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O Imperialismo do Brasil na Bacia do Prata

Mário Maestri*

Em 1979, J. J. Chiavenato publicou p. 13-16). O trabalho foi reapresentado dez


reportagem jornalística de viés populista e anos mais tarde, dessa vez com referência ao
anti-imperialista sobre a Guerra do Para- Paraguai e à guerra no título, pela Editora da
guai. Esse trabalho de divulgação histórica, UnB e pela editora Ensaios, com uma reedi-
de enorme sucesso, apoiava-se em temas da ção (BANDEIRA, 1995).
historiografia revisionista platina ignorados Tese de doutoramento defendida na
no Brasil (CHIAVENATO, 1986). O autor USP em fins dos anos 1970, o estudo consti-
abraçava a tese de que a guerra era desejada tuía marco na historiografia brasileira das re-
pela Inglaterra, muito questionada no Prata lações do Império com as nações do Prata e
(PEÑA, 1975, p. 61). das razões da Guerra da Tríplice Aliança. Era
Em 1985, sem despertar maior discus- o primeiro trabalho revisionista erudito no
são, Luiz Alberto Moniz Bandeira publicou, Brasil, e seu teor superava as explicações na-
por pequena editora, O expansionismo brasi- cional-patrióticas sobre as origens do conflito.
leiro: o papel do Brasil na Bacia do Rio da Prata. Moniz Bandeira defendia, como tese
Da colonização ao Império. O livro continha central, o caráter colonialista e imperialista
“apresentação” do autor assinada em fins de do Império naquela região, razão essencial
1981 (BANDEIRA, 1985). No livro, o autor da agressão ao Uruguai, em 1864, e ao Para-
deu ampla abordagem à Guerra do Para- guai, em 1865-70, em aliança com a Argen-
guai, embora o título do trabalho não con- tina unitária e com o Uruguai florista. Tudo
duzisse a essa percepção. para impor sua hegemonia.
O livro era prefaciado pelo embaixador
*
Professor do Programa de Pós-Graduação em
Teixeira Soares, estudioso das relações inter-
História da Universidade de Passo Fundo. Dou-
nacionais, não antipático ao expansionismo tor em Ciências Históricas pelo Université Ca-
criticado pelo autor. Assinava a orelha Enio tholique de Louvin, UCL, Bélgica. Pós-Doutor em
História pelo Université Catholique de Louvin,
Silveira, proprietário da Civilização Brasilei- UCL, Bélgica.
ra, que publicara livros de Bandeira e sofrera
Recebido em: 01/08/2013 Aprovado em: 05/09/2013
retaliações da ditadura (BANDEIRA, 1985,
http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.14n.1.3806

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Esse trabalho referencial foi e segue em 1980 (BANDEIRA; MELO; ANDRADE,
sendo destacado pela negação da tese de 1967). Em 1973, preso, lançou Presença dos
guerra querida pela Inglaterra, questão de Estados Unidos no Brasil: dois séculos de his-
importância marginal, já impugnada no tória, obra também de grande repercussão
estudo pela apresentação dos complexos (BANDEIRA, 1973).
conflitos platinos e do impulso imperialista- Com bolsa da Fundação Ford e de ou-
-colonialista imperial. Raros trabalhos reto- tros centros financiadores, preparou sua tese
maram e ampliaram essa sensível leitura. de doutoramento. Quando da redemocrati-
A escassa repercussão inicial relativa zação controlada, participou da fundação do
do trabalho não se deveu a ser o autor des- PDT e da primeira administração brizolista
conhecido e o livro lançado por editora de do RJ, sem abandonar o ensino universitário
pouco alcance. Em 1985, Muniz Bandeira e a historiografia. Aposentado, radicou-se
era já autor de dois títulos historiográficos na Alemanha, em 1996, prosseguindo sua
de amplo sucesso. investigação sobre as relações internacionais
do Brasil e a história contemporânea.
A trajetória do autor
Nova edição, novo título
Muniz Bandeira nasceu em Salvador,
na Bahia, em 1935, mudando-se jovem para Quatorze anos após a terceira rea-
o RJ, onde se formou em Direito. Em 1961, presentação, esse clássico historiográfico
com outros intelectuais marxistas – Rui conhece nova edição, revista e ampliada,
Mauro Marini, Octávio Ianni, Paul Singer, com caderno de ilustrações, publicada pela
etc. –, fundou a Organização Revolucioná- Civilização Brasileira, com modificação no
ria Marxista – Política Operária (Polop), pe- título – A expansão do Brasil e a formação dos
quena organização leninista, luxemburguis- Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai
ta e trotskista. e Paraguai. Da colonização à Guerra da Tríplice
A Polop opunha-se ao colaboracionis- Aliança (BANDEIRA, 2012).
mo pecebista e avançava programa socialis- O livro contém prefácio de Teixeira
ta para o Brasil, defendido por Muniz Ban- Soares à primeira edição; “Prólogo” assina-
deira em O Caminho da Revolução Brasileira do por J. C. H. Krauer; e prefácio do autor
(1962). Entre outros ensaios, ele publicara, quando da segunda edição, além de uma –
no Brasil e em Havana, o livro de poesia Ode também sua – breve nota de apresentação,
a Cuba (BANDEIRA, 1963). na qual são também expostas as razões não
Após o golpe de 1964, Moniz Bandeira muito óbvias para a modificação do título,
refugiou-se no Uruguai e, em 1965, voltou de “expansionismo” para “expansão”. Traz,
ao Brasil, tendo sido preso em 1969 e 1973. ainda, breve apêndice, intitulado de “D.
Em 1967, publicou, em parceria, O ano ver- João VI e a construção do Estado brasileiro”.
melho: a Revolução Russa e seus reflexos no Com ampliações dos argumentos, no-
Brasil, de ampla recepção, reapresentado tas e bibliografia, o livro mantém a estrutu-

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ra e o desenvolvimento da primeira edição, a luta das classes mercantis portenhas para
com onze capítulos e conclusão. Em três bre- a restauração do monopólio de que gozara e
ves capítulos iniciais, defende-se o impulso a oposição provincial à restauração de sub-
expansionista lusitano em direção ao Prata, missão semicolonial. Como habitual na his-
na procura da conquista de Buenos Aires, toriografia platina, vê a oposição provincial
desde os inícios da colonização, antecedente a Buenos Aires como resistência pré-capita-
de empreendimentos semelhantes após 1808 lista à penetração capitalista, ainda que a he-
e 1822. A introdução enriquece a discussão, gemonia do capital mercantil portenho não
ainda que fusione objetivos e causas comu- ensejasse produção capitalista autóctone,
mente diversos daqueles movimentos, nos consolidando as estruturas pré-capitalistas e
seus mais de três séculos. semicoloniais (MAESTRI, 2012).
Na quarta edição, não se atualizou a Moniz Bandeira serve-se da discussão
bibliografia que apoiou a apresentação ge- acerca da ascensão e queda de Rosas para
ral do quadro introdutório, apesar da su- apresentar sensivelmente as razões profun-
peração de muitos trabalhos utilizados pela das das dissensões do Prata. Para tal, apoia-
expansão das investigações. Uma atualiza- -se em rica revisão de autores, sobretudo
ção que permitiria sanar não poucos hiatos platinos, que continuam sendo, ainda em
sobre a ação dos bandeirantes, a estrutura boa parte, semidesconhecidos da historio-
das missões, a organização das sociedades grafia brasileira – Blas Garay, Carlos Pas-
aldeãs guaranis, a ocupação e organização tore, J. A. Ramos, José Pedro Barrán, J. B.
do extremo-sul do Brasil, etc. (BANDEIRA, Alberdi, Lucia Sala Touron, Sanchez Quell,
2012, p. 39 et seq.). etc. Utiliza o magnífico trabalho de Raul de
Andrada e Silva sobre o Paraguai francista,
semiolvidado pela historiografia brasileira
O vencedor de Monte Caseros
(ANDRADA; SILVA, 1978).
Nos três capítulos seguintes, aborda-se Aponta a queda de Rosas (1852) como
a crise da independência no Prata, o projeto primeiro momento conclusivo da construção
joanino de fundação de Império no sul da da hegemonia do Império no Prata e o defe-
América, a insurreição artiguista e a invasão nestramento do senhor portenho para o qual o
e ocupação luso-brasileira da Banda Orien- governo imperial aproximara-se do Paraguai
tal. Na discussão da gênese do Uruguai in- e apoiara a dissidência de J. J. de Urquiza, che-
dependente, destaca-se a herança maldita fe federalista da província de Entre Ríos.
que constitui o domínio do norte do país por Detalha a redução do Uruguai à situa-
criadores escravistas sulinos, dependentes ção de semiprotetorado após a derrota de Ro-
da livre transferência dos gados para as char- sas e refere-se ao fracasso da expedição naval
queadas do RS. imperial, em 1854-5, contra o Paraguai, para
O autor analisa a crise e as contradi- liberação plena da navegação no rio homôni-
ções das províncias do vice-reinado do Pra- mo e concessões na demarcação das regiões
ta, após a Revolução de Maio (1810). Destaca fronteiriças, ricas em ervais (TEIXEIRA, 2012).

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Estado Imperialista O autor propõe que o Estado imperial
seria continuidade sem rupturas do Estado
A partir da visão gramsciana de hege- lusitano. Abraçando a tese tradicional, apre-
monia, Bandeira (2012) define o Império do senta a independência como obra nascida da
Brasil como a então única nação sul-ameri- transferência da família real e da ação clari-
cana com vontade e condições de projetar a vidente joanina, concluída por Pedro I. Não
“vontade social de suas classes dominantes” vislumbra a unidade nacional, em torno de
sobre os vizinhos, através da “guerra vito- monarquia centralista e autoritária, como
riosa”, que, não raro, dispensava o combate. defesa da escravidão.
Lembra que o Império não procurara equi- Definição mais precisa da formação
líbrio, mas impor sua hegemonia no Prata escravista enriqueceria a compreensão do
(BANDEIRA, 2012, p. 199 et seq.). caráter imperialista do Estado brasileiro e de
O autor define a ação do Império como seu posterior retrocesso. O fim da Guerra do
“imperialista”, no sentido proposto por Le- Paraguai como cerre de “ciclo histórico” na
nin, não ao referir-se às nações capitalistas evolução do “Estado brasileiro”, verdadeiro
industrializadas e ao capital financeiro, mas “ápice de sua política colonial e imperialis-
ao qualificar a ação de poderosos Estados, ta” no Prata, constitui importante constata-
mesmo anteriores ao advento do capitalis- ção conclusiva do autor, nesse trabalho fun-
mo, como Roma, que também se apoiava na damental (BANDEIRA, 2012, p. 257).
escravatura. Após o final da Guerra da Tríplice
Na expansão hegemônica lusitana, lu- Aliança, a hegemonia, sobretudo política,
so-brasileira e imperial, ele enfatiza a impul- do Império no Prata seria deslocada pelo
são mercantilista para o controle das grandes imperialismo essencialmente econômico de
vias comerciais e dos mercados – visão de “algumas poucas potências imperialistas in-
cunho circulacionista que privilegia o comér- dustrializadas”, devido ao handicap negativo
cio em detrimento da produção – e aborda, posto pela produção, pelas relações escra-
sem maior detença, as dinâmicas sociopro- vistas e pelo atraso na industrialização que
dutivas estruturais. Vê no “mercantilismo” a determinaram. A escravidão, que fora vetor
“principal força propulsora da conquista de de potência e unidade ao Estado imperial,
territórios” (BANDEIRA, 2012, p. 75). passou a ser razão de sua fragilidade e atra-
Mesmo se referindo à categoria modo so (BANDEIRA, 2012, p. 257).
de produção, Bandeira não avança, no rela- A ampla análise da documentação di-
tivo ao Brasil, além do registro de “modo de plomática nos arquivos argentinos, brasilei-
produção assentado no trabalho escravo”, na ros, estadunidenses, ingleses, paraguaios,
“exploração extensiva da terra”, no latifúndio etc. é outro ponto alto do trabalho. Jamais a
e no mercantilismo (2012, p. 75). Tal leitura historiografia brasileira discutira a ação do
superestima o interesse lusitano no domínio Império no Prata, em forma sintética e siste-
dos tributários do Rio da Prata, antes da po- mática, a partir de tão ricas fontes. Riqueza
tenciação da navegação pelos barcos a vapor. e ênfase documental diplomática que talvez

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tenham contribuído para uma discussão me- avaliada positivamente pelo autor – de en-
nos ampla das bases materiais e sociais das frentar conflito de tal dimensão.
formações americanas. Por além do papel desempenhado por
Solano López, a visão positiva ou negativa
de sua determinação demiúrgica do con-
Lopizmo negativo, lopizmo positivo
fronto encobre as determinações profundas
Os dois capítulos conclusivos são dedi- que levaram ao conflito e o embalaram. De-
cados, em boa medida, às razões do conflito terminações sobre as origens reais daquele
entre o Paraguai e o Império, no contexto da embate que Moniz Bandeira iluminou de
procura da extensão e do uso da hegemonia forma magistral e pioneira, em 1985, no que
que a segunda nação gozava. Moniz Bandei- se refere à historiografia brasileira.
ra destaca, pertinentemente, a importância
da disputa pelo Império dos ervais do atual Referências
Mato Grosso e propõe que cabiam, em gran-
de parte, ao Paraguai. ANDRADA E SILVA, R. Ensaio sobre a Ditadura
Realiza-se esboço aproximativo da do Paraguai: [1814-1840]. São Paulo, 1978.
formação paraguaia que abraça, algumas BANDEIRA, L. A. M. O caminho da Revolução
vezes, propostas caricaturais positivas e ne- Brasileira. Rio de Janeiro: Melso, 1963.
gativas daquela realidade – regime estatal _______. Presença dos Estados Unidos no Brasil:
restringido ao déspota e economia e socieda- dois séculos de História. Rio de Janeiro: Civili-
de determinadas por ele; superarmamento, zação Brasileira, 1973.
militarização e população paraguaia, etc. _______. O expansionismo brasileiro: o papel do
(BANDEIRA, 2012, p. 227 et seq.). Brasil na Bacia do Prata. Da colonização ao Im-
A partir, não raro, de legendas histó- pério. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985.
ricas, mantém-se a desqualificação original _______. O expansionismo brasileiro e a formação
de Solano López definido como militar, di- dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uru-
plomata e político inepto e vaidoso, buscan- guai e Paraguai. Da colonização à Guerra da
Tríplice Aliança. 2. ed. São Paulo: Ensaios; Bra-
do intervir no Prata para se transformar em
sília: Ed. UnB, 1995.
imperador. Mesmo obliquamente, sugere-se
_______. A expansão do Brasil e a formação dos
que foi o responsável pelo conflito, proposta
Estados na bacia do Prata: Argentina, Uruguai e
apologética da Tríplice Aliança, retomada Paraguai. Da colonização à Guerra da Tríplice
pela historiografia nacional-patriótica. Aliança. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
Em referências conclusivas a questões sileira, 2012.
já fora dos objetivos do trabalho, elide-se BANDEIRA, L. A. M.; MELO, C.; ANDRADE,
explicação, mesmo sumária, por além das A. T. O ano vermelho: a Revolução Russa e seus
legendas, da inesperada duração da guer- reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
ra, motivada pela resistência da população Brasileira, 1967.
camponesa à invasão aliancista e pela inca-
pacidade do Estado pré-nacional imperial –

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CHIAVENATO, J. J. Genocídio americano: a
Guerra do Paraguay. São Paulo: Brasiliense,
1986.
MAESTRI, M. Círculo de Ferro. Milcíades Peña
e o capitalismo pastoril argentino. Socialismo O
Barbárie, Buenos Aires, 2012. Disponível em:
<http://www.socialismo-o-barbarie.org/his-
torias/100620_milciadespenia.htm>. Acesso
em: 14 jan. 2013.
PEÑA, M. La era de Mitre: de Caseros a la Guer-
ra de la Triple Infamia. 3. ed. Buenos Aires:
Fichas, 1975.
TEIXEIRA, F. B. A primeira Guerra do Paraguai:
a expedição naval imperial ao Paraguai de
1854-1855. Passo Fundo: Méritos, 2012.

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