sua visão, embrutecia o intelecto e acirrava as paixões28
Não é possível deixar de falar no tal esporte que dizem ser bretão. Todo dia e toda a
hora ele enche o noticiário dos jornais com notas de malefícios, e mais do que isto,
de assassinatos. Não é possível que as autoridades polícias não vejam semelhante
cousa. O Rio de Janeiro é uma cidade civilizada e não pode estar entregue a certa
malta de desordeiros que se querem intitular sportmen. Os apostadores de brigas de
galos portam-se melhor. Entre eles, não há questões, nem rolos. As apostas correm
em paz e a polícia não tem que fazer com elas; entretanto, os tais footballers todos
os domingos fazem rolos e barulhos e a polícia passa-lhe a mão pela cabeça. Tudo
tem um limite e o football não goza do privilégio de cousa inteligente. 29
27
ASSIS, T.C.F, A Representação Social da Violência em Torcidas Organizadas de Futebol. 2008. 22. Tese
(Pós-graduação em Psicologia) Universidade Católica de Goiás, 2008.
28
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e
a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967- 1988) / Bernardo Borges Buarque de
Hollanda; orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008. P. 445
29
BARRETO, Lima. Revista Careta, 1 de julho de 1922. Apud. SANTOS JUNIOR, Nei. Jorge. O Futebol
Suburbano e as Inspirações de Lima Barreto: Representações E Tensões. Recorde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p.
1-17, jan./jun. 2019
24
festa popular30. As torcidas uniformizadas, até então principal forma de agremiação de
torcedores eram vistas como uma solução à violência e a criminalidade nesse meio, já que
manteria a ordem e a disciplina dos outros torcedores por seu dirigismo. Durante esse período,
os casos de violência entre torcedores de times rivais não eram associados aos grêmios de
torcedores, mas retratado como uma questão do público em geral.
Essa visão preconceituosa era largamente influenciada pela composição das novas
agremiações, formadas majoritariamente por jovens entre 15-17, provenientes das camadas
mais pobres da sociedade, com pouco acesso à educação formal ou a postos de trabalho
formais. A utilização de uma estética uniformizada, acompanhada de “gritos de guerra” e a
utilização de baterias causava temores nos setores mais conservadores da sociedade. As
caravanas e passeatas das torcidas organizadas eram acompanhadas de perto por um largo
contingente da polícia militar, que atuava de forma truculenta contra os torcedores,
organizados ou não.
Numa ação que não guardava relação com os incidentes do estádio, dois torcedores
foram detidos pela Polícia Militar e levados para uma região distante de São Paulo.
Espancados e submetidos a tortura pelos policiais, um deles acabou baleado na
tentativa de fuga. O antropólogo José Paulo Florenzano (2019) relembra que a
polícia encarregada da segurança em espetáculos esportivos era também aquela que
atacava a subversão política, reprimia protestos e passeatas. Os métodos da caserna
promoviam uma atuação policial truculenta que vitimava estudantes, sindicalistas e
outros possíveis inimigos do regime. A figura do torcedor, em 1973, não estava
30
A cobertura jornalística do futebol realizada entre a década de 20 e a década de 50 era feita
predominantemente no formato de crônica esportiva, que centrava seus relatos nas emoções provocadas pelo
jogo e em uma visão fantástica e romântica do esporte. Este estilo pouco realista de descrição do jogo também
foi bastante utilizado nas transmissões de rádio. Foram proeminentes nesse estilo de jornalismo esportivo o
escritor Henrique Maximiano Coelho Netto e os irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues.
25
atrelada à subversão e nem a práticas violentas; porém, os excessos policiais se
tornariam cada vez mais recorrentes ao longo da década. 31
Essa é a percepção acerca desses grupos majoritária até meados da década de 80. A
imagem das torcidas organizadas como gangues violentas focadas em brigas e combate
territorial só passou a assumir papel central na representação feita pela mídia durante os anos
90.
4 A DÉCADA DE 90
Nesse contexto, houve uma intensificação dos enfrentamentos entre torcidas rivais e
um escalonamento na letalidade desses enfrentamentos, consequência do crescimento dos
grupos e da adoção de armas brancas, armas de fogo e até mesmo bombas. PIMENTA (2003)
expõe um crescimento expressivo do número de participantes das principais torcidas
organizadas da metrópole paulista no início da década de 90:
31
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 97
32
Ibid. P. 142
26
Entre brigas, rivalidades e mortes, os anos noventa representam o crescente aumento
do quadro associativo das “organizadas”. Em 1991, a “Mancha Verde” tinha 4.000,
a “Independente” 7.000 e os “Gaviões da Fiel” 12.000, filiados. Até outubro de
1995, período em que passou a ocorrer por parte da Justiça Pública paulistana
cerceamentos das atividades desenvolvidas pelas “organizadas”, seus quadros
registrou os números de 18.000, 28.000 e 46.000 filiados, respectivamente. 33
O aumento no enfrentamento entre torcidas rivais foi acompanhado por uma crescente
cobertura midiática, que passou a retratar os ambientes de estádio e entre torcedores como
uma barbárie (CORDEIRO e LOPES, 2015) explorando e noticiando os casos de violência de
forma sensacionalista e alarmista.
Nesse sentido, como narra TORO (2004), pela primeira vez as torcidas organizadas
que eram legitimadas enquanto tributárias do espetáculo e da festa passaram a ser censuradas
de forma intensa e colocadas no papel de artífices da violência, que afastariam demais
torcedores dos estádios.
Frequentemente, essas torcidas são, do mesmo modo que no artigo citado acima,
associadas à violência no futebol. São comuns os discursos que fundem os
torcedores organizados e os torcedores violentos numa mesma figura, colocando a
violência como um elemento consubstancial também aos primeiros209. Antes de
analisarmos como essa associação é construída e seus possíveis efeitos, é preciso
recordar que: a) nem todos os torcedores violentos são filiados a torcidas
organizadas; b) nem todo torcedor organizado é violento e c) os torcedores violentos
(filiados ou não às torcidas organizadas) o são em diferentes níveis e praticam
diferentes tipos de violência (como a física e a simbólica). A partir deste
esclarecimento inicial, podemos afirmar que essa associação é simplista,
dissimuladora e abusiva. Simplista porque reduz a complexidade do problema.
Dissimuladora porque o torcedor violento que não é filiado à torcida organizada
desaparece de cena, ficando na penumbra. Abusiva porque a identidade do torcedor
organizado pacífico é contagiada pela ação violenta de alguns torcedores
organizados. Em última instância, tal contaminação reveste todos os torcedores
organizados com a imagem da violência e da delinquência. 34
33
PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol: Identidade e identificações, dimensões cotidianas. In
Futbologias: Futbol, identidad y violencia en America Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires 2003.
34
Lopes, Felipe Tavares Paes. Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na
construção de um problema social / Felipe Tavares Paes Lopes; orientador Esdras Guerreiro Vasconcellos. -- São
Paulo, 2012. P. 241
27
que demandaria a atuação do poder público para coibi-lo (LOPES, 2013). Com esse
direcionamento, o jornalismo esportivo dissociava os grêmios esportivos de outras
organizações da sociedade civil como sindicatos e associações de bairro e os aproximava de
gangues e organizações criminosas (BUARQUE DE HOLLANDA, 2008).
Essa mudança de tratamento foi catalisada por dois marcos centrais que ocorreram
respectivamente nos anos de 1988 e 1995 e que demandam uma descrição em maiores
detalhes: o assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, fundador e então presidente da
Mancha Verde, e a Batalha do Pacaembu, conflito entre torcedores de Palmeiras e São Paulo
durante a final da Supercopa de Futebol Júnior que resultou em 1 morte e 102 feridos.
A principal teoria da Polícia Civil, na figura do Delegado José Heliodoro dos Santos,
era de que o assassinato havia sido motivado por rixas entre a vítima e torcedores membros da
principal organizada do Sport Clube Corinthians Paulista, a Gaviões da Fiel. Segundo o
delegado, ele havia recebido uma carta assinada em que eram descritos os motivos do crime e
35
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 159
36
CHEFE da Mancha Verde é morto a tiros na sede. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. D2, 19 out. 1988.
28
os suspeitos que estariam ligados a torcida organizada. O autor da suposta carta não foi
revelado.
Com base nessa evidência, foram chamados para depor três torcedores do
Corinthians37 e após seus depoimentos o delegado se convenceu que não estavam implicados
no crime e que a carta se tratava de uma pista falsa.
Os efeitos gerados por essa morte repercutiram quase que imediatamente dentro das
torcidas de futebol. Já no primeiro jogo após o evento, uma partida disputada entre Palmeiras
e Cruzeiro no antigo Palestra Itália, o estado geral de animosidade dos torcedores
palmeirenses levou a um enfrentamento ainda nos minutos iniciais:
[...] o clima de paz foi rompido antes do início da partida. Segundo os palmeirenses,
membros da torcida visitante não teriam respeitado o minuto de silêncio para o
presidente manchista – ensejo para quinze minutos de uma intensa briga nas
arquibancadas do Parque Antártica. Segundo o tenente Vanderlei Coelho, o objetivo
dos palmeirenses era derrubar a grade que separava as duas torcidas. O clima de
hostilidade passou às cadeiras cativas e numeradas, onde houve trocas de socos e
pontapés. Controlada a primeira onda da briga, os torcedores palmeirenses se
insurgiram contra a Polícia Militar, que fez uso de cassetetes e até de armas de fogo
para retomar o controle do estádio.
Após o jogo, com vitória alviverde por 2 a 0, vários ônibus de cruzeirenses foram
apedrejados. Os mineiros foram conduzidos ao 2º Batalhão da PM, que alugou um
ônibus de linha que os levaria até a Rodovia Fernão Dias, como forma de despistar
possíveis perseguições dos palmeirenses.39
Para além dos efeitos na torcida em geral, o episódio ficou marcado entre as torcidas
organizadas como um novo parâmetro de violência. O uso de armas de fogo ainda era um
elemento pouco presente em enfrentamentos entre torcedores organizados. Fator que gerou
ainda mais surpresa e indignação, foi a premeditação do crime, divorciado de qualquer
momento de emoção ligado a um jogo em particular e possivelmente motivado por vingança
37
Antônio Mezher, Carlos Tadeu Miranda e Carlos Garofallo
38
INTEGRANTES da Gaviões são suspeitos de matar líder da Mancha, diz polícia. Folha de S.Paulo, São Paulo,
p. D1, 20 out. 1988.
39
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 323
29
de enfrentamentos anteriores, o crime apresentava um novo padrão de beligerância até então
desconhecido nesse meio (BUARQUE DE HOLLANDA, 2008).
É interessante notar que o crime, em um primeiro momento, não teve grande destaque
na mídia. As matérias dos jornais A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo que trataram do
assassinato e de suas repercussões entre as torcidas se resumiram a artigos curtos nas folhas
do caderno de Esporte, com pouco destaque entre as matérias principais. Apesar disso, a
cobertura contínua, ao longo de vários dias, já era sintomática do papel de destaque que
enfrentamentos entre os torcedores teriam a partir desse episódio.
40
TOLEDO, L. H. de. Torcidas organizadas de futebol. Campinas: Autores Associados/Anpocs, 1996.
30
Com a referida quebra nas relações entre torcidas organizadas catalisada pela morte de
Cleofas, inaugurou-se um período em que os enfrentamentos se tornariam mais comuns e
mais letais, abrindo espaço para a estigmatização desses movimentos e o apagamento de seu
caráter social:
O episódio serviu como um marco inicial de uma cobertura midiática sobre o tema que
cada vez mais se distanciaria do aspecto esportivo e se concentraria no policialesco.
Conforme acompanhamento midiático e registros realizados pelo jornalista esportivo Rodrigo
Vessoni , desde o homicídio de Cleo até o fim da década de 1990, um recorte de 12 (doze)
anos, foram noticiadas as mortes de 16 (dezesseis) torcedores. O número subiria para 99
morte noticiadas na década seguinte (2000-2009)42
Esses números aparentemente contrariam a apuração feita por Carlos Alberto Máximo,
que apenas nos anos de 1992 e 1994, identifica que foram noticiadas as mesmas 12 (doze)
mortes:
41
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 109
42
AMARO. G. Da paixão nacional ao ódio: por que a violência no futebol está longe do fim. Trivela. Brasil, 15
de julho de 2023. Acesso em 15 de setembro de 2023
43
PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol: Identidade e identificações, dimensões cotidianas. In
Futbologias: Futbol, identidad y violencia en America Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires 2003.
31
Embora a apuração de mortes noticiadas não seja definida, parece consenso entre os
autores analisados que a década de 80, especialmente a partir do evento descrito nesse item,
marca o início da violência esportiva enquanto objeto de atenção midiática:
Entretanto, no Brasil, foi somente a partir do final da década de 1980 que ele [o
fenômeno da violência envolvendo torcedores] passou a se notabilizar como
conteúdo noticioso e, com isso, a mobilizar mais fortemente a opinião pública.
Nesse período, foi alçado à condição de problema social brasileiro, tornando-se
objeto de preocupação pública constante. De acordo com Toledo (1996), isso se deu,
sobretudo, a partir de 1988, com o destaque dado pela imprensa ao assassinato de
um dos dirigentes e fundadores da Mancha-Verde (atual Mancha-Alviverde), uma
das principais torcidas organizadas do Palmeiras. 44
Assim como a morte do então presidente da Mancha Verde serviu como um simbólico
evento inicial para a modificação das relações entre torcidas organizadas paulistas e para a
cobertura midiática, a chamada Batalha do Pacaembu é o evento que marca a elevação da
discussão da violência entre torcedores de um âmbito restrito aos jornalistas esportivos para
configurar um dos tópicos no debate jornalístico acerca da segurança pública, especialmente
no Estado de São Paulo.
44
Lopes, Felipe Tavares Paes. Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na
construção de um problema social / Felipe Tavares Paes Lopes; orientador Esdras Guerreiro Vasconcellos. -- São
Paulo, 2012. P. 14
45
”Morte súbita, ou gol de ouro, consiste no término do jogo imediatamente após um dos contendores fazer um
gol. Houve, na ocasião, quem atribuísse a essa regra as razões do desfecho funesto dessa partida, alegando que a
interrupção brusca da partida, sem dar chances de recuperação ao adversário, gera uma maior tensão entre os
aficionados, fato que colaborou para o acirramento dos ânimos. Pista interessante porém insuficiente para
compreender todo o desencadeamento do acontecido” apud Cf. TOLEDO, L. H. de. “Identidades e conflitos em
campo: a „guerra do Pacaembu‟”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1997, nº 32. P. 110.
32
Embora a peleja tenha durado somente nove minutos, foram feridos 80 (oitenta)
torcedores entre ambas as torcidas e 22 (vinte e dois) policiais46. Ocorreu também a morte de
um torcedor, Márcio G. da Silva, menor de idade a época, em razão de lesões generalizadas.
A reconstrução feita por Luiz Henrique de Toledo retrata bem o decorrer dos eventos e o
impacto gerado:
Outro fator que catalisou a repercussão pública do evento foi ele ter ocorrido dentro de
uma partida de futebol de juniores. Como explica Luiz Henrique de Toledo, a expectativa
para uma partida dessa categoria era de uma rivalidade mitigada em razão da pouca
importância normalmente atribuída:
A partida era uma final de campeonato de juniores21 entre São Paulo Futebol Clube
e Sociedade Esportiva Palmeiras e [...] este também revestia-se de pouca
importância se comparado às pelejas acirradas que marcam e instilam animosidades
na cidade, desde as primeiras décadas deste século, entre os grandes times
profissionais. Se não fosse pelos fatídicos acontecimentos ambos os jogos aqui em
questão ficariam confinados às estatísticas esportivas
46
Informações dos parágrafos acima colhidas de matérias veiculadas no jornal Folha de S.Paulo, São Paulo, 21
ago. 1995.
47
Programação de Rádio e TV. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-2, 20 agosto 1995
33
Essa foi também justificativa para um dos erros cometidos pela organização e pelo
Poder Público, ao menos na visão da cobertura midiática do evento, que permitiram que o
incidente tomasse as proporções finais: a falta de policiamento adequado para uma partida.
Segundo as informações à época fornecidas por um major da Polícia Militar, o efetivo de
policiais no estádio era de apenas 65 (sessenta e cinco) enquanto o público variava entre 6.000
(seis mil) e 7.000 (sete mil). Embora o mesmo afirmasse que esse contingente era o padrão
para eventos futebolísticos com até 10.000 (dez mil) pessoas, cobrou-se que o evento deveria
ter tido um maior contingente em razão da rivalidade conhecida entre as agremiações
esportivas.
Outro erro crucial que permitiu o episódio alcançar as proporções mencionadas foi a
realização da partida no estádio do Pacaembu, já que este se encontrava com setores em obra.
A disponibilidade de materiais de construção misturados com entulho permitiu que ambos os
grupos de torcedores tivessem acesso a paus, pedras, vergalhões e outros para serem usados
como armas improvisadas por ambos os grupos de torcedores, o que aumentou a
periculosidade do episódio. Conforme destacado pela cobertura da Folha de S. Paulo “não
havia ninguém para impedir que o entulho fosse utilizado como arsenal”48.
Embora tenha ocorrido uma série de irregularidades e omissões do Poder Público que
contribuíram para o resultado final, o único responsabilizado pelo ocorrido foi Adalberto B.
dos Santos, torcedor identificado como responsável pelo homicídio de Márcio G. da Silva.
Preso preventivamente sobre a justificativa de “clamor popular”, conforme descrito por
TOLEDO (1997), foi denunciado por homicídio triplamente qualificado e condenado a 12
(doze) anos de prisão em 1998.
48
TORCEDORES BRIGAM EM JOGO DE JUNIORES E ADIAM A ESTREIA DO CORINTHIANS NO
BRASILEIRO. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
49
Ver matérias publicadas na edição da Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
34
Indiretamente foram também responsabilizadas as torcidas organizadas de ambos os
clubes. Identificadas como responsáveis pelo ocorrido, ainda que o evento tenha contado com
a participação de torcedores não organizados como o próprio Adalberto, os grêmios sofreriam
as punições. Já no dia seguinte ao enfrentamento, repercutia nos jornais a proposta feita pela
presidência da Federação Paulista de Futebol-FPF para que torcedores fossem proibidos de
entrar nos estádios vestindo uniformes de torcidas organizadas. A justificativa dessa proposta
seria que os uniformes “estimulam nos componentes das organizadas um sentimento de
violência”. Além dessa proposta, o presidente da FPF, Rubens Approbato Machado, sugeria já
que o Ministério Público deveria extinguir certas torcidas organizadas identificadas afirmando
que “várias têm conformação paramilitar e demonstram a finalidade ilícita de promover a
desordem”.
Outra solicitação de Pelé ao ministro da Justiça será o reestudo das leis vigentes para
tratar com mais rigor os torcedores. Um exemplo: considerar os chefes de torcidas
cúmplices e, assim, serem também intimados judicialmente.
– Eles devem ser responsabilizados porque são os líderes das torcidas organizadas –
disse Pelé. – O pior é que eles têm como aliados os próprios dirigentes de clubes,
que incentivam os seus deslocamentos intermunicipais e interestaduais e lhes dão
ingresso de cortesia50
A repercussão não se limitou aos órgãos responsáveis pelo futebol, mas promoveu
verdadeira comoção nacional. Como destaca BUARQUE DE HOLLANDA, o incidente teve
uma repercussão equiparável com a tragédia de Heysel, evento ocorrido na final da Liga dos
Campeões de 1985 entre Liverpool e Juventus, em que 39 pessoas morreram em decorrência
de uma briga entre os hooligans de Liverpool e os ultras da Juventus que proporcionou um
acúmulo de pressão e o colapso do alambrado. Esse episódio marcou diversas mudanças no
50
Acervo Digital Jornal O Globo, 23 de agosto de 1995, Matutina, Esportes, Página 36. Apud SILVA, Juliana
Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça Rubro-Negra
durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da Silva. -- Rio de
Janeiro, 2021. P. 156
35
futebol europeu e colocou um maior investimento das autoridades europeias na questão da
violência no esporte.
Em seu artigo Alberto Helena Jr. expõe o que acredita ser a raiz da violência dos
torcedores organizados a quem imputa a responsabilidade pelos atos praticados, o ódio a
própria miséria:
Quem são esses marginais que vestem as camisas das torcidas uniformizadas como
armaduras e vão para os estádios não mais em busca de um fugaz momento de
vitória nas suas vidas feitas de derrotas no dia-a-dia, de gerações a gerações, mas
sim para extravasar a revolta do eterno derrotado? São jovens, alguns meninos
ainda, pobres, vindos das bordas da cidade grande, das beiradas do consumo que a
TV lhe martela à toda hora, do tênis importado ao comportamento igualmente
importado dos marginais do Primeiro Mundo.
Por sua vez Juca Kfouri novamente associa os eventos da Batalha do Pacaembu com
os torcedores organizados e, embora ressalve que nem todos esses são das camadas mais
51
ISSO NÃO É BOSSA NOVA, NEM É MUITO NATURAL. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
36
pobres da sociedade, identifica como solução para a violência nos estádios a elevação do
preço dos ingressos, descrevendo ainda o ocorrido como:
Nesse mesmo sentido, o jornal O Globo publicou uma matéria no dia 27 de agosto de
1995 em que buscava destrinchar a cultura dos torcedores organizados denominada como
“cultura da violência”. Nela, o professor Dr. Waldenyr Caldas destrinchava os detalhes das
práticas e representações culturais desses grupos:
52
A VIOLÊNCIA BARATA. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
53
Acervo Digital Jornal O Globo, 27 de agosto de 1995, Matutina, Esportes, Página 56. Apud SILVA, Juliana
Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça Rubro-Negra
durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da Silva. -- Rio de
Janeiro, 2021. P. 159
37
Conforme expõe SILVA (2021) ao analisar o discurso da matéria em questão, é
explorada a ideia de “degradação dos valores mínimos de civilidade” como uma das possíveis
causa para o comportamento agressivo das torcidas organizadas.
54
TORCEDORA É INDICIADA NO CASO PACAEMBU. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 13 set. 1995.
38
Essas práticas dos noticiários esportivos buscavam não apenas modificar a percepção
pública acerca das torcidas organizadas, mas também apresentar o ponto de vista de seus
jornalistas enquanto um consenso do público torcedor. Nesse sentido, a pesquisa de TORO
(2004) identificou uma tendência do jornal Folha de S. Paulo de colocar-se em um papel de
porta voz da vontade da torcida, de intérprete de suas vontades e desejo.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a constante retratação desses agrupamentos afetou
diretamente a opinião pública, visto que como exposto por SILVA (2021):
Isso pode ser observado pela enquete publicada apenas três dias após o incidente no
Pacaembu em 1995, em que se questionava a população paulista seu posicionamento acerca
da proibição de torcidas organizadas55. O resultado apontava que 64% dos paulistanos seriam
favoráveis a dissolução dessas agremiações, no entanto a enquete foi realizada logo após um
evento violento, cujas imagens haviam sido intensamente veiculadas por todos os veículos
jornalísticos, incluindo a própria Folha.
A primeira delas, já comentada foi adotada pela Federação Paulista de Futebol que
proibiu a entrada no estádio de espectadores que portassem qualquer adereço ou objeto que
tornasse possível a identificação enquanto membro de uma torcida organizada. Essa decisão
teria sido tomada com base em um relatório elaborado por oficiais da Polícia Militar Paulista
que indicava os uniformes como elemento estimulante de sensações de poder e anonimato no
torcedor violento56.
Essa medida basicamente impedia a atuação das torcidas organizadas de sua atividade
essencial, sua razão de existência: torcer. Essa medida durou até a virada do século. É um
55
Apud. TORO, Camilo Aguilera. O espectador como espetáculo: notícias das Torcidas Organizadas na Folha de
S. Paulo (1970-2004). 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004
56
CAMISETAS JÁ ESTÃO BANIDAS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 25 ago. 1995.
39
exercício intelectual interessante questionar os efeitos dessa medida nas ações das torcidas
organizadas, se ao impedir que as torcidas organizadas exercessem sua principal atividade,
essa decisão não teria estimulado essas agremiações a se focarem nos enfrentamentos como
forma de se manterem ativas.
Para a aplicação dessa proibição, outra medida adotada foi a expansão do contingente
policial nos jogos que se seguiram. De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, a Polícia
Militar preparava uma “superblitz” nos estádios e nos jogos disputados São Paulo x Atlético-
MG e Palmeiras x Goiás foram alocados ao todo cerca de 500 homens, com cada jogo
recebendo um contingente de polícias militares equivalente ao dobro do usualmente alocado
em clássicos57.
Outra medida adotada logo após o ocorrido, foi uma solicitação feita pela Polícia
Militar paulista para que fossem suspensas as vendas de bebidas alcoólicas dentro dos
estádios do Morumbi e do Parque Antártica58.
Para além das ações públicas adotadas em tom emergencial para evitar que a tragédia
se repetisse nos dias seguintes, certas iniciativas de diferentes setores do Poder Público
possuíam um nítido caráter punitivo contra as torcidas organizadas, identificadas como
culpadas pelo ocorrido.
Apenas três dias após a tragédia, a Folha de S. Paulo já noticiava os planos da Polícia
Militar para realizar um “arrastão” nas torcidas organizadas, realizando visitas surpresas a
sede dessas agremiações59. De acordo com a matéria, esse planejamento teria sido motivado
por uma ligação anônima de um ex-integrante da Mancha Verde relatando que atos de
vandalismo eram praticados dentro da sede.
57
PM PREPARA SUPERBLITZ NOS ESTÁDIOS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 26 ago. 1995
58
VENDA DE ALCOOL É SUSPENSA. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 26 ago. 1995
59
POLÍCIA IDENTIFICA ‟BADERNEIROS„ E PLANEJA ARRASTÃO NAS ORGANIZADAS. Folha de
S.Paulo, 4-1, São Paulo, 23 ago. 1995
40
Os posicionamentos expostos pela Polícia Militar nessa mesma matéria corroboram a
noção de que o objetivo dessas medidas não era apenas o de apurar o ocorrido no confronto
do dia 20 de agosto de 1995, mas sim aproveitar-se do ocorrido visando extinguir as torcidas
organizadas:
Como descrito por TORO (2004), essas “blitzs” foram realizadas nas sedes das
torcidas Mancha Verde e Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP), ligadas ao Palmeiras e
Independente e Dragões da Real, associadas ao São Paulo. Nelas, foram apreendidos os
cadastros de sócios, registros contábeis e equipamentos de informática. Esses materiais seriam
utilizados nas investigações contra esses agrupamentos.
O Ministério Público de São Paulo seguiria a tese apresentada pela Polícia Militar na
matéria acima e já em 06 de setembro de 1995 a Promotoria de Justiça da Cidadania impetrou
uma ação cível requerendo a dissolução da Mancha Verde60. A tese jurídica que
fundamentava a ação era de que a Mancha estaria desvirtuando as atividades previstas em seu
estatuto ao praticar atos ilícitos.
A partir desse pedido, ganha destaque aquele que seria um dos principais nomes no
esforço de desarticular e reprimir as torcidas organizadas: O então promotor de Justiça
Fernando Capez. Dentro dos sete promotores que subscreveram a ação contra a Mancha
Verde, Capez tinha um aparente destaque, visto que era ele quem concedia entrevistas e
tratava diretamente com a imprensa.
60
MINISTÉRIO PÚBLICO PEDE O FIM DA TORCIDA ORGANZIZADA MANCHA VERDE. Folha de
S.Paulo, 4-5, São Paulo, 07 set. 1995
41
criminosos, bandidos e assassinos para os indivíduos que são filiados às agremiações
organizadas.61
Nos autos desse processo, a 40ª Vara Cível da Capital proferiu, a pedido do Ministério
Público, decisão liminar determinando a suspensão das atividades da Mancha Verde até a
conclusão da ação. Com isso, foram paralisadas todas as iniciativas da organização, suas
sedes e subsedes foram fechadas e suas contas bloqueadas62.
Não era segredo que o objetivo do Ministério Público, por meio da Promotoria de
Justiça da Cidadania, era que fossem impetradas ações requerendo a extinção de todas as
torcidas organizadas que tivessem algum envolvimento em casos de violência, como o próprio
Capez afirmou à Folha de S. Paulo colocando ainda a meta de que as ações fossem impetradas
até o fim do mês de setembro de 199564. Embora não tenha sido impetrada outras ações nesse
mesmo sentido naquele ano, a intenção de investigar e penalizar as torcidas organizadas
permanecia clara.
61
LADEIRA. Flávia Toledo. A criminalização das torcidas organizadas de futebol. 2009. 112f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) -Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.
62
JUSTIÇA FECHA PRIMEIRA UNIFORMIZADA. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 12 set. 1995
63
JUSTIÇA DECIDE FECHAR TORCIDA INDEPENDENTE. Folha de S.Paulo, 4-4, São Paulo, 21 set. 1995
64
JUSTIÇA PEDE FIM DE TORCIDAS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 13 set. 1995
42
de S. Paulo65. A sentença do processo contra a Torcida Independente concluiu pela ausência
de evidências suficientes para que a organizada fosse banida66.
Ainda que, ao contrário das demais organizadas paulistas, a Gaviões da Fiel não tenha
sido efetivamente extinta, a suspensão temporária de suas atividades marcou um momento em
que o ataque dos órgãos do poder público contra as terceiras principais torcidas organizadas
paulistas conseguiu inviabilizar as atividades dessas organizações. A Mancha Verde seria
refundada em dezembro de 199770 e a Torcida Independente refundada em retomada em
agosto de 199971 e ambas retomariam suas atividades, porém a criminalização secundária de
seus membros permaneceria.
Essa disposição visava atribuir uma ordem dentro das arquibancadas, permitindo
identificar o local em que cada pessoa deveria estar. Contundo a principal previsão que
afetaria torcedor era a do art 5°:
Outra novidade normativa veio com o Estatuto do Torcedor em 2003. Essa lei federal
disciplinava em larga medida as relações entre torcedores, clubes e federações, focando
sobretudo em normas de direito do consumidor. Porém trazia uma penalização a torcedores
que incitassem a violência ou promovessem tumulto:
Art. 39. O torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir
local restrito aos competidores ficará impedido de comparecer às proximidades, bem
como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de três meses a
72
SÃO PAULO. Lei Nº 9.470, de 27 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a manutenção de toda a lotação com
lugares numerados nos estádios de futebol, ginásios de esportes e estabelecimentos congêneres. São Paulo:
Assembleia Legislativa. Disponível em < https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1996/lei-9470-
27.12.1996.html > Acesso em 19.09.2023
73
Ibid
44
um ano, de acordo com a gravidade da conduta, sem prejuízo das demais sanções
cabíveis.
§ 1º Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que promover tumulto, praticar ou
incitar a violência num raio de cinco mil metros ao redor do local de realização do
evento esportivo.
§ 2º A verificação do mau torcedor deverá ser feita pela sua conduta no evento
esportivo ou por Boletins de Ocorrências Policiais lavrados.
§ 3º A apenação se dará por sentença dos juizados especiais criminais e deverá ser
provocada pelo Ministério Público, pela polícia judiciária, por qualquer autoridade,
pelo mando do evento esportivo ou por qualquer torcedor partícipe, mediante
representação74.
Essa previsão representava uma previsão legal a ser aplicada pelos órgãos do sistema
penal e que implicava em uma medida de afastamento do torcedor dos ambientes do futebol
profissional, contudo não se limitava ao mau comportamento no estádio, mas também em
uma área de 5km ao redor. Embora não represente uma pena própria, era uma previsão
acessória das normas penais.
Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito
aos competidores em eventos esportivos:
I - promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil)
metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de
ida e volta do local da realização do evento;
74
BRASIL. Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras
providências. Diário Oficial da União - Seção 1 - Página 1. 16 mai. 2003
45
II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu
trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que
possam servir para a prática de violência.
5 CRIMINOLOGIA
75
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia Radical/ Juarez Cirino dos Santos – 4. ed. Florianóplis. Tirant Lo
Blanch, 2018.
46
forma como esses processos foram influenciados e conduzidos pelas relações econômicas e
sociais para que resultassem na perseguição dos referidos grupos.
Pelo contrário, parte-se da hipótese que o fator essencial para a perseguição a esses
grupos partiu de aspectos materiais e econômicos, incluindo a inserção de seus membros nas
camadas populacionais mais pobres, e não propriamente por sua produção cultural, ainda que
esses grupos possam ser identificados como grupos culturais.
Com isso, o texto parte da identificação de três categorias centrais para o entendimento
dos eventos previamente descritos: O inimigo enquanto conceito orientador daqueles que
serão submetido ao processo de criminalização, partindo em um primeiro momento das
elaborações de Jakobs acerca do Direito Penal do Inimigo e apoiando-nos nas elaborações
teóricas críticas de Eugênio Raul Zaffaroni acerca do conceito jakobiano; a formação do
estigma contra essas agremiações esportivas, aqui emprestando as considerações do labelling
aproach, desde já limitando-as a uma explicação criminológica de médio alcance, que
47
orientam o exercício do poder punitivo na criminalização secundária, auxiliado em sua
propagaçãopelo aparelho midático; e o processo de criminalização compreendido pela
produção normativa e pela aplicação do poder punitivo estatal dentro de uma estrutura
altamente seletiva orientada por critérios de classe, que geram uma aplicação majoritária
contra os marginalizados e excluídos.
É nesse primeiro horizonte de análise que será utilizada com maior intensidade a
primeira categoria, inimigo, já que sua aplicação no caso analisado é mais relevante no
esforço de entendermos as particularidades desse e como esse processo micro é análogo ao
processo macro. Embora tenha um papel no entendimento do processo geral em que se insere
o processo particular, esse papel fica diluído por outras categoriais mais relevantes.
48
As demais categoriais apresentadas, o processo de criminalização e o estigma, tem
papel central em ambos os horizontes, já que por seu caráter mais abrangente são necessários
para a compreensão dos processos micro e macro apresentados e como eles se relacionam.
5.1 O INIMIGO
49
que analisava disposições normativas do “Strafgesetzbuch” o Código Penal da República
Federal da Alemanha identificou um conjunto de previsões normativas que apresentariam
uma lógica diferente das previsões do Direito Penal clássico e seriam aplicáveis apenas a uma
categoria específica de indivíduos, os quais seriam classificados como inimigos, em oposição
aos demais, identificados como cidadãos76.
A definição de quem seria esse inimigo, os sujeitos que mereceriam toda uma
normativa específica aplicada contra si, na interpretação de Jakobs, não se realizaria no
momento de elaboração das normas por uma decisão política e permaneceria estanque ao
longo da aplicação da lei penal, mas seria, na realidade uma consequência aplicável do
comportamento reiterado e costumaz de um indivíduo enquanto parte de uma sociedade e,
especialmente do impacto que esses hábitos gerariam nas expectativas sociais dos demais
integrantes dessa sociedade.
76
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. P. 33-34.
77
SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais; tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3ª ed. Rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2013.
78
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Paulo Liberars Ltda, 2014. P. 59
50
indivíduo natural ao social, momento em que essa pessoa passa a ser vista como “o destino de
expectativas normativas” e torna-se titular dos direitos e deveres cujo cumprimento define sua
integração.
Jakobs utiliza para explicação das relações sociais um triângulo Norma – Pessoa –
Sociedade que explicaria o funcionamento do contrato social. A norma seria necessária para
regular um aspecto da sociedade orientando o comportamento das pessoas de acordo com as
expectativas sociais, institucionalizando-as e tornando-as expectativas normativas, parte
material do Direito positivo. A existência dessas normas representaria uma garantia cognitiva
para os integrantes da sociedade, que vinculariam seu bem-estar social no amparo e proteção
da lei, atribuindo uma expectativa de que essa será respeitada, expecativa essa que deve
corresponder a realidade fática. A realização dessa expectativa seria condição sine qua non
para a existência da sociedade:
Por consequência lógica, o indivíduo que descumpre a sua função social, isso é, aquele
que não corresponde as expectativas normativas direcionadas a ele, seja por descumprimento
de seus deveres ou desrespeito aos direitos alheios, de forma substantiva e relevante a ponto
de violar a segurança cognitiva dos demais, não poderia integrar a estrutura social, sendo,
portanto, excluído dela. No momento em que o indivíduo deixa de integrar a sociedade, ele
perde sua condição de pessoa, que como visto dependia de seu exercício da função social, e,
portanto, os direitos aos quais era titular.
79
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do inimigo In: JAKOBS, Günter; MELIÁ,
Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José
Giacomolli. 6. ed. Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 36
51
situação, dando o exemplo do agressor doméstico que terá seus direitos abolidos no âmbito
familiar, mas que continuará como pessoa nos demais âmbitos, como o âmbito fiscal e o
âmbito profissional. Isso implica considerar que a exclusão do inimigo da sociedade
dificilmente ocorreria por inteiro, mas se reduziria a aspectos.
Em razão disso, não poderia o Estado dispender o mesmo tratamento de pessoa a essas
não-pessoas, ou como o mesmo coloca:
É esse o inimigo jakobiano, aquele que por suas condutas relevantes e reiteradas
ameaça a própria segurança cognitva-normativa de seus pares, ameaçando por consequência,
a própria existência da sociedade. É em razão desse potencial disruptivo que Jakobs justifica a
aplicação de toda uma série de previsões normativas que flexibilizam e até eliminam garantias
penais e processuais penais basilares do Direito Penal moderno. Esse conceito carregaria as
seguintes características, identificadas por Miguel Polaino-Orts:
80
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. Cápitulo 5,
item 4, p. 74-76
81
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do inimigo In: JAKOBS, Günter; MELIÁ,
Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José
Giacomolli. 6. ed. Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 34
52
É uma categoria científico-descritiva, fruto de uma observação racionalmente
fundada de uma realidade já existente, para a qual serve de referência.
É relativo: porque se refere a uma situação concreta e não tem alcance nem sentido
absoluto: abarca unicamente um aspecto da personalidade do sujeito.
É baseado nessa categoria que o teórico estabelece a distinção entre o Direito Penal do
Inimigo e o Direito Penal do Cidadão, já que por se aplicarem a diferentes categorias de
indivíduos na sociedade, cada conjunto normativo seria orientado para a realização de
diferentes objetivos.
82
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. P. 62-63
53
cognitiva da sociedade e, assim, a própria sociedade. Vez que o indivíduo é classificado como
inimigo, não seria necessário ao Estado aguardar que seja exteriorizada qualquer conduta,
podendo impor especiais medidas de asseguramento visando restaurar a segurança de seus
cidadãos.
As previsões nesse sentido não existiriam a parte das demais, pelo contrário tanto o
Direito Penal do Inimigo quanto o Direito Penal do cidadão representariam dois tipos
normativos ideais, dificilmente encontrados em seu estado puro, que se encontram
entrelaçados em uma mesma realidade jurídico penal. Representariam, portanto, tendências
normativas que se encontram em uma constante tensão, podendo inclusive se sobrepor dentro
de uma mesma norma.
Como se pode notar, o pensamento dessa linha teórica atribuí a cada polo apresentado
do Direito Penal uma diferente função a pena. Aquele direcionado as pessoas teria uma
função classificável como de prevenção geral positiva, vez que seu objetivo é reafirmar a
confiabilidade nas normas. ZAFFARONI ET AL (2011) identificam esse como o discurso
legitimante no funcionalismo de Jakobs afirmando que a pena pretenderia reforçar
simbolicamente a confiança do público na estrutura social para superar a “desnormalização”
provocada pelo conflito, utilizando a medida necessária para tanto.
Em verdade, Jakobs sequer considera o aplicável contra o inimigo como uma pena,
mas apenas como medida de segurança. Nas palavras do próprio:
Portanto, no lugar de uma pessoa que de per si é capaz, e a que se contradiz através
da pena, aparece o indivíduo perigoso, contra o qual se procede – neste âmbito:
através de uma medida de segurança, não mediante uma pena – de modo fisicamente
efetivo: luta contra um perigo em lugar de comunicação, Direito Penal do inimigo
83
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do inimigo In: JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel
Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José
Giacomolli. 6. ed. Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 20
54
(neste contexto, Direito Penal ao menos em sentido amplo: a medida de segurança
tem como pressuposto a comissão de um delito) em vez de Direito Penal do
Cidadão, e a voz do <<Direito>> significa, em ambos os conceitos, algo claramente
84
diferente, como se mostrará adiante.
84
Ibid p. 21
85
MELIÁ, Manuel Cancio. De novo ”Direito Penal do Inimigo? In: JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio.
Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6. ed.
Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 76
86
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. P. 30
55
expectativas normativas, seria uma ameaça à segurança cognitiva da sociedade que não
poderia ser tolerada, ainda que nenhuma ação tenha sido efetivamente tomada. Passa-se a
punir com base apenas com base em uma análise do risco representado.
Também está presente em diversos tipos penais classificados como delitos de posse, a
desproporção no cálculo das penas. A posse do objeto perigoso recebe uma sanção penal por
vezes equivalente a um tipo em que a lesão ao bem jurídico tenha sido efetivamente realizada,
quando, pelos princípios da dogmática penal, deveria ser aplicada uma redução da pena em
razão da antecipação da barreira punitiva.
89
Ibid. Cap 13. P 149-155
57
Esse afastamento na sociedade moderna pode ser tanto absoluto (prisão cautelar que
distancia o réu de todo o convívio social) quanto específico ao âmbito de inimizade (medidas
protetivas aplicadas em casos de violência doméstica que excluem o agressor do contato com
a vítima). Nos casos específicos a restrição a personalidade do sujeito e seu afastamento se
operaria somente no ambiente da inimizade, permanecendo a personalidade nos demais
âmbitos.
No entanto com o passar dos anos e as mudanças sociais e políticas da década, Jakobs
admite esse conjunto normativo como uma espécie de “mal necessário” que estará sempre
presente no Estado de Direito real em razão da necessidade estatal de se proteger contra os
focos de perigo a sua própria condição. Essa posição é exposta por Gunter Jakobs ao abordar
a questão do terrorismo:
Voltemos ao terrorista: sua punição, muito antes da produção de lesões ou seu duro
interrogatório, não se encaixa em um Estado de Direito perfeito. Porém tampouco se
enquadra aí o abatimento de um avião de passageiros. Ambas as situações
pertencem ao direito de exceção, a princípio, inclusive, praeter legem, o que, além
de tudo, mostra que o Estado não pode fugir do dilema renunciado a
regulamentação: a exceção se produzirá de qualquer maneira, mesmo sem sua
intervenção, e logo aparecerá o Direito que se adapte a ela90.
90
JAKOBS, Günter. Terroristas como pessoas de direito? In: JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio.
Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6. ed.
Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 56
58
No entanto, a posição de Jakobs pressupõe uma legitimação do Direito Penal do
Inimigo enquanto um instrumento válido e necessário para o Estado Democrático de Direito,
ainda que separado das normas do Direito Penal do Cidadão e reduzido ao que ele interpreta
como estritamente necessário, o qual autorizaria a utilização de todo um instrumental jurídico
comprometedor dos princípios e garantias penais dedicado a perseguição e neutralização dos
inimigos sociais.
É essa uma das principais críticas desenvolvidas pelo jurista argentino professor
Eugenio Raul Zaffaroni ao modelo proposto por Gunter Jakobs que será brevemente exposta
no próximo item.
De todo lo expuesto se puede deducir ya como una conclusión segura y cierta que en
Derecho penal, el sujeto tanto de la imputación como del castigo no puede estar
constituido por una persona normativa o jurídica, esto es, entendida como una
construcción social y normativa, sino que aquél no puede estar representado por
nada más que por el hombre, por el individuo humano.
No entanto, muitas dessas críticas, de acordo com Zaffaroni estariam por vezes
exageradamente focadas na terminologia utilizada por Jakobs sem ater-se ao conteúdo por ele
proposto. O vocabulário adotado pelo autor teria estimulado as controvérsias em torno de sua
teoria ao abandonar os termos tradicionais do Direito Penal que por vezes conduzia as
mesmas considerações apontadas por Jakobs porém sem perturbar a consciência dos
penalistas. O comportamento comum desses juristas é de mascarar o tratamento dispendido
59
aos inimigos com um termo que realce sua natureza política, para no final se resignarem a
existência desse tratamento como uma perda na disputa política mundial91
Por meio de uma reconstrução histórica, Zaffaroni passa a expor a infiltração que o
conceito de inimigo sempre teve no exercício do poder punitivo. Nesse esforço, o autor passa
pelas práticas da inquisição que revolucionaram a prática punitiva com a passagem da
disputatio (verdade estabelecida pela luta) para a inquisitio (verdade estabelecida pela
interrogação) na apuração penal, passando pela necessidade da domesticação dos
trabalhadores na Revolução Social com o estabelecimento de um controle social sobre os
indesejáveis do ambiente urbano, até as formas de autoritarismo típicas do entreguerras no
século XX, em que os indesejáveis eram perseguidos por sistemas legais subterrâneos ao
mesmo tempo que as leis serviam de propaganda, e sua transformação em um autoritarismo
cool do século XXI, caracterizado por um aparato publicitário autônomo e que torna uma
“moda” no espaço público ao invés de uma convicção profunda. Encerrando esse esforço
analítico, Zaffaroni concluí que:
A categoria de inimigo não estaria restrita apenas ao exercício fático do poder estatal,
mas também estaria presente em seus discursos legitimantes, sejam eles criminais ou
91
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução: Sérgio Lamarão 2. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007. (Pensamento Criminológico). p. 158
92
Ibid. p. 81
60
políticos. Traçando as origens do inimigo no discurso penal desde as considerações de
Protágoras e Platão na Grécia antiga, o professor argentino identifica o tratamento penal
diferenciado que é dispendido aos hostis, estranhos ou inimigos pelos discursos penais ao
longo da história.
Com a passagem para a Idade Moderna, teria se iniciado uma tendencia de retomada
do idealismo platônico, com o tratamento dos inimigos se distanciando do direito penal e
sendo concedido as medidas policiais, em especial para o tratamento dos indesejáveis e dos
indisciplinados, que representavam perigosos em potencial.
No século XIX, uma nova mudança no paradigma dos discursos penais é operada,
viabilizando-se pela alteração na configuração social que consolidou a burguesia como classe
dominante em substituição a nobreza, o que permitiu o abandono das concepções do discurso
penal liberal do Iluminismo por eles originalmente defendido, o positivismo criminológico.
Ao tratar dessa passagem, Zaffaroni aduz que:
61
pertencer a uma raça não suficientemente evoluída (é um colonizado nascido por
acidente na Europa) ou por ser um degenerado (produto involutivo de uma raça
superior). Satã era substituído [como inimigo ideal] pela degeneração e o que se
impunha era a neutralização dos degenerados inferiores, evitando, se possível, sua
reprodução mediante a esterilização e a eugenia93. (grifos próprios)
O autor descreve como a corrente dessa teoria em sua variante alemã como proposta
por Von Liszt se operou a partir de uma distinção entre a aplicação de penas limitadas e
caráter ressocializador ao indivíduo identificado como um igual ou ainda meramente
intimidatória aos ocasionais, considerados ainda muito iguais, das penas ilimitadas que
deveriam ser aplicadas contra os incorrigíveis, delinquentes habituais e pessoas de “má vida”
identificado como os inimigos da ordem social visando sua neutralização.
ZAFFARONI (2007) expõe como a teoria exposta por Von Liszt seria ainda adaptada
por seu discípulo Carl Stooss para torná-la compatível com o idealismo neokantiano do
Direito Penal liberal. Para tanto, Stooss nega o aspecto penal da punição aplicada aos
delinquentes habituais, retirando as medidas de neutralização dos inimigos do âmbito penal
para o Direito Administrativo, operando-se por medidas policiais de coerção administrativa,
que adquiriam o nome de medidas de segurança.
93
Ibid. p. 91
62
administrativas coercitivas. O teórico entende que o objeto dessas medidas é a coisa perigosa,
identificada pela situação gerada pela periculosidade positiva do autor, e não à gravidade da
conduta efetivamente praticada, ou seja, “baseando-se na característica perigosa de uma
coisa, a medida não tem natureza penal; ela vai in rem, não in personam”94.
Essa intepretação do caráter não penal das medidas de segurança trazida por Stroos é
fortemente criticada pro ZAFFARONI (2007), o qual destaca que a negação do caráter penal
das medidas de segurança configura um “embuste das etiquetas” utilizada para aplicação de
penas sem que fossem considerados os limites e garantias próprios da dogmática penal,
muitas vezes de forma retroativa.
94
STROOS, Carl. Lehrbuch des österreichischen Strafrecht, Wien u. Leipzig: 1912, p. 192 Apud ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Pensamento Criminológico).
Tradução: Sérgio Lamarão p. 96
95
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Pensamento
Criminológico). Tradução: Sérgio Lamarão p. 97
63
No tema das medidas de segurança, uma ressalva quanto a imediata identificação
dessas como instrumentos de um tratamento penal diferenciado é feita por Zaffaroni. Como
aduz o autor, na hipótese de a medida de segurança ser imposta dentro da culpabilidade do
agente e dos limites legalmente definidos, essa pode configurar uma ferramenta de execução
penal legítima. Isso porque a principal função que deveria ser exercida pelo direito penal é a
contenção do poder punitivo. Se a ferramenta que melhor permite essa contenção é a
aplicação de um direito penal do autor, ou seja, se a aplicação da medida de segurança implica
em uma pena inferior ou menos gravosa ao apenado, essa aplicação deveria ser permitida no
limite em que proteger o apenado do poder persecutório do Estado.
O ápice desse modelo cingido seria verificável nos direitos penais fascistas do século
XX em que foi utilizado para a legitimação das inúmeras atrocidades praticadas. Se
ZAFFARONI (2007) identifica até um certo progressismo no modelo de Stooss, já que sua
proposta de encarceramento ilimitado era contraposta a eliminação física dos indesejáveis
(morte ou deportação, que na prática significava morte), a utilização desse modelo pelos
regimes autoritários do entreguerras para condução do genocídio contra os indesejáveis.
Essa radicalização das propostas do positivismo etiológico não se tratou de uma mera
perversão de um modelo prudente diante da maldade e crueldade nazista, mas sim de uma
consequência praticamente determinada da adoção de um conceito ôntico de inimigo
divorciado da concepção política. Como visto, a aceitação das medidas de segurança partia da
confiança de que o inimigo era definido por sua própria natureza, sua essência, e era exposto
em seus comportamentos perigosos e sua adoção da “má vida”.
O processo de seleção e identificação desse inimigo era uma das funções da política e
seria esvaziada de conteúdo, embora por vez adotasse opiniões pré-existentes, sendo
96
Ibid. P. 104
97
Importante anotar a explicação contra a possível crítica que argui que o inimigo e o rebelde são figuras
diferentes. Essa explicação pouco importaria para Zaffaroni pois assim que a categoria de inimigo é estabelecida,
o princípio do Estado de Direito está rompido, com a categoria se ampliando para qualquer dissidente. Neste
sentido Ibid p. 131
65
completada pelo poder do soberano que sempre necessita de um inimigo, já que opere a
política a partir dessa definição. Essa definição, portanto, é completamente oposta à definição
do ideal garofaliano, no entanto, ambos chegam a uma mesma conclusão fática: o inimigo
deve ser combatido.
É com base nesses apontamentos que Zaffaroni, após elogiar a precisão e sinceridade
da terminologia de Jakobs que as reconstruções do autor argentino demonstram ser a mais
acertada, bem como a capacidade do autor alemão de identificar e caracterizar as normas que
compõe o tratamento penal diferenciado ao inimigo, irá criticar definitivamente a proposta de
legitimação e incorporação dessas normas ao Direito Penal.
98
Ibid. P. 141
66
Embora reconheça que, ao formular sua proposta de incorporação do Direito Penal do
Inimigo, Jakobs partia de boas intenções, pretendo refrear a expansão dessa orientação
normativa sob as demais normas do Direito Penal, limitando-as a uma área de aplicação
reduzida ao mínimo necessário em uma espécie de quarentena do poder punitivo, visando a
proteção do Estado Democrático de Direito.
Para resolver isso, Jakobs contrapõe o que denomina de Estado de direito concreto,
com suas contradições presentes que necessitam do Direito Penal do inimigo, em oposição a
um Estado de Direito abstrato. No entanto, Zaffaroni enxerga que essa separação entre
abstrato e concreto na teoria penal implica na negação do Estado de Direito, cujas disposições
principiológicas podem ser facilmente superadas utilizando essa justificativa.
Quando afirma que, em casos excepcionais, o Estado de direito deve cumprir sua
função de proteção e que está legitimado para isso em razão da necessidade – ou
seja, que a esta não podem opor obstáculos derivados de um conceito abstrato de
Estado de Direito (abstrakten Begriff des Rechtsstaates) –, Jakobs pressupõe que
alguém deve julgar a necessidade e que este alguém não pode ser outro senão o
soberano, em sentido análogo ao de Schimitt. O Estado de direito concreto de
Jakobs, deste modo, torna-se inviável, porque seu soberano, invocando a
necessidade e a emergência, pode suspendê-lo e designar como inimigo quem
considerar oportuno, na extensão que lhe permitir o espaço de poder que dispõe.
As falhas do Estado de Direito que Jakobs identifica para opor o concreto ao abstrato
seriam o resultado da presença do Estado de Polícia que se encontra em constante conflito
com esse ideal, em uma tentativa de expandir suas pulsões punitivistas. A proposta de
contenção apresentada por Jakobs, e que ZAFFARONI (2007) denomina como estática, é
67
falha por presumir que se concedido um espaço ao Direito Penal do Inimigo este se contentará
com o concedido.
5.2 ESTIGMA
68
comportamento e não outro a ser classificado como criminoso, bem como o que leva uma
determinada pessoa a ser punida por esse comportamento e não outra.
Com isso, o crime deixou de ser identificado como um fato natural e observável e
passou a ser algo ativamente definido pela legislação nas estruturas sociais. Ganha papel
central na teoria da rotulação os aspectos políticos e sociais que essa imputação do papel de
delinquente gera. Para observar como essas estruturas, o foco de estudo do crime se
distanciará do criminoso e passará as estruturas de punição:
BECKER (2008) vai identificar essa questão do rótulo do desvio a partir dos estudos
dos excluídos pelas normas – denominados por ele de Outsiders. Para tanto, este autor parte
da concepção de que existem diversos grupos sociais, cada qual com suas próprias normas
que são seguidas por seus integrantes e que esperam que essas normas sejam cumpridas
também pelos outros integrantes de seu próprio grupo. Quando essas normas não são
cumpridas, usualmente os demais reagem a elas considerando essa violação um “desvio”
Isso implica que o “desvio” não seria uma qualidade do ato em si, mas seria um
resultado das reações dos demais que ao aplicarem as sanções sociais a esse desvio também
aplicam o rótulo de “desviante”. Como a aplicação do rótulo não se dá pelo ato, mas sim pela
reação dos demais, os classificados como desviantes podem não ter realizado qualquer ato
efetivamente contrário as normas sociais, mas apenas ter sofrido a reação. O oposto também
99
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito
penal/ Alessandro Baratta; tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto
Carioca de Criminologia,2002. P.86
69
é verdade, aqueles que infringem as normas do grupo podem não sofrer a rotulação caso o
grupo não reaja negativamente. A aplicação do rótulo pode se ainda definida em diferentes
graus de intensidade. Todas essas variações são afetadas diretamente pela identidade da
pessoa que comete o ato, como exposto por Becker:
Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras. Estudos da
delinquência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de áreas de classe média,
quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros
miseráveis. O menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado
pela polícia, de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à
delegacia, de ser autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e
sentenciado/' Essa variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a
mesma nos dois casos. De maneira semelhante, a lei é diferencialmente aplicada a
negros e brancos. Sabe-se muito bem que um negro que supostamente atacou uma
mulher branca tem muito maior probabilidade de ser punido que um branco que
comete a mesma infração; sabe-se um pouco menos que um negro que mata outro
negro tem menor probabilidade de ser punido que um branco que comete
homicídio100.
A concepção de Becker passa assim pela constante disputa entre grupos sociais para a
definição das normas que serão adotadas pela sociedade. Isso leva a uma outra problemática
que seria a definição do responsável por definir as normas que serão efetivamente adotadas
pela sociedade. O autor reconhece que essa é uma questão de poder político e econômico dos
referidos grupos, ainda que não reconheça a questão da problemática econômica e sua
consequência política como atributo central da definição dos rótulos.
Becker foca sua análise, sobretudo nos efeitos que a atribuição do rótulo produz na
autoimagem do rotulado e os efeitos que essa atribuição gera em suas condutas futuras. Para
isso, ele utiliza o conceito de “carreiras desviantes” determinadas conformações sociais
caracterizadas por uma sequência de passos aproximadamente determinados que geram uma
sequência exponencial de desvios e passam a se tornar um componente da identidade do
integrante.
Embora esse conceito se aproxime dos paradigmas etiológicos que buscavam definir
as razões do crime, uma consideração de que a rotulação de um determinado individuo afeta
a maneira como esse se percebe na sociedade e pode vir a influenciar seus atos futuros não é
100
BECKER. Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução: Maria Luzia X. de Borges. 1 ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. P. 25
70
completamente descabida, especialmente se buscarmos interpretá-la não sob a ótica das
causas do delito, mas sim na porcentagem de indivíduos que serão percebidos como
praticando um crime. Neste sentido, Baratta ressignifica a análise dos autores interacionistas
e descreve como:
A hipótese que mais interessará para os efeitos do presente trabalho é a segunda que
diz respeito aos comportamentos de um determinado grupo de indivíduos.
GOFFMAN (1988) deixa claro que o estigma é uma reação por vezes irracional e que busca
se legitimar em uma ideologia racionalizadora para que muitas vezes é mera animosidade
originada de outros aspectos como a classe social. Ressalta também como o estigma por vezes
atraí a noção de outras imperfeições para além das inicialmente atribuídas como principais
para a composição do estigma.
102
GOFMANN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Tradução por Maria
Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. P. 7
72
finalidade atestar a pertinência do indivíduo a organizações que não têm,
pretensamente, em si mesmas, tal significado.
Lemert, por sua vez irá definir o processo de estigmatização da seguinte forma:
Afastando-se das concepções de Becker, Lemert e Goffman acerca dos efeitos que o
estigma produz nas ações futuras do rotulado, Dennis Chapman elabora sua teoria dos
estereótipos que, excetuada a consideração já feita, é bastante próxima e compatível com as
dos outros autores, porém seu foco está nas estruturas sociais e não nos problemas
psicológicos104.
Percebe-se que a teoria de Chapman já propicia uma visão orientada por critérios de
classe na forma como os estereótipos são formados e aplicados na sociedade, ainda que não
de base marxista. Esta análise crítica será aprofundada no próximo sub-item em que veremos
como os estigmas ao serem socialmente perpetrados influenciam na seletividade penal.
105
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social/Lola Aniyar de Castro; tradução: Ester Kosovski. -
1ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983 p, 127
74
critério da criminalização secundária, o que ocasionaria uma espécie de uniformidade da
população carcerária.
Essas concepções estéticas, no entanto, eram muito influenciadas por ideais racistas de
beleza. “Não é preciso muita perspicácia para se dar conta de que tanto o valor como o
desvalor estéticos são um produto do etnocentrismo: o lindo é o europeu; o feio é o
colonizado.”106 Com isso, a seleção estética dos criminalizáveis passa também por critérios de
raça, em que o não branco é identificado como feio e logo, pela construção artística e social,
mal.
Outro aspecto dos estereótipos construídos pelo sistema penal seria sua
correspondência aos “homens jovens das classes mais carentes, salvo nos momentos de
violência política ou terrorismo de estado escancarado, nos quais o estereotipo se desvia
para varões mais jovens das classes médias”107. Nesse aspecto podemos adicionar não só
aspectos físicos, mas também de manifestações culturais desse determinado grupo social que
são correspondidos a aspectos criminais.
106
ZAFFARONI, Eugenio Raul. “Tenda dos Milagres ou A denúncia do “apartheid” criminológico. In
TUBENCHLAK, James; BUSTAMANTE, Ricardo Silva de (coord.). Livro de estudos jurídicos, volume 2. Rio
de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1992, pp. 449-472.
107
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. P. 131
75
deixando de fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco,
dourada, de trânsito, etc.).108
Nesse sentido, o sistema penal operaria por meio de um filtro que busca selecionar os
que correspondem ao estereótipo do criminoso. O grau de identificação de uma pessoa com
um estereótipo criminoso define seu grau de vulnerabilidade perante o risco criminalizante,
isso é, quanto mais próxima do estereótipo criminoso mais uma pessoa é vulnerável a ser
criminalizada, necessitando por tanto de mais esforço para evitar situações que a coloquem à
mercê do poder punitivo, já que se sua correspondência ao estereótipo for alta, ela estará
sempre uma posição de risco elevada.
Outro aspecto importante do papel do estigma dentro do sistema penal são as marcas
estigmatizantes que o próprio processo de criminalização exerce sobre a identidade social do
processado. Acerca dessa influência:
Cabe registrar que a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas
pelo simples contato com o sistema penal. Os meios de comunicação de massa
108
Ibid. P. 130
76
contribuem para isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se com
qualificações como "vagabundos", "chacais", etc.
77
burdos contra a propriedade e o pequeno tráfico de tóxicos, ou seja, a obra tosca da
109
criminalidade)
Como a grande falácia da civilização industrial ("dos céus descerá um herói para te
proteger e resolver teus problemas, eliminando a tua parte má") é criada e mantida
em forma de mitologia negativa petos meios de comunicação social de massa, a
tecnologia da manipulação que estes adquirem apresenta-se cada dia maior. O
desprezo que os "seriados" dos últimos anos demonstram pela vida humana, pela
dignidade das pessoas e pelas garantias individuais não é simples produto do acaso,
mas uma programada propaganda em favor do reforço do poder e do controle social
verticalizado-militarizado de toda a sociedade.
109
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Toeria Geral do Direito
Penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P. 47
78
ZAFFARONI (2007) ilustra como por vezes as vítimas e seus parentes são utilizados
dentro dessas campanhas de lei e ordem como um reforço legitimador a partir de uma
perspectiva de vingança. Passam a ocupar um papel de comentaristas do sistema penal, como
se suas experiências individuais os qualificassem para discutir em um mesmo espaço de
técnicos e legisladores, se tornando personagens sinistros e obscuros do autoritarismo penal,
utilizados para constranger aqueles que critiquem o sistema penal.
A razão para todo esse compromisso das agências de comunicação com o exercício do
poder punitivo estatal poderia, segundo BATISTA (2003), ser rastreada nas condições
econômicas e sociais do capitalismo tardio. A indústria das telecomunicações atualmente é
composta majoritariamente por grandes conglomerados que geram lucros bilionários,
sobretudo na televisão. Os donos desses conglomerados são normalmente grupos econômicos
diversificados cujos negócios se estendem por vários âmbitos da sociedade. Com isso, esses
meios de comunicação não possuem caráter neutro, se alinham aos interesses de seus donos
que passam pela replicação das estruturas neoliberais, inclusive no controle social realizado
no âmbito penal.
110
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista brasileira de ciências criminais. São
Paulo, v. 11, n. 42, p. 242–263, jan./mar., 2003.
79
fortalecimento dos vínculos neocolonialistas na versão ainda mais genocida com que
os ameaça hoje o tecnocolonialismo. 111
111
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. P. 132
80
Isso se dá pelo elemento da seletividade que orienta a criminalização, característica
estrutural do sistema penal. ZAFFARONI (1991) identifica como o sistema penal é
construído para operar dentro de uma arbitrariedade seletiva, especialmente ao considerarmos
a impossibilidade de ser criminalizada a toda a população. Um cenário em que todas as
hipóteses do “dever ser” fossem igualmente penalizadas, como pressupõe o discursos
jurídico-pena, seria completamente absurdo Assim o critério da legalidade é substituído no
exercício do poder por uma arbitrariedade seletiva orientada contra os setores mais
vulneráveis da sociedade. Essa substituição seria a demonstração mais elementar e mais clara
da falsidade da legalidade processual.
Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que
incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-se de um ato formal
fundamentalmente programático: o deve ser apenado é um programa que deve ser
cumprido por agências diferentes daquelas que o formulam, Em geral, são as
agências políticas (parlamentos, executivos) que exercem a criminalização primária,
ao passo que o programa por elas estabelecido deve ser realizado pelas agências de
criminalização secundária (policiais, promotores advogados, juízes, agente
penitenciários). Enquanto a criminalização primária (elaboração de leis penais) é
uma declaração que, em geral, se refere a condutas e atos, a criminalização
secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando
as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato
criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua
liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e
81
admite um processo (ou seja, o avanço de uma série de atos em princípios públicos
para assegurar-se, na realidade, o acusado praticou aquela ação); no processo
discute-se publicamente se esse acusado praticou aquela ação e, em caso afirmativo,
autoriza-se a imposição de uma pena de certa magnitude que, no caso da privação da
liberdade de ir e vir da pessoa, será executada por uma agência penitenciária
(prisonização).112
112
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Toeria Geral do Direito
Penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P. 43
82
ao enfrentar, por exemplo, os delitos do poder econômico (denominados crimes de colarinho
branco) e os terroristas com seus métodos de conflito não-convencionais e de letalidade
massiva.
Porém como alerta BATISTA (2007) as raras exceções da aplicação do sistema penal
aos seus clientes habituais são utilizadas como um aparato para a reafirmação do caráter
supostamente igualitário do Direito. Esta reafirmação se opera a partir de uma superexposição
desses casos, sobretudo pelas agências de comunicação social, visando assim sugerir que
essas exceções que confirmam a regra sejam percebidas como algo rotineiro no sistema penal
brasileiro.
84
5.3.2 CONTROLE SOCIAL E A REALIDADE LATINO-AMERICANA
Como exposto, o sistema penal atua pela seleção e criminalização dos vulneráveis a
partir da chamada criminalização secundária que aplica as normas penais contra indivíduos
específicos. No entanto, embora esse modelo implique na criminalização de uma porcentagem
elevada de indivíduos no país, ele corresponde a uma pequena fração do efetivo poder
exercido pelas agências do sistema penal.
É esse o aspecto do sistema penal que é aplicado no cotidiano e com o qual a grande
maioria da população tem seu principal contato real com o sistema, porém os discursos
jurídico-penais rotineiramente deixam de reconhecer esse aspecto central do sistema punitivo
por ele se colocar a margem da legalidade. Assim como esses discursos analisam apenas a
norma e a pretendem realidade deixam de perceber aquele que talvez seja o principal aspecto
do sistema penal.
113
Ibid. P. 52
114
Polícia Militar do Estado de São Paulo. Site oficial. São Paulo, SP. Disponível em <
https://www.policiamilitar.sp.gov.br/institucional/missao-e-visao> Acesso em 12 de outubro de 2023.
115
COMANDANTE DA PM DE SP DIZ QUE NÚMERO DE POLICIAIS É INSUFICIENTE PARA
PROTEGER TODA A POPULAÇÃO Folha de S.Paulo, São Paulo, 03 fev. 2023. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/02/comandante-da-pm-de-sp-diz-que-atual-efetivo-e-
insuficiente-para-proteger-toda-populacao.shtml> Acesso em 12 de outubro de 2023
116
Polícia Civil do Estado de São Paulo. Site oficial. São Paulo, SP. Disponível em <
https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/faces/pages_home/institucional/estruturaCompetencias?_afrLoop=1256
3304651170&_afrWindowMode=0&_afrWindowId=y6ffdojjm_1#!%40%40%3F_afrWindowId%3Dy6ffdojjm_
1%26_afrLoop%3D12563304651170%26_afrWindowMode%3D0%26_adf.ctrl-state%3Dy6ffdojjm_69 >.
Acesso em 12 de outubro de 2023.
117
SP TEM MAIS POLICIAIS PARA CUIDAR DE PRESOS DO QUE PARA INVESTIGAR CRIMES Folha
de S.Paulo, São Paulo, 06 mar. 2023. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/02/comandante-da-pm-de-sp-diz-que-atual-efetivo-e-
insuficiente-para-proteger-toda-populacao.shtml> Acesso em 12 de outubro de 2023
86
As medidas cautelares se convertem em privações de liberdade ilimitadas baseadas
apenas na presunção de periculosidade de um indivíduo. As condenações formais ocorrem
apenas após um longo período de aprisionamento cautelar que acaba por ser mais significante
do que as próprias condenações.
Dentro desse discurso, vende-se a ilusão da segurança pública por meio do controle
social penal que deveria ser materializado a partir de novas leis cada vez mais punitivas e
aumentando a arbitrariedade policial legitimando direta ou indiretamente a violência dessas
agências. Esse discurso legitimador do controle social policialesco aproxima-se de um
patamar nas sociedades latino-americanas de discurso político único, já que os representantes
que não se incluem no discurso acabam afastados de seus próprios partidos.
118
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Pensamento
Criminológico). Tradução: Sérgio Lamarão p. 73
87
Nesse cenário um dos elementos mais perigoso do autoritarismo cool é justamente sua
falta de uma definição clara do inimigo:
O certo é que neste autoritarismo cool não se sabe quem é o inimigo, pois estes se
sucedem sem somar-se; em lugar de defini-los fotograficamente, são projetados
cinematograficamente, como constructos em série dos meios de comunicação, em
especial da televisão. O Estado não os define: as autoridades encontram-se sitiadas
pelas sucessivas imposições dos meios, cuja velocidade reprodutiva é tão
vertiginosa que impede os baques capazes de abrir espaço aos discursos críticos.
Nem sempre existe uma outra corporação que pretenda construir inimigos
diferentes e que para isso precise desarmar os mitos anteriores: comumente, é essa
mesma corporação produtora de inimigos que os descarta e substituí. Os ciclos
anteriores se precipitam, passando de corrente alternada a corrente contínua.
Esse discurso não é perpetrado e introjetado na ordem social por meio de seus órgãos
de controle meramente por atender as expectativas de uma classe média, mas porque exerce
uma função na estrutura social. Como ensina BATISTA (2007), o direito penal (e podemos
inferir também o sistema penal) é legislado para cumprir funções reais dentro e para a
sociedade, visando cumprir finalidades concretas dentro dessa estrutura social, a realização de
algo, e não para celebrar valores perenes ou glorificar paradigmas morais consagrados.
Com isso, CIRINO DOS SANTOS (2018), inspirado pelas conclusões de Rusche e
Kirchheimer irá examinar as relações sociais pelo instrumental do materialismo-dialético
marxista e irá identificar as relações entre a fábrica, instituição das relações de produção,
identificado como ponto de incidência e o objetivo real dos mecanismos de controle social,
dentre os quais o mais importante é o sistema punitivo, o qual garante os fundamentos e
reproduz as condições das relações de produção. Neste sentido irá explicar a problemática
entre as funções declaradas e as funções reais do sistema punitivo:
Assim, para não estender as considerações nesse ponto para além do escopo do
presente trabalho, podemos encerrar a exposição teórica adotando a premissa proposta por
Juarez Cirino dos Santos de que o sistema penal cumpre uma função dentro da sociedade
capitalista de garantir os fundamentos das relações de produção.
88
6 CONCLUSÕES ACERCA DO PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO
DAS TORCIDAS ORGANIZADAS
Uma outra explicação plausível para esse aumento seria a consideração formulada por
Alessandro Baratta e previamente citada, pela qual o índice de crimes verificados aumentou
89
em razão de as condutas praticadas estarem sofrendo um maior escrutínio das agências
policiais após a formação do estigma. Outra alternativa possível diz respeito não a
autoimagem pessoal, mas sim as características dos integrantes do grupo, com uma mudança
na representação midiática atraindo novos integrantes que tivessem comportamentos e
condutas diferentes. Embora todas essas hipóteses pareçam explicar satisfatoriamente o
fenômeno apresentado, o presente trabalho, por cautela, irá evitar assumir qualquer
perspectiva: primeiro por não ser o escopo adotado e segundo pela ausência de elemento
suficientes.
119
GOFMANN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Tradução por Maria
Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. P. 7
90
classe social baixa, com pouco acesso à educação formal. Essas características por si já
despertam um ódio de diversos setores da sociedade e ao deslocar a causa dessa animosidade
de razões raciais e de classe para um estigma associado ao crime.
Como exposto por Felipe Tavares Paes Lopes e outros estudiosos dessas agremiações,
esse estigma das torcidas organizadas foi formado em grande parte pelas ações das agências
de comunicação social que transformavam os atos violentos em espetáculo, explorando e
sensacionalizando as imagens de brigas. É a superexposição dos crimes violentos, apontada
por Zaffaroni, que a mídia realiza visando legitimar o sistema penal.
Nesse sentido, os dois grandes marcos iniciais adotados para definição desse processo
de criminalização foram justamente dois eventos de violência entre torcedores que foram
retirados de um contexto específico, repercutidos intensamente nos meios de comunicação de
massa e utilizados como justificativa para alçar as condutas dos torcedores organizados a um
local de problema social.
91
A morte de Cleo, a época presidente da Mancha Verde representou um evento
traumático nas relações entre torcedores organizados, mas do ponto de vista social pode ser
visto como um mero (não se questionando aqui o valor de uma vida ou o peso de um
homicídio, mas colocando dentro da escala macrossocial) homicídio, cuja relação com seu
status de líder de uma torcida organizada, embora provável, jamais foi comprovado. A
Batalha do Pacaembu, por sua vez, foi um caso de violência entre torcidas no geral, em que
estavam presentes torcedores organizados, mas não exclusivamente.
Auxiliou ainda mais nessa formação estigmática que os torcedores organizados fossem
sempre associados aos torcedores violentos, ainda que em casos que algum torcedor
organizado sequer estivesse envolvido. A construção dessa correspondência discursiva, como
apontada por Felipe Tavares Paes Lopes, implicava que todos os casos de violência ligados ao
futebol que fossem noticiados reforçavam a carga estigmática dos torcedores organizados.
Nesse caso, as torcidas organizadas e suas condutas violentas, ao serem expostas com
constante alarde pelo noticiário comum e em especial esportivo, legitimavam o avanço do
poder das agências que compõe o sistema penal para o âmbito do futebol. Foi o que ocorreu
com a criação de leis penais específicas para os casos de violência e tumultos ligados ao
futebol, bem como em relação as medidas administrativas.
O caráter belicoso com que expoentes do jornalismo esportivo como Alberto Helena
Jr. e Juca Kfouri e autoridades públicas como o então promotor Fernando Capez enxergavam
a necessidade de uma perseguição e extinção dessas agremiações reforça como eram
enxergados, na perspectiva de uma guerra, como inimigos. O seu enfrentamento é a
providência necessária e não a prevenção ou punição de qualquer crime específico.
92
normativas do restante da sociedade. Em razão disso, ele ameaça a confiança no cumprimento
das normas, o que impede essas normas de exercerem seu caráter orientador e impede a
efetivação de uma juricidade completa, com isso ameaçando a própria integridade social
Os comportamentos dos torcedores organizados seriam vistos por Jakobs dentro dessa
ótica como indicadores de que estes não oferecem uma segurança jurídica de cumprimento
das normas sociais. O envolvimento cotidiano em brigas e confrontos motivados por razões
consideradas fúteis, que a qualquer momento podem estourar proporcionando uma indefinição
de seus comportamentos, seriam verificados nessa ótica como um constante e reiterado
desrespeito às normas sociais. Isso permitiria a identificação desses indivíduos como
inimigos.
Vez que caracterizados como inimigos, a consequência lógica na teoria de Jakobs seria
a perda de sua condição de pessoa e dos direitos de sua personalidade. Nesse caso, a perda
deveria, de acordo com as proposições de Polaino-Orts ser referente apenas ao aspecto da
personalidade relevante para a situação, ou seja, o de torcedor, de frequentador dos estádios,
do lazer esportivo, com os direitos referentes podendo ser recuperados caso o indivíduo seja
capaz de demonstrar que não mais ameaça à segurança-cognitiva de seus pares.
Com isso, todos os instrumentos do Direito Penal do Inimigo seriam aplicáveis contra
os torcedores organizados, para o cumprimento de sua função, visando a neutralização das
suas periculosidades focadas representadas pelos torcedores organizados. Na visão de Jakobs
essas medidas sequer seriam penas, já que seriam desprovidas de seu caráter comunicativo,
além de não precisarem se restringir as previsões da dogmática penal ou mesmo da prática
efetiva de uma conduta pelo torcedor, já que o mero perigo que ele representa já autoriza sua
persecução.
93
âmbito de inimizade específico e seria justificado para neutralizar a periculosidade que o
torcedor organizado representa tanto aos demais participantes do evento e a própria segurança
cognitiva da sociedade.
Por fim, ainda que fora do período analisado, não se pode deixar de mencionar que o
Estatuto do Torcedor, por meio das alterações promovidas em 2010, passou a prever uma
hipótese de um crime de posse.
O referido diploma legal, em seu artigo 41-B, parágrafo 1°, inciso II dispõe que:
Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito
aos competidores em eventos esportivos: Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e
multa.
(...)
A referida previsão legal possuí duas das principais tônicas do Direito Penal do
Inimigo: a antecipação da barreira punitiva e a desproporção no cálculo da pena. O referido
tipo pune a mera posse de instrumento que possa servir para a prática de atos violentos, não
apenas antecipando o momento de configuração do delito para antes que qualquer ação ou
omissão seja praticada, mas ainda trazendo uma disposição extremamente aberta. Quais
94
objetos podem ser identificados como passíveis de utilização para violência? Objetos de haste,
pesados ou até mesmo chaves podem ser assim utilizados, gerando um tipo penal
excessivamente indeterminado. Além disso, a desproporção no cálculo da pena se opera já
que, embora as penas previstas sejam relativamente baixas, não há uma diminuição
proporcional como consequência da antecipação. A efetiva incitação à violência e a mera
posse de objetos que possam servir a esse propósito são punidos com o mesmo rigor.
Com sua acertada análise da história do exercício do poder punitivo e dos discursos
penais, o autor argentino nos demonstra como este sempre reprimiu e controlou de modo
diferente os iguais e os indesejáveis, visando a eliminação dos últimos. Os comportamentos
dos clubes e dos órgãos diretivos do futebol sempre deixaram claro que os torcedores
organizados representavam os indesejados nesse ambiente, sendo apontados como um
impeditivo a modernização e evolução do futebol enquanto espetáculo. Assim ao serem
confrontados com o sistema punitivo nessa condição, esses torcedores são identificados pelo
sistema penal como indesejáveis, não apenas por suas características de inclusão na sociedade
em geral, mas por serem identificados nesse sentido por aqueles que exercem poder no âmbito
do futebol. Embora essa punição seja efetivada por órgãos próprios do sistema penal, o
estereótipo apontado pelos clubes e dos órgãos diretivos do futebol gera uma influência, já
que esses são também poderosos na sociedade geral e são capazes de reforçar o estigma já
atribuído
Percebe ainda como a adoção de um inimigo que não seja sempre visualmente
identificável pressupõe um aumento do controle social sobre a população como um todo para
95
permitira que o inimigo seja identificado e neutralizado. A justificativa de uma garantia da
segurança ocasiona uma restrição geral de direitos.
Mais ainda, o enfrentamento a esse inimigo específico foi utilizado como justificativa
para o avanço do controle social por todo esse meio e para a expansão de uma matriz policial.
Esse processo de criminalziação pode ser percebido como tendo servido a uma função de
atendimento as necessidades de modernização do futebol, já que as torcidas organizadas eram
vistas como impedimentos a esse processo por autores como Julia Nascimento da Silva.
Uma vez que foi formado o estigma, as torcidas organizadas e seus membros
assumiram uma posição ainda mais vulnerável dentro da seletividade penal, com suas
condutas passando a ser alvos constantes da criminalização secundária das agências policiais
(oferecendo uma das explicações plausíveis para o registro do aumento de crimes praticados
por integrantes desses grupos).
96
estereótipo criminoso o qual já aumenta sua vulnerabilidade. São jovens de classe social baixa
e racializados. O elemento da agremiação apenas reforça a imagem que já existia de uma
propensão ao crime e a violência.
Assim, embora em 2010 tenha se elaborado uma norma própria, operando-se uma
instância da criminalização primária, a criminalização secundária operada pelas forças
policiais já selecionava de forma bastante contundente os torcedores organizados, diante de
sua posição de classe e de seu estigma de grupo.
Com isso, a criminalização das torcidas organizadas, bem como dos demais
indesejáveis do sistema penal é utilizada como justificativa para o fortalecimento do Estado
Policial para que esse possa cumprir sua principal função, sempre presente e jamais
expressamente declarada: garantir os fundamentos da exploração econômica perpetrada nas
relações de produção capitalistas.
Essas agremiações esportivas passaram a ter seus membros selecionados cada vez
mais pelo sistema penal para que fossem processados e condenados. Não se nega que as
torcidas organizadas cometem crimes e realizam atos violentos, porém essa seletividade penal
representa de forma desproporcional o praticado por essas torcidas e viola o princípio da
igualdade no Direito que deveria prevalecer.
97
As consequências dessa persecução no âmbito do futebol foram ainda piores, já que
afetaram a forma como todos que frequentam os estádios podem apreciar e vivenciar os jogos.
Ao legitimar o controle social sobre esse grupo, a criminalização das torcidas organizadas
promoveu uma restrição nos direitos de todo um agrupamento de indivíduos.
Esse exemplo específico vale ser destacado e analisado diante da grande inserção
social do futebol no Brasil, não apenas pela importância política e econômica representa, mas
pelo significado emocional e subjetivo que esse esporte proporciona. Dentro disso, as torcidas
organizadas, ainda que realizem atos violentos que deveriam ser coibidos, não deveriam ser
inviabilizadas de exercer suas paixões e seu papel na torcida e nem limitadas aos aspectos
danosos que representam.
98
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