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Alunos: Gabriel de Freitas Jatobá e Maria Júlia Wanderley Méro (1° série B)

MEMENTO MORI

“Memento mori” é uma antiga expressão que vem do latim, usada por monges católicos, e
que de maneira simbólica nos lembra da inevitabilidade da morte. Sempre foi uma
expressão que me intrigou bastante, não pelo seu significado, mas pela sensação que eu
sentia ao dizê-la. Conforme fui crescendo eu fui dando minha própria interpretação à
“memento mori”, além da recordação da morte, ela também abrange o sombrio e o
incompreensível, é o significado que dá graça à arte do macabro. Porém, de forma
totalmente imaginária. Essa expressão em minhas concepções, também louva o misterioso
e escuro caminho de nossas mentes, os caminhos que nos fazem contemplar o terror ao
desconhecido.

Pois muito bem, até uns meses atrás eu diria que esta simples e, ao mesmo tempo,
complexa frase louvaria de forma imaginativa o “inexistente”. Tudo que aconteceria dentro
de nossas mentes. No entanto, as poucas memórias que eu deixei gravadas naquele lugar
e em minha cabeça irão me perseguir pelo resto da vida. E minha concepção, que antes
alcançava apenas o mundo imaginário, veio para a realidade da forma mais infortúnia e
estranha possível. E este relato começa num simples meio de julho, numa manhã nublada e
com uma mudança ocorrendo.

Meu namorado e eu tínhamos conseguido trabalhos, e ambos com salários bons o


suficiente para finalmente podermos nos juntar e sair da casa de nossos pais. O dia da
mudança estava tão normal que chegava a ser anormal, se for possível compreender este
dito. O apartamento que iríamos nos mudar não tinha uma fama ruim, os apartamentos
pelas fotos do site em que o achamos para alugar mostravam que o local não era tão
pequeno e nem tão grande e, o mais importante, o aluguel era barato. Não me
impressionou o preço do aluguel ser tão baixo, já que o edifício era bem antigo (eu pelo
menos achava que o motivo do aluguel ser favorável aos nossos bolsos era o fato da
construção ser antiga, muito antiga). Mas o que na época eu julgava ser normal, hoje em
dia eu olho para trás e encaro tudo aquilo como sinais preliminares do que estaria por vir.

Um exemplo de um desses sinais, se ignorarmos o baixíssimo aluguel, foi no dia da


mudança, enquanto eu estava no carro com meu namorado. Estávamos indo em direção ao
prédio, e enquanto meu namorado dirigia, eu estava ao telefone com o motorista do
caminhão de mudanças (que carregava a pouca e modesta mobília que possuíamos). O
motorista havia ligado para confirmar o nome do local, e assim que lhe falei o nome do
prédio, nosso carro parou de funcionar. De sobra (ou melhor, prejuízo) esta pequena falha
de nosso carro fez com que um outro veículo branco que vinha atrás de nós colidisse com a
gente. Coincidência? Talvez, mas convenhamos, com o que eu estou prestes a contar, esse
episódio vai parecer muito bizarro.

O segundo ocorrido desse dia que não posso deixar de mencionar, foi o fato de que mesmo
ao telefone comigo, ouvindo todas as instruções e direções detalhadamente, o motorista do
caminhão não conseguia achar a rua do lugar. Tentava todas as direções e mesmo assim
não conseguia de forma alguma achar o tal prédio. Terminou que ele foi parar no outro lado
da cidade. Tivemos que pedir um táxi e ir nos encontrar com o pessoal da mudança em uma
estrada bem mais longe do que eu esperava e depois fazer com que eles nos seguissem
até o prédio. Olhando no mapa assim que chegamos na entrada do edifício, a rua tão
distante em que fomos parar,era paralela ao local. Todos os minutos que perdemos dirigindo
simplesmente não batiam com a localização. Todos ficamos muito chocados, contudo
ignoramos eventualmente. E não sei o porquê ignoramos um alerta tão vermelho…

Resumo desta pequena parte, nosso carro foi guinchado antes de pegarmos o táxi e
conseguimos finalmente respirar “tranquilamente”, afinal, havíamos chegado em nosso novo
lar.

Por volta das nove e meia da noite toda a mudança havia sido concluída. Notoriamente boa
parte de nossos pertences não estavam muito bem organizados, mas para um primeiro dia
na casa nova tudo estava satisfatoriamente nos seus conformes. Antes de ir deitar com o
meu namorado para despejar a pilha de reclamações e estresse que estive acumulando ao
longo do dia, percebi que no canto da entrada do apartamento havia uma pequena mesa de
madeira, quase imperceptível aos olhos, e sobre ela tinha um papel de aspecto meio
amarelado. O papel era apenas uma carta deixada pelo antigo morador do local.

Olá, sou o antigo morador deste apartamento que vocês se encontram agora. A imobiliária me enviou
uma mensagem avisando que novos inquilinos estariam ocupando o apartamento nesta quarta-feira.
Infelizmente, ou felizmente, não pude ir até o local (imprevistos) para conversar um pouco com vocês e
lhes apresentar a vizinhança. No entanto, pedi para que os caras da imobiliária deixassem essa carta
para os senhores antes de liberarem o apartamento. E o que está escrito nessas próximas linhas vai
parecer muito estranho e perturbador, mas eu preciso que leiam tudo atentamente e levem muito a
sério tudo o que está escrito aqui. Há uma série de regras que vocês precisam seguir à risca se
quiserem viver "tranquilamente" aí. E por favor, não desobedeçam. Boa moradia.

Após esse trecho a carta continuou, e ao invés de letras pretas e formais as regras foram escritas
com uma tinta vermelha de tom vibrante, oque me deixou ainda um pouco mais receosa.

REGRA N° 1: essa regra é a mais simples de todas, há um gato amarelo que fica sentado na recepção,
ignore esse gato. Não toque nele, não tente miar de volta, apenas o ignore.

REGRA N° 2: neste apartamento em que você está, no quarto principal, há uma mancha vermelha
amarronzada bem no teto. Ela de vez em quando pode estar com um cheiro mais forte e a cor mais
intensa que o normal, apenas ignore. Não tente limpar, não comente sobre ela com ninguém, NÃO
TOQUE NELA. Se a mancha começar a pingar, tire tudo o que pode ser atingido pelo gotejamento de
perto, e tranque a porta se possível.

REGRA N° 3: não use em hipótese alguma as escadas de emergência nas terças-feiras. Se o prédio
estiver pegando fogo em uma terça, pule da janela, vire à prova de fogo, se vire, mas não vá para as
escadas.

REGRA N° 4: há um cara que limpa os vidros do prédio, mas ele vem APENAS nas sextas-feiras. Se
alguém aparecer na sua janela em qualquer outro dia, principalmente quarta-feira, não fale com ele,
ignore-o completamente. Ele vai tentar chamar a sua atenção na varanda, vai fazer piadinhas e pedir
para entrar. Nada é o que parece, finja que ele não existe e continue suas atividades normalmente.
REGRA N° 5: há uma única senhora de olhos azuis nesse prédio, ela está sempre com uma sacola verde
no braço direito. não precisa ignorar ela, mas não olhe ela nos olhos, e muito menos tente ver o que
está na sacola.

REGRA N° 6: se você escutar passos no corredor às 14:00 da tarde e estiver sozinha em casa…

Na época não tive paciência para terminar de ler as regras por completo (e que eu julgava
como completamente absurdas), estava bastante sonolenta e exausta de todo caos que
tinha sido o dia. Entretanto gostaria de dizer que aquela carta não havia me afetado de
forma alguma, mas mesmo com a carga do cansaço em meus ombros não pude apagar a
caligrafia daquele papel amarelo de meus sonhos. Foi uma primeira noite perturbadora. Fui
para cama, conversei um pouco com o meu namorado e demorei meia hora pra conseguir
engatar no sono. Não conseguia parar de pensar no que aconteceria se eu pegasse as
escadas numa terça-feira, ou se eu falasse com um simples limpador de vidros.

O dia seguinte era uma quinta-feira, acordei por volta de umas 8 horas. Lembro que tive
uma série de sonhos estranhos na noite anterior mas por algum motivo não conseguia me
recordar de absolutamente nada, apenas de uma névoa escura e da sensação do ar estar
extremamente rarefeito. Meu namorado saiu para trabalhar exatamente às 4:00 da manhã,
lembro-me vagamente de ter acordado com a leve movimentação do quarto e de ter visto
uma figura andando de um lado para o outro. Voltei a dormir normalmente. Uma coisa que
me deixa intrigada mesmo meses depois é que eu tenho o pressentimento que os sonhos
estranhos começaram apenas quando ele saiu de casa para o trabalho, alguma coisa
definitivamente estava errada, e como um grande erro, tinha ignorado mais uma vez.

Continuei minha rotina normalmente: arrumei o quarto, tomei banho, comi umas frutas de
café da manhã e me dirigi à mesa da sala onde iria começar a trabalhar (o novo emprego
era em regime de home office). Após umas 4 horas de trabalho a hora do meu almoço havia
chegado. Como era somente eu em casa cozinhei apenas o necessário para matar minha
fome, pois o meu homem de estimação não almoçava em casa. Após o almoço senti um
vazio me preencher e o constante sentimento de estar perdendo algo me assolou por
completo, olhei para os lados em uma atitude de puro desespero para tentar acalmar os
meus instintos que de repente ficaram tão sensíveis. E para minha surpresa, ou melhor,
espanto, ao caminhar em direção à sala uma visão que gelou meu sangue estava diante de
meus olhos. Um senhor de meia idade estava em uma plataforma do outro lado da varanda,
sorrindo e acenando para mim. Fiquei parada o encarando meio atônita e meio em estado
de alerta, e então a lembrança da carta surgiu na minha cabeça.

“REGRA N° 4: há um cara que limpa os vidros do prédio, mas ele vem APENAS nas sextas-feiras. Se
alguém aparecer na sua janela em qualquer outro dia, principalmente quarta-feira, não fale com ele,
ignore-o completamente. Ele vai tentar chamar a sua atenção na varanda, vai fazer piadinhas e pedir
para entrar. Nada é o que parece, finja que ele não existe e continue suas atividades normalmente.”

Como segunda reação após ficar uns 20 segundos estagnada no mesmo lugar, fui pegar a
carta em cima da mesma mesinha de madeira e corri imediatamente para o banheiro. Me
tranquei e continuei lá por muito tempo. O homem me chamou algumas vezes e tudo o que
eu fiz foi tapar os ouvidos com muita força, sentei no chão do banheiro e apoiei a cabeça na
porta, a ansiedade naquela altura já se fazia presente por completo. Não entendi o motivo
da minha ação, já que claramente na primeira vez que eu li aquela carta eu achei tudo um
completo absurdo, nem li ela toda. Foi um momento de muita confusão. Decidi retomar a
leitura das regras apenas por curiosidade e para tentar clarear um pouco a confusão que
reinava em meu cérebro.
REGRA N° 6: se você escutar passos no corredor às 14:00 da tarde e estiver sozinha em casa, se
tranque em algum cômodo ou saia imediatamente do apartamento.

Olhei para o relógio em meu pulso e uma onda de alívio se apossou de mim. Já eram 14:37.
Saí de fininho do banheiro e fui imediatamente em direção à varanda, me apoiei no
parapeito e coloquei a cabeça um pouco pra fora, olhando para todas as direções possíveis
na esperança de ver se o suposto limpador estava em algum outro andar.

Sem sinal dele.

O que era desespero agora dava lugar a descrença. Como pode um homem limpar treze
andares em tão pouco tempo? Se é que aquele homem realmente estava ali e não foi
somente uma alucinação passageira minha…

Decidi desconsiderar os acontecimentos anteriores e continuar meu dia, afinal já estava 37


minutos atrasada para estar online de volta ao trabalho. Terminei o expediente às 5 horas e
fui finalizar alguns afazeres advindos da recente mudança. Depois de encher quatro
grandes sacolas de lixo tive que descer até o térreo para realizar o descarte. Foi aí que
todas as regras da carta vieram à tona novamente.

Ao abrir a porta para descer, senti uma presença no corredor e vi que havia uma senhorinha
de olhos azuis com uma sacola de supermercado em uma de suas mãos, logo relembrei:

REGRA N° 5: há uma única senhora de olhos azuis nesse prédio, ela está sempre com uma sacola verde
no braço direito. não precisa ignorar ela, mas não olhe ela nos olhos, e muito menos tente ver o que
está na sacola.

Passei direto, dei um “boa tarde” e chamei o elevador. Os 30 segundos que se sucederam
para a chegada do elevador pareceram uma eternidade e a velha senhora continuava me
olhando, e eu, ignorando.

Assim que pus os pés dentro do apartamento o meu sinal de alerta ligou novamente. Olhei
para todos os lados e inclusive fui até a varanda, pronta para despachar seja lá quem
estivesse ali. Porém não havia ninguém. A barra estava completamente limpa. Não
satisfeita fui para o quarto e me sentei na cama por alguns minutos. Olhei para o teto e
fiquei contemplando aquela mancha bizarra bem no meio do teto. Era uma coloração
nauseante e que me dava calafrios. Senti algo clicar dentro de mim e decidi mandar uma
mensagem para a imobiliária para perguntar sobre o antigo morador.

Chat com imobiliária (net) aberto


Eu: Boa tarde, desculpa o incômodo, eu sou a nova moradora do xxxxxxxxx, queria saber
se vocês poderiam me passar algumas informações do antigo inquilino. Ele falou sobre ter
pedido para que vocês deixassem uma carta no apartamento?

Destinatário: Olá, senhora. Como assim antigo inquilino? Você é a primeira moradora deste
apartamento em que você está. Não ficamos sabendo de nenhum antigo morador, você
deve ter se confundido. Carta? Não, não. Deve ter sido um engano. A única vez que o
apartamento foi aberto antes de vocês foi em junho, para uma faxina. Depois daquele dia e
das últimas checagens, vocês foram as últimas pessoas que pegaram nas chaves.

Meu coração imediatamente parou. Não era possível que aquilo estava acontecendo.

Eu: Vocês não deixaram nenhuma mobília no apartamento? Nem mesmo uma pequena
mesa de madeira que fica logo perto da entrada?

Destinatário: Sinto muito, mas acho que a senhora deve ter confundido com outro lugar. Às
vezes as mudanças mexem com a gente, então esta suposta mesa deve ser apenas uma
lembrança de algum outro lugar que você morou ou passou por um tempo.

Naquela altura eu já estava passando mal e meu cérebro não conseguia assimilar mais
nada, tantas coisas estranhas acontecendo ao mesmo tempo não podem ser coincidência.
Primeiro o caminhão de mudanças se perdeu de forma totalmente ilógica, e agora a
imobiliária lhe informa que ninguém morou ali antes dela. Quanto mais tentava acalmar a
respiração, pior seus batimentos cardíacos ficavam. Para completar ela se tocou sobre o
que estava incomodando ela. Já são quase seis horas da tarde. E o trabalho de seu marido
terminava às 16:00. A empresa que ele trabalha não era tão longe dali, então só poderiam
ter duas opções. 1) O namorado ainda estava trabalhando, 2) Alguma coisa aconteceu.

Primeiro reflexo: Ligar para o chefe de seu namorado. O que era pra ser uma chamada
rápida se tornou um longo diálogo sobre como ele não precisaria mais se apresentar à
empresa nos próximos dias, já que logo em sua segunda semana de trabalho ele falta o
serviço e nem deixa um recado primeiro. Eu tentei argumentar avisando que ele tinha saído
para o serviço sim, e bem cedo. A conversa terminou com um silêncio partido dos dois
lados.

Eu estava perdida e minha cabeça não parava de girar. Deveria ter ligado pra polícia?
Ligado para os pais dele? São perguntas que nunca serão respondidas. Mas então eu me
lembrei de uma coisa, um detalhe muitíssimo importante.

Não tinha terminado de ler a carta.

Corri para o banheiro imediatamente e a peguei em cima da pia, exatamente no lugar que
deixei antes. E a última regra é algo que vai me assombrar até o fim da minha vida.

REGRA Nº 7: Nunca, em hipótese alguma, nem mesmo em sonhos, use o elevador


principal entre as 3:29 e 4:45 da manhã.
Meu namorado foi dado como desaparecido no dia 18 de julho do ano passado. E aqui
estou eu, novamente na casa dos meus pais, oito meses depois, contando a partir do dia
em que ele foi dado como desaparecido. Não há um minuto sequer que a coloração das
paredes daquele prédio não assombre meus pensamentos. E por incrível que pareça, o
meu luto foi tão rápido quanto a minha estadia naquele lugar. A única coisa que vem
reinando minha mente nos últimos tempos é aquela grotesca mancha desconhecida no teto
do meu antigo quarto. Nada mais, nada menos. Memento mori.

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