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1 Introdução 4

2 Importância e desafios na interpretação do direito 5


3 Diferenciação entre hermenêutica jurídica e interpretação 8
4 A importância prática da interpretação pela
administração tributária 14
5 A interpretação das leis face aos princípios constitucionais
e à matriz tributária brasileira 17
6 Planos da linguagem (sintática, semântica e pragmática) 26
7 Tipos de linguagem (linguagem natural, técnica e
simbólica) 32
8 Textura aberta do direito 35
9 Definição e redefinição das palavras da lei e o senso
comum teórico dos juristas 39
10 Síntese 42
11 Referências bibliográficas 43

Sumário
4
Introdução
A unidade foi dividida em tópicos e estabelecemos, como se verifica
no sumário acima, um caminho cognitivo de diálogo, que se inicia
em ressaltar a importância que tem a interpretação na aplicação do
direito, da diferenciação entre hermenêutica e interpretação, aspectos
da matriz tributária brasileira, com questões ligadas à semiótica até as
atividades de definir e redefinir as palavras da lei.

Nesse sentido, é importante frisar que quando falamos em diálogo


estamos nos opondo a monólogo, mais especificamente a uma
situação comunicacional em que o discurso monológico estabelece
como principal característica a indiscutibilidade, isto é, o “ouvinte”
(docente/discente) se faz presente, mas não se sente qualificado para
o entendimento das questões postas e também não está interessado
nesse entendimento, com prejuízo à dimensão pragmática da
comunicação.

Já em uma perspectiva de um discurso dialógico, proposto aqui,


cabe a nós (docente e discente) participar argumentativamente em
relação a algo que está sempre em construção, no caso particular aqui,
da interpretação do direito tributário, e não em torno de algo certo,
pré-determinado. O discurso dialógico é argumentativo e sempre
um dubium (FERRAZ JÚNIOR, 1996) e isso é central no estudo da
hermenêutica jurídica e interpretação dos textos normativos.
5
Importância
e desafios na
interpretação do
direito
Interpretar é explicar, esclarecer; dar o
significado […]; extrair, de frase sentença ou
norma, tudo o que na mesma se contém. Pode-
se procurar e definir a significação de conceitos
e intenções, fatos e indícios; porque tudo se
interpreta; inclusive o silêncio.
(Carlos Maximiliano)

Se há duas coisas certas na vida: morrer e pagar tributos, nada melhor


do que “compreender” o que passa (!), como dizem os espanhóis, ou
what’s up (so what), para os estadunidenses, ou em português, e daí
(!): que história é essa de pagar tributos como uma situação certa e
inevitável?

Portanto, um dos fenômenos que merecem nossa atenção é o


fenômeno tributário com uma construção de um horizonte de
sentido acerca da hermenêutica aplicada ao direito tributário que se
aproxime de um processo cognitivo “naturalizado” já nos séculos XIX
e XX e que não prepondera no Brasil no século XXI. Se tal ocorrer, já
estamos satisfeitos, visto que atingimos parcialmente os objetivos da
proposta desta disciplina.

Cabe salientar que o direito moderno, especialmente na família


romano-germânica, estrutura-se como um sistema de normas
postas pelo Estado por intermédio da legislação.

O direito, positivado enquanto legislação, é construído


linguisticamente. Ele expressa a regulação das relações sociais
6
articulando-se como um conjunto de prescrições e previsões as
quais precisam ser (de) codificadas para que possam ser aplicadas.
Compreender a natureza e as características da linguagem jurídica,
bem como aprender a (de)codificá-la, é, assim, uma necessidade do
profissional do direito, em específico do direito tributário.

A hermenêutica jurídica propicia justamente a análise dos


instrumentos técnicos que os operadores jurídicos empregam em sua
tarefa constante de (de)codificação e aplicação das normas jurídicas,
e não por acaso vem sendo desenvolvida em profundidade nas
últimas décadas. Se antes os sistemas jurídicos estruturados em torno
da legislação já exigiam do operador jurídico um esforço constante
para bem interpretar as normas jurídicas, as transformações sociais
ocorridas ao longo dos séculos XIX e XX e nestes anos iniciais do
século XXI apresentam ainda maiores desafios ao profissional do
direito.

Com efeito, observam-se mudanças qualitativas e quantitativas no


modo como a produção legislativa procura dar conta da realidade
social a exigir regulação. Do ponto de vista qualitativo, muda
o perfil da lei na medida em que nela empregam-se conceitos
indeterminados, os quais precisam ser adequadamente (re)definidos
por quem deve aplicar a norma. Fórmulas abertas, como “bem
comum”, “diligência devida” e tantas outras, exigem que o aplicador
da lei seja capaz de preencher o espaço vazio, inevitável, deixado pelo
legislador da melhor maneira possível, tendo em vista os fins a serem
atingidos pela norma em exame.

Do ponto de vista quantitativo, assistimos ao fenômeno denominado


de “inflação legislativa”, pelo qual proliferam sem cessar normas que
procuram regular e abranger os inúmeros aspectos da conflitividade
em uma sociedade altamente complexa em transformação acelerada.
A característica saliente dos sistemas jurídicos contemporâneos é
a grande produção legislativa, o que acarreta sensíveis dificuldades
a quem recebe a tarefa da aplicação do direito. A sistematização
“racional” do conhecimento acerca da matéria torna-se, mais do que
uma tarefa, uma necessidade.
7
Tanto para os aspectos quantitativos quanto para os qualitativos,
pode a hermenêutica jurídica aplicada ao direito tributário oferecer
sensível auxílio. No estudo da hermenêutica jurídica principia-
se por esclarecer a natureza linguística do fenômeno normativo e
em seguida fornece instrumentos capazes de apoiar a atividade de
esclarecimento e construção do sentido e alcance das normas, bem
como a de preenchimento dos muitos vazios deixados pelo legislador,
sem fugir aos contornos definidores do ordenamento jurídico.

A qualidade da intervenção do profissional do direito tributário é,


assim, melhorada, pois ele torna-se capaz de compreender a realidade
que o cerca, a natureza de sua tarefa nesta realidade, e pode, portanto,
exercer um papel ativo na construção responsável do conteúdo e no
alcance das normas jurídicas.
8
Diferenciação
entre
hermenêutica
jurídica e
interpretação
Quando tratamos da diferenciação entre hermenêutica jurídica
e interpretação, preferimos em nossas aulas fazer por primeiro
referência a Carlos Maximiliano que, em 1925, afirmou que a
hermenêutica tem por objeto “o estudo e a sistematização dos
processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das
expressões do direito” (MAXIMILIANO, 1996, p. 1). A hermenêutica
pode ser vista como a teoria da interpretação das leis, uma teoria
científica da arte de interpretar que nos fornece elementos,
procedimentos, princípios, para bem interpretar. Já por interpretação
se entende que é a aplicação da hermenêutica, o ato em si de
determinar, dar um sentido e um alcance às normas jurídicas.

Anteriormente fizemos referência ao que, em 1925, Carlos


Maximiliano ofertou naquela resumida reflexão acerca da diferença
entre hermenêutica e interpretação. Mas qual é o entendimento de
alguns tributaristas brasileiros acerca dessa matéria?

Para Bastos, “interpretar é extrair o significado de um texto” e


continua: “a interpretação faz o caminho inverso daquele feito
pelo legislador. Do abstrato, procura chegar a preceituações mais
concretas, o que só é factível procurando extrair-se o exato
significado da norma” (BASTOS, 1994, p. 182, grifo nosso).

No entendimento de Machado, “o intérprete não cria, não inova,


limitando-se a considerar o mandamento legal em toda a sua
9
plenitude, declarando-lhe o significado e o alcance” (MACHADO,
1997, p. 72, grifo nosso).

Para Amaro, “interpretar a norma jurídica consiste em identificar


o seu sentido e alcance. Chama-se hermenêutica a ciência da
interpretação” (AMARO, 2009, p. 205, grifo nosso).

Com a devida vênia ao entendimento exposto pelos colegas, não


partilhamos desse senso (in)comum teórico de alguns juristas
tributaristas. Entendemos, de acordo com Maximiliano e com o que
se produziu de pesquisas rigorosas no século XX acerca da semiótica,
da filosofia da linguagem, da argumentação jurídica, da hermenêutica
jurídica etc., que o texto normativo a ser interpretado não contém um
“texto”, não contém algo a ser descoberto ou de que se possa extrair
um exato significado. É apenas, de forma didática, papel e tinta (ou
pixels), e que o sentido e o alcance da norma é dado, é ofertado, é
construído pelo intérprete. Não há nada coberto a ser descoberto, o
que temos é um “texto/contexto” que vai, de certa forma, construir
um horizonte de sentido intertextual. Neste, ofertaremos um sentido
e um conteúdo para as leis de forma responsável.

Nesse sentido, merece referência o entendimento exposto por Streck


de que:

[…] não há “separação” entre texto e norma, há


sim uma diferença entre eles (que é ontológica),
questão que pode ser retirada da assertiva
heideggeriana de que o ser é sempre o ser de
um ente, e o ente só é no seu ser. Não há ser
sem ente! No plano da hermenêutica jurídica –
e daquilo que aqui denomino de Nova Crítica
do Direito –, é possível afirmar que a norma
(que é produto da atribuição de sentido a um
texto) não é uma capa de sentido a ser acoplada
a um texto “desnudo”. Ela é, sim a construção
hermenêutica do sentido do texto. Esse sentido
manifesta-se na síntese hermenêutica da
applicatio. (STRECK, 2009, p. 312)
10
Esta questão é muito importante, pois na ciência jurídica construiu-
se, principalmente durante o século XX, um postulado quase
universal de que não há norma sem interpretação, “ou seja, toda
norma é, pelo simples fato de ser posta, passível de interpretação.”
(FERRAZ JÚNIOR, 1995, p. 68).

Se não há norma jurídica sem interpretação, surge a questão


fundamental acerca de quem é que interpreta essas normas, no caso,
as normas de direito tributário. Torres (2006, p. 61) sustenta que todos
nós somos os intérpretes do direito tributário, “(...) o Legislativo,
o Judiciário, a Administração, os Advogados, os contadores, os
planejadores fiscais, os lobbistas e os contribuintes. Não existe um
numerus clausus de intérpretes do direito tributário”.

Percebe-se, aqui, a responsabilidade de cada um de nós, pois se


entendemos que todos somos intérpretes da legislação, não é possível
ocultar quem é o responsável pela interpretação formulada de um
determinado dispositivo diante da plurivocidade linguística.

Não é admissível, apesar de ser ainda regra, que alguns tributaristas


se escondam ou não assumam a responsabilidade pela interpretação
de textos legais em nome de uma pretensa descoberta na lei de seus
propósitos, citando a vontade e/ou o espírito do legislador (voluntas
legislatoris) e a vontade e/ou o espírito da lei (voluntas legis).

Não é preciso se preocupar com a postura que defendemos aqui,


frente a uma possível falta de segurança jurídica, tão propalada
por muitos juristas, pois o fato de tornar o intérprete responsável
pela interpretação construída é pedra angular nas sociedades
democráticas. Segurança jurídica se constrói com responsabilidade
no plano ético, e não se escondendo em torno de algo inexistente e/ou
inatingível, como a vontade do legislador ou da lei, por uma simples
questão: a linguagem jurídica é plurívoca (trataremos em item
adiante).

Depois dessas considerações acerca da diferença entre hermenêutica


jurídica e interpretação para Maximiliano, e do papel ativo do
intérprete e de sua responsabilidade, cabe tratar, por segundo, de
11
algumas classificações acerca da interpretação formuladas por Jerzy
Wróblewski (1999), que acreditamos importantes.

A interpretação pode ser conceituada para o autor de três formas


distintas, considerando o critério de relevância e “amplitude”:
interpretação latíssimo sensu, interpretação lato sensu e
interpretação stricto sensu.

a. A interpretação latíssimo sensu refere-se ao entendimento


que se formula nas ciências sociais, pois “para conceber um
objeto como pertencente à cultura, deve-se interpretar ou
entender o substrato material, dando-lhe um sentido ou um
valor. É nesse sentido que se fala de interpretação humanista do
comportamento humano e de seus resultados (WRÓBLEWSKI,
1999, p. 426);

b. A interpretação lato sensu refere-se à compreensão das


expressões usadas na comunicação, em que cada símbolo
linguístico deve ser interpretado para ser inteligível. Esta
interpretação lato sensu é utilizada na formulação das teorias do
direito;

c. Já a interpretação stricto sensu, para Wróbleswki, relaciona-


se ao ato de interpretar frente a uma dúvida acerca de uma
expressão e a sua aplicação. Afirma que “existem situações
nas quais o entendimento imediato ou direto basta para
compreender o texto (situação de isomorfia) e situações nas
quais, se o sentido não tiver sido determinado, é impossível
que os sujeitos que transmitem a informação se compreendam”
(WRÓBLEWSKI, 1999, p. 426). A interpretação stricto sensu
opera em especial no campo da dogmática e da jurisprudência.

Diante dessa classificação, percebe-se que a interpretação latíssimo


sensu, de certa forma, pode ser vista como uma aproximação do que
vimos antes sobre o conceito de hermenêutica, visto que se refere ao
entendimento nas ciências sociais acerca de algo. Nas interpretações
lato sensu e stricto sensu temos uma proximidade com o conceito
de interpretação como “ato” realizado pelo intérprete, como
anteriormente exposto.
12
A referência que fazemos ao trabalho do Wróbleswki, em especial
à classificação exposta, se faz necessária para que possamos
compreender que, em um processo hermenêutico e interpretativo,
o fazemos a partir de um referencial cognitivo axiológico, isto é,
centrado em valores.

Constata-se que, às vezes, utilizamos alguns adágios latinos no


direito sem questionamentos, como a afirmação de que clara non
sunt interpretanda ou interpretatio cessat in claris (norma clara não
precisa ser interpretada ou cessa a interpretação frente uma norma
clara). Arnaldo (sic), a pergunta é: é possível afirmar que uma norma
é clara e, portanto, não precisa ser interpretada, antes que se faça
uma interpretação para verificar se ela é clara? E para quem é claro o
sentido e o alcance de uma norma jurídica diante da plurivocidade
linguística?

Estamos parafraseando Entendemos, às vezes, que as suas ideias são claras se estivessem no
Proust, que afirmou: mesmo grau de confusão que as nossas!
cada um chama de claras
as ideias que estão no
Essa falta de questionamento acerca dessas questões não é um
mesmo grau de confusão
atestado de despreparo intelectual do operador do direito, mas sim
que as suas próprias.
proposital e ideologicamente dirigida, e é muito utilizada na prática
jurisprudencial, em especial com as súmulas, e mais especialmente
ainda em relação às súmulas vinculantes. Como pode vincular uma
interpretação, se depende do estabelecimento de relações sintáticas,
semânticas e pragmáticas em relação ao texto e contexto?

Daí a importância das ideologias na interpretação. Quando


Wróblewski trata da interpretação jurídica no plano descritivo e no
plano normativo, afirma em relação a esta última:

Do ponto de vista normativo, determina-se


como se deve interpretar, isto é, formulam-se
os valores e os ideais a serem realizados e/ou as
diretrizes de interpretação cuja função seja ou
heurística, ou justificatória. O papel dos valores
na interpretação faz aparecer o fato de que,
13
sem avaliação, não se pode interpretar o texto
jurídico, nem justificar a decisão interpretativa.
Ora, esses valores e as diretrizes que lhes estão
vinculados são formulados na ideologia da
interpretação. O caso-limite dessa ideologia
seria uma teoria normativa da interpretação
que formularia todas essas diretrizes e esses
valores de modo a resolver todos os problemas
axiológicos da interpretação. Mas nenhuma
teoria que satisfaça essas condições ainda foi
formulada. (WRÓBLEWSKI, 1999, p. 426-427)

Portanto, cabe ao intérprete perceber a existência das inúmeras


ideologias da interpretação, e isto ficará mais “claro” no decorrer dos
pontos seguintes deste primeiro módulo.
14
A importância
prática da
interpretação
pela
administração
tributária
Entendemos que a administração tributária, ao menos dentro da
competência de um ente tributante, deve ser una.

Com esse parâmetro próprio de um Estado de Direito, de que a


administração tributária deve-se apresentar ao contribuinte de
forma una, indivisível, inseparável, que é uma só, surge o desafio da
produção de significados interpretativos da legislação tributária que
orientem o servidor público e o contribuinte em uma só direção.

Mas, antes de avançar nessa questão, cabe perguntar se existe


ou não uma hermenêutica tributária e/ou uma autonomia
interpretativa acerca da legislação tributária. Se existem, o que
são?

Defendemos a posição de que não existe uma hermenêutica tributária


nem uma autonomia interpretativa no direito tributário. O que temos
são especificidades, como o fato de se considerar, primeiro, de que
estamos tratando de um pacto federativo, e este, federativo fiscal.

Um bom exemplo, acerca da importância prática da interpretação


formulada pela administração tributária, é quando, em família,
destinamos às crianças um conjunto de ordens, ou pedidos, que se
faça algo ou que não se faça, e, diante dos problemas “auditivos” das
15
crianças teimosas, usamos: “Vou chamar sua mãe!”. Ou: “Vou contar
pro seu pai!”. E o que de pior que pode acontecer nesse exemplo
familiar é quando vem a mãe ou o pai e “desmente” os comandos
imputados às crianças. Uma erosão de normatividade e de autoridade.

Portanto, a interpretação feita pela administração tributária, esta que


é una, deve ser elaborada de forma colaborativa, e com a participação
dos profissionais, técnicos, analistas, auditores etc., e o produto dessa
elaboração deve ser em apenas uma direção. Não pode, mesmo que
inatingível, pairar dúvidas ao fisco e/ou ao contribuinte, no âmbito do
senso comum teórico do jurista, de qual é a postura interpretativa, de
como o fisco está interpretando a legislação tributária.

Na produção de pareceres, notas técnicas, regulamentos, instruções


normativas etc. é necessário que se faça ampla discussão interna da
administração tributária, na medida do possível, para que se produza
atos normativos com um horizonte de sentido interpretativo que dê
A uniformidade um grau de precisão maior à aplicação normativa.
interpretativa da
administração fiscal é Nesta questão da interpretação cabe a lembrança do disposto
salutar e fundamental
na Lei n. 10.593, de 6 de dezembro de 2020, que dispõe sobre a
para a construção de
reestruturação da Carreira Auditoria da Receita Federal e sobre a
um racional “campo”
dogmático tributário
organização da Carreira Auditoria-Fiscal da Previdência Social e da
(CAMPOS, 2016) e Carreira Auditoria-Fiscal do Trabalho:
consequentemente na
construção do Estado de Art. 6º São atribuições dos ocupantes do cargo
Direito. de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil:

(...)
Mais informações sobre
os pontos “b” e “e”: http:// b) elaborar e proferir decisões ou delas
www.planalto.gov.br/ participar em processo administrativo-
ccivil_03/_Ato2007-
fiscal, bem como em processos de consulta,
2010/2007/Lei/L11457.
restituição ou compensação de tributos
htm#art9 - Redação
dada pela Lei n. 11.457,
e contribuições e de reconhecimento de
de 2007 e em http:// benefícios fiscais;
www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2007- (...)
2010/2007/Lei/L11457.
htm#art51 - Vigência.
16
e) proceder à orientação do sujeito passivo no
tocante à interpretação da legislação tributária;

Mais informações em: f) supervisionar as demais atividades de


http://www.planalto.gov. orientação ao contribuinte;
br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Lei/L11457.
A uniformidade interpretativa da administração fiscal é salutar e
htm#art9 - Incluída pela
fundamental para a construção de um racional “campo” dogmático
Lei n. 11.457, de 2007
(grifo nosso) e em http:// tributário (CAMPOS, 2016) e consequentemente na construção do
www.planalto.gov.br/ Estado de Direito.
ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Lei/L11457.
htm#art51 – Vigência
(grifo nosso).
17
A interpretação
das leis face
aos princípios
constitucionais
e à matriz
tributária
brasileira
Sabemos que, em um sistema produtivo, as aquisições de bens e
serviços geram crédito nos tributos não cumulativos, como no caso
do ICMS, IPI, PIS/Pasep e Cofins.

A primeira constatação diante de tal fato é de que, com a geração de


crédito/débito em uma cadeia produtiva, alcança-se em linhas gerais
a não cumulatividade (vide TVA na França em 1954 e a mudança
de todo o sistema produtivo global verticalizado para um sistema
horizontalizado), gravando, independentemente de o método ser
direto, indireto, subtrativo etc., apenas o valor que se agregou em
cada fase. Nesta não cumulatividade, o que temos é o repasse para
a fase produtiva seguinte dos tributos suportados a montante até o
consumidor final, que arcará, em tese, com toda a carga tributária já
embutida no preço de um determinado bem ou serviço.

Em decorrência dessa primeira constatação, não é possível afirmar


que esses tributos não cumulativos incidem sobre a circulação ou
produção. É óbvio por demais que incidem sobre a base de incidência
consumo. Mas por que, então, quem sabe a maioria, os tributaristas
assim entendem? Decorrência do estabelecido no art. 2º da Lei
Complementar no 87 de setembro de 1996 em relação ao ICMS?
18
Assim está disposto:

Art. 2º O imposto incide sobre:

I - operações relativas à circulação de


mercadorias, inclusive o fornecimento de
alimentação e bebidas em bares, restaurantes e
estabelecimentos similares;

II - prestações de serviços de transporte


interestadual e intermunicipal, por qualquer
via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;

III - prestações onerosas de serviços de


comunicação, por qualquer meio, inclusive a
geração, a emissão, a recepção, a transmissão,
a retransmissão, a repetição e a ampliação de
comunicação de qualquer natureza;

IV - fornecimento de mercadorias com


prestação de serviços não compreendidos na
competência tributária dos Municípios;

V - fornecimento de mercadorias com


prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre
serviços, de competência dos Municípios,
quando a lei complementar aplicável
expressamente o sujeitar à incidência do
imposto estadual (BRASIL, 1996).

Ainda, por que está disposto desta forma na Constituição Federal?

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito


Federal instituir impostos sobre:

[…] II - operações relativas à circulação de


mercadorias e sobre prestações de serviços
de transporte interestadual e intermunicipal
19
e de comunicação, ainda que as operações e
as prestações se iniciem no exterior (BRASIL,
1996).

Não entendemos assim. A tributação incidente nas fases de um


processo produtivo não se confunde com tributação por bases de
incidência. A tributação nas fases de um sistema produtivo se faz por
necessidade e/ou oportunidade, bem como por questões de eficiência
(vide substituição tributária etc.) no interesse da administração.

O interesse da administração é no sentido de arrecadar na “circulação”


ou na “produção” (industrialização) e evitar, muitas vezes, a
sonegação. Escolher um momento para “cobrar” não tira a questão da
repercussão econômica dos tributos, em que se tem um contribuinte
de iure e um contribuinte de fato. Nesse sentido, vide acordo GATT
e o disposto no CTN dessa forma: “Art. 166. A restituição de tributos
que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo
encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o
referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por
este expressamente autorizado a recebê-la”.

Lembre-se de que esses tributos sobre o consumo, no caso do ICMS,


já foram denominados na história da tributação do Brasil de impostos
sobre vendas e consignações e imposto sobre o consumo.

Já pensaram se o imposto de renda, cuja base de incidência é a


renda, a mais nova das bases de incidência (século XX), em que se
criou a técnica da retenção (nos Estados Unidos e depois em outros
países) para evitar a sonegação e/ou antecipação de receita derivada,
passasse a ser chamado não mais de imposto de renda, mas sim
de imposto de “retenção”? E se os nossos empregadores, com um
boneco representativo de um pequeno animal, fizessem grandes
manifestações para não pagar mais o imposto de “retenção” ou para
diminuir a carga tributária desse imposto? Pois bem…

Uma segunda constatação é que um tributo não cumulativo grava


apenas o valor que se agregou em cada fase do processo produtivo,
20
Portanto, temos IVAs no portanto são IVAs. O que é IVA? Em português e espanhol, IVA
Brasil, apesar de parte é imposto de valor agregado, em francês, TVA é taxe sur la valeur
considerável da postura ajoutée e, em inglês, VAT é value added tax (GASSEN, 2013, p. 108).
interpretativa dos
tributaristas brasileiros,
Uma terceira constatação é o fato gerador dos tributos sobre o
a partir do senso (in)
comum, afirmarem o
consumo, aquisição do bem ou serviço a ser consumido, isto é, a
contrário. venda para o consumidor final encerra o ciclo e, nesse momento, tem-
se a ocorrência dogmática do fato gerador.

No interesse da administração tributária, elegemos outros momentos


para criar um “fato gerador”, “provisório”, circunstancial, mas como
todos sabemos, fato gerador é o fato que dá ensejo à cobrança de
tributo. Isso só ocorre no momento da venda do bem ou serviço
para o consumidor final, e este o paga. Em termos dogmáticos, é
esse o entendimento adequado, mas no senso (in)comum de alguns
tributaristas, é na circulação que temos o fato gerador. Imagine se
aplicarmos esse entendimento dogmático na retenção feita pelo
empregador quando do pagamento de um salário. O fato gerador
nesse caso sempre será a renda obtida e não a retenção.

Sabemos também que Uma quarta e última constatação, no momento, é que a União
essa quarta constatação rompeu com o pacto federativo fiscal estabelecido em 1988
não é compartilhada (Constituição Federal) com a criação de dois impostos não
por considerável
cumulativos, no caso do PIS/Pasep e Cofins, que são impostos não
parte da doutrina,
cumulativos e não contribuições. Sabemos que o nomen iuris não
pois consideram que
PIS/Pasep e Cofins determina a natureza jurídica de um tributo (art. 4º CTN, vide
são “contribuições também a I/CPMF).
especiais de seguridade
social”, uma das cinco Fizemos propositalmente os questionamentos e constatações
espécies tributárias na anteriores, sabendo que é possível divergências interpretativas, com
conhecida classificação o intuito de provocar o início de reflexões frente aos princípios
pentapartite (impostos,
e objetivos da nossa República. Assim, entendemos que todos
taxas, contribuição de
os questionamentos e constatações relativas à dogmática estão
melhoria, contribuições
especiais e empréstimo
ideologicamente comprometidos, axiologicamente comprometidos,
compulsório). inarredável.

A República Federativa do Brasil, maior país da América Latina,


conta com um território de 8.515.767,049 km² (equivale a 47% do
21
território sul-americano, sendo o quinto maior do mundo em área
territorial), com a estimativa populacional para 2018 de 208 milhões
de brasileiros (sexto em população), possui 26 Estados, o Distrito
Federal e 5.570 municípios, ocupa a posição nove de maior economia
(PIB) no mundo (de acordo com o FMI, Banco Mundial e Nações
Unidas ocupa a sétima posição – dados de 2014 e 2015), e, para
finalizar, tem uma carga tributária média proporcional ao PIB de
35%.

Agora uma outra abordagem possível…

O PIB é acrônimo de produto interno bruto, isto é, tudo o que


a população de um país produz em bens e serviços em um
determinado tempo (ano). Portanto, a República Federativa do Brasil
ocupa a 50ª posição na relação PIB per capita, sendo que, para o FMI,
ocupa a posição 59ª. Para o Banco Mundial, a posição é 59ª e 64ª para
as Nações Unidas.

A população brasileira, sexta maior população do mundo, pode ser


dividida em classes econômicas e/ou sociais, e sendo assim podemos
dividir em classes: A, B, C, D e E. A tabela seguinte faz referência às
classes e à renda média per capita em cada uma delas no ano de 2012
(BRASIL, 2012):

Quadro 1: Classes Classe Renda mensal per capita


econômicas e/ou Classe A Acima de R$ 2.480,00
sociais Classe B Entre R$ 1.019,00 a 2.480,00
Classe C Entre R$ 291,00 a 1.019,00
Fonte: BRASIL (2012) Classe D Entre R$ 162,00 a 291,00
Classe E Entre R$ 0,00 a 162,00

Se considerarmos a população total de 2012 (cerca de 196 milhões) a


distribuição ficam assim:

Quadro 2: Outra Classes População


distribuição de Classes A e B 39.000.000 (20% do total da população)
classes econômicas e/ Classe C 104.000.000 (53%)
ou sociais Classes D e E 53.000.000 (27%)

Fonte: BRASIL (2012)


22
A carga tributária pode ser formulada em relação ao PIB e também
em relação à divisão entre as classes econômicas de uma determinada
população. A população que integra cada uma das faixas de renda
recebe a seguinte carga (IPEA, 2009):

Quadro 3: Carga Renda mensal Carga tributária Carga tributária Dias destinados
tributária familiar – salário bruta 2004 bruta 2008 ao pagamento de
mínimo tributos
Fonte: IPEA (2009) Até 2 SM 48,8 53,9 197
2a3 38,0 41,9 153
3a5 33,9 37,4 137
5a6 32,0 35,3 129
6a8 31,7 35,0 128
8 a 10 31,7 35,0 128
10 a 15 30,5 33,7 123
15 a 20 28,4 31,3 115
20 a 30 28,7 31,7 116
Mais de 30 SM 26,3 29,0 106
Carga tributária bruta 32,8 36,2 132

Uma primeira constatação, dentro dessa nova abordagem,


importante para o intérprete do direito tributário, é que,
proporcionalmente, quem suporta o maior gravame tributário é a
maior parte da população brasileira, que tem a menor renda per
capita. E como isso se opera, se essa parte da população, classes E, D e
C (maior parte), é isenta do imposto de renda, muitas vezes isenta do
IPTU, e muitas vezes, por não ter carro, não paga o IPVA etc.?

Uma resposta possível se dá diante da opção que se fez no Brasil


pela tributação sobre o consumo (tributos indiretos e regressivos).
Cerca de 70% de tudo o que se arrecada no Brasil advêm dessa base
de incidência, e é de notório saber que essa base de incidência é
regressiva (vide tributos progressivos e regressivos).

A segunda constatação diz respeito a uma característica marcante


dos tributos na matriz tributária brasileira, principalmente nos
tributos incidentes sobre o consumo. É que eles são ocultos ou
anestesiantes. Um tributo oculto ou anestesiante é aquele que o
contribuinte paga sem perceber que está pagando, anestesia-se o
23
contribuinte na sua aversão de pagar tributo, pois o preço do bem
que está adquirindo já está anunciado com a inclusão dos tributos e
muitas vezes sem a discriminação do gravame.

Isso também acontece nos Estados Unidos, mas fica restrito aos
tributos especiais sobre o consumo que incide sobre poucos bens,
como bebidas, cigarros e combustíveis. Denis-Escoffier e Fortin (2011,
p. 3) assim esclarecem: “There are hidden taxes as well. Hidden taxes
are those that are paid but that are not specifically itemized as part of
the payment”. Ou seja, existem impostos ocultos também. Impostos
ocultos são aqueles que são pagos, mas que não são especificamente
discriminados como parte do pagamento.

Nos Estados Unidos, os tributos sobre o consumo, em sua maioria,


não são ocultos, pois o preço do bem é anunciado sem o valor
do tributo correspondente. Esses tributos não ocultos podem
ser considerados, por um lado, como irritantes, pois “irritam” o
E por falar em contribuinte, por outro lado, podem ser vistos como transparentes.
transparência, vide a
Constituição Federal Uma terceira constatação é que, por intermédio do fenômeno da
brasileira, que prescreve
tributação, o ônus imputado aos cidadãos ocorre em um processo
assim no seu artigo 150,
distributivo ou de concentração de renda. Para Musgrave e Musgrave
§5º: “A lei determinará
medidas para que os (1980) a tributação pode ter algumas funções, como a alocativa, a
consumidores sejam distributiva e a estabilizadora.
esclarecidos acerca dos
impostos que incidam Esse processo de alocação, distribuição e estabilização não ocorre por
sobre mercadorias e questões metafísicas ou irracionais, é fruto de escolhas que fazemos
serviços”. no campo da tributação. Nesse sentido formulamos, em substituição
ao senso comum teórico acerca do conceito de sistema tributário,
um conceito de matriz tributária, com o intuito de colaborar na
compreensão básica de quem paga os tributos e com quem é que se
gasta o produto da arrecadação tributária. Enfim, compreender de
uma melhor forma a relação do fenômeno tributário com a realidade
política, econômica e social existente em um determinado estado.

Assim, entendemos por matriz tributária o resultado das escolhas


no campo da ação social no que tange ao fenômeno da tributação
(GASSEN, 2016). Esse conceito traz implícita a tributação em
24
um estado contemporâneo em que já ocorreu a separação (cisão)
histórica entre estado e propriedade; a propriedade como direito
pós-tributação e a extrafiscalidade como elemento de legitimação
do exercício do poder estatal. Afasta-se, assim, com esse conceito,
de forma contundente, qualquer forma do libertarismo vulgar,
preponderante em nossa academia e definidor do senso comum
teórico do tributarista brasileiro em seus processos interpretativos
do fenômeno tributário.

Para finalizar esse ponto, é de fundamental importância que o


intérprete, no caso do tributarista, compreenda e/ou perceba que
toda interpretação está eticamente comprometida e que a leitura e
a discussão adequada da dogmática depende da sua correta análise
da realidade que o cerca. Torres (2006, p. 375) sustenta que “a
interpretação jurídica está inteiramente vinculada aos valores e aos
princípios gerais de Direito e, ao mesmo tempo, é um dos caminhos
para a concretização desses valores. Nesse sentido é ideológica, até
mesmo quando pretende ser neutra”.

Em nosso país, é contumaz o esforço da maior parte dos juristas


em desconectar o fenômeno jurídico da realidade, do dia a dia da
população, do cotidiano, criando com isso uma redoma alienante, um
horizonte de sentido aparentemente desprovido de conteúdo, enfim,
um senso comum teórico do jurista com o propósito de dificultar a
compreensão e o apoderamento cognitivo por parte do cidadão do
que de fato ocorre acerca do pagamento de tributos e sua destinação.

Só para lembrar os objetivos da República Federativa do Brasil, que


ficaram assim expressos na Constituição Federal:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da


República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e


solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;


25
III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem


preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.

Enfim, a constatação final pode ser assim didaticamente expressa:


“Diga-me com quem tu andas e eu direi quem tu és”. Deveríamos, de
forma lúdica, a partir desse ditado popular, tratar assim a tributação
em nosso país. Daí, a frase ficaria assim para início de conversa:
“Diga-me qual tua matriz tributária e eu direi qual é o teu índice
de desenvolvimento humano”, ou ainda, “Diga-me qual tua matriz
tributária e eu direi que país é este”, em memória ao poeta Renato
Russo, da banda Legião Urbana.
26
Planos da
linguagem
(sintática,
semântica e
pragmática)
Admitindo que o direito é uma construção cultural que visa fixar
parâmetros de comportamento que sejam considerados justos numa
determinada sociedade e numa determinada época, esse processo
de construção de parâmetros de conduta não é simples e possui
uma complexa articulação com a divisão que existe, nessa mesma
sociedade, do poder, seja no seu aspecto econômico, seja no seu
aspecto cultural.

Se quisermos simplificar essa ideia, podemos fazê-lo dizendo que,


nesse processo de construção cultural, alguns têm mais condições
de intervenção, de atuação, do que outros. Mesmo assim, ninguém
haveria de obedecer a regras que não fossem justas ou parecessem ser
as possíveis dentro das circunstâncias. Seja qual for o fundamento da
regra jurídica tributária, quais interesses estejam por trás, é preciso
que ela apareça como justa, e essa aparência é construída exatamente
na argumentação dos juristas.

Para compreender bem a complexidade da feitura das normas


jurídicas com as quais trabalhamos ou trabalharemos como
intérpretes do direito tributário, podemos lembrar o processo
constituinte (lembrem-se do “centrão” e sua articulação para defender
interesses mais conservadores, por exemplo), ou mesmo do processo
normal de feitura das normas pelo Congresso Nacional, no qual
ocorre sempre o debate e a negociação (no bom e no mau sentido)
27
entre os partidos tentando encontrar uma formulação adequada para
a norma que se quer fazer.

Muitas vezes o texto que se escreve como legislação é, ele próprio,


impreciso, para que todos os partidos concordem. Outras vezes, pela
dificuldade de prever o que acontecerá no futuro ou de como se pode,
tecnicamente, regular uma situação concreta, não há condições de
se descer a mais detalhes, e por isso fica uma margem que precisa
depois ser preenchida por quem vai trabalhar com a regra jurídica.
Em ambos os casos, a responsabilidade por encontrar a melhor e mais
justa interpretação é atribuída ao intérprete da legislação tributária.

Mesmo com essa dificuldade que mencionamos, de fazer regras


precisas de comportamento, parece ser possível pensar que haveria
um modo de evitar as controvérsias depois de pronta a lei, pela
fixação de uma interpretação. Por que não se fixa, dentro de um
certo tempo e lugar, uma regra e todo mundo concorda com ela,
porque é possível encontrar diferentes sentidos para uma regra
jurídica?

Essa pergunta é justamente o ponto de partida da nossa disciplina.


O que significa interpretar uma norma jurídica? Por que os
juristas, em especial nos tribunais, não concordam entre si
sobre o sentido das palavras que compõem as normas jurídicas
tributárias? Para responder essas perguntas temos de começar
examinando a relação entre o direito e a linguagem.

O direito, tal como o estudamos, é linguagem, um conjunto de


“textos”. Como antes tratamos, papel e tinta (ou pixels). Esses textos
são formados por enunciados.

Um enunciado é uma oração gramaticalmente bem formada, de


uma linguagem natural, capaz de transmitir uma mensagem. Uma
linguagem natural é, por exemplo, a língua portuguesa ou a espanhola
em seu uso cotidiano.
28
Para que uma oração seja bem formada, precisa utilizar as expressões
da língua portuguesa, por exemplo, de acordo com as regras
sintáticas.

A sintática é a parte da linguística que trata


da conexão dos signos entre si. Linguística é a
ciência que estuda a linguagem. (SAUSSURE,
2006)

Exemplos: “Eu ontem não”. Essa não é uma frase com sentido, ela não
consegue transmitir uma mensagem. Já a frase: “Eu não dormi bem
ontem” é uma frase com sentido, podemos compreendê-la e saber o
que a pessoa que a enunciou quer dizer.

Mas a sintática não esgota a nossa questão, porque ser capaz de


transmitir uma mensagem não implica, necessariamente, que esta
tenha alguma correspondência com aquilo que se conhece como
“realidade”.

Por exemplo, a frase “O direito brasileiro é consuetudinário” não


corresponde com a “realidade”, embora seja sintaticamente bem
formada. Para dizer que algum enunciado tem correspondência com
uma “realidade” temos, então, que verificar o seu aspecto semântico.

Entendemos por signo Semântica é a parte da linguística que trata da conexão dos signos
algo que aponta para com os seus referentes, com aquilo que eles designam, mas não
algo diferente de si. no seu sentido real, e sim no da imagem representativa, formada
A linguagem é nossa
culturalmente e que corresponde à palavra utilizada.
possibilidade e também
nossa limitação, de certa
forma, de nos “relacionar” Não há correspondência com a realidade material porque a palavra
com os fenômenos. não faz referência a um objeto, concretamente designado, mas a todos
os objetos que convencionamos chamar por esse “nome”. Assim, por
exemplo, quando digo a palavra mesa, pensamos todos num objeto
com determinadas características, mas que não é essa mesa sobre a
qual está o computador no qual escrevo esse texto, nem a mesa da
cozinha da minha casa ou da sua, mas todas elas, em abstrato.
29
A título de exemplos: “A mesa fabricada por meu pai é de excelente
qualidade”, ou, “O presidente da mesa fez a abertura dos trabalhos”,
ou ainda, “A mesa na casa do amigo estava farta”, fartava tudo, na
expressão popular. Em abstrato, mesa, mas no contexto, diferentes
“mesas”.

Até aqui temos já dois níveis que precisam ser determinados para que
possamos compreender o que diz um texto ou mensagem: sintático
e semântico. Todavia, um terceiro nível interfere na nossa percepção
porque mesmo sendo sintaticamente correto e conforme a imagem
representativa, semanticamente consistente, pode o signo variar
de sentido segundo o uso que se faz dele dentro de enunciados, de
acordo com a intenção do falante. Assim, temos o terceiro nível de
análise da linguagem, que é a pragmática.

A pragmática se preocupa com a ligação entre o signo e seus


usuários, o que significa que compreende todo enunciado dentro
de um determinado contexto de comunicação.

Exemplos dessa dimensão pragmática da comunicação são as


diferenças produzidas pela mudança na entonação de voz, ou no
contexto material no qual a frase é dita, como a sala de aula ou a
casa de alguém. Se eu me dirigir a um dos discentes em uma aula
presencial, que se encontra do lado de fora da sala de aula, e disser:
“Entre!”. Você entenderá a frase como transmitindo uma ordem, mas
o mesmo não acontecerá se essa mesma frase for repetida na minha
casa, onde então você a entenderá como um convite bem-educado,
que pode ser, inclusive, recusado.

De um ponto de vista jurídico, isso é importante porque implica em


diferentes comportamentos, conforme a situação na qual o enunciado
Lembramos que o título é utilizado. Como exemplifica Ferraz Jr. (1996), a frase “As praias são
da obra de Ferraz Jr., e de uso comum” pode requerer diferentes tipos de comportamento
que recomendamos, é de quem interpreta, que vão desde a necessidade de retirada de uma
Introdução ao estudo do
cerca até a utilização como uma mera explicação. E sem a construção
direito: técnica, decisão,
de um discurso dialógico, como vimos, não é possível estabelecer um
dominação.
campo pragmático, pois neste temos toda a complexidade discursiva.
30
Portanto, as três dimensões da linguagem em conjunto permitem
uma visão do quão complexa é a comunicação e o trabalho com
ela. Interpretar significa utilizar conjuntamente os três aspectos da
linguagem para determinar, ofertar, dar o sentido de uma palavra,
expressão, frase ou período e de todas as normas jurídicas.

Há ainda uma outra questão importante para que possamos


compreender o que se passa com os textos jurídicos, que é a da
existência de vários enunciados distintos que apresentam o mesmo
significado ou conteúdo, ou, ao contrário, de um mesmo enunciado
que possa ser compreendido de diferentes formas, gerando várias
proposições.

Exemplificando: as seguintes frases, embora sejam diferentes


enquanto frases, expressam a mesma mensagem ou o mesmo sentido:
“eu sou um homem”/ “eu sou um ser humano do sexo masculino”.
Ou, no exemplo de Ferraz Jr., as palavras “moradia” e “casa” que têm,
ambas, o mesmo significado.

Para fixar isso, falamos em enunciado e proposição:

• Enunciado é o veículo, a frase composta por signos


linguísticos, por palavras, capaz de transmitir uma mensagem
por estar formada de acordo com as regras da língua natural à
qual se expressa.

• Proposição é o seu sentido, que pode, aí sim, ser


considerado verdadeiro ou falso, eficaz ou não.

No caso das normas jurídicas, o que ocorre frequentemente é


que temos dificuldade de determinar a correspondência entre
o enunciado e a proposição que dele decorre segundo cada
interpretação. De certo modo, o problema da interpretação jurídica
está diretamente relacionado com essa distinção.

Quando discutimos qual é a melhor interpretação de uma norma,


o que estamos fazendo é procurar a proposição pertinente ao
enunciado.
31
Todos esses aspectos da linguagem relacionam-se de diferentes
modos quando pensamos que pode haver, além da linguagem como
normalmente utilizamos para nos comunicarmos com nossos
semelhantes, outros usos, mais técnicos para ela, e que é o nosso tema
no ponto seguinte.
32
Tipos de
linguagem
(linguagem
natural, técnica
e simbólica)
É preciso diferenciar ainda, e para nossos propósitos futuros, os
diversos tipos de linguagem, que podem ser: uma linguagem natural,
uma linguagem técnica e uma linguagem formal (matemática, lógica,
simbólica).

Uma linguagem é um conjunto de signos utilizados na interação


humana. Esses signos podem ser palavras, tendo uma base
fonética ou imagética, de gestos etc. Podemos chamá-los também
de símbolos quando são produzidos, de modo intencional,
convencional, pelo homem para a comunicação linguística.

Dadas as características da linguagem que vimos antes, diante dos


aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos e sua combinação, há
sempre uma dificuldade básica de comunicação. Não há garantia
de que a compreensão vá acontecer. Obviamente que existem
condições mínimas, como o fato de que ambos os comunicantes
compreendam a mesma língua, o que significa que são capazes de
manipular um conjunto de palavras (vocabulário) e de regras para
seu uso (gramática), mas elas não garantem tudo, pois, como vimos,
há sempre a possibilidade de a palavra estar sendo usada num
contexto diferente, mudando o seu sentido. Um exemplo claro disso
é a dificuldade de se fazer compreender pelas pessoas mais próximas,
como a(o) namorada(o) ou os pais e irmãs(ãos) em algumas
circunstâncias.
33
Assim, a comunicação, a partir de uma linguagem natural, base de
tudo, linguagem do nosso cotidiano, envolve sempre a possibilidade
de indeterminação, ou, mais tecnicamente, de vagueza e de
ambiguidade. Por isso, quando se deseja uma maior precisão numa
determinada área, recorre-se à formação de linguagens artificiais,
com termos técnicos, cujo papel é o de permitir um manuseio mais
adequado das palavras.

Porém, essa “tecnificação” da linguagem significa também o aumento


Um bom exemplo disso é da possibilidade de incompreensão, porque só serve para esclarecer
a seguinte frase/pergunta: aqueles que já possuem o código, isto é, o conhecimento da área
“No caso de substituição técnica. Quando usamos a linguagem técnica do direito, por exemplo,
tributária, com estimativa
tornamos nossa fala quase indecifrável para quem não o tenha
de preço superior à
estudado.
venda efetiva, é possível
ao contribuinte de iure
solicitar a repetição do Mas ainda estamos no âmbito próximo da linguagem natural
indébito tributário?”. porque precisamos utilizar seus termos para definir o que queremos
Você seria capaz de dizer com os termos técnicos, o que significa, de outro lado, que
responder à pergunta nossa definição de um termo nunca será tão precisa que não possa
formulada sem conhecer ocasionar dúvidas, gerando dificuldades de interpretação.
a terminologia específica
do direito tributário?
Em um nível mais elevado de “tecnificação” ou “abstração”
vamos encontrar uma outra forma de linguagem que pretende
justamente acabar com essa dificuldade e solucionar o problema
da multiplicidade de interpretação, como é o caso da linguagem
matemática e/ou lógica, considerada formal porque se apresenta
como um conjunto vazio (pode ter qualquer conteúdo) de símbolos,
cujo valor é previamente fixado, como regras de cálculo, e pode ser
sempre manipulada de modo idêntico.

O problema que ela apresenta é que não serve para orientar as


condutas, ao menos isoladamente, porque precisaria ser traduzida em
termos da linguagem natural, voltando ao mesmo ponto inicial.

As linguagens técnicas e formais são úteis no sentido de que abreviam


um conjunto de raciocínios, tornando mais precisa e mais econômica
a menção a propriedades ou relações, seja pela dificuldade de fazê-
las em linguagem natural, dada a extensão da explicação, seja porque
34
são abstrações dificilmente identificáveis com termos de linguagem
natural.

A própria existência da distinção entre linguagens técnicas e naturais


nos remete ao nosso próximo problema, que é o da vagueza e
ambiguidade das expressões da linguagem e os recursos que são
utilizados para sanar as dificuldades ocasionadas pelo descompasso
entre o modo como as pessoas envolvidas numa relação de
comunicação compreendem as mensagens transmitidas e a produção
de novos sentidos para mensagens já interpretadas, redefinindo o seu
sentido.
35
Textura aberta
do direito
Considerando os planos da linguagem, podemos assim resumir:

• Sintática: relação dos signos entre si;

• Semântica: relação do signo com o seu referente, aquilo que


ele quer representar; e

• Pragmática: relação do signo com o seu usuário e seu


contexto de significação.

Já no que tange aos tipos de linguagem, assim fica de forma resumida:

• Linguagem natural: utilizada para a comunicação ordinária;

• Linguagem técnica: usada para mensagens especializadas,


que requerem precisão e economia; e

• Linguagem formal: utilizada para tornar claras as relações


abstratas entre as referências dos signos, como na lógica e na
matemática.

Percebe-se que, caso o Isso posto, temos a questão da univocidade e plurivocidade


vetor se dirija de cima linguística. Por univocidade, entendemos que um signo linguístico
para baixo, da linguagem tem apenas um significado e, por plurivocidade, quando são
natural para a linguagem
atribuídos vários significados a ele. Por exemplo, vários significados
formal, cresce o grau
a uma palavra, a uma determinada expressão. Na interpretação
de univocidade. Se for
de baixo para cima, da unívoca, temos uma só interpretação possível, na interpretação
linguagem formal para a plurívoca temos várias interpretações.
natural, cresce o grau de
plurivocidade. No direito, em específico no direito tributário, por mais que se utilize
a linguagem técnica, a plurivocidade é a marca inegável, como uma
das principais características desta linguagem jurídica. Portanto, não
36
tem como negar que a tarefa do intérprete é sempre um desafio e
requer cuidados e responsabilidade.

A característica da plurivocidade implica em considerar o


direito como tendo uma textura aberta, isto é, o fato de existir a
indeterminação linguística sempre presente nas normas jurídicas
confere aquilo que denominamos de uma textura aberta do direito
(HART, 1986).

Diante das classificações anteriores e da característica da linguagem,


de ter uma textura aberta devido à plurivocidade, uma pergunta pode
ser formulada e merece nossa reflexão: a legislação tributária deve ser
escrita em uma linguagem natural ou técnica?

Se a resposta for técnica, alcança-se um grau menor de plurivocidade.


Se a resposta for natural, cresce o número de interpretações possíveis,
grau maior de plurivocidade.

Uma outra pergunta surge: a quem se destina a legislação


tributária: ao técnico (com formação jurídica) ou ao contribuinte
(independentemente de sua formação profissional)?

É uma opção, uma escolha, entre se alcançar uma redução (pequena)


da plurivocidade no direito tributário ou negar a cidadania, pois o
pressuposto básico em um Estado de Direito é que a norma jurídica
possa ser inteligível pelo cidadão. Desde o advento das revoluções
burguesas (revolução industrial inglesa e revolução política
francesa), não deve integrar mais o horizonte de sentido do jurista
a possibilidade de exigir uma conduta de acordo com uma norma
jurídica que não possa ser entendida. Há muito a se pensar acerca da
produção legislativa no campo do direito tributário e a questão da
interpretação frente às características do nosso objeto de trabalho:
linguagem.

Acreditamos que, nesse momento, é importante fazer uma citação de


um dos maiores teóricos do direito acerca da univocidade, no caso,
Kelsen afirma:
37
Não se pretende negar que esta ficção da
univocidade das normas jurídicas, vista de
uma certa posição política, pode ter grandes
vantagens. Mas nenhuma vantagem política
pode justificar que se faça uso desta ficção
numa exposição científica do Direito positivo,
proclamando como única correta, de um ponto
de vista científico objetivo, uma interpretação
que, de um ponto de vista político subjetivo, é
mais desejável do que uma outra, igualmente
possível do ponto de vista lógico. Neste caso,
com efeito, apresenta-se falsamente como uma
verdade científica aquilo que é tão-somente um
juízo de valor político. (KELSEN, 1991, p. 365)

Essa citação é de suma importância, visto que a produção dogmática


na área de direito tributário no Brasil é construída principalmente
por advogados, e não cientistas. Não se menospreza o trabalho dos
profissionais da advocacia que publicam a maior parte da bibliografia
utilizada na formação dos nossos juristas, a questão é que não pode
preponderar como uma verdade científica, e aqui entendemos apenas
como discurso rigoroso, o que é apenas uma das interpretações
possíveis dos textos legais.

Em relação à interpretação e às possibilidades interpretativas, devido


à plurivocidade e à questão da moldura interpretativa, Kelsen expõe:

Se por “interpretação” se entende a fixação


por via cognoscitiva do sentido do objeto a
interpretar, o resultado de uma interpretação
jurídica somente pode ser a fixação da moldura
que representa o Direito a interpretar e,
conseqüentemente, o conhecimento das várias
possibilidades, que dentro desta moldura
existem. Sendo assim, a interpretação de uma
lei não deve necessariamente conduzir a uma
única solução como sendo a única correta,
mas possivelmente a várias soluções que - na
38
medida em que apenas sejam aferidas pela lei
a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas
uma delas se torne Direito positivo no ato do
órgão aplicador do Direito - no ato do tribunal,
especialmente. Dizer que uma sentença judicial
é fundada na lei, não significa, na verdade,
senão que ela está contida na moldura ou
quadro que a lei representa - não significa que
ela é a norma individual, mas apenas que é
uma das normas individuais que podem ser
produzidas dentro da moldura da norma geral.
(KELSEN, 1991, p. 365)

Com isso posto, e com a sugestão da continuidade da leitura de


Kelsen, Hart e outros autores indicados, passaremos em seguida ao
último ponto deste primeiro módulo.
39
Definição e
redefinição das
palavras da lei e
o senso comum
teórico dos
juristas
Com a compreensão de tudo o que foi exposto anteriormente,
cabe ainda esclarecer o que entendemos por senso comum teórico
dos juristas. Nesse sentido, nada melhor do que citar o autor desta
expressão, no caso, Warat:

Em suas atividades quotidianas (teóricas,


práticas e acadêmicas), os juristas são
influenciados por toda uma constelação de
representações e imagens, de pré-julgamentos
e crenças, de ficções verbais e hábitos de
censura enunciativa, de metáforas, de
estereótipos e de normas éticas que emolduram
e estruturam, de modo inconsciente, suas
decisões e suas práticas de enunciação. Pode-
se dizer que se trata aí de um protocolo de
enunciação sem quebra nem fissura. Trata-se
de uma quantidade extremamente elevada de
convenções lingüísticas que interiorizamos.
Encontramo-las já prontas para serem
utilizadas sempre que se torna necessário falar
espontaneamente ou compensar as lacunas da
ciência jurídica. Visões, fetiches, lembranças
anedóticas, idéias espalhadas, bem como
40
“neutralizações”, imiscuem-se no contorno
das palavras antes mesmo que elas se tornem
audíveis ou visíveis. Estes elementos orientam
o discurso e revelam alguns dos componentes
mais importantes da idéia de “senso comum
teórico dos juristas”. (WARAT, 1999, p. 714)

Lembram como tratamos anteriormente da interpretação e das


ideologias da interpretação, bem como da ideia de que toda a
interpretação está eticamente/axiologicamente comprometida?
Pois bem, sempre, nas atividades dos profissionais de todas as áreas,
se constrói, a partir de convenções, um conjunto de “verdades”, de
práticas, que não recebem nenhum questionamento depois de se
“naturalizarem”. Ou seja, um conhecimento “convencional”, que
é tomado como “natural” e que assim é e deve ser. Um horizonte
de sentido de certa forma opaco ou fora de foco e com suas
consequências na interpretação do direito tributário. Warat salienta
ainda:

Pode-se também afirmar que o senso comum


teórico dos juristas é uma paralinguagem,
que se localiza além dos significantes e dos
sistemas de significado dominantes, que ele
serve, de modo velado, para estabelecer a
realidade jurídica dominante. Os significados
são apenas instrumento de poder. Caso seja
aceita a idéia de que o direito constitui uma
técnica de controle social, não se pode ignorar
o fato de que este poder deve apoiar-se, para
assegurar sua conservação, em certos hábitos
com significados presentes de modo difuso na
rede das relações institucionais. (WARAT, 1999,
p. 714)

Nesse contexto, cabe lembrar, ainda, que como as palavras da


lei precisam ser interpretadas, há a possibilidade de se definir e
redefinir constantemente quando do seu uso. E, como as palavras
não possuem um significado por si só, e que só o adquirem pelo uso
41
em um contexto, é importante perceber como se opera o processo de
definição e redefinição.

Para definir, é necessária a escolha de um critério de relevância e este,


não podemos esquecer, é uma escolha com base axiológica de quem
está definindo o uso de uma expressão. Assim Warat explica:

Os lingüistas costumam dizer que definir é


tentar especificar a conotação de um termo.
Quer dizer, mostrar um critério através do qual
um rótulo pode ser aplicado a uma classe de
objeto. Definir é, portanto, realizar um processo
de classificação. (WARAT, 1999, p. 715)

Já redefinição é a alteração de um determinado critério de relevância


por outro, isto é, temos uma definição de uma expressão jurídica a
partir de um critério de relevância e a redefinimos pela escolha e
substituição por outro critério.

O processo de redefinição, a troca de critério de relevância,


normalmente é construído a partir do uso de variáveis axiológicas, do
recurso às teorias dogmáticas, de adjetivações desqualificadoras, por
intermédio da análise retórica dos fatos, por alterações sintáticas etc.
42
Síntese
No decorrer dos tópicos abordados nesta primeira unidade, que
contemplaram a importância e os desafios na interpretação do
direito; da diferenciação entre hermenêutica e interpretação; a
interpretação por parte da administração fazendária; a interpretação
da legislação tributária e princípios e sua estreita ligação com a
matriz tributária; os planos e níveis da linguagem; a textura aberta da
linguagem jurídica; o senso comum teórico dos juristas; os processos
de definição e redefinição da linguagem jurídica; foi possível observar
que interpretar é uma tarefa complexa e que, em um Estado de
Direito Democrático, é fundamental a participação de todos nós.

Para que possamos participar dialogicamente na interpretação da


legislação, em específico aqui, da legislação tributária, é necessário
perceber, internalizar, ou de outra forma, compreender, no sentido de
experiência vivida, a realidade social, política e econômica do nosso
país, tendo em vista que o senso (in)comum do jurista brasileiro
contribui sobremaneira para obliterar os processos cognitivos acerca
da interpretação e de sua importância como processo civilizatório.
Não basta “conhecer” as questões ligadas a aspectos da hermenêutica,
da semiótica, da filosofia da linguagem, da dogmática tributária, para
bem interpretar. É necessário “compreender” o que passa!

Esperamos que o conteúdo tratado nesta primeira unidade possa ter


contribuído para a nossa formação profissional!
43
Referências
bibliográficas
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