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Direito Hoje | Acesso à Justiça e custeio da prova pericial no âmbito da

Federal no período de 2012 a 2022

Página

Helder Teixeira de Oliveira


Juiz Federal

20 de abril de 2023

1 Apresentando os números

O Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal, bem assim os centros locais de cada seção
judiciária federal, foi instituído pela Portaria nº 369/2017 do Conselho da Justiça Federal (CJF), tendo
sua criação sido referendada posteriormente pela Resolução nº 499/2018 do mesmo órgão. Tanto o
Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal como os centros locais se encontram vinculados ao
Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal.

O art. 2º da Resolução nº 499/2018 enumera as diversas atribuições do Centro Nacional de


Inteligência da Justiça Federal, algumas de monitoramento das demandas de massa e outras de
gerenciamento de precedentes. A ideia subjacente à criação do órgão é a otimização da gestão, com
foco na prevenção, mediante a identificação da origem de conflitos a serem submetidos à Justiça
Federal e o estabelecimento de rotinas para fortalecimento do sistema de precedentes instituído pelo
Código de Processo Civil. Dentre as atribuições de monitoramento de demandas judiciais, para os
propósitos deste trabalho, destacam-se as seguintes:

(…) c) emitir notas técnicas referentes às demandas repetitivas ou de massa, notadamente para recomendar a
uniformização de procedimentos administrativos e jurisdicionais e o aperfeiçoamento da legislação sobre a
controvérsia;

(...)

h) propor ou realizar estudos sobre as causas e as consequências do excesso de litigiosidade na Justiça


Federal; (…).

Assim, no exercício de suas atribuições, o Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal tem
elegido temas de interesse e emitido notas técnicas substanciosas, a partir de estudos aprofundados,
malgrado o fato de que tais trabalhos parecem, ainda, carecer de uma melhor divulgação entre os
magistrados federais.

No que concerne ao Tema 6 (Seis) do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal, o objetivo é
promover estudos sobre a problemática do progressivo aumento do custo das perícias judiciais a cargo
do orçamento da Justiça Federal (ação orçamentária AJPC), em particular em decorrência dos
processos previdenciários que tramitam nos juizados especiais federais. Detectado o problema –
aumento progressivo e relevante dos custos das perícias judiciais –, foram emitidas ao menos duas
importantes notas técnicas, de nos 06/2018 e 24/2019. A tabela abaixo, extraída da primeira das notas
técnicas citadas,[1] demonstra a evolução dos valores pagos pela Justiça Federal, em todo o Brasil, nos
últimos anos:
Ano Valor total

2012 R$ 4.409.313,81

2013 R$ 77.122.912,51

2014 R$ 117.833.625,44

2015 R$ 138.654.915,53

2016 R$ 144.949.723,24

2017 R$ 170.418.280,45

2018 R$ 88.654.148,12

É de se observar que a nota técnica nº 6 foi lavrada em 17.05.2018, de modo que os dados relativos
àquele ano só registram 4 (quatro) meses completos. No entanto, conforme consta da referida nota
técnica, a Seção Judiciária de Santa Catarina (SJSC) é o órgão centralizador responsável pela gestão do
sistema AJG (Assistência Judiciária Gratuita) e pela administração dos pagamentos relativos a essa ação
orçamentária para toda a Justiça Federal no país. Esse detalhe facilitou a atualização dos dados acima,
obtidos com a devida autorização da Secretaria-Geral do CJF e da Direção do Foro da Seção Judiciária
de Santa Catarina. Assim, as despesas totais para o ano de 2018 e seguintes foram as seguintes:

Ano Valor total

2018 R$ 202.226.052,24

2019 R$ 240.579.200,18

2020 R$ 171.007.058,65

2021 R$ 203.832.955,14

2022 R$ 221.011.406,18

Acerca dos números globais acima elencados, devem ser esclarecidas algumas questões. A primeira
delas é dizer que o sistema AJG abrange todos os tipos de pagamentos previstos na Resolução nº
305/2014 do CJF,[2] o que significa pagamento aos seguintes profissionais: advogados nomeados
defensores para o ato ou para todo o processo (em especial em ações penais); curadores; intérpretes;
tradutores; e peritos. O pagamento a peritos, no entanto, de longe, representa a maior despesa dentro
dos totais apresentados.

O segundo ponto a esclarecer é que, com segurança, somente se pode falar em dados unificados a
partir do ano de 2015. Antes disso, algumas seções judiciárias (divisão estadual da Justiça Federal) não
utilizavam o sistema AJG. Logo, para períodos anteriores a 2015, os valores efetivamente pagos podem
ser maiores do que aqueles constantes das tabelas acima.

Ainda, registre-se que a diminuição de valores havida a partir do ano de 2020 é reflexo da pandemia da
COVID-19. Tudo indica que, no ano de 2023, mantido o crescimento contínuo havido nos anos
anteriores, será ultrapassado o valor recorde de R$ 240 milhões pagos no ano de 2019.
Por fim, ressalte-se que, no período em que certamente os dados estão centralizados em sistema único
de pagamentos (de 2015 a 2022), o total pago pelo sistema AJG foi de R$ 1.494.001.871,63 (um
bilhão, quatrocentos e noventa e quatro milhões, um mil, oitocentos e setenta e um reais e sessenta e
três centavos). A maior parte dessa cifra se refere a honorários periciais, como será especificado mais
adiante. Por ora, o que se pode concluir é que houve um aumento considerável na despesa nos últimos
anos. Apenas para reforçar o argumento, chamamos atenção ao fato de que a despesa saltou de 138
milhões de reais em 2015 para 240 milhões de reais em 2019 (números arredondados). Ou seja,
aumento de 45% no período, nesse cálculo já descontada a inflação, medida pelo IPCA – Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo.

Como é cediço, aumento relevante de despesas normalmente já é uma grande preocupação


orçamentária. No caso específico, porém, a gravidade do problema se tornou bem maior diante a
promulgação da Emenda Constitucional nº 95/2016, a qual congelou os gastos dos poderes federais à
despesa paga no exercício do ano de 2016, corrigida dali em diante pela variação do Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo – IPCA. Daí a gravidade da situação. Tal dificuldade foi assim explicitada
na aqui já citada Nota Técnica nº 6/2018:

(…) 11 O pagamento de perícias judiciais em decorrência da ação orçamentária AJPC é despesa obrigatória.
Por isso, até o exercício de 2016 a Justiça Federal não vinha enfrentando dificuldades no que se refere a essa
despesa, em que pese sua crescente elevação nos últimos anos, já que sempre havia suplementação
orçamentária para a respectiva efetivação.

12 Todavia, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n° 95/2016, essa elevação progressiva
tornou-se um grave problema, já que o limite de teto de gastos da Justiça Federal passou a inviabilizar a
alocação de valor suficiente para atendimento dessa despesa e, mais ainda, a suplementação orçamentária
para o mesmo fim. Desse modo, como se trata de despesa obrigatória, sua liquidação precede às despesas
discricionárias, como as de custeio e de investimentos, pelo que seu progressivo aumento interfere
diretamente no próprio funcionamento da Justiça Federal.

13 O detalhe é que, a rigor, a Justiça Federal não tem o pleno controle do planejamento dessa despesa, que
flutua segundo aumenta a litigiosidade em matéria previdenciária, em especial na quantidade de benefícios
por incapacidade, fator que está essencialmente atrelado à política pública traçada pelo Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) de concessão e revisão daqueles, assim como ao disposto em normas editadas pelo
Poder Executivo ou aprovadas pelo Poder Legislativo em decorrência de propostas apresentadas por aquele,
a exemplo das revisões de benefícios determinadas pela Medida Provisória nº 79/2016.

14 Trata-se, portanto, de despesa que impacta severamente o orçamento da Justiça Federal, porém da qual a
instituição não detém o efetivo controle. Se isso não bastasse, é uma despesa que não custeia propriamente
a máquina administrativa da instituição, senão supre, por meio da assistência jurídica gratuita, uma
impossibilidade econômica do cidadão de arcar com despesas que, a princípio, seriam legalmente de sua
responsabilidade (...).

Nada obstante o acima transcrito, cumpre registrar que a Nota Técnica nº 6/2018 é anterior à edição
da Medida Provisória nº 854, de 3 de outubro de 2018, e à promulgação das Leis Federais nº
13.876/2019 e nº 14.331/2022, cuja relevância na matéria clama por especial análise.

1.1 As Leis Federais nº 13.876/2019 e nº 14.331/2022

A gratuidade judiciária é matéria regulada pelos artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil. Uma vez
concedido o benefício, nele ficam abrangidos os ônus decorrentes do pagamento dos honorários
periciais (art. 98, § 1º, VI). Logo, até em razão da determinação constitucional contida no artigo 5º da
Constituição Federal,[3] por regra, cabe ao Estado, por meio do orçamento do Poder Judiciário,
antecipar aos peritos seus honorários.

No que concerne ao Judiciário Federal, em razão do crescimento explosivo da despesa nos últimos
anos, conforme aqui já demonstrado, aliado ao limite imposto pela Emenda Constitucional nº 95/2016,
é fácil concluir que a obrigação de custear a despesa foi se tornando insustentável. Os pagamentos aos
peritos foram atrasando cada vez mais, ano após ano, sendo que alguns deles desistiram de prosseguir
atuando.

Então, para solucionar – ou combater – o problema, primeiro foi editada a Medida Provisória nº 854,
de 3 de outubro de 2018, a qual teve seu prazo de vigência encerrado em 13 de março de 2019, em
razão da não deliberação pelo Congresso Nacional. No entanto, na sequência, foram promulgadas duas
leis federais com teor similar: nº 13.876/2019 e nº 14.331/2022. Cuidam-se de leis de idêntico
conteúdo, sendo que a primeira delas tratou a questão de forma temporária, e a segunda, de forma
permanente. Em síntese, ficou mantida a obrigação da parte vencida na demanda em arcar com os
custos da perícia, sem prejuízo das disposições relativas à gratuidade da justiça contidas no CPC. Nada
obstante, passou-se a atribuir ao Poder Executivo Federal a obrigação de antecipar o pagamento dos
honorários periciais médicos nas ações previdenciárias ou assistenciais em que o INSS for parte na
Justiça Federal e na Justiça Estadual quando no exercício da competência federal delegada. Nas ações
previdenciárias de natureza acidentária, cuja competência constitucional é da Justiça dos Estados, a
obrigação de antecipar os honorários sempre foi do INSS, desde a Lei Federal nº 8.620/93 (art. 8º, §
2º), e assim continua na vigência da Lei nº 14.331/2022.

Portanto, na hipótese acima, foi transferida para o Poder Executivo Federal a obrigação de antecipar os
honorários relativos a uma única perícia médica, desde que o requerido seja o INSS. Excepcionalmente,
caso determinado pelas instâncias superiores, os custos de uma segunda perícia também poderão ser
antecipados pelo Executivo.

É de se registrar que continuam a cargo do orçamento do Poder Judiciário Federal o pagamento por
todas as demais perícias não expressamente abarcadas pela Lei nº 14.331/2022, especialmente: a)
perícias médicas em ações de saúde (medicamentos, cirurgias, alimentação especial etc.); b) perícias
realizadas por assistentes sociais, notadamente nas ações onde se postulam o benefício assistencial de
prestação continuada previsto no art. 203, V, da Constituição Federal e no art. 20 da Lei nº 8.742/93;
c) perícias de engenharia; d) perícias contábeis; e) perícias grafotécnicas; f) outras.

No entanto, a tabela abaixo, mais específica em relação às anteriores, contendo a soma dos
pagamentos feitos pelo sistema AJG, apresenta dados esclarecedores[4]:

2015 2016 2017 2018 2019

Executivo 31.120,65 29.577,53 30.750,91 13.634.014,75 142.251.269,19

JF 138.625.381,71 144.920.145,71 170.708.222,73 188.592.037,49 98.327.930,99

Total 138.656.502,36 144.949.723,24 170.738.973,64 202.226.052,24 240.579.200,18

Executivo 0,02% 0,02% 0,02% 6,74% 59,13%

JF 99,98% 99,98% 99,98% 93,26% 40,87%

2020 2021 2022 Total Geral

Executivo 157.579.308,57 188.930.500,95 202.055.168,03 704.541.710,58

JF 13.427.750,08 14.902.454,19 19.956.238,15 789.460.161,05

Total 171.007.058,65 203.832.955,14 222.011.406,18 1.494.001.871,63

Executivo 92,15% 92,69% 91,01% 47,16%

JF 7,85% 7,31% 8,99% 52,84%

Os números acima demonstram a evolução mais pormenorizada dos valores despendidos ano a ano.
Entrementes, demonstram principalmente os efeitos decorrentes da Medida Provisória nº 854/2018 e
das Leis nº 13.876/2019 e nº 14.331/2022. A partir de 2018, como se vê nos percentuais acima,
paulatinamente o Poder Executivo Federal foi assumindo a obrigação orçamentária. Os dados
demonstram que, em especial em relação aos anos de 2020 a 2022 – anos de vigência plena das aqui
já referidas leis de transferência de responsabilidade orçamentária –, em média, 92% (noventa e dois
por cento) das perícias realizadas na Justiça Federal foram custeadas pelo orçamento do Poder
Executivo. Logo, por exemplo, do valor total de R$ 203 milhões pagos pelo sistema AJG no ano de
2021, cerca de R$ 188 milhões correspondem a pagamento de peritos médicos em ações
previdenciárias ou assistenciais em que o INSS era parte.

Aqui já se pode chegar a algumas conclusões. A primeira delas é que, de fato, a maioria esmagadora
das perícias realizadas na Justiça Federal brasileira são perícias médicas em ações previdenciárias ou
assistenciais em que o INSS é parte, ou seja, as perícias referidas na Lei nº 14.331/2002. Todas as
demais espécies de perícias, e mesmo as perícias médicas realizadas em ações em que o INSS não seja
a parte requerida – como é o caso das ações de saúde/medicamentos –, representam não mais do que
8% a 9% da despesa. E nesse percentual incluem-se ainda os demais profissionais pagos via sistema
AJG (intérpretes, advogados dativos, curadores e tradutores).

Logo, a segunda conclusão a que se pode chegar é no sentido de que a transferência da


responsabilidade orçamentária pelo pagamento para o Poder Executivo Federal resolveu o problema,
isso do ponto de vista do orçamento do Poder Judiciário. E aqui é necessário enfatizar que, a princípio,
não se vislumbra qualquer óbice legal ou constitucional na aludida transferência de responsabilidade,
porque a obrigação constitucional de prestar assistência jurídica integral é do Estado. A forma como o
Estado vai se organizar para tal fim, em princípio, é questão orçamentária ou administrativa interna que
não atinge o beneficiário assistido.

Nada obstante, parece claro que, diante do comprovado aumento exponencial da despesa, o Poder
Judiciário não deve simplesmente ficar indiferente ao fato, sem procurar entender as razões de tal
fenômeno, em especial porque compete a ele deferir – ou não – a gratuidade, à semelhança de um
ordenador de despesa.

Uma atitude meramente contemplativa dos números ou a conclusão fácil de que esse é o preço para se
proporcionar acesso à Justiça, sem outros questionamentos, podem acarretar problemas futuros. Basta
imaginar a hipótese da revogação da Lei nº 14.331/2022. Ou mesmo o fato de que, ainda que
transferida a responsabilidade para o Poder Executivo, também lá a despesa ficará adstrita a um teto
orçamentário.

Ademais, veja-se que a própria Lei nº 14.331/2022 contém uma limitação: agora, por regra, uma única
perícia médica será realizada nas ações em que o INSS for parte; excepcionalmente, uma segunda
perícia poderá ser realizada, mas só se assim determinar a instância superior. Tal limitação já vigora
desde a Lei nº 13.876/2019. Antes disso, não eram raros os casos em que mais de uma perícia era
realizada por determinação da primeira instância. Cuida-se de limitação evidente e decorrente da
realidade de que direitos têm custos. Tal limitação parece contrariar o entendimento de que a
assistência jurídica integral – na qual está inserida a prova pericial – seria um direito ilimitado.

Nada obstante tudo o que vimos de dizer, é importante destacar que o fenômeno apresentado –
incremento dos custos com perícias – insere-se em um contexto maior, de aumento exponencial da
judicialização previdenciária em geral, conforme veremos a seguir.

2 O relatório de pesquisa apresentado ao Conselho Nacional de Justiça no ano de 2020

Se é correto afirmar que o Conselho da Justiça Federal (CJF) detectou um grave problema de aumento
dos custos relativos ao pagamento de honorários periciais, não menos correto é afirmar que o próprio
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constatando o aumento – também exponencial – da judicialização
previdenciária como um todo, encomendou ao Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER) um estudo
sobre o tema. O Relatório Final da Pesquisa foi apresentado em 2020,[5] tendo abrangido o período de
2015 a 2019, ou seja, anterior à pandemia da COVID-19.

Conforme ali cientificamente apurado, ao menos 11% dos benefícios concedidos pelo INSS advêm de
ordens judiciais, especialmente de ações judiciais movidas nas regiões Sul e Sudeste do país. Ainda,
ficou constatado que, em um período de quatro anos, houve crescimento de 140% na distribuição de
processos relativos a benefícios previdenciários ou assistenciais, percentual superior mesmo ao
acréscimo de processos administrativos no INSS, o que indica aumento da intensidade de judicialização
previdenciária.

É interessante notar que, paralelamente, conforme apurado na Nota Técnica nº 22/2019[6] do Centro
Nacional de Inteligência da Justiça Federal, a qual trata da gratuidade judiciária, conforme dados do
Tribunal Superior do Trabalho, no período de janeiro a setembro de 2018, houve queda de 36,06% no
ajuizamento das ações trabalhistas, em comparação com o mesmo período do ano anterior.

Embora os recortes temporais citados sejam distintos, não parece fora de propósito supor que, após a
promulgação da Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), a qual instituiu o elemento risco na análise
do ajuizamento das demandas trabalhistas, a judicialização trabalhista tenha caído de 30% a 40%. No
mesmo período, como já salientado, a judicialização previdenciária cresceu 140%. Tratando-se de
jurisdições com alguma dose de similaridade – notadamente quanto ao perfil dos demandantes –, a
disparidade chama a atenção e clama por análise comparativa, a qual, infelizmente, não foi elaborada
no estudo ora em referência.

De todo modo, o relatório, após vasta análise de dados, apontou 4 (quatro) macroproblemas como
causas da excessiva judicialização previdenciária, a saber: 1) dificuldade de acesso à instância
administrativa para requerer benefícios; 2) subaproveitamento da via administrativa pelo INSS; 3)
subaproveitamento das informações apuradas no processo administrativo em sede judicial; 4) pouca
permeabilidade do INSS a entendimentos jurisprudenciais consolidados.

Refoge ao propósito do presente trabalho esmiuçar cada um dos problemas apontados no relatório. No
entanto, é importante transcrever aqui algumas de suas conclusões e considerações acerca da prova
pericial:

A judicialização da previdência é um fenômeno complexo, amplo e crescente. Em um período de quatro anos


(2015 a 2018), houve crescimento de 140% na distribuição de processos relativos a benefícios
previdenciários ou assistenciais. Há grande diversidade de tipos de judicialização, que se distinguem em razão
de características socioeconômicas regionais, do modo de funcionamento do sistema judicial em cada região
e das ações dos diferentes atores envolvidos nas instâncias administrativa e judicial do processo
previdenciário. Diversos resultados desta pesquisa indicam que a crise sanitária de 2020 deve agravar o
problema neste ano e nos subsequentes, tanto no que se refere ao volume de casos, quanto em sua
complexidade. Questões jurídicas e factuais novas, aumento da demanda pelos benefícios previdenciários e
assistenciais, dificuldades de coordenação entre as esferas administrativa e judicial, aumento do desemprego
e constrangimento fiscal devem contribuir para um agravamento da judicialização excessiva da previdência. É
momento, portanto, para ações que visem a mitigar esse problema.

(...)

A terceira conclusão diz respeito à judicialização sobre questões de fato, em particular em questões cuja
elucidação envolve a realização de perícia. A perícia é uma diligência do processo judicial ou administrativo,
voltada para o esclarecimento de questões de fato necessárias a uma decisão, e realizada por pessoas que
detêm experiência, expertise ou habilidade sobre aquele tema. No caso específico das perícias que envolvem
os benefícios por incapacidade, a presunção legal é de que somente um perito tem formação apropriada para
se pronunciar sobre a existência ou não de incapacidade. A judicialização de pleitos que abrange certos
benefícios (como os auxílios-doença e acidente, a aposentadoria por invalidez, o BPC e a aposentadoria da
pessoa com deficiência) envolve participação de dois peritos, administrativo e judicial, sujeitos a regras e
contextos profissionais muito distintos. Além disso, muitas vezes o juiz e o perito judicial não terão acesso ao
resultado do laudo do perito na esfera administrativa ou não o levarão em consideração. A análise
quantitativa de textos de decisões judiciais indicou que os casos que tratam de perícia administrativa estão
associados à probabilidade de sucesso (provimento em favor do segurado), em média, de 35,3 pontos
percentuais maior do que em casos que não tratam desse tema. Esse dado permite destacar dois elementos
que, em conjunto, revelam ser essa uma das causas relevantes da judicialização da previdência. Primeiro, o
assunto “perícia administrativa” é, em si, bastante discutido na esfera judicial, como também indica o perfil
dos benefícios mais judicializados. Segundo, quando a “perícia administrativa” é discutida no caso, há maior
probabilidade de que o segurado tenha acolhido o seu pedido de revisão da decisão administrativa que lhe
negou um determinado benefício, o que, por sua vez, tem por efeito aumentar o incentivo à judicialização.

Como se percebe, o relatório, buscando explicar as causas, constata o aumento expressivo da


judicialização previdenciária, aí inseridas as demandas em que a prova pericial é produzida. E nisso
confirma os dados aqui inicialmente lançados acerca do crescente custo com a produção da prova
pericial.

No entanto, parece faltar ao relatório uma análise mais efetiva e pormenorizada acerca da ausência do
elemento risco como inibidor da judicialização indevida, manejada porque, afinal, não custa nada
tentar. E aqui cabem algumas considerações acerca da Lei nº 13.467/2017, a qual instituiu a reforma
trabalhista.
2.1 A Lei Federal nº 13.467/2017

Pode-se afirmar que a Lei nº 13.467/2017 instituiu o elemento risco como fator de análise que
precede o ato de se ajuizar uma reclamação trabalhista. A partir dela, antes de se ajuizar uma
reclamatória trabalhista com pedidos elencados que abrangem todo o alfabeto, aí incluídas algumas
questionáveis pretensões indenizatórias, há que fazer uma análise de custo-benefício. E isso porque,
em caso de sucumbência, o beneficiário da gratuidade judiciária terá que pagar honorários advocatícios
e os custos de eventual perícia caso tenha créditos a receber no mesmo ou em outro processo. É o que
se observa na nova redação dada aos artigos 790 a 791-A da CLT pela lei em referência. E, ainda,
restou estabelecido critério objetivo para a concessão da gratuidade judiciária, consistente no patamar
de 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.[7]

Concorde-se, ou não, com as regras instituídas, é inegável o fato de que houve redução no ajuizamento
de reclamações trabalhistas em percentual que gira em torno de 30% a 40%, além da redução do
número de pedidos formulados em cada nova reclamação. E isso porque agora passa a existir risco
financeiro em caso de sucumbência, total ou parcial, além da obrigação de pagar as custas do processo
em caso de não concessão da gratuidade.

Paralelamente, praticamente no mesmo período, a litigância previdenciária cresceu 140%, e tal


acréscimo não pode ser justificado – apenas – por uma eventual extrema deterioração dos serviços
prestados pelo INSS no interregno. Embora não provado por qualquer estudo empírico, é intuitivo
concluir que houve sim certo percentual de migração da litigância de um ramo (trabalhista) para outro
(previdenciário). No mínimo, tal hipótese deveria ter sido estudada no relatório da pesquisa elaborada
pelo INSPER e apresentada ao CNJ.

É de se salientar que a inexistência do elemento risco na jurisdição previdenciária como fator de


estímulo ao ajuizamento de ações indevidas é fato já detectado pelo Centro Nacional de Inteligência da
Justiça Federal na Nota Técnica nº 22/2019, de onde se colhe:

Para além da garantia do direito de acesso ao Poder Judiciário, a concessão em grande quantidade do
benefício da gratuidade da justiça produz importantes efeitos sobre a litigiosidade de massa e vem
configurando, em muitos casos, espécie de convite ao ajuizamento de demandas sem qualquer necessidade
de análise de custo-benefício ao requerente, que percebe, assim como os advogados, que tentar a sorte na
Justiça, ainda que com demandas temerárias, pode ser um bom negócio, já que os riscos da eventual
litigância infundada são baixos.

Trata-se de riscos cujos ônus são transferidos ao Poder Judiciário e, em última análise, à própria sociedade,
seja em razão dos custos que decorrem da dispensa de pagamento de despesas processuais, seja em razão da
proliferação de ações judiciais, sendo importante identificar possíveis efeitos concretos que vêm decorrendo
da aplicação da norma, muitas vezes imperceptíveis e não desejados pela lei garantidora do direito à
gratuidade.

Contribuem para esse quadro algumas circunstâncias que estão sob o controle do próprio Poder Judiciário,
como as muitas e diferentes definições de critérios objetivos para a concessão do direito à gratuidade e a
variação nas espécies de despesas ordinárias ou extraordinárias realizadas pelos beneficiários para a
identificação da respectiva insuficiência financeira, fatores que mereceriam ser considerados no confronto
com o custeio da atividade jurisdicional e o custeio dos riscos de eventual litigância infundada.

A circunstância de ter a lei processual fixado como presumidamente verdadeira a declaração de insuficiência
econômica, firmada pelo requerente ou por seu advogado como condição para a obtenção do benefício,
historicamente facilitou a concessão da assistência judiciária gratuita, na medida em que inverte o ônus da
prova da alegação, exigindo da parte contrária a demonstração de que o pressuposto da necessidade não se
faz presente em cada caso.

O texto acima reforça a ideia de que a inexistência de risco ao autor de ação previdenciária – a quem é
concedida a gratuidade na maioria esmagadora dos casos mediante mera declaração de
hipossuficiência – constitui tema que careceu de análise do relatório apresentado ao CNJ acerca do
aumento da demanda previdenciária.

Encerrando o presente tópico, é de se informar que o Supremo Tribunal Federal (STF), nos autos da
ADI nº 5.766, declarou inconstitucionais disposições contidas na Lei nº 13.467/2017, em especial
aquelas que obrigavam a parte beneficiária da gratuidade que perdeu a ação a pagar honorários
periciais e de sucumbência caso, por outro lado, tivesse créditos trabalhistas a receber no mesmo ou
em outro processo (artigos 790-B, caput e § 4o, e 791-A, § 4o, da CLT).

De fato, a decisão em comento retirou boa parte da carga de risco inserida pela nova lei. Seria
interessante, inclusive, estudar a evolução da litigância trabalhista após tal decisão. É curioso notar,
entretanto, que não houve deliberação acerca do art. 790, § 3o, da CLT na redação dada pela Lei nº
13.467/2017. Assim, o critério de renda inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime
Geral de Previdência Social permanece vigente como norte para concessão da gratuidade judiciária na
Justiça do Trabalho. Ao que parece, a constitucionalidade dessa norma não foi questionada.

Dito isso, passamos agora a alinhar as perspectivas futuras para o tema objeto da presente análise.

3. Perspectivas futuras

No início do presente trabalho, foi apresentada a evolução dos números relativos aos valores pagos
pelo sistema AJG da Justiça Federal brasileira, aí se destacando os valores pagos com perícias judiciais.
A tendência continua a ser de alta ilimitada, em especial se a jurisprudência se mantiver inalterada. E
aqui é preciso enfatizar que, apesar de o inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal garantir a
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, essa última
parte do dispositivo constitucional nunca foi considerada. Desde a Lei nº 7.510/86, a hipossuficiência
não precisa ser provada por quem a alega. Basta que se alegue e declare, e a parte contrária, se quiser
e puder, é quem deve provar o oposto, como se fora simples saber dos detalhes da vida alheia. E assim
prossegue o CPC atual. Aliás, quanto ao referido código, ao menos no âmbito da Justiça Federal, não se
tem notícia acerca da aplicação – para além da raridade – dos seguintes parágrafos do seu art. 98:

§ 5º A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na
redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

§ 6º Conforme o caso, o juiz poderá conceder direito ao parcelamento de despesas processuais que o
beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.

Conforme apontado na Nota Técnica nº 22/2019 do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal,
a jurisprudência dos tribunais federais, em se tratando de gratuidade judiciária, apresenta alguns
consensos, a saber:

Dentre os consensos, podem ser citados os efeitos, amplos e no tempo, da gratuidade, a condição suspensiva
de exigibilidade das despesas frente ao beneficiário, a irretroatividade do benefício e a necessidade de serem
avaliadas, na decisão sobre o pedido de assistência judiciária, circunstâncias específicas, para além das
receitas auferidas pelo requerente, em especial algumas despesas por ele enfrentadas.

Já os principais dissensos estariam na possibilidade – ou não – de fixação de critério objetivo quanto à


renda auferida pelo postulante da gratuidade judiciária e também acerca da possibilidade, ou não, de
consideração das despesas tidas por ele e, em caso de resposta positiva, quais dessas despesas devem
ser consideradas.

Enfim, o quadro de discricionariedade e subjetividade impera quando se trata de concessão de


gratuidade judiciária e, entre outros campos, isso se reflete nos números aqui já alinhados acerca dos
custos com prova pericial. Nesse sentido, a Nota Técnica nº 22/2019 arremata de forma lapidar:

A manutenção de um conceito aberto e a larga discricionariedade com que vem sendo interpretado tendem a
produzir insegurança, indeterminação, banalização do uso, favorecendo a manipulação de elementos, de
forma a criar sempre contexto que conduza à concessão do benefício. A adoção de eventual limitador, na
esteira da legislação trabalhista, talvez viesse a garantir certas virtudes, como maior uniformidade,
estabilidade, segurança e igualdade material na aplicação do instituto da gratuidade da justiça.

Ao arremate, a citada nota técnica apresenta algumas propostas concretas, daí se destacando:

a) a remessa desta nota técnica à Comissão Gestora de Precedentes do STJ para avaliação da possibilidade de
afetação do tema pela Corte Superior, no regime de recursos repetitivos, diante do quadro antes descrito e
em face da superveniência das modificações na legislação trabalhista.

Em decorrência dessa proposta, ou não, o fato é que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento
datado de 06.12.2022, decidiu por afetar para julgamento repetitivo o Tema nº 1.178, oriundo do REsp
nº 1.988.687/RJ, cuja questão submetida a julgamento é a seguinte:
Definir se é legítima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido
de gratuidade de justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos arts. 98 e 99, §
2º, do Código de Processo Civil.

Não é demais relembrar aqui que o critério objetivo contido no art. 790, § 3o, da CLT, até o momento,
não foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e que depõe contra a lógica sistêmica
a aplicação de critérios distintos quanto à matéria, em especial no que se refere às jurisdições que
guardam certa similaridade.

Como se pode perceber, a questão é complexa e palpitante, sendo que agora (início do ano de 2023)
pende oficialmente de julgamento uniformizador.

Nada obstante as questões até aqui apresentadas, pode-se argumentar que, em verdade, não há
problema sobre o qual se deva melhor refletir e analisar. O que se tem é a consequência normal e
natural da garantia constitucional de acesso à Justiça aos necessitados que cabe ao Estado
providenciar.

O argumento acima merece especial análise. É o que faremos a seguir.

4 A questão do acesso à Justiça a partir de Mauro Cappelletti

No decorrer do presente trabalho, foram apresentados números relativos ao aumento dos custos,
arcados pelo Estado brasileiro, com o pagamento de honorários periciais, isso dentro de contexto de
aumento da judicialização previdenciária em geral. A partir daí, há duas formas distintas de entender o
fato. A primeira delas vai no sentido de que o aumento de despesa é algo natural diante do mau
funcionamento do ente estatal e das garantias constitucionais de acesso à Justiça e assistência jurídica
integral previstas em incisos do art. 5º da Constituição Federal.

Tal forma de pensar é fortemente influenciada pela doutrina de acesso à Justiça, cujo expoente maior é
o eminente professor italiano Mauro Cappelletti. É fenomenal a influência do referido doutrinador em
todo o Direito brasileiro. Praticamente todas as propostas contidas em sua obra (Acesso à Justiça,
dentre outras) foram incorporadas à Constituição Federal de 1988 e à legislação ordinária. Para
exemplificar, podemos destacar a assistência jurídica integral aos hipossuficientes, o fortalecimento do
Ministério Público e da Defensoria Pública, a proteção dos direitos transindividuais (meio ambiente,
consumidores), as reformas tendentes a simplificar as normas processuais, a conciliação, a mediação e a
arbitragem, a criação dos Juizados Especias, dentre outras.

Não há dúvidas de que estamos a tratar de uma das maiores – e mais eficazes – contribuições
doutrinárias ao Direito em todo o mundo. Visionária, à frente de seu tempo. Logo, qualquer
questionamento que se faça acerca do tema gratuidade processual logo é visto com desconfiança, e a
alegação de retrocesso social é – ou pode vir a ser – arguida. Questionar a gratuidade é quase
sinônimo de ser contra o acesso à Justiça pelos mais necessitados de recursos financeiros.

No tema ora estudado, a ideia subjacente a tal forma de pensar seria a seguinte: se há muita litigância é
porque o ente estatal funciona muito mal; se funcionasse bem, haveria uma litigância muito menor;
logo, não pode agora o próprio Estado beneficiar-se com qualquer tentativa de restrição de acesso à
Justiça por parte dos hipossuficientes. Haveria aí injustiça e, sobretudo, inconstitucionalidade.

A segunda forma de analisar a questão procura estudar a perspectiva histórica da doutrina de acesso à
Justiça. A doutrina do professor Cappelletti data da década de 1970, quando o Poder Judiciário era
mesmo inacessível. O Direito era operado por homens sisudos em prédios imponentes e intimidantes.
O processo era de papel, as custas, altas, e a linguagem, data maxima venia, incompreensível para a
maioria da população. E, principalmente, a comunicação em geral era difícil. Mesmo o telefone
convencional não era tão comum. O acesso à informação – inclusive a jurídica – era precário.

Já no século XXI, a comunicação mundial é instantânea. Temos a Internet como fonte geral de
informação. Todos – advogados inclusive[8] – têm suas redes sociais. O processo é eletrônico, há a
possibilidade de ajuizamento de ações sem advogado, há o Juízo 100% Digital, depoimentos de partes
e testemunhas comumente são tomados com elas em suas casas, seus automóveis ou mesmo em seus
ambientes de trabalho.

Lado outro, as infinitas formas de comunicação e exposição das pessoas têm causado as mais variadas
formas de controvérsias com potencial de se transformar em questão judicial. Basta dizer que um corte
de cabelo de criança mal executado nos dias atuais é motivo para vídeo em rede social e lavratura de
boletim de ocorrência. Hodiernamente, uma palavra mal colocada pode ser considerada uma ofensa
grave. As pessoas têm se ofendido facilmente. A casuística está repleta de casos questionáveis.[9]

Tudo isso para concluir que a doutrina precisa ser colocada em perspectiva histórica. O acesso quase
que absoluto à Justiça facilmente pode ser transformado em abuso ou excesso nos dias atuais, em
especial quando não há qualquer ônus a ser suportado em caso de insucesso na demanda movida.

O excesso, paradoxalmente, se transforma em falta de acesso à Justiça a quem dela efetivamente


necessita. Segundo o último relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil
encerrou o ano de 2021[10] com 77,3 milhões de processos em tramitação, aguardando solução
definitiva. E, apesar de todo o acesso ora proporcionado, a reclamação geral da sociedade acerca da
morosidade do Judiciário permanece imutável. Afinal, apenas o acesso não é suficiente; a saída
também é necessária.

A questão do excesso de acesso foi brilhantemente trabalhada no julgado abaixo:

Impetrante: Márcio Gonçalves

Impetrado: Juiz de Direito do Juizado Especial Cível da Comarca de São João Batista

MANDADO DE SEGURANÇA – INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE INDEFERIU A JUSTIÇA GRATUITA


-– EXIGÊNCIA DE DOCUMENTOS COMPROVADORES -– AUSÊNCIA OU INSUFICIÊNCIA –- DISTINÇÃO
ENTRE ACESSO À JUSTIÇA AUTÊNTICO DO E INAUTÊNTICO -– INDEFERIMENTO DA INICIAL.

Por mais que discorde parcialmente (MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel.
Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011) da base teórica lançada por Flávio
Galdino (GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005),
não se pode negar que o exercício do direito de demandar em juízo “não nasce em árvore”. O manejo de tal
direito pressupõe um Poder Judiciário que dará movimentação ao pleito, com custos alarmantes e questões
sociais sérias emperradas pela banalização do direito de ação. O exercício do direito de ação, sem custos,
para o fim de se acolherem pretensões meramente patrimoniais, deve se dar pela via da Tragédia dos
Comuns. A Tragédia dos Comuns é um tipo de armadilha social de fundo econômico, a qual envolve o
paradoxo entre os interesses individuais ilimitados e o uso de recursos finitos. Por ela, se declara que o livre
acesso e a demanda irrestrita de um recurso finito (jurisdição) terminam por condenar estruturalmente o
recurso por conta de sua superexploração. Em face dos limitados recursos do Poder Judiciário e de sua
capacidade de assimilação, a propositura de ações abusivas, frívolas ou de cunho meramente patrimonial e
repetitivas, sem custo, pode gerar o excesso de litigância (abusivo ou frívolo). O custo de um processo é
assimilado pela coletividade e pelos demais usuários na forma de uma externalidade negativa. Lição de Júlio
Cesar Marcellino Jr.: “A atual situação de inefetividade do Poder Judiciário, especialmente no que diz respeito
à celeridade nas respostas às demandas judiciais, se dá, entre outras razões, pelo imenso acúmulo de ações
judiciais que não podem ser assimiladas pelo sistema judiciário. Esse ponto específico do excesso de ações
judiciais para uma estrutura limitada no tocante a recursos financeiros e humanos deve ser analisado por um
viés não convencional, no sentido de compreender que uma avaliação de cunho econômico, do tipo custo-
benefício, pode, ao contrário do que eventualmente se pense, ampliar o acesso à justiça por meio da
efetividade dos serviços judiciários. É preciso partir da dedução de que há manifesta abusividade na
propositura de uma parcela das demandas judiciais. Em um primeiro olhar, pode até parecer contraditório
defender-se uma ampliação de acesso à justiça por meio de uma limitação administrativa de ingresso de
ações judiciais. Mas a contradição é só aparente. Basta que se veja a questão a partir de um ângulo diferente
para se compreender que o acesso ilimitado ao Poder Judiciário acarreta, em verdade, um “inautêntico
acesso”, pois o simples fato de poder ingressar com uma demanda não é garantia de acesso pleno”. (TJ-SC –
MS: XXXXX20138249001 São João Batista XXXXX-62.2013.8.24.9001, relator: Alexandre Morais da Rosa,
data de julgamento: 10.04.2014, Primeira Turma de Recursos – Capital)

Isso colocado, a segunda forma de analisar o tema evolução dos custos com perícias judiciais busca
considerar o momento histórico em que se vive, para concluir que, mesmo em sede de direitos sociais,
pode haver exageros e abusos e que o tema merece reflexão mais aprofundada. Enfim, há sim um
problema a ser analisado. A hipótese versada vai além do mau funcionamento do ente estatal e do
mero exercício do direito de acesso à Justiça.

É a essa última corrente que nos filiamos, não sem antes deixar claro que, em se tratando de
Previdência Social, instituição que, de uma forma ou de outra, se relaciona com quase todas as pessoas
físicas e jurídicas, sempre haverá muita judicialização, o que é muito natural. Ainda mais quando não se
pode negar o histórico mau funcionamento da autarquia previdenciária. Isso é fato notório. Nada disso,
porém, deve levar à conclusão de que o problema, de forma relevante, está unicamente na má atuação
do ente previdenciário. Ainda, não deve haver impedimento a que se faça questionamentos visando à
melhoria do sistema judicial, inclusive para proporcionar acesso à Justiça com maior qualidade, ainda
que em menor quantidade. A forma como vem sendo entendida a questão do acesso à Justiça no Brasil
não deve ser transformada em verdadeiro dogma jurídico.

Portanto, é salutar o debate acerca do tema. Várias questões devem ser melhor refletidas e debatidas
nessa área. O questionamento acerca da aplicação da garantia de acesso como direito quase que
absoluto se faz necessário nos dias correntes.

A seguir, passa-se a alinhar temas e possibilidades da matéria que poderiam ser melhor refletidos: a)
subjetividade versus objetividade na análise dos pedidos de concessão de gratuidade judiciária; b) o
conflito do dispositivo constitucional que exige a prova da necessidade com a legislação ordinária que
aceita a mera declaração de necessidade; c) aplicabilidade ou inaplicabilidade do contido nos §§ 5º e 6º
do art. 98 do CPC; d) possibilidade de apuração prévia do valor das custas que incidirão caso não
concedido o benefício, para melhor compreensão global do pleito; e) gradação dos casos, a partir do
pedido, em que a concessão do benefício legal seria mais ou menos prioritária, de forma a nortear o
maior ou menor rigor na análise.

Foram alinhadas acima algumas possibilidades, o que não impede a existência de outras. O essencial é
que se possa discutir a questão livremente, sem amarras, a partir da premissa de que se está a tratar de
um tema jurídico impactante para toda a sociedade. O objetivo final deve ser qualificar o acesso à
Justiça.

E aqui já podemos partir para as conclusões.

Conclusões

Ao longo dos últimos 10 anos, ocorreu um acréscimo considerável – bem acima da inflação – das
despesas com perícias judiciais no âmbito da Justiça Federal brasileira. Historicamente, tal despesa era
custeada pelo orçamento do Poder Judiciário Federal, em especial em razão da concessão da
gratuidade judiciária na esmagadora maioria dos casos em que ela é postulada, isso mediante mera
declaração de hipossuficiência.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 95/2016 (teto de gastos), o orçamento do Poder


Judiciário não comportou mais o pagamento de tais despesas, que então foram transferidas para o
orçamento do Poder Executivo, vigorando em 2023 a Lei nº 14.331/2022. Assim, do ponto de vista do
orçamento do Poder Judiciário, a questão foi resolvida, na medida em que, agora, em média, 92% das
despesas com perícias estão a cargo do Poder Executivo Federal.

Nada obstante, a referida transferência de responsabilidade orçamentária não deve ser óbice a que se
reflita melhor sobre o referido aumento de despesa, o qual, em última análise, é pago por toda a
sociedade, inclusive por aqueles que não usam o sistema judiciário.

O aumento da despesa com perícias judiciais se insere em um fenômeno maior, que é o próprio
aumento da judicialização previdenciária, conforme constatado pelo próprio Conselho Nacional de
Justiça. De sua parte, o Conselho da Justiça Federal, por intermédio de seu Centro Nacional de
Inteligência, tem se ocupado com a questão da concessão da gratuidade judiciária, em especial a partir
de critérios amplos e subjetivos para a aferição da necessidade.

A inclusão do elemento risco na jurisdição previdenciária, em determinadas hipóteses, no mínimo, deve


ser analisada como fator de qualificação do acesso à Justiça.

Todas essas questões tornam necessário o debate, atualizado para os dias correntes, acerca do
importante tema do acesso à Justiça.

O presente trabalho espera ter contribuído para o aludido debate.

Referências bibliográficas
BRASIL. Conselho da Justiça Federal – CJF. Nota Técnica n° 06/2018. Gratuidade Judiciária.
Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-
judiciarios-1/nucleo-de-estudo-e-pesquisa/notas-tecnicas. Acesso em: 15 fev. 2023.

BRASIL. Conselho da Justiça Federal – CJF. Nota Técnica n° 22/2019. Gratuidade Judiciária.
Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-
judiciarios-1/nucleo-de-estudo-e-pesquisa/notas-tecnicas. Acesso em: 15 fev. 2023.

BRASIL. Conselho da Justiça Federal – CJF. Nota Técnica n° 24/2019. Custos Periciais Judiciais.
Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-
judiciarios-1/nucleo-de-estudo-e-pesquisa/notas-tecnicas. Acesso em: 15 fev. 2023.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Pesquisas judiciárias, Justiça em Números, Justiça em
Números 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/.
Acesso em: 22 jul. 2020.

BRASIL. Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER. A judicialização de benefícios previdenciários e


assistenciais. Brasília: CNJ, 2020.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.

HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos
impostos. Traduzido por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019.

Notas

[1] https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/nucleo-de-estudo-e-
pesquisa/notas-
tecnicas#:~:text=NT%2006_2018%20Per%C3%ADcias,previdenci%C3%A1rios%20que%20tramitam%20nos%20JEF.

[2] https://www.cjf.jus.br/publico/biblioteca/Res%20305-2014.pdf.

[3] LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

[4] Valores em reais. Dados fornecidos pela Divisão de Tecnologia da Informação da Direção do Foro de Santa Catarina.

[5] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/10/Relatorio-Final-INSPER_2020-10-09.pdf.

[6] https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/nucleo-de-estudo-e-
pesquisa/notas-
tecnicas#:~:text=NT%2006_2018%20Per%C3%ADcias,previdenci%C3%A1rios%20que%20tramitam%20nos%20JEF.

[7] No início do ano de 2023, o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social é de R$ 7.507,49. Logo,
40% desse valor corresponde a R$ 3.002,99.

[8] https://www.oab.org.br/noticia/59992/brasil-tem-1-advogado-a-cada-164-habitantes-cfoab-se-preocupa-com-
qualidade-dos-cursos-juridicos.

[9] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/11/17/ceo-ironiza-4-mil-processos-da-azul-ao-mes-toda-mala-tem-
vestido-de-noiva.htm.

[10] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf.

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