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DOI: 10.55905/revconv.16n.4-023
Waldeck Carneiro
Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris V, Professor da Faculdade de
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense
(UFF)
Instituição: Universidade Federal Fluminense
Endereço: Niterói – RJ, Brasil
E-mail: waldeckcarneiro@gmail.com
RESUMO
A partir da constatação histórica de que conflitos ideológicos e disputas por hegemonia sempre
estiveram presentes na trajetória da educação brasileira, busca-se, neste artigo, apresentar as
bases teóricas de pesquisa recentemente concluída que identificou e analisou os conflitos
ideológicos em torno das concepções de currículo, no contexto do processo de elaboração da
Base Nacional Comum Curricular (2013 a 2017). O estudo se debruçou sobre as disputas
hegemônicas que caracterizam a educação brasileira naquele momento histórico, especialmente
por meio do confronto entre dois agentes coletivos: o Movimento pela Base Nacional Comum e
a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Para tal, utilizamos como
principais referências teóricas os conceitos de ideologia e hegemonia em Antonio Gramsci e os
conceitos de campo, habitus e capital em Pierre Bourdieu.
ABSTRACT
Based on the historical observation that ideological conflicts and disputes for hegemony have
always been present in the trajectory of Brazilian education, this article seeks to present the
theoretical basis of recently completed research that identified and analyzed the ideological
conflicts around the conceptions of curriculum in the context of the process of elaboration of the
Common National Curricular Base (2013 to 2017). The study focused on the hegemonic disputes
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that characterize Brazilian education at that historical moment, especially through the
confrontation between two collective agents: the Movement for the Common National Base and
the National Association of Graduate Studies and Research in Education. To this end, we use as
main theoretical references the concepts of ideology and hegemony in Antonio Gramsci and the
concepts of field, habitus and capital in Pierre Bourdieu.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo decorre diretamente de pesquisa realizada com o fito de analisar as
disputas ideológicas em torno da elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no
período de 2013 a 2017 (Gama, 2023).
Partindo da constatação histórica de que conflitos ideológicos e disputas por hegemonia
sempre estiveram presentes na trajetória da educação brasileira, o estudo buscou identificar e
examinar os conflitos ideológicos acerca das concepções de currículo, por ocasião do processo
de elaboração da BNCC, bem como as disputas hegemônicas que caracterizam a educação
brasileira no momento histórico abrangido pela investigação.
Para a contextualização da pesquisa, foram examinadas as principais disputas
hegemônicas ocorridas na educação brasileira e as teorias em luta concorrencial no campo do
currículo no Brasil. Em seguida, debruçou-se especificamente sobre os conflitos ideológicos e as
disputas por hegemonia, ocorridos no processo de elaboração da BNCC, por meio do confronto
entre dois agentes coletivos, a saber, o Movimento pela Base Nacional Comum (MpBNC) e a
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), tendo como
principais referências teóricas os conceitos de ideologia e hegemonia em Antonio Gramsci e os
conceitos de campo, habitus e capital em Pierre Bourdieu.
Como metodologia de pesquisa, adotou-se a abordagem da História do Tempo Presente,
empregando-se como instrumentos a análise de documentos e do conteúdo de entrevistas. As
principais interpretações levaram à conclusão de que a correlação de forças desigual em favor
dos agentes corporativos e filantrópicos que investiram no empresariamento da educação pública
brasileira, nas últimas décadas, e o consenso estabelecido com base em boa parte de seu ideário
definiram uma visão hegemônica que ressalta o mérito e a necessidade de se adotar uma Base
Nacional Comum Curricular no Brasil.
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Neste artigo, pretendemos sintetizar os marcos teóricos principais que deram sustentação
às análises, servindo como mediação para a abordagem do fenômeno investigado. Esses marcos
teóricos giram em torno do pensamento do filósofo italiano Antonio Gramsci e do sociólogo
francês (convertido da filosofia) Pierre Bourdieu.
Com efeito, no transcurso da pesquisa, tornou-se indispensável a apropriação de
referências teóricas como parâmetros de análise e interpretação dos achados. Em outras palavras,
foi necessário articular um conjunto de categorias que não fossem encaradas como pontos de
partida a determinar uma visão apriorística sobre os fatos investigados, mas que provocassem o
exercício conceitual e reflexivo sobre a realidade analisada e sua situação concreta. Foi assim
que se estabeleceu diálogo com as contribuições de Gramsci e Bourdieu, que se constituem como
foco específico do presente trabalho.
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transformações estruturais, bem como à abrangência destas transformações. Segundo Coutinho
(2011), o primeiro nível é considerado por Gramsci como sendo mais elementar e denominado
“econômico-corporativo”, apresentando-se como uma “[...] forma elementar, na qual um grupo
profissional só é capaz de criar laços de solidariedade entre seus próprios membros a partir de
interesses imediatos, determinados por uma inserção específica no âmbito econômico-estrutural”
(Rummert, 2000, p. 25).
No segundo nível, são observados laços de solidariedade entre diferentes grupos sociais,
porém, mais especificamente no campo econômico. É possível a realização de alianças entre
classes e frações de classes com o objetivo de lutar em conjunto por mudanças de ordem jurídica,
legal e administrativa. No entanto, tais mudanças não se constituem em alterações estruturais,
mas residem no âmbito das reformas (Rummert, 2000; Coutinho, 2011).
O terceiro nível presente nas relações de força diz respeito à construção de um projeto
hegemônico ou contra hegemônico. Os interesses dos grupos sociais prevalecem aos
corporativos, ou seja, as forças sociais se associam a outras e conseguem levar a termo seus
projetos. Neste nível se adquire a consciência de que “[...] os próprios interesses corporativos,
em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente
econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados” (Coutinho,
2011, p. 252). Podemos associar a ideia de forças sociais à concepção de correlação de forças
desenvolvida por Gramsci, tal como assinala Rummert (2000):
Assim, a identificação das relações de força que se constituem no campo de lutas de uma
determinada sociedade pode se apresentar como ferramenta metodológica para a compreensão
de um dado recorte histórico. Por isso, o entendimento das forças sociais presentes em dado
momento é tão importante para compreendermos a constituição de uma ordem hegemônica. A
associação entre as relações de força e seu correspondente momento político nos permite
compreender as situações concretas nas quais os sujeitos organizam e consolidam suas posições
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na disputa por hegemonia. É no nível das relações políticas que se estruturam e se estabelecem a
construção de um projeto hegemônico ou contra hegemônico.
Nesse sentido, precisamos esclarecer o significado de hegemonia1 para Gramsci.
Hegemonia é entendida “[...] não apenas como direção política, mas também como direção
moral, cultural, ideológica” (Gruppi, 2000, p. 11). De acordo com Acanda (2006, p. 173), “[...]
Gramsci não entendeu o domínio burguês apenas como uma imposição, mas percebeu a
capacidade dessa classe de estabelecer e preservar sua liderança intelectual e moral mais para
dirigir do que para obrigar”.
Nessa perspectiva, a concepção gramsciana de hegemonia reserva destaque ao aspecto
cultural que se pretende imprimir à totalidade social, pelo grupo que é ou pretende ser dirigente,
de modo que tal atuação se caracteriza por sua intenção pedagógica. A esse respeito, esclarece
Gramsci (1978):
[...] essa relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com
relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais,
entre governantes e governados, entre elite e seguidores, entre dirigentes e dirigidos,
entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de "hegemonia" é necessariamente
uma relação pedagógica (...) (Gramsci, 1978, p. 37).
Podemos entender, assim, que, para apreender os processos pelos quais a hegemonia se
dá e se mantém em determinado momento histórico, em dada realidade, é imprescindível associar
tal processo à disseminação de uma concepção de mundo e sua influência em todos os âmbitos
do cotidiano, notadamente sobre as formas de agir e de pensar dos diferentes grupos que
compõem a sociedade. Como salienta Gruppi (2000, p. 73), “a hegemonia, portanto, não é apenas
política, mas é também um fato cultural, moral, de concepção de mundo”. Nesse processo de
obtenção e conservação da hegemonia, estarão presentes as disputas em torno de diferentes
concepções sobre a realidade e a atuação dos sujeitos. Por esse mesmo viés, Rummert (2000)
considera que o princípio teórico-prático da hegemonia pode ser representado pelas
1
De acordo com a etimologia do termo, hegemonia deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”, “ser guia”,
“ser líder”; ou também do verbo eghemoneuo, que significa “ser guia”, “preceder”, “conduzir”, do qual se derivam
as expressões “estar à frente”, “estar no comando”, “ser o senhor”. O termo eghemonia podia ser entendido no antigo
grego como a direção suprema do exército. Neste entendimento, o termo tem cunho militar. Hegemônico era o chefe
militar, o guia e, também, o comandante do exército (Gruppi, 2000).
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concepção de mundo são produzidos, incorporados, reelaborados ou recusados pelas
classes e frações de classes que constituem a totalidade social (Rummert, 2000, p. 26).
[...] há, em primeiro lugar, o que ele chama de “ideologias arbitrárias”, individuais ou
de pequenos grupos, artificiais “inventadas”, que são de breve duração e têm pouca
incidência sobre o real; e, em segundo lugar, temos as “ideologias orgânicas”, que dão
expressão às aspirações de grandes correntes históricas, de classes e grupos com
vocação hegemônicas e com capacidade de se tornarem classes nacionais , as quais
atravessam inteiras épocas históricas e movem a ação de grandes massas humanas
(Coutinho, 1981, p. 85).
Ao definir o que entende por filosofia, Gramsci apresenta seu conceito geral sobre
ideologia. Para ele, filosofia é ideologia porque é a unidade entre uma “[...] concepção de mundo
e uma norma de conduta adequada a ela [...]. É por isso, portanto, que não se pode destacar a
filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção
do mundo são, também elas, fatos políticos” (Gramsci, 1978, pp. 14-15).
A importância dedicada ao tema da ideologia por Gramsci extrapola sua relação central
com as práticas de dominação e se localiza, também, na sua importância como aglutinadora e
organizadora das forças sociais: “Pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o
de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e de agir” (Gramsci,
1978, p. 12). Nesse sentido, avançamos, em diálogo com Rummert (2000), na compreensão de
que:
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São as suas próprias representações sobre a realidade, incluindo o seu papel como
condutora do todo social, que constituirão a ideologia elaborada pela classe dominante. As
disputas presentes no contexto social, destacadas por Jameson (1994, p. 50) como “[...] uma gama
de contraforças e novas tendências, de forças ‘residuais’ bem como ‘emergentes’”, exigem o
permanente exercício da hegemonia. Tal exercício será possível se a classe dominante estiver
dotada de capacidade para unificar “[...] um bloco social marcado por profundos antagonismos”
(Rummert, 2000, p. 27). Neste processo, a correlação de forças exige um movimento de
interlocução entre as forças sociais antagônicas. É necessário, para que o processo de
conservação da hegemonia se realize, que as forças sociais heterogêneas estejam sob controle,
por meio “[...] do convencimento, da busca do consenso”, evitando, assim, “[...] uma crise no
bloco social” (Rummert, 2000, p. 27). Com efeito, de acordo com Gramsci, o exercício da
hegemonia se caracteriza:
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ação educativa. É por meio dessa ação educativa que são produzidas e valorizadas
determinadas formas de representação da realidade, crenças e valores, padrões de
relações e de comportamentos sociais e individuais que irão imprimir características
particulares à cultura de uma dada sociedade (Rummert, 2000, p. 27).
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fundamentos da verdadeira democracia da transparência e da instauração de relações
pedagógicas. Nesta linha, a democracia existente entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos
favorecerá a passagem de tais grupos dirigidos à posição de grupo dirigente. Semeraro (1999, p.
81) ressalta que “[...] está toda aqui a substância da concepção hegemônica de Gramsci,
identificada como efetiva democracia que promove transformações profundas na estrutura e na
superestrutura e gera crescente socialização do poder”.
Não resta dúvida sobre a importância do conceito de hegemonia na teoria de Gramsci.
Nos Cadernos, é possível perceber que a resposta para a direção política exercida pelo Estado
não deve ser somente buscada nas instituições governamentais públicas e oficiais. Tal direção
política está presente nas diversas organizações “privadas” que controlam e dirigem a sociedade
civil:
Uma classe ou grupo pode exercer seu domínio sobre o conjunto social porque não
apenas é capaz de impor esse domínio, mas também de fazer os demais grupos sociais
aceitarem-no como legítimo. Seu poder se fundamenta em sua capacidade de dirigir
toda a produção espiritual para a consecução de seus interesses. O conceito de
hegemonia em Gramsci ressalta a capacidade da classe dominante de obter e manter seu
poder sobre a sociedade pelo controle que mantém sobre os meios de produção
econômicos e sobre os instrumentos de repressão, mas principalmente por sua
capacidade de produzir o consenso e a direção política, intelectual e moral dessa
sociedade (Acanda, 2006, pp. 177-178).
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precisam ser encaradas a partir da consideração de propriedades típicas da posição social de quem
as produz, em meio à subjetividade dos indivíduos, sua maneira ou forma de enxergar e conceber
o mundo, suas preferências, gostos e pretensões. Essa gama de circunstâncias encontra-se
previamente estruturada em relação ao momento da ação e são chamadas por Bourdieu de “matriz
de percepções e apreciações”.
Nesse diapasão, cada sujeito, a partir de sua posição nas estruturas sociais, tem contato
com experiências características que estruturam internamente sua subjetividade e orientam suas
ações, no âmbito das situações vivenciadas. O habitus, verdadeira “gramática geradora de
práticas”, não corresponde a um conjunto inflexível de regras de comportamento que seriam
seguidas de forma indefinida, mas constitui um “princípio gerador duravelmente armado de
improvisações regradas” (Bourdieu, 1983, p. 65). Neste entendimento, os agentes não são seres
autônomos e autoconscientes, mas também não são mecanicamente determinados por forças
objetivas. Para Bourdieu, as pessoas são orientadas por uma estrutura incorporada, um habitus,
que reflete as características do contexto social no qual foram anteriormente socializadas.
Este conceito bourdieusiano nos ajudará no entendimento das matrizes de ação dos
indivíduos no conjunto das estratégias institucionais. Para Bourdieu (2005, p. 22), “[...] assim
como as posições dos quais são o produto, os habitus são diferenciados; mas são também
diferenciadores. Distintos, distinguidos, eles são também operadores de distinção”. Por isso, na
pesquisa em que se baseia o presente artigo, procuramos conhecer as trajetórias individuais dos
membros que constituem as organizações da sociedade civil pesquisadas (MpBNC e ANPEd),
incluindo detalhes como:
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Nogueira e Nogueira (2014), tais classificações recaem não somente sobre os bens culturais mais
específicos, como a música, a arte ou a literatura. Também estão sob o efeito das classificações
e hierarquizações todas as representações e práticas cotidianas, como as preferências e práticas
esportivas, os hábitos culinários, o vestuário, a mobília, a decoração da casa, as expressões
corporais, as opções de lazer e de turismo. As hierarquias culturais reforçam as hierarquias
sociais, ou seja, reforçam as divisões sociais ao passo que são utilizadas para classificar os
indivíduos de acordo com o bem cultural que produzem, estimam ou do qual se aproximam.
Na medida em que a cultura tem valor em termos sociais, ou seja, tem algum valor a ponto
de agregar vantagens materiais e simbólicas aos indivíduos, distinguindo-os dos grupos sociais
inferiorizados, constitui-se no que Bourdieu denomina capital cultural. Esse capital cultural se
refere ao poder decorrente da produção, da posse, da apreciação ou do consumo de bens culturais
socialmente dominantes. Essa modalidade de capital se manifesta em caráter “objetivado”, sob a
forma “institucionalizada” ou no estado “incorporado”. Em estado objetivado, se expressa em
obras de arte, obras literárias, obras teatrais, ou seja, bens culturais tangíveis. O capital
institucionalizado compreende os títulos, certificados e diplomas expedidos por instituições
socialmente reconhecidas. Sob a forma incorporada, introjetada, internalizada, o capital cultural
se confunde com o habitus, conceito utilizado por Bourdieu para se referir às estruturas sociais e
culturais que passam a ser internalizadas pelos indivíduos (Bourdieu, 1998).
O conceito bourdieusiano de campo também precisa ser acionado, ao tratarmos das
discussões em torno do currículo. O campo é um microcosmo incluído no macrocosmo
constituído pelo espaço social global. Há regras que são próprias a cada campo, sendo cada um
deles um sistema ou um espaço estruturado a partir das posições ocupadas pelos diferentes
agentes que o compõem. Sendo assim, só entenderemos as práticas e estratégias dos agentes de
cada campo se as relacionarmos com as posições que tais agentes ocupam em seu referido campo
social de atuação. Entre as estratégias consideradas invariantes, identificamos a oposição entre
estratégias de conservação e de subversão em face da correlação de forças em um determinado
momento histórico do campo. As estratégias de conservação são frequentemente aquelas
utilizadas pelos dominantes e as de subversão correspondem às estratégias dos dominados. Esta
oposição comumente assume a forma de conflito e disputa. O campo é o espaço de lutas, arena
de concorrência e competição entre os agentes que nele ocupam distintas posições.
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No entanto, as lutas internas do campo não comprometem o interesse comum, uma
“cumplicidade objetiva”, de defesa do campo. Os agentes que compõem o campo possuem um
habitus próprio, ou melhor, compartilham das mesmas matrizes que estruturam os modos de
perceber e de agir dominantes naquele microcosmo social. Sua incorporação é requisito
indispensável para que seus agentes se habilitem a disputar o jogo e a defender o campo. Assim,
é possível assimilar que:
[...] campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas
(em lutas anteriores), [...] é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que
está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade cientifica definida,
de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o
monopólio da competência cientifica, compreendida enquanto capacidade de falar e de
agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente
outorgada a um agente determinado (Bourdieu, 1983, pp. 122-123).
Bourdieu (2005, p. 185) considera o campo político como o lugar de uma concorrência
pelo poder. Ele explica que esta concorrência ocorre por meio da disputa entre o monopólio do
direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos “profanos”. O porta-voz
político se apropria não só da palavra do grupo que representa, como também do seu silêncio,
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mas, principalmente, da força desse mesmo grupo, buscando produzir um discurso reconhecido
como legítimo no campo político.
Podemos medir a força das ideias propostas pelos agentes políticos pela força de
mobilização que encerram, ao contrário de como ocorre no domínio da ciência, onde a força
reside no valor da verdade. Sendo assim, no campo político, a força das ideias dependerá da
autoridade e da legitimidade daquele que se declara e da sua capacidade de promover sua
veracidade e seu mérito, conferindo-lhe força simbólica e material. Nesta perspectiva, o campo
político é "[...] entendido ao mesmo tempo como campo de forças e como campo de lutas que
têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado
momento” (Bourdieu, 2005, p. 164). Nesta seara, o campo político será o lugar onde serão
gerados “[...] produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos,
acontecimentos” (Bourdieu, 2005, p. 164), em uma esfera de concorrência entre os agentes que
se encontram envolvidos no e pelo campo. Além disso, cidadãos comuns quedam reduzidos ao
estatuto de consumidores, afastados que ficam do lugar de produção da política, considerados
como “simples aderentes”.
Bourdieu chama atenção para o efeito de censura exercido pelo campo político, ao limitar
o universo do discurso político e, em consequência, o universo daquilo que é pensável
politicamente. Desse modo, observamos a indispensável relação entre intenção política e jogo
político, já que a intenção só se constitui no universo das técnicas de ação e de expressão que o
jogo político oferece em dado momento:
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4 CONCLUSÕES DA PESQUISA COM A MEDIAÇÃO DAS DIRETRIZES TEÓRICAS
Os marcos teóricos construídos no diálogo com Gramsci e Bourdieu, bem como com
alguns de seus intérpretes, sumariados nas seções anteriores, nos permitem declinar um resumo
dos achados e conclusões da pesquisa, como se segue.
O estudo possibilitou a identificação dos conflitos ideológicos em torno das concepções
de currículo por ocasião do processo de elaboração da BNCC, no cotejo das posições sustentadas
pelo MpBNC e pela ANPEd. As defesas ideológicas empreendidas pelo MpBNC começam a se
definir no evento que marcou sua criação, organizado pela Fundação Lemann e pela
Universidade de Yale, realizado no período de 21 a 24 de abril de 2013: o Programa “Liderando
Reformas Educacionais: fortalecendo o Brasil para o Século 21”.
A primeira defesa tratava da adoção de um currículo único pela educação brasileira. Esta
defesa é endossada por intelectuais orgânicos, que fazem parte da rede de associados do MpBNC
ou seus apoiadores, que consideram o conhecimento poderoso, capaz de garantir o direito
democrático de acesso à cidadania de todas as crianças. A questão central estaria no
conhecimento e isso requer o desenvolvimento de uma abordagem do currículo baseada no
conhecimento e na disciplina, desconectada das condições objetivas e subjetivas de vida do
aprendiz. Esta defesa teórica torna-se, para aquele intelectual coletivo, um pilar de sustentação
da BNCC. Também é a principal justificativa apresentada por vários intelectuais orgânicos
integrantes ou apoiadores do MpBNC, quando afirmam que a Base resolverá todos os problemas
educacionais e será responsável pela elevação da qualidade da educação brasileira.
Outras defesas ideológicas se agregam, formando um complexo emaranhado teórico que
vai radicalmente de encontro àquelas posições sustentadas historicamente pelas entidades que
compõem o campo intelectual do currículo no Brasil. Nesta contramão, o MpBNC considera
professores e estudantes como executores de currículo, não como seus elaboradores, atrelando-
se ao controle do que deve ser ensinado, a partir do material pedagógico alinhado ao currículo e
ao que se espera nas avaliações. Desta forma, insere na concepção de currículo uma forte ênfase
gerencialista, que busca imprimir a lógica empresarial da performatividade. Em outros termos,
só enxerga a validade da prática pedagógica se esta for o resultado da vinculação entre formação
docente, material didático e avaliação. A concepção de Base proposta e defendida pelo MpBNC
engessa completamente os sistemas de ensino, tendo em vista que as políticas decorrentes da
BNCC; os Programas de elaboração de materiais didáticos, como o Programa Nacional do Livro
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Didático (PNLD); o Sistema de Avaliação Nacional e as políticas de formação de professores,
entre outros, estão ancoradas na BNCC. Ou seja, a BNCC define tais políticas.
Alguns representantes do MpBNC duvidam da capacidade de os professores estarem
preparados para o processo ensino-aprendizagem e afirmam que as escolas não têm pessoal
capacitado para elaborar currículos, promovendo a desmoralização das propostas curriculares
estabelecidas nas redes, instituições e unidades de educação do Brasil. O Movimento também
sustenta a ideologia de que as desigualdades educacionais existem no Brasil devido à falta de
uma base nacional comum. Suas concepções sempre foram a favor de um currículo nacional
único, descritivo e centralizador. Não podemos deixar de ressaltar que a defesa ideológica da
aprendizagem do básico, consagrada pelo MpBNC, reforça a lógica mercadológica, que
naturaliza a formação básica como algo destinado ao trabalhador, ao passo que a formação mais
ampla e complexa é uma prerrogativa das elites.
Muitas dessas concepções já estavam bem definidas pelo MpBNC, mesmo antes de o
Ministério da Educação (MEC) começar o processo de consulta aos estados e municípios sobre
a BNCC. O campo corporativo-filantrópico já demonstrava a força de suas ideias e a mobilização
que conseguia promover. A indispensável relação entre a intenção política e o jogo político já
eram observáveis naquele momento. Este foi o objetivo de criação do MpBNC, que o próprio
Movimento define como sendo adequado à disputa de forças, posto que engendra a associação
entre agentes públicos e privados, em um pacto suprapartidário, em especial com a participação
da filantropia e das corporações. Podemos concluir que o consenso foi a estratégia utilizada pelo
campo corporativo-filantrópico e o instrumento responsável pela materialização deste consenso
foi o MpBNC.
Nesse sentido, reforçamos nosso entendimento de que o MpBNC pode ser considerado
como um aparelho privado de hegemonia, atuando tanto no sentido doutrinário, ao reunir
intelectuais orgânicos, como no sentido organizativo e propositivo de diretrizes e políticas junto
ao poder público. A relação entre o governo federal brasileiro e uma coalizão de defensores de
standards de aprendizagem nacionais, reunidos sob a rubrica do MpBNC, foi a tônica do
processo de elaboração da BNCC. A hegemonia se fez pelo consenso.
No entanto, o consenso proposto pelo MpBNC, que buscou hegemonizar suas ideologias
quanto ao currículo materializado sob a forma da BNCC, não encontrou adesão junto às entidades
representativas do campo do currículo. Nesta perspectiva, a ANPEd se apresentou como
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pertencente a um campo intelectual e demonstrou, nas lutas travadas, a partir de seus capitais
social e cultural na área, suas concepções sobre currículo, disputando o poder de determinar quem
detém a legitimidade. Organizou entidades para apresentar uma série de argumentos contra a
BNCC, que incluíam a descaracterização do estudante em sua condição de diferença, a
desumanização do trabalho docente em sua condição criativa e a desconsideração da
complexidade da vida na escola. Além disso, denunciou o silenciamento provocado pelo MEC
ao longo dos anos de 2014 e 2015, em torno do debate sobre democratização e valorização da
diversidade, cedendo cada vez mais espaço para projetos unificadores e mercadológicos que
privilegiavam e fomentavam tendências de uniformização/centralização curricular, associados à
testagem em larga escala e à responsabilização de professores, aspectos que encontram na BNCC
terreno fértil para se consolidar.
A ANPEd assumiu concepções que destacavam o poder dos currículos pensados e
praticados, existentes nas escolas, como experiências vivas e vividas, que são narrados por seus
comuns/diferentes. Defendeu o entendimento de que a BNCC não contemplava a desejável
diversidade, fundamental ao projeto de nação democrática expresso na Constituição Brasileira e
na LDBEN, pois nela está subentendida a hegemonia de uma única forma de ver os estudantes,
seus conhecimentos e aprendizagens, bem como as escolas, o trabalho dos professores, os
currículos e as avaliações, não condizente com a escola pública universal, gratuita, laica e de
qualidade social para todos.
A luta da ANPEd sempre mobilizou sentidos contrários à centralização e à rigidez do
currículo, consubstanciado pela BNCC, buscando favorecer a perspectiva dos currículos que
levam em consideração as experiências pensadas/vividas nos diferentes espaços e tempos e na
pluralidade de contextos sociais e culturais.
Apreendemos, por meio da pesquisa, que a BNCC é um grande projeto gestado e
conduzido a favor do empresariamento da educação pública e que, para isto, o consenso firmado
entre as representatividades corporativas e filantrópicas, por meio do MpBNC, em parceria com
agentes e representações de entidades públicas, foi a estratégia de construção da vontade coletiva,
de desenvolvimento da estrutura material da cultura e de aparelhamento do consentimento e da
adesão das classes dominadas. Nessa esteira, a hegemonia é combinação de força e consenso
para se alcançar o controle social, combinação que a pesquisa evidenciou nas relações que
estabeleceram a BNCC como política curricular no Brasil.
Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.4, p. 1837-1855, 2023 1852
A fim de jogar luz sobre a complexidade e os desafios do tempo presente, ressaltamos
que as estratégias de conservação da hegemonia alcançada nesta disputa em torno do currículo
estão em ação desde a homologação da BNCC, em 20 de dezembro de 2017. O Movimento pela
Base Nacional Comum (MpBNC), que recentemente passou a se autodenominar Movimento pela
Base, vem atuando ao longo dos últimos cinco anos como Observatório de Implementação da
Base. A abrangência de suas ações se agigantou. Nesta nova iniciativa, o Movimento tem apoio
do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), da União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime), da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação
(Uncme) e do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação (Foncede). O
Movimento apresenta indicadores, práticas e análises de implementação da BNCC nas três etapas
da Educação Básica em cada rede de ensino do país:
Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.4, p. 1837-1855, 2023 1853
REFERÊNCIAS
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https://www.anped.org.br/news/anped-lanca-campanha-aqui-ja-tem-curriculo-o-que-criamos-
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Rummert, S.M. (2000). Educação e identidade dos trabalhadores: as concepções do capital e
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