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A partir de uma análise minuciosa das múltiplas esferas exploradas na consagrada obra de

Machado de Assis: Memórias póstumas de Brás Cubas, é possível, portanto, imergir na


perspectiva tradicional e nos desfechos de instituições sociais específicas da época em que
a mesma foi desenvolvida (séc. XIX); Mais do que isso, compreender o pensamento político
implícito na obra e as motivações, por detrás, durante o período da história ali citado.
Para efetuarmos esta leitura de maneira efetivamente objetiva, utilizaremos, estritamente, o
recorte das figuras negras retratadas em MP. e estabeleceremos eventuais paralelismos
teóricos que servirão como plataforma para este ensaio.

Em primeiro plano, é necessário entendermos não apenas as potenciais intenções


subliminares de Machado com seus personagens e narrativas polêmicas para a sociedade
da época; quando tratamos da questão racial nas obras machadianas, inúmeras críticas são
direcionadas ao olhar supostamente omisso do autor para com a questão da raça negra, ou
seja, a sua própria raça. No entanto, o que, de fato, há de tão importante no posicionamento
-ou a falta dele- por parte de Machado em suas obras oitentistas?! Seria, por sua vez,
apenas mais uma face da crítica moralista daquele período, ou houve, de fato, negligência
do autor frente a causa?!

Ao lermos O pensamento racial no século XIX: o racialismo Brasileiro, entendemos que o


lugar que foi dado ao negro escravizado no romantismo foi o de apagamento—pois o
indivíduo negro, ainda tendo suas posições servís, características físicas e contexto inserido
descritos nos romances oitocentistas, o negro, como indivíduo dotado de personalidade,
incertezas, ambições, capacidades e intelecto próprio não encontrou espaço no movimento.
Tratando de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a descrição do negro escravizado atendeu
quase que integralmente tais características. Em um trecho, Brás Cubas descreve um
episódio vivenciado com dois de seus escravizados: “-Por exemplo, um dia quebrei a
cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava
fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não
satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por
pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um moleque de casa, era o meu cavalo de
todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixas, à guisa de freio, eu
trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro
lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou,
quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a boca, besta!".

É de se chocar, de fato, que um episódio tão cruel e inumano tenha sido descrito com tanta
neutralidade por parte do autor, sobretudo um autor negro como Machado, irmão de cor dos
então escravizados; Grave ao ponto de se pensar se, porventura, estaria Machado negando
sua cor e utilizando-a como moeda em troca de uma notoriedade crescente e bem colocada
na história e na comunidade literária a medida em que o mesmo fechasse os olhos para a
causa abolicionista e tudo que decorre disso.

Particularmente, para além de qualquer formato formal de escrita, o atendimento de critérios


literários fundamentais ou as propostas de narrativas alternativas, artísticas e disruptivas
desempenhados por um autor rico em repertório e estudos como Machado, há o lugar
insubstituível de um fator chamado humanidade.
Machado, por sua vez, foi e ainda é expoente na literatura e representa na história sua
marca que permanecerá acesa por gerações a fio, suas obras serão eternizadas e hão de
marcar presença vitalícia nas prateleiras empoeiradas dos clássicos.

Dentre tantas fortunas dispostas, não houve, portanto, a oportunidade de um singelo


movimento que colocasse em xeque os episódios nacionais históricos vividos pelo negro, a
construção da perspectiva nacional do povo Brasileiro -seja como sujeito, seja como nação-
aliado ao olhar insistente de subalternização direcionado ao negro -em comparação à
figuras indianistas já eleitas como heróis nacionais, por exemplo- na história e na própria
literatura, para, a partir disso, finalmente, utilizar sua imaginação, português eloquente e
estratégias, ainda as satíricas ou metafóricas, para evidenciar a questão do negro como ser
humano dotado de consciência, intelectual intacto e perspectiva pessoal e não somente
corroborar a corrente esteriótipada latente no romantismo oitentista do “negro benevolente”
e inocente, ou até mesmo quanto a causa abolicionista e de que forma isto, em verdade,
contribuia negativamente para um desenvolvimento social nefasto e para o atraso milenar
em incontáveis áreas de um grupo específico que, mais do que tudo, também o dizia
respeito; se tratando de quebras de padrões, Machado era sapiente: seus métodos
experimentais, suas críticas passivo-agressivas à burguesia da época, os traços realistas de
suas obras, a não-eleição de um herói nacional e o famigerado defunto-autor como
personagem principal de sua obra evidenciam-nos isso.

No entanto, não foi esse o cenário observado em Memórias Póstumas de Brás Cubas, e
sendo assim, não temos hoje e também não hão de haver as gerações futuras a referência
de Machado como o expoente negro da literatura Brasileira que advogou fervorosamente e
utilizou de sua posição social e repertório intelectual em favor da causa abolicionista e da
condição no negro na literatura e na história nacional.
Finalmente, faço das minhas palavras do professor Hemérito dos Santos as minhas
próprias: “Adeus: Machado de Assis ficará na história literária do nosso país ao lado de
[Domingos] Magalhães que, apesar de branco, foi também corroído pelas misérias da vida e
pelos preconceitos vesgos e zarolhos que também roeram o criador de Quincas Borba”.

Referências:

- Aulas: Figurações interditas o negro na literatura oitentista.


- Heloísa Toller.Gomes. O pensamento racial no século XIX.

LETA-21 A literatura Brasileira e a construção da Nacionalidade — Juliana Oliveira


Silva
José Cláudio Cunha dos Santos.
13/07/2023.

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