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Resumo
A busca por alternativas metodológicas que permitam ao professor tematizar a sua prática,
discutir suas dificuldades, tomar consciência do que é válido em seu trabalho e dos aspectos que
precisam ser melhorados, são ações que permeiam todo o projeto de formação dos educadores
da Escola Despertar. A formação do professor enquanto pesquisador da sua própria ação e
escritor de sua trajetória, registrando os significados construídos com a prática, foram os eixos
do Projeto de Formação Docente ao qual se refere esse relato de experiência.
A proposta de trabalho teve início há seis anos. Os quatro primeiros anos envolveram a
formação de grupos de estudos voltados para as didáticas específicas. A cada ano, o professor
elegia um eixo dentro da área escolhida, ou mesmo, uma área a investigar. À medida que foram
se apropriando das especificidades do trabalho, planejaram e desenvolveram projetos didáticos
em seus grupos, atrelados aos seus estudos. As aulas eram registradas e tematizadas, discutidas
e analisadas conjuntamente, contribuindo para o desenvolvimento da capacidade reflexiva.
No quinto e sexto ano, os estudos e registros dos professores, foram sistematizados por meio
da produção de artigos, tendo apoio de professores especialistas tanto na revisão teórica, como
na revisão técnica, vislumbrando a elaboração de um livro, que será lançado brevemente.
Quando a idéia foi lançada pela primeira vez, o grupo era pequeno, cerca de quinze professores
em toda a Escola. Não se tinha muito bem a dimensão de como repercutiria esse estudo nos
anos seguintes, mas se sabia que era necessário investir nesse campo de investigação que é
muito complexo, principalmente quando esta se refere à prática do professor polivalente, como
é o caso daqueles que atuam na Educação Infantil e Ensino Fundamental. Estudar no espaço de
trabalho, não era novidade para o grupo, essa, já era na época, uma atividade semanal da qual
participavam lendo livros e outros textos que ajudassem a refletir e encaminhar melhor a ação,
com os projetos didáticos desenvolvidos – modalidade organizativa adotada pela Escola.
Toda essa mobilização em função de melhor se apropriar das áreas de conhecimento, foi
proveniente da aprovação de dois projetos desenvolvidos na Escola, em um evento no sudeste,
que envolvia escolas de todo o país. Entre inúmeros trabalhos enviados para a seleção, a Escola
pôde fazer o relato de duas experiências: uma de Língua Portuguesa e outra de Matemática,
com a supervisão de pesquisadores renomados nas didáticas das respectivas áreas. A
repercussão dos trabalhos foi muito positiva, indicando que a trajetória da Formação, na Escola,
trilhava por caminhos promissores. Percebeu-se, a partir daí, a necessidade de investir nos
estudos, principalmente nas áreas das Ciências, e o momento era aquele, em 1999, quando tudo
começou.
O grupo assumiu o compromisso de se voltar para as áreas que sentiam mais dificuldades no
desenvolvimento do seu trabalho. Aos poucos os temas/áreas foram sendo delimitados e os
estudos definidos. A proposta consistia em buscar fundamentos nas didáticas específicas para
fazer a leitura da prática, por isso era extremamente necessário que os encaminhamentos
fossem permanentemente discutidos e refletido por todos, nas reuniões semanais de estudo. A
cada encontro, uma área/tema era contemplada nas discussões com o grupo e ao final do
período/semestre, cada professor estaria apresentando um relatório, reflexivo e
fundamentado, da sua trajetória.
Realizando leituras específicas, os professores faziam análise de situações didáticas por meio de
diversos instrumentos: pautas de observações, vídeos, relatos, que lhes permitiam estabelecer
relações entre a teoria estudada durante a formação e os acontecimentos práticos com os quais
se defrontavam na vida cotidiana, no contexto da Escola. Com os registros produzidos a cada
vivência, podiam estar mobilizando novos conhecimentos e atribuindo sentido a sua ação, por
meio da reflexão.
Madalena Freire Weffort, uma das pioneiras no uso de relatos no Brasil, diz que o registro escrito
são tarefas básicas do professor, porque através deles poderá dar forma, comunicar o que
pensa, para assim refletir, rever, aprofundar, construir o que ainda não conhece, enfim, o que
necessita aprender. Para esta autora, o ato de escrever materializa o pensamento, torna-o
concreto, permitindo que através dele o autor possa voltar ao passado, ao mesmo tempo em
que constrói o presente. Segundo ela, o registro escrito obriga o exercício de ações-operações
mentais, intelectuais de classificação, ordenação, análise, obriga a objetivar e sintetizar,
trabalhando a construção da estrutura do texto, do pensamento. (WEFFORT, 1996, p.41- 43)
Com o passar desses anos, percebeu-se que havia uma compreensão por parte dos professores
quanto às propostas de estudo, tanto quanto, da validade de apropriar-se cada vez mais de
conhecimentos que seriam determinantes na sua sala de aula, como no seu desenvolvimento
profissional, entretanto, a dificuldade em registrar era característica da formação desse novo
grupo de professores.
Ao estimular o professor a registrar, ou relatar o trabalho desenvolvido junto aos seus alunos,
esperava-se que ele fizesse uso sistemático de sua capacidade de observação, ampliando-a na
medida em que a exercitasse e a melhorasse, com os estudos, teóricos, proporcionados pelo
próprio projeto de formação. Contudo, o limite do “olhar” estava atrelado ao conhecimento que
o professor tinha sobre o universo ou situação a ser focalizada. Quanto mais “conhecesse”, mais
condição de fazer inferências teria e, possivelmente, se tornaria mais competente e autônomo
na sua ação.
Já dizia Paulo Freire que o registro da reflexão e sua socialização num grupo são "fundadores da
consciência" e assim sendo, são também instrumentos para a construção de conhecimento. O
ato de escrever obriga a formulação de perguntas, levantamento de hipóteses, aonde se vai
aprendendo mais e mais, tanto a formulá-las, quanto a respondê-las. Assim, o registrar a
reflexão cotidiana, significa abrir-se para seu processo de aprendizagem, pois aquele que ensina,
aprende, e é um modelo para seus alunos, de aprendiz, do seu ensinar.
No final de 2002, o grupo estava mais coeso, já tinha vivenciado momentos de partilha das
dificuldades encontradas na trajetória de cada um dentro da Escola e por isso, também, estava
mais consciente das suas necessidades e abertos para novos encaminhamentos que
possibilitassem o seu desenvolvimento profissional. Era este o momento de dar continuidade a
experiência, de desenvolver um processo investigativo sobre as didáticas específicas nas áreas
de conhecimento trabalhadas, visando a formação de sujeitos reflexivos e críticos, com atitude
investigativa, percebendo-se sujeito, e, ao mesmo tempo, sua prática, como objeto dessa
investigação, capaz de trabalhar e interagir na coletividade, expressando-se oralmente e por
escrito, enfim, produtor de conhecimento.
Como bem ressalta Warschauer (2001, p.198) uma prática reflexiva envolve a participação do
professor em discussões acerca dos fins da educação e das questões o que ensinar, a quem e
por que, por isso, para um melhor encaminhamento das análises do trabalho, as atividades de
registro e reflexão aconteciam em três fases. Na fase pré-ativa as aulas e atividades eram
pensadas e planejadas pelo professor e discutidas com o orientador/coordenador pedagógico.
Já em classe, na fase ativa, o professor registrava suas intervenções e dos elementos
importantes que destacava na fala dos alunos, assim como recolhia as representações dos
mesmos sobre a atividade proposta (textos e desenhos), fazendo as suas inferências sobre a
situação vivenciada:
O uso de vídeos (em VHS) com as gravações das aulas auxiliava também na discussão dos
encaminhamentos didáticos, principalmente quando o professor tinha de tomar atitudes e rever
estratégias diante dos dilemas vivenciados nesse momento. Em um momento posterior a toda
essa ação, fase pós-ativa, o professor fazia individualmente, sua reflexão, levava suas
impressões e observações para a discussão com o orientador da área/coordenador pedagógico
e também as compartilhava com o grupo de professores por meio de apresentação dos registros
e vídeos, colocando sua vivência para discussão coletiva nos encontros de estudo - tematização
da prática:
Essa possibilidade de socializar e discutir as experiências na troca com seus pares, é um aspecto
fundamental no processo de formação dos professores, pois, como cita Regina Scarpa:
Vale ressaltar que sentimentos como, receio de encarar limitações, dúvidas e erros ou sensação
de perda de controle sobre uma situação, foram percebidos ou manifestados em alguns
momentos, mas no decorrer do trabalho, essas dificuldades foram superadas à medida que se
tomava consciência de que estas eram manifestações normais dentro do processo.
Com esse trabalho, entender a lógica subjacente a uma pergunta ou resposta do aluno passou
a ser ainda mais importante, constituindo-se numa atividade investigativa, altamente formativa
para todos:
“Nada melhor do que partir de como eles pensam para avançar sobre
o objetivo que, naquele momento, era a representação escrita do real
e dos centavos, além da composição desses valores e do uso da
estimativa para ajudar no cálculo. Na representação de R$0,50 uma
criança escreveu R$50,00 e outra R$0,50. Ao questionar a primeira
criança, percebi que ela não sabia por que o fez daquela forma (...)
resolvi selecionar algumas estratégias, para análise e discussão (...)"
De acordo com Schön (1992, p. 78) um professor reflexivo deve permitir-se ser surpreendido
pelo que o aluno faz, para que possa refletir sobre esse fato, ou seja, pensar sobre aquilo que o
aluno disse ou fez e, simultaneamente, procurar compreender a razão por que foi
compreendido. Ainda nesse processo, precisa reformular o problema suscitado pela situação e
efetuar uma experiência para testar a sua nova tarefa e a hipótese que formulou.
A proposta de formação continuada de professores, no interior da escola, não deve ser dirigida
apenas ao conhecimento de teorias, métodos e práticas pedagógicas, mas deve levar o educador
ao auto-conhecimento e produzir relações reflexivas, pois a ação humana de atribuir sentido ao
vivido, se dá por meio de um processo narrativo, através do qual cada um se constitui enquanto
sujeitos de possibilidades e de conhecimentos. A reflexão é hoje um dos conceitos mais
utilizados por investigadores, formadores de professores e educadores em geral, para se
referirem às novas tendências da formação de professores. Contudo, Donald Schön, em seu
texto "Formar professores como profissionais reflexivos", ressalta que a via possível para que os
professores aprimorem a sua prática e desenvolvam a capacidade reflexiva, está em utilizarem
no contexto da sala de aula, os conhecimentos pedagógicos construídos nos encontros de
formação que ocorrem no interior deste mesmo espaço: a escola (SCHÖN, 1992, p. 78).
“Ao concluir este estudo (...) compreendo como o ato de educar está
muito além de informar as crianças sobre um tema ou questão. A
educação se constrói na mudança de idéia e de postura. Nossas
crianças tiveram diversos momentos de dúvidas e incertezas e elas não
foram todas sanadas na escola. Na área de Ciências Naturais perguntar
e ter dúvidas, é fundamental para a construção de um ser inventivo,
criativo e cidadão (...) o trabalho com as representações e
experimentações (...) em Ciências Naturais favorece um repensar para
a criança, mas também para o professor que consegue acompanhar a
trajetória do pensamento de seus alunos e dar-lhes assistência na
aproximação desses conceitos, bem como perceber-se como
mediador dessa ação, fugindo do papel do detentor do saber. Ensinar
é mais que informar, é possibilitar um novo pensar!”
(trecho do artigo Experimentos e representações das crianças em
Ciências Naturais
Entender a lógica subjacente às perguntas e respostas dos alunos é o caminho para possibilitar
a aprendizagem, por isso, a descoberta de que são os dilemas e desafios vivenciados no
cotidiano da sala de aula e nas relações estabelecidas com as crianças, que transformam o ato
de ensinar em algo instigante:
Cada professora, na medida em que foi se percebendo como conhecedora de novos saberes
começou a se sentir mais segura em suas ações. E essa satisfação em saber que sabe mais, que
está diferente, que pode trabalhar melhor e gostar do que está fazendo, é uma das
características do professor reflexivo e implicam na “ponderação cuidadosa das conseqüências
de uma determinada ação” (ZEICHNER, 1993, p. 19). Segundo este autor, “o professor reflexivo
avalia o seu ensino por meio da pergunta ‘Gosto dos resultados’? E não simplesmente ‘Atingi
meus objetivos? ’” (ZEICHNER, 1993, p. 19).
Considerações Finais
Zeichner (1993, p.17) diz que, “reconhecendo a riqueza da experiência que reside na prática, o
processo de compreensão e de melhoria do ensino deve começar pela reflexão sobre a própria
experiência”, escrever, isto é, por no papel os fatos e, frente a eles, as reflexões e dilemas, não
é tarefa fácil. Contudo, foi possível perceber que a escrita ajuda a organizar as idéias, o
pensamento e a produzir estranhamento e distanciamento do que foi realizado, promovendo
novas reflexões e compreensões sobre a prática vivida.
A prática com a experiência de escrita não foi tão simples assim, muito pelo contrário,
evidenciou quantas dificuldades estão no entorno da vida de cada um, seja de falar e/ou
escrever sobre o vivido. Certamente, fruto do percurso de formação pessoal, visto que a própria
trajetória cultural da escola é bloqueadora desta habilidade. Além disso, a construção da idéia,
durante anos, de que o saber cotidiano distanciava-se do conhecimento científico, também
acaba por ser responsável pela não exploração desta histórica forma de construir informações,
nos processos de escrita pessoal. De acordo com Larrosa (1995, p.35) “a teoria é um gênero de
pensamento e de escrita que pretende questionar e reorientar as formas dominantes de pensar
e de escrever em um campo determinado”.
Os resultados obtidos são evidências de que a pesquisa ou o trabalho coletivo é uma estratégia
poderosa de desenvolvimento profissional e de mudança do ensino nas escolas. Um aspecto
interessante do trabalho realizado pelo grupo foi a valorização às produções, assim como o
reconhecimento da capacidade de produzir saberes profissionais importantes para o trabalho
docente e, sobretudo, participar do debate público sobre as inovações curriculares. As
produções mostram que é possível o professor constituir-se também em pesquisador e escritor.
A realização desta atividade teve efeito significativo, dentre os professores, que não apenas
compuseram expressivos textos, mas também manifestavam um intenso comprometimento
profissional motivado pela experiência de resgate de suas vivências docentes. O processo de
investigação e escrita do professor aumentou a qualidade de suas reflexões e representou um
modo fecundo deste produzir, sistematizar e divulgar saberes práticos, constituindo-se, assim,
em sujeito de conhecimentos, com autonomia para promover seu próprio desenvolvimento
profissional e as inovações curriculares na escola.
Ao produzirem os artigos, que estarão compondo o livro “Construindo e Compartilhando
Conhecimentos” os professores produziram, também, um distanciamento, que não somente
valorizou acertos de suas ações, mas trouxe, especialmente, uma possibilidade de se auto-
avaliar, avaliar o trabalho desenvolvido e atribuir sentido e significado à sua prática.
A contribuição principal desse trabalho foi abrir um espaço de reflexão e permitir a compreensão
por todos os envolvidos no processo de que, só haverá uma mudança de postura da ação e do
conhecimento que a sustenta se houver inquietação, questionamento, indagação e para isso o
educador precisa ir a busca da teoria para investigar a prática e vice-versa. É preciso refletir
sobre o significado e a importância de se construir uma postura investigativa e de dialogar com
os saberes construídos no cotidiano das práticas pedagógicas, por isso, é preciso atribuir valor
ao registro como fonte para essa reflexão.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
GERALDI, C.M.G.; DARIO, F.; PEREIRA, E.M. de A. (orgs.). Cartografias do trabalho docente.
Campinas: Mercado das Letras, 1998.
WEFFORT, Madalena Freire. Observação, Registro e Reflexão. São Paulo: Espaço Pedagógico,
1996.