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3.1. Imagens Sonorizadas e Sonoras

A Introdução do Som Sincronizado

A exibição dos chamados filmes mudos era acompanhada por música, tocada por um

pianista ou por uma orquestra. Nalguns casos, tentava-se fazer coincidir as imagens

com sons pré-gravados e mecanicamente reproduzidos, usando discos fonográficos em

vinil. Estes sistemas tiveram pouco sucesso antes de meados da década de 1920. O som

e a imagem eram difíceis de sincronizar e os amplificadores e colunas existentes não

eram adequados às salas de cinema.

Este desejo do som sincronizado com a imagem foi parcialmente concretizado com

o lançamento do famoso The Jazz Singer (O Cantor de Jazz), em 1927 pelo estúdio Warner

Bros. Foi um grande sucesso de bilheteira. Mas, tal como em relação à corrida entre os

irmãos Lumière e Edison que os primeiros ganharam, a tecnologia do som associada ao

cinema foi sendo inventada e disseminada em diversos países a um ritmo variado,

envolvendo a competição de sistemas e patentes.

O som síncrono teve implicações económicas, tecnológicas, e estilísticas. Alguns

críticos e realizadores temeram que longas cenas de diálogo, muitas vezes vindas de

peças de teatro adaptadas ao cinema, acabariam por eliminar o dinamismo dos


movimentos de câmara e da montagem do mudo tardio. No entanto, muitos cineastas

chegaram à conclusão de que o som podia ser usado de uma forma imaginativa e que

podia ser um novo e valioso elemento estético. Em 1933, Alfred Hitchcock

demonstrava este ponto de vista numa entrevista. Afirmava então ele que esteve

sempre interessado na música e nos filmes na época do cinema mudo. Sempre tinha

acreditado que o aparecimento do som produzido especificamente para um filme era


uma grande oportunidade. A música de acompanhamento podia ser finalmente

controlada por quem produzia o filme. Desta forma, as imagens e os sons podiam ser
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combinados durante os processos de produção e de pós-produção de um filme,

permitindo mais controlo criativo sobre o resultado final.

Houve diversas obras dignas de referência no começo do cinema sonoro. Em

França, destacaram-se Sous les toits de Paris (Sob os Telhados de Paris, 1930), À nous la liberté

(1931), e Le million (O Milhão, 1931), todas realizadas por René Clair. No Japão, Madamu to

nyobo (1931), dirigido por Heinosuke Gosho. No Reino Unido, Blackmail (Chantagem,

1929), da autoria de Hitchcock. De qualquer modo, os três países que deram contributos

mais decisivos para o desenvolvimento do sonoro foram os EUA, a URSS, e a

Alemanha.

Estados Unidos

Os EUA foi o primeiro país a adoptar em grande escala as novas tecnologias do som, da

produção à exibição. A introdução do cinema sonorizado era desejada, restava saber

qual o sistema que seria tecnicamente viável. Existam diversas alternativas em cima da

mesa, do Phonofilm de Lee DeForest mostrado em 1923 (no qual o som era registado na

película) às propostas da Western Electric em 1925 (no qual o som era registado num

disco e integrado no sistema de projecção).

Inicialmente, a Warner considerou que as vantagens do cinema sonorizado


estavam no modo como o entretenimento ao vivo, apresentado entre as exibições de

filmes, podia ser substituído por gravações. Ao gravar números de vaudeville e o

acompanhamento musical dos filmes, diminuíam os custos de exibição e aumentavam

os lucros. A Warner testou o sistema da Western Electric, denominado de Vitaphone,

em 1926, com oito curtas-metragens. Incluídos nesse lote estavam uma aria da ópera

Pagliacci de Ruggero Leoncavallo, cantada por Giovanni Martinelli, e um discurso de


William H. Hays — que mais tarde daria nome ao chamado Código Hays que regulou a

censura dos filmes americanos. Antes de The Jazz Singer, o realizador Alan Crosland foi
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responsável por outro filme, Don Juan (1926), apenas com música gravada. A 6 de

Outubro de 1927, a Warner estreia The Jazz Singer, com a estrela de variedades Al Jolson.

A maior parte das sequências tinham apenas acompanhamento musical. Apenas em

quatro cenas o cantor fala e canta. Isto faz dele um talkie (nome dado aos filmes falados)

parcial. O mesmo estúdio viria a produzir vários até chegar ao primeiro talkie total: The

Lights of New York (1928).

Quase em simultâneo, a Fox adoptou um sistema em que o som estava registado na

película, semelhante ao Phonofilm. Chamou-lhe Movietone. Foi usado em numerosos

filmes de atualidades exibidos nas salas (newsreels), como os que davam a notícia do

incrível voo de Charles Lindbergh de Nova Iorque até Paris. Foi ainda usado em Sunrise:

A Song of Two Humans (Aurora, 1927), um dos filmes da fase americana da filmografia de

F. W. Murnau. A banda-som deste filme é constituída fundamentalmente por música,

com alguns sons adicionados, como o dos sinos.

A Warner e a Fox eram companhias pequenas. As maiores companhias

cinematográficas americanas — MGM, Universal, First National (mais tarde integrada

no grupo Warner), Paramount, e Producers Distributing Corporation (mais tarde

integrada na United Artists) — não apostaram logo no som. A sua cautela tinha a ver

sobretudo com a proliferação de sistemas e equipamentos. Estas companhias

chegaram à conclusão de que a falta de um sistema único, que tornasse as exibições

compatíveis, seria prejudicial. Em Fevereiro de 1927, assinaram um acordo que definia


o sistema da gigante Western Electric, já com som integrado na película, como norma.

A banda-som ocupava o lado esquerdo da película e tornou a imagem mais quadrada,

de 1.33:1 para 1.20:1. A Academia de Artes e Ciências de Hollywood recomendou depois

que se utilizassem fitas pretas em cima e em baixo de modo a criar um formato

aproximado ao do mudo, aquilo a que hoje chamamos de rácio da Academia que

corresponde à proporção 1.37:1.


Muitos exibidores independentes e pequenas salas não tinham dinheiro para

adquirir os novos equipamentos, sobretudo se pensarmos que a expansão do som


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coincide a Grande Depressão, a profunda crise económica e social que começou em

1929 nos EUA. O resultado foi que muitos filmes americanos eram lançados,

simultaneamente, em versões mudas e sonoras. Ainda assim, em meados de 1932, a

conversão para o cinema sonorizado estava praticamente completa na indústria

americana. Até porque muitos dos pequenos exibidores foram à falência, sem

capacidade para competir com o novo espectáculo oferecido pelo cinema sonorizado.

Cineastas e técnicos tiveram de lidar com uma nova tecnologia que não era

familiar nem prática. Os microfones tinham uma captação muito limitada,

unidireccional, e eram grandes, difíceis de esconder e mover. A mistura de faixas

sonoras era laboriosa. As cenas tinham de ser filmadas por múltiplas câmaras em

cabines acústicas, que impediam que os ruídos das câmaras ficassem na gravação

sonora. Estas cabines constrangiam os movimentos que as câmaras podiam fazer. Daí

que, nesta altura, os travellings quase desapareceram, sobrevivendo apenas as

panorâmicas curtas. Estas dificuldades estão bem patentes em Singin’ in the Rain

(Serenata à Chuva, 1952).

Seja como for, ainda que muitos filmes apresentassem diálogos filmados com uma

câmara imóvel, alguns cineastas responderam a estas limitações tecnológicas de modo

imaginativo. O musical, um género tornado possível com o sonoro, foi um desses focos

de criatividade. The Broadway Melody (A Melodia da Broadway, 1929) é um bom exemplo

disso. O filme abre num piso com muitas salas de ensaio musical, o que cria uma
cacofonia a partir das diferentes peças musicais que estão a ser tocadas em simultâneo.

Há ainda cortes abruptos de um som para o outro, à medida que vamos mudando de

sala acústica. No final da sequência, os músicos reúnem-se em uníssono para uma

canção.

Ernst Lubitsch, grande cineasta alemão que emigrou para os EUA, trouxe a

espirituosidade dos seus filmes mudos para o musical The Love Parade (A Parada do Amor,
1929), o seu terceiro filme sonoro. É um filme de época cuja acção se situa num mítico

país da Europa oriental. Numa comédia de géneros trocados, o Conde Albert casa com
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a Rainha Louise, descobrindo depois que ele não tem mão nem no seu casamento nem

nos assuntos de estado. Ainda que o filme tenha sido quase todo filmado em estúdio,

Lubitsch evitou o uso de múltiplas câmaras na maioria das cenas. Em muitas ocasiões,

o realizador indicou aos actores quando queria que eles parassem de falar, cortavam, e

mudavam a câmara para filmar a fala seguinte. Era mais simples montar o filme sem

diálogos entrecortados na filmagem. Nalguns números musicais como “My Love

Parade”, em que o som atravessa os cortes, várias câmaras tiveram de ser utilizadas.

Outros números como “Paris, Please Stay the Same” recorrem a técnicas mais

sofisticadas de montagem, envolvendo padrões de repetição e variação. Há uma cena

que mostra o Conde a cantar à janela, dizendo adeus a Paris, que acaba por se tornar

numa despedida à sua vida de solteiro, seguido de um conjunto de mulheres em

contra-campo noutra janela como interesses amorosos. Depois o criado do Conde

canta outro verso, seguido de algumas criadas, mantendo o padrão estabelecido

anteriormente com o Conde e as mulheres. Ainda há uma terceira secção

surpreendente em que o cão do Conde ladra a canção e cadelas aparecem em resposta.

Hallelujah! (1929) contornou os obstáculos técnicos de outra forma. King Vidor

convenceu a poderosa MGM a produzir um musical protagonizado apenas por

americanos negros. Não havia equipamento portátil para filmar cenas de exteriores, já

que toda a produção de filmes sonoros implicava a filmagem em estúdio em condições

muito controladas. A solução foi rodar perto de metade do filme em exteriores como se
fosse um filme mudo. Isto permitiu a libertação da câmara em cenas como aquela em

que a família canta e carrega a colheita do campo de algodão. Esta obra utilizou ainda

múltiplas câmaras nalgumas cenas, que eram alinhadas frente ao centro da acção, o

que resultava na sobreposição de porções de espaço de plano para plano. Este sistema

era utilizado porque as cenas eram filmadas do princípio ao fim, sem interrupções, e os

cineastas queriam ter ao seu dispor diversos pontos de vista e escalas na etapa da
montagem. (Repare-se, no entanto, que quando Spunk chega há um corte para um

plano de outro take, demonstrado a flexibilidade do filme e do cineasta.) Muitas cenas


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têm um carácter distintivo, já que muito do diálogo, gravado directamente ou pós-

sincronizado, foi parcialmente improvisado pelos actores. Eles falam rápido, muitas

das vezes interrompendo-se, criando um ritmo mais vivo do que aquele que

encontramos na maior parte dos talkies iniciais. Embora o estúdio tenha insistido na

inclusão de duas canções do popular compositor Irving Berlin, a banda sonora do filme

é composta maioritariamente por música espiritual e folclórica dos afro-americanos

tocada em banjos, kazoos, e uma harmónica de igreja. Vidor, que teve que investir o seu

salário na produção porque a MGM achava o projecto muito arriscado, queria criar um

retrato dos negros que fugisse aos estereótipos. A tentativa de abordar uma esfera

social neglicenciada por Hollywood e o uso criativo do som tornaram Hallelujah! num

marco na história do cinema.

O cinema sonorizado surgiu aos olhos de muitos cineastas como uma ameaça.

Alguns cineastas como Charles Chaplin opuseram-se a este desenvolvimento se fosse

entendido como um cinema falado, isto é, um cinema subordinado à palavra. Devido ao

poder que detinha, dada a sua popularidade, Chaplin conseguiu continuar a fazer

filmes sem diálogos gravados, utilizando o som apenas para a música e os efeitos

sonoros. Em City Lights (Luzes da Cidade, 1931), num gesto experimental, Chaplin brinca

com esta utilização, transformando os discursos da burguesia sedenta de rituais num

conjunto de ruídos na inauguração pública de uma estátua.

Todos estes exemplos demonstram a diferença entre o cinema sonorizado e o


cinema sonoro, o cinema meramente acompanhado por som e aquele em que o som é

pensado em simultâneo com a imagem.

União Soviética

Seguindo a tradição do cinema de montagem, os soviéticos apostaram sobretudo num

uso contrapontual do som. Isso mesmo defendia uma declaração de 1928, redigida por
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Alexandrov, Eisenstein, Pudovkine, e Vertov. O som deveria ser autónomo da imagem e

servir-lhe de contraponto. Bons exemplos disso são Odna (1931) e Dezertir (1933). O

primeiro, realizado por Grigori Kozintsev e Leonid Trauberg, foi rodado como mudo

sendo depois completado com sons cujas fontes são, em muitos momentos,

contraditórias. O segundo, foi dirigido por Vsevolod Pudovkin, e usa uma montagem

sonora rápida, disjuntiva, e contrastante. Entuziazm (Simfoniya Donbassa) (Entusiasmo,

1931) de Dziga Vertov é outro exemplo, embora não seja dos filmes mais valiosos deste

cineasta. Opta por uma interessante utilização auto-reflexiva (vemos o maestro a

dirigir uma orquestra que toca a música do filme) e associativa (através da

justaposições entre os toques de sinos de igreja e uma imagem da coroa do Czar) do

som.

Na singular transição para o cinema sonoro ocorrida na União Soviética, Okraina

(1933) ocupa um papel de relevo. É esta importância artística e histórica que justificou o

destaque da sua apresentação no Festival de Berlim de 2012 numa nova cópia. Foi o

primeiro filme sonoro realizado por Boris Barnet e tornou-se uma das suas obras mais

reconhecidas. Okraina dá a ver e a ouvir os efeitos económicos e sociais da Primeira

Guerra Mundial numa pequena povoação anónima do Império Russo, próxima da qual

se desenvolve uma frente de guerra. A precisão do retrato atento da vida quotidiana é

combinado com a expressividade de um olhar histórico sobre as relações entre classes.

Os operários sapateiros decidem unir-se numa greve para combater as condições em


que trabalham — ruídos graves e estridentes pontuam a sequência numa contenda de

formas. Rapidamente são reprimidos com violência — o som seco dos cascos dos

cavalos e os gritos intensos saturam este momento. Depois, estala o conflito militar

entre os impérios Alemão e Russo. Petrovich (Sergey Komarov) perde o amigo alemão,

Robert Karl (Robert Erdman, um germano-báltico), com quem joga às damas. Os

jovens sapateiros são vestidos e armados como militares ao serviço do czar,


empurrados para uma batalha que não sentem como sua. Os prisioneiros de guerra

alemães não tardam em chegar à povoação. Anka, uma rapariga russa, envolve-se com
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um deles, outro sapateiro feito soldado, que será violentamente agredido por russos,

sapateiros feitos soldados. Ivanovich (Aleksandr Chistyakov), ainda abalado pela

notícia da morte do seu filho mais novo e do internamento do mais velho, é que acaba

por o defender: “Ele é alemão, e depois? É um sapateiro como nós.” O sentido

humanista, de defesa da paz entre povos, é construído com apuro estético,

nomeadamente através da justaposição entre imagens visuais e imagens sonoras, para

utilizar os termos de Sergei Eisenstein. O crítico de cinema francês Serge Daney

considerava Okraina um dos melhores filmes sobre o dia-a-dia na Rússia pré-

revolucionária, chamando a atenção para o uso das omissões narrativas, do sentido de

implícito, mas também para os efeitos cómicos dignos do grande cinema burlesco.

Okraina escapa ao naturalismo pela sua criatividade. O suspiro falado de um cavalo

cansado de puxar carroças, que surge logo nos primeiros minutos, é apenas um

exemplo.

Alemanha

Apesar da partida de muitos cineastas para os EUA, o período inicial do cinema sonoro

na Alemanha foi muito criativo antes do regime nazi subir ao poder em 1933. Técnicos e

artistas conseguiram encontrar formas engenhosas de reter a câmara móvel e


preservar a montagem complexa que tinham caracterizado o mudo tardio alemão.

O veterano G. W. Pabst fez alguns filmes notáveis no início do sonoro, entre eles

Westfront 1918 (Quatro de Infantaria, 1930) e Kamaradschaft (1931). Ambos são filmes

pacifistas, apelos ao entendimento internacional numa altura em que o nacionalismo e

o militarismo estavam a crescer na Alemanha. O primeiro, Westfront 1918, retrata o

conflito sem sentido que foi a Primeira Guerra Mundial. O filme mostra as condições
em que viveram os soldados na frente de batalha. Numa cena, o protagonista regressa a

casa e encontra a mulher na cama com outro homem. Perto do fim, no hospital militar,
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entre feridos e moribundos, ele perdoa à mulher às portas da morte, declarando que

“somos todos culpados”. O filme termina com a inscrição “O Fim” seguida de um ponto

de interrogação e exclamação, acompanhados pelo som de explosões. O segundo,

Kamaradschaft, mostra um grupo de mineiros alemães a arriscarem a vida para

salvarem camaradas franceses depois de um desastre numa mina. Os perigos que vão

enfrentando são sinalizados pelo sons.

O primeiro filme sonoro de Fritz Lang, que tinha sido uma figura de proa do

Expressionismo Alemão com filmes como o díptico Die Nibelungen (Os Nibelungos, 1924),

M (Matou!, 1931), é um dos filmes-chave desta época. O filme conta a história da caça a

um assassino de crianças. A polícia importuna tanto os criminosos de Berlim que são

eles próprios que capturam o homicida e o julgam. Lang escolheu não usar música não-

diegética (que não provém do universo narrativo, cuja a fonte não é vista no ecrã nem

sugerida pela acção), concentrando-se no que as personagem dizem ou cantam e nos

efeitos sonoros. Sem se focar em apenas uma personagem, ele usa uma montagem que

não hesita nem se detém em detalhes menores, movendo-se entre várias personagens.

O som permite cozer momentos em diversos locais, evitando cenas longas e estáticas.

Lang experimenta com pontes sonoras, tão comuns hoje em dia, prolongando o som

(particularmente as vozes) de uma cena para outra. Na apresentação das duas caças ao

homem, da polícia e dos criminosos, o som e a imagem criam paralelos entre as duas

reuniões através da montagem. Um motivo sonoro, o assobio do assassino, torna-se


num importante elemento, assinalando a presença dele fora dos limites do

enquadramento e levando à sua captura. Lang realizou ainda Das Testament des Dr.

Mabuse (O Testamento do Dr. Mabuse, 1933) onde continua a exploração do potencial

artístico do som no cinema, reflectindo sobre a relação entre a fala e o corpo (e a sua

ausência).

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