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Respostas inesperadas

Graziela Kunsch - formulário de inscrição no 1º Prêmio Select de Arte-Educação

10/03/2015

Técnica/definição
Nesta inscrição uso o nome “respostas inesperadas” para nomear o pensamento educativo que
construí nos anos 2015 e 2016, como responsável pela formação de público no projeto Vila Itororó
Canteiro Aberto, e também em meus projetos artísticos independentes. Não me inscrevo em nome da
instituição, mas escolhi me posicionar na categoria “formadora” por não se tratar de uma obra de
arte específica, mas da elaboração de um pensamento em educação, de uma prática educativa.
Uma crítica comum às práticas educativas em instituições de arte, mais especificamente às visitas
educativas, é que a condução quase sempre tem um objetivo certo. Mesmo que a condução assuma
forma dialógica e que educadores façam perguntas ao público, existe a expectativa por respostas
específicas. Quando a resposta esperada não é dita, o educador costuma soltar “Na verdade, ...”,
deixando claro que sua pergunta original era somente retórica. Educadores fazem perguntas cujas
respostas já são por eles conhecidas, por vezes frustrando o público, que percebe que o diálogo que
se dá ali não é verdadeiro. Nada do que o público disser será realmente relevante, pois tudo está
definido antes mesmo que esse público exista como público.
Como realizar uma prática educativa de abertura, que só se complete no outro? Como fomentar uma
atuação do público, que, mais que participante, pode se tornar criador? Como conduzir para
respostas inesperadas?
Se esta inscrição for selecionada para o seminário, em minha aula irei discorrer sobre algumas
proposições/experimentações que realizei, nos últimos dois anos, neste sentido. E devo preservar
certo mistério nesta pequena apresentação, com o intuito de estimular que o júri que me lê seja, desde
já, instigado a tomar parte nesta reflexão.

Descritivo cronológico
A data que escrevi mais acima, 10/03/2015, foi o meu primeiro dia de trabalho na Vila Itororó
Canteiro Aberto. Inicialmente fui convidada para desenvolver um projeto artístico ali e somente a
partir de 10/06/2015 me tornei responsável pelo então setor “Educativo”, que eu propus que
passasse a se chamar “Formação de público”. (“Formação” não no sentido de ensinamento do
público, mas de constituição do público do local e da própria noção de público). O pensamento
educativo aqui implicado não se reduz às minhas práticas no Canteiro Aberto e elegi um recorte entre
março de 2015 e dezembro de 2016.

Em que sentido o projeto propõe uma pedagogia para as artes?


Em arte e educação muito se fala em escutar. Mas uma escuta verdadeiramente ativa implica escutar
o que ainda não conhecemos, ou que não controlamos, ou até mesmo condenamos. Abrir espaço para
respostas inesperadas é criar um ambiente de aprendizagem mútua e democrática, que sustente
conflitos de forma produtiva.
Certa vez li uma fala do cineasta Eduardo Coutinho sobre a sua prática como
documentarista/entrevistador, que para mim diz muito da disposição que nós educadores precisamos
ter diante dos diferentes públicos: “É uma necessidade imperiosa ter a colaboração do outro. E essa
adesão ao objeto implica uma postura que chamo de vazio, no sentido que o que me interessa são as
razões do outro, e não as minhas. Então, tenho de botar as minhas razões entre parênteses, a minha
existência, para tentar saber quais são as razões do outro, porque, de certa forma, o outro pode não
ter sempre razão, mas tem sempre suas razões”. (Acrescento que isto não impede que, em algum
momento, as minhas razões saiam dos parênteses e também sejam colocadas na roda...)
A recepção de uma obra de arte não precisa ser consensual – e talvez seja mais interessante que não
seja –, assim como a construção de um novo centro cultural público (no caso da Vila Itororó) não
pode ser tarefa exclusiva de um pequeno grupo de pessoas.

Público alvo e impacto em comunidades e grupos


Formar público não é o mesmo que atingir público. “Público alvo”, no meu entendimento, pressupõe
a existência de um público dado, ou de públicos dados, e a realização de atividades direcionadas a
esses públicos. E se invertermos essa relação, praticando uma escuta verdadeira, de modo que seja o
público propositor daquilo que deseja? Que o próprio público se defina como público, até mesmo na
recusa de participar de determinado processo?
Darei o exemplo do primeiro público que busquei engajar no canteiro da Vila Itororó: as pessoas que
ali viveram, que hoje moram em prédios CDHU localizados na região. Se o projeto de transformar a
Vila em um centro cultural tinha entre seus objetivos não revelados colaborar na gentrificação em
curso no Bixiga, diversas atividades que aconteceram no canteiro em 2015-2016 podem ser
compreendidas como uma resistência a esse processo. Em outras palavras, se há alguns anos famílias
pobres foram retiradas do contexto, hoje existem esforços para que permaneçam na área. Que não
sejam tratadas como objetos de um passado remoto, mas como sujeitos da construção de um centro
cultural, no presente.
No âmbito da formação de público, destaco o engajamento de ex-moradores em três ações: 1)
participação no coletivo do bairro, responsável por definir parte do uso da verba de programação; 2)
organização das festas juninas em 2016 e 2016; 3) uso da Clínica Pública de Psicanálise, cujo
impacto profundo somente elas e eles poderão expressar.

Vídeos sobre o projeto


Escolhi um único vídeo como suporte desta inscrição, que mostra um momento de brincadeira livre
no canteiro da Vila Itororó:
https://vilaitororo.naocaber.org/ (ver pág. 3, vídeo número 30)
No galpão do Canteiro Aberto existem estruturas de madeira como escorregador, balanço e
paredinha de escalada para crianças brincarem, mas há também muito espaço livre, cantinhos, bolas
e tecidos. No lugar de reduzir o programa educativo a uma grade de oficinas e visitas educativas, de
diferentes modos foi estimulado o livre brincar – atividades não dirigidas e, no caso das crianças,
sem mediação de adultos (que podiam ficar por perto, observando ou brincando também). Não havia
ali um chão especial para se brincar, mas somente o entendimento do galpão – cujas portas ficam
totalmente abertas – como uma extensão da rua. Se hoje já não são comuns brincadeiras de rua em
São Paulo, no pátio da Vila Itororó essa cultura foi preservada até 2011, ano da retirada das famílias
que viviam no local.

_ Documentação de práticas educativas da autora em anexo _

_ A inscrição foi selecionada entre os 4 formadores finalistas do Prêmio. Segue o texto dito na
ocasião _
Boa noite. Nos últimos anos, quase todas as vezes em que inicio uma palestra, conto ao público
que a minha fala não foi previamente preparada. Que imaginei conteúdos para responder a
cada demanda ou a cada contexto, ou mesmo um caminho possível, mas que a minha fala será
formada ali, diante da plateia, na expectativa que as pessoas presentes acompanhem o próprio
processo de formação do meu pensamento.
Por ocasião da divulgação do resultado da segunda etapa deste prêmio, nós selecionados como
finalistas recebemos a demanda de enviar uma apresentação de slides já na ordem da nossa
apresentação, que ocorreria somente em duas ou três semanas, já não me recordo ao certo. E
que cada apresentação teria a duração máxima de vinte minutos.
A eficiência almejada nesse pedido me assustou. E decidi que não enviaria imagem nenhuma, e
que faria uma reflexão crítica sobre essa eficiência.
A “eficiência” é descrita no dicionário como a “capacidade de produzir um efeito”. Mas o que
é produzir um efeito na arte, ou através da arte? Ou, como tornar uma apresentação como esta,
neste contexto, de um prêmio em arte e educação, de fato eficiente?
Alguém pode estar se perguntando por que uma pessoa que desejou ter mais tempo de fala está
usando longos minutos para discorrer sobre isso, no lugar de simplesmente dizer o que tem a
dizer.
É porque a experiência como formadora que trago aqui hoje só foi possível pela recusa de tudo
ser definido de antemão, por uma pessoa sozinha ou um pequeno grupo de pessoas. Era preciso
envolver o público no processo de definição. Ou, me corrigindo, constituir um público – que
ainda não existia como tal – conforme o próprio processo caminhasse.
Mesmo que esta apresentação tenha sido previamente escrita, acredito que a desaceleração
que proponho aqui possa estimular um maior engajamento de vocês na minha fala, ou no meu
pensamento em educação.
Chamei a minha inscrição aqui no prêmio de “respostas inesperadas” para defender a
pedagogia implicada em não controlarmos totalmente certos processos.

[ vídeo brincadeira livre ]

[ após o vídeo, passar para a próxima tela branca ]

Ao receber o convite do curador Benjamin Seroussi para assumir a posição de “coordenadora


do educativo” do canteiro aberto da Vila Itororó, a minha primeira proposta foi cortarmos as
palavras “coordenadora” e “educativo”, usando no lugar “responsável pela formação de
público”. “Responsável” como a pessoa que responde por aquela função, e “formação” não
como ensinamento do público, mas constituição do público local e da própria noção de público.
Além disso, formar público não deveria ser confundido com atingir público. A expressão
“público alvo” pressupõe a existência de um público dado, ou de públicos dados, e a
realização de atividades direcionadas a esses públicos. E se invertermos essa relação,
praticando uma escuta verdadeira, de modo que seja o público propositor daquilo que deseja?
Que o próprio público se defina como público, até mesmo na recusa de participar de
determinado processo?
A Vila Itororó, localizada na Bela Vista, compreende um conjunto de casas ao redor de um
pátio e foi inaugurada em 1922. A Vila sempre teve como uso principal a moradia, mas desde
os anos 70 existe um projeto de transformá-la em um centro cultural. Esse projeto foi retomado
pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em 2006, as famílias que moravam ali
organizaram uma resistência coletiva contra o projeto, que durou mais de cinco anos, até
serem retiradas dali. Elas conquistaram o direito de permanecer na região, em prédios CDHU
verticais, mas não puderam escolher permanecer na Vila.
A Vila foi tombada como patrimônio e se encontra em processo de restauro, pelo Instituto
Pedra junto à Prefeitura de São Paulo. No lugar de fazer uma obra de restauro durante anos de
portas fechadas, para ao final desse processo inaugurar um centro cultural pronto, definido
por poucas pessoas – definido por um prefeito, um secretário da Cultura e um pequeno grupo
de arquitetos –,

o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto consiste na construção cotidiana e coletiva, em pleno
canteiro, de uma experiência de centro cultural. Não necessariamente o centro cultural do
futuro, o que a Vila Itororó ainda virá a ser. Pois isso dependerá das pessoas do poder. Mas a
construção de um centro cultural hoje, no presente.
Há dois sentidos implicados na abertura do canteiro de obras. O primeiro, compartilhar – e
debater publicamente – o processo de restauro, de modo que as discussões não fiquem restritas
aos órgãos do patrimônio. O segundo sentido, e para mim o mais potente, não se refere à
materialidade das edificações (o que demolir, o que preservar), mas ao seu programa de usos.
É a possibilidade de experimentarmos e debatermos potenciais usos futuros da Vila. Ou admitir
que sobre o futuro nada sabemos, e que temos que encarar a Vila Itororó como ela é hoje, na
espessura do presente. Já não é possível reverter a retirada dos moradores, pois a política
habitacional do CDHU veta que famílias beneficiadas sejam novamente atendidas. (Teria que
haver muita vontade política lá em cima e muita luta aqui embaixo). Mas de que outros modos
elas e eles podem voltar a habitar a Vila? Como habitar a cultura? Como fazer um centro
cultural habitado?
Essas foram as perguntas que fiz na primeira convocação aos ex-moradores, na forma de um
panfleto e um cartaz, antes mesmo de o canteiro abrir as portas. Eu já tinha uma relação com
essas famílias, pois em 2006 colaborei ativamente no processo de resistência, e fui até os
prédios CDHU conversar sobre o novo momento do projeto de centro cultural. Contei que a
equipe que estava trabalhando ali não era formada pelos agentes de expulsão das famílias, que
havia um reconhecimento da violência de todo o processo e um desejo de colaboração.
A primeira ação em que engajei ex-moradoras e ex-moradores foi o projeto artístico de Mônica
Nador, e é também o primeiro exemplo que quero dar do que estou chamando de “respostas
inesperadas”.
A obra da Mônica consistiu na criação de um arquivo de padrões visuais da Vila Itororó, na
forma de pinturas estêncil, que foram produzidos em oficinas, ao longo de três meses. Os
participantes das oficinas circulavam pela Vila e desenhavam detalhes de arquitetura – um piso
de ladrilho hidráulico, uma grade, uma janela –, que eram convertidos em máscaras de
estêncil. O que desenharam os ex-moradores? Uma árvore, um grafite de um muro e um
puxadinho.
Sobre o puxadinho, conto a história de uma segunda resposta inesperada. Certa vez eu estava
ao lado de uma ex-moradora da Vila, quando ela expressou a tristeza de ver que muitas casas
pequenas haviam sido demolidas no início do processo de restauro. Eram casas térreas
construídas nas últimas décadas, ao lado e atrás do casarão e ao redor da piscina, com tijolo
baiano, que não geraram interesse arquitetônico. Eu comentei que estava feliz de ver que ao
menos o puxadinho, bem no centro da fachada do casarão, ainda estava lá, resistindo, e que,
para mim, é um símbolo da história recente da Vila e também deve ser compreendido como
patrimônio. Ela respondeu: “O símbolo da Vila eram seus moradores”.
Em arte e educação muito se fala em escutar. Mas uma escuta verdadeiramente ativa implica
escutar o que ainda não conhecemos, ou que não controlamos, ou até mesmo condenamos.
Abrir espaço para respostas inesperadas é criar um ambiente de aprendizagem mútua e
democrática, que sustente conflitos de forma produtiva.
Uma vez li uma fala do cineasta Eduardo Coutinho sobre a sua prática como
documentarista/entrevistador, que para mim diz muito da disposição que nós educadores
precisamos ter diante dos diferentes públicos: “É uma necessidade imperiosa ter a colaboração
do outro. E essa adesão ao objeto implica uma postura que chamo de vazio, no sentido que o
que me interessa são as razões do outro, e não as minhas. Então, tenho de botar as minhas
razões entre parênteses, a minha existência, para tentar saber quais são as razões do outro,
porque, de certa forma, o outro pode não ter sempre razão, mas tem sempre suas razões”.
(Acrescento que isto não impede que, em algum momento, as minhas razões saiam dos
parênteses e também sejam colocadas na roda...). A construção de um comum implica
reconhecermos nossas distâncias e diferenças para, a partir delas, fazer algo junto.

Uma escuta verdadeira não significa uma instituição colher opiniões ou sugestões diversas do
que pode ser feito. Ou não apenas isso. No canteiro da Vila, a principal forma de participação
do público se dá no uso cotidiano que o público dá ao espaço. Como eu disse antes, as
experimentações diversas realizadas no canteiro hoje poderão inspirar os usos futuros da Vila.
Para que esses usos sejam diversos, abrangentes e mesmo surpreendentes, a proposta
curatorial mais significativa para o espaço foi pensar o galpão de entrada no canteiro como
uma grande praça, aberta a usos espontâneos pelo público. Um pouco como ocorre na
marquise do Parque do Ibirapuera, nas áreas comuns do Centro Cultural São Paulo e como
era o projeto original da rua do SESC Pompeia.
Junto dos primeiros usuários fui responsável por redigir um conjunto de “regras para usos
espontâneos”, o que pode parecer uma contradição. (Afinal, espontâneo deveria ser
espontâneo, não algo ordenado ou induzido. Mas há situações em que a gente precisa de
alguma orientação, para chegar a ser livre). Essas regras podem ser quebradas, mas existem
para fomentar uma atuação pelo público e tentar garantir a vida coletiva; que diferentes
pessoas e ações possam viver junto, sem que um grupo ou uso espontâneo se sobreponha aos
demais.
Resumidamente, a primeira regra é que as ações devem acontecer nos horários de abertura e
nos espaços determinados pela equipe de ativação cultural (não é possível reservar uma área
no galpão); 2) Não podem ter natureza ou fins comerciais, publicitários ou partidários; 3)
Cada indivíduo/grupo deve respeitar os demais indivíduos/grupos que usam o espaço, aí
incluídos trabalhadores permanentes do canteiro; 4) Não são acolhidas feiras, exposições ou
apresentações diversas como parte dos usos espontâneos. São priorizados processos e ensaios,
não resultados, por se tratar de um canteiro de obras onde tudo – incluindo a própria noção de
cultura – está em construção; 5) As regras coletivas podem ser revistas e repensadas pelo
público junto à equipe de ativação cultural e novas regras podem ser criadas, a partir de
inspirações, necessidades e problemas que surgirem dos próprios usos.
Foram muitos os usos espontâneos até aqui: ensaios de diversos grupos de circo, teatro, música
e dança; uso da cozinha do canteiro para cozinhar e comer; uso de bancos para descansar e
dormir; uso das mesas para estudar; piqueniques; comemorações de aniversário; encontros de
mães e bebês, em que bebês brincam e as mães trocam experiências sobre a maternidade/se
ajudam mutuamente; encontro de doulas; rodas de samba; partidas de futebol; skate;
massagem; bordado; pintura; xilogravura; tarô; esgrima; assembleias de estudantes
secundaristas em luta; e reuniões do MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Pessoas
em situação de rua que há anos vivem nas ruas do entorno, além de participarem das
atividades regulares do espaço e poderem ali transitar com seus cachorros, usam as pias dos
banheiros para tomar banho – apontando a necessidade de um dia a Vila Itororó ter chuveiros
públicos –, e já usaram o banheiro para namorar, levantando a necessidade de existirem motéis
públicos na cidade. Esses usos por moradores de rua podem ser comuns em outros centros
culturais de acesso gratuito, mas no canteiro da Vila Itororó ações cotidianas aparentemente
banais ou mesmo criminalizadas, se levadas a sério, têm o potencial de alimentar e transformar
o projeto (e consequentemente alargar a própria noção de cultura, de centro cultural).
Eu gostaria de destacar dois usos espontâneos, para descrever como se deram, em 2015 e
2016, as noções de formação de público e de habitar a cultura, que sempre caminharam juntas.
Entre os primeiros usuários do espaço estava uma dupla de circo vizinha da Vila Itororó, a
Trupe Baião de 2. Começaram a treinar semanalmente ou quase diariamente ali e, aos poucos,
foram atraindo outros grupos de circo para ensaiar no galpão. Um dia a Trupe Baião de 2
apresentou um espetáculo no galpão. As regras de usos espontâneos não permitem espetáculos,
mas era inevitável que apresentassem ali o trabalho que havia sido criado e cultivado ali. No
dia das crianças de 2015, eles foram por nós convidados para dar uma oficina de circo para
crianças, com remuneração, e, desde então, se tornaram os professores de circo oficiais do
canteiro aberto. Quando foi formado o coletivo do bairro, que é um coletivo de caráter
horizontal e inter-geracional (ou seja: formado por crianças, jovens, adultos e idosos), que se
reunia quinzenalmente para debater a Vila Itororó e definir parte da verba da programação

cultural do canteiro, com a minha mediação, esses artistas de circo também se tornaram
membros do coletivo. Em 2016, organizaram uma quadrilha de perna de pau na festa junina da
Vila e, mais recentemente, junto a todos os demais artistas de circo que passaram a ensaiar no
galpão, formaram o Coletivo Circense do Bixiga, que já auto-organizou dois festivais no
canteiro aberto. Para a nossa equipe, os usos pelo coletivo de circo apontavam a necessidade
de uma das casas da Vila abrigar, no futuro, atividades do circo e, quem sabe, ser habitada e
gerida por pessoas de circo. Conforme a pesquisa histórica sobre a Vila avançou, descobrimos
que diversas famílias de circo moraram na Vila entre os anos 40 e 80. Uma dessas famílias
inclusive vivia em um trailer, estacionado atrás do casarão.
O outro uso que quero destacar, e essa é uma das poucas imagens que escolhi mostrar aqui
hoje,
foi a assembleia auto-organizada por ex-moradores da Vila Itororó no galpão, em novembro de
2016. Nesta assembleia estiveram presentes aproximadamente 70 ex-moradores, para discutir o
andamento do processo de reconhecimento de usucapião de suas casas.
Foram muitas as colaborações na Vila entre abril de 2015 e novembro de 2016 que envolveram
ativamente os ex-moradores, como o mencionado coletivo do bairro e as festas juninas, cujos
registros podem ser vistos no site do projeto, por quem se interessar. Mas esta foi a primeira
vez que elas e eles auto-organizaram uma atividade totalmente sozinhos, sem a minha
mediação. Foram quase dois anos de trabalho para que elas e eles agissem com autonomia.
[ próxima tela branca ]
Além de fomentar usos espontâneos, parte das minhas responsabilidades como formadora de
público foi estimular a brincadeira livre no canteiro – atividades não dirigidas e, no caso das
crianças, sem a mediação de adultos (que podiam ficar por perto, observando). Como vocês
puderam ver no vídeo que mostrei, no galpão existem estruturas de madeira como
escorregador, balanço e paredinha de escalada para crianças brincarem, mas há também
muito espaço livre, cantinhos, bolas e tecidos. Não há ali um chão especial para se brincar,
mas somente o entendimento do galpão – cujas portas ficam totalmente abertas – como uma
extensão da rua. Se hoje já não são comuns brincadeiras de rua em São Paulo, no pátio da Vila
Itororó essa cultura foi cultivada até 2011 (ano da retirada das famílias) e é importante que
não se perca; que seja compreendida e preservada como patrimônio imaterial.
A última ação de formação de público no canteiro aberto que escolho compartilhar com vocês
é a Clínica Pública de Psicanálise, concebida junto aos psicanalistas Daniel Guimarães e Tales
Ab’Sáber, sendo que este último já não faz mais parte do projeto, por diferenças metodológicas
que emergiram da nossa prática, durante os seis primeiros meses de existência da Clínica.

A ideia da clínica é atender gratuitamente ex-moradores da Vila Itororó e outras vítimas de


violência do mercado e do Estado, um pouco como uma política de reparação do que se deu
ali. Mas aqui quero falar das minhas motivações para a criação da Clínica, desde a educação.
Um psicanalista pode ter muito conhecimento em arte, em cinema, em matemática etc., mas só
vai mobilizar esse conhecimento a partir do que o analisando traz. Em outras palavras, só vai
falar a partir de uma escuta atenta da fala – ou do silêncio – do outro. Até que os dois, analista
e analisando, constróem uma só fala.
A imagem que escolhi aqui mostra uma resposta inesperada de crianças ex-moradoras da Vila
brincando no espaço da Clínica. Se em psicanálise normalmente há um “setting – um arranjo –
determinante”, na Clínica Pública da Vila Itororó, como diz meu companheiro Daniel, “quem
faz o setting é o povo”. As crianças batizaram a Clínica de “o lugar da calma”.

[ próxima tela branca ]

Finalizo esta apresentação deixando claro que tudo que narrei aqui foi um trabalho muito
coletivo, mas que considerei este prêmio uma ocasião importante para sistematizar um
pensamento e uma prática pedagógicos e refletir sobre o meu papel nesse processo, como
artista, intelectual e educadora. Especialmente neste momento, em que acabo de deixar o
projeto Vila Itororó Canteiro Aberto. É uma partida triste, mas ao mesmo tempo feliz. Se fui
chamada ali para formar um público, considero esse público formado. Autoformado.
A Vila Itororó poderá um dia se tornar o pior centro cultural; elitista, cafona, turístico. Mas
ainda pode ser tudo o que fizemos dela no presente.

Até mesmo uma grande agrofloresta, como na foto feita por Nelson Kon em 2014.
Agradeço a todas e todos pela oportunidade.

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