Você está na página 1de 7

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA


CURSO DE LETRAS

JOSÉ MICAEL SIMÕES CORDEIRO

COMENTÁRIO ANALÍTICO-INTERPRETATIVO
SOBRE O POEMA “O BURACO DO ESPELHO”

JOÃO PESSOA/PB
2023
JOSÉ MICAEL SIMÕES CORDEIRO

COMENTÁRIO ANALÍTICO-INTERPRETATIVO
SOBRE O POEMA “O BURACO DO ESPELHO”

Trabalho apresentado à disciplina de Teoria


da Poesia - GDLCV0143, como requisito
parcial para a obtenção de nota.

Orientador: Prof. Dr. Expedito Ferraz Junior

JOÃO PESSOA/PB
2023
Redija um breve comentário analítico-interpretativo sobre o poema abaixo,
utilizando conceito(s) teórico(s) estudados em Teoria da Poesia.

O BURACO DO ESPELHO

O buraco do espelho está fechado.


Agora eu tenho que ficar aqui,
com um olho aberto, outro acordado,
no lado de lá onde eu caí.

Pro lado de cá não tem acesso.


Mesmo que me chamem pelo nome,
mesmo que admitam meu regresso,
toda vez que eu vou a porta some.

A janela some na parede.


A palavra de água se dissolve.
Na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve.

Já tentei dormir a noite inteira,


quatro, cinco, seis da madrugada.
Vou ficar ali nessa cadeira,
uma orelha alerta, outra ligada.

O buraco do espelho está fechado.


Agora eu tenho que ficar agora.
Fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora.

(Arnaldo Antunes)
Na estruturação do poema, se evidencia uma conexão com a relação de
espelhamento ao formar a primeira e a última estrofe com versos decassílabos e
o seu meio (na qual se encontram a segunda, terceira e quartas estrofes) com
versos eneassílabos. A metrificação do poema, seguindo o que fora abordado
no livro “Versos, Sons e Ritmos” de Norma Goldstein1, segue dessa forma:

O/ bu/ra/co/ do es/pe/lho es/tá /fe/cha/do.


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
A/go/ra eu/ te/nho/ que/ fi/car/ a/qui,
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
com/ um/ o/lho a/ber/to, /ou/tro a/cor/da/do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
no/ la/do/ de/ lá/ on/de /eu/ ca/í
1 2 3 4 5 6 7 8 9. 10

Pro/ la/do/ de/ cá/ não/ tem/ a/ces/so.


1 2 3 4 5 6 7 8 9
Mes/mo/ que/ me/ cha/mem/ pe/lo/ no/me,
1 2 3 4 5 6 7 8 9
mes/mo/ que/ ad/mi/tam/ meu/ re/gre/sso,
1 2 3 4 5 6 7 8 9
to/da/ vez/ que/ eu/ vou a/ por/ta/ so/me
1 2 3 4 5 6 7 8 9.

A/ ja/ne/la/ so/me/ na/ pa/re/de.


1 2 3 4 5 6 7 8 9
A/ pa/la/vra/ de á/gua/ se/ dis/sol/ve.
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Na/ pa/la/vra/ se/de, a/ bo/ca/ ce/de
1 2 3 4 5 6 7 8 9
an/tes/ de/ fa/lar,/ e/ não/ se/ ou/ve.
1 2 3 4 5 6 7 8 9

1
GOLDSTEIN, NORMA. Versos, sons, ritmos. Editora Ática, 2007
Já/ ten/tei/ dor/mir/ a/ noi/te in/tei/ra,
1 2 3 4 5 6 7 8 9
qua/tro,/ cin/co,/ seis/ da/ ma/dru/ga/da.
1 2 3 4 5 6 7 8 9
Vou/ fi/car/ a/li/ nes/sa/ ca/dei/ra,
1 2 3 4 5 6 7 8 9
uma o/re/lha a/ler/ta,/ ou/tra/ li/ga/da.
1 2 3 4 5 6 7 8 9

O/ bu/ra/co/ do es/pe/lho es/tá/ fe/cha/do.


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
A/go/ra eu/ te/nho/ que/ fi/car/ a/go/ra.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Fui /pe/lo/ a/ban/do/no a/ban/do/na/do
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
a/qui/ den/tro/ do/ la/do/ de/ fo/ra.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

É perceptível a existência de dois ambientes presentes na construção de


imagens da própria obra2, estes que utilizam do espelho como objeto
interpretativo para escape da realidade de qualquer versão que se refere ao
eu-lírico. Isto é, ao abordar a figura do espelho como objeto reflexivo e, portanto,
porta de entrada para outra versão de si mesmo, é cabível o retrato de uma
realidade a qual não lhe pertence, podendo se referir a questões intimistas.

O eu-lírico, à vista disso, tanto pode se referir ao reflexo quanto à quem reflete.3

Como reflexo, não reconhece escapatória, pois toda vez que há a tentativa de
seu alcance, lhe é barrado pela incapacidade de sair do espelho, pois ali,
embora não reconheça, é sua realidade mãe. Pertence assim ao mundo que não
é seu e almeja encontrar este onde o sentido lhe faria capaz, ao saciar sua
sede, dar som à sua voz nula e torná-lo presente não somente quando reflete,
2
CHKLOVSKY, VICTOR. A arte como procedimento. 1917.
3
Paz, Octavio. O arco e a lira: o poema, a revelação poética, poesia e história.
capacitando seu descanso pela razão da existência não restringida pelo
momento do agora.

Ao dar-se a entender que por ali estava acidentalmente, em algum tempo tudo
aquilo que citou fora experienciado, mas agora era inapto a tal pois ali já era
alguém que fora exterior preso ao papel interior do espelho.

De maneira à quem reflete, ao tratar do abandono, passa a enxergar-se como


incompreendido - consequência direta do sentimento de despropósito antes
referido. O espelho, através disso, cumpriria o papel de aprisionamento em uma
existência que destaca o sentimento de solidão

O eu-lírico, nessa interpretação, concerne o papel de ignorado, portanto,


abandonado, tornando algo em comum para os dois sentidos aplicados ao
poema. O ser a quem é o reflexo fora isolado dos sentidos e do tempo, ao
retratar-se como alguém condenado ao agora, ou seja, ao instantâneo.

Cabe-se a essa perspectiva a análise da incapacidade de fuga para o eu-lírico


em relação a si próprio ao identificar esse espelho, finalmente, como um meio de
reflexão - assimilado por meio da função referencial4 - além do sentido literal.

Ao inverter a perspectiva de tratar a realidade como insuficiente para as


necessidades do eu-lírico, pode-se considerar que sua compreensão se abrange
como insuficiente para essa realidade imposta ao não conseguir decifrá-la.

Em suma, Arnaldo Antunes retrata, através da logopeia5, que no ato de reflexão


toda a realidade se anula e se transfigura como intangível para aquele que
reflete. Preso continuamente a esse sentimento, a desolação é o que irá tomar
conta da noção do indivíduo onde todos os meios de escape se desfazem ou
tornam-se distantes. Ao se referir ao olho aberto e outro fechado, orelha alerta e
outra ligada, passa a ser evidente que esse estado se encontra como um
meio-termo entre a realidade concreta e a nova realidade nascida dessa

4
JAKOBSON, ROMAN. Lingüística E Comunicação. Cultrix, 2008.
5
POUND, EZRA. ABC da literatura. Traduzido por Augusto de Campos and José Paulo
Paes, Editôra Cultrix.
percepção adquirida por meio da reflexão: inescapável, impalpável e
angustiante.

Você também pode gostar