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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PENAL, MEDICINA FORENSE E


CRIMINOLOGIA

MARIO HENRIQUE QUINTANILHA AUGUSTO DO NASCIMENTO

O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DAS TORCIDAS


ORGANIZADAS PAULISTAS NA DÉCADA DE 90.

SÃO PAULO

2023

0
1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

DEPARTAMENTO DE DIREITO PENAL, MEDICINA FORENSE E


CRIMINOLOGIA

MARIO HENRIQUE QUINTANILHA AUGUSTO DO NASCIMENTO

O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DAS TORCIDAS


ORGANIZADAS PAULISTAS NA DÉCADA DE 90.

Monografia apresentada ao Departamento de Direito Penal,


Medicina Forense e Criminologia – DPM da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, como requisito
parcial para obtenção de títulode Bacharel em Direito.

Orientador: Maurício Stegemann Dieter

SÃO PAULO

2023

2
Tese de Láurea apresentada à Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo por
Mário Henrique Quintanilha Augusto do Nascimento,
orientada pelo Prof. Dr. Mauricio Stegemann
Dieter, intitulada “O precesso de criminalização
das torcidas organizadas paulistas
nas década de de 90”, sujeita à
aprovação da Banca Examinadora abaixo
indicada.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________

Prof. Dr. Maurício Stegemann Dieter


Orientador

________________________________________________________
Prof. Dr.
Membro

São Paulo, ____ de ______________ de ________.


Universidade de São Paulo
Faculdade de Direito
Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia.

3
Created by the poor, stolen by the rich

4
AGRADECIMENTOS

Essa tese é o resultado combinatório de tantos esforços, interesses e dedicações que a


tentativa de reduzir a termo tudo que precisa ser dito e agradecido parece-me uma tarefa digna
do castigo de Sisifo. Porém certos agradecimentos essenciais não podem ser omitidos.

Em primeiro lugar, essa tese é dedicada a minha família. Vocês que sempre me
estimularam a ser melhor e a me dedicar mais, essa conquista é para vocês. Mãe com seu
apoio gentil sempre presente e Pai com todos os valores que me passou, meus irmãos, Caca e
Bia, sempre camaradas e afetuosos, todos tem uma parte.

Essa tese também é dedicada a minha namorada. Lu, você é minha maior alegria,
enche-me de vida e me sustenta com a sua gentileza, a sua ternura e o seu amor. Todas as
provações que esta tese nos gerou,você tem uma parte.

Aos meus amigos, velhos camaradas que sempre compartilharam o meu amor pelo
futebol e novos colegas sob as arcadas, essa tese não seria possível sem vocês, porque eu não
seria quem sou sem vocês, vocês tem uma parte.

Ao meu orientador, Mauricio Dieter, sem o qual essa tese não seria possível, não só
pelas orientações e críticas que a direcionaram, mas pelas aulas que despertaram em mim
tanto interesse pelo Direito Penal e pela Criminologia, dando rumo a uma graduação perdida,
você tem uma parte.

Ao Palmeiras, meu time do coração, ao qual minha mãe atribuiu o título infeliz de “a
única coisa que em desperta emoção”, também é dedicada uma parte.

Dizem que as coisas são mais que a soma de suas partes e escrevendo essas palavras
agora eu não tenho qualquer dúvida que são.

5
RESUMO

A presente monografia visa identificar os termos e condições do processo de criminalização


sofrido pelas torcidas organizadas paulista. Utilizando como principais marcos históricos o
assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas da Silva em 1988 e a Batalha do Pacaembu em 1995,
o texto irá se aprofundar na formação do estigma dessas agremiações de torcedores, sua
caracterização como inimigos e o processo de criminalização em si. Utilizando das
ferramentas da criminologia crítica e em especial das contribuições de Eugênio Raul
Zaffaroni, pretende-se expor os detalhes desse processo tanto no âmbito especifico do futebol
profissional, quanto no âmbito social geral.

Palavras chaves: criminalização, torcidas organizadas, criminologia, inimigo, estigma

6
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 8

2. A INSERÇÃO DO FUTEBOL NA SOCIEDADE BRASILEIRA 10

3. AS TORCIDAS ORGANIZADAS: RAÍZES ATÉ A DÉCADA DE 80 17

4 A DÉCADA DE 90 26

4.1 (1988-1995) TRANSFORMAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO 26

4.2 (1995-2003) REAÇÃO PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO 35

5. CRIMINOLOGIA 46

5.1 O INIMIGO 49

5.1.1 JAKOBS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO 49

5.1.2 CRÍTICA E INIMIGO EM ZAFFARONI 59

5.2 ESTIGMA 68

5.2.1 A FORMAÇÃO DO ESTIGMA 68

5.2.2 O ESTIGMA E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NA SELETIVIDADE


PENAL 74

5.3 PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO 80

5.3.1 SELETIVIDADE, CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA 80

5.3.2 CONTROLE SOCIAL E A REALIDADE LATINO-AMERICANA 86

6. CONCLUSÕES ACERCA DO PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DAS


TORCIDAS ORGANIZADAS 89

7. BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 99

REFERÊNCIAS JORNALÍSTICAS 103

7
1 INTRODUÇÃO
Desde sua introdução na sociedade brasileira no final do século XIX, o futebol
assumiu papel de destaque no país. Principal esporte do Brasil, sua operação envolve diversas
estruturas complexas de organização e financiamento, assim como movimenta as paixões de
milhões de pessoas. A dualidade entre o aspecto cultural e o aspecto econômico do futebol
gera diversas tensões entre os torcedores, em sua maioria identificados com a classe proletária
e apegados aos aspectos culturais desse esporte, e os operadores das estruturas do futebol
profissional, formados por membros da burguesia brasileira em cargos de dirigentes dos
clubes, federações, além ainda dos que operam as instituições do Estado que afetam esse
meio.

Presentes nesse cenário, as torcidas organizadas surgiram nos últimos anos da década
de 60 como agremiações de torcedores, formadas sobretudo por jovens pobres, visando
cumprir diferentes papéis logísticos, lúdicos e políticos considerados necessários entre a
população que frequentava os estádios de futebol. A atuação desses grupos vai sofrer
alterações conforme as transformações políticas e econômicas sofridas pela sociedade
brasileira nas décadas de 70 e 80 geram efeitos nas estruturas do futebol. Essas alterações vão
se configurar, especialmente, no crescimento do papel das práticas violentas entre membros
dessas torcidas dentro da configuração desses grupos, ocupando parte relevante de suas
práticas.

Embora as brigas entre grêmios de torcedores já fossem comuns ao longo da década de


1980, é a partir da década de 90 que esses atos violentos se tornarão o centro das atenções da
mídia jornalística nas representações feitas acerca das torcidas organizadas. Acompanhando
uma tendência do jornalismo nesse período, a cobertura de atos violentos de forma
sensacionalista e alarmista se tornou comum em espaços que antes se dedicavam quase
exclusivamente aos jogos de futebol, cobertura da política dos clubes e atuação das torcidas
nos estádios. O discurso majoritário nos meios de comunicação passa a responsabilizar os
grêmios de torcedores pelos problemas de violência relacionados ao futebol, desassociando
esses comportamentos das condições sociais dos envolvidos.

8
Esse deslocamento começa a ser sentido ainda na década de 80, momento em que a
cobertura jornalística passa a abordar a violência praticada por hooligans ingleses, e que ao
longo da década tem o foco gradualmente transferido ao contexto nacional (CORDEIRO e
LOPES, 2015)

Nesse período, os meios de comunicação de massa começaram a dar enorme


visibilidade pública aos confrontos violentos entre torcedores, dentro e fora do país,
revestindo os estádios com a imagem do perigo e da barbárie. Imagem que
permanece até hoje.1

As mudanças na projeção midiática das torcidas organizadas foram um primeiro


sintoma de um processo de criminalização sofrido por essas agremiações, que será
intensificado no estado de São Paulo a partir de 1995. Nesse ano, em 20 de agosto, após a
final da Supercopa São Paulo de Juniores entre os times sub-20 de São Paulo e Palmeiras
realizada no estádio do Pacaembu ocorreu uma briga generalizada, potencializada pelos
diversos materiais de construção do canteiro de obras presente no estádio, entre os torcedores
dos dois clubes, que resultou em 120 feridos e uma morte. Esse evento ficou conhecido como
“Batalha do Pacaembu” ou “Tragédia do Pacaembu”, e foi extensamente utilizada como
evidência da necessidade de um agravo das medidas de policiamento e repressão nos
ambientes do futebol.

A partir daí as organizadas passam a ser vistas apenas como gangues violentas,
brigando por território, retirando os outros aspectos desses grupos da atenção midiática e,
eventualmente, do imaginário popular. Com isso, se fixaria um estigma danoso a essas
agremiações que se tornaria parte do senso comum.

Essa estigmatização veio acompanhada de uma ofensiva dos dirigentes das federações
e das autoridades estatais contra esses grupos, especialmente nas ações do Ministério Público
de São Paulo, nas ações do então promotor Fernando Capez.

O objetivo desse estudo é a análise do processo de criminalização que se assume


sofrido pelas torcidas organizadas paulistas ao longo da década de 1990, com destaque ao
papel da representação midiática. Pretende-se verificar a hipótese de que esses grupos e seus
integrantes foram estigmatizados, classificados como inimigos e selecionados pelo sistema
penal.

1
LOPES, F.T.P; CORDEIRO, M.P. Futebol, visibilidade e poder: lógicas da violência nos espetáculos
futebolísticos. Revista Comunicação Midiática, v. 10, n. 3, p. 119-134, 2015, p. 126.
9
Os efeitos desse processo de criminalização serão analisados não somente no referido
as agremiações de torcedores, mas também nos efeitos que a expansão do poder penal contra
esses grupos gerou no controle social de todos os que compartilham esse mesmo ambiente.

Para isso será utilizado o método da pesquisa bibliográfica, utilizando sobretudo


textos que tratam do período sob perspectiva histórica e sociológica, bem como serão
utilizados documentos jornalísticos da época visando uma reconstrução dos fatos históricos e
da repercussão que geraram nas estruturas midiáticas.

A análise fenômenos ocorridos será feita utilizando-se as ferramentas da criminologia


crítica e radical, utilizando-se como referência teórica, especialmente da contribuição de
Zaffaroni, que tratem da utilização da categoria de “inimigo” dentro dos processos de
criminalização, bem como textos que explicam a configuração dos estigmas e sua utilização
na seletividade da criminalização secundária.

Com isso o presente esforço é de um estudo de caso da criminalização que pretende


analisar esse processo tanto nas suas especificidades dentro do âmbito próprio do futebol,
quanto o que representa na sociedade em geral.

2 A INSERÇÃO DO FUTEBOL NA SOCIEDADE BRASILEIRA


O futebol sofreu transformações profundas desde que surgiu como um jogo escolar na
Inglaterra do século XIX. Desde a popularização do jogo pelo mundo no início do século XX,
o esporte foi gradualmente se profissionalizando, processo impulsionado pelo estabelecimento
de federações e campeonatos de caráter nacional e internacional. Essa evolução do esporte
resultou na construção de todo um horizonte político, econômico e cultural que orbita em
torno do esporte e garante que ele opere nas capacidades que observamos na atualidade.

O aspecto cultural envolvido no futebol é muitas vezes tratado como uma


característica que distanciaria a lógica que orienta esse complexo associado ao futebol da que
orienta a sociedade como um todo. Nessa hipótese, as determinantes exógenas, como aspectos
políticos e econômicos das sociedades onde está inserido afetariam menos as relações entre
torcedores, jogadores, dirigentes de clubes e federações, do que determinações endógenas
ligadas a essa subcultura, como a dedicação máxima ao engrandecimento do clube.

Embora o aspecto cultural do futebol, com seus usos e costumes, tenha relevância
nesse meio, a forma como essas relações político-econômicas operam na prática indica que as
10
estruturas sociais ligadas ao futebol profissional estão inseridas dentro da mesma lógica que
orienta a sociedade capitalista como um todo, com suas próprias estruturas se assemelhando a
uma versão culturalmente inserida e reduzida das formas pela qual a sociedade capitalista se
organiza, sendo afetado diretamente pelas estruturas da sociedade.

A população que majoritariamente frequenta os estádios de futebol corresponde à


população marginalizada dentro da sociedade brasileira. Essa correspondência não é apenas
uma correspondência fática dos indivíduos, mas também diz respeito ao tratamento que esses
torcedores recebem na estrutura circunscrita aos jogos de futebol. Se por um lado são a base
necessária para a manutenção econômica dessas estruturas, por outro sofrem com a exclusão
política e financeira dentro das estruturas em que se inserem.

A forma como o futebol se insere na sociedade brasileira sofreu alterações ao longo do


século XX, acompanhando as alterações estruturais sofridas pela sociedade brasileira, com
uma urbanização acelerada, estimulada pelas diversas alterações econômicas. Assim, é
necessária realizar uma retomada da trajetória desse desporto em solo nacional para melhor
compreender como suas estruturas chegaram ao estado conhecido:

A trajetória do futebol brasileiro se confunde com a história política, econômica e


social da sociedade brasileira. Não pode ser diferente, afinal o futebol – apesar de
aparentar ser um mundo à parte da sociedade – mantém estreita relação histórica,
política e cultural com a sociedade onde está inserido. Porém, a intersecção entre o
futebol e o Estado se dá de forma mais acentuada a partir de sua transformação em
2
esporte de massa e mais ainda quando da profissionalização do esporte.

No surgimento do futebol no Brasil, a prática do esporte era praticamente restrita a


burguesia dentro dos clubes, mas o esporte foi se popularizando entre a classe trabalhadora
que jogava com equipamentos improvisados. Até meados da década de 20, atletas negros
ainda eram barrados pelos cartolas3 de atuarem nos clubes, além disso, como a prática ainda
era amadora, essas pessoas, oriundas da população empobrecida tinham dificuldade em
conciliar o trabalho como futebol.

Essa prática racista foi gradualmente abandonada em razão do crescimento da


competitividade entre clubes e por uma incipiente profissionalização popularmente conhecida
como “amadorismo marrom”, que operava por meio dos chamados “bichos”, prêmios
concedidos aos atletas após jogos vitoriosos. Com a profissionalização do esporte e a

2
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
3
Nomeclatura utilizada em referência aos dirigentes dos clubes brasileiros.
11
intensificação dos campeonatos na década de 30, a barreira que impedia pessoas negras e
pobres de se tornarem jogadores de futebol foi definitivamente abandonada4.

Ao longo das décadas de 30 e 40, ocorre a transição do futebol de um esporte amador


e de público restrito às elites para um esporte de massas que atraía grandes públicos e que
movimentava valores significativos. Esse processo foi impulsionado pela construção de
estádios de grande capacidade para sua época, como o Pacaembu e São Januário, que
colaborou para a popularização do desporto nos principais centros urbanos do país. Fora das
grandes cidades, a difusão do interesse no esporte esteve associada as coberturas de rádio
realizadas pela recém fundada Rádio Tupi do Rio de Janeiro.

Um dos grandes responsáveis por estimular essa difusão do esporte foi o governo de
Getúlio Vargas5, que via o futebol como um elemento e uma ferramenta de formação da
identidade nacional, capaz de aglutinar as paixões nacionais em um mesmo objetivo. Para
além dessa concepção unificadora, o estímulo ao esporte se enquadrava nas concepções
eugenistas e fascistas que tinham trânsito privilegiado nos altos círculos da sociedade e do
governo nesse período.

A popularização do jogo atinge seu crescimento mais intenso e sua consolidação nas
décadas de 50 e 60 em razão de diversos fatores: A realização da primeira Copa do Mundo no
país, a consolidação dos principais clubes de futebol e de diversos campeonatos, as
campanhas bem-sucedidas da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958, 1962 e 1970
e, especialmente, o surgimento e difusão dos aparelhos televisores que permitia a transmissão
dos jogos. Santos (2004) considera que:

O processo de manifestação deste esporte, que começou através do rádio na década


de 30, intensifica-se com a entrada da televisão nos lares da sociedade brasileira.
Esta se concretiza como veículo de massa, na década de 60, e multiplica, na década
6
de 70, o público telespectador em virtude de sua modernização e integração social.

Nesse período ocorre a construção do maior estádio do país, o Maracanã, com


capacidade original de 155.250 pessoas, embora diversas vezes tenham se registrado públicos

4
A inserção de jogadores negros no futebol profissional não significou à época e ainda não significa o abandono
do preconceito de raça em relação a esses atletas. O cruel tratamento dispendido ao goleiro Moacyr Barbosa do
Nascimento após a final da Copa de 1950 e os habituais episódios de ofensas racistas nos estádios modernos
demonstram que essa chaga permanece na sociedade brasileira e, por conseguinte, no futebol brasileiro.
5
Ver Os Gramados do Catete: Futebol e Política na Era Vargas (1930-1945). Costa, Maurício da Silva
Drummond. In Memória Social dos Esportes: Futebol e Política: a construção de uma identidade nacional
6
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
12
mais numerosos. Essa magnitude demonstra bem o caráter de massa que o futebol assumiu no
Brasil nesse período e sua centralidade nos interesses nacionais.

Outro importante ator na difusão desse desporto foi a Ditadura Militar brasileira, que
utilizou o futebol profissional como ferramenta política em diversos campos. A utilização da
Seleção Brasileira como propaganda do Regime foi ampla e irrestrita, servindo como símbolo
nacional que aglutinava os brasileiros. Lemas como “Ninguém segura este país”, “Todos
juntos, vamos pra frente Brasil” e, o mais revelador, “Brasil, ame-o ou deixe-o" eram
repetidos em profusão nas rádios e na televisão. A construção de novos estádios e reformas
dos antigos foram relevantes dentro da política de desenvolvimento econômico do Regime
Militar, que estimulava grandes obras capazes de gerar empregos.

A organização dos campeonatos de clubes, em especial o recém-criado Campeonato


Brasileiro, também serviu aos interesses das autoridades militares no poder. A inclusão de
clubes de menor expressão nos campeonatos nacionais organizados pela Confederação
Brasileira de Desportos7 era utilizada pelo governo federal para aumentar a popularidade de
políticos do ARENA em regiões em que o partido não tivesse tido a votação esperada.

No período de 1974 a 1979, houve um aumento vertiginoso no número de clubes


participantes no Campeonato Brasil, passando de 40 para 94 equipes. Esse inchaço
teve como motivação interesses políticos. Em 1974, nas eleições parlamentares, em
meio ao processo de abertura política iniciado por Geisel, o partido de oposição
MDB acabou saindo vitorioso nas urnas, dobrando o número de representantes na
Câmara dos Deputados – com 37,8% das cadeiras – e conquistando 16 das 22
cadeiras do senado. No ano seguinte, o Almirante Heleno Nunes, ligado a ARENA,
assume a presidência da CBD, num momento em que equipes eram incluídas no
Brasileiro. Segundo o então presidente da Confederação Brasileira de Desportos,
aquilo era „para mais times pequenos participarem da festa‟, mas havia uma clara
politização, uma intenção de conseguir votos. Era um trampolim para a Arena no
interior do País.
Naquela ocasião já não havia critérios técnicos como acesso e descenso de divisão
ou classificação em campeonatos estaduais. A justificativa usada ainda era a
integração nacional e modernização do interior, onde essa diferença entre os partidos
era mais nebulosa. Foi aí que surgiu a expressão atribuída a Nunes: “Onde a
8
ARENA vai mal, mais um time no nacional”.

Com o fim da ditadura civil-militar, o futebol já estava completamente consolidado


como esporte mais popular do país. Os principais efeitos da redemocratização no futebol
foram sentidos nas federações estaduais e regionais, bem como na CBF. Sem ter que cumprir

7
Entidade responsável pela administração do futebol no país até sua extinção e transposição de sua estrutura
para a Confederação Brasileira de Futebol em 1979.
8
RODRIGUES, Vinícius Soares. O FUTEBOL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO DURANTE A
DITADURA. Trabalho de Conclusão de Curso. Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo.
Centro Universitário do Sul de Minas – UNIS/MG, 2021. P. 25
13
o interesse político dos militares, as federações começam um processo de reorganização dos
seus campeonatos buscando “modernizar” o futebol, ao simular os moldes europeus:

Nesse período, a lógica dada é a do mercado, ou seja, ao contrário de toda a sua


história, a lógica que determina as transformações do futebol brasileiro não é mais a
do Estado brasileiro, pois esse aos aderir a uma nova ordem mundial, a de que ao
Estado cabe apenas o papel de regular as relações entre o mercado e a sociedade,
lógica iniciada nos anos oitenta já no governo Collor de Mello, e que tem seu auge
nos anos noventa no governo Fernando Henrique Cardoso, com as privatizações e as
agências reguladoras, faz eco no futebol9.

Nesse momento, a forma de financiamento dos clubes vai se alterando também. Os


repasses da televisão assumem um papel de destaque dentro das receitas dos times de futebol,
o que será outro fator crucial para a chamada modernização do futebol.

De qualquer forma, o impulso à modernização tinha uma razão de ser muito clara.
No novo contexto futebolístico dos anos noventa, a transformação dos principais
campeonatos em produtos altamente valorizados no mercado publicitário e na
programação televisiva passaria a render aos grandes clubes receitas ponderáveis.
Além de incrementar o valor da publicidade no uniforme e da propaganda estática
nos estádios, intensificou-se o interesse pela transmissão de torneios entre os canais
de televisão (inclusive entre os canais por assinatura, que começavam a ganhar
espaço nas grandes metrópoles), elevando os valores pagos pelo direito de
exclusividade10.

Com isso, ocorre uma redução na influência dos valores obtidos por meio da bilheteria
no orçamento total dos times. O estádio e a arquibancada passam a desempenhar um papel
financeiro menor, ainda que não sem importância nas receitas dos clubes. Nesse contexto, o
antigo modelo de estádios “de massa”, grandes arquibancadas que eram preenchidas por
inúmeros torcedores, com pouquíssimo conforto e nenhum luxo, muitas vezes acompanhando
em pé os jogos, mas a um preço bastante reduzido, passa a não ser rentável na proporção
trazida pelas cotas de televisão.

Esses movimentos vão gerar uma nova transformação no futebol profissional, que terá
também que se adaptar as transformações da sociedade brasileira ocorridas na década de 90
com a introdução de influências neoliberais no país. Um esforço de “modernização do
futebol” é empreendido por seus organizadores e atores, que passam a buscar uma
reorganização do esporte em torno de novos pressupostos. Com a aprovação da chamada Lei
Zico em 1993 e da Lei Pelé em 1998, o futebol nacional se reorganiza em torno de novas

9
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. P. 103
10
PRONI, Marcelo Weishaupt. A metamorfose do futebol. Campinas: UNICAMP. IE, 2000.
14
perspectivas mais ligadas ao mercado do que ao Estado, instituição que até então havia sido a
força motriz do esporte11.

Importante destacar que apesar dessa iniciativa declarada de separação entre o futebol
e a política, as relações entre os dois âmbitos em momento algum foram rompidos. Um dos
principais símbolos do neoliberalismo no Brasil, o ex-presidente Fernando Collor de Mello
começou sua carreira política como cartola do CSA, clube cearense que já possuía laços fortes
com a família do político alagoano12. Mesmo na atualidade não é difícil encontrar figuras
importantes em que as carreiras políticas nos clubes e na nação se interrelacionam. Alexandre
Kalil, prefeito de Belo Horizonte entre 2017 e 2022 e importante figura na política mineira,
foi presidente do Clube Atlético Mineiro entre os anos de 2008 e 2014 13, antes de iniciar sua
carreira pública.

Essa passagem da centralidade na organização do futebol profissional do Estado ao


mercado pode ser bem exposta ao retomarmos a prática da Ditadura Militar previamente
exposta de “inchar” os principais campeonatos nacionais com diversos clubes participantes de
regiões politicamente interessantes aquele regime como forma de angariar apoio e
compararmos com a política de reduzir cada vez mais o futebol de clubes a uns poucos mais
poderosos como forma de exponenciar o lucro14. Se antes o caráter popular do futebol era
privilegiado dentro da organização do desporto em razão de sua capacidade de mobilização
política, a mudança de foco dessa perspectiva para uma lógica de mercado estimula o
apagamento desse aspecto em favor da exponenciação do lucro.

Um dos efeitos desse processo foi a concentração dos recursos esportivos e até mesmo
da atenção nacional a uns poucos times. A diversidade de agremiações esportivas que eram
estimuladas pelos campeonatos estaduais perde o pouco estímulo que recebia em favor de 20
times (com generosidade 40) com o gradual declínio de valores e de importância desses

11
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. P. 103
12
Ver https://ludopedio.org.br/arquibancada/fernando-collor-de-mello-presidente-do-csa/
13
Sem mandato, Kalil critica o Atlético-MG enquanto espera 2026. Folha de S.Paulo, São Paulo. 09 out. 2023.
Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/10/sem-mandato-kalil-critica-o-atletico-
mg-enquanto-espera-2026.shtml>. Acesso em 12.10.2023
14
A recente tentativa de alguns dos principais clubes europeus de abandonar suas ligas nacionais e a Champions
League em favor de uma ”Superliga” que seria composta apenas pelos principais clubes dos principais países
europeus e na qual não haveria o risco de rebaixamento ou desclassificação não deixa de ser um ponto mais
avançado dessa mesma lógica de organização esportiva que se verificava no desporto nacional já na década de
90. <Ver https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56838569>
15
campeonatos para as grandes divisões nacionais. Nesse sentido Castellari é preciso ao
consignar que:

Observa-se que as leis modernizantes do futebol brasileiro, que dão a primazia da


organização esportiva ao mercado, não se preocupam com o futebol como um todo,
o mercado é quem se ocupa dessa tarefa. Sabe-se que o mercado, aquele que prega a
eficiência acima de qualquer outro valor, e que tem na meritocracia um de seus
pilares, distingue muito bem paixão de razão, dando a esta última a primazia. Dessa
forma, pouco importa se uma equipe é tradicional ou não, o importante é que ela
venha a gerar lucros. O importante é a lógica da „emprezarização‟15

A rentabilidade reduzida do antigo modelo de estádios de massa passa a ser visto


como um empecilho dentro dessa nova lógica de maximização do lucro. Inicia-se então na
década de 1990, um movimento de substituição pelas chamadas arenas multiuso, estádios
modernos que representavam uma nova forma de organização espacial, que seria
impulsionado nas décadas seguintes. Como identificam HOLLANDA e LOPES (2017) esse
novo modelo passa a presar pela criação de estruturas com padrões arquitetônicos agráveis e
espaços considerados limpos, seguros e confortáveis, oferecendo ainda um amplo leque de
opções de produtos e serviços a serem consumidos pelos espectadores, como restaurantes e
lojas.

As benesses desse novo modelo, no entanto, significaram uma reorganização espacial


do público torcedor no ambiente do estádio pautada em uma divisão de classe, com a
atomização dos torcedores em espaços individuais e setores preestabelecidos que separavam
aqueles com maior poder aquisitivo do público popular. São criadas inclusive áreas especiais,
os camarotes, em que seus compradores recebem não apenas luxos e confortos inacessíveis ao
torcedor comum, como também um espaço privilegiado tanto por uma visão privilegiado do
campo, como por ficarem em evidência para as câmeras de transmissão esportiva. Essas
modificações não se limitaram a criação de áreas excludentes ao torcedor comum, mas
implicaram em uma exclusão de todo o ambiente do estádio em razão do aumento geral dos
preços.

Essa transformação nas estruturas organizacionais do futebol profissional esteve


associada aos episódios de violência nos estádios, já que ao mesmo tempo que esses
fenômenos eram identificados enquanto um obstáculo para a modernização pelos condutores
desse processo, o enfrentamento a eles foi utilizado para legitimar e propulsionar a

15
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma
moderna elitização. São Paulo, 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Sociologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. P. 104.
16
modernização como identificam HOLLANDA e LOPES (2017). Nesse sentido, como será
descrito em maiores detalhes no próximo capítulo, as agremiações de torcedores organizados,
apontados pelos meios de comunicação como responsáveis pelos episódios de violência,
passam a ser enxergados enquanto inimigos desse processo e excluídos do ambiente
futebolístico:

O processo de modernização do futebol, ancorado nas prerrogativas de


racionalização, eficiência e mercantilização, impôs uma nova relação com as
torcidas organizadas. Da intensidade despendida pelos componentes das
agremiações, ao intensificarem as viagens após o surgimento do Campeonato
Nacional, os novos parâmetros para o esporte reconfiguraram seu lugar nas
arquibancadas. O público almejado, sob o signo da modernização, eram os
torcedores não-organizados, potenciais consumidores do espetáculo esportivo. 16

3 AS TORCIDAS ORGANIZADAS: RAÍZES ATÉ A DÉCADA DE 80

As organizações definidas como “torcida organizada” se metamorfosearam ao longo


do século XX e até o presente. As características e relações que configuram esses grupos
sofreram alterações tanto no entendimento interno, daqueles que compõe os referidos grupos,
quanto no entendimento externo, as impressões e juízos do restante da sociedade.

Uma definição legal poderia ser encontrada na recém aprovada Lei 14.597/2023, que
em seu artigo 178, parágrafo 2º, dispõe que:

Art. 178. Torcedor é toda pessoa que aprecia, apoia ou se associa a qualquer
organização esportiva que promove a prática esportiva do País e acompanha a
prática de determinada modalidade esportiva, incluído o espectador-consumidor do
espetáculo esportivo

(...)

§ 2º Considera-se torcida organizada, para os efeitos desta Lei, a pessoa jurídica de


direito privado ou existente de fato que se organiza para fins lícitos, especialmente
torcer por organização esportiva de qualquer natureza ou modalidade.

Embora seja adequada a seu objetivo normativo, a caracterização legal trazida pela Lei
Geral do Esporte, resquício da Lei 12.299/2010 que alterou o hoje revogado Estatuto do
Torcedor (Lei 10.671/2003), é consideravelmente abrangente, classificando qualquer
organização dedicada a torcida por uma organização esportiva, e, portanto, oferece pouco
esclarecimento quanto as características materiais dos grupos investigados.

16
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 182
17
Para encontrar uma definição mais restrita desse fenômeno no período que serão
analisados, é relevante expor suas raízes culturais e os eventos que alteraram suas
configurações e resultaram nos grupos hoje conhecidos

As primeiras formas de agremiação entre torcedores que podem ser interpretadas


como ancestrais das modernas torcidas organizadas surgiram no Brasil na década de 40, com
a popularização do esporte. Antes disso o caráter elitista e racista do esporte gerava não
gerava verdadeiro estímulo para a criação de grupos de torcedores. Em um primeiro
momento, surgiram no Rio de Janeiro as denominadas “Charangas”, pequenas bandas que
animavam os torcedores durante os jogos.

Não demorou muito para que essas bandas fossem acompanhadas pelo fenômeno das
torcidas uniformizadas, conjunto de torcedores que se reuniam com as mesmas roupas para
tentar estimular seus times por meio de cantos acompanhados de uma bateria, normalmente
associadas a um torcedor em particular, cuja paixão pelo clube era bem conhecida.

A primeira forma dessa manifestação, por exemplo, é denominada, por alguns


pesquisadores, de torcidas voluntárias. Torcidas que, no início da nossa história do
futebol, se reuniam única e exclusivamente em conseqüência dos jogos e tinham
como elemento unificado a paixão, ou a simpatia, que nutriam por um ou por outro
17
clube

Rapidamente, esses grupos passam a assumir um papel proeminente nas


arquibancadas. O espetáculo de bandeiras, mosaicos, faixas e baterias promovido se tornou
motivo de orgulho entre essas torcidas, com competições entre elas, promovidas por uma
recém criada imprensa esportiva, que estimulava essas associações. Nesse período, as torcidas
uniformizadas tinham uma representação muito positiva da mídia, em razão do recorte de
classe de sua composição.

As novas torcidas eram majoritariamente compostas por integrantes das classes


médias e altas e tinham como mote a defesa dos valores esportivos. Os jornais
caracterizavam os torcedores uniformizados como os cidadãos de melhor
comportamento dentro dos estádios e cordiais fora dele. Argumentavam que essa
harmonia ocorria porque os membros da torcida compartilhavam os mesmos espaços
na cidade de São Paulo, por pertencerem a classes próximas. Segundo a crítica da

17
CORREIA SOBRINHO, José. Violência de massa no futebol: um olhar clínico sobre o fenômeno das torcidas.
Folha do Campus. Ano II, n10, p.02, set-97. Apud SILVA, Thiago. TORCIDAS ORGANIZADAS E A
VIOLÊNCIA NO FUTEBOL. Trabalho de Conclusão de Curso. Curso de Bacharelado em Educação Física.
Centro de Educação Física e Esporte. Universidade Estadual de Londrina, 2008, p. 8.
18
época, esses grêmios possuíam um caráter dirigente capaz até mesmo de estimular e
manter a ordem da assistência. 18

Outro fator que estimulou o crescimento dessas agremiações foi o incentivo dado pelo
governo de Getúlio Vargas que no contexto do estímulo ao desporto já citado, estimulou a
concessão de espaço a esses grupos na mídia e na sociedade civil. A participação das torcidas
uniformizadas de Corinthians, São Paulo e Palmeiras em eventos cívicos durante datas
comemorativas da cidade foi comum ao longo dos anos 40, sempre com demonstrações de
apreço a Getúlio Vargas.

Na visão de Silva e Toledo, esses grupos de torcedores eram significativamente


inspirados pelos ideais do início dos anos 1940, como a concepção de raça, ordem e
principalmente de juventude. Simpáticos ao Estado Novo, reivindicavam os
símbolos nacionais e tinham seus líderes como peças centrais de sua engrenagem 19

Esses grupos se diferenciavam das modernas torcidas organizadas sobretudo pela


dependência financeira que possuíam em relação a estrutura dos clubes e, muitas vezes, a um
dirigente ou funcionário em particular. Não possuíam uma atuação autônoma ou uma
organização complexa, estando normalmente associados a algum torcedor notório,
denominado “chefe de torcida”, que regia sua atuação. Sua atuação era muito limitada as
arquibancadas e em um viés de apoio irrestrito ao time, sendo raras vaias ou cobranças.

As torcidas organizadas na forma como hoje as conhecemos surgem no final da


década de 60 e começam a se expandir ao longo da década de 70. Isso se dá incialmente nas
cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo em um novo momento de popularização do esporte,
incentivado pela Ditadura Militar. Surgiram nesse período a Torcida Jovem do Flamengo
(1967), a Gaviões da Fiel (1969) e a Camisa 12 (1971) ligadas ao Corinthians, a Torcida
Jovem do Santos (1969), a Torcida Jovem do Botafogo (1969), a Força Jovem do Vasco
(1969) e a Young Flu do Fluminense (1970).

Inicialmente, esses grupos estavam ligados a necessidade de viajar para torcer pelo
clube em jogos realizados em outras cidades ou outros estados, sendo inicialmente uma
reunião sobretudo logística e também uma forma de proteção em um ambiente que, se não era
explicitamente violento, era hostil aos torcedores de outros clubes. Foi nesse período que o
campeonato brasileiro assumiu o lugar de principal campeonato do país, aumentando a
quantidade de viagens dos clubes pelo território nacional.

18
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 19
19
Ibid. P. 23
19
A diferenciação dos torcedores comuns para os organizados passa a criar um senso de
identidade próprio que atraí diversas pessoas, especialmente torcedores jovens com idades
entre 15-17 anos, com um forte componente de pertencimento. Se antes a torcida
uniformizada carregava a imagem do torcedor fanático, cuja paixão pelo clube superava a dos
demais, as torcidas organizadas se tornam uma “torcida dentro da torcida”, com hábitos e
costumes particulares, e cujas manifestações não se limitavam apenas ao apoio ao time.

Em sua tese de doutorado, BUARQUE DE HOLLANDA (2008) descreve bem como


o perfil das novas torcidas se diferenciava das antigas uniformizadas, representando uma
alteração na forma pela qual os torcedores se expressavam nos estádios:

Além da postulação de um perfil etário mais homogêneo, as Torcidas Jovens se


singularizavam das antigas torcidas pela incorporação de um controvertido valor ao
ato de torcer: o protesto. Se até então o incentivo parecia constituir a essência do
modo de ser do torcedor e a finalidade última destas agremiações – a prova maior
eram os exemplos de fidelidade e de lealdade do chefe de torcida –, as Torcidas
Jovens canalizavam a insatisfação dispersa entre os torcedores nos períodos de crise
de suas equipes, outorgando-se o livre direito à pressão, ao apupo e à vaia dirigida à
diretoria dos clubes, o que era facilitado pela ausência de vínculos diretos pessoais
20
com os dirigentes.

Para além do seu papel na estrutura política dos clubes, as torcidas organizadas
compuseram também um movimento de retomada das associações populares, especialmente a
partir dos anos 70, quando essas torcidas passaram a intensificar suas atividades fora dos
espaços dos estádios. Ainda que não tivessem uma pretensão política clara e imediata, eram
grupos formados por pessoas das camadas mais pobres da sociedade, com claro caráter
popular, se incluindo no mesmo processo de retomada das associações de bairro, fábricas,
igrejas, em um retorno dos movimentos sociais que gradualmente assumiriam protagonismo
na sociedade civil, especialmente na década de 1980.

No âmbito da política nacional, as organizadas não tiveram nas décadas de 70 e 80


uma atuação coordenada com objetivo político definido, no entanto ocorreram movimentos
espontâneos dos membros de algumas torcidas, dentro do caráter popular desses grupos, em
apresentar contestações eventuais contra as autoridades estabelecidas pela ditadura militar.
Uma das mais atuantes nesse sentido foi a Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians,
movimento que ao longo dos anos se mostrou mais consciente de seu caráter popular e que,

20
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e
a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967- 1988) / Bernardo Borges Buarque de
Hollanda; orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008. P. 88
20
durante sua atuação nas arquibancadas durante os jogos, pendurava faixas e realizava gritos
contra o Regime Militar.

Não terá sido por acaso, só como um exemplo qualquer, que a primeira faixa pela
Anistia no Brasil a aparecer para um grande público tenha sido desfraldada
exatamente no meio da torcida corintiana, numa partida contra o Santos, no
Morumbi com mais de 110 mil pessoas, dia 11 de fevereiro de 1979. 21

No início da década de 80, começa uma nova transformação no perfil dessas


agremiações. A rivalidade entre as torcidas organizadas que antes se restringia
majoritariamente as arquibancadas, começa a se traduzir em brigas generalizadas de
torcedores. Já no fim dos anos 70, as brigas entre torcedores organizados começaram a se
tornar mais comuns no estado de São Paulo, apesar da existência de um pacto de não agressão
existente entre as principais organizadas dos quatro maiores clubes paulistas: a Torcida
Uniformizada do São Paulo, a Torcida Jovem do Santos, os Gaviões da Fiel e a Torcida
Uniformizada do Palmeiras.

Até esse momento essas torcidas organizadas estavam unidas em torno de um objetivo
em comum: a busca por melhores condições aos torcedores o que envolvia melhoras na
infraestrutura dos estádios, preços mais acessíveis, diminuição dos episódios de violência
entre torcedores e proteção contra os abusos cometidos pelas autoridades policiais. Visando a
ação conjunta na reivindicação dessas pautas, havia sido criada a ATOESP (Associação das
Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo) em 1976, que realizaria a interlocução entre as
agremiações de torcedores, as federações de futebol e o Governo do Estado de São Paulo.

A criação de uma associação de torcedores era vista como um acréscimo de


credibilidade para o encaminhamento de demandas e sugestões a outras entidades do
futebol, principalmente a Secretaria de Segurança Pública do Estado e a Federação
Paulista de Futebol. Era também a possibilidade de um discurso unificado junto à
mídia em questões que interessavam a todos os torcedores. O desejo dos fundadores
da Atoesp era criar um espaço para o estabelecimento de regras comuns a todas as
torcidas, dividir harmonicamente os espaços das arquibancadas nos clássicos do

21
19 Cf. KFOURI, J. A emoção Corinthians. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 36. O ex-presidente dos Gaviões
da Fiel, Douglas Deúngaro, confirma a informação: “Numa época de ditadura a Gaviões foi a primeira entidade
que abriu uma faixa – „anistia ampla e irrestrita‟ – para cem mil pessoas. Na época o pessoal que estava saindo
do país veio pedir para a Gaviões, porque eles aceitaram a idéia Gaviões. Eles disseram que ninguém tinha
coragem de abrir uma faixa para cem mil pessoas: „vocês vão ter que abrir‟ e os Gaviões compraram a briga. (...)
Na época foi todo mundo para o banquinho do Doi-Codi. O presidente na época era o Julião e os policiais vieram
aqui e pegaram todo mundo. Ninguém tinha feito isso na época da ditadura, então, os Gaviões eram uma força
diferente das outras torcidas.” Apud Hollanda, Bernardo Borges Buarque de O clube como vontade e
representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-
1988) / Bernardo Borges Buarque de Hollanda; orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp062693.pdf>
21
Morumbi e do Pacaembu e criar estratégias para diminuir os crescentes
enfrentamentos entre torcedores, organizados ou não. 22

Nesse momento vigorava também um “código de honra” dentro dessas agremiações


que punia com expulsão membros que, no ambiente da torcida, utilizassem narcóticos, se
embriagassem ou cometessem atos violentos. Essas expulsões, no entanto, levaram a criação
de novos coletivos com valores e métodos que contrastavam com as associações maiores e
que eventualmente fariam oposição a elas.

O marco dessa mudança dos grêmios é o ano de 1983 devido a dois acontecimentos
centrais: o fim do pacto de não agressão entre as agremiações e a fundação da Mancha Verde,
torcida organizada ligada ao Palmeiras que reivindicava uma atuação violenta objetivando
“recuperar o respeito” como aspecto central do grupo.

Importante destacar que a criação da Mancha Verde23 com essa orientação mais
belicosa não foi surgiu espontaneamente, mas foi uma reação a experiências anteriores.
Conforme destaca CANALE (2020), a criação da Mancha Verde é consequência das relações
entre as torcidas paulistas na década de 1970, em que torcedores palmeirenses eram vítimas
na maioria dos enfrentamentos, gerando essa lógica revanchista e a necessidade de
autoafirmação nesse ambiente. Como o mesmo destaca:

A partir dessa consideração cabe o reconhecimento de que a Mancha Verde, tratada


como um problema social pela polícia e por diversos setores da mídia, representava
parte dos sintomas de um processo em ascensão. Na experiência desses novos
líderes de torcida na década de 1980, a briga estava enredada numa complexa teia de
sentidos, que pressupunham a autoproteção e a criação de status para o torcedor e
seu grupo. Para muitos palmeirenses, brigava-se pelo direito de demonstrar afeição
ao seu clube e portar os seus símbolos, mas também para submeter os adversários
numa lógica que tinha a violência como principal valor. 24

Esse entendimento é reforçado pelas impressões de Paulo Serdan, membro fundador e


ex-presidente da Mancha Verde, ao relembrar as origens do grupo:

Escolhemos o nome „Mancha Verde‟ com base no personagem „Mancha Negra‟do


Walt Disney, que é uma figura meio bandida, meio tenebrosa. A gente precisava de
uma figura ideal e de pessoas que estivessem a fim de mudar a história. Na época, a
gente tinha uns 13/14 anos de idade e já havíamos sofrido muito com as outras
„torcidas‟, então, a gente começou com muita vontade, muita garra e na base da

22
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 184
23
Fundada em 11 de janeiro de 1983.
24
Ibid. P. 324.
22
violência. A gente deve ter exagerado um pouco, porém, foi um mal necessário. A
gente conseguiu o nosso espaço e adquirimos o respeito das demais „torcidas‟ 25

A partir dali outras associações também vão se reorganizar em torno de um novo


objetivo central: o enfrentamento de outros grupos de torcedores, considerado necessário para
a proteção de seu próprio torcedor. Essa mudança foi estimulada ainda pelo aumento na
capacidade de recrutamento dos novos grupos, visto que as torcidas organizadas dedicadas a
brigar atraíam muito mais jovens torcedores.

Essa transformação no perfil das agremiações de torcedores ocorre em um cenário de


ampliação da violência urbana em todo país. A sociedade brasileira sentia os efeitos do
segundo choque do petróleo, o qual encerrou em 1979 o período conhecido como “milagre
econômico” que desencadeou uma brutal crise econômica que contribuiria para a decadência
e eventual extinção da Ditadura Militar, mas que deixaria uma inflação descontrolada e um
grave empobrecimento da população:

Os debates sobre a violência nas décadas de 1980 e 1990 se justificam em uma série
de fenômenos característicos da vida urbana. Do processo de redemocratização, com
suas nuances sobre o legado da ditadura militar, até a recessão econômica em função
do desmantelamento do “Milagre” econômico, a recorrência de incidentes de
violência se tornou a tônica dos debates, exponencialmente no Rio de Janeiro, que
ainda viu o debate resvalar no advento do funk no estado. No microcosmo das
torcidas, o perímetro se amplia a São Paulo, cenário dos dois casos considerados
marcos na associação entre violência e torcidas organizadas.26

Apesar da multiplicação de casos envolvendo brigas de torcidas organizadas na


passagem da década de 70 para a de 80, ocorrências envolvendo armas de fogo ou explosivos
ainda eram bastante raras. Os casos de violência em sua maioria envolviam brigas
desarmadas, o que era considerado “questão de honra” entre seus membros, com os casos
mais extremos envolvendo o uso de pedaços de pau.

A configuração resultante dessa alteração no perfil das torcidas organizadas no início


da década de 80 se manteria ao menos até a virada do século, momento em que novos fatores
como o neoliberalismo e a intensificação da modernização do futebol profissional
intensificaram-se e, em conjunto com os desafios proporcionados pela intensificação da
criminalização promoveu algumas alterações.

25
In PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol: Identidade e identificações, dimensões cotidianas. In
Futbologias: Futbol, identidad y violencia en America Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires 2003.
26
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 155
23
Nesse cenário, a definição de torcidas organizadas abarca diversas características,
sendo definida, conforme os entendimentos expostos por Carlos Alberto Máximo Pimenta
enquanto:

[...] um agrupamento de pessoas simpatizantes de um clube de futebol, sem fins


lucrativos, estruturado de forma relativamente burocrática, com o objetivo de
incentivar o time durante os jogos e defender a integridade do grupo nos momentos
de confrontos físicos ou verbais com os adversários. Essas pessoas, na maioria
rapazes, são denominadas sócios da organização, e promovem eleições periódicas
para eleger o quadro administrativo, composto por: presidente, conselheiros, líderes
e diretores. Interações e reuniões sociais costumam acontecer na sede das
agremiações. A estrutura administrativa das torcidas organizadas assume aspectos
militaristas, contemplando estratégias de confronto aliadas a táticas de ataque e de
defesa. A identificação desses grupos é percebida pela vestimenta, pela virilidade,
pelos cânticos de guerra, pelas transgressões das regras legais, pelas coreografias,
pelo sentimento de pertencimento ao grupo.27

A relação entre violência e futebol não era novidade no país. Já nos anos 20, momento
em que a prática do desporto ainda era restrita em grande medida restrita a elite burguesa do
país já eram registrados casos de hostilidade e violência entre torcedores de futebol. O jogo
era inclusive considerado especialmente promotor da violência pela maneira como os
espectadores se excediam em suas manifestações, chegando a ser mal vistos em certos
círculos. Um dos principais críticos do esporte foi o jornalista e escritor Lima Barreto, que
chegou a fundar a “Liga contra o Football”, associação dedicada a combater o esporte que, em
sua visão, embrutecia o intelecto e acirrava as paixões28

Não é possível deixar de falar no tal esporte que dizem ser bretão. Todo dia e toda a
hora ele enche o noticiário dos jornais com notas de malefícios, e mais do que isto,
de assassinatos. Não é possível que as autoridades polícias não vejam semelhante
cousa. O Rio de Janeiro é uma cidade civilizada e não pode estar entregue a certa
malta de desordeiros que se querem intitular sportmen. Os apostadores de brigas de
galos portam-se melhor. Entre eles, não há questões, nem rolos. As apostas correm
em paz e a polícia não tem que fazer com elas; entretanto, os tais footballers todos
os domingos fazem rolos e barulhos e a polícia passa-lhe a mão pela cabeça. Tudo
tem um limite e o football não goza do privilégio de cousa inteligente. 29

No período compreendido entre 1930 até 1950, a questão da violência no futebol


continuou presente na realidade dos torcedores, no entanto recebia pouca importância na
cobertura da imprensa esportiva. O futebol era tratado sobretudo no seu aspecto lúdico e de

27
ASSIS, T.C.F, A Representação Social da Violência em Torcidas Organizadas de Futebol. 2008. 22. Tese
(Pós-graduação em Psicologia) Universidade Católica de Goiás, 2008.
28
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e
a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967- 1988) / Bernardo Borges Buarque de
Hollanda; orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008. P. 445
29
BARRETO, Lima. Revista Careta, 1 de julho de 1922. Apud. SANTOS JUNIOR, Nei. Jorge. O Futebol
Suburbano e as Inspirações de Lima Barreto: Representações E Tensões. Recorde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p.
1-17, jan./jun. 2019
24
festa popular30. As torcidas uniformizadas, até então principal forma de agremiação de
torcedores eram vistas como uma solução à violência e a criminalidade nesse meio, já que
manteria a ordem e a disciplina dos outros torcedores por seu dirigismo. Durante esse período,
os casos de violência entre torcedores de times rivais não eram associados aos grêmios de
torcedores, mas retratado como uma questão do público em geral.

Diferentemente de suas antecessoras, desde sua fundação as torcidas organizadas


tiveram associado a elas um estigma de que seriam grupos criados com o intuito de cometer
ilícitos, gangues formadas por jovens que se esconderiam sob a bandeira dos times para
cometer crimes violentos, utilizar drogas e criar caos no espaço urbano. Nessa tese, os
integrantes das torcidas organizada seriam formadas por uma juventude delinquente,
praticante de pequenos ilícitos, associada com membros mais velhos que já eram criminosos
costumazes antes de adentrarem esses grupos e se aproveitam do anonimato fornecido pela
integração a um grupo para praticarem crimes de maior grau ofensivo.

Essa visão preconceituosa era largamente influenciada pela composição das novas
agremiações, formadas majoritariamente por jovens entre 15-17, provenientes das camadas
mais pobres da sociedade, com pouco acesso à educação formal ou a postos de trabalho
formais. A utilização de uma estética uniformizada, acompanhada de “gritos de guerra” e a
utilização de baterias causava temores nos setores mais conservadores da sociedade. As
caravanas e passeatas das torcidas organizadas eram acompanhadas de perto por um largo
contingente da polícia militar, que atuava de forma truculenta contra os torcedores,
organizados ou não.

Numa ação que não guardava relação com os incidentes do estádio, dois torcedores
foram detidos pela Polícia Militar e levados para uma região distante de São Paulo.
Espancados e submetidos a tortura pelos policiais, um deles acabou baleado na
tentativa de fuga. O antropólogo José Paulo Florenzano (2019) relembra que a
polícia encarregada da segurança em espetáculos esportivos era também aquela que
atacava a subversão política, reprimia protestos e passeatas. Os métodos da caserna
promoviam uma atuação policial truculenta que vitimava estudantes, sindicalistas e
outros possíveis inimigos do regime. A figura do torcedor, em 1973, não estava

30
A cobertura jornalística do futebol realizada entre a década de 20 e a década de 50 era feita
predominantemente no formato de crônica esportiva, que centrava seus relatos nas emoções provocadas pelo
jogo e em uma visão fantástica e romântica do esporte. Este estilo pouco realista de descrição do jogo também
foi bastante utilizado nas transmissões de rádio. Foram proeminentes nesse estilo de jornalismo esportivo o
escritor Henrique Maximiano Coelho Netto e os irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues.
25
atrelada à subversão e nem a práticas violentas; porém, os excessos policiais se
tornariam cada vez mais recorrentes ao longo da década. 31

Apesar da existência desse estigma e de episódios violentos entre diferentes grupos e


com a polícia, a representação das torcidas organizadas na mídia e na percepção geral ainda
que fosse de grupos potencialmente violentos, não era de grupos que objetivassem a prática de
atos violentos. A imagem das agremiações de torcedores era de coletivos dedicados a apoiar
os seus clubes e com objetivos reivindicatórios de pautas dos torcedores em geral.

Durante sua primeira década de existência, o movimento de torcidas organizadas


gradualmente passou a ocupar um espaço cotidiano nos veículos de informação. Na
maioria das vezes retratadas como meras paisagens do ambiente esportivo, essas
entidades passaram a ser ouvidas com mais frequência nas apreciações sobre os
times, nas questões internas aos clubes e nos problemas que afetavam o futebol.
Contudo, o papel predominante dos clubes da capital paulista e do Santos nos
noticiários esportivos se reproduzia na exposição privilegiada de suas torcidas. 32

Essa é a percepção acerca desses grupos majoritária até meados da década de 80. A
imagem das torcidas organizadas como gangues violentas focadas em brigas e combate
territorial só passou a assumir papel central na representação feita pela mídia durante os anos
90.

4 A DÉCADA DE 90

4.1 (1988-1995) TRANSFORMAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO

Conforme descrito no item anterior, a percepção e o tratamento dispendido para as


torcidas organizadas paulistas passam a sofrer alterações significativas a partir da segunda
metade da década de 1980. Essa modificação foi consequência de uma série de fatores, entre
eles a mudança no perfil de atuação dessas organizações já no início da década de 80.

Nesse contexto, houve uma intensificação dos enfrentamentos entre torcidas rivais e
um escalonamento na letalidade desses enfrentamentos, consequência do crescimento dos
grupos e da adoção de armas brancas, armas de fogo e até mesmo bombas. PIMENTA (2003)
expõe um crescimento expressivo do número de participantes das principais torcidas
organizadas da metrópole paulista no início da década de 90:

31
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 97
32
Ibid. P. 142
26
Entre brigas, rivalidades e mortes, os anos noventa representam o crescente aumento
do quadro associativo das “organizadas”. Em 1991, a “Mancha Verde” tinha 4.000,
a “Independente” 7.000 e os “Gaviões da Fiel” 12.000, filiados. Até outubro de
1995, período em que passou a ocorrer por parte da Justiça Pública paulistana
cerceamentos das atividades desenvolvidas pelas “organizadas”, seus quadros
registrou os números de 18.000, 28.000 e 46.000 filiados, respectivamente. 33

O aumento no enfrentamento entre torcidas rivais foi acompanhado por uma crescente
cobertura midiática, que passou a retratar os ambientes de estádio e entre torcedores como
uma barbárie (CORDEIRO e LOPES, 2015) explorando e noticiando os casos de violência de
forma sensacionalista e alarmista.

Nesse sentido, como narra TORO (2004), pela primeira vez as torcidas organizadas
que eram legitimadas enquanto tributárias do espetáculo e da festa passaram a ser censuradas
de forma intensa e colocadas no papel de artífices da violência, que afastariam demais
torcedores dos estádios.

Dentro dessa representação de selvageria e barbárie, os torcedores que cometem atos


violentos são “confundidos” com os torcedores organizados, ainda que não tenham qualquer
relação, como destacado por Felipe Tavares Paes Lopes, em sua tese de doutorado que
analisou os discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol:

Frequentemente, essas torcidas são, do mesmo modo que no artigo citado acima,
associadas à violência no futebol. São comuns os discursos que fundem os
torcedores organizados e os torcedores violentos numa mesma figura, colocando a
violência como um elemento consubstancial também aos primeiros209. Antes de
analisarmos como essa associação é construída e seus possíveis efeitos, é preciso
recordar que: a) nem todos os torcedores violentos são filiados a torcidas
organizadas; b) nem todo torcedor organizado é violento e c) os torcedores violentos
(filiados ou não às torcidas organizadas) o são em diferentes níveis e praticam
diferentes tipos de violência (como a física e a simbólica). A partir deste
esclarecimento inicial, podemos afirmar que essa associação é simplista,
dissimuladora e abusiva. Simplista porque reduz a complexidade do problema.
Dissimuladora porque o torcedor violento que não é filiado à torcida organizada
desaparece de cena, ficando na penumbra. Abusiva porque a identidade do torcedor
organizado pacífico é contagiada pela ação violenta de alguns torcedores
organizados. Em última instância, tal contaminação reveste todos os torcedores
organizados com a imagem da violência e da delinquência. 34

Essa orientação midiática deslocou a questão da violência associada ao ambiente


futebolístico de um âmbito restrito dos torcedores e alçou-o à condição de problema social,

33
PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol: Identidade e identificações, dimensões cotidianas. In
Futbologias: Futbol, identidad y violencia en America Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires 2003.
34
Lopes, Felipe Tavares Paes. Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na
construção de um problema social / Felipe Tavares Paes Lopes; orientador Esdras Guerreiro Vasconcellos. -- São
Paulo, 2012. P. 241
27
que demandaria a atuação do poder público para coibi-lo (LOPES, 2013). Com esse
direcionamento, o jornalismo esportivo dissociava os grêmios esportivos de outras
organizações da sociedade civil como sindicatos e associações de bairro e os aproximava de
gangues e organizações criminosas (BUARQUE DE HOLLANDA, 2008).

O resultado desses esforços midiáticos foi firmar a imagem do torcedor organizado


como ligada aos enfrentamentos e atos violentos e não as práticas festivas:

A consolidação do estigma, desse modo, é rastreada nos anos 1990, em que as


representações das torcidas organizadas através da violência pelos meios de
comunicação passam a ser mais explícitas e reducionistas, potencializadas ainda
pelos debates sobre violência urbana nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. 35

Para atender essas demandas exponenciadas pelo noticiário, os órgãos do Poder


Público do Estado de São Paulo, especialmente o Ministério Público de São Paulo, passariam
a adotar medidas rígidas contra as torcidas organizadas paulistas, em um processo de
criminalização que afetaria a organização desses grêmios e as torcidas como um todo.

Essa mudança de tratamento foi catalisada por dois marcos centrais que ocorreram
respectivamente nos anos de 1988 e 1995 e que demandam uma descrição em maiores
detalhes: o assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, fundador e então presidente da
Mancha Verde, e a Batalha do Pacaembu, conflito entre torcedores de Palmeiras e São Paulo
durante a final da Supercopa de Futebol Júnior que resultou em 1 morte e 102 feridos.

O assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, conhecido pelas alcunhas de Cleo


Guerreiro ou apenas Cleo, ocorreu na noite de 17 de outubro de 1988, em frente à sede da
Mancha Verde em São Paulo, próximo do antigo estádio Parque Antartica. Atingido por dois
tiros, um no pescoço e um no abdômen, Cleo faleceu antes mesmo de chegar ao hospital.
Foram vistos dois homens que teriam efetuados os disparos e fugidos em um Escort branco,
conforme noticiado pela Folha de S. Paulo dois dias depois.36

A principal teoria da Polícia Civil, na figura do Delegado José Heliodoro dos Santos,
era de que o assassinato havia sido motivado por rixas entre a vítima e torcedores membros da
principal organizada do Sport Clube Corinthians Paulista, a Gaviões da Fiel. Segundo o
delegado, ele havia recebido uma carta assinada em que eram descritos os motivos do crime e

35
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 159
36
CHEFE da Mancha Verde é morto a tiros na sede. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. D2, 19 out. 1988.
28
os suspeitos que estariam ligados a torcida organizada. O autor da suposta carta não foi
revelado.

Com base nessa evidência, foram chamados para depor três torcedores do
Corinthians37 e após seus depoimentos o delegado se convenceu que não estavam implicados
no crime e que a carta se tratava de uma pista falsa.

Embora a hipótese de envolvimento de torcidas organizadas tenha sido aceita por


amigos e familiares de Cleofas, ambos os grêmios de torcedores descartavam a hipótese. A
Gaviões da Fiel afirmou tratar-se de um trágico acidente, sem qualquer envolvimento de seus
membros. Membros da Mancha se manifestaram no mesmo sentido, afirmando não
acreditarem que as razões do crime estariam ligadas ao futebol38

Os efeitos gerados por essa morte repercutiram quase que imediatamente dentro das
torcidas de futebol. Já no primeiro jogo após o evento, uma partida disputada entre Palmeiras
e Cruzeiro no antigo Palestra Itália, o estado geral de animosidade dos torcedores
palmeirenses levou a um enfrentamento ainda nos minutos iniciais:

[...] o clima de paz foi rompido antes do início da partida. Segundo os palmeirenses,
membros da torcida visitante não teriam respeitado o minuto de silêncio para o
presidente manchista – ensejo para quinze minutos de uma intensa briga nas
arquibancadas do Parque Antártica. Segundo o tenente Vanderlei Coelho, o objetivo
dos palmeirenses era derrubar a grade que separava as duas torcidas. O clima de
hostilidade passou às cadeiras cativas e numeradas, onde houve trocas de socos e
pontapés. Controlada a primeira onda da briga, os torcedores palmeirenses se
insurgiram contra a Polícia Militar, que fez uso de cassetetes e até de armas de fogo
para retomar o controle do estádio.

Após o jogo, com vitória alviverde por 2 a 0, vários ônibus de cruzeirenses foram
apedrejados. Os mineiros foram conduzidos ao 2º Batalhão da PM, que alugou um
ônibus de linha que os levaria até a Rodovia Fernão Dias, como forma de despistar
possíveis perseguições dos palmeirenses.39

Para além dos efeitos na torcida em geral, o episódio ficou marcado entre as torcidas
organizadas como um novo parâmetro de violência. O uso de armas de fogo ainda era um
elemento pouco presente em enfrentamentos entre torcedores organizados. Fator que gerou
ainda mais surpresa e indignação, foi a premeditação do crime, divorciado de qualquer
momento de emoção ligado a um jogo em particular e possivelmente motivado por vingança

37
Antônio Mezher, Carlos Tadeu Miranda e Carlos Garofallo
38
INTEGRANTES da Gaviões são suspeitos de matar líder da Mancha, diz polícia. Folha de S.Paulo, São Paulo,
p. D1, 20 out. 1988.
39
CANALE, Vitor dos Santos. Um movimento em muitas cores: o circuito de relações das torcidas organizadas
paulistas entre 1968 e 1988: uma história da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São
Paulo) / Vitor dos Santos Canale. – 2020. P. 323
29
de enfrentamentos anteriores, o crime apresentava um novo padrão de beligerância até então
desconhecido nesse meio (BUARQUE DE HOLLANDA, 2008).

Ainda mais que as características do crime, as características da vítima geraram um


desconforto geral entre os membros. A morte violenta do presidente e fundador de uma das
três maiores agremiações do estado de São Paulo, considerada uma das mais perigosas e
temidas, significava que qualquer membro das torcidas poderia ser um alvo. A morte de
Cleofas ainda hoje é uma marca na torcida palmeirense e foi utilizada como provocações por
torcidas rivais.

É interessante notar que o crime, em um primeiro momento, não teve grande destaque
na mídia. As matérias dos jornais A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo que trataram do
assassinato e de suas repercussões entre as torcidas se resumiram a artigos curtos nas folhas
do caderno de Esporte, com pouco destaque entre as matérias principais. Apesar disso, a
cobertura contínua, ao longo de vários dias, já era sintomática do papel de destaque que
enfrentamentos entre os torcedores teriam a partir desse episódio.

Ademais, embora não se tivesse certeza da vinculação do episódio ao âmbito dos


torcedores organizados, a cobertura midiática se concentrou nesse aspecto, como destaca
TOLEDO (1996):

segundo muitos torcedores palmeirenses seu assassinato se deu por vingança de


outras torcidas. Outra versão dada ao caso na época, veiculada nos jornais, foi a de
que ele estava envolvido com entorpecentes. De qualquer forma, o caráter de
vingança foi bastante acentuado nas explicações para esta tragédia, ficando
circunscrita a um caso de retaliação pessoal e explicada como crime comum. No
entanto, o simples fato de ele pertencer a um grupo visível, um ator que participa e
atua nos limites do mundo do futebol profissional, que é uma Torcida Organizada,
fez com que toda a impressa esportiva exercesse forte pressão contra os torcedores
organizados, deixando, portanto, o fato de ser relatado apenas como um crime
comum. Nesses termos, colocaram o problema de forma mais pública 40

O crime modificou profundamente as relações entre torcedores organizados. Esse


evento é considerado por CANALE (2020) o símbolo de uma nova era nas torcidas
organizadas paulistas, já que representava o fim de um período em que os sentidos da
experiência comum desses grêmios permitiam a existência de canais de diálogo mais abertos,
como a ATOESP e a união focando a reinvindicação de pautas comuns. Iniciava-se um
período em que as relações entre grupos de torcedores seriam marcadas sobretudo pela
inimizade e violência, o que auxiliou no esvaziamento político dos grupos.

40
TOLEDO, L. H. de. Torcidas organizadas de futebol. Campinas: Autores Associados/Anpocs, 1996.
30
Com a referida quebra nas relações entre torcidas organizadas catalisada pela morte de
Cleofas, inaugurou-se um período em que os enfrentamentos se tornariam mais comuns e
mais letais, abrindo espaço para a estigmatização desses movimentos e o apagamento de seu
caráter social:

A condição de desviantes atreladas às torcidas organizadas passou a predominar no


trato despendido aos agrupamentos, que assistiram suas práticas e representações
serem reduzidas aos atos contendores, exponenciadas após a tragédia no Pacaembu.
De torcidas engajadas e festivas, as expressões atribuídas às agremiações
focalizavam os enfrentamentos, em que seu escopo de práticas foi inclusive
denominado pelo termo “cultura da violência”384 pelo jornal O Globo em agosto de
1995.

A escalada da violência entre torcedores organizados no final da década de 1980 e


no decorrer do decênio seguinte simboliza uma espécie de “radicalização da
conduta”, protagonizada pelos subgrupos demarcadamente juvenis. A recorrência
dos atos violentos promovidos pelas torcidas organizadas conflui para uma
abordagem e manejo de tais práticas que impulsionou a estigmatização pela lógica
da violência das agremiações torcedoras41

O episódio serviu como um marco inicial de uma cobertura midiática sobre o tema que
cada vez mais se distanciaria do aspecto esportivo e se concentraria no policialesco.
Conforme acompanhamento midiático e registros realizados pelo jornalista esportivo Rodrigo
Vessoni , desde o homicídio de Cleo até o fim da década de 1990, um recorte de 12 (doze)
anos, foram noticiadas as mortes de 16 (dezesseis) torcedores. O número subiria para 99
morte noticiadas na década seguinte (2000-2009)42

Esses números aparentemente contrariam a apuração feita por Carlos Alberto Máximo,
que apenas nos anos de 1992 e 1994, identifica que foram noticiadas as mesmas 12 (doze)
mortes:

Relação direta com a procura considerável de filiações foi o aumento da violência.


Torna-se importante consignar que os anos de 1992 e 1994 foram os mais
preocupantes, pois ocorreu a maior parte dos envolvimentos entre “torcidas”. Pelo
menos, foram os anos que a mídia mais noticiou os envolvimentos. Desses,
resultaram a morte de 12 pessoas, sendo 4 delas em 1992 e o restante em 1994. 43

41
SILVA, Juliana Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça
Rubro-Negra durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da
Silva. -- Rio de Janeiro, 2021. P. 109
42
AMARO. G. Da paixão nacional ao ódio: por que a violência no futebol está longe do fim. Trivela. Brasil, 15
de julho de 2023. Acesso em 15 de setembro de 2023
43
PIMENTA, C.A.M. Torcidas organizadas de futebol: Identidade e identificações, dimensões cotidianas. In
Futbologias: Futbol, identidad y violencia en America Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires 2003.
31
Embora a apuração de mortes noticiadas não seja definida, parece consenso entre os
autores analisados que a década de 80, especialmente a partir do evento descrito nesse item,
marca o início da violência esportiva enquanto objeto de atenção midiática:

Entretanto, no Brasil, foi somente a partir do final da década de 1980 que ele [o
fenômeno da violência envolvendo torcedores] passou a se notabilizar como
conteúdo noticioso e, com isso, a mobilizar mais fortemente a opinião pública.
Nesse período, foi alçado à condição de problema social brasileiro, tornando-se
objeto de preocupação pública constante. De acordo com Toledo (1996), isso se deu,
sobretudo, a partir de 1988, com o destaque dado pela imprensa ao assassinato de
um dos dirigentes e fundadores da Mancha-Verde (atual Mancha-Alviverde), uma
das principais torcidas organizadas do Palmeiras. 44

Assim como a morte do então presidente da Mancha Verde serviu como um simbólico
evento inicial para a modificação das relações entre torcidas organizadas paulistas e para a
cobertura midiática, a chamada Batalha do Pacaembu é o evento que marca a elevação da
discussão da violência entre torcedores de um âmbito restrito aos jornalistas esportivos para
configurar um dos tópicos no debate jornalístico acerca da segurança pública, especialmente
no Estado de São Paulo.

O ocorrido se deu no dia 20 de agosto de 1995 no estádio Pacaembu na capital


paulista. Era a disputa da final da Supercopa São Paulo de Futebol Júnior, competição que
reunia os campeões e vice-campeões da Copa São Paulo de Futebol Júnior. Disputavam o
jogo, as equipes sub-20 do São Paulo Futebol Clube e da Sociedade Esportiva Palmeiras.
Com um empate no tempo regulamentar, a partida foi decidida pelo chamado “gol de ouro”45
marcado pela equipe palmeirense.

Com a vitória, a torcida palmeirense presente no local deixou as arquibancadas e


invadiu o campo em comemoração. Segundo noticiado pelo jornal F. de São Paulo, iniciou-se
um confronto entre as torcidas presentes após palmeirenses se aproximarem do setor em que
se encontrava a torcida do São Paulo e iniciarem provocações. Em resposta, foram atirados
paus e pedras e em seguida, o alambrado que separava a arquibancada do gramado foi
derrubada e a torcida são-paulina invadiu também o gramado, iniciando o confronto.

44
Lopes, Felipe Tavares Paes. Discursos sobre violência envolvendo torcedores de futebol: ideologia e crítica na
construção de um problema social / Felipe Tavares Paes Lopes; orientador Esdras Guerreiro Vasconcellos. -- São
Paulo, 2012. P. 14
45
”Morte súbita, ou gol de ouro, consiste no término do jogo imediatamente após um dos contendores fazer um
gol. Houve, na ocasião, quem atribuísse a essa regra as razões do desfecho funesto dessa partida, alegando que a
interrupção brusca da partida, sem dar chances de recuperação ao adversário, gera uma maior tensão entre os
aficionados, fato que colaborou para o acirramento dos ânimos. Pista interessante porém insuficiente para
compreender todo o desencadeamento do acontecido” apud Cf. TOLEDO, L. H. de. “Identidades e conflitos em
campo: a „guerra do Pacaembu‟”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1997, nº 32. P. 110.
32
Embora a peleja tenha durado somente nove minutos, foram feridos 80 (oitenta)
torcedores entre ambas as torcidas e 22 (vinte e dois) policiais46. Ocorreu também a morte de
um torcedor, Márcio G. da Silva, menor de idade a época, em razão de lesões generalizadas.
A reconstrução feita por Luiz Henrique de Toledo retrata bem o decorrer dos eventos e o
impacto gerado:

O revide veio logo em seguida com os são-paulinos pulando e derrubando


alambrados, situados ao lado e ao fundo de um dos gols e, misturando-se aos
palmeirenses, policiais, jogadores assustados, imprensa que cobria o evento, entre
outros travaram uma seqüência de investidas, retrocessos, avanços e recuos uns
contra os outros, munidos de muito entulho deixado atrás do gol em virtude de uma
reforma no setor comumente conhecido como tobogã (arquibancada atrás do gol).
Paus e pedras foram desferidos entre os torcedores. As imagens de um jovem
combalido, à deriva sobre suas pernas, percorrendo a esmo a lateral do gramado, por
fim projetado contra o alambrado, desmaiado, demonstravam, ao vivo pela TV, o
tamanho da agressividade coletiva que se instaurava naquele momento.

Embora não tenha sido o primeiro desses enfrentamentos, algumas outras


características impulsionaram a cobertura midiática extensa sobre o evento, para além da
violência e da escala. Em primeiro lugar, o fato de a partida ter sido televisionada ao vivo
pelas emissoras Globo, Bandeirantes e ESPN Brasil47 exponenciou o público atingido pelas
imagens e notícias do confronto para além do público típico do âmbito futebolístico,
conforme narram LOPES e BUARQUE DE HOLLANDA (2007). A gravação das cenas de
violência propiciou ainda uma maior repercussão do caso em programas televisivos, com a
repetição das cenas agressivas com propósito de choque.

Nesse sentido, a cobertura da imprensa transformou o enfrentamento dos torcedores


em uma verdadeira “batalha campal”, equiparando

Outro fator que catalisou a repercussão pública do evento foi ele ter ocorrido dentro de
uma partida de futebol de juniores. Como explica Luiz Henrique de Toledo, a expectativa
para uma partida dessa categoria era de uma rivalidade mitigada em razão da pouca
importância normalmente atribuída:

A partida era uma final de campeonato de juniores21 entre São Paulo Futebol Clube
e Sociedade Esportiva Palmeiras e [...] este também revestia-se de pouca
importância se comparado às pelejas acirradas que marcam e instilam animosidades
na cidade, desde as primeiras décadas deste século, entre os grandes times
profissionais. Se não fosse pelos fatídicos acontecimentos ambos os jogos aqui em
questão ficariam confinados às estatísticas esportivas

46
Informações dos parágrafos acima colhidas de matérias veiculadas no jornal Folha de S.Paulo, São Paulo, 21
ago. 1995.
47
Programação de Rádio e TV. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-2, 20 agosto 1995
33
Essa foi também justificativa para um dos erros cometidos pela organização e pelo
Poder Público, ao menos na visão da cobertura midiática do evento, que permitiram que o
incidente tomasse as proporções finais: a falta de policiamento adequado para uma partida.
Segundo as informações à época fornecidas por um major da Polícia Militar, o efetivo de
policiais no estádio era de apenas 65 (sessenta e cinco) enquanto o público variava entre 6.000
(seis mil) e 7.000 (sete mil). Embora o mesmo afirmasse que esse contingente era o padrão
para eventos futebolísticos com até 10.000 (dez mil) pessoas, cobrou-se que o evento deveria
ter tido um maior contingente em razão da rivalidade conhecida entre as agremiações
esportivas.

Outro erro crucial que permitiu o episódio alcançar as proporções mencionadas foi a
realização da partida no estádio do Pacaembu, já que este se encontrava com setores em obra.
A disponibilidade de materiais de construção misturados com entulho permitiu que ambos os
grupos de torcedores tivessem acesso a paus, pedras, vergalhões e outros para serem usados
como armas improvisadas por ambos os grupos de torcedores, o que aumentou a
periculosidade do episódio. Conforme destacado pela cobertura da Folha de S. Paulo “não
havia ninguém para impedir que o entulho fosse utilizado como arsenal”48.

A manutenção do jogo no estádio mesmo diante das condições precárias do Pacaembu


foi objeto de uma troca de acusações entre organizadores e membros do Poder Público
paulistano. O administrador do estádio e o diretor do CONTRU - Departamento do Controle
do Uso de Imóveis trocaram acusações acerca da responsabilidade pela retirada do entulho e
culpabilizaram a Secretaria de Esportes pela falta de definição do responsável. O órgão
rebateu afirmando que isso seria de responsabilidade da Secretaria de Obras e Serviços
Públicos, a qual novamente evadiu a responsabilidade afirmando que o estádio deveria estar
interditado e que era papel da Secretaria de Esportes impedir a realização do jogo.49

Embora tenha ocorrido uma série de irregularidades e omissões do Poder Público que
contribuíram para o resultado final, o único responsabilizado pelo ocorrido foi Adalberto B.
dos Santos, torcedor identificado como responsável pelo homicídio de Márcio G. da Silva.
Preso preventivamente sobre a justificativa de “clamor popular”, conforme descrito por
TOLEDO (1997), foi denunciado por homicídio triplamente qualificado e condenado a 12
(doze) anos de prisão em 1998.

48
TORCEDORES BRIGAM EM JOGO DE JUNIORES E ADIAM A ESTREIA DO CORINTHIANS NO
BRASILEIRO. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
49
Ver matérias publicadas na edição da Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
34
Indiretamente foram também responsabilizadas as torcidas organizadas de ambos os
clubes. Identificadas como responsáveis pelo ocorrido, ainda que o evento tenha contado com
a participação de torcedores não organizados como o próprio Adalberto, os grêmios sofreriam
as punições. Já no dia seguinte ao enfrentamento, repercutia nos jornais a proposta feita pela
presidência da Federação Paulista de Futebol-FPF para que torcedores fossem proibidos de
entrar nos estádios vestindo uniformes de torcidas organizadas. A justificativa dessa proposta
seria que os uniformes “estimulam nos componentes das organizadas um sentimento de
violência”. Além dessa proposta, o presidente da FPF, Rubens Approbato Machado, sugeria já
que o Ministério Público deveria extinguir certas torcidas organizadas identificadas afirmando
que “várias têm conformação paramilitar e demonstram a finalidade ilícita de promover a
desordem”.

Dentro das manifestações públicas, destacou-se a do então Ministro dos Esportes


Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, que igualmente afirmou a responsabilidade das
torcidas organizadas pela tragédia em entrevista concedida ao Jornal O Globo poucos dias
após a tragédia:

– Fiquei indignado ao ver repetidas vezes nas emissoras americanas as lamentáveis


cenas do Pacaembu, em que 102 pessoas ficaram feridas – disse Pelé ao GLOBO
por telefone, ontem. – Aquelas pessoas não podem ser tratadas como torcedores e
sim como vândalos que, nesse caso, merecem ser tratadas com o rigor da lei.

Outra solicitação de Pelé ao ministro da Justiça será o reestudo das leis vigentes para
tratar com mais rigor os torcedores. Um exemplo: considerar os chefes de torcidas
cúmplices e, assim, serem também intimados judicialmente.

– Eles devem ser responsabilizados porque são os líderes das torcidas organizadas –
disse Pelé. – O pior é que eles têm como aliados os próprios dirigentes de clubes,
que incentivam os seus deslocamentos intermunicipais e interestaduais e lhes dão
ingresso de cortesia50

A repercussão não se limitou aos órgãos responsáveis pelo futebol, mas promoveu
verdadeira comoção nacional. Como destaca BUARQUE DE HOLLANDA, o incidente teve
uma repercussão equiparável com a tragédia de Heysel, evento ocorrido na final da Liga dos
Campeões de 1985 entre Liverpool e Juventus, em que 39 pessoas morreram em decorrência
de uma briga entre os hooligans de Liverpool e os ultras da Juventus que proporcionou um
acúmulo de pressão e o colapso do alambrado. Esse episódio marcou diversas mudanças no

50
Acervo Digital Jornal O Globo, 23 de agosto de 1995, Matutina, Esportes, Página 36. Apud SILVA, Juliana
Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça Rubro-Negra
durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da Silva. -- Rio de
Janeiro, 2021. P. 156
35
futebol europeu e colocou um maior investimento das autoridades europeias na questão da
violência no esporte.

Dessa forma, o assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas da Silva em 1988 e o


enfrentamento dos torcedores de São Paulo e Palmeiras em 1995, marcam uma primeira fase
do processo de transformação das atividades de torcidas organizadas e da estigmatização de
seus membros que resultaria em uma intensificação do processo de criminalização e seu
direcionamento como inimigos a partir de 1995.

4.2 (1995-2003) REAÇÃO PÚBLICA E CRIMINALIZAÇÃO


Conforme já pincelado no item anterior, os impactos da chamada Batalha do
Pacaembu simbolizaram a conclusão da transformação do tratamento midiático dado aos
torcedores organizados e a sua inserção enquanto uma questão de segurança pública, o que
resultou em medidas de cunho punitivista por parte do Poder Público paulista.

A repercussão imediata do fato no jornalismo esportivo já indicava a consolidação do


tratamento negativo que seria dispendido a esses grupos, alçados a condição de responsáveis
pelo ocorrido. Já na primeira edição posterior ao fato jornalistas esportivos do jornal Folha de
S. Paulo criticavam as torcidas organizadas como perpetuadoras da violência, utilizando–se de
uma ótica de análise calcada nas divisões de classe.

Em seu artigo Alberto Helena Jr. expõe o que acredita ser a raiz da violência dos
torcedores organizados a quem imputa a responsabilidade pelos atos praticados, o ódio a
própria miséria:

Quem são esses marginais que vestem as camisas das torcidas uniformizadas como
armaduras e vão para os estádios não mais em busca de um fugaz momento de
vitória nas suas vidas feitas de derrotas no dia-a-dia, de gerações a gerações, mas
sim para extravasar a revolta do eterno derrotado? São jovens, alguns meninos
ainda, pobres, vindos das bordas da cidade grande, das beiradas do consumo que a
TV lhe martela à toda hora, do tênis importado ao comportamento igualmente
importado dos marginais do Primeiro Mundo.

São grunges de Itaquera, Capela do Socorro, Sapopemba, Osasco, Guarulhos, a orla


da miséria que cerca e aos poucos vai sufocando os bolsões de riqueza acuados nas
zonas sul e oeste da metrópole.51

Por sua vez Juca Kfouri novamente associa os eventos da Batalha do Pacaembu com
os torcedores organizados e, embora ressalve que nem todos esses são das camadas mais

51
ISSO NÃO É BOSSA NOVA, NEM É MUITO NATURAL. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
36
pobres da sociedade, identifica como solução para a violência nos estádios a elevação do
preço dos ingressos, descrevendo ainda o ocorrido como:

Já que ninguém é punido, já que os responsáveis pelas torcidas organizadas


continuam livres por aí, alguns até desfilando sua ignorância pelos meios de
comunicação como se fossem porta-vozes dos torcedores, a única solução é cobrar
mais caro, é selecionar pelo bolso e tornar o futebol um espetáculo para quem pode
pagar pela diversão, não pela guerra que mobiliza os marginais.
Marginais, diga-se, de todas as classes, porque tem muito filhinho da classe média
abrigado sob o manto covarde das organizadas. Mas o grosso é composto pelos
deserdados financiados pela própria cartolagem dos clubes, massa de manobra
imbecil das jogadas políticas internas.52

Na mesma matéria, o jornalista reconhece a falha das autoridades públicas em não


retirar os restos de materiais de construção do estádio e em não disponibilizar um efetivo
policial adequado, porém insiste em atribuir a culpa do ocorrido aos torcedores mais pobres
afirmando que “Pacaembu em reforma, cheio de pedras e de paus, vazio de policiais, um
convite explícito à selvageria do lumpesinato”.

Nesse mesmo sentido, o jornal O Globo publicou uma matéria no dia 27 de agosto de
1995 em que buscava destrinchar a cultura dos torcedores organizados denominada como
“cultura da violência”. Nela, o professor Dr. Waldenyr Caldas destrinchava os detalhes das
práticas e representações culturais desses grupos:

As torcidas organizadas paulistas, as mais violentas do país, já não se contentam em


resolver suas diferenças nas arquibancadas. Sedenta de vingança, a Mancha Verde,
do Palmeiras, e a Independente, do São Paulo, desceram até o gramado do
Pacaembu, domingo passado, e travaram uma verdadeira batalha que deixou o
estudante Márcio Gasparim da Silva, de 15 anos, entre a morte e a invalidez. Ele foi
a vítima mais recente de uma guerra que, desde 1992, já matou oito pessoas e
mutilou seis em São Paulo.

– O objetivo das torcidas organizadas é conquistar território e agredir os adversários


– diz o major Silvio Roberto Villar Dias, subcomandante do 2º Batalhão de Choque
da Polícia Militar, responsável pelo policiamento nos estádios da capital.

Num ritual que realimenta a própria violência, as torcidas organizadas crescem,


encontram seu espaço e passam a ser respeitadas pelas demais quanto mais
agressivas forem. Para as mais aguerridas, a surra é o batismo. Os jovens que viajam
pela primeira vez para acompanhar seus times são obrigados a apanhar sem
reclamar. Os mais resistentes são valorizados e abrem caminho para subir no grupo.
A força bruta é o critério para chegar à liderança 53

52
A VIOLÊNCIA BARATA. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago. 1995.
53
Acervo Digital Jornal O Globo, 27 de agosto de 1995, Matutina, Esportes, Página 56. Apud SILVA, Juliana
Nascimento da. Da festa à guerra?: a construção da representação da torcida organizada Raça Rubro-Negra
durante o processo de modernização do futebol brasileiro (1987 1998) / Juliana Nascimento da Silva. -- Rio de
Janeiro, 2021. P. 159
37
Conforme expõe SILVA (2021) ao analisar o discurso da matéria em questão, é
explorada a ideia de “degradação dos valores mínimos de civilidade” como uma das possíveis
causa para o comportamento agressivo das torcidas organizadas.

O enfoque e o exagero promovido pelos jornais para as práticas violentas de


torcedores organizados não se limitavam apenas aos textos. Como explica TORO (2004) em
sua dissertação que analisou notícias da Folha de S. Paulo entre os anos de 1970 e 2004, as
fotografias buscavam registrar os momentos mais dramáticos das disputas entre grêmios de
torcedores e privilegiavam as fotos que retratassem maior violência. Essas imagens eram
ainda exibidas em uma sequência narrativa dos fatos.

A cobertura dada pela Folha de S. Paulo à violência no futebol e as torcidas


organizadas era tão constante que o jornal possuía até mesmo um ícone próprio que por vezes
era utilizado para identificar matérias sobre o tópico, como pode ser visto abaixo em matéria
tratando das repercussões da Batalha do Pacaembu54:

54
TORCEDORA É INDICIADA NO CASO PACAEMBU. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 13 set. 1995.
38
Essas práticas dos noticiários esportivos buscavam não apenas modificar a percepção
pública acerca das torcidas organizadas, mas também apresentar o ponto de vista de seus
jornalistas enquanto um consenso do público torcedor. Nesse sentido, a pesquisa de TORO
(2004) identificou uma tendência do jornal Folha de S. Paulo de colocar-se em um papel de
porta voz da vontade da torcida, de intérprete de suas vontades e desejo.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a constante retratação desses agrupamentos afetou
diretamente a opinião pública, visto que como exposto por SILVA (2021):

O que é veiculado na mídia, por conseguinte, se traduz na produção de uma nova


cultura alicerçada em novas recepções e percepções que, por vezes, são atravessadas
pelo reforço de determinadas perspectivas. No que tange as torcidas organizadas, a
abordagem das agremiações pelos meios de comunicação tem um alcance muito
potente no que concerne suas recepções na sociedade mais ampla, uma vez que
promovem uma influência sólida, ainda que não determinante.

Isso pode ser observado pela enquete publicada apenas três dias após o incidente no
Pacaembu em 1995, em que se questionava a população paulista seu posicionamento acerca
da proibição de torcidas organizadas55. O resultado apontava que 64% dos paulistanos seriam
favoráveis a dissolução dessas agremiações, no entanto a enquete foi realizada logo após um
evento violento, cujas imagens haviam sido intensamente veiculadas por todos os veículos
jornalísticos, incluindo a própria Folha.

Os esforços jornalísticos renderam frutos e diferentes medidas seriam tomadas tanto


por órgãos de organização do futebol, quanto pelos representantes do Poder Público, tanto em
resposta imediata ao ocorrido em 1995, quanto em medidas posteriores de longo alcance e
maior amplitude.

A primeira delas, já comentada foi adotada pela Federação Paulista de Futebol que
proibiu a entrada no estádio de espectadores que portassem qualquer adereço ou objeto que
tornasse possível a identificação enquanto membro de uma torcida organizada. Essa decisão
teria sido tomada com base em um relatório elaborado por oficiais da Polícia Militar Paulista
que indicava os uniformes como elemento estimulante de sensações de poder e anonimato no
torcedor violento56.

Essa medida basicamente impedia a atuação das torcidas organizadas de sua atividade
essencial, sua razão de existência: torcer. Essa medida durou até a virada do século. É um
55
Apud. TORO, Camilo Aguilera. O espectador como espetáculo: notícias das Torcidas Organizadas na Folha de
S. Paulo (1970-2004). 2004. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004
56
CAMISETAS JÁ ESTÃO BANIDAS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 25 ago. 1995.
39
exercício intelectual interessante questionar os efeitos dessa medida nas ações das torcidas
organizadas, se ao impedir que as torcidas organizadas exercessem sua principal atividade,
essa decisão não teria estimulado essas agremiações a se focarem nos enfrentamentos como
forma de se manterem ativas.

Para a aplicação dessa proibição, outra medida adotada foi a expansão do contingente
policial nos jogos que se seguiram. De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, a Polícia
Militar preparava uma “superblitz” nos estádios e nos jogos disputados São Paulo x Atlético-
MG e Palmeiras x Goiás foram alocados ao todo cerca de 500 homens, com cada jogo
recebendo um contingente de polícias militares equivalente ao dobro do usualmente alocado
em clássicos57.

Outra medida adotada logo após o ocorrido, foi uma solicitação feita pela Polícia
Militar paulista para que fossem suspensas as vendas de bebidas alcoólicas dentro dos
estádios do Morumbi e do Parque Antártica58.

Curiosamente, essas medidas, adotadas inicialmente com um caráter temporário


seriam posteriormente incorporadas enquanto normas nos estádios de futebol paulistas. Essa
correlação pode indicar que as medidas de longo prazo instituídas posteriormente ao episódio
não foram resultado de um maior debate político e social, mas sim a adoção de medidas que
deveriam ser temporárias como permanentes.

Para além das ações públicas adotadas em tom emergencial para evitar que a tragédia
se repetisse nos dias seguintes, certas iniciativas de diferentes setores do Poder Público
possuíam um nítido caráter punitivo contra as torcidas organizadas, identificadas como
culpadas pelo ocorrido.

Apenas três dias após a tragédia, a Folha de S. Paulo já noticiava os planos da Polícia
Militar para realizar um “arrastão” nas torcidas organizadas, realizando visitas surpresas a
sede dessas agremiações59. De acordo com a matéria, esse planejamento teria sido motivado
por uma ligação anônima de um ex-integrante da Mancha Verde relatando que atos de
vandalismo eram praticados dentro da sede.

57
PM PREPARA SUPERBLITZ NOS ESTÁDIOS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 26 ago. 1995
58
VENDA DE ALCOOL É SUSPENSA. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 26 ago. 1995
59
POLÍCIA IDENTIFICA ‟BADERNEIROS„ E PLANEJA ARRASTÃO NAS ORGANIZADAS. Folha de
S.Paulo, 4-1, São Paulo, 23 ago. 1995
40
Os posicionamentos expostos pela Polícia Militar nessa mesma matéria corroboram a
noção de que o objetivo dessas medidas não era apenas o de apurar o ocorrido no confronto
do dia 20 de agosto de 1995, mas sim aproveitar-se do ocorrido visando extinguir as torcidas
organizadas:

A PM pretende aproveitar “o momento de mobilização” para aprovar um estudo


elaborado em junho visando, entre outras coisas, o fim das torcidas organizadas. [...]
Com o apoio da Federação Paulista de Futebol, a polícia vai sugerir que o Ministério
Público averigue se as torcidas funcionam como entidades paramilitares, com a
função de provocar desordens. Caso isso se confirme, as uniformizadas podem ser
processadas por formação de quadrilha – abrindo brecha no Código Penal para seu
fechamento.

Como descrito por TORO (2004), essas “blitzs” foram realizadas nas sedes das
torcidas Mancha Verde e Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP), ligadas ao Palmeiras e
Independente e Dragões da Real, associadas ao São Paulo. Nelas, foram apreendidos os
cadastros de sócios, registros contábeis e equipamentos de informática. Esses materiais seriam
utilizados nas investigações contra esses agrupamentos.

O Ministério Público de São Paulo seguiria a tese apresentada pela Polícia Militar na
matéria acima e já em 06 de setembro de 1995 a Promotoria de Justiça da Cidadania impetrou
uma ação cível requerendo a dissolução da Mancha Verde60. A tese jurídica que
fundamentava a ação era de que a Mancha estaria desvirtuando as atividades previstas em seu
estatuto ao praticar atos ilícitos.

A partir desse pedido, ganha destaque aquele que seria um dos principais nomes no
esforço de desarticular e reprimir as torcidas organizadas: O então promotor de Justiça
Fernando Capez. Dentro dos sete promotores que subscreveram a ação contra a Mancha
Verde, Capez tinha um aparente destaque, visto que era ele quem concedia entrevistas e
tratava diretamente com a imprensa.

As ações do então promotor não apenas prejudicariam materialmente as agremiações


de torcedores, como também reforçaria ainda mais a estigmatizarão que já era promovida
pelos jornais:

Esse promotor, na função de representante da sociedade na justiça, chamou


publicamente a atenção de outros órgãos e responsáveis pelas forças das leis e da
ordem para o problema de forma que, com o exagero e a extensão do mal relatado na
publicidade, houve uma disseminação alarmante do rótulo de desviantes, de

60
MINISTÉRIO PÚBLICO PEDE O FIM DA TORCIDA ORGANZIZADA MANCHA VERDE. Folha de
S.Paulo, 4-5, São Paulo, 07 set. 1995
41
criminosos, bandidos e assassinos para os indivíduos que são filiados às agremiações
organizadas.61

Nos autos desse processo, a 40ª Vara Cível da Capital proferiu, a pedido do Ministério
Público, decisão liminar determinando a suspensão das atividades da Mancha Verde até a
conclusão da ação. Com isso, foram paralisadas todas as iniciativas da organização, suas
sedes e subsedes foram fechadas e suas contas bloqueadas62.

Igualmente, foi impetrada em 19 de setembro de 1995 ação requerendo a dissolução da


Independente nos mesmos termos da ação contra a Mancha. A suspensão de atividades desse
grêmio veio por decisão liminar da 20ª Vara Cível da Capital proferida no dia 20 de setembro
de 202363.

Ainda que essas medidas já houvessem penalizado as principais torcidas organizadas


que estariam envolvidas na chamada Batalha do Pacaembu, o Ministério Público não
intencionava se limitar a elas e, segundo teria sido dito a Folha pelo promotor Capez no
mesmo dia da ação contra a Torcida Independente, uma nova torcida organizada já estava sob
investigação e, embora não tenha revelado o nome, afirmou que ela não necessariamente tinha
relação com o ocorrido no Pacaembu. A matéria já especulava tratar-se da Gaviões da Fiel,
torcida organizada do Corinthians.

Não era segredo que o objetivo do Ministério Público, por meio da Promotoria de
Justiça da Cidadania, era que fossem impetradas ações requerendo a extinção de todas as
torcidas organizadas que tivessem algum envolvimento em casos de violência, como o próprio
Capez afirmou à Folha de S. Paulo colocando ainda a meta de que as ações fossem impetradas
até o fim do mês de setembro de 199564. Embora não tenha sido impetrada outras ações nesse
mesmo sentido naquele ano, a intenção de investigar e penalizar as torcidas organizadas
permanecia clara.

Em menos de um ano, no dia 31 de maio de 1996, ambas as ações foram julgadas em


1ºgrau. A sentença do processo da Mancha Verde concluiu pela extinção da organização nos
termos propostos pela Promotoria. Um dos principais argumentos para essa decisão teria sido
"a participação dos dirigentes na instigação dos associados e a participação efetiva deles nos
atos de violência" de acordo com entrevista posterior concedida por Fernando Capez à Folha

61
LADEIRA. Flávia Toledo. A criminalização das torcidas organizadas de futebol. 2009. 112f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) -Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.
62
JUSTIÇA FECHA PRIMEIRA UNIFORMIZADA. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 12 set. 1995
63
JUSTIÇA DECIDE FECHAR TORCIDA INDEPENDENTE. Folha de S.Paulo, 4-4, São Paulo, 21 set. 1995
64
JUSTIÇA PEDE FIM DE TORCIDAS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 13 set. 1995
42
de S. Paulo65. A sentença do processo contra a Torcida Independente concluiu pela ausência
de evidências suficientes para que a organizada fosse banida66.

Contudo, em 11 de agosto de 1998 a sentença que manteve as operações da


Independente foi revista pelo Tribunal de Justiça de São Paulo após apelação do Ministério
Público e a agremiação foi extinta67. A Mancha Verde também apelou da decisão de extinção,
porém não obteve sucesso68.

Antes mesmo do julgamento dessas apelações em 1998, o Ministério Público de São


Paulo já havia impetrado uma nova ação visando a dissolução de uma torcida organizada,
dessa vez a Gaviões da Fiel, maior torcida organizada paulista que na época tinha 58.000
(cinquenta e oito mil) sócios. O pedido foi feito pela Promotoria de Justiça da Cidadania em
17 de novembro de 1997 após episódio em que torcedores corintianos teriam jogado pedras
no ônibus do time durante uma emboscada na Rodovia Imigrantes69. Apenas dois dias depois
o juízo da 13ª Vara Cível da Capital já determinou a suspensão das atividades.

Ainda que, ao contrário das demais organizadas paulistas, a Gaviões da Fiel não tenha
sido efetivamente extinta, a suspensão temporária de suas atividades marcou um momento em
que o ataque dos órgãos do poder público contra as terceiras principais torcidas organizadas
paulistas conseguiu inviabilizar as atividades dessas organizações. A Mancha Verde seria
refundada em dezembro de 199770 e a Torcida Independente refundada em retomada em
agosto de 199971 e ambas retomariam suas atividades, porém a criminalização secundária de
seus membros permaneceria.

Essas medidas administrativas contra as agremiações e a perseguição penal de seus


membros não foram os únicos resultados desse processo. Em 27 de dezembro de 1996, foi
editada a Lei estadual n° 9.470/96. Essa lei visava estabelecer uma disciplina nos estádios de
futebol, ginásios de esportes e estabelecimentos congêneres e trazia duas disposições centrais
que afetavam as atividades dos torcedores.
65
PALMEIRENSES RECRIAM A MANCHA VERDE. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 dez. 1997. Disponível
em < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/27/esporte/4.html >. Aceso em 08.09.2023
66
JUSTIÇA EXTINGUE A MANCHA VERDE. Folha de S.Paulo, Esporte-11, São Paulo, 01 jun. 1996
67
TORCIDA INDEPENDENTE É EXTINTA. Folha de S.Paulo, São Paulo, 12 ago. 1998.
68
TJ MANTÉM MANCHA VERDE EXTINTA. Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 mar. 1998. Disponível em <
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk18039804.htm >. Acesso em 15.09.2023
69
PROMOTOR PEDE A EXTINÇÃO DA GAVIÕES Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 nov. 1997. Disponível
em < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk181101.htm >. Acesso em 15.09.2023
70
PALMEIRENSES RECRIARAM A MANCHA VERDE São Paulo, 27 dez. 1997. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/27/esporte/4.html>. Acesso em 19.09.2023
71
EXTINTA, INDEPENDENTE DRIBLA JUSTIÇA São Paulo, 13 ago. 1999. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/12/27/esporte/4.html>. Acesso em 19.09.2023
43
A primeira era a disposição do art. 1°:

Artigo 1.º - É obrigatória em todos os estádios de futebol, ginásios de esportes e


demais estabelecimentos congêneres do Estado de São Paulo a manutenção de toda a
lotação com lugares numerados72.

Essa disposição visava atribuir uma ordem dentro das arquibancadas, permitindo
identificar o local em que cada pessoa deveria estar. Contundo a principal previsão que
afetaria torcedor era a do art 5°:

Artigo 5.º - Nos estádios de futebol e ginásios de esportes mencionados no Artigo


1.° ficam proibidas a venda, a distribuição ou utilização de:
I - bebidas alcoólicas;
II - fogos de artifício de qualquer natureza;
III - hastes ou suportes de bandeiras; e
IV - copos e garrafas de vidro e bebidas acondicionadas em lata73.

As restrições desse artigo afetavam severamente os comportamentos desenvolvidos


nas arquibancadas. Os fogos de artifício e as bandeiras de mastro eram elementos comuns
utilizados pelos torcedores, sobretudo organizados, mas também torcedores comuns, para
realização do “espetáculo”. As bebidas alcoólicas eram de consumo comum entre torcedores,
associado ao momento de lazer que era assistir um jogo de futebol.

Com isso, embora os discursos defendessem a penalização e as perseguições aos


torcedores organizados e essas medidas fossem ao menos em tese direcionadas as torcidas
organizadas ou aos torcedores violentos, porém elas afetavam a totalidade dos torcedores de
futebol e as experiências que esses teriam.

Outra novidade normativa veio com o Estatuto do Torcedor em 2003. Essa lei federal
disciplinava em larga medida as relações entre torcedores, clubes e federações, focando
sobretudo em normas de direito do consumidor. Porém trazia uma penalização a torcedores
que incitassem a violência ou promovessem tumulto:

Art. 39. O torcedor que promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir
local restrito aos competidores ficará impedido de comparecer às proximidades, bem
como a qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de três meses a

72
SÃO PAULO. Lei Nº 9.470, de 27 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a manutenção de toda a lotação com
lugares numerados nos estádios de futebol, ginásios de esportes e estabelecimentos congêneres. São Paulo:
Assembleia Legislativa. Disponível em < https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1996/lei-9470-
27.12.1996.html > Acesso em 19.09.2023
73
Ibid
44
um ano, de acordo com a gravidade da conduta, sem prejuízo das demais sanções
cabíveis.
§ 1º Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que promover tumulto, praticar ou
incitar a violência num raio de cinco mil metros ao redor do local de realização do
evento esportivo.
§ 2º A verificação do mau torcedor deverá ser feita pela sua conduta no evento
esportivo ou por Boletins de Ocorrências Policiais lavrados.
§ 3º A apenação se dará por sentença dos juizados especiais criminais e deverá ser
provocada pelo Ministério Público, pela polícia judiciária, por qualquer autoridade,
pelo mando do evento esportivo ou por qualquer torcedor partícipe, mediante
representação74.

Essa previsão representava uma previsão legal a ser aplicada pelos órgãos do sistema
penal e que implicava em uma medida de afastamento do torcedor dos ambientes do futebol
profissional, contudo não se limitava ao mau comportamento no estádio, mas também em
uma área de 5km ao redor. Embora não represente uma pena própria, era uma previsão
acessória das normas penais.

Foi esse o marco final do período considerado. No entanto é interessante trazermos as


previsões inseridas no Estatuto do Torcedor na reforma promovida pela Lei 12.299/10 que foi
especialmente direcionada contra a violência nos estádios. Dentre as diversas provisões que
incluíam a obrigação de registro das torcidas organizadas, a possibilidade de banimento delas
nos estádios, a responsabilidade civil objetiva e solidária pelos danos causados por seus
membros, destaca-se a criação de um crime próprio referente a prática de tumultos ou
incitação de violência nos estádios:

Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito
aos competidores em eventos esportivos:

Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.

§ 1o Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que:

I - promover tumulto, praticar ou incitar a violência num raio de 5.000 (cinco mil)
metros ao redor do local de realização do evento esportivo, ou durante o trajeto de
ida e volta do local da realização do evento;

74
BRASIL. Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e dá outras
providências. Diário Oficial da União - Seção 1 - Página 1. 16 mai. 2003

45
II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu
trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que
possam servir para a prática de violência.

§ 2o Na sentença penal condenatória, o juiz deverá converter a pena de reclusão em


pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a
qualquer local em que se realize evento esportivo, pelo prazo de 3 (três) meses a 3
(três) anos, de acordo com a gravidade da conduta, na hipótese de o agente ser
primário, ter bons antecedentes e não ter sido punido anteriormente pela prática de
condutas previstas neste artigo.

§ 3o A pena impeditiva de comparecimento às proximidades do estádio, bem como a


qualquer local em que se realize evento esportivo, converter-se-á em privativa de
liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta.

§ 4o Na conversão de pena prevista no § 2o, a sentença deverá determinar, ainda, a


obrigatoriedade suplementar de o agente permanecer em estabelecimento indicado
pelo juiz, no período compreendido entre as 2 (duas) horas antecedentes e as 2
(duas) horas posteriores à realização de partidas de entidade de prática desportiva ou
de competição determinada.

§ 5o Na hipótese de o representante do Ministério Público propor aplicação da pena


restritiva de direito prevista no art. 76 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, o
juiz aplicará a sanção prevista no § 2o.‟

Ressalvado esse salto temporal, foram essas os principais marcos no processo de


criminalização das torcidas organizadas. Ao longo de todos os anos expostos, os membros
dessas agremiações foram estigmatizados e selecionados pelas autoridades policiais, sofrendo
um processo de criminalização significativo.

5 CRIMINOLOGIA

Com vistas a analisar o processo sofrido pelas agremiações de torcedores paulistas na


década de 90, o presente trabalho parte sobretudo dos referenciais teóricos fornecidos pela
criminologia crítica em sua vertente radical, partindo aqui da configuração temática fornecida
por Juarez Cirino dos Santos75. Essa vertente foi a aplicada diante do foco que o presente
trabalho deseja privilegiar na criminalização das torcidas organizadas paulistas, qual seja a

75
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia Radical/ Juarez Cirino dos Santos – 4. ed. Florianóplis. Tirant Lo
Blanch, 2018.
46
forma como esses processos foram influenciados e conduzidos pelas relações econômicas e
sociais para que resultassem na perseguição dos referidos grupos.

Além das perspectivas teóricas da criminologia radical, serão apresentados também


elementos da teoria da rotulação que, embora possua limitações epistemológicas para a
explicação do fenômeno da criminalização como um todo, foram considerados interessantes
de serem apresentados e aplicados no presente caso, especialmente pela qualidade da
demonstração da construção do estigma de desviante dentro de uma sociedade e a forma
como esse afastamento social implica em uma criminalização. As considerações desse campo
teórico serão temperadas e complementadas por considerações da criminologia crítica com a
exposição das correlações materiais entre a atribuição do “bem negativo da criminalidade” e
as relações de produção.

Esse instrumental teórico foi privilegiado em oposição a uma visão da criminologia da


cultura por um entendimento de que o processo de criminalização das torcidas organizadas
não ocorreu por uma diferença cultural desses grupos que, ao formarem uma subcultura
transgressora que interagiria simbolicamente com os referenciais da cultura geral resultando
em um enfrentamento e a proibição da cultura desviante.

Pelo contrário, parte-se da hipótese que o fator essencial para a perseguição a esses
grupos partiu de aspectos materiais e econômicos, incluindo a inserção de seus membros nas
camadas populacionais mais pobres, e não propriamente por sua produção cultural, ainda que
esses grupos possam ser identificados como grupos culturais.

Assim, adota-se a perspectiva marxista pela qual as relações econômicas de produção


modificam e determinam as estruturas políticas e judiciárias, modificando com isso as formas
de punição de uma sociedade, como brilhantemente demonstrado por Georg Rusche e Otto
Kirchheimer na obra “Punição e Estrutura Social”.

Com isso, o texto parte da identificação de três categorias centrais para o entendimento
dos eventos previamente descritos: O inimigo enquanto conceito orientador daqueles que
serão submetido ao processo de criminalização, partindo em um primeiro momento das
elaborações de Jakobs acerca do Direito Penal do Inimigo e apoiando-nos nas elaborações
teóricas críticas de Eugênio Raul Zaffaroni acerca do conceito jakobiano; a formação do
estigma contra essas agremiações esportivas, aqui emprestando as considerações do labelling
aproach, desde já limitando-as a uma explicação criminológica de médio alcance, que

47
orientam o exercício do poder punitivo na criminalização secundária, auxiliado em sua
propagaçãopelo aparelho midático; e o processo de criminalização compreendido pela
produção normativa e pela aplicação do poder punitivo estatal dentro de uma estrutura
altamente seletiva orientada por critérios de classe, que geram uma aplicação majoritária
contra os marginalizados e excluídos.

Utilizando-se essas categoriais centrais, pretende-se abordar o material fático trazido


nos capítulos anteriores em duas perspectivas centrais. Em primeiro lugar, entender como as
perseguições ocorridas contra os grêmios de torcedores organizados ocorreram em suas
particularidades específicas, interpretando-se esses fatos históricos perante um processo de
seletividade penal e punição de uma macrossociologia, isso é, utilizando a descrição dos
eventos sociais particulares para a identificação de um padrão de comportamento das
estruturas punitivas dentro das relações específicas do futebol profissional, de seus torcedores
e de sua inserção social que seja congruente com o padrão geral de criminalização descrito
pela maior parte dos autores abordados. Em seguida compreender como esse fenômeno
específico insere-se no fenômeno social complexo da criminalização dentro da sociedade
brasileira, que possuí seus próprios determinantes, em que medida o específico contribuí para
o geral.

É nesse primeiro horizonte de análise que será utilizada com maior intensidade a
primeira categoria, inimigo, já que sua aplicação no caso analisado é mais relevante no
esforço de entendermos as particularidades desse e como esse processo micro é análogo ao
processo macro. Embora tenha um papel no entendimento do processo geral em que se insere
o processo particular, esse papel fica diluído por outras categoriais mais relevantes.

Isso porque sua aplicação ao caso concreto analisado necessita de uma


contextualização exposta enquanto analogia, visto que a identificação dos torcedores
organizados enquanto inimigos perseguidos pelo Estado, ainda que possa ser considerado um
entendimento válido, ocorre de uma forma menos direta (direcionamento específico a esses
grupos) e menos intensa (grau de perseguição) do que os casos mais usualmente identificados
pela doutrina (terroristas, membros de organizações criminosas, entre outros). As torcidas
organizadas não podem ser compreendidas como um dos principais inimigos no todo da
estrutura social, porém são claramente os inimigos no âmbito específico do futebol e nas
ações que o poder punitivo toma nesse âmbito.

48
As demais categoriais apresentadas, o processo de criminalização e o estigma, tem
papel central em ambos os horizontes, já que por seu caráter mais abrangente são necessários
para a compreensão dos processos micro e macro apresentados e como eles se relacionam.

O estigma já que, dentro das elaborações do labeling approach, os critérios de seleção


dos comportamentos desviantes gerados por uma cultura geral, os quais nessa teorização
muitas vezes possuem uma descrição insuficiente da definição desse conteúdo, são bem
aplicáveis em razão de um aspecto cultural e estimulado pelos meios de comunicação
relevante que influenciou na seleção desses indivíduos para sofrerem com a criminalização
secundária. Nesse sentido, a hipótese de que a rotulação de delinquência imputada a um
indivíduo passa a influenciar suas ações futuras é também uma hipótese teórica que parece
útil a compreensão dos fenômenos previamente descritos.

Já o processo de criminalização é utilizado no presente trabalho, visto ser o objeto


central de toda a criminologia que se pretenda crítica, e abarca tanto as especificidades que
compõe o processo próprio referente penalização das torcidas organizadas, quanto ao
processo social geral em que é inserido o particular. Assim, entender como a seletividade do
poder punitivo age contra esses determinados indivíduos tanto nas especificidades aplicadas
contra essas organizações, quanto nas condutas genéricas que também sofrem perseguições, é
crucial essa categoria. Nesse contexo, terá um papel destacado a modalidade da
criminalização secundária, aquela efetivamente realizada pelas agências de controle e que é
orientado pela estrutura social, que orienta o exercício do poder punitivo, seja no processo
específico ou no processo geral.

Com a exposição desses conceitos teóricos, será formado um instrumental capaz de


auxiliar na compreensão de como os eventos descritos significaram um processo de
criminalização das torcidas organizadas paulistas, como esse processo se operou, bem como
suas condições e consequências.

5.1 O INIMIGO

5.1.1 JAKOBS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO

O conceito de inimigo no Direito Penal moderno é introduzido pelo professor Gunther


Jakobs, catedrático da Universidade de Bonn que, no ano de 1985, realizou uma palestra em

49
que analisava disposições normativas do “Strafgesetzbuch” o Código Penal da República
Federal da Alemanha identificou um conjunto de previsões normativas que apresentariam
uma lógica diferente das previsões do Direito Penal clássico e seriam aplicáveis apenas a uma
categoria específica de indivíduos, os quais seriam classificados como inimigos, em oposição
aos demais, identificados como cidadãos76.

A existência dessas normas baseadas em princípios orientadores diferentes do Direito


Penal clássico não seria uma exclusividade do penalismo alemão, mas uma tendência jurídica
já presente em diversos ordenamentos jurídicos e que tenderia a um processo de expansão77

A definição de quem seria esse inimigo, os sujeitos que mereceriam toda uma
normativa específica aplicada contra si, na interpretação de Jakobs, não se realizaria no
momento de elaboração das normas por uma decisão política e permaneceria estanque ao
longo da aplicação da lei penal, mas seria, na realidade uma consequência aplicável do
comportamento reiterado e costumaz de um indivíduo enquanto parte de uma sociedade e,
especialmente do impacto que esses hábitos gerariam nas expectativas sociais dos demais
integrantes dessa sociedade.

Essa definição está intimamente ligada as concepções do autor acerca do significado


de sociedade e de personalidade, as quais se inserem na corrente do Funcionalismo sistêmico.
Apenas para auxiliar na compreensão do conceito, essa linha de pensamento concebe a
sociedade enquanto “um sistema autorreferente e autopoiético que se compõe de
manifestações ou expressões de sentido, conhecidas sinteticamente como comunicações”
(grifos do autor)78, nessa concepção a comunicação teria o papel central de criar e recriar a
sociedade enquanto sistema.

Para a manutenção desse sistema, os seres humanos desempenhariam uma função,


cujo conteúdo envolve direitos e deveres e contribuí para a manutenção da estrutura social.
Nessa corrente de pensamento, a inclusão do indivíduo na estrutura social não é algo dado
pelo simples nascimento, mas ocorre apenas enquanto cumpridor de sua função por meio da
adequação de seu comportamento às normas sociais, que por sua vez permite a existência do
próprio sistema. POLAINO-ORTS (2014) define essa passagem enquanto uma transição do

76
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. P. 33-34.
77
SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais; tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3ª ed. Rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2013.
78
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Paulo Liberars Ltda, 2014. P. 59
50
indivíduo natural ao social, momento em que essa pessoa passa a ser vista como “o destino de
expectativas normativas” e torna-se titular dos direitos e deveres cujo cumprimento define sua
integração.

Jakobs utiliza para explicação das relações sociais um triângulo Norma – Pessoa –
Sociedade que explicaria o funcionamento do contrato social. A norma seria necessária para
regular um aspecto da sociedade orientando o comportamento das pessoas de acordo com as
expectativas sociais, institucionalizando-as e tornando-as expectativas normativas, parte
material do Direito positivo. A existência dessas normas representaria uma garantia cognitiva
para os integrantes da sociedade, que vinculariam seu bem-estar social no amparo e proteção
da lei, atribuindo uma expectativa de que essa será respeitada, expecativa essa que deve
corresponder a realidade fática. A realização dessa expectativa seria condição sine qua non
para a existência da sociedade:

(...) só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um


comportamento pessoal, e isso como consequência da ideia de que toda a
normatividade necessita de uma cimentação cognitivas para poder ser real. E desta
contestação tampouco fica excluído o ordenamento jurídico em si mesmo: somente
se é imposto realmente, ao menos em linhas gerais, tem uma vigência mais que
ideal, isto é, real.79

Por consequência lógica, o indivíduo que descumpre a sua função social, isso é, aquele
que não corresponde as expectativas normativas direcionadas a ele, seja por descumprimento
de seus deveres ou desrespeito aos direitos alheios, de forma substantiva e relevante a ponto
de violar a segurança cognitiva dos demais, não poderia integrar a estrutura social, sendo,
portanto, excluído dela. No momento em que o indivíduo deixa de integrar a sociedade, ele
perde sua condição de pessoa, que como visto dependia de seu exercício da função social, e,
portanto, os direitos aos quais era titular.

Esse abandono não é definitivo, ocorre apenas em quanto estiver prejudicada a


confiança social no sujeito, no momento em que este retomar sua adequação as normas sociais
e for reestabelecida a confiabilidade de suas condutas, este retoma sua condição de cidadão.

Essa exclusão da personalidade também não se daria de forma absoluta, de acordo


com POLAINO-ORTS (2014) mas apenas no aspecto da personalidade relevante para a

79
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do inimigo In: JAKOBS, Günter; MELIÁ,
Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José
Giacomolli. 6. ed. Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 36
51
situação, dando o exemplo do agressor doméstico que terá seus direitos abolidos no âmbito
familiar, mas que continuará como pessoa nos demais âmbitos, como o âmbito fiscal e o
âmbito profissional. Isso implica considerar que a exclusão do inimigo da sociedade
dificilmente ocorreria por inteiro, mas se reduziria a aspectos.

A existência de indivíduos que não correspondem as expectativas sociais, enfrentando


diretamente as normas em vigor, não poderia ser tolerada para Jakobs, diante do risco que eles
representariam para a segurança cognitiva dos demais. Isso porque, sem que seja assegurada
a segurança cognitiva dos integrantes da sociedade, não há uma razoável confiança na norma
jurídica, que acaba por se tornar expressamente desautorizada, vez que as pessoas já não
confiam em seu cumprimento. Com isso a norma perde sua capacidade orientadora de
condutas, o que impede a efetivação de uma juridicidade completa. Esse impedimento, na
perspectiva do referido autor, implica em um ataque a própria integridade social vez que,
como visto, Jakobs entende a norma enquanto um elemento regulador do contrato social80.

Em razão disso, não poderia o Estado dispender o mesmo tratamento de pessoa a essas
não-pessoas, ou como o mesmo coloca:

Como se tem mostrado a personalidade como construção exclusivamente normativa,


é irreal. Só será real quando as expectativas que se dirigem a uma pessoa também se
realizam no essencial. Certamente uma pessoa também pode ser construída
contrafaticamente como pessoa; porém, precisamente, não de modo permanente ou
sequer preponderante. Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um
comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas
o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à
segurança das demais pessoas.81

É esse o inimigo jakobiano, aquele que por suas condutas relevantes e reiteradas
ameaça a própria segurança cognitva-normativa de seus pares, ameaçando por consequência,
a própria existência da sociedade. É em razão desse potencial disruptivo que Jakobs justifica a
aplicação de toda uma série de previsões normativas que flexibilizam e até eliminam garantias
penais e processuais penais basilares do Direito Penal moderno. Esse conceito carregaria as
seguintes características, identificadas por Miguel Polaino-Orts:

80
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. Cápitulo 5,
item 4, p. 74-76
81
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do inimigo In: JAKOBS, Günter; MELIÁ,
Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José
Giacomolli. 6. ed. Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 34
52
É uma categoria científico-descritiva, fruto de uma observação racionalmente
fundada de uma realidade já existente, para a qual serve de referência.

É um conceito normativo, enquanto unicamente pode ser inimigo quem se opõe


frontalmente ao conceito de norma (o inimigo representa o maior grau de oposição
à norma), de maneira que sem o tertium comparationis da norma jurídica não se
pode definir quem seja ou não inimigo.

É relativo: porque se refere a uma situação concreta e não tem alcance nem sentido
absoluto: abarca unicamente um aspecto da personalidade do sujeito.

É potestativo: na medida em que o inimigo dispõe sempre da possibilidade de


abandonar seu status, por meio de uma solução precisa, a de adequar seu
comportamento à norma e prestar a suficiente garantia cognitiva para poder ser
tratado como pessoa fiel ao Direito.

É pontual, porque não se é sempre inimigo – nem tampouco pessoa – mas


unicamente naqueles casos em que o sujeito não preste a mínima segurança
cognitiva de acatamento da norma e, ademais, na medida em que não a preste.

E é proporcional, porque no tratamento do inimigo nem tudo está permitido: não


se podem sobrepassar as barreiras do estritamente necessário no Estado de Direito.
(grifos do autor)82

É baseado nessa categoria que o teórico estabelece a distinção entre o Direito Penal do
Inimigo e o Direito Penal do Cidadão, já que por se aplicarem a diferentes categorias de
indivíduos na sociedade, cada conjunto normativo seria orientado para a realização de
diferentes objetivos.

O Direito Penal do cidadão permaneceria como o conjunto de normas orientados pelas


disposições dogmáticas clássicas, mantendo-se os princípios e garantias consagrados, vez que
ele seguiria operando sobre aqueles que estão inseridos na estrutura social, mas que apenas
cometeram algum eventual delito que por si só não é capaz de atentar de forma relevante
contra a segurança cognitiva dos demais. Perceba-se que é necessário que uma conduta tenha
sido praticada para que então possa o Estado reagir a ela, penalizando seu praticante e assim
confirmando perante todos a estrutura social.

Já o Direito Penal do inimigo representa um verdadeiro arsenal normativo, em que as


construções da dogmática penal são flexibilizadas, em razão da necessidade de se suprimir um
foco de perigo (inimigo), perigo que não é apenas as pessoas, mas a própria segurança

82
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. P. 62-63
53
cognitiva da sociedade e, assim, a própria sociedade. Vez que o indivíduo é classificado como
inimigo, não seria necessário ao Estado aguardar que seja exteriorizada qualquer conduta,
podendo impor especiais medidas de asseguramento visando restaurar a segurança de seus
cidadãos.

As previsões nesse sentido não existiriam a parte das demais, pelo contrário tanto o
Direito Penal do Inimigo quanto o Direito Penal do cidadão representariam dois tipos
normativos ideais, dificilmente encontrados em seu estado puro, que se encontram
entrelaçados em uma mesma realidade jurídico penal. Representariam, portanto, tendências
normativas que se encontram em uma constante tensão, podendo inclusive se sobrepor dentro
de uma mesma norma.

Como se pode notar, o pensamento dessa linha teórica atribuí a cada polo apresentado
do Direito Penal uma diferente função a pena. Aquele direcionado as pessoas teria uma
função classificável como de prevenção geral positiva, vez que seu objetivo é reafirmar a
confiabilidade nas normas. ZAFFARONI ET AL (2011) identificam esse como o discurso
legitimante no funcionalismo de Jakobs afirmando que a pena pretenderia reforçar
simbolicamente a confiança do público na estrutura social para superar a “desnormalização”
provocada pelo conflito, utilizando a medida necessária para tanto.

Já as leis direcionadas contra o inimigo, embora ainda estejam inseridas na lógica da


proteção à segurança cognitiva da sociedade, orientam-se por uma função da pena de
prevenção geral negativa. Seu objetivo é meramente a neutralização do inimigo e do perigo
que representa para confiabilidade na estrutura social e por conseguinte para a sociedade.
Ignora-se assim o caráter comunicativo que seria exercido pela pena na vertente anterior, vez
que como, para Gunter Jakobs, o inimigo já não pode ser considerado como integrante da
estrutura social, a negação de seu ato já nada significaria em termos de interação simbólica83.

Em verdade, Jakobs sequer considera o aplicável contra o inimigo como uma pena,
mas apenas como medida de segurança. Nas palavras do próprio:

Portanto, no lugar de uma pessoa que de per si é capaz, e a que se contradiz através
da pena, aparece o indivíduo perigoso, contra o qual se procede – neste âmbito:
através de uma medida de segurança, não mediante uma pena – de modo fisicamente
efetivo: luta contra um perigo em lugar de comunicação, Direito Penal do inimigo

83
JAKOBS, Günter. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do inimigo In: JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel
Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José
Giacomolli. 6. ed. Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 20
54
(neste contexto, Direito Penal ao menos em sentido amplo: a medida de segurança
tem como pressuposto a comissão de um delito) em vez de Direito Penal do
Cidadão, e a voz do <<Direito>> significa, em ambos os conceitos, algo claramente
84
diferente, como se mostrará adiante.

Com vistas ao cumprimento dessa função própria do Direito Penal do Inimigo, as


normas desse polo normativo seriam orientadas, de acordo com o professor de Bonn, por três
elementos principais: uma tônica de antecipação da punibilidade, aplicando-se de forma
prospectiva ao invés de retrospectiva, ou seja, antes mesmo que qualquer bem jurídico tenha
sido violado; a existência de uma desproporção no cálculo das penas, sempre elevadas e sem
que a antecipação passe a reduzir a pena total, como ocorre no Direito Penal do cidadão; e a
mitigação ou até supressão das garantias processuais85.

Nesse sentido, POLAINO-ORTS (2014), reforça a presença dessas características e


ainda destaca como muitas vezes é adotada uma perspectiva de “guerra” ou “luta” na
persecução penal de determinados grupos ou crimes ao invés de uma visão de tutela do bem
jurídico (ex: crimes sexuais)86. A atribuição de um contexto belicoso a essas normas penais
destaca ainda mais a função de prevenção especial negativa adotada, já que em uma guerra
apenas a eliminação do inimigo interessa.

Com base nesses elementos orientadores, é estabelecido todo um arsenal normativo


dedicado a persecução e neutralização dos inimigos. Uma das previsões mais comumente
identificadas como pertencentes a essas hipóteses são os chamados delitos de posse. Neles, é
aplicado o elemento da antecipação da barreira punitiva, passando a punir a mera posse de
objetos de periculosidade potencial a algum bem jurídico.

Isso representa um afastamento da concepção tradicional do direito penal em que


somente seria penalizada uma ação ou omissão que gerasse um efetivo dano a um bem
jurídico. Com o delito de posse, o mero ter do objeto já se tornaria penalmente relevante
porque já suficiente para perturbar a confiabilidade das pessoas nas normas. Isso demonstra
um tratamento especialmente protetor contra uma situação de perigo a sociedade. Assim, a
posse de materiais perigosos como explosivos, armas de fogo, armas brancas entre outros,
sobretudo pelos inimigos jakobianos cuja própria definição passa pelo descumprimento das

84
Ibid p. 21
85
MELIÁ, Manuel Cancio. De novo ”Direito Penal do Inimigo? In: JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio.
Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6. ed.
Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 76
86
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Pailo Liberars Ltda, 2014. P. 30
55
expectativas normativas, seria uma ameaça à segurança cognitiva da sociedade que não
poderia ser tolerada, ainda que nenhuma ação tenha sido efetivamente tomada. Passa-se a
punir com base apenas com base em uma análise do risco representado.

Também está presente em diversos tipos penais classificados como delitos de posse, a
desproporção no cálculo das penas. A posse do objeto perigoso recebe uma sanção penal por
vezes equivalente a um tipo em que a lesão ao bem jurídico tenha sido efetivamente realizada,
quando, pelos princípios da dogmática penal, deveria ser aplicada uma redução da pena em
razão da antecipação da barreira punitiva.

Outra construção penal típica do Direito Penal do Inimigo são os delitos de


organização ou de associação. Essas previsões penais passam a tipificar condutas que,
novamente, não implicam per se em uma ação ou omissão capaz de violar um bem jurídico
tradicionalmente protegido, mas sim na esfera da segurança cognitiva-normativa da
sociedade. Esses delitos estariam estruturados em torno de dois elementos: um associativo
composto pelo acordo de 2 ou mais indivíduos pela criação de uma estrutura com unidade de
desígnios e um subjetivo que seria a intenção dos integrantes do grupo de utilizar a
organização para delinquir.

No entanto, de acordo com as considerações de POLAINO-ORTS (2014), esses dois


elementos em si seriam insuficientes para explicar o caráter delitivo das organizações
criminosas, já que seriam elementos neutros. Em sua interpretação, a mera intenção delitiva
presente no elemento subjetivo da formação da organização criminosa não pode caracterizar
um crime, já que constituí mera intenção, pensamento, os quais não podem implicar em si em
um delito87. Como solução para essa tipificação, o autor aponta como verdadeiro elemento
delitivo, baseando-se no funcionalismo sistêmico de Jakobs, a:

conformação de uma empresa criminosa, isto é, de um grupo socialmente


desestabilizador que já promove, de fato, uma comoção das bases do Estado. Aí, na
lesão atual da segurança cognitiva-normativa, isto é, no perigo já concretizado
em lesão que hic et nunc a organização representa, é onde se encontra o conteúdo
de injusto do delito de organização.88 (grifos do autor).

As legislações direcionadas ao enfrentamento das organizações criminosas talvez


sejam, juntamente com as legislações antiterrorismo, as normas mais usualmente identificadas
dentro do Direito Penal do Inimigo. Isso por dois aspectos principais: o destaque midiático
87
Como estabelecido pelo brocado ”cogitationis poenam nemo patitur”
88
POLAINO-ORTIS. Miguel. Lições de direito penal do inimigo. São Paulo Liberars Ltda, 2014. P. 103
56
dado a criminalidade organizada, que reforça um senso comum pelo qual esses grupos seriam
os inimigos por essência da sociedade, e por, em sua maioria, reunirem todas as principais
características e elementos desse polo normativo.

Legislações direcionadas as organizações criminosas implicam já na antecipação da


barreira punitiva, tipificando criminalmente a mera associação a um grupo, antes mesmo que
qualquer resultado material lesivo seja efetivamente produzido. Nesse cenário, a antecipação
não é acompanhada pela redução proporcional a pena, pelo contrário a pena aplicada
assemelha-se a dos delitos fim da organização, mantendo uma desproporção de cálculo nas
penas. Essas normas partem também uma concepção prospectiva (direcionada ao perigo atual
e futuro) de intervenção penal opondo-se à concepção retrospectiva (direcionado ao dano já
cometido) tradicional na legislação penal.

As leis de organização criminosa operam ainda por meio de uma restrição da


personalidade do autor, constitutiva do Direito Penal do Inimigo, limitando seus direitos
constitucionais, especialmente o de associação, sob a justificativa de preservação das bases do
Estado Democrático de Direito. São também restringidas as garantias processuais e
penitenciárias dos autores, objetivando tanto facilitar a persecução penal desses grupos quanto
para mantê-los neutralizados dentro do sistema prisional.

A medida de afastamento é também identificada por POLAINO-ORTS (2014) como


uma previsão legal típica do Direito Penal do Inimigo, visto que busca excluir o indivíduo de
uma vivência social específica. Traçando as origens dessas medidas penais as antigas
previsões do desterro, da deportação e do exílio, caracterizada pela exclusão física e
geográfica do sujeito junto à sociedade, o autor identifica essas previsões infiltradas em
diversos atos e âmbitos do Direito Penal, seja como pena principal, pena acessória, medida de
segurança ou como medida cautelar.

O afastamento é justificado pela periculosidade que o sujeito representa tanto para as


vítimas quanto para a própria sociedade. Como não se pode confiar na expectativa de que o
esse sujeito cumpra com as normas sociais, ele se torna uma fonte de perigo para a sociedade.
Logo, ele precisa ser excluído do convívio com os demais. Com isso a necessidade de se
proteger a segurança cognitiva contra um foco de perigo específico superaria o mandamento
da presunção de inocência89.

89
Ibid. Cap 13. P 149-155
57
Esse afastamento na sociedade moderna pode ser tanto absoluto (prisão cautelar que
distancia o réu de todo o convívio social) quanto específico ao âmbito de inimizade (medidas
protetivas aplicadas em casos de violência doméstica que excluem o agressor do contato com
a vítima). Nos casos específicos a restrição a personalidade do sujeito e seu afastamento se
operaria somente no ambiente da inimizade, permanecendo a personalidade nos demais
âmbitos.

Apontadas algumas hipóteses normativas orientadas pelo Direito Penal do Inimigo, é


importante destacar as intenções de Jakobs ao descrever e apresentar essa orientação
normativa. Inicialmente Jakobs realizou apenas uma descrição de um fenômeno observável
nas normas penais alemães de meados da década de 80 e em outros sistemas jurídicos,
interpretando essa tendência da normativa penal por um viés crítico que condenava as
distorções dessas previsões ao modelo do Direito Penal clássico.

No entanto com o passar dos anos e as mudanças sociais e políticas da década, Jakobs
admite esse conjunto normativo como uma espécie de “mal necessário” que estará sempre
presente no Estado de Direito real em razão da necessidade estatal de se proteger contra os
focos de perigo a sua própria condição. Essa posição é exposta por Gunter Jakobs ao abordar
a questão do terrorismo:

Voltemos ao terrorista: sua punição, muito antes da produção de lesões ou seu duro
interrogatório, não se encaixa em um Estado de Direito perfeito. Porém tampouco se
enquadra aí o abatimento de um avião de passageiros. Ambas as situações
pertencem ao direito de exceção, a princípio, inclusive, praeter legem, o que, além
de tudo, mostra que o Estado não pode fugir do dilema renunciado a
regulamentação: a exceção se produzirá de qualquer maneira, mesmo sem sua
intervenção, e logo aparecerá o Direito que se adapte a ela90.

Resignado, Jakobs passa a expor a importância de o Direito Penal do Inimigo ser


claramente disposto e separado do Direito Penal do Cidadão para que as previsões do
primeiro não contaminassem o segundo. O autor assume esse posicionamento enquanto uma
solução de contenção dessas normas ao estritamente necessário a proteção da segurança
cognitiva normativa da sociedade.

90
JAKOBS, Günter. Terroristas como pessoas de direito? In: JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio.
Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 6. ed.
Atual e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 56
58
No entanto, a posição de Jakobs pressupõe uma legitimação do Direito Penal do
Inimigo enquanto um instrumento válido e necessário para o Estado Democrático de Direito,
ainda que separado das normas do Direito Penal do Cidadão e reduzido ao que ele interpreta
como estritamente necessário, o qual autorizaria a utilização de todo um instrumental jurídico
comprometedor dos princípios e garantias penais dedicado a perseguição e neutralização dos
inimigos sociais.

É essa uma das principais críticas desenvolvidas pelo jurista argentino professor
Eugenio Raul Zaffaroni ao modelo proposto por Gunter Jakobs que será brevemente exposta
no próximo item.

5.1.2 CRÍTICA E INIMIGO EM ZAFFARONI

As considerações de Jakobs acerca do Direito Penal do Inimigo repercutiram


intensamente na comunidade dos juristas penais e geraram profundas críticas, sobretudo a
partir do momento que o professor de Bonn abandonou sua posição de rejeição completa ao
conceito e passou a defender a existência de um nicho específico em que seria cabível essa
legislação. Essas críticas se estendem entre diversos aspectos do referencial teórico
apresentado. Um dos principais pontos criticados é a exposição clara da existência de
inimigos que deveriam ser despersonalizados, encarados como não-pessoas diante de sua
exclusão da estrutura social e do perigo representado a ela. Luís Gracia Martins, por exemplo,
critica o conceito de pessoa de Jakobs, negando a possibilidade de aplicação do Direito a uma
não-pessoa, devendo ser aplicado o conceito de indivíduo humano:

De todo lo expuesto se puede deducir ya como una conclusión segura y cierta que en
Derecho penal, el sujeto tanto de la imputación como del castigo no puede estar
constituido por una persona normativa o jurídica, esto es, entendida como una
construcción social y normativa, sino que aquél no puede estar representado por
nada más que por el hombre, por el individuo humano.

No entanto, muitas dessas críticas, de acordo com Zaffaroni estariam por vezes
exageradamente focadas na terminologia utilizada por Jakobs sem ater-se ao conteúdo por ele
proposto. O vocabulário adotado pelo autor teria estimulado as controvérsias em torno de sua
teoria ao abandonar os termos tradicionais do Direito Penal que por vezes conduzia as
mesmas considerações apontadas por Jakobs porém sem perturbar a consciência dos
penalistas. O comportamento comum desses juristas é de mascarar o tratamento dispendido
59
aos inimigos com um termo que realce sua natureza política, para no final se resignarem a
existência desse tratamento como uma perda na disputa política mundial91

As considerações do autor acerca dos escritos de Jakobs caminha em uma direção


precisamente oposta das considerações acima expostas. Em primeiro lugar, elogia a
capacidade de seu colega alemão de expor o fenômeno do Direito Penal do Inimigo na forma
que ele se apresenta, sem procurar disfarçar a essência do objeto analisado, costume da maior
parte da doutrina penal.

Na contramão de muitos juristas, ZAFFARONI (2007) considera a terminologia


utilizada por Jakobs como um dos principais méritos da análise por ele conduzida. Isso
porque ao resgatar o conceito de “inimigo”, Jakobs estaria expondo de forma clara e sincera o
método de persecução estatal já existente a séculos, o que ele denomina a “má consciência do
Direito Penal”.

Por meio de uma reconstrução histórica, Zaffaroni passa a expor a infiltração que o
conceito de inimigo sempre teve no exercício do poder punitivo. Nesse esforço, o autor passa
pelas práticas da inquisição que revolucionaram a prática punitiva com a passagem da
disputatio (verdade estabelecida pela luta) para a inquisitio (verdade estabelecida pela
interrogação) na apuração penal, passando pela necessidade da domesticação dos
trabalhadores na Revolução Social com o estabelecimento de um controle social sobre os
indesejáveis do ambiente urbano, até as formas de autoritarismo típicas do entreguerras no
século XX, em que os indesejáveis eram perseguidos por sistemas legais subterrâneos ao
mesmo tempo que as leis serviam de propaganda, e sua transformação em um autoritarismo
cool do século XXI, caracterizado por um aparato publicitário autônomo e que torna uma
“moda” no espaço público ao invés de uma convicção profunda. Encerrando esse esforço
analítico, Zaffaroni concluí que:

Considerando o que acabamos de resenhar, é possível verificar que sempre se


reprimiu e controlou de modo diferente os iguais e os estranhos, os amigos e os
inimigos, A discriminação do exercício do poder punitivo é uma constante
derivada de sua seletividade estrutural92. (grifos próprios)

A categoria de inimigo não estaria restrita apenas ao exercício fático do poder estatal,
mas também estaria presente em seus discursos legitimantes, sejam eles criminais ou

91
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução: Sérgio Lamarão 2. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007. (Pensamento Criminológico). p. 158
92
Ibid. p. 81
60
políticos. Traçando as origens do inimigo no discurso penal desde as considerações de
Protágoras e Platão na Grécia antiga, o professor argentino identifica o tratamento penal
diferenciado que é dispendido aos hostis, estranhos ou inimigos pelos discursos penais ao
longo da história.

Tanto na Antiguidade, quanto na Idade Média, esse discurso legitimador do inimigo se


justificava pela ideia de “emergências”, perigos iminentes a sociedade que deveriam ser
enfrentados em uma guerra. Essa guerra justificaria a plena disposição do poder pelo dominus
e, com isso, a redução do direito penal e da pena ao direito administrativo e à coerção direta, o
que termina por legitimar a tortura dentro de uma justificativa inquisitorial de emergência.

Analisando esse período anterior a modernidade, ZAFFARONI (2007) identifica as


ferramentas utilizadas pela doutrina da época para justificar e até mesmo legitimar a
seletividade do poder punitivo, dado comumente omitido das considerações modernas. Em
sua elaboração, o autor destaca o papel atribuído ao valor simbólico da pena e sua função de
prevenção geral positiva como solução para seletividade penal, vez que o importante seria o
símbolo da punição de alguém para reequilibrar a saúde da República. Essas concepções já
possuíam papel central nas elaborações desse período e ainda são utilizadas por autores
contemporâneos (as próprias concepções de Jakobs no tocante ao Direito Penal do Cidadão se
aproximam dessas visões).

Com a passagem para a Idade Moderna, teria se iniciado uma tendencia de retomada
do idealismo platônico, com o tratamento dos inimigos se distanciando do direito penal e
sendo concedido as medidas policiais, em especial para o tratamento dos indesejáveis e dos
indisciplinados, que representavam perigosos em potencial.

No século XIX, uma nova mudança no paradigma dos discursos penais é operada,
viabilizando-se pela alteração na configuração social que consolidou a burguesia como classe
dominante em substituição a nobreza, o que permitiu o abandono das concepções do discurso
penal liberal do Iluminismo por eles originalmente defendido, o positivismo criminológico.
Ao tratar dessa passagem, Zaffaroni aduz que:

Quatro séculos depois do Malleus, o positivismo criminológico, com o mesmo


esquema integrado de criminologia etiológica, direito penal, processual penal e
criminalística, retornou abertamente ao sistema inquisitorial. O estranho ou inimigo,
tanto o criminoso grave como o dissidente, voltou a ser biologicamente inferior,
não em razão de gênero, como no caso das bruxas, mas sim por ser patológico ou

61
pertencer a uma raça não suficientemente evoluída (é um colonizado nascido por
acidente na Europa) ou por ser um degenerado (produto involutivo de uma raça
superior). Satã era substituído [como inimigo ideal] pela degeneração e o que se
impunha era a neutralização dos degenerados inferiores, evitando, se possível, sua
reprodução mediante a esterilização e a eugenia93. (grifos próprios)

Na corrente do positivismo criminológico, a essência do inimigo é definida pela sua


natureza, em oposição as proposições contemporâneas de inimigo que se pautam em uma
definição política ou social. Com isso, pela tese positivista etiológica, o processo de seleção
do inimigo ocorreria apenas pela observação do estereótipo reconhecível e preexistente e não
por critérios de escolha de fato. Assim, a existência do inimigo no positivismo criminológico,
pela definição de ZAFFARONI (2007), seria dado fático e observável da natureza, razão pela
qual o conceito teria um caráter ôntico.

O autor descreve como a corrente dessa teoria em sua variante alemã como proposta
por Von Liszt se operou a partir de uma distinção entre a aplicação de penas limitadas e
caráter ressocializador ao indivíduo identificado como um igual ou ainda meramente
intimidatória aos ocasionais, considerados ainda muito iguais, das penas ilimitadas que
deveriam ser aplicadas contra os incorrigíveis, delinquentes habituais e pessoas de “má vida”
identificado como os inimigos da ordem social visando sua neutralização.

Nota-se assim a veracidade da consideração de Zaffaroni previamente exposta,


segundo a qual a teoria apresentada por Jakobs não teria gerado o mesmo grau de comoção
entre os juristas penalistas caso tivesse expressado uma conclusão semelhante sem utilizar
termos tão expressos quanto “não-pessoa”, vez que as conclusões práticas de Von Liszt não
são muito distantes do que foi exposto pelo seu colega alemão.

ZAFFARONI (2007) expõe como a teoria exposta por Von Liszt seria ainda adaptada
por seu discípulo Carl Stooss para torná-la compatível com o idealismo neokantiano do
Direito Penal liberal. Para tanto, Stooss nega o aspecto penal da punição aplicada aos
delinquentes habituais, retirando as medidas de neutralização dos inimigos do âmbito penal
para o Direito Administrativo, operando-se por medidas policiais de coerção administrativa,
que adquiriam o nome de medidas de segurança.

A argumentação utilizada por Stoos para fundamentar a retirada desse conjunto


normativo do ordenamento penal diz respeito à identificação do objeto das medidas

93
Ibid. p. 91
62
administrativas coercitivas. O teórico entende que o objeto dessas medidas é a coisa perigosa,
identificada pela situação gerada pela periculosidade positiva do autor, e não à gravidade da
conduta efetivamente praticada, ou seja, “baseando-se na característica perigosa de uma
coisa, a medida não tem natureza penal; ela vai in rem, não in personam”94.

Essa intepretação do caráter não penal das medidas de segurança trazida por Stroos é
fortemente criticada pro ZAFFARONI (2007), o qual destaca que a negação do caráter penal
das medidas de segurança configura um “embuste das etiquetas” utilizada para aplicação de
penas sem que fossem considerados os limites e garantias próprios da dogmática penal,
muitas vezes de forma retroativa.

Acerca dos efeitos práticos dessa cisão na legislação penal, consigna:

A combinação deste direito penal cindido, que permitiu um desenvolvimento


idealista retribucionista para os iguais (pessoas) e outro determinista periculosista
para os estranhos (coisas perigosas), caiu numa espécie de esquizofrenia filosófica e
antropológica, porque combinou o idealismo da ética tradicional com o
determinismo positivista, algo assim como se se tratasse os amigos ou iguais lendo
Aristóteles, São Tomás, Kant e Hegel, e os inimigos, diferentes ou estranhos
conforme Haeckel e Spencer.

Em que pese a incoerência básica, esta racionalização permitiu o expediente prático


de impor penas limitadas aos iguais e penas ilimitadas aos diferentes ou inimigos,
obtendo, assim, um êxito singular na codificação. 95

Na aplicação desses modelos teóricos, são identificadas duas formas de cálculo e


aplicação das penas cindidas, os quais se diferenciam pela integração realizada entre a pena
per se e as medidas administrativas: o sistema duplo binário e o sistema vicariante. O duplo
binário, critério mais autoritário previa a aplicação da medida de segurança, ilimitada e
desproporcional, cumulada com a pena determinada pela culpabilidade do agente. O
vicariante previa a substituição da pena pela medida de segurança nos casos “incorrigíveis”
concedendo a faculdade de definir a hipótese de aplicação de cada pena ao entendimento do
juiz.

94
STROOS, Carl. Lehrbuch des österreichischen Strafrecht, Wien u. Leipzig: 1912, p. 192 Apud ZAFFARONI,
Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Pensamento Criminológico).
Tradução: Sérgio Lamarão p. 96
95
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Pensamento
Criminológico). Tradução: Sérgio Lamarão p. 97
63
No tema das medidas de segurança, uma ressalva quanto a imediata identificação
dessas como instrumentos de um tratamento penal diferenciado é feita por Zaffaroni. Como
aduz o autor, na hipótese de a medida de segurança ser imposta dentro da culpabilidade do
agente e dos limites legalmente definidos, essa pode configurar uma ferramenta de execução
penal legítima. Isso porque a principal função que deveria ser exercida pelo direito penal é a
contenção do poder punitivo. Se a ferramenta que melhor permite essa contenção é a
aplicação de um direito penal do autor, ou seja, se a aplicação da medida de segurança implica
em uma pena inferior ou menos gravosa ao apenado, essa aplicação deveria ser permitida no
limite em que proteger o apenado do poder persecutório do Estado.

Essa ressalva de Zaffaroni demonstra como determinadas ferramentas comumente


utilizadas para o tratamento penal diferenciado daqueles identificados como inimigos não são
o cerne da questão. Esses instrumentos, quando aplicados dentro das garantias penais e
processuais e apontados contra o poder punitivo, não são um instrumental perigoso ou
problemático, mas plenamente válidas. Poderíamos então deduzir a seguinte lição: o que
define o Direito Penal do Inimigo é sua aplicação contra o referido inimigo. Os meios pelo
qual essa persecução seletiva é efetivada podem ser alterados e modificados, porém enquanto
um conjunto de normas cumprir um tratamento penal diferenciado aos estranhos, hostis e
incorrigíveis, ele pode ser assim classificado.

O ápice desse modelo cingido seria verificável nos direitos penais fascistas do século
XX em que foi utilizado para a legitimação das inúmeras atrocidades praticadas. Se
ZAFFARONI (2007) identifica até um certo progressismo no modelo de Stooss, já que sua
proposta de encarceramento ilimitado era contraposta a eliminação física dos indesejáveis
(morte ou deportação, que na prática significava morte), a utilização desse modelo pelos
regimes autoritários do entreguerras para condução do genocídio contra os indesejáveis.

Essa radicalização das propostas do positivismo etiológico não se tratou de uma mera
perversão de um modelo prudente diante da maldade e crueldade nazista, mas sim de uma
consequência praticamente determinada da adoção de um conceito ôntico de inimigo
divorciado da concepção política. Como visto, a aceitação das medidas de segurança partia da
confiança de que o inimigo era definido por sua própria natureza, sua essência, e era exposto
em seus comportamentos perigosos e sua adoção da “má vida”.

É nesse sentido que Zaffaroni, em oposição a essa concepção da existência de


inimigos definidos pela própria natureza, expõe o seguinte alerta:
64
Aquele que pretende saber quem é o inimigo com um simples olhar para o mundo
minimiza ou nem sequer apercebe-se do risco da arbitrariedade política: o inimigo é
quem é inimigo. Dessa perspectiva, pode-se afirmar que qualquer pretensão do poder
político de impor a etiqueta a quem não é inimigo seria imediatamente
desqualificada ao verificar-se empiricamente que o rótulo é falso.

A periculosidade e seu ente portador (o perigoso) ou inimigo onticamente


reconhecível, provenientes da melhor tradição positivista e mais precisamente
garofaliana, cedo ou tarde, devido à sua segurança individualizadora, termina na
supressão física dos inimigos. O desenvolvimento coerente do perigosismo, mais
cedo ou mais tarde, acaba no campo de concentração.96

Partindo para as concepções políticas de inimigo, Zaffaroni realiza uma análise da


compatibilidade do tratamento penal dos inimigos em um Estado Democrático de Direito na
teoria contratualista a partir da oposição entre Hobbes-Locke e Kant-Feuerbach. Para tanto,
verifica o entendimento desses filósofos da política quanto à possibilidade de os cidadãos
resistirem à opressão do próprio Estado. Enquanto os defensores de um Estado absoluto
(Hobbes e Kant) negam essa possibilidade e afirmam que esses resistentes são inimigos, os
defensores de um Estado Liberal (Locke e Feuerbach) destacam a possibilidade dos cidadãos
se rebelarem contra seu soberano quando seus direitos essenciais forem violados ou os termos
do contrato social forem violados97.

Ao demonstrar a correspondência teórica entre o tratamento penal diferenciado do


inimigo e o Estado Absoluto, ZAFFARONI (2007) passa a estudar o teórico por ele apontado
como o mais coerente e direto enquanto expositor e defensor do Estado Absoluto: o autor
reacionário alemão Carl Schmitt. Criticando a teoria de Hobbes por sua limitação do poder do
Leviatã ao foro interno do súdito, Schimitt desconsidera qualquer limite ao poder do Estado,
afirmando que o poder absoluto é necessário e deve ser exercido sob os súditos sem qualquer
limite ou humanidade no enfrentamento aos inimigos na guerra. Esta, para Carl Schimitt,
existia de forma permanente e sua condução era a função da política, definida pela polaridade
“amigo-inimigo”. Sem a guerra, não faria sentido a definição de um inimigo.

O processo de seleção e identificação desse inimigo era uma das funções da política e
seria esvaziada de conteúdo, embora por vez adotasse opiniões pré-existentes, sendo

96
Ibid. P. 104
97
Importante anotar a explicação contra a possível crítica que argui que o inimigo e o rebelde são figuras
diferentes. Essa explicação pouco importaria para Zaffaroni pois assim que a categoria de inimigo é estabelecida,
o princípio do Estado de Direito está rompido, com a categoria se ampliando para qualquer dissidente. Neste
sentido Ibid p. 131
65
completada pelo poder do soberano que sempre necessita de um inimigo, já que opere a
política a partir dessa definição. Essa definição, portanto, é completamente oposta à definição
do ideal garofaliano, no entanto, ambos chegam a uma mesma conclusão fática: o inimigo
deve ser combatido.

Com isso, Zaffaroni elogia a capacidade de Schimitt de “desenvolver o mais


formidável e coerente esforço para negar a dialética entre o Estado de polícia e o Estado de
direito, pretendendo reduzir este último a um incomoda e oca ilusão perturbadora e
conferindo realidade somente ao primeiro”98. Essa tensão entre o Estado de Direito e o
Estado de Polícia é vital para compreensão da compreensão da crítica do autor argentino para
com as proposições de Gunter Jakobs.

O conceito de inimigo para Zaffaroni é, portanto, incompatível com a estrutura de um


Estado de direito orientado pelos princípios do liberalismo político, mas próprio da concepção
de política enquanto guerra de Schimitt, atribuindo a essa guerra ainda o caráter de suja e
permanente que está incorporada aos nossos Estados Democráticos de Direito, ainda que sob
o signo da exceção. Essa guerra impede a distinção entre o inimigo e a população civil já que
os mecanismos de neutralização estão sempre apontados para toda a população.

A proposta de introdução da categoria de inimigo no direito ordinário somente seria


coerente dentro da proposta de Schimitt, já que a tentativa de introdução de qualquer
mecanismo de controle ao poder criaria um direito à resistência daquele identificado como
inimigo que negaria o poder do Estado de atribuir esse rótulo. Com isso também a pretensão
de limitar o enfrentamento do inimigo ao estritamente necessário é, em última consequência,
fútil, vez que quem define a medida do estritamente necessário para a neutralização do
inimigo é o mesmo que o exercita e assim demandará sempre mais sob a justificativa de
garantir a segurança social.

É com base nesses apontamentos que Zaffaroni, após elogiar a precisão e sinceridade
da terminologia de Jakobs que as reconstruções do autor argentino demonstram ser a mais
acertada, bem como a capacidade do autor alemão de identificar e caracterizar as normas que
compõe o tratamento penal diferenciado ao inimigo, irá criticar definitivamente a proposta de
legitimação e incorporação dessas normas ao Direito Penal.

98
Ibid. P. 141
66
Embora reconheça que, ao formular sua proposta de incorporação do Direito Penal do
Inimigo, Jakobs partia de boas intenções, pretendo refrear a expansão dessa orientação
normativa sob as demais normas do Direito Penal, limitando-as a uma área de aplicação
reduzida ao mínimo necessário em uma espécie de quarentena do poder punitivo, visando a
proteção do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, o inimigo de Jakobs em nada se assemelharia à concepção de Carl


Schimitt ou a do positivismo criminológico na vertente de Garofalo, já que seu caráter não
seria político ou etiológico, mas sim normativo. No entanto, a adoção de um conceito de
inimigo no Direito Penal seria incompatível com a existência de limitações e, portanto, com
as estruturas de controle próprias do Estado Democrático de Direito.

Para resolver isso, Jakobs contrapõe o que denomina de Estado de direito concreto,
com suas contradições presentes que necessitam do Direito Penal do inimigo, em oposição a
um Estado de Direito abstrato. No entanto, Zaffaroni enxerga que essa separação entre
abstrato e concreto na teoria penal implica na negação do Estado de Direito, cujas disposições
principiológicas podem ser facilmente superadas utilizando essa justificativa.

Isso porque a concepção de limitar as garantias penais e processuais-penais pela


necessidade de proteção do próprio Estado de Direito não poderá ser reduzida de forma
adequada como propõe Jakobs já que a prática do poder punitivo sempre invocará uma nova
necessidade, tornando o poder punitivo ilimitado pela lei ou pela política. Nas palavras do
próprio autor:

Quando afirma que, em casos excepcionais, o Estado de direito deve cumprir sua
função de proteção e que está legitimado para isso em razão da necessidade – ou
seja, que a esta não podem opor obstáculos derivados de um conceito abstrato de
Estado de Direito (abstrakten Begriff des Rechtsstaates) –, Jakobs pressupõe que
alguém deve julgar a necessidade e que este alguém não pode ser outro senão o
soberano, em sentido análogo ao de Schimitt. O Estado de direito concreto de
Jakobs, deste modo, torna-se inviável, porque seu soberano, invocando a
necessidade e a emergência, pode suspendê-lo e designar como inimigo quem
considerar oportuno, na extensão que lhe permitir o espaço de poder que dispõe.

As falhas do Estado de Direito que Jakobs identifica para opor o concreto ao abstrato
seriam o resultado da presença do Estado de Polícia que se encontra em constante conflito
com esse ideal, em uma tentativa de expandir suas pulsões punitivistas. A proposta de
contenção apresentada por Jakobs, e que ZAFFARONI (2007) denomina como estática, é
67
falha por presumir que se concedido um espaço ao Direito Penal do Inimigo este se contentará
com o concedido.

Em sua concepção dinâmica da disputa do poder, Zaffaroni percebe como o Estado de


Polícia tenderá a expandir sempre sob qualquer espaço dado tendendo a atingir o Estado
Absoluto e como a concessão de um espaço próprio do Direito Penal do Inimigo irá implicar
em uma expansão ainda mais intensa e a eventual morte do Estado Democrático de Direito:

A introdução do inimigo no direito ordinário (não propriamente bélico ou de guerra


de um Estado de direito o destrói, porque obscurece os limites do direito penal
invocando a guerra e os do direito humanitário invocando a criminalidade. Ainda
que se o faça ou se queira fazê-lo prudentemente, mais cedo ou mais tarde,
dependendo das circunstâncias políticas que concedam um poder mais efetivo ao
soberano, desemboca-se no Estado de polícia e passa-se, então, para o Estado
absoluto.

Essa expansão, segundo ZAFFARONI (2007) já ocorreria como consequência da


adoção de um inimigo que não é visivelmente identificado, visto que o único jeito de o
identificar é exercendo um controle social ainda mais intenso sobre toda a população,
limitando as liberdades individuais e correndo ainda o risco de identificar erroneamente uma
pessoa inocente.

Assim a proposta de Zaffaroni para a contenção do Direito Penal do Inimigo e do


poder punitivo como um todo passa pelo enfrentamento ao Estado de Polícia coma criação de
barreiras cada vez mais sólidas contra sua atuação por meio da reafirmação do Estado de
Direito, resistindo frontalmente à admissão do conceito de inimigo no Direito Penal, ainda
que não se possa, pelas condições materiais do momento, eliminá-lo da prática.

5.2 ESTIGMA

5.2.1 A FORMAÇÃO DO ESTIGMA

A transição do objeto de estudo da criminologia se deu, sobretudo, com o advento do


labelling aproach, também conhecido como teoria da rotulação. Esse objeto deixa de ser as
causas do crime, isso é, o que levava um determinado indivíduo a cometer um crime, e passou
a ser o estudo das determinantes da criminalização, ou seja, o que leva um determinado

68
comportamento e não outro a ser classificado como criminoso, bem como o que leva uma
determinada pessoa a ser punida por esse comportamento e não outra.

Com isso, o crime deixou de ser identificado como um fato natural e observável e
passou a ser algo ativamente definido pela legislação nas estruturas sociais. Ganha papel
central na teoria da rotulação os aspectos políticos e sociais que essa imputação do papel de
delinquente gera. Para observar como essas estruturas, o foco de estudo do crime se
distanciará do criminoso e passará as estruturas de punição:

Esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a


criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal que a define e reage contra
ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia,
juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o status social de
delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais
de controle social da delinquência, enquanto não se adquire esses status aquele que,
apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível não é alcançado, todavia,
pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela
sociedade como delinquente.99

A partir dessa alteração, os autores da teoria da rotulação como Howard Becker,


Edwin Lemert e Erving Goffman irão passar a investigar os procedimentos que levarão a
atribuição desses rótulos, bem como os efeitos que os rótulos após atribuídos exercerão sobre
os rotulados.

BECKER (2008) vai identificar essa questão do rótulo do desvio a partir dos estudos
dos excluídos pelas normas – denominados por ele de Outsiders. Para tanto, este autor parte
da concepção de que existem diversos grupos sociais, cada qual com suas próprias normas
que são seguidas por seus integrantes e que esperam que essas normas sejam cumpridas
também pelos outros integrantes de seu próprio grupo. Quando essas normas não são
cumpridas, usualmente os demais reagem a elas considerando essa violação um “desvio”

Isso implica que o “desvio” não seria uma qualidade do ato em si, mas seria um
resultado das reações dos demais que ao aplicarem as sanções sociais a esse desvio também
aplicam o rótulo de “desviante”. Como a aplicação do rótulo não se dá pelo ato, mas sim pela
reação dos demais, os classificados como desviantes podem não ter realizado qualquer ato
efetivamente contrário as normas sociais, mas apenas ter sofrido a reação. O oposto também
99
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito
penal/ Alessandro Baratta; tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto
Carioca de Criminologia,2002. P.86
69
é verdade, aqueles que infringem as normas do grupo podem não sofrer a rotulação caso o
grupo não reaja negativamente. A aplicação do rótulo pode se ainda definida em diferentes
graus de intensidade. Todas essas variações são afetadas diretamente pela identidade da
pessoa que comete o ato, como exposto por Becker:

Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras. Estudos da
delinquência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de áreas de classe média,
quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros
miseráveis. O menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado
pela polícia, de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à
delegacia, de ser autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e
sentenciado/' Essa variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a
mesma nos dois casos. De maneira semelhante, a lei é diferencialmente aplicada a
negros e brancos. Sabe-se muito bem que um negro que supostamente atacou uma
mulher branca tem muito maior probabilidade de ser punido que um branco que
comete a mesma infração; sabe-se um pouco menos que um negro que mata outro
negro tem menor probabilidade de ser punido que um branco que comete
homicídio100.

A concepção de Becker passa assim pela constante disputa entre grupos sociais para a
definição das normas que serão adotadas pela sociedade. Isso leva a uma outra problemática
que seria a definição do responsável por definir as normas que serão efetivamente adotadas
pela sociedade. O autor reconhece que essa é uma questão de poder político e econômico dos
referidos grupos, ainda que não reconheça a questão da problemática econômica e sua
consequência política como atributo central da definição dos rótulos.

Becker foca sua análise, sobretudo nos efeitos que a atribuição do rótulo produz na
autoimagem do rotulado e os efeitos que essa atribuição gera em suas condutas futuras. Para
isso, ele utiliza o conceito de “carreiras desviantes” determinadas conformações sociais
caracterizadas por uma sequência de passos aproximadamente determinados que geram uma
sequência exponencial de desvios e passam a se tornar um componente da identidade do
integrante.

Embora esse conceito se aproxime dos paradigmas etiológicos que buscavam definir
as razões do crime, uma consideração de que a rotulação de um determinado individuo afeta
a maneira como esse se percebe na sociedade e pode vir a influenciar seus atos futuros não é

100
BECKER. Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução: Maria Luzia X. de Borges. 1 ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. P. 25
70
completamente descabida, especialmente se buscarmos interpretá-la não sob a ótica das
causas do delito, mas sim na porcentagem de indivíduos que serão percebidos como
praticando um crime. Neste sentido, Baratta ressignifica a análise dos autores interacionistas
e descreve como:

O mecanismo da self-fullfilling-profecy, análogo ao que funciona na discriminação


escolar, caracteriza esse processo de construção social da população delinquente. A
particular expectativa de criminalidade que dirige a atenção e a ação das instâncias
oficiais especialmente sobre certas zonas sociais já marginalizadas faz com que, em
igualdade de percentual de comportamentos ilegais, se encontre neles um percentual
enormemente maior de comportamentos ilegais, em relação a outras zonas sociais.
Um número desproporcionado de sanções estigmatizantes (penas detentivas), que
comporta a aplicação de definições criminais e uma drástica redução do status social
se concentre, assim, nos grupos mais débeis e marginalizados da população. A
espiral assim aberta eleva, afinal, a taxa de criminalidade, com a consolidação das
carreiras criminosas, devido aos efeitos da condenação sobre a identidade social dos
desviantes101.

Aprofundando nessa questão da imagem dos indivíduos passamos as considerações


acerca do estigma. GOFFMAN (1988), verifica que durante as relações sociais somos
primeiro apresentados aos atributos da pessoa que permitem prever sua identidade social e
utilizamos essas preconcepções para modular nossas expectativas e eventualmente
transformá-las em exigências rigorosas. Esses atributos poderiam ser tanto positivos, quanto
negativos ao ponto em que atributos especialmente negativos implicam quase que
automaticamente em um descrédito da pessoa, são esses o que o autor define como estigmas.

O estigma assumiria duas perspectivas principais que dependem do conhecimento


que os outros possuem dele: caso o estigma já seja conhecido ou seja imediatamente
identificável, o estigmado assume a condição de desacreditado, caso este seja desconhecido
dos demais, assume a condição de desacreditável. Essa distinção é estabelecida por Goffman
para avaliar as interações que o estigmatizado terá com pessoas normais já que na condição
de desacreditado as valorações realizadas pelo seu interlocutor já são contaminadas de início,
enquanto na condição de desacreditável elas se iniciam normais, mas podem ser a qualquer
momento afetadas, o que influi também no comportamento do estigmatizado.

Quanto a natureza do estigma, o autor classifica em três tipos principais:


101
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito
penal/ Alessandro Baratta; tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto
Carioca de Criminologia,2002. p. 180
71
Em primeiro lugar, há as abominações do corpo - as várias deformidades físicas. Em
segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões
tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas
inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão,
vicio, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e
comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e
religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual
todos os membros de uma família1 . Em todos esses exemplos de estigma,
entretanto, inclusive aqueles que os gregos tinham em mente, encontram-se as
mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente
recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e
afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros
atributos seus102.

A hipótese que mais interessará para os efeitos do presente trabalho é a segunda que
diz respeito aos comportamentos de um determinado grupo de indivíduos.

GOFFMAN (1988) deixa claro que o estigma é uma reação por vezes irracional e que busca
se legitimar em uma ideologia racionalizadora para que muitas vezes é mera animosidade
originada de outros aspectos como a classe social. Ressalta também como o estigma por vezes
atraí a noção de outras imperfeições para além das inicialmente atribuídas como principais
para a composição do estigma.

O autor também identifica como certas frações de indivíduos estigmatizados tendem a


se reunir em grupos organizados que passam representar esses indivíduos perante o público e
até a recrutar novos membros. A definição desses grupos muitas vezes transmite socialmente
a informação por intermédio de um símbolo ou conjunto de símbolos que permite que uma
categoria de individuos seja reconhecida. Goffman expõe essa possibilidade ao consignar que:

Um dos métodos de revelação é o uso voluntário, por um indivíduo, de um símbolo


de estigma, um signo extremamente visível que revela o seu defeito onde quer que
ele vá. Há, por exemplo, pessoas que têm dificuldades auditivas e que usam
auxiliares auditivos desprovidos de bateria; as pessoas parcialmente cegas que usam
uma bengala branca desmontável; judeus que usam um cordão com a estrela de
Davi. Deve-se acrescentar que alguns desses símbolos de estigma, como o distintivo
dos Cavaleiros de Colombo que indicam que o portador é católico, não são
claramente apresentados como reveladores de estigma, mas, ao contrário, têm como

102
GOFMANN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Tradução por Maria
Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. P. 7
72
finalidade atestar a pertinência do indivíduo a organizações que não têm,
pretensamente, em si mesmas, tal significado.

A utilização desses símbolos implica em muitos casos no limite da visibilidade que o


estigma terá na sociedade em um determinado momento. Um indivíduo estigmatizado pode
por vezes optar pela utilização do símbolo em um momento de atividade grupal em que o
símbolo implicará um orgulho optar pela não utilização quando esse símbolo afetará
negativamente sua interação com indivíduos normais (como por exemplo ao pedir um
empréstimo em um banco).

Lemert, por sua vez irá definir o processo de estigmatização da seguinte forma:

Stigmatization describes a process attaching visible signs of moral inferiority to


persons, such as invidious labels, marks, brands, or publicly disseminated
information. However, it defines more than the formal action of a community
toward a misbehaving or physically different member. Degradation rituals such as
drumming the coward out of the regiment, administering the pauper‟s oath,
diagnosing the contagious illness, and finding the accused guilty as charged may
dramatize the facts of deviance, but their “success‟ is gauged less by their manner of
enactment than by their prevailing consequences 103.

Afastando-se das concepções de Becker, Lemert e Goffman acerca dos efeitos que o
estigma produz nas ações futuras do rotulado, Dennis Chapman elabora sua teoria dos
estereótipos que, excetuada a consideração já feita, é bastante próxima e compatível com as
dos outros autores, porém seu foco está nas estruturas sociais e não nos problemas
psicológicos104.

Para Chapman, os estereótipos são elementos simbólicos facilmente manipuláveis na


sociedade. Os estereótipos usualmente associados ao crime seriam utilizados como método de
seleção entre um grande número de indivíduos que terão suas ações classificadas como um
delito. Esses estereótipos integrariam os meios de controle social exercidos pelo poder em seu
aspecto simbólico, já que são essas estruturas sociais as responsáveis por atribuir os
estereótipos e aplicar as estruturas penais contra eles. Essa seleção serviria a uma função
dentro do sistema penal:
103
LEMERT, Edwin. The concept of secondary deviation In. Human deviance, social problems, and social
control. 1967 p. 42
104
O entendimento aplicado no presente trabalho quanto ao conceito de ”estigma” se aproxima mais da visão de
Chapman do que da dos demais autores apresentados. No entanto, decidiu-se pela utilização de ambos em razão
da proximidade dos conceitos, cuja diferença tem pouca afeição a utilização que será feita, bem como para
aproveitar as construções dos autores da teoria do estigma. A utilização do termo estigma ao invés do termo
estereótipo foi preferida em razão do caráter mais fortemente negativo do termo.
73
A funcionalidade do crime manifesta-se assim, da seguinte maneira: o delinquente
estereotipado converte-se em um bode expiat6rio da sociedade. Para este bode
expiatório dirige-se toda a carga agressiva das classes baixas da sociedade que, de
outra maneira, dirigir-se-ia contra os detentores do poder material e ideológico, as
classes média e alta, permite-se descarregar simbolicamente as suas culpas sobre
esse grupo pequeno e bem definido de criminosos de classe baixa, de vez que
derivam para eles a sua hostilidade contra a classe proletária. Reduzem-se assim,
pois, as tensões de classe.105

O estereótipo do criminoso, segundo a análise de ANYAR DE CASTRO (1983)


acerca do pensamento de Chapman, teria algumas características típicas: integrar o
proletariado, ter crescido em condições econômicas e afetivas precárias o transformaram em
um homem agressivo e sem estabilidade que não pode ser incorporado de forma bem-
sucedida ao sistema produtivo. Esse estereótipo seria mais vulnerável para a seleção da
criminalização por sua classe não possuir “o poder político, social, religioso e administrativo”
os quais são “reduzido[s] a uma pequena minoria que controla os meios de informação e
comunicação”.

Percebe-se que a teoria de Chapman já propicia uma visão orientada por critérios de
classe na forma como os estereótipos são formados e aplicados na sociedade, ainda que não
de base marxista. Esta análise crítica será aprofundada no próximo sub-item em que veremos
como os estigmas ao serem socialmente perpetrados influenciam na seletividade penal.

5.2.2 O ESTIGMA E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NA


SELETIVIDADE PENAL

A utilização do estigma como um dos critérios orientadores da seletividade penal é um


fenômeno bem documentado e considerado entre os autores da Criminologia radical.
BATISTA (2007) apresenta em sua introdução crítica ao estudo do direito a dicotomia entre o
Direito Penal que se apresenta como igualitário, porém é direcionado a certos grupos sociais a
pretexto de suas condutas. ZAFFARONI ET AL (2011) destacavam como a construção dos
estereótipos no imaginário coletivo permitia a associação de todos os preconceitos sociais a
algumas pessoas desvaloradas criando uma imagem pública do delinquente com componentes
de classe social, étnicos, etários, de gênero e estéticos. Este estereótipo seria o principal

105
CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social/Lola Aniyar de Castro; tradução: Ester Kosovski. -
1ª Ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983 p, 127
74
critério da criminalização secundária, o que ocasionaria uma espécie de uniformidade da
população carcerária.

Esses estereótipos criminosos estariam por vezes ligados a elementos estéticos. “A


feiúra e a maldade sempre andam juntas. Os valores negativos ou desvalores estético e ético
tendem a coincidir” 102. Historicamente, os critérios estéticos foram comumente associados a
dualidade de bem e mal, com o ser humano considerado feio estava associado ao mal, como
se a deformidade exterior expressasse uma deformidade interior. Uma concepção parecida era
adotada por Lombroso e seus seguidores do positivismo criminológico, que identificava
imperfeições estéticas como demonstrativos de um desenvolvimento atávico que também era
responsável por causar os comportamentos criminosos.

Essas concepções estéticas, no entanto, eram muito influenciadas por ideais racistas de
beleza. “Não é preciso muita perspicácia para se dar conta de que tanto o valor como o
desvalor estéticos são um produto do etnocentrismo: o lindo é o europeu; o feio é o
colonizado.”106 Com isso, a seleção estética dos criminalizáveis passa também por critérios de
raça, em que o não branco é identificado como feio e logo, pela construção artística e social,
mal.

Outro aspecto dos estereótipos construídos pelo sistema penal seria sua
correspondência aos “homens jovens das classes mais carentes, salvo nos momentos de
violência política ou terrorismo de estado escancarado, nos quais o estereotipo se desvia
para varões mais jovens das classes médias”107. Nesse aspecto podemos adicionar não só
aspectos físicos, mas também de manifestações culturais desse determinado grupo social que
são correspondidos a aspectos criminais.

Esses estereótipos servem também uma importante função de catalogação:

Outra função importante em nível nacional, embora com certa cooperação


transnacional, é a fabricação dos "estereótipos do criminoso". O sistema penal atua
sempre seletivamente e seleciona de acordo com estere6tipos fabricados pelos meios
de comunicação de massa. Estes estereótipos permitem a catalogação dos
criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada,

106
ZAFFARONI, Eugenio Raul. “Tenda dos Milagres ou A denúncia do “apartheid” criminológico. In
TUBENCHLAK, James; BUSTAMANTE, Ricardo Silva de (coord.). Livro de estudos jurídicos, volume 2. Rio
de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1992, pp. 449-472.
107
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. P. 131
75
deixando de fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco,
dourada, de trânsito, etc.).108

Nesse sentido, o sistema penal operaria por meio de um filtro que busca selecionar os
que correspondem ao estereótipo do criminoso. O grau de identificação de uma pessoa com
um estereótipo criminoso define seu grau de vulnerabilidade perante o risco criminalizante,
isso é, quanto mais próxima do estereótipo criminoso mais uma pessoa é vulnerável a ser
criminalizada, necessitando por tanto de mais esforço para evitar situações que a coloquem à
mercê do poder punitivo, já que se sua correspondência ao estereótipo for alta, ela estará
sempre uma posição de risco elevada.

Essa consideração de ZAFFARONI ET AL (2011) destaca ainda como o grau de


seletividade é ainda mais elevado dentro das sociedades mais estratificadas, isso é com uma
pior divisão de renda e uma menor mobilidade social, o que corresponde aos locais que as
agências de criminalização secundária atuam de forma ainda mais violentas. Esse critério não
implica em uma mera distinção de renda, mas também nos recursos educacionais e de
habilidades sociais.

ZAFFARONI (1991) identifica duas categorias principais de estereótipos criminais


diferenciadas em sua aplicabilidade prática: a primeira seria dos estereótipos “místicos”,
estigmas que não tem possibilidade de se realizar no cotidiano, o exemplo adotado seria de
um consumidor de heroína em abstinência e violento; a segunda seria dos estereótipos
“realizáveis” que comporiam verdadeiras profecias auto-realizáveis, que para sua criação
requeriam que comportamentos violentos ou cruéis fossem efetivamente praticados, um
exemplo seria o do traficante violento em disputas territoriais.

Outro aspecto importante do papel do estigma dentro do sistema penal são as marcas
estigmatizantes que o próprio processo de criminalização exerce sobre a identidade social do
processado. Acerca dessa influência:

A carga estigmática produzida por qualquer contato do sistema penal,


principalmente com pessoas carentes, faz com que alguns círculos alheios ao sistema
penal aos quais se proíbe a coalizão com estigmatizados, sob pena de considerá-los
contaminados, comportem-se como continuação do sistema penal.

Cabe registrar que a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas
pelo simples contato com o sistema penal. Os meios de comunicação de massa

108
Ibid. P. 130
76
contribuem para isso em alta medida, ao difundirem fotografias e adiantarem-se com
qualificações como "vagabundos", "chacais", etc.

Todos esses estereótipos são criados e perpetrados pelos meios de comunicação de


massa. As agências de mídia cumprem um importante papel no rol de agências do poder
punitivo, já que reforçam a legitimidade do sistema penal, além de cumprir outras funções,
como a de seleção para a criminalização secundária já citada.

BATISTA (2003) destaca o compromisso dos órgãos de imprensa na legitimação da


pena acima de qualquer questionamento, aceitando qualquer discurso que a legitime, pouco
importando quão contraditória ou ineficaz seja essa função. Com isso a equação penal seria a
lente utilizada pela imprensa para analisar a vida pública e privada, o que reforça a lógica
punitivista enquanto hábitos mentais do público.

Essa lógica não se limitaria apenas ao noticiário criminal especificamente, mas se


espalharia para todos os âmbitos da imprensa. BATISTA (2003) identifica a aplicação dessa
lente até mesmo em matérias futebolísticas, associando por exemplo, a demanda da
transmissão esportiva por uma arbitragem rigorosa contra as faltas praticadas em jogo. Mais
efetivamente criminal, cita também o tratamento duro dispendido contra casos de doping, até
mesmo de jogadores da Seleção Brasileira.

De acordo com ZAFFARONI (1991), os meios de comunicação de massa são os


criadores das ilusões dos sistemas penais, impedindo a população de descobrir o caráter falso
dos discursos justificadores da pena por meio de suas experiências diretas. Elas são as
responsáveis por criar os medos necessários, demonstrando os conflitos que em determinada
conjuntura seja favorável a reprodução do sistema penal.

Para reforçar as ilusões do sistema penal, os meios de comunicação tendem a realizar


uma superexposição dos crimes violentos, como se esses compusessem a maioria dos delitos
praticados e seus autores a maioria dos penalizados:

A comunicação social divulga uma imagem particular da consequência mais notória


da criminalização secundária - a prisonalização - ensejando a suposição coletiva de
que as prisões seriam povoadas por autores de fatos graves (“delitos naturais”) tais
como homicídios, estupros etc., quando na verdade, a grande maioria dos
prizionados o são por delitos grosseiros cometidos com fins lucrativos (delitos

77
burdos contra a propriedade e o pequeno tráfico de tóxicos, ou seja, a obra tosca da
109
criminalidade)

Essa função seria cumprida em dois níveis: o transnacional e o das conjunturas


nacionais. No aspecto transnacional, a função dos meios de comunicação de massa é introjetar
já na tenra infância, o modelo penal de uma forma que seja mais palatável e apareça como
“divertida”. Materializado pelas séries policiais, cria-se uma concepção e expectativa acerca
das forças policiais que não correspondem à realidade nacional e gera ainda e ainda naturaliza
uma lógica violenta de perseguição e aniquilação do “mau” que passa compor o psicológico
das pessoas.

Como a grande falácia da civilização industrial ("dos céus descerá um herói para te
proteger e resolver teus problemas, eliminando a tua parte má") é criada e mantida
em forma de mitologia negativa petos meios de comunicação social de massa, a
tecnologia da manipulação que estes adquirem apresenta-se cada dia maior. O
desprezo que os "seriados" dos últimos anos demonstram pela vida humana, pela
dignidade das pessoas e pelas garantias individuais não é simples produto do acaso,
mas uma programada propaganda em favor do reforço do poder e do controle social
verticalizado-militarizado de toda a sociedade.

ZAFFARONI (2007) esclarece como esse discurso do autoritarismo norte-americana é


difundido mundialmente pela televisão, favorecido pela brevidade e impacto emocional do
estilo vindicativo desse discurso penal, e impactando especialmente na América Latina pela
sua precariedade institucional.

Já na conjuntura nacional, a função seria gerar a ilusão de eficácia do sistema e


garantem o poder das agências executivas em momentos de crise. São as campanhas de “lei e
ordem” que impedem o enfraquecimento da máquina punitiva, e que ZAFFARONI (1991)
identifica como realizadas por ferramentas de: invenção da realidade, que pode se concretizar
no exagero na representação de episódios violentos ou até na literal invenção de fatos;
profecias que se auto-realizam, que importa a criação de slogans vagos que acabam por
estimular práticas criminosas e repercussão de novos métodos delitivos; e a produção da
indignação moral, que estimula as reações sociais privadas contra os rotulados de criminosos
e glorifica os “justiceiros” e milícias.

109
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Toeria Geral do Direito
Penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P. 47
78
ZAFFARONI (2007) ilustra como por vezes as vítimas e seus parentes são utilizados
dentro dessas campanhas de lei e ordem como um reforço legitimador a partir de uma
perspectiva de vingança. Passam a ocupar um papel de comentaristas do sistema penal, como
se suas experiências individuais os qualificassem para discutir em um mesmo espaço de
técnicos e legisladores, se tornando personagens sinistros e obscuros do autoritarismo penal,
utilizados para constranger aqueles que critiquem o sistema penal.

A razão para todo esse compromisso das agências de comunicação com o exercício do
poder punitivo estatal poderia, segundo BATISTA (2003), ser rastreada nas condições
econômicas e sociais do capitalismo tardio. A indústria das telecomunicações atualmente é
composta majoritariamente por grandes conglomerados que geram lucros bilionários,
sobretudo na televisão. Os donos desses conglomerados são normalmente grupos econômicos
diversificados cujos negócios se estendem por vários âmbitos da sociedade. Com isso, esses
meios de comunicação não possuem caráter neutro, se alinham aos interesses de seus donos
que passam pela replicação das estruturas neoliberais, inclusive no controle social realizado
no âmbito penal.

Com isso, os meios de comunicação criam um discurso penal alternativo ao discurso


acadêmico e que, até pelas próprias características de cada âmbito, possuí um alcance e
infiltração social infinitamente superior que assim se pretende hegemônico. Com isso,
conseguem pautar as agências executivas do sistema penal e até mesmo operar como se fosse
uma delas. Como exemplo dessa influência, BATISTA (2003) cita como certos operadores do
direito por vezes flexibilizam garantias processuais-penais apenas para satisfazer um apelo
midiático, especialmente em casos de grande repercussão. Nessa confusão entre mídia e
direito, “a natureza real desse contubérnio é uma espécie de privatização parcial do poder
punitivo, deslanchado com muito maior temibilidade por uma manchete que por uma portaria
instauradora de inquérito policial.”110

Este conjunto contribui para conservar um sistema simbólico 'fechado", cujas


consequências mais notórias são a reprodução e fortalecimento da verticalização
corporativa da sociedade. Em nossa região marginal, este processo gera o

110
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista brasileira de ciências criminais. São
Paulo, v. 11, n. 42, p. 242–263, jan./mar., 2003.
79
fortalecimento dos vínculos neocolonialistas na versão ainda mais genocida com que
os ameaça hoje o tecnocolonialismo. 111

5.3 PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO

5.3.1 SELETIVIDADE, CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA E


SECUNDÁRIA

Como previamente mencionado, a passagem da criminologia tradicional para a


chamada criminologia crítica implicou em uma transição do objeto de estudo da criminologia.
Se antes o objeto estudado era o crime, suas causas, justificativas e métodos de
enfrentamento, passa a ser analisado o processo de criminalização, isso é, as determinantes
que levam uma conduta específica a ser classificada como um crime e o processo que forma
essas determinações.

BARATTA (2002) identifica a criminalidade como uma espécie de “bem negativo”,


um status que era atribuído para determinados indivíduos, distribuído conforme a hierarquia
de interesses fixada pelas relações sociais e econômicas. Esse conceito ataca a falsa
concepção liberal do Direito Penal enquanto um direito igual, em que todos os cidadãos têm
seus bens jurídicos igualmente protegidos e no qual as qualidades do autor não seriam levadas
em consideração, apenas sendo verificado se praticou condutas violadoras da norma, com
todos que a violarem sofrendo as mesmas consequências previamente estabelecidas pelo texto
legal.

Em oposição a esse mito do Direito clássico, BARATTA (2002) expressa três


preposições críticas: a) os bens jurídicos defendidos pelo direito penal não incluem todos os
bens essenciais e ainda envolve bens que não seriam identificados como essenciais, realizando
a penalização das ofensas de forma fragmentária e desigual; b) o status de criminoso é
distribuído de modo desigual entre os integrantes da sociedade, ou seja, a lei penal não é para
todos; e c) a danosidade social de uma conduta ou a gravidade da violação de uma lei não são
as principais variáveis do grau de tutela e da distribuição do status criminoso que orientam a
reação estatal criminalizante e sua intensidade. O direito penal seria, portanto, o direito
desigual por excelência.

111
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução: Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. P. 132
80
Isso se dá pelo elemento da seletividade que orienta a criminalização, característica
estrutural do sistema penal. ZAFFARONI (1991) identifica como o sistema penal é
construído para operar dentro de uma arbitrariedade seletiva, especialmente ao considerarmos
a impossibilidade de ser criminalizada a toda a população. Um cenário em que todas as
hipóteses do “dever ser” fossem igualmente penalizadas, como pressupõe o discursos
jurídico-pena, seria completamente absurdo Assim o critério da legalidade é substituído no
exercício do poder por uma arbitrariedade seletiva orientada contra os setores mais
vulneráveis da sociedade. Essa substituição seria a demonstração mais elementar e mais clara
da falsidade da legalidade processual.

A operação do sistema penal, ou seja, os responsáveis por realizar a seleção e


atribuição do “bem negativo da criminalidade” são identificados por ZAFFARONI ET AL
(2011) utilizando a categoria de agências, entendidas no sentido neutro de entidades que
atuam dentro do sistema penal. Nessa classificação, divide as agências em: políticas, judiciais,
policiais, penitenciárias, de comunicação social, de reprodução ideológica e internacionais.
Cada agência exerceria uma função dentro do sistema penal visando cumprir o objetivo de
seleção e punição dos indivíduos vulneráveis. No entanto, a convivência entre essas agências
não seria completamente harmônica, mas marcada por relações de concorrência tanto dentro
de cada categoria de agência quanto entre agências, marcada por uma pressão para intensificar
cada vez mais seus exercícios punitivos.

O processo seletivo de criminalização seria dividido em duas etapas, a criminalização


primária e a secundária, definidas por Zaffaroni pela seguinte descrição:

Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que
incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-se de um ato formal
fundamentalmente programático: o deve ser apenado é um programa que deve ser
cumprido por agências diferentes daquelas que o formulam, Em geral, são as
agências políticas (parlamentos, executivos) que exercem a criminalização primária,
ao passo que o programa por elas estabelecido deve ser realizado pelas agências de
criminalização secundária (policiais, promotores advogados, juízes, agente
penitenciários). Enquanto a criminalização primária (elaboração de leis penais) é
uma declaração que, em geral, se refere a condutas e atos, a criminalização
secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando
as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato
criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua
liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e

81
admite um processo (ou seja, o avanço de uma série de atos em princípios públicos
para assegurar-se, na realidade, o acusado praticou aquela ação); no processo
discute-se publicamente se esse acusado praticou aquela ação e, em caso afirmativo,
autoriza-se a imposição de uma pena de certa magnitude que, no caso da privação da
liberdade de ir e vir da pessoa, será executada por uma agência penitenciária
(prisonização).112

A criminalização primária opera uma primeira camada da orientação seletiva do


Direito Penal, conforme identifica BARATTA (2002) ao definir os bens jurídicos a serem
protegidos e os comportamentos que violam esses bens jurídicos. Essa seleção não é neutra,
mas privilegia os interesses das classes dominantes, o que pode ser verificado no especial
tratamento que o bem jurídico “patrimônio” recebe na legislação penal nacional, sendo
protegido mais intensamente do que a própria vida. Ao mesmo tempo, o processo de
criminalização é dirigido para as formas típicas de desvio das classes subalternas com uma
intensidade mais elevada. Além disso, aduz que as próprias formulações técnicas das normas
penais compõem uma rede mais fina sobre os crimes típicos dos mais pobres e uma rede mais
larga quando aplicado sobre os crimes dos ricos.

CIRINO DOS SANTOS (2018) reforça a visão de Baratta ao identificar como o


conceito de crime da sociedade capitalista excluí a criminalidade estrutural, identificada como
os abusos de uma classe dominante contra as classes subalternas, mas reforça os crimes que
ameaçam a ordem econômica, fundada na propriedade privada dos meios de produção, e os
crimes que contrariam a superestrutura política e judicial.

No entanto, a principal expressão da seletividade dentro do Sistema Penal opera-se a


partir da criminalização secundária, isto é, da aplicação das normas penais pelas agências do
poder punitivo. ZAFFARONI ET AL (2011) destaca o papel preponderante que as agências
policiais assumem na seletividade do sistema penal visto que são elas quem realizam a
seleção direta dos vulneráveis enquanto as agências judiciais apenas têm acesso aos poucos
casos previamente investigados. Essa característica seria inevitável dentro da estrutura do
sistema penal e permite um exercício altamente arbitrário do poder punitivo.

O autor destaca como é essa seleção da criminalização secundária praticada pelas


agências penais que torna os instrumentos penais inoperantes quando se tenta aplicá-los a uma
clientela diversa dos vulneráveis que normalmente se aplica, com isso ela se mostra inefetiva

112
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Toeria Geral do Direito
Penal. 4ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P. 43
82
ao enfrentar, por exemplo, os delitos do poder econômico (denominados crimes de colarinho
branco) e os terroristas com seus métodos de conflito não-convencionais e de letalidade
massiva.

Ao ser aplicado em casos excepcionais aos clientes não-convencionais ele se torna


desconcertado, não sabendo como operar dentro desse quadro. Nesse contexto, são
apresentados exemplos que retratam como essas hipóteses podem gerar descoordenação nas
agências integrantes do Direito Penal já que enquanto as agências políticas e de comunicação
social costumam pressionar por uma punição dentro de seus discursos de lei e ordem, as
agências penitenciárias tendem a oferecer um tratamento privilegiado como celas individuas.
As agências jurídicas por sua vez podem ser confundidas por uma criminalidade mais
complexa, contra a qual não foram acostumados a operar seus instrumentos.

Porém como alerta BATISTA (2007) as raras exceções da aplicação do sistema penal
aos seus clientes habituais são utilizadas como um aparato para a reafirmação do caráter
supostamente igualitário do Direito. Esta reafirmação se opera a partir de uma superexposição
desses casos, sobretudo pelas agências de comunicação social, visando assim sugerir que
essas exceções que confirmam a regra sejam percebidas como algo rotineiro no sistema penal
brasileiro.

Na prática do sistema penal, ZAFFARONI ET AL (2011) expõe que o poder punitivo


criminaliza selecionando majoritariamente as pessoas que se enquadram no estigma
apresentado diante de sua vulnerabilidade; com uma frequência consideravelmente inferior as
pessoas que não se enquadram no estereótipo, porém cometeram crimes considerados
excessivamente graves ou grotescos (exemplo: o parricidio de Suzane Von Richthofen); ou
em casos ainda mais excepcionais alguém cuja posição social tornava-o praticamente
invulnerável ao risco criminalizante, porém sofreu uma derrota em uma disputa pelo poder
hegemônico e com isso tornou-se vulnerável (o caso de Eike Batista e o processo que sofreu
por crimes contra o mercado de capitais, porém somente após perder uma parcela significativa
de seu poder econômico).

No entanto, o autor também nega qualquer pretensão conspiratória que pretende


afirmar que um sujeito ou conjunto de sujeitos determinados manipula o sistema penal contra
os mais vulneráveis. Embora o funcionamento seletivo do sistema penal sirva para uma
desigual distribuição do poder punitivo, isto não significa pretender que estes beneficiados o
organizem e manejem em sincronia, como se fosse tudo um grande combinado. Essa visão
83
enfraqueceria a crítica ao sistema penal por identificar um bode expiatório de um determinado
grupo ao invés de criticar as estruturas punitivas e o sistema como um todo, que se opera
pelos conflitos das agências

Assim podemos concluir acerca da relação entre a seletividade e a criminalização


secundária praticada pelas agências policiais e judiciais que:

A seletividade é estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja


regra geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do
candidato, sem prejuízo de que, em alguns, esta característica estrutural atinja graus
e modalidades aberrantes. Por isso, a criminalização corresponde apenas
supletivamente à gravidade do delito (conteúdo injusto do fato): esta só é
determinante quando, por configurar um fato grotesco, eleva a vulnerabilidade do
candidato. Em síntese: a imensa disparidade entre o programa de criminalização
primária e suas possibilidades de realização como criminalização secundária
obriga a segunda a uma seleção que, em regram recaí sobre fracassadas
reiterações de empreendimentos ilícitos que insistem em seus fracassos, através de
papéis que o próprio poder punitivo lhes atribuí ao reforçar sua associação com as
características de certas pessoas mediante o estereótipo seletivo.

A partir dessa concepção da criminalização secundária e da seletividade, é interessante


resgatar a definição do processo de criminalização trazida por Juarez Cirino dos Santos:

O processo de criminalização, nos componentes de produção e de aplicação de


normas penais, protege seletivamente os interesses das classes dominantes, pré-
seleciona os indivíduos estigmatizáveis distribuídos pelas classes e categorias
sociais subalternas e, portanto, administra a punição pela posição de classe do autor,
a variável independente que determina a imunidade das elites de poder econômico e
político e a repressão das massas miserabilizadas e sem poder das periferias
urbanas, especialmente as camadas marginalizadas de mercado de trabalho,
complementada pelas variáveis intervenientes da posição precária no mercado de
trabalho e da subsocialização - fenômeno definido como administração diferencial
da criminalidade.

A definição de Juarez Cirino é excelente por destacar as funções que o processo de


criminalização opera na sociedade capitalista. Esse aspecto será mais bem analisado no
próximo item em que o controle social enquanto função do sistema punitivo será colocado em
voga.

84
5.3.2 CONTROLE SOCIAL E A REALIDADE LATINO-AMERICANA

Como exposto, o sistema penal atua pela seleção e criminalização dos vulneráveis a
partir da chamada criminalização secundária que aplica as normas penais contra indivíduos
específicos. No entanto, embora esse modelo implique na criminalização de uma porcentagem
elevada de indivíduos no país, ele corresponde a uma pequena fração do efetivo poder
exercido pelas agências do sistema penal.

Isso porque, na lição de ZAFFARONI (1991) inspirado pelas investigações de


Foucalt, o principal poder que o sistema penal exerce na realidade social é o positivo,
configurador de comportamentos e normas sociais próprias, e não o poder negativo da
repressão punitiva mediada pelos órgãos judiciais. Por meio de uma renúncia aos limites da
legalidade, os órgãos do sistema penal e em especial as agências policiais, são responsáveis
pelo exercício de um “controle social militarizado e verticalizado”.

É esse o aspecto do sistema penal que é aplicado no cotidiano e com o qual a grande
maioria da população tem seu principal contato real com o sistema, porém os discursos
jurídico-penais rotineiramente deixam de reconhecer esse aspecto central do sistema punitivo
por ele se colocar a margem da legalidade. Assim como esses discursos analisam apenas a
norma e a pretendem realidade deixam de perceber aquele que talvez seja o principal aspecto
do sistema penal.

O poder de controle social dos órgãos penais é, portanto, exercido a partir da


vigilância exercida pelos órgãos de controle que impõe uma disciplina militarizada para a
população que ao interiorizar essa disciplina passa a atuar de forma submissa ao poder da
autoridade. Com isso, as condutas públicas e privadas dos indivíduos são afetadas por essa
vigilância já assimilada pela psiquê da população. A efetivação desse controle é realizada por
meio de diversos atos que jamais serão objeto das agências judiciais que incluem:

A detenção arbitrária de suspeitos, a identificação de qualquer pessoa que lhes


chame a atenção, a detenção por supostas contravenções, o registro das pessoas
identificadas e detidas, a vigilância sobre locais de reunião e de espetáculos, de
espaços abertos, o registro de informações recolhida durante a tarefa de vigilância, o
controle alfandegário, o fiscal, o migratório, o veicular, a expedição de documento
pessoal, a investigação da vida privada de pessoas, os dados pessoais recolhidos no
decorrer de investigações distintas, a informação sobre contas bancárias, patrimônio,
conversas provadas, comunicações telefônicas, telegráficas, postais, eletrônicas etc. -
tudo sob o argumento de prevenir e vigiar para a segurança ou a investigação com
85
vistas à criminalização -, constituindo um conjunto de atribuições que podem ser
exercidas de um modo tão arbitrário quanto desregrado e que proporcionam um
poder muitíssimo maior e enormemente mais significativo que o da reduzida
criminalização secundária113

O papel menos abrangente da criminalização secundária perante o do controle social


pode ser percebido na divisão entre a Polícia Militar e a Polícia Civil e a diferença no
contingente de cada corporação. A Polícia Militar do Estado de São Paulo que tem como
funções declaradas “fazer cumprir a lei” e “preservar a ordem pública”114, mas que tem como
principal função real o controle social, possuía no início de 2023 um efetivo de 79.943
policiais115. Já a Polícia Civil do Estado de São Paulo, cuja função declarada é “exercer as
funções de polícia judiciária e a investigação criminal”116 e que tem como principal função
real a primeira seleção da criminalização secundária tinha no final de 2022 um efetivo total de
26.350 policiais, efetivo esse que seria inferior até mesmo ao da Polícia Penal, responsável
pela ordem penitenciária117.

Embora a Polícia Militar também atue de forma significativa na criminalização


secundária por meio das prisões em flagrante, é interessante consignar como até mesmo
dentro das previsões do discurso político-penal é possível perceber como o controle social é a
principal função do sistema penal.

Dentro da realidade latino-americana, o controle social é ainda operado dentro das


estruturas jurídicas por meio do aprisionamento cautelar que ZAFFARONI (2007) identifica
como responsável por aproximadamente ¾ das prisões. Embora essas previsões representem
uma inversão do sistema penal tradicional, elas constituem o exercício padrão do poder
punitivo na região.

113
Ibid. P. 52
114
Polícia Militar do Estado de São Paulo. Site oficial. São Paulo, SP. Disponível em <
https://www.policiamilitar.sp.gov.br/institucional/missao-e-visao> Acesso em 12 de outubro de 2023.
115
COMANDANTE DA PM DE SP DIZ QUE NÚMERO DE POLICIAIS É INSUFICIENTE PARA
PROTEGER TODA A POPULAÇÃO Folha de S.Paulo, São Paulo, 03 fev. 2023. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/02/comandante-da-pm-de-sp-diz-que-atual-efetivo-e-
insuficiente-para-proteger-toda-populacao.shtml> Acesso em 12 de outubro de 2023
116
Polícia Civil do Estado de São Paulo. Site oficial. São Paulo, SP. Disponível em <
https://www.policiacivil.sp.gov.br/portal/faces/pages_home/institucional/estruturaCompetencias?_afrLoop=1256
3304651170&_afrWindowMode=0&_afrWindowId=y6ffdojjm_1#!%40%40%3F_afrWindowId%3Dy6ffdojjm_
1%26_afrLoop%3D12563304651170%26_afrWindowMode%3D0%26_adf.ctrl-state%3Dy6ffdojjm_69 >.
Acesso em 12 de outubro de 2023.
117
SP TEM MAIS POLICIAIS PARA CUIDAR DE PRESOS DO QUE PARA INVESTIGAR CRIMES Folha
de S.Paulo, São Paulo, 06 mar. 2023. Disponível em
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/02/comandante-da-pm-de-sp-diz-que-atual-efetivo-e-
insuficiente-para-proteger-toda-populacao.shtml> Acesso em 12 de outubro de 2023
86
As medidas cautelares se convertem em privações de liberdade ilimitadas baseadas
apenas na presunção de periculosidade de um indivíduo. As condenações formais ocorrem
apenas após um longo período de aprisionamento cautelar que acaba por ser mais significante
do que as próprias condenações.

Outro aspecto das sociedades latino-americanas que agrava as contradições do sistema


penal é o problema da exclusão social que não é controlada por meios de repressão direta, mas
sim neutralizada. Ela favorece um discurso penal que ZAFFARONI (2007) denomina como
“cool” e constituí uma pulsão punitiva e autoritária que busca a expansão do sistema penal
como compensação de uma sociedade pouco coesa que projeta uma sensação de insegurança
em seus membros.

Descrevendo as razões para a aceitação desse sistema, Zaffaroni consigna que:

Dado que a mensagem é facilmente propagada, rentável para os empresários da


comunicação social, funcional para o controle dos excluídos, bem-sucedida entre
eles e satisfatória para as classes médias degradadas, não é raro que os políticos se
apoderem desse discurso e até o disputem, Como o político que pretender
confrontar-se este discurso será desqualificado e marginalizado dentro do seu
próprio partido, ele acaba assumindo-o, seja por cálculo eleitoreiro, por oportunismo
ou por medo. Assim se impõe o discurso único do novo autoritarismo. 118

Dentro desse discurso, vende-se a ilusão da segurança pública por meio do controle
social penal que deveria ser materializado a partir de novas leis cada vez mais punitivas e
aumentando a arbitrariedade policial legitimando direta ou indiretamente a violência dessas
agências. Esse discurso legitimador do controle social policialesco aproxima-se de um
patamar nas sociedades latino-americanas de discurso político único, já que os representantes
que não se incluem no discurso acabam afastados de seus próprios partidos.

ZAFFARONI (2007) considera esse discurso “cool” do controle social completamente


opaco, desprovido das capacidades criativas e de convicção do discurso autoritário ideológico
que, embora perverso, apresentava suas ideias de forma sistemática expondo quem seriam
seus inimigos perseguidos. O discurso “cool” por sua vez apresenta uma frontalidade
grosseira, devendo seu sucesso publicitário justamente a sua falta de elaboração, que parece
instintiva e não demanda qualquer pensamento de seu público

118
ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Pensamento
Criminológico). Tradução: Sérgio Lamarão p. 73
87
Nesse cenário um dos elementos mais perigoso do autoritarismo cool é justamente sua
falta de uma definição clara do inimigo:

O certo é que neste autoritarismo cool não se sabe quem é o inimigo, pois estes se
sucedem sem somar-se; em lugar de defini-los fotograficamente, são projetados
cinematograficamente, como constructos em série dos meios de comunicação, em
especial da televisão. O Estado não os define: as autoridades encontram-se sitiadas
pelas sucessivas imposições dos meios, cuja velocidade reprodutiva é tão
vertiginosa que impede os baques capazes de abrir espaço aos discursos críticos.
Nem sempre existe uma outra corporação que pretenda construir inimigos
diferentes e que para isso precise desarmar os mitos anteriores: comumente, é essa
mesma corporação produtora de inimigos que os descarta e substituí. Os ciclos
anteriores se precipitam, passando de corrente alternada a corrente contínua.

Esse discurso não é perpetrado e introjetado na ordem social por meio de seus órgãos
de controle meramente por atender as expectativas de uma classe média, mas porque exerce
uma função na estrutura social. Como ensina BATISTA (2007), o direito penal (e podemos
inferir também o sistema penal) é legislado para cumprir funções reais dentro e para a
sociedade, visando cumprir finalidades concretas dentro dessa estrutura social, a realização de
algo, e não para celebrar valores perenes ou glorificar paradigmas morais consagrados.

Com isso, CIRINO DOS SANTOS (2018), inspirado pelas conclusões de Rusche e
Kirchheimer irá examinar as relações sociais pelo instrumental do materialismo-dialético
marxista e irá identificar as relações entre a fábrica, instituição das relações de produção,
identificado como ponto de incidência e o objetivo real dos mecanismos de controle social,
dentre os quais o mais importante é o sistema punitivo, o qual garante os fundamentos e
reproduz as condições das relações de produção. Neste sentido irá explicar a problemática
entre as funções declaradas e as funções reais do sistema punitivo:

Na verdade, são as contradições da estrutura econômica das relações de produção e


riqueza material que explicam as contradições da superestrutura jurídica e política do
Estado, manifestados na separação dos objetivos ideológicos (difusão de
representações ilusórias da realidade) e dos objetivos práticos do Direito (instituição
e reprodução das relações sociais de produção).

Assim, para não estender as considerações nesse ponto para além do escopo do
presente trabalho, podemos encerrar a exposição teórica adotando a premissa proposta por
Juarez Cirino dos Santos de que o sistema penal cumpre uma função dentro da sociedade
capitalista de garantir os fundamentos das relações de produção.
88
6 CONCLUSÕES ACERCA DO PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO
DAS TORCIDAS ORGANIZADAS

Como exposto no capítulo 4.1, as torcidas organizadas sofreram uma alteração na


forma como eram representadas nos meios de comunicação de massa que se iniciou de forma
mais tímida na segunda metade da década de 1980 e se intensificou na década de 1990 após o
assassinato de Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, presidente da Mancha Verde a época. A
imagem dessas agremiações que era ligada a elementos de festa e espetáculos associados ao
comportamento delas em arquibancadas vai ser deslocada para uma associação com a
violência e aos enfrentamentos entre torcedores.

Essa modificação se enquadra nas concepções dos teóricos do labelling aproach


acerca da construção do estigma social que leva alguns indivíduos a serem excluídos da
sociedade comum, tornando-os mais vulneráveis a seletividade penal exercida pelas agências
policiais.

A classificação de Outsider utilizada por Becker pode facilmente ser aplicada as


torcidas organizadas: são integrantes de um grupo social próprio com suas próprias normas e
comportamentos que por sua vez contraíam as normas de outros grupos sociais. Porém como
essas agremiações de torcedores possuem um grau pouco elevado de poder político e
econômico são incapazes de estabelecer suas normas enquanto leis aplicáveis para a
sociedade. Assim, por não corresponderem as normas sociais, tornadas leis, daqueles que
detém esse poder político, suas condutas são rotuladas como desvios e seus grupos
identificados como Outsiders.

Ainda na teoria de Howard Becker, as torcidas organizadas poderiam ser encaradas


como carreiras desviantes, especialmente considerando-se o perfil assumido por essas
agremiações a partir da década de 1980 e reforçado na década de 1990. Utilizando seu
paradigma, poderíamos interpretar que o rótulo de desviante continuamente aplicado contra
essas organizações no período mencionado afetou a autoimagem de seus integrantes e
estimulou a prática de novos delitos, contribuindo para o aumento no número de casos de
violência envolvendo essas agremiações nas décadas seguintes.

Uma outra explicação plausível para esse aumento seria a consideração formulada por
Alessandro Baratta e previamente citada, pela qual o índice de crimes verificados aumentou
89
em razão de as condutas praticadas estarem sofrendo um maior escrutínio das agências
policiais após a formação do estigma. Outra alternativa possível diz respeito não a
autoimagem pessoal, mas sim as características dos integrantes do grupo, com uma mudança
na representação midiática atraindo novos integrantes que tivessem comportamentos e
condutas diferentes. Embora todas essas hipóteses pareçam explicar satisfatoriamente o
fenômeno apresentado, o presente trabalho, por cautela, irá evitar assumir qualquer
perspectiva: primeiro por não ser o escopo adotado e segundo pela ausência de elemento
suficientes.

Encerrada essa consideração, retomamos a análise da formação do estigma contra os


torcedores organizados a partir de Goffman. Dentro da classificação por ele proposta, o
estigma dos torcedores organizados estaria associado “as culpas de caráter individual,
percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas,
desonestidade”119. Seria, portanto, um estigma associado aso comportamento e a
considerações morais.

Podemos identificar a posição de torcedor organizado como um estigma dentro da


definição proposta por Gofmann em razão da identidade do indivíduo que a compõe carregar
uma série de atributos, percebidos socialmente como majoritariamente negativos, que
terceiros utilizam para formular suas preconcepções em relação a esse indivíduo e modularem
suas expectativas e ações em relação a ele, implicando em um descrédito desse sujeito. No
caso específico, alguns desses atributos poderiam ser identificados como “violento”,
“criminoso”, “louco” ou até “selvagem”.

Esse seria classificado como desacreditável e não como desacreditado na concepção


de Goffman porque o estigma de torcedor organizado depende de um prévio conhecimento
dessa característica do interlocutor ou de este utilizar algum símbolo que comunique esse
estigma, prática bastante comum nesses grupos ao menos nas situações específicas de jogos
momento em que a condição de torcedor organizado é percebida, dentro do grupo, como
honrável ainda que a maior parte da sociedade discorde.

A consideração de que os estigmas por vezes vêm acompanhados de uma construção


ideológica que busca justificar uma animosidade anterior e irracional. Como previamente
exposto, o torcedor organizado quase sempre corresponde a um jovem pardo ou negro de uma

119
GOFMANN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Tradução por Maria
Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. P. 7
90
classe social baixa, com pouco acesso à educação formal. Essas características por si já
despertam um ódio de diversos setores da sociedade e ao deslocar a causa dessa animosidade
de razões raciais e de classe para um estigma associado ao crime.

Dentro da teoria de Dennis Chapman, o torcedor organizado também pode ser


classificado como um estereótipo de delinquente. Além de suas características típicas (idade,
cor e classe) coincidirem com o que o autor denomina o estereótipo do criminoso, a
identidade de torcedor organizado configura um estereótipo de delinquente específico que é
aplicado ao indivíduo que será selecionado no momento da aplicação das estruturas penais.

Percebemos então que o estigma como definido pelos teóricos do rotulacionismo


apresentados é uma categoria plenamente aplicável ao torcedor organizado da segunda metade
da década de 90.

Pela categorização dos estigmas proposta por Zaffaroni, dividindo os estereótipos


entre “místicos” e “realizáveis”, o do torcedor organizado sem dúvidas estaria no realizável, já
que de fato esses agrupamentos realizavam confrontos e atos violentos, compondo assim a
profecia auto-realizável.

Como exposto por Felipe Tavares Paes Lopes e outros estudiosos dessas agremiações,
esse estigma das torcidas organizadas foi formado em grande parte pelas ações das agências
de comunicação social que transformavam os atos violentos em espetáculo, explorando e
sensacionalizando as imagens de brigas. É a superexposição dos crimes violentos, apontada
por Zaffaroni, que a mídia realiza visando legitimar o sistema penal.

A cobertura midiática intensa realizada sobre as condutas das torcidas organizadas, ao


se deslocar de uma exposição da “festa das arquibancadas” para os episódios de violência, que
foi exposta no capítulo 4, realizada especialmente intensa pelo setor esportivo da Folha de S.
Paulo, sem dúvidas contribuiu para que a imagem dessas agremiações se tornasse o estigma
de pessoas violentas e selvagens que foi apresentado.

Nesse sentido, os dois grandes marcos iniciais adotados para definição desse processo
de criminalização foram justamente dois eventos de violência entre torcedores que foram
retirados de um contexto específico, repercutidos intensamente nos meios de comunicação de
massa e utilizados como justificativa para alçar as condutas dos torcedores organizados a um
local de problema social.

91
A morte de Cleo, a época presidente da Mancha Verde representou um evento
traumático nas relações entre torcedores organizados, mas do ponto de vista social pode ser
visto como um mero (não se questionando aqui o valor de uma vida ou o peso de um
homicídio, mas colocando dentro da escala macrossocial) homicídio, cuja relação com seu
status de líder de uma torcida organizada, embora provável, jamais foi comprovado. A
Batalha do Pacaembu, por sua vez, foi um caso de violência entre torcidas no geral, em que
estavam presentes torcedores organizados, mas não exclusivamente.

Foi o tratamento que as agências de comunicação social deram a esses eventos e a


diversos outros que resultou na criação e no fortalecimento de um estigma contra os
torcedores organizados, retratados como violentos, bárbaros e desprovidos de compaixão nas
páginas dos jornais, essa concepção acaba sendo adotada pelo senso comum.

Auxiliou ainda mais nessa formação estigmática que os torcedores organizados fossem
sempre associados aos torcedores violentos, ainda que em casos que algum torcedor
organizado sequer estivesse envolvido. A construção dessa correspondência discursiva, como
apontada por Felipe Tavares Paes Lopes, implicava que todos os casos de violência ligados ao
futebol que fossem noticiados reforçavam a carga estigmática dos torcedores organizados.

Nesse caso, as torcidas organizadas e suas condutas violentas, ao serem expostas com
constante alarde pelo noticiário comum e em especial esportivo, legitimavam o avanço do
poder das agências que compõe o sistema penal para o âmbito do futebol. Foi o que ocorreu
com a criação de leis penais específicas para os casos de violência e tumultos ligados ao
futebol, bem como em relação as medidas administrativas.

Com isso, identificamos que as torcidas organizadas foram selecionadas como


verdadeiros inimigos no discurso penal e no próprio exercício do poder punitivo,
especialmente quando analisamos o âmbito específico do futebol.

O caráter belicoso com que expoentes do jornalismo esportivo como Alberto Helena
Jr. e Juca Kfouri e autoridades públicas como o então promotor Fernando Capez enxergavam
a necessidade de uma perseguição e extinção dessas agremiações reforça como eram
enxergados, na perspectiva de uma guerra, como inimigos. O seu enfrentamento é a
providência necessária e não a prevenção ou punição de qualquer crime específico.

Dentro da concepção de Jakobs, conforme exposto no item 5.1.1, o inimigo seria


aquele que não oferece segurança cognitiva de que irá cumprir com as expectativas

92
normativas do restante da sociedade. Em razão disso, ele ameaça a confiança no cumprimento
das normas, o que impede essas normas de exercerem seu caráter orientador e impede a
efetivação de uma juricidade completa, com isso ameaçando a própria integridade social

Os comportamentos dos torcedores organizados seriam vistos por Jakobs dentro dessa
ótica como indicadores de que estes não oferecem uma segurança jurídica de cumprimento
das normas sociais. O envolvimento cotidiano em brigas e confrontos motivados por razões
consideradas fúteis, que a qualquer momento podem estourar proporcionando uma indefinição
de seus comportamentos, seriam verificados nessa ótica como um constante e reiterado
desrespeito às normas sociais. Isso permitiria a identificação desses indivíduos como
inimigos.

Vez que caracterizados como inimigos, a consequência lógica na teoria de Jakobs seria
a perda de sua condição de pessoa e dos direitos de sua personalidade. Nesse caso, a perda
deveria, de acordo com as proposições de Polaino-Orts ser referente apenas ao aspecto da
personalidade relevante para a situação, ou seja, o de torcedor, de frequentador dos estádios,
do lazer esportivo, com os direitos referentes podendo ser recuperados caso o indivíduo seja
capaz de demonstrar que não mais ameaça à segurança-cognitiva de seus pares.

Com isso, todos os instrumentos do Direito Penal do Inimigo seriam aplicáveis contra
os torcedores organizados, para o cumprimento de sua função, visando a neutralização das
suas periculosidades focadas representadas pelos torcedores organizados. Na visão de Jakobs
essas medidas sequer seriam penas, já que seriam desprovidas de seu caráter comunicativo,
além de não precisarem se restringir as previsões da dogmática penal ou mesmo da prática
efetiva de uma conduta pelo torcedor, já que o mero perigo que ele representa já autoriza sua
persecução.

Em verdade, certas medidas estabelecidas nos anos posteriores a Batalha do Pacaembu


já poderiam ser identificadas como medidas usualmente adotadas pelo Direito Penal do
Inimigo, ainda que bastante reduzidas em escopo, por serem adotas por vezes mediante
normas não penais.

É o caso das medidas de afastamento. O Estatuto do Torcedor em seu art. 39 previa a


proibição do torcedor que gerar tumultos, incitar a violência ou invadir o gramado de
comparecer a novos eventos e suas proximidades por um prazo de 3 meses a 1 ano. Essa
medida, como exposto por Polaino-Orts, seria uma medida de afastamento restrita a um

93
âmbito de inimizade específico e seria justificado para neutralizar a periculosidade que o
torcedor organizado representa tanto aos demais participantes do evento e a própria segurança
cognitiva da sociedade.

O enfoque dado a questão da organização também seria um aspecto comum do Direito


Penal do Inimigo que encontra alguma ressonância no enfrentamento das torcidas
organizadas. Embora em momento algum tenha existido concretamente um crime de
associação referido especificamente as torcidas organizadas, a possibilidade de caracterizar
esses grupos enquanto uma modalidade de associação criminosa não seria um disparate na
concepção de operadores do poder público.

O próprio Fernando Capez afirmava que essas agremiações de torcedores eram na


realidade organizações constituídas com o propósito de cometer crimes. O argumento
utilizado por ele para requer a extinção das torcidas organizadas paulistas foi no sentido que
as ações das torcidas organizadas estariam desviando-se de seus estatutos e dedicando-se a
prática de ilícitos.

Por fim, ainda que fora do período analisado, não se pode deixar de mencionar que o
Estatuto do Torcedor, por meio das alterações promovidas em 2010, passou a prever uma
hipótese de um crime de posse.

O referido diploma legal, em seu artigo 41-B, parágrafo 1°, inciso II dispõe que:

Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito
aos competidores em eventos esportivos: Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e
multa.

§ 1o Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que:

(...)

II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu


trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que
possam servir para a prática de violência.

A referida previsão legal possuí duas das principais tônicas do Direito Penal do
Inimigo: a antecipação da barreira punitiva e a desproporção no cálculo da pena. O referido
tipo pune a mera posse de instrumento que possa servir para a prática de atos violentos, não
apenas antecipando o momento de configuração do delito para antes que qualquer ação ou
omissão seja praticada, mas ainda trazendo uma disposição extremamente aberta. Quais

94
objetos podem ser identificados como passíveis de utilização para violência? Objetos de haste,
pesados ou até mesmo chaves podem ser assim utilizados, gerando um tipo penal
excessivamente indeterminado. Além disso, a desproporção no cálculo da pena se opera já
que, embora as penas previstas sejam relativamente baixas, não há uma diminuição
proporcional como consequência da antecipação. A efetiva incitação à violência e a mera
posse de objetos que possam servir a esse propósito são punidos com o mesmo rigor.

Ao incorporarmos as proposições críticas de Eugênio Raul Zaffaroni acerca da


categoria de inimigo no Direito Penal e a proposta de contenção dessa tendência formulada
por Gunter Jakobs verificamos ainda mais como essa categoria pode ser aplicável na análise
do processo em questão.

Com sua acertada análise da história do exercício do poder punitivo e dos discursos
penais, o autor argentino nos demonstra como este sempre reprimiu e controlou de modo
diferente os iguais e os indesejáveis, visando a eliminação dos últimos. Os comportamentos
dos clubes e dos órgãos diretivos do futebol sempre deixaram claro que os torcedores
organizados representavam os indesejados nesse ambiente, sendo apontados como um
impeditivo a modernização e evolução do futebol enquanto espetáculo. Assim ao serem
confrontados com o sistema punitivo nessa condição, esses torcedores são identificados pelo
sistema penal como indesejáveis, não apenas por suas características de inclusão na sociedade
em geral, mas por serem identificados nesse sentido por aqueles que exercem poder no âmbito
do futebol. Embora essa punição seja efetivada por órgãos próprios do sistema penal, o
estereótipo apontado pelos clubes e dos órgãos diretivos do futebol gera uma influência, já
que esses são também poderosos na sociedade geral e são capazes de reforçar o estigma já
atribuído

Dentro da crítica as proposições de Jakobs, Zaffaroni percebe como a adoção do


conceito de inimigo no Direito Penal, ainda que se pretendesse que essa legitimação fosse
restrita a um âmbito específico, seria danosa diante da constante pressão pela expansão do
poder punitivo que o Estado de Polícia exerce. Com isso, como a identificação da necessidade
e a designação do inimigo é sempre realizada pelo soberano em uma decisão política, ele pode
sempre expandir esse poder e designar quem deseja.

Percebe ainda como a adoção de um inimigo que não seja sempre visualmente
identificável pressupõe um aumento do controle social sobre a população como um todo para

95
permitira que o inimigo seja identificado e neutralizado. A justificativa de uma garantia da
segurança ocasiona uma restrição geral de direitos.

Novamente, foi o que ocorreu em relação as torcidas organizadas e os demais


torcedores na segunda metade da década de 90. Os torcedores organizados foram adotados
como inimigos dentro dos estádios por uma decisão arbitrária e a pretensão de sua
identificação e combate justificou medidas como as da Lei 9.470/96 que afetaram o exercício
dos direitos de todos os torcedores, de consumir bebidas alcoolicas e de torcer com os objetos
que desejasse, bem como o aumento do policiamento nesses eventos o que reforçou o controle
social de todos os que frequentam esses ambientes. Esse controle social, identificado como
principal poder e função do sistema penal por Zaffaroni, é assim configurado e exercido nesse
âmbito.

Percebe-se, portanto, que, dentro de um horizonte de análise das especificidades do


processo de criminalização das torcidas organizadas dentro das estruturas do futebol, as
torcidas organizadas foram alçadas a condição de inimigos e penalizados como tal. São
identificados como alvo do discurso e do sistema penal que visa particularmente sua
eliminação

Mais ainda, o enfrentamento a esse inimigo específico foi utilizado como justificativa
para o avanço do controle social por todo esse meio e para a expansão de uma matriz policial.
Esse processo de criminalziação pode ser percebido como tendo servido a uma função de
atendimento as necessidades de modernização do futebol, já que as torcidas organizadas eram
vistas como impedimentos a esse processo por autores como Julia Nascimento da Silva.

Abandonando a análise da especificidade do processo de criminalização das torcidas


organizadas no meio do futebol, passamos a verificar como esse processo se insere dentro da
criminalidade geral.

Uma vez que foi formado o estigma, as torcidas organizadas e seus membros
assumiram uma posição ainda mais vulnerável dentro da seletividade penal, com suas
condutas passando a ser alvos constantes da criminalização secundária das agências policiais
(oferecendo uma das explicações plausíveis para o registro do aumento de crimes praticados
por integrantes desses grupos).

Os torcedores organizados, além de representar uma subcultura própria que se tornava


um estigma ainda mais destacado, já tinham um perfil aproximado do definido como

96
estereótipo criminoso o qual já aumenta sua vulnerabilidade. São jovens de classe social baixa
e racializados. O elemento da agremiação apenas reforça a imagem que já existia de uma
propensão ao crime e a violência.

Assim, embora em 2010 tenha se elaborado uma norma própria, operando-se uma
instância da criminalização primária, a criminalização secundária operada pelas forças
policiais já selecionava de forma bastante contundente os torcedores organizados, diante de
sua posição de classe e de seu estigma de grupo.

Dentro do autoritarismo cool de nossa realidade latino-americana, a penalização dos


torcedores organizados simboliza mais uma das expansões penais divididas em tantas frontes
para legitimar o controle social exercido. A “moda” das torcidas organizadas é uma dentre
tantas enumeradas e repetidas, que entra e saí do cenário conforme algum evento a torna mais
ou menos impactante no momento.

Com isso, a criminalização das torcidas organizadas, bem como dos demais
indesejáveis do sistema penal é utilizada como justificativa para o fortalecimento do Estado
Policial para que esse possa cumprir sua principal função, sempre presente e jamais
expressamente declarada: garantir os fundamentos da exploração econômica perpetrada nas
relações de produção capitalistas.

7 BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS

As torcidas organizadas paulistas sofreram e sofrem um processo de criminalização


cujas origens podem ser rastreadas a década de 1990. Os ocorridos naquele período histórico,
em especial o assassinato de Cleo e a Batalha do Pacaembu, foram instrumentalizados para
cimentar um estigma contra essas agremiações que dura até hoje e que estimula e impulsiona
esse referido processo de criminalização.

Essas agremiações esportivas passaram a ter seus membros selecionados cada vez
mais pelo sistema penal para que fossem processados e condenados. Não se nega que as
torcidas organizadas cometem crimes e realizam atos violentos, porém essa seletividade penal
representa de forma desproporcional o praticado por essas torcidas e viola o princípio da
igualdade no Direito que deveria prevalecer.

97
As consequências dessa persecução no âmbito do futebol foram ainda piores, já que
afetaram a forma como todos que frequentam os estádios podem apreciar e vivenciar os jogos.
Ao legitimar o controle social sobre esse grupo, a criminalização das torcidas organizadas
promoveu uma restrição nos direitos de todo um agrupamento de indivíduos.

Assim ao adotarmos a análise desse caso específico de criminalização temos um


exemplo de como opera o sistema penal na restrição de direitos e no controle social exercidos
para o cumprimento de funções que servem a uns poucos em desfavor de uns muitos dentro
das sociedades capitalistas, sempre visando o lucro.

Esse exemplo específico vale ser destacado e analisado diante da grande inserção
social do futebol no Brasil, não apenas pela importância política e econômica representa, mas
pelo significado emocional e subjetivo que esse esporte proporciona. Dentro disso, as torcidas
organizadas, ainda que realizem atos violentos que deveriam ser coibidos, não deveriam ser
inviabilizadas de exercer suas paixões e seu papel na torcida e nem limitadas aos aspectos
danosos que representam.

98
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JUSTIÇA EXTINGUE A MANCHA VERDE. Folha de S.Paulo, Esporte-11, São Paulo, 01


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JUSTIÇA PEDE FIM DE TORCIDAS. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 13 set. 1995.

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TORCEDORES BRIGAM EM JOGO DE JUNIORES E ADIAM A ESTREIA DO


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TJ MANTÉM MANCHA VERDE EXTINTA. Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 mar. 1998.
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VENDA DE ALCOOL É SUSPENSA. Folha de S.Paulo, 4-1, São Paulo, 26 ago. 1995

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