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A PESQUISA INTERVENTIVA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

OLIVEIRA, Paula Gomes de1 - UCB/UnB

Grupo de Trabalho: Formação de professores e profissionalização docente


Agência Financiadora: Projeto Observatório de Educação - Capes

Resumo

Este trabalho desenvolveu-se a partir de um projeto de pesquisa do Observatório da Educação


– FE/UnB intitulado: “Concepções e práticas sobre o letramento: uma pesquisa exploratória e
interventiva a partir das interdependências entre avaliações do sistema e a prática
pedagógica”. Este projeto foi fruto de uma parceria entre a Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Universidade de Brasília (UnB),viabilizada por
meio de edital público, e tem como objetivo investigar as bases epistemológicas das
concepções e práticas de alfabetização e letramento e de desenvolvimento humano presentes
na escola e sua implicação nos resultados escolares de pós-graduação e de graduação de
bolsistas do projeto que realizam atividades de cunho psicopedagógico junto às crianças com
algum entrave em seu processo de alfabetização. Inserido nesse contexto, este trabalho busca
discutir a pesquisa interventiva, com ênfase nas potencialidades que a organização dessa
experiência delineia para a formação docente. Analisou-se como o caráter interventivo da
pesquisa se configura como um espaço-tempo de formação continuada para os sujeitos
envolvidos – estudantes de doutorado, mestrado, graduandos e crianças atendidas – em três
eixos: o percurso da pesquisa interventiva e a docência; a intervenção e produção de sentidos;
a intervenção e a formação de professores. O cenário de constituição e desenvolvimento da
pesquisa interventiva tem-se mostrado eficiente na formação de professores iniciantes,
experientes e futuros professores. Não por mostrar como um espaço-tempo socializador de
formas de agir, mas como um espaço-tempo capaz de incentivar um modo próprio e criativo
de teorizar e praticar a pesquisa, renovando-a continuamente e mantendo-a em seu caráter
inventivo, fundamental para a construção do conhecimento.

Palavras-chave: Pesquisa interventiva. Formação de professores. Processos de alfabetização.

1
Mestra em Educação pela Universidade de Brasília. Doutoranda em Educação pela Universidade de Brasília.
Participante do projeto de Pesquisa: Concepções sobre a alfabetização e letramento: uma pesquisa exploratória e
interventiva a partir das avaliações – Observatório de Educação – Capes. Professora do curso de Pedagogia da
Universidade Católica de Brasília. E-mail: pgomes@ucb.br.
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Introdução

Este trabalho se pauta em alguns aportes teóricos fundamentais para se pensar os


aspectos da relação entre a pesquisa interventiva e a formação de professores: os pressupostos
da Teoria histórico-cultural de Vigotski (2009), a Teoria da Subjetividade de González Rey
(2005, 2009) e os trabalhos de Paulo Freire (1989,1996) sobre a formação de professores.
Tais construtos tornaram possível compreender as atividades de intervenção junto às crianças
com algum entrave em seu processo de alfabetização, como uma ação criativa, propositiva e
dialógica que muito importa para o processo de aprendizagem das crianças, como se mostrou
fundamental no processo de formação docente para os profissionais da educação envolvidos
nesse processo.
Além disso, também será alvo de nossa discussão a pesquisa interventiva enquanto um
lócus de subjetivação, no qual os professores que dela participam se veem diante de inúmeras
oportunidades para refletirem criticamente sobre sua prática, com vistas a qualificá-la sempre
mais. Uma pesquisa com esse enfoque incorpora a prática ao lado da teoria, como forma de a
pesquisa estruturar-se. Dito de outro modo, na pesquisa interventiva, intervir se torna uma
forma eficiente de pesquisar e de aprender. E quem aprende? Todo o grupo que participa da
pesquisa. Aprendem as crianças, alvo principal das atividades de intervenção. Aprendem os
estudantes de pós-graduação, que já são professores. Aprendem os estudantes de graduação,
futuros professores.
Como forma de problematizar a docência e as possibilidades de aprendizagem que
emergem ao longo do exercício da pesquisa, explicitaremos a discussão em eixos que
respondem a três questões: Como ao longo do desenvolvimento da pesquisa é possível
dialogar sobre concepções, práticas e sentidos para a docência e para o processo de
aprendizagem? Como a intervenção e a docência se efetivam por meio das relações entre os
sujeitos produtores de sentido em diálogo com o outro e com as oportunidades de conhecer?
Como a intervenção constitui-se como um espaço de formação de professores?

Os Percursos da Pesquisa Interventiva e a Docência

No desenvolvimento da pesquisa, o grupo de participantes compartilha de discussões e


planejamento coletivo sobre as escolhas metodológicas viáveis para a intervenção, de acordo
com a realidade social da escola, impedimentos práticos e, principalmente, necessidade das
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crianças atendidas. O fortalecimento e a capacidade de o grupo pensar tais estratégias de


intervenção tem se intensificado e caminha junto com o desenvolvimento da pesquisa com
vistas ao atendimento dos objetivos específicos. As ações de intervenção quando planejadas
buscam atender à dupla demanda: favorecer o desenvolvimento das crianças na leitura e
escrita e responder às questões propostas nos objetivos específicos. E, obviamente, esse
movimento gera, continuamente, novas perguntas que são projetadas no delineamento mais
amplo da pesquisa.
Os estudantes de pós-graduação compartilham seu quadro de interesse e preocupações
que expressam articulação com seus objetos de estudos, sua pesquisa específica e sua
experiência de docência. É comum percebermos que um dos objetivos específicos do projeto
de pesquisa, de vez em quando, efetiva-se em ações quando o interesse epistemológico de um
ou mais participantes da pesquisa dialoga com um dos objetivos específicos do projeto.
Assim como, a experiência de docência de alguns membros do grupo, às vezes, se
interpõe como contraponto em relação à experiência dos estudantes de graduação que atuam
nas atividades de intervenção e percebem que não há como fazer opções rápidas e seguras que
deem conta da complexidade dos processos de aprendizagem, em especial, da alfabetização
das crianças: “é muito difícil saber se nossa atividade será boa e dará o resultado que
esperamos. Vamos trabalhando com a criança, até que o resultado vem...” (Mariana,
graduanda, participante do projeto).
Porém, se não é possível ter certeza sobre a eficácia de uma atividade,
especificamente, pois não é possível controlar todas as variantes da atividade na escola –
tempos e horários da escola, que, por vezes, se interpõem às atividades do projeto, falta de
espaço adequado para a atividade, falta de sintonia com os motivos e interesses das crianças,
dentre outros – a discussão alinhada ao aprofundamento teórico torna possível ao grupo
analisar as situações de possível aprendizagem, as opções metodológicas e, por fim, ser capaz
de tomar uma decisão fundamentada. E, o principal, esta decisão posiciona-se com foco no
processo de aprendizagem que a criança poderá trilhar a partir das atividades de intervenção, e
não com foco em uma atividade isolada. Além disso, o processo de aprendizagem da criança,
marcado pela produção de sentidos e pela subjetividade, se constitui a partir de sua inserção
em outros espaços escolares e contextos de vida e experiência.
Na vivência e na construção cotidiana da docência, o reconhecimento da necessidade
de fazer escolhas teóricas e metodológicas, de planejá-las com critério, após análise das
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condições materiais e das necessidades das crianças, deve ser visto como momento primordial
no processo de ensino e de aprendizagem. Mas se torna importante também que o professor
tenha uma visão da conjuntura sociocultural e complexa que envolve as crianças e o seu
papel, de modo a poder aquilatar sua prática e posicionar-se em relação à visão “salvadora” da
educação e de seus profissionais presentes em alguns discursos da sociedade.
A situação desafiadora vivenciada por muitos profissionais da educação básica
também faz surgir na escola um discurso determinista, segundo o qual as dificuldades do
ponto de vista estrutural e pedagógico – rotatividade de professores entre as escolas, falta de
material didático-pedagógico, condições físicas inadequadas da escola, gestores pouco pró-
ativos, escolas sem trabalho coletivo, adoecimento de professores, dentre outras –
transformam-se em fatores impeditivos. Observe o relato de uma das participantes do projeto
revelam esse posicionamento: “– Aqui é assim mesmo. A direção não faz nada. A família não
participa. Os professores, é cada um por si. Quem quer fazer.” (Fernanda, mestranda,
participante do projeto).
Esse discurso revela uma forma de a professora interpretar sua realidade escolar.
Porém, quando ela o comunica para outra pessoa, ela não somente expressa sua opinião, mas
essa opinião adquire uma força de “profecia realizável” para aquele que recebe a informação.
A cada desafio percebido no âmbito da escola, aquele comentário carregado de emotividade
parece ocupar o lugar de uma pretensa verdade e transformar-se em uma explicação para a
forma como a escola funciona. A discussão e aprofundamento dessa realidade realizada à luz
de construtos teóricos que interpretam a realidade, compreendida em seu caráter complexo e
multifacetado e motivado pelas escolhas subjetivadas pelos sentidos produzidos, funcionam
como elemento desmistificador de explicações deterministas, como aquela da professora
citada no parágrafo anterior.
Nesse contexto, os percursos da pesquisa interventiva se constituíram como um
ambiente de vivência do estudo, da crítica, do diálogo e da compreensão da realidade em sua
tessitura complexa e criativa, com espaços para outras formas de estar e realizar o fazer
pedagógico na escola. Percebemos que, numa certa medida, a pesquisa tem proporcionado
aprendizagens importantes sobre a docência. E a aproximação com os dilemas e com as
formas como a docência se manifesta na escola tem injetado na pesquisa novas questões,
capazes de ampliar o horizonte teórico e metodológico da própria pesquisa.
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A Intervenção e a Produção de Sentidos

A educação em sua constituição e consolidação como campo de estudo herdou alguns


legados próprios do embate entre as ciências sociais e as ciências humanas. Os quais
acabaram por instaurar discursos e práticas epistemológicas de valorização dos padrões
dicotômicos como forma de legitimação de métodos e resultados nas pesquisas, tais como
formalizações binárias e excludentes do tipo “quantitativo” versus “qualitativo”, “individual”
versus “coletivo” e “afetivo” versus “cognitivo”.
Como forma de superar uma polêmica estéril que comunica muito mais sobre duas
diferentes tradições de pesquisa – qualitativa e quantitativa – do que propriamente sobre os
aspectos de complementaridade presentes nas duas abordagens, fruto de uma forma
diferenciada de compreensão da realidade, e que resultam em delineamentos diferentes para
cada uma das pesquisas, temos os trabalhos de González Rey, estudioso propositor da
Epistemologia Qualitativa. Esta se assenta na perspectiva histórico-cultural de Vigotski,
revendo e ampliando alguns conceitos e criando novos, no intento da tratar as questões
referentes ao tema da subjetividade. Devido à sua perspectiva de produção de conhecimento e
à metodologia instaurada, a Epistemologia Qualitativa rompe com a lógica dos opostos
excludentes e limitadores do surgimento de “novas zonas de inteligibilidade” para os
problemas de pesquisa.
Não nos deteremos na explicitação da Epistemologia Qualitativa de González Rey,
mas traremos para o debate os estudos de Vigotski, sua proposta de junção do par “cognição-
afeto”, relacionando-o ao momento da intervenção. Portanto, como elemento disparador de
nossa discussão acerca da intervenção pedagógica como canal dialógico e promotor da
emersão do sujeito, enquanto partícipe do seu processo de aprendizagem na alfabetização, nos
pautamos em Vigotski (2009) para trazer à tona algumas questões relevantes e instigantes
para desvelarmos a dicotomia existente entre cognição e afeto:

[...] quem separou o pensamento do afeto inviabilizou de antemão o estudo da


influência reflexa do pensamento sobre a parte afetiva e volitiva da vida psíquica,
uma vez que o exame determinista da vida do psiquismo exclui, como atribuição do
pensamento, a força mágica de determinar o comportamento do homem através do
seu próprio sistema, assim como a transformação do pensamento em apêndice
dispensável do comportamento, em sua sombra impotente e inútil. (VIGOTSKI,
2009, p. 16)
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Entendemos que o afeto não seja uma influência reflexa do pensamento sobre a parte
afetiva e volitiva, mas uma impulsão, uma força motriz e geradora, pois a psique, de acordo
com González Rey (2005), é um espaço ontológico diferenciado, multifacetado, sistêmico,
dialógico, dialético e complexo, definido como subjetividade.
Falar em alfabetização supõe pensar no pensamento como um orientador do processo
interventivo, supõe compreender a organização sistêmica do sujeito. Eis a dinâmica em que
pensamento e afeto se retroalimentam e dão mobilidade ao sujeito. Intervir implica descobrir
como o aluno se conecta às atividades propostas, quais os percursos de seu pensamento, quais
as pistas dadas, qual a sua forma peculiar de resolução no curso da atividade e como dispor de
possibilidades de impulsões ao seu desenvolvimento naquele momento.
As atividades de intervenção foram organizadas a partir de três eixos presentes no
currículo da educação infantil e dos primeiros anos do ensino fundamental: 1) literatura
infantil; 2) artes plásticas – pintura, modelos com massa de modelar, desenho; 3) jogos
lúdicos e brincadeiras. Optamos por atividades que pudessem dialogar com a “cultura
infantil” e, por isso, atrair o interesse e mobilizar os aspectos cognitivos e afetivos, percebidos
como imbricados entre si e possibilitadores de processos de produção de sentidos sobre as
próprias crianças, sobre sua realidade e sobre a leitura e a escrita.
Essa escolha corrobora o entendimento de que as intervenções pedagógicas são
imprescindíveis ao desenvolvimento subjetivo do sujeito, implicam na abertura de espaços
relacionais dialógicos em que as situações comunicativas promovam a produção de sentidos
subjetivos2 e recursos subjetivos que impulsionem a aprendizagem e o desenvolvimento.
Nesse contexto, a intervenção apresenta-se como uma possibilidade de adentrar esse espaço
imprevisível da relação indissociável entre cognição e afeto e a subjetividade como espaço
ontológico diferenciado que nos permite buscar compreender as tramas tecidas nesta relação.
Nesse sentido, Tacca (2008, p. 141) aponta atitudes que coadunam com o trabalho do
professor como colaborador e provocador nesse processo interventivo:

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O sentido subjetivo é a integração de uma emocionalidade de origens diversas que se integra a formas
simbólicas na delimitação de um espaço da experiência do sujeito. No sentido subjetivo integra-se tanto a
diversidade do social quanto a do próprio sujeito em todas as suas dimensões, incluindo a corporal. As emoções
associadas à condição de vida do sujeito se integram em sua produção de sentido. (GONZÁLEZ REY, 2009, p.
127).
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Abertura para o diálogo – investigar o aluno na busca de decifrar seu pensamento ou


seu funcionamento psicológico e a produção de sentidos e significados que indicam
as relações cognição-afeto;
Intervenção atenta e criativa – a fim de colocar seus recursos pessoais e diferentes
instrumentos e estratégias em favor da aprendizagem e do desenvolvimento do
aluno.

Professor e aluno são partícipes de um processo de sentidos e significados que


movimenta o espaço de desenvolvimento em que ambos são constituídos e constituintes da
imensa teia de produções simbólicas e emocionais. Cabe ao professor organizar o ambiente
social promovendo a colaboração entre os pares, criando e se utilizando de mediadores que
oportunizem essa ação atenta e criativa. Esta atenção pode ajudá-los a gerar recursos
subjetivos que impliquem no desenvolvimento de atitudes recursivas mediante situações de
conflito emergindo outras possibilidades de ação.
Podemos considerar que as participantes que atuam na intervenção junto às crianças
realizam uma ação na mesma perspectiva que Tacca (2008) nos apresenta. Embora pensemos
nos aspectos interventivos com foco nas crianças do 2º ano, foco da pesquisa, a investigação
perpassa os compassos e descompassos da alfabetização na interface com o letramento, em
seus diversos níveis. E percebemos que os caminhos e possibilidades de intervenção e
promoção de desafios em alunos atravessados pelas “tais” dificuldades de aprendizagem em
seus percursos peculiares foram capazes de colocá-los em zonas novas de produção de
sentidos em relação à leitura e escrita.
Por vezes, atividades simples, como pedir que as crianças escrevam o nome em um
papel e depois recorte cada letra do nome e tente reconstruí-lo, conduziram a produção de
significados novos e novas relações com a escrita e leitura: “M-A-R-C-O-N-I” tornou-se “M-
A-R-C-O”, e a descoberta: “Marco é o nome do meu irmão, eu já sei escrever o nome do meu
irmão, não acredito!!” (registro da atividade de Fernanda). Marconi não conseguiu realizar a
leitura do seu nome, embora o escrevesse, mas ajudado por Fernanda, conseguiu ler o nome
“M-A-R-C-O”, o nome de seu irmão. O trecho ilustra um encontro entre a leitura e a escrita e
vida das crianças. Encontro que é salutar para acessar a unidade cognição-afeto e desencadear
novos processos de produção de sentidos e, por conseguinte, de desenvolvimento.
Portanto, alfabetizar envolve a criança e o seu processo histórico, o resgate de suas
percepções de mundo, porque o seu mundo comparece na sala de aula por meio de suas
expressões simbólicas e emocionais. A leitura e a escrita envolvem a emocionalidade do
sujeito, dar espaço para as leituras de mundo trazidas pelas crianças é uma possibilidade de
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aproximá-las do processo de alfabetização, de partilharem e compreenderem a densa


organização do sistema alfabético que tanto lhes causam confusão.
E alfabetizar, quando se tem um sistema alfabético complexo como o da língua
portuguesa, em que as crianças se veem atravessadas por constantes conflitos em que uma
letra pode ser representada por um ou mais fonemas ou vice-versa, não é fácil. O fato é que
não dá para pensar apenas nos aspectos técnicos, ou cognitivos, ou apenas socioculturais
desse processo, é preciso compreendê-lo em sua inteireza. As atividades de intervenção
privilegiam o trabalho dissociativo e associativo com as letras e palavras. O trabalho com o
alfabeto móvel – letras do alfabeto soltas e em grande quantidade – é utilizado com bons
resultados, demonstrando o quanto as relações entre as partes micro e macro do sistema
alfabético devem ser aprendidas. E as crianças possuem tempos distintos para esse
aprendizado.
Alfabetizar e letrar exigem um movimento operado a partir das práticas sociais da
comunidade, na cultura escrita e oral em que essas crianças estão mergulhadas e que
dinamizam as situações comunicativas nas quais estão imersas. São essas práticas que abrirão
os caminhos para o entendimento da função social da escrita e da leitura na escola e que
também ampliarão suas percepções. Não são processos dicotômicos, mas faces da mesma
moeda, onde a oralidade e a escrita se complementam, o texto e o contexto são um mergulho
no que subjaz o que nem sempre é tão óbvio, a abstração e o concreto caminham de mãos
dadas, o silêncio e a música podem ser apenas um ponto de vista. A leitura da
“palavramundo” jamais está dissociada da leitura do mundo (FREIRE, 1989).
O aprendizado da escrita não é um processo simples e mecânico ou apenas uma
técnica, mas uma análise complexa da língua falada e de sua transposição que exigem
operações mentais extremamente rebuscadas, como aponta Vigotski (2005). E nessa trama
densa muitos percalços são encontrados, a língua escrita e a falada possuem diferenças
discrepantes. Enquanto uma possui aspecto musical, entonacional, expressivo, contextual,
possui interlocutores, a outra exige alto grau de abstração, apoio em elementos coesivos, é
produzida em situações inusuais, desprovida de som, de interlocutores (VIGOTSKI, 2009).
Destarte, a prática social como princípio organizador do ensino na escola envolve a
complexa tarefa do professor de saber quais os gêneros textuais são significativos dentro da
comunidade escolar, o que também envolve conhecer a bagagem cultural das crianças que,
antes de chegarem à escola, já pertencem a uma sociedade letrada (KLEIMAN, 2007).
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Ocasionalmente, o contexto e acervo cultural dessas crianças é desconsiderado. Há o


predomínio de atividades com textos clássicos e formais, pertencentes à cultura de classe
média, que possui valores e conteúdos que não são compreendidos pelas crianças das classes
populares, pertencentes às escolas nas quais o projeto atua.
Não se pretende argumentar que as crianças das classes populares devem ter acesso
apenas aos produtos culturais próprios de sua vivência, mas que o contato com esse acervo
deve ocorrer mediante diálogo e contextualização, fato que nem sempre acontece. As pistas de
entendimento desse material devem ser dadas às crianças, como forma de elas desencadearem
processos de significação e de produção de sentidos.
O processo interventivo está implicado em todos os espaços em que a escuta sensível
do outro e de suas experiências estão em xeque e em que a provocação de seu pensamento
entendendo o funcionamento peculiar dessas estruturas psíquicas para desatar seus nós seja
necessária e é também um espaço de envolvimento no processo de aprender e se desenvolver.

A Intervenção e a Formação de Professores

Nos últimos anos, a formação de educadores tem se constituído um dos temas que
mais tem despertado a curiosidade acadêmica de muitos estudiosos e pesquisadores da área
educacional, assim como de muitos gestores, em razão da necessidade de atuação de pessoas
competentes na formação de nossos educandos. Isso revela a processual compreensão de que
a formação docente é uma atividade complexa, porém necessária, se de fato acreditamos ser a
educação um caminho privilegiado de transformação social.
O pensamento simplista de que, para ser educador, basta ter sido educando e ter um
bom nível de formação universitária, aos poucos, tem cedido lugar à compreensão de que essa
formação docente contínua é, antes de tudo, um processo necessário e complexo que requer
seriedade, consistência e constância em sua efetivação.

Considerações Finais

A formação continuada dos educadores, segundo Imbernón (2006), é um campo fértil


para o cultivo das relações, do convívio e da troca de experiência. Ela assume um papel que
vai muito além das teorias e aprendizagens cognitivas, pedagógicas e didáticas. É necessário
vermos a prática profissional docente como uma ação intelectual e autônoma e não
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meramente técnica. É, na verdade, um processo de ação e de reflexão cooperativa, de


indagação e de experimentação, no qual, como diz o nosso mestre Paulo Freire (1996), em sua
obra Pedagogia da autonomia, “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado
forma-se e forma ao ser formado”.
Paulo Freire (1996) também acreditava na dialogicidade do ato de ensinar e aprender.
Quando ensinamos, aprendemos ao ensinar, e quando aprendemos, ensinamos ao aprender.
Esse é um processo extremamente dinâmico, onde todos os envolvidos são sujeitos de sua
ação. Nessa perspectiva, nenhuma formação docente verdadeira pode se fazer alheia ao
exercício da criticidade, que implica a promoção da “curiosidade ingênua” à “curiosidade
epistemológica” e o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade,
da intuição.
O cenário de constituição e desenvolvimento da pesquisa interventiva tem-se
mostrado eficiente na formação de professores iniciantes, experientes e futuros professores.
Não por mostrar como um espaço-tempo socializador de formas de agir, mas como um
espaço-tempo capaz de incentivar um modo próprio e criativo de teorizar e praticar a
pesquisa, renovando-a continuamente e mantendo-a em seu caráter inventivo, fundamental
para a construção do conhecimento.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo:
Autores Associados: Cortez, 1989.

______. Pedagogia da autonomia. 20. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GONZÁLEZ REY, Fernando Luis. Sujeito e subjetividade. São Paulo: Thomson Pioneira,
2005.

______. Questões teóricas e metodológicas nas pesquisas sobre a aprendizagem: a


aprendizagem no nível superior. In: MITJÁNS, Martineez Albertina; TACCA, Maria Carmen
Villela Rosa (Org.). A complexidade da aprendizagem: destaque ao ensino superior.
Campinas, SP: Editora Alínea, 2009.

IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional. Formar-se para a mudança e a


incerteza. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

KLEIMAN, Angela B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo,
Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p. 1-25, dez. 2007.
12613

TACCA, Maria Carmen Villela. Processos de aprendizagem e a perspectiva histórico-cultural:


concepções e possibilidades em torno do movimento de inclusão. In: GALVÂO, Afonso
Celso Tanus; SANTOS, Gilberto Lacerda dos (Org.). Educação: Tendências e desafios de
um campo em movimento. Volume 3. Encontro de Pesquisa em Educação da Região
Centro-Oeste/ANPED, 9. Brasília: Liber Livro Editora: ANPED, 2008.

VIGOTSKI, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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