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Leighton
Henry Lau
It’s You
Termos e expressões:
— Outro problema que você joga para mim, Gael! Por que nunca
faz uma visita de cortesia entre velhos e centenários amigos?
— Esse caso é especial para nós dois, Isy. Uma pessoa por quem
nutrimos grande consideração sofrerá muito caso...
— Vai me ajudar?
— Sabe que não é correto usar a magia para interferir nos planos
divinos. Além disso, não quero me envolver em problemas com Ele.
— Ela inclina a cabeça para o alto ao mesmo tempo em que aponta
o indicador para o céu.
— Atravessando.
— Então não demore desta vez, não resta muito tempo. Minhas
poções não serão suficientes e não garanto que minha magia possa
suportar muito. — Sorrio em agradecimento. — Gael, não posso ser
vista por outros na minha forma real, muito menos com um
moribundo, os humanos não entenderão.
Isy concorda.
Jae Young
Coreia – 1995
Enfim entendi que nunca mais veria minha mãe nem receberia
seu abraço caloroso quando voltasse da escola. Não ouviria mais
sua voz suave enquanto cantava ou lia suas histórias preferidas para
mim e Jae Wook dormirmos. Não escutaria o doce som do piano
enquanto ela dedilhava as teclas alegremente, a música ecoando
pela casa nos despertando nas manhãs de sábado. Não a veria
cultivando as preciosas flores no jardim, nem saborearia mais o
kimchi que ela sempre fazia questão de preparar para nós. A cozinha
seria um completo vazio sem seu balançar enquanto preparava
nossas refeições... Meu pai agora iria trabalhar com a gravata
desarrumada, sem tê-la para cuidar dele. Seu semblante sério se
desfazia ao vê-la descendo a escada e quando tocava sua face ao
se despedirem. O sorriso dela irradiava amor e nos contagiava...
Agora, em nossos dias, haveria uma constante escuridão. Perceber
isso quebrou-me por dentro em mil pedaços.
Meu pai quase não se movia, não comia nem bebia. Jae Wook
chorava, mas não entendia o que estava acontecendo.
Não era justo conosco não ter mãe como as outras crianças. Por
que ela tinha que morrer agora? Por que os médicos não cuidaram
dela? Por que não a curaram? Os médicos estudam para ajudar as
pessoas a melhorarem, ficarem saudáveis, então, por que não
salvaram minha mãe?
Ouvir as condolências das pessoas só me deixava mais furioso.
Não me importa o que elas pensam, elas não sabem o que é perder
alguém, não entendem que eu não queria que ela descansasse, eu
ansiava por ela viva, saudável, comigo, cantando, me colocando
para dormir, me arrumando para a escola, abraçando-me e até
ralhando quando eu cometia erros...
Não sei como fui parar na minha cama, acho que meu pai me
levou. Acordei com som estridente da voz da minha avó.
— Estar ao lado dela diminuiu a dor de Kim Soo Min mais do que
os medicamentos?
— Bruxa! Bruxa!
Ela se volta para mim e assim que chego no último degrau, Lee
Hye Ji me alcança, batendo com sua bengala nas minhas pernas,
bem atrás dos joelhos. Caio com as mãos no chão. As lágrimas
param e, mesmo com a dor latejante da pancada, não recuo. Tomo
impulso e me levanto.
— E sobreviverá como?
— Isso é problema meu. — Meu pai passa o braço ao meu redor,
apertando-me bem junto de si. Com a outra mão, aponta para a
porta.
Eu, como filho mais velho, devia respeitar e ser exemplo para meu
irmão. Inspirei com vigor e curvei a cabeça. Meu pai pegou Jae Wook
no colo, apoiando em seu braço direito, e com a mão esquerda
enlaçou a minha firmemente. Sorriu desta vez com vontade. Retribui
o gesto confiante.
— Não.
— Por que?
— Como filho mais velho, seu avô sempre cumpriu com muita
obediência o que o pai dele determinava e acatou as ordens,
permanecendo na Coreia.
Olhei para meu irmão ele não ouviu a história, não inteiramente
adormeceu com a cabeça apoiada nos ombros do meu pai.
Uma mulher de estatura mediana, corpo arredondado, cabelos
amarelos e pele branca, se aproximou. Ela pronunciou algo que não
compreendi, assim como meu pai. Então esticou o braço, apontando
para a frente e falando em inglês desta vez. Meu pai curvou-se
algumas vezes, sorrindo para a mulher ela não nos conhecia, mas ao
observar que meu pai estava há muito tempo de pé com uma criança
no colo, nos encaminhou imediatamente para o atendimento. A
mulher ainda se ofereceu para segurar meu irmão, o que papai
recusou. Não a conhecíamos, ele ficou receoso de que ela roubasse
Jae Wook.
Tio Park Soo Hyun tem os cabelos cinza e algumas rugas não
tantas quanto o harabeoji tinha quando faleceu. As bochechas cheias
e os lábios grossos são exatamente como os do meu avô, mas ele
sorri mostrando todos os dentes, fazendo seus olhos quase se
fecharem, algo que nunca vi em harabeoji.
— Annyeonghaseyo, samchon.
Caminhamos até o carro com papai ouvindo tio Park Soo Hyun
explicando sobre como as coisas são por aqui.
Sua casa é grande. Não como a nossa, em Seul, mas parece ser
um padrão aqui. Tem uma parte subterrânea, onde fica a garagem, e
outro espaço separado que não entendi direito para o que serve. No
térreo há duas salas bem espaçosas, uma cozinha grande, dois
quartos com banheiros e ainda um lavabo — que o tio explicou que é
um banheiro para visitas.
Logo que tio Park chegou ao Brasil, foi para o interior trabalhar
com agricultura, mas ele não entendia nada sobre plantação, então
veio para São Paulo.
Primeiro trabalhou como costureiro em uma pequena confecção
pertencente a uma família de judeus, foi assim que aprendeu a
profissão.
Anos depois, ele abriu sua própria fábrica têxtil, vendendo roupas
femininas baratas.
Agora mudou o foco da sua indústria e passou a produzir roupas
de alto padrão; meu pai fará o mesmo.
O tio alugou para o meu pai um imóvel na mesma localidade de
seu empreendimento, a Rua Aimorés. As lojas são mais bonitas, com
roupas que parecem de revista expostas em suas grandes vitrines,
diferente de outros comércios abarrotados de gente pelas calçadas,
prédios velhos quase grudados e produtos mais simples no mesmo
bairro, entretanto, parece ser outra localidade.
Tio Park nos guia até a sala de jantar. Ana senta-se entre Jae
Wook e eu. Ela aprendeu coreano enquanto ensinava português
para outras crianças que migraram para cá como nós. Os sons de
algumas palavras são incompreensíveis, muito difíceis, embora
conheça o alfabeto devido às aulas de inglês, a sonoridade e a
escrita não se parecem em nada.
— Mas abeoji...
— Não...
— Mas...
Ele se levanta, espalhando mais uma vez meu cabelo, e sai sem
dizer mais nada.
Jae Young
Com a ajuda de tio Park, meu pai levou mais dois meses até
encontrar a casa do jeito que ele queria. Nós três escolhemos juntos
a decoração. Eu sugeri pintar as paredes de fora de azul, a cor
preferida da minha mãe.
— Abeoji! — gritei.
Puxei o lençol até cobrir a cabeça. Apertei com mais força a foto
da minha mãe, até adormecer.
*
Vou para o banheiro, lavo o rosto com água fria, só então sigo
para o café.
Sentados à mesa, meu pai, Jae Wook e Ana. Meu pai ainda está
aguardando a regularização da nossa permanência no país, então
não estamos frequentando a escola; as aulas permanecem em casa.
Ana corre até ele e, antes que ele acerte o outro lado, segura seu
braço.
Elleanor
O sol atinge meus olhos assim que levanto a cabeça para o alto,
na tentativa de ver nossa nova casa por inteiro. Papai se abaixa,
encostando os joelhos no chão, passa um dos seus braços em volta
do meu corpo, me fazendo ficar bem colada nele, levanta o outro e
aponta para a frente da casa.
Certa vez, ouvi papai explicando para mamãe que são amigos
imaginários e que toda criança da minha idade tem um. Só que
nenhuma criança que conheço vê os invisíveis. Além do mais, eles
surgem sem que eu os invente; eu não quero ser amiga deles.
— Por que não veriam você? — Ele me encara com os olhos bem
grandes.
— Está com fome? Sua mãe não teve tempo de preparar almoço,
pois está organizando a casa. O que acha de almoçarmos
sanduíches?
— Perfeito, papai! — Dou um beijo estalado em sua bochecha. —
Quero com bastante queijo e ketchup.
Uma mão bate no meu ombro e uma voz cochicha no meu ouvido.
— Papai! Papai!
— Que...quem é você?
— Eu? Hum... não me lembro... — Coça a cabeça e encolhe os
ombros. Suas roupas estão sujas de terra, têm manchas de sangue
e um rasgo na perna direita. Os braços estão feridos. Meu coração
acelera mais a cada novo machucado que noto em seu corpo.
Sufoco.
Jae Young
Desde o casamento do meu pai com Ana, as horas dos meus dias
são gastas no meu quarto, no quintal e no meu refúgio secreto. Não
vou mais aos encontros na igreja de São Kim Degun.
Ana tira a mão da cintura levando até minha testa, dou um passo
para trás antes que me alcance. Ela abaixa a mão levantando a
sobrancelha. Inspira profundamente.
Ela olha para os pés movendo o corpo. Assim que noto espaço
suficiente para minha passagem, corro, saltando os degraus da
escada de dois em dois. Paro no topo e observo rapidamente: ela
está sentada ao lado do meu irmão, alisando seu cabelo. Jae Wook
deita a cabeça sobre suas pernas.
*
Os olhos coçam e a boca se abre em um longo bocejo, estou
debruçado sobre o livro de português, aberto desde o término do
almoço, as letras se embaralhando, os ombros doloridos.
Espreguiço-me na cadeira. O relógio na parede acima da
escrivaninha marca quatro horas, meu pai ainda demorará a chegar
do trabalho e Jae Wook provavelmente está jogando vídeo game.
Esse é o horário que Ana começa a preparação do jantar, ela nunca
percebe quando saio.
Afasto uma mexa do seu rosto com a ponta dos dedos. Apesar do
formato arredondado e das manchinhas perto do nariz, ela até que é
bonita. Tem lábios proporcionais e o nariz fino.
Ela se mexe e meu braço reage ao mesmo tempo, voltando para
a lateral do meu corpo.
— O que é isso?
Elleanor
— Não estou só, estou com você. — Sorrio satisfeita por ter
pensado nessa resposta. Não posso contar que fugi do menino
invisível. Ele balança a cabeça e acho que devolve o sorriso, pois os
lábios se curvam um pouco. Será que ele não aprendeu a rir? Ou
está triste?
— Verdade.
— Menino machucado?
— Hum... Fantasmas?!
— O que é um fantasma?
— São pessoas que não vivem mais neste mundo. Como minha
mãe...
— Não. Mas acredito em você... Não acho que eles te farão mal.
— Mas eu não quero vê-los. Nem falar com eles. Sabe como
posso mandá-los embora? — Ele bate de leve na minha cabeça.
— Jura?
— Sim, eu juro.
Ele pega minha mão e fecha os dedos, deixando apenas o dedo
mindinho e o polegar soltos, repete a mesma coisa com a mão dele.
O que ele está fazendo? Meus olhos grudam em nossas mãos,
prestando atenção a cada movimento. O menino dos olhos puxados
junta seu dedo mindinho no meu inclinando sua mão até nossos
polegares se tocarem.
— Precisamente.
Embora ele pareça mais um adulto do que uma criança, acho que
posso gostar dele com facilidade. Pela primeira vez, não quero me
esconder nem correr para longe e meu coração pula alegre como as
batidas de uma música de festa.
Algo que não sei explicar toma conta de mim e me impele a correr
até ele. Quando me aproximo o suficiente, impulsiono o corpo com
os pés, beijando meio sem jeito o seu rosto do lado esquerdo, perto
do queixo. O máximo que alcancei.
Antes que ele brigue comigo, corro para dentro de casa saltitando,
um sorriso enorme que não quer desaparecer se forma, até dar de
cara com mamãe furiosa — seu rosto assemelhava-se a um dragão
pronto para cuspir fogo em mim.
Elleanor
— Correto, papai!
Ele sai puxando a porta atrás de si. Fecho bem os olhos, embora
o ritmo acelerado do meu coração me deixe agitada — contrariando
os bocejos — mantendo-me acordada.
Algo toca o tecido, agarro suas pontas com força, mas seja lá o
que for, é mais forte do que eu e o retira de mim. Mantenho os olhos
apertados o máximo que posso.
— Por que está atrás de mim? — A voz sai tremula e baixa, quase
um sussurro.
— Eu não sei para onde ir. Não tenho mais ninguém para me
ajudar. Eu... Nem ao menos sei onde estou... Você é a única pessoa
que me vê. Por favor...
— Park Jae Young! Park Jae Young! — repito cada vez mais alto.
De repente, escuto o ruído de algo que se assemelha uma porta se
abrindo.
Outro barulho, mas dessa vez parece com uma pancada no chão
ou parede. Levanto a cabeça apressada, o rosto molhado pelas
lágrimas, e encontro Jae me encarando com os olhos arregalados.
Todo o corpo vira gelatina, as órbitas queimam, jorrando água
salgada como uma cachoeira.
— Por que chora? — Ele alisa meus cabelos. Sinto seu coração
bater apressado. Será que eu o assustei? O afasto com cuidado até
que seja possível observá-lo.
— Acha?
— Um pouco...
— Não. Nem sabia que eu tinha que ir para lá. — Seus olhos
grandes brilham iguais aos de um filhote de cachorro.
— Mas acho que você não tem escolha... Não fique triste lá no
céu, existem outras pessoas boas como minha avó e a mãe do meu
amigo. Com certeza elas cuidarão de você.
— Ei! Garoto! — Ele para e olha para mim. — Desculpa por não te
ajudar antes. — Meu coração se comprime e os olhos ardem,
enchendo de água.
— Você me ajudou agora. — Sorrindo, ele volta a caminhar, sua
imagem esmaecendo até desaparecer em meio a um brilho forte.
Uma lágrima escapa, escorrendo pela minha face.
— Cumprir aquilo que nos é dado faz bem, por isso você está
assim.
— O quê?
Elleanor
— Não. Nadinha.
— Isso é bom?
— Por que não me deixa ir, quero ganhar pelo menos uma vez!
Você só favorece o Wook! — Ele vira o rosto para mim com o dedo
indicador sobre a boca.
— Shh! Ele te ouvirá. — Confere se Wook está por perto. — Se
ele perder, vai chorar, então Ana vai aparecer...
— Está bem. O que quer fazer? — O que pode ser divertido sem
termos que deixar Wook ganhar sempre? Mordo os lábios franzindo
a testa ao mesmo tempo que meu pé direito bate na parte cimentada
na lateral da casa. Já sei!
— O que estava fazendo, Jae? — Ele não olha para mim. Passa a
mão na cabeça, segura minha mão e com a outra empurra o chão
até seu corpo ser completamente içado.
Disparo logo atrás dele, que ri saltitante assim que bate a mão no
muro antes de nós dois. Jae chega depois de mim, ainda com as
bolinhas rosadas na face, — parece que comeu pimenta — rio
abaixando a cabeça.
— Sim.
— Obrigada, tio. Mas meu nome é Elleanor Arantes. Não tem Ssi.
— Todos riem, até Jae, que é mais contido.
— Sim.
— Estou, Lia.
— Noona, por que você fica mais com o hyung do que comigo? —
O que eu digo? Viro para Jae com a boca e os olhos abertos.
— Vou casar com a noona quando crescer, igual papai casou com
você. — Algo dentro de mim se agita de forma desconhecida, mas
muito intensa. Volto-me para Jae. Só consigo olhar para ele, que se
esquiva, abaixando a cabeça e escorregando o corpo, afundando no
sofá. Meu corpo esquenta por inteiro, a respiração acelera mais e
mais.
— Querido, você ainda é muito novo para pensar em casamento.
— Ana se vira para mim com o semblante indecifrável. — Está
assustando sua amiga. Isso é assunto de adulto. — Pisca para mim.
— Mas se ela gosta de mim, tem que casar comigo! E não pode
ser amiga do hyung nem de mais ninguém! — Empurra Ana, que
arregala os olhos e leva a mão sobre o peito. Wook sobe a escada
saltando os degraus.
— Jae Wook! — Ana grita, mas ele não olha para trás. — Wook
está com ciúmes de você, Elleanor, ainda é muito pequeno e não
entende. Não se preocupe com essa história.
— Jae, eu...
Eu não vou casar, muito menos com o Wook! Mas Jae ficou
chateado, provavelmente pensa que aceitei. Eu devia ter respondido
que nunca me casarei. E se me obrigarem a casar com ele? Não
mesmo, nunquinha...
Com cócegas nas bochechas, espio Jae, que, com seu jeito sério,
sorri com os olhos. Esse simples ato isolado espanta qualquer
desarranjo em mim, mental ou não.
Tia Ana leva Wook nos braços, dormindo e de boca aberta. Ela o
coloca com cuidado no sofá, cobrindo-o com uma manta xadrez. Eu e
Jae sentamos no tapete felpudo em frente a uma espécie de lareira;
não é exatamente igual a que tem nas casas dos filmes, mas dá para
colocar um pouco de lenha e acender fogo. Papai logo entende que é
isso o que desejamos, deixando para terminar de organizar o restante
das coisas depois de colocá-la para funcionar.
O dia está nublado. Um pouco frio. Mamãe traz duas canecas com
chocolate quente para nós. Jae me entrega a dele e corre para o
quarto, voltando de lá com uma caixa.
Assim que terminamos, mamãe e tia Ana juntam a louça e nós três
saímos para brincar. Seguimos a trilha até papai e tio Jung. Os
meninos se animam e pegam uma vara cada. Sento ao lado do
papai, imitando-os. Ninguém abre a boca, nem o som da respiração
deles posso ouvir.
— O que foi, Elle? Não quer pescar hoje? — Papai passa o braço
por meus ombros.
— Por que não volta para a cabana e fica com a mamãe, querida?
— E Wook?
— Ele está muito concentrado, competindo com papai. Não viu
quando saí. — Quero grudar no braço do Jae como um gato quando
passa entre as pernas e ronrona pedindo carinho. — Peguei um
sinalizador, fósforos, essas fitas para amarrarmos nos galhos e
marcar o caminho e... — Jae abre mais seu sorriso e tira de dentro da
mochila um saco de biscoitos. Balança na frente do meu rosto. —
Então, vamos?
Após o que acredito ter sido um minuto é que ele nota que não
estou ao seu lado. Vira-se como uma flecha. Ao pôr os olhos em mim,
corre, jogando-se de joelhos ao solo.
— Exato. E por não ter nenhum adulto por perto. — Tiro as mãos
dele da minha face e olho para o chão. Eu gosto que ele cuide de
mim. Nunca tive amigos antes dele surgir, mas... Por que essa
sensação é ruim?
— É por isso que às vezes esqueço que você é mais nova do que
eu. Sábia Elleanor! — Ergo meu rosto até conseguir encarar seus
olhos puxados.
— Não. Apenas não sou o único que age como adulto. — Sorrio e
volto a prestar atenção na chuva. As bochechas queimando e o
coração saltando forte. Jae me comparou com ele! Iguais! Um suspiro
longo e profundo escapa. Os lábios permanecem esticados.
A chuva para.
Jae vira para trás, seus olhos e boca abrem em câmera lenta. Ele
joga-se no chão curvando-se sobre mim que estou sentada.
Ele não responde, apenas ri, então começa a riscar com força o
tronco da árvore ao nosso lado. Tento ver o que ele desenha ou
escreve, mas seu corpo esconde totalmente o que quer que seja.
Alguns minutos depois, ele finaliza sua arte. Abaixa de costas, com
um dos joelhos apoiados no chão.
— Me dê sua mão.
— Está vendo?
Jae Young
Ana enche meu copo com leite. Meu irmão apenas me encara,
imóvel em sua cadeira, parece temer olhar para qualquer outro lugar,
buscando respostas em mim, que igualmente não tenho ideia do
motivo daquela nuvem tempestuosa pairando sobre nós.
— Eu juro que não é o que meu coração deseja, filho, mas sinto
que você sofre por estar longe de casa, pelo meu casamento... Pela
falta de sua mãe.
— Já me adaptei...
— Jebal, Abeoji...
— Era só isso?
Não espero por Ana e Jae Wook. Caminho pela rua sob as gotas
de chuva que caem agora mais calmas, entretanto mais tristes. As
pessoas ao entorno são como um borrão, os olhos quase
transbordando deixam tudo embaçado.
Encaro o céu com suas densas nuvens cinza. Elas parecem tão
pesadas! Assim como eu agora. Um buraco profundo abre sob meus
pés e o peso do meu corpo força-me para seu interior. Os joelhos
não resistem e se dobram até tocar o chão.
— Omma, por que você tinha que morrer? Wea? — A chuva
torna-se novamente pesada, rio com ironia. — Até o céu está contra
mim!
— Não. — Ela abre a boca, mas não emite nenhum som. Abaixa-
se, entrelaçando seu braço ao meu, elevando-me do chão.
Decidi não falar nada para Elleanor nem para nenhum dos meus
amigos da escola. Passei os dias restantes na companhia dela e do
meu irmão, realizando suas vontades.
Toda noite, ao deitar, o peso da proximidade da partida deixava-
me exausto.
Tomo meu último café na presença do meu pai e meu irmão. Ana
está calada. Há dois dias que ela não dirige a palavra ao meu pai.
Não gosto dela, mas admito que é uma mulher justa e nunca me
tratou como a senhora Lee Hey Ji. Finalizo o café e retorno ao quarto.
Despeço-me daquele lugar. Pego a caixa com fita rosa e corro pelos
degraus, avançando pela porta e ignorando o chamado do meu pai.
— Elleanor! Lia!
— Não vai para a aula hoje? Essa roupa parece de festa. Está
bonito.
— Uma bailarina!
A saliva trava e não consigo engolir. Expiro com força. Tia Marta
desliza as mãos, descendo e subindo nos ombros de Elleanor. Ela
joga a cabeça para cima, analisando o rosto da mãe e voltando-se
para mim.
Se não fosse por tia Marta, que agiu rápido e com destreza, a
caixinha de música teria ido ao chão, se despedaçando como eu.
— Não pode ir! Você prometeu! Até jurou com os dedos, lembra?
— Ela grita. Marta tenta afastá-la de mim. Em vão. Elleanor me
aperta com muita força, que eu nem sabia que ela tinha.
— Perdão, Lia, por não cumprir meu juramento. Não foi minha
decisão. Eu devo obediência e respeito ao meu pai...
— Tio Jung? Ele que está te mandando embora? Eu falo com ele,
Jae. Vou pedir para ele deixar você morar aqui. Pode ficar na minha
casa. Não pode, mãe? — Vira-se outra vez para Marta, que apenas
meneia a cabeça.
— Gostaria que você pudesse convencê-lo, Lia. Só que o mundo
dos adultos não funciona assim. É mais complicado do que imagina.
— Elle, querida, você quer que Jae seja feliz? — Lia sacode a
cabeça afirmando. — Então não chore, pois assim ele se
entristecerá. A amizade de vocês é muito forte e bonita, não se
acabará por isso. — Seca o rosto dela. — Lá Jae estudará em uma
escola muito boa, e quando crescer, ele voltará e poderá trabalhar no
que quiser. Será importante para ele.
— Prometo.
Solto nossas mãos, dou um último abraço em tia Marta. Ando até
o portão seguido por elas.
— Komawo!
— Kamsahamnida.
Meu corpo deixará este solo, mas meu coração ficará naquele
terraço onde vi as estrelas acompanhado da pessoa mais especial
que conheci até hoje.
11
Elleanor
Paro atrás dele. Inspiro fundo. Assim que expiro, toco seu ombro.
Ele movimenta-se devagar e a cada traço de seu rosto que surge,
mais se agitam minhas entranhas. Aquela pele impecável, sorriso
contido e olhos puxados amendoados não me deixam dúvida: Ele
voltou! Voltou para mim!
— Joesonghabnida, Elleanor!
— Jae Young! Não! Não! Por favor! Não o tire de mim assim! Jae!
— Gael, o que significa esse sonho? Por que sempre acabo aqui
na fronteira?
— Eu sei. Mas...
— Mas?
Gael me segura de frente para ele com seus belos olhos fixos em
mim. Penso que eles podem ver muito além do corpo humano, que
enxergam nossa alma completamente, com todas as nossas
cicatrizes, as que recebemos e as que causamos em nós mesmos e
nos outros.
O relógio marca 4h. O sono se foi. Embora meu corpo implore por
descanso, a mente não aceita. Deixo o quarto, descendo as escadas
com cuidado para não acordar ninguém, seguindo direto para a
cozinha.
Todas as vezes que eles vêm me visitar ou que vou para lá,
sempre tem frutas, legumes e verduras frescas e sem agrotóxicos
para mim. Doces de mamão, abóbora e laranja, geleias e massas
caseiras, tudo feito com carinho, amor e saúde, algo que, para
mamãe, é importantíssimo. E o sabor? Ah! É inigualável.
Desvio os olhos para minha mão, que segura o pão com geleia,
solto-o por um momento e coloco uma mexa desprendida de cabelo
atrás da orelha. Não pretendia contar a ela, no entanto, nesses anos
todos de amizade, Mari reconhece cada expressão minha. Somos
irmãs, mesmo não compartilhando os mesmos pais ou qualquer
traço de DNA.
Mari pousa sua mão sobre a minha; elevo o rosto até encontrar
sua face.
Mari deixa sua louça sobre a minha, parando ao meu lado. Põe a
mão direita em meu ombro.
Marcus não quis morar conosco por ter sua vida emocional
estabelecida, mas mora no mesmo prédio, com o marido André.
Ela ama o sol, também não é para menos, ela é como o próprio
Sol para todos nós, iluminando nossas vidas. Embora tenha se
machucado inúmeras vezes em seus relacionamentos amorosos,
nunca permitiu que isso a definisse nem desistiu do amor.
Mari tem garra, e se ela coloca na cabeça que fará algo, pode ter
certeza de que conseguirá. Essa sua determinação também reflete
em mim, pois ela não me permite desistir de nada. E ser for
necessário se transformar em guincho para me fazer ficar em pé, ela
o faz.
Jae Young
Coreia
Senhor Choi sai do carro e anda a passos largos até abrir a porta
para que eu possa deixar o interior do veículo. Eu executaria
perfeitamente bem essa simples tarefa, mas não quero prejudicá-lo.
Lembro-me bem das reprimendas que levou nas vezes em que eu
recusei seus serviços.
— Kamsahamnida!
— Aceite minhas boas-vindas, Park Jae Young. Não fui uma avó
carinhosa ou mãe exemplar...
Embora toda vez que olhe para Lee Hye Ji eu escute tudo o que
ela proclamou contra minha mãe logo após nos despedirmos dela
para sempre e sua voz ecoe me deixando tonto, ainda assim não
consigo expressar tudo o que comprime meu peito.
Se ao menos tio Park Soo Hyun ainda estivesse por perto, ele
poderia ajudar, mas três anos depois que me trouxe de volta para cá
ele faleceu, e a esposa e os filhos deixaram São Paulo rumo à
Coreia, como eu.
— O que ela tem? Por que ele não me ligou? E ainda te pediu
dinheiro?
— Eu também...
— Não fique com a culpa. Você ainda pode se entender com ela.
Aceite-a como a mulher do seu pai, mãe do Jae Wook.
E ainda tem outra questão que nunca resolvi, não por completo.
— Abeoji?
Elleanor
Entro no quarto chutando os chinelos dos pés, que voam para cair
em qualquer lugar. Sigo para o banheiro me livrando das peças do
pijama, que ficam pelo piso. Tomo uma ducha fria, a fim de me
ajudar a acordar e também evitar demorar mais do que o necessário
ali.
Ela traz essa essência para dentro da empresa, com seu gosto
requintado e autêntico. Ama mudar a cor dos cabelos, atualmente
está com um corte Chanel com as pontas azuis.
— Elle, não tem mais o que descontar esse mês, ficará sem
salário, querida. — Escondo minha face com as mãos.
— Ei! Não precisa ficar triste, Elle. — Marcus passa o braço por
meus ombros. — Mariana está de mau humor porque certo alguém
prometeu entrar em contato e até agora... — Mari lhe dirige um olhar
mortal, a sensação que tenho é de que Marcus pode virar cinzas em
poucos segundos.
Encaro Marcus.
— Alguns.
— E?
— E a agência?
— Não perguntei o que você acha que Jae está ou não fazendo.
Ele pode não gostar de Ana, mas ele te ama. Tenho certeza de que
ele te apoiaria.
— Me solta!
— Você enlouqueceu?
— Socorro! Socorro!
Ele solta meu ombro e leva a mão à minha boca. Antes que a
cubra, elevo minha mão aberta, tentando alcançar seu rosto. Ele
desvia.
— Nunca mais repita isso... Volte para casa e fique com Ana.
Aproveite para dormir um pouco e, principalmente, colocar sua
cabeça no lugar.
Talvez eu seja uma idiota por não ver o óbvio. Por mais que Jae
não tenha cumprido sua promessa, não o enxergo como uma pessoa
ruim. Apenas seguimos direções diferentes do que imaginamos
naquela época.
14
Jae Young
O vento frio bate contra meu rosto assim que saio do carro. Inalo o
ar profundamente. Ajeito o cachecol enquanto o taxista abre o porta-
malas e retira minha bagagem. Desta vez, Lee Hye Ji não se
intrometeu.
Você ainda pode desistir, Jae Young! Não! Não posso continuar
fugindo! Wook precisa de mim! Hora de assumir as consequências
pelas escolhas que fiz independente do quanto isso me custará.
— Hyung!
— Não me interrompa.
— Sei dos seus sentimentos por Ana, e por isso mesmo estou
profundamente desapontado, pois mesmo que eu não nutra toda
essa consideração, reconheço minha responsabilidade para com ela,
por ser esposa do meu pai e por toda dedicação e cuidado com
vocês dois durante esses anos. Jamais me omitiria.
— Não precisa voltar, Park Jae Young! Não sou criança. Toquei a
agência sem você até hoje, ela cresceu sob o meu comando. Ainda
acha que não tenho capacidade? — Ouço as batidas dos seus pés
contra o piso, além da sua tonalidade alterada. Jae Wook não perdeu
sua essência de criança mimada, se não for como ele quer, sai do
controle.
— Não é verdade...
— Confusa wae? Vocês não se amam? Pelo menos foi o que você
afirmou. — Wook emudece por alguns segundos. Meu coração pulsa
de maneira errônea. Será que eles terminaram? Isso justificaria essa
atitude dele. Essa simples hipótese acorda o vulcão adormecido em
mim.
— Uri gwaenchanha.
— Se estão bem, sua preocupação deveria ser a saúde da mulher
que você chama de mãe. — Wook se cala. — Amanhã
conversaremos melhor. Ficarei no Palácio Tangará até encontrar uma
casa adequada. Quando se sentir à vontade, vá até lá.
— Sim.
Elleanor
Só mais um passo.
Um vento forte começa a soprar contra mim. Seu sorriso
desaparece assim como a clareira. Infelizmente sei o que isso
significa: estamos à beira do abismo.
O vestido leve cobre seus pés. Ele é de um tom rosa bem claro
com a barra alaranjada. Em seus braços, pulseiras de flores naturais:
margaridas brancas, pequenas rosas vermelhas e algumas violetas.
Na lateral direita da sua cabeça, um lindo girassol serve como
enfeite.
— Nunca pensou que sua mãe fosse uma bruxa como você, Elle?
— Gael ri.
Jae Young
Solto o ar.
— Park Jae Young! Maldo andwae! Que outro termo devo usar
para chamá-lo de irmão? Brother? Já sei! Mano soa ainda melhor,
concorda?
— Vamos com calma, Park Jae Wook. Voltei por vocês dois. Sei
da minha responsabilidade.
*
Após o banho, o corpo parece um pouco mais leve. Com a toalha
na mão esquerda secando a cabeça, abro uma das malas
procurando algo confortável e fresco para vestir. Mais outra coisa
para me acostumar novamente: o clima.
Elleanor
Assim que chego na portaria, sou atingida por uma forte dor de
cabeça. Cenas desconexas piscam diante dos meus olhos, como
aqueles painéis luminosos de anúncios no alto dos grandes edifícios.
Apoio-me no balcão da recepção para não cair. Pego o
documento de identidade e entrego para a mulher com semblante de
tempestade que mal olha para o meu rosto. Será que ela está de
TPM? O que você tem a ver com isso, Elleanor?
Ele sinaliza para uma de suas assistentes, que passa seu braço
no meu, arrastando-me para dentro da sala. Troco de roupa e sento
na cadeira de frente para o espelho. Enquanto a maquiadora
trabalha na minha face, permaneço com a imagem do homem
misterioso. A forma como colocou as mãos nos bolsos... Não pode
ser outra pessoa, impossível tal coincidência!
— Elleanor, se continuar se mexendo desse jeito, não consigo
finalizar a maquiagem hoje. É a quarta vez que preciso refazê-la. —
Mordo os lábios com força, evitando proferir palavras desagradáveis
para a mulher que não tem absolutamente nada a ver com minha
irritação.
Wook vem até mim outra vez, segura meu rosto com as mãos,
corrigindo minha postura.
Jae Young
Mal consigo lidar com tudo o que se passa na minha mente, quem
dirá com esse tornado arrancando tudo do lugar, tudo o que nem
estava bem fundado.
Tocar sua pele e encarar seus olhos, que ofuscam até mesmo as
esmeraldas que emolduram sua face, me faz desejar o que não é
para mim. Não podia assisti-la cair e se machucar.
Sesang-e!
Assim que seus pés tocam o chão, os braços se cruzam. Ela solta
o ar e o sorriso desaparece, transformando-se em uma enorme
carranca. Tento engolir a saliva, mas não passa nada pela garganta.
Questiono-me se serei capaz de manter o corpo em pé ou se vou
desmoronar em poucos segundos.
Respiro fundo.
— No mesmo lugar que você a deixou. — Ela tem razão, não sei
fazer piadas. E fui eu quem a deixou... Minha cabeça pesa, mirando
o chão. Passo a mão pelo pescoço.
Wook cerra os punhos com tanta força que a cor da pele arroxeia.
Inspira o ar profundamente, desviando o rosto dela e de mim.
— Sei que está furiosa, mas aqui não é um bom lugar para se
despir. Quando recobrar seu juízo, provavelmente se sentirá mal por
tal atitude.
— Você tem certeza de que é uma boa ideia beber hoje, Lia? —
Ela se debruça sobre a mesa apoiando o queixo nas mãos.
— Não foi o que eu falei. Por favor, não distorça as coisas, Lia.
Ela ingere quase toda a dose do seu copo de uma vez e limpa a
boca com o dorso da mão. Seus movimentos estão amplos e
exagerados. Ela parece ter chegado ao seu limite, entretanto, está
inacessível.
— Não faça mais isso, por favor. Não haja como se você se
importasse comigo, quando não é verdade. — Me afasto com o
estômago nauseado. Outro golpe certeiro, daqui a pouco vou à
nocaute.
— Eu me importo.
— Kajima! Não será bom para você nem para ela... — Rio sem
vontade.
— Quantas vezes eu tenho que repetir que você não pode beber,
Elleanor? Dessa vez realmente passou do limite, está vendo o Jae
Young. — Bate com a mão direita na lateral da testa. Pisca, rindo, e
esfrega os olhos.
— Eu te levo para casa, vamos? — Ofereço o braço. Ela balança
a cabeça em negativa. Aproxima o rosto, esforçando-se para abrir
mais os olhos. Coça a cabeça. Rindo, bate com as duas mãos perto
dos meus ombros.
— Hum.
Elleanor
Uma faixa luminosa atinge meus olhos, e por mais ínfima que
seja, é o suficiente para me despertar. Levanto as pálpebras
vagarosamente, nunca foi tão difícil abrir os olhos, nem tão doloroso.
Ardem. As imagens são turvas e confusas. Não permitem reconhecer
onde estou, entretanto, não me incomodo, pois meu corpo pede que
eu continue na mesma posição.
— Aceito.
— Quem deixou isso aqui? Não sei nem como cheguei em casa...
Certamente não estava raciocinando o suficiente para cogitar que
acordaria tão mal... Wook? Não... Ele não pensaria nisso, não cuida
nem da própria ressaca. Será que... Jae!?
— Elle, vou repetir só mais uma vez: deixe seu passado para trás.
Isso é só uma ilusão de menina. Ele foi seu primeiro amor e você o
idealizou até hoje. — Mariana vez ou outra olha para mim, dividindo
sua atenção com o trânsito, tentando ser o mais suave possível, já
que quase vomitei duas vezes em seu carro.
— Então perdoa logo seu coreano encantado e lute por ele! Elle, a
felicidade só depende de uma única pessoa: você mesma!
— Não sou confiante nem linda como você. Não tenho sua altura,
postura, pele perfeita e...
— Tchau, Mari.
“... Mianêyô! Não devia ter feito isso com você inconsciente. Eu
quero escolher o que é certo... Contudo, te ver assim me faz
duvidar... O que eu faço, Elleanor?... Jae Wook é minha única
família, não posso perdê-lo também. Você... É a mulher...”
“... Estarei ao seu lado sempre, mesmo que não perceba e não
saiba...”
A frase ecoa sem parar na minha mente, até que uma nova cena
desponta: Jae me deita na cama, tira meus sapatos, afrouxa o zíper
do vestido e joga o lençol sobre mim. Depois, senta ao me lado na
cama. Coloca uma mexa do meu cabelo atrás da orelha e beija
minha face. Nesse momento, ele pronuncia a frase ressoante.
Desliza o dedo indicador sobre o meu rosto. Ouço seus passos
afastando-se com cuidado...
Então ele me carregou até meu quarto... Deito a cabeça no
encosto da cadeira. Os lábios se movimentam até alcançarem a
orelha. Mariana pode estar certa... Você terá que se explicar
corretamente, nos mínimos detalhes! Não permitirei que escape de
mim, nunca mais!
20
Jae Young
Assim que eles passam pela mesa, meus olhos alcançam o que
tanto procuravam. Um frio abrupto se instala no estômago, as veias
em meu pescoço saltam fervorosamente. A glote quase se fecha,
afrouxo um pouco o nó da gravata, mas não surte efeito algum.
Pego a taça, levo à boca e tomo todo o vinho, como se minha vida
dependesse dele para continuar. As pessoas na mesa voltam a
atenção para mim, calando-se.
— Um pequeno acidente.
— Que bom que admitiu. Agora, me explique por que esse receio
todo comigo, Jae Young Ssi? Entendo que muito tempo se passou...
Mas...
— Eu não sei explicar, Lia. Sinto muito não poder voltar no tempo
e ficar ao seu lado como prometi, e como eu gostaria... Não dá para
mudar o que aconteceu.
— Aniyô...
O brilho dos seus olhos é como imã, e quando dou por mim,
minha testa está colada na dela, nariz com nariz e lábios tão
próximos que nem mesmo um mosquito conseguiria passar entre
nós. Passo a língua sobre meus lábios secos, tão secos quanto um
deserto. Os olhos se fecham. Tento me concentrar em respirar.
Jamais poderia imaginar que seria tão difícil.
— O que quis dizer com “não é que não possa perdoar” e “passar
por cima de tudo”? O que eu fiz para você que foi tão errado? — Meu
coração para.
— Sobre o que...
— Eu realmente não...
— Espero que seu irmão não tenha inventado nada a meu
respeito. Eu e ele só existiu, existe e existirá de uma única maneira:
amigos.
Recupero as forças.
Inclino a cabeça para o alto, deixando que a água lave meu rosto.
Coloco as duas mãos em forma de concha na boca.
Não sei como chego em casa, pois não prestei atenção ao GPS.
Jae Young
“... A partir de hoje, você e seu irmão vivam a vida de vocês longe
de mim, o que para você não será nenhuma novidade. Apenas
continue como estava...”
— Pensei que adorasse pescar com o pai, pelo menos era o que
transparecia quando nos falávamos. — Wook corrige a postura,
recostando a cabeça no banco do carro. Olha para frente. Cruza os
braços.
— Joh-a haess-eo. Só não havia mais motivos para fazê-lo depois
que papai faleceu.
Onde foi parar o menino alegre? Wook mudou tanto assim, ou fui
eu que mudei demais? Em que momento nos perdemos como
família? Talvez seja exagero meu... É só um mal-entendido entre nós
três... É possível que ele tenha agido sem pensar, a infantilidade de
sempre...
— Vamos?
— Ontem não nos falamos. Como foi seu dia? E... Ana? —
Observo a leve ondulação sobre a água causada pelo vento fraco.
— E?
— Sinto muito.
— Não será assim tão fácil como acredita, Jae Wook. Estou aqui
para ajudar vocês. Deveres de mais velho.
Wook se levanta para jogar a isca dele e, claro, mais longe que a
minha. Balanço a cabeça, recordando o quanto ele odiava perder.
Competitivo. Ele me encara piscando.
Wook começa a lembrar das vezes que viemos para cá, até
chegar na última, quando Elleanor caiu e machucou o pé.
Elleanor...
— Vocês conversaram?
— Sobre o quê?
— Você não tem coragem, seu coração não deixa. — Sorri torto e
sua voz vacila, como uma criança amedrontada.
— Hyung, cuidado com o que pensa em fazer. Não sou você, que
aceita tudo calado.
— Não temos mais nada a dizer um ao outro. A decisão já foi
tomada e sacramentada.
— Aish!
Ela sempre vinha até mim. Mesmo que eu não estivesse ao seu
alcance, ficava na ponta dos pés sem se importar com o esforço...
Caminho até onde sua imagem infantil está, estico o braço para
alcançá-la. Ela sorri e desaparece.
Elleanor
O riso dos garotos me atrai para fora da cabana. Eles ainda estão
correndo. Jae para assim que me vê e caminha em minha direção.
Wook esperneia e avança para cima do irmão, empurra Jae, que
desequilibra, dando um passo para trás. Wook se posiciona entre
Jae e eu.
Sua voz infantil me causa riso, entretanto, seu semblante faz meu
âmago se comprimir e a boca secar. Wook começa a chorar e corre
para dentro da cabana batendo a porta.
A brisa bate nos cabelos dele e seu cheiro toma conta de todo o
meu ser. Os olhos marejam e lágrimas caem. A cada passo, mais
apertado o peito fica.
— Senti tanto a sua falta, garotinha dos olhos lindos! — Ele anda
em minha direção esticando o braço, entretanto, antes que chegue
até mim, seus passos se interrompem.
Jae sorri tão triste! Parece não me enxergar. Inclina a cabeça para
o alto. Seus lábios se mexem, mas não ouço o que ele diz. Uma leve
chuva despenca das nuvens escuras. Ele se diverte, enquanto me
esforço para alcançá-lo. Sem sucesso. As rachaduras do solo
aumentam. Ele não nota.
Ele não se mexe, parece não me ouvir. O vento uiva com força e
raios cortam o céu. Minhas mãos instintivamente vão para as orelhas
a espera do rugido, que não vem.
Eu me abaixo e, com a ajuda das mãos, tento soltar meus pés.
Nada acontece. Mãos e pernas tremulam. Jae está de braços
abertos, como se esperasse por algo. Pingos me atingem; eu sacudo
o corpo com força, ele sorri.
— Uff... Uff...
— Não! Não!
23
Jae Young
Apesar de sentir cada gota de água que bate contra o meu corpo,
ela não transpassa o tecido. No entanto, ouço nítida e claramente o
som dos pingos batendo contra minha pele.
Toco com o polegar sobre minha boca, o volume dos meus lábios
também é igual. Inclino um pouco mais para conseguir ver melhor o
rosto dele.
Pisco. Soco meu próprio peito. Maldo andwae!
— Socorro! Socorro! Alguém, por favor? Tem alguém aqui? Ei! Por
favor? Por favor?
Não avisto ninguém por perto nem encontro indícios de que outras
pessoas passaram por aqui recentemente, ou qualquer criatura viva
além das plantas.
Fecho os olhos.
Sua força me puxa, me suga. Apesar de não querer entrar lá, sou
incapaz de resistir, tão intenso seu empuxo. Preparado ou não, esse
deve ser o momento de prosseguir rumo à eternidade. Pelo jeito, não
existe escolha...
Não sinto nada sob meus pés, não sei se estou realmente me
movimentando. A expressão “correr sem sair do lugar” de repente faz
sentido para mim.
— Olá? Será que tem algum ser para me dizer o que devo fazer?
— Silêncio. — Ei! Anjos? Almas? Guardião do céu? Quem quer que
seja, gostaria de saber o que faço agora. Para onde vou?
— Já sei. Está tudo aqui. — Vira a mão para cima e uma espécie
de holograma meu surge com muitas anotações, ou rabiscos —
provavelmente é a língua dos anjos.
— Não...
— Sabe por que estava lá? E suas decisões? — A voz não sai,
não quero falar. Eu só quero uma chance... Só mais uma, Deus. Por
favor! Nem que seja apenas por mais um ano... Só mais uma,
Criador! Gael me encara com um largo sorriso no rosto. Não é como
deboche, soa mais como satisfação. Não me incomodo. — Constam
algumas sérias pendências no seu livro.
— Livro? Que livro?
— Livro da vida.
— Isso significa que vou para o inferno? Posso ver meus pais
antes? Rapidamente, só uma última vez?
— Parte da sua pendência tem a ver com ela, por isso vocês
precisam completar a missão juntos. Você necessita que ela realize
uma tarefa importante. — Ajoelho-me diante dele. Curvo-me com as
mãos para cima em forma de prece, movimento uma sobre a outra.
Lágrimas correm pelo meu rosto. Passo a mão, mas não está
molhado. A cabeça recebe milhares de picadas de agulhas, e uma
fraqueza que jamais senti antes me domina.
Gael se abaixa. Segura em meus braços e iça-me do chão.
O corpo dela pende e não sei o que fazer para não deixá-la se
chocar contra o chão, contudo, ela segura os joelhos.
— Não! Não!
Elleanor grita e escorrega apoiada na cama até sentar no chão
com os joelhos dobrados. Abaixo, sentando no chão ao seu lado.
Levo a mão até sua cabeça, mas antes de tocá-la, recolho-a. Não
quero assustá-la, afinal, agora sou apenas um fantasma, uma
energia, como definiu Gael...
24
Elleanor
— Sua palavra não vale muita coisa, Jae. — Volto o rosto para
Gael. Um gosto amargo sobe pela garganta, junto com uma força
que não conhecia. Afasto-me de Jae e fico de pé. Dou alguns passos
até Gael. — Você me disse que ele não estava na lista, então por
que raios a alma dele está aqui? Sempre confiei em você. Era um
anjo para mim. Como pôde?
— Wook?
— Já chamou os bombeiros?
— Não...
Elleanor
Ando até eles, mas antes que eu chegue, Wook vem ao meu
encontro, parando na minha frente. Seu rosto está sujo, os olhos
arroxeados e fundos. Embora o aspecto físico denote sofrimento,
seus olhos são uma enorme geleira. Não sei se anestesiado pelo
sofrimento ou por outro motivo, que me recuso a cogitar.
Suas íris dilatam mais. Ele solta o ar pelas narinas como um touro
bufando, e em nenhum momento demonstra-se acuado, ao contrário,
me desafia.
Os grupos saem e voltam sem nenhuma notícia. Por que eles não
o encontraram ainda? Não seguiram a trilha? Ele está lá...
A tela do celular mostra que não haverá luz por muito tempo. Não
posso mais esperar. Pego uma lanterna e um apito que vejo em uma
caixa sobre a mesa montada pelo resgate.
— Encontrá-lo.
— Elleanor, tem um monte de gente procurando por Jae, acredita
que sozinha pode...
— Eu sei onde ele está. — Ela solta meu braço, coloca as mãos
na cintura e suspira profundamente. Marcus e Wook se aproximam.
Gael está ao seu lado com a mão sobre a cabeça dela, emanando
uma luz fraca da mesma cor de seus olhos. E de frente para ambos
o fantasma dele...
Minha cabeça gira, assim como tudo a nossa volta. Ver corpo e
alma separados me leva de joelhos direto ao chão.
— Ainda bem que chegou. Isy está quase sem forças. — Gael
sorri. Meus olhos se abrem. Como ele pode sorrir diante...
— Sorrio por você estar aqui, Elleanor. O estado dele não é bom,
sua respiração enfraquecida e seu pulso sumindo... mas ainda está
vivo.
— Obrigada, Gael.
— Preciso tirar Isy, as pessoas não saberão lidar com alguém tão
diferente, é perigoso para ela. — Balanço a cabeça concordando
com ele. — Assim que tirá-la de perto dele, Young não respirará
sozinho por muito tempo.
Antes de Gael partir com Isy, coloco meu braço envolta do seu
corpo e o abraço, agradecendo-a mentalmente. Seu cheiro de flores
aumenta e me acalma.
— Não vou sair do lado dele. Eu prometi que estaria com ele o
tempo todo... Podem ser seus últimos momentos e não o deixarei
sozinho.
Jae Young
— Sinto muito, Lia. Sinto tanto que dói, mesmo sem corpo. Mas
eu preciso aceitar os fatos... — Elleanor cobre minha boca com sua
mão.
Sei que Lia tem razão, preciso encontrar uma forma de ver todo o
passado por outros prismas.
Lia não quis deixá-lo sozinho comigo, ela está arredia com Jae
Wook, evitando-o. E, de alguma forma, eu também sinto certo
desconforto na presença dele.
Não sei quanto tempo me resta. Prefiro mil vezes passá-lo ao lado
dela e tentar, de alguma forma, cumprir uma pequena parte do que
lhe prometi.
— Farei o possível.
— Toda vez que você sorri, os cantos dos olhos se juntam ainda
mais, lembrando o formato dos lábios ao sorrir. — Abaixo um pouco
a cabeça. — Exatamente assim!
— Jae!
— Então nunca...
— E você?
Elleanor
“Appa, Lia não gosta de ovo quase cru. Eu fico com esse.”
— Eu sei...
— Sinto muito, Elle. Não quero te ferir... Mas precisa ser forte.
Wook também está sofrendo. Ele estava devastado, Elleanor. Um
farrapo. Enquanto vocês procuravam por Jae Young, ele ficou se
martirizando, pedindo perdão ao pai, a mãe e implorando para o
irmão ser encontrado logo. — Meu coração dispara, arrebentando o
peito, garganta, cabeça, pulsos. O sangue corre borbulhando pelas
veias e a saliva não desce.
— Não quero mais falar sobre Wook. Estou cansada. — Ela faz
um carinho na minha cabeça.
Ele vem até mim e me abraça pelas costas, como nas cenas dos
dramas que assisti. Desejei tanto viver isso, entretanto de outra
forma. Devia ser o corpo dele tocando o meu...
Pego a primeira garrafa que atrai meus olhos. Vou para a cozinha
tirando o lacre com a boca. Com a ajuda do saca-rolha, me livro da
mesma. Jae resmunga atrás de mim.
Jae Young
— Isso me tranquiliza.
Jae Young
Aproximo-me mais.
Nunca o ouvi dizer que errou, nem com a voz falha. Jae Wook em
geral é seguro de si. Não costuma demonstrar emoções tão fortes
assim. Nem quando o velho Jung Hee se foi...
— Sei que fui egoísta. Te responsabilizei por algo que não existe
culpa ou culpado... Não devia ter gritado com você. Então acorda.
Reage!
Jae Wook aperta minha mão com muita força. O soluço aumenta
até virar um pranto.
— Ele mexeu, eu juro! — Ela encara meu corpo imóvel, seus olhos
marejando. Passa a mão na cabeça do Wook.
— Calma. Eu sei que deseja que seu irmão acorde, mas confie
nos médicos. Está bem? Vou buscar algo para você comer e te
ajudar a se acalmar.
— Você devia ter ficado na Coreia. Por que diabos tinha que voltar
e me forçar a isso? Wae? Só precisava continuar ganhando dinheiro
com seu rostinho lindo.
Sua íris se expande. Ele ri. Toca minha face com a ponta do
indicador duas vezes.
Ele olha para os monitores, depois para o meu corpo. Toca meu
peito e me encara. Minha garganta se fecha. A sensação de
sufocamento me arrebata e, abruptamente, algo como uma corrente
de ar muito forte me puxa, sugando-me.
A roupa que não servia por ser grande demais agora cabe com
perfeição. O corpo que antes me recusava, agora acolhe-me.
— Sabe o quanto é insuportável esse seu senso de
responsabilidade e sua obsessão por cuidar do irmãozinho no lugar
da pobre mãe que morreu cedo demais? Você é chato. É patético,
Park Jae Young!
— Gael...
— Fale com Deus, por favor, Gael. Você tem mais proximidade
com Ele do que eu, uma bruxa. — Gael abaixa a cabeça em silêncio.
— Se não quer me ajudar, então me esqueçam. Não me enviem
mais nenhuma criatura perdida. Desapareça para sempre da minha
vida!
— Não... Não...
— Sim...
— Eu vou...
Quando me solta, noto que Marcus também está ao meu lado. Ele
acaricia minha cabeça.
Jae Young
— Sim.
Aigoo! O que ela está fazendo? Wook bem perto? Será que ela e
eu...
“Espero que seu irmão não tenha inventado nada a meu respeito.
Eu e ele só existiu, existimos e existiremos de uma única maneira:
como amigos.”
“Como pode ter visto algo que nunca aconteceu? Seu irmão às
vezes é muito impulsivo, tocando-me sem permissão, mas nunca me
beijou.”
*
Após uma semana e todos os exames apontarem melhora
significativa, o médico enfim me liberou. Elleanor e Wook ficaram o
tempo todo comigo, e quando digo o tempo todo, é literalmente isso.
Não revezaram entre si, ficaram ambos ao mesmo tempo.
— Confie em mim.
O que quer que tenha acontecido antes, não deixarei mais que
nos separe, nem mesmo Wook...
— Isso fez muita falta. Não sabe o quanto, Jae. Você segurou
minha mão e me protegeu todas as vezes que eu precisei. Agora eu
farei o mesmo por você. Se quiser soltar minha mão, eu não
permitirei.
Afasto-me devagar.
Com sua face entre minhas mãos, levo os lábios até sua têmpora,
seguindo o lado direito e depois o esquerdo do rosto.
Ela desce a mão pelo meu peito voltando a ficar sobre seus
próprios pés. Enlaça minha mão de novo e guia-me.
Seus passos curtos são mais rápidos que os meus. Meu corpo
está enferrujado e não se mexe bem.
Elleanor
— Sim.
— Volte para cá pelo menos para dormir. Preciso saber que você
está bem, Elle.
— Não estou doente nem sou fraca, além do mais, conheço bem
a casa. Não quero ser um incômodo para ninguém.
Com firmeza, trago a mala para junto de mim. Wook retira a mão,
permanecendo no topo da escada.
Subo na ponta dos pés. Com a mão aberta, selo sua boca. Seus
olhos esticam, emitindo um brilho intenso. Minha face arde. É
provável que a pele esteja rubra.
— Mwo?
— E a cabeça?
— Sim. Você esteve ao meu lado quando eu não sabia lidar com
as minhas assombrações. — Envolvo meus dedos sobre o dorso de
sua mão, apertando-a. — Só quero retribuir e...
Seguimos escada abaixo, sorrateiros, tanto para que ele não sinta
dor, como para não chamar atenção de ninguém. Atravessamos a
porta andando até o velho balanço. Jae estica os lábios com
vontade, deixando parte dos dentes brancos aparentes. Seus olhos
repetem o ato, sorrindo para mim. E como gelo, me derreto.
— Quer balançar?
Busco no fundo dos seus olhos algo que me diga que estou
errada. Que Jae não confia cegamente no irmão, não mais. De
repente, Jae põe sua mão sobre a minha. A respiração se torna
irregular.
Desvio o rosto para a frente. De soslaio, noto Jae fixar seu olhar
em meu rosto como se analisasse uma obra de arte ou estivesse
decifrando algum enigma. Uma lágrima teimosa escapa pelo canto
do olho esquerdo.
— Elleanor, eu...
Levo minhas mãos para sua face e quem toma seus lábios agora
sou eu. Entrego-me com toda força ao amor que vive em mim desde
a primeira vez que vi seus olhos puxados.
33
Jae Young
— Então não posso permitir que a senhorita fique com fome por
mais tempo.
— Não podemos.
— Do que precisa?
Uma das coisas de que mais senti falta quando saí de São Paulo
foi a diversidade culinária e cultural.
— Mwo?
— Muitas.
As pessoas que estão nas mesas mais próximas nos olham com
certa curiosidade. Sinto o rosto ficar quente. Imediatamente nos
imagino repetindo o ato em Seul. Um calor aquece a região do lado
esquerdo do meu peito.
— Hoje volto para minha casa. — Ela une as mãos, descansando-
as sobre as pernas.
— Eu te ajudarei.
— Não precisa. É apenas uma mala.
Não sei como sobrevivi até agora longe desse calor que me
aquece e faz todo o meu corpo dançar por dentro.
— Claro que vou com você. Combinei com a Mari para ela me
buscar após o jantar. De qualquer forma, hoje ela tem um
compromisso inadiável com um escocês que ela jura ser apenas
amigo. — Elleanor chuta o ar, gargalhando.
— Assim posso desfrutar mais alguns momentos junto dessa
mulher extraordinária que está ao meu lado. — Analiso ao redor e
beijo sua mão rapidamente.
— Prometo.
Sorri vitoriosa. Gira na ponta dos pés e sai andando para o lado
oposto ao meu.
Elleanor
— Obrigada.
Alguns segundos e a porta abre. Jae Young surge e, por trás dele,
Ana, estreitando os olhos — seu esforço para reconhecer os traços
da minha face são evidentes.
— Boa noite, Elleanor. Pensei que não viesse hoje, já que saiu
sem ao menos se despedir, como uma fugitiva. — Os dedos se unem
as palmas das mãos com força.
— Oi, Wook. Não podia perder a carona de Mari naquele dia. Não
sei por que imaginou que estava fugindo, não tenho motivos para
isso... Ou será que tenho?
Para uma pessoa de fora, isso soaria muito agradável. Para mim
não. Mas Jae, nesse momento, é uma incógnita. Ele sorri de volta
para o irmão, entretanto não sei identificar se ele está ou não a
vontade.
Jae pisca algumas vezes, sua pele pálida como um fantasma. Seu
olhar vaga em outro lugar, que eu gostaria muito de saber qual é.
— Talvez...
— Não sei explicar o motivo Jae, é possível que haja uma ligação
muito forte entre nós e por isso eu pude ter contato com você dessa
forma. Mas não tenho uma nomenclatura e, sinceramente, isso não é
o mais importante.
Jae Young
Não me incomodo com seu peso sobre mim, muito pelo contrário,
o calor e o aroma que sua pele emite, fazem com que meu sangue
flua e irrigue meu corpo mais depressa, desejando que ela
permaneça ali. Meus braços a circundam e pressionam contra mim
com força.
— Está tarde... Melhor voltar para casa. — Tiro seu braço debaixo
d’água. Elleanor o dobra, avaliando a extensão da lesão. Flexiono os
joelhos, inclinando o tronco o suficiente para alcançar suas pernas.
— Jae Young! O que está fazendo? Ainda não se recuperou
totalmente. E se...
— Dormir aqui?!
Será que era assim que ela se sentia quando recebia a visita dos
fantasmas?
— Quem é ela?
Puxo-a para junto de mim. Passo os braços sobre seu corpo. Seu
coração corre tão rápido quanto o meu, lado a lado, na mesma
velocidade em busca da linha de chegada.
Não posso contar a ela ainda. Não até ter certeza do quanto
Wook está envolvido no meu suposto acidente...
36
Jae Young
— É o que deveria ter feito. Foi um erro não levá-lo para a Coreia
quando abeoji se foi.
— Ora! Ora! Park Jung Hee voltou a ser seu pai? — Ele ri de
forma desmedida e estrondosa.
“— Adeus, hyung!”
— Ainda bem, hyung. Não nos assuste mais, ou meu coração não
aguentará. — Aperta meu ombro e sai, deixando-me na companhia e
cuidados do diretor.
— Harmeoni.
Relato todos os detalhes. Ela não emite nenhum som, parece que
falo sozinho, mas sei que Lee Hye Ji está atenta a cada palavra.
— Nê.
— Elleanor!
Contudo, meu júbilo dura pouco, pois vê-lo dar passos largos
arregaçando as mangas acorda meus sentidos.
— Isso não é motivo para ser enviado contra vontade para fora do
país.
— Tem certeza?
Elleanor
— Está bem. — Jae leva a mão até a toalha que cobre parte de
seu corpo. — Por que não se veste no banheiro?
— Jeongmal Yeppeoyo!
— Elle, sei que está cansada, mas secar o cabelo não toma muito
tempo. Assim não fará jus ao seu modelo particular. — Jae a
cumprimenta com o rosto rubro. Mari repara e diverte-se. Ele será
um prato cheio para ela!
Todos se acomodam.
— Ficarão em Paris?
— Sim.
— Ah, Madá!
— Como?
Jae Young
Esses dois dias com Marta e Lucio nos deram um novo fôlego.
Parte da agitação que ainda me consumia se apaziguou. O clima de
família que há muito eu não vira, só aumentou a certeza da minha
decisão.
Observo Elleanor que dorme tranquilamente no banco do carro.
Marta sugeriu que deixássemos Ana com eles durante essa semana,
para ver se a atmosfera mais tranquila do interior se adequa melhor
a ela. E assim, apenas nós dois seguimos de volta para casa.
Ao nos aproximarmos da entrada de Juquitiba, Elleanor desperta.
Observa a paisagem pela janela do carro. Se espreguiça bocejando,
parece uma daquelas gatas persas bem manhosas. Ela me encara,
inala o ar e pega minha mão.
— O que acha de passar no acampamento?
— Não podemos ficar hoje, deixe para outro fim de semana?
— A intenção não é acampar. Ainda é desconfortável...
— Um pouco. O que pretende?
— Agradecer.
Beijo o dorso de sua mão. Pego o retorno e dirijo até a velha e
familiar cabana. Embora as entranhas estremeçam um pouco,
adentramos a trilha. Dessa vez seguro de verdade a mão de
Elleanor. Da mulher e da garota que ainda existe dentro dela.
Paramos apenas quando encontramos nossa árvore. Os pés
querem se afundar, mas os forço a se arrastarem até lá. Ainda vejo
meu corpo ensanguentado encostado ao tronco. Elleanor entende,
pois me abraça pela cintura e na ponta dos pés beija minha face.
Sua influência sobre mim é tamanha que me tranquiliza quase
inteiro.
— Isy! — Lia aguarda mais alguns segundos. — Isy!
O cheiro forte de flor nos rodeia. Em seguida a figura conhecida
do ceifador se materializa diante de nós.
— Gael! — Ele curva-se nos cumprimentando. — Elleanor chama
a bruxa e quem aparece é você, recepcionista?
— Ainda pode vê-lo? — ela pisca algumas vezes. Leva o
indicador direito até os lábios.
— É raro, mas aqueles que pisam na fronteira, após retornarem
para o mundo dos vivos podem recuperar suas memórias e
desenvolverem uma pequena sensibilidade. — Gael aponta para
mim com um sorriso divertido no rosto.
— Jae pode ver fantasmas agora? — Elleanor se vira para mim
analisando-me de cima a baixo.
— Só vejo o ceifador. Pelo menos até agora.
— Não acredito que passará disso. — Gael gira a cabeça para a
esquerda. — Pelo cheiro e brisa, sua invocação funcionou Elle!
Ambos direcionamos o olhar para o mesmo lado que Gael.
Aproximadamente um minuto depois, a mulher exótica com seus
cabelos verdes e vestes rosa flutuantes, aparece andando apressada
até nós. Primeiro ela observa um a um.
— Será que essa é a primeira vez que recebo uma simples visita?
Expressões tranquilas, respirações normais, peles bem tratadas... O
único detalhe que ainda causa estranheza é você, Gael. — Ele ri
apoiando o queixo em sua mão esquerda. — Sempre me traz
problemas.
— Dessa vez não fiz nada. — Ele eleva as mãos abertas.
— Eu que a chamei. — Elleanor dá um passo chegando-se mais
perto dela. Isy a encara e enfim abre um sorriso singelo. —
Obrigada. — Lia abre os braços que são aceitos por Isy.
— Eu também gostaria de agradecê-la por salvar minha vida.
— Você sabe quem sou? — Isy não demonstra surpresa, sua
pergunta soa mais como um teste.
— Sim. Você me cobriu com folhas, colocou umas coisas
gosmentas no meu corpo e me fez beber um líquido esverdeado com
cheiro e sabor muito peculiar.
— Não ofenda a mãe natureza, nem minhas habilidades. — Eleva
a cabeça e abre bem os olhos enquanto fala.
— Mianêyô! Mas, não é ofensa. Eu sou profunda e eternamente
grato por manter-me vivo. Você, junto com Gael e Elleanor me
proporcionaram uma segunda chance. Nasci outra vez. Komawo! —
Abaixo o tronco com os braços unidos a lateral do corpo quase toco
o chão com o topo da cabeça.
— Não precisam agradecer-me. Fui agraciada com esse dom,
então não faço mais do que recebi. — Isy pega minha mão e a de Lia
e as segura unidas. — Aproveitem essa chance e sejam felizes.
Esqueçam e se afastem daquilo que os fazem mal. Às vezes a
distância é a resposta certa.
— É difícil esse tipo de emoção mexer comigo, mas estou tocado
pela atitude de dois simples humanos. — Gael cruza os braços com
suas órbitas roxas brilhando. O sorriso é sincero, diferente das outras
vezes em que denotava diversão, alegria. — Elleanor. — Gael se
aproxima. — Tenho um presente para você.
— Presente? — Ela une as sobrancelhas e eleva os ombros. Não
consigo imaginar que tipo de mimo pode vir dos céus. Coço o queixo.
— Você tem nos ajudado desde sua tenra idade. Contribuiu mais
do que imagina, e mesmo amedrontada aceitou seu dom. Se
ignorasse, em pouco tempo não receberia nenhuma alma perdida.
— Nunca soube disso.
— Nós nunca sabemos. O tempo e a intuição nos ensinam muito
do que desempenhamos como bruxas. — Isy põe a mão sobre o
ombro de Elleanor, sorrindo para nós dois.
— Desde que ajudou Jae Young, não recebeu mais visitas.
— Pensando bem, não vi mais nenhum fantasma, mas há tempos
que a frequência diminuiu...
— Não receberá mais. Vocês poderão viver o resto de suas vidas
humanas em paz.
— Eu não me importo em ajudar...
— Sabemos, mas já fez sua parte.
— Não o verei mais?
— Nunca se sabe. — Gael abre as mãos. — Vivam bem,
mantenham-se saudáveis e felizes. E você, — Gael aponta para
mim. — Seja bom para Elleanor e a compense pelo tempo perdido.
— Aceno com a cabeça em concordância. — Hora de ir! Até um dia!
Isy, virei mais vezes visitá-la.
Antes que ela responda, Gael e seu cheiro desaparecem em meio
a sua marca registrada: fumaça roxa!
— Ah! Obvio que ele não me deixaria em paz! Virá com mais
casos urgentes. Gael deveria agir apenas como ceifador, mas tem
ego de anjo.
— Acho que é só desculpa para poder vê-la. — Elleanor pisca
para Isy.
— Mesmo que fosse verdade, seria impossível. Já ouvi lendas
sobre anjos que conseguiram se transformar em humanos, mas
ceifadores, só se falam sobre coletar as almas, e existe um motivo
para isso, algo que não posso revelar.
— Não duvide, afinal você já viveu mais do que qualquer humano
que eu já soube. Nada é impossível, Isy! — Agora é Elleanor que
toca os ombros de Isy. A bruxa sorri discretamente, mas evita nos
encarar. Acredito que entre esses dois exista muito mais do que
amizade, só não conseguiram se entender ainda.
— Precisamos ir. Nunca a esquecerei, Isy. — Pego a mão de
Elleanor. Ela assente, movendo os lábios com suavidade.
— Quando vierem acampar, talvez eu os encontre. — Isy abre os
braços e passa por nossos pescoços ao mesmo tempo. —Procurem
cultivar apenas o que for bom e principalmente o amor e a felicidade.
— Você também, Isy. — A voz de Lia é trêmula.
— Até qualquer dia.
— Até. — Isy vira de costas. Trago Elleanor para meu lado.
Permanecemos ali até as vestes rosa e a última mexa verde
desaparecer entre a densa folhagem da mata. Lia toca nas nossas
iniciais dentro do coração esculpido na árvore, me encara com os
olhos lacrimejando. Aproximo de seu rosto e deposito um beijo em
seus lábios. A claridade começa a diminuir. Seguimos de mãos
dadas até o carro.
39
Elleanor
— Mãe.
— Eu sei.
Ele abre a porta de trás. Jae gesticula para que eu entre primeiro,
acomodando-se ao meu lado em seguida. O senhor de semblante
sério demora-se um pouco a retornar para seu posto, pois estava
acomodando a bagagem no porta-malas.
— Chegamos.
Aquele ditado que diz que a vida nos ensina, essa cena é a
certeza de que ele está certo. Voltamos para casa mais leves e mais
humanos.
Uma brisa suave nos beija a face. Folhas secas caem da árvore.
Jae olha para o céu e sorri.
Jae Young
— Yeoboseyo?
— Komawo.
— E a blusa? Gostou?
Minha avó está cada vez mais debilitada, não demorará muito a
nos deixar, contudo, ela ainda teve tempo para experimentar dar e
receber afeição. Fez questão de providenciar, além de pratos
tradicionais coreanos, comida brasileira. Acompanha os pais de
Elleanor todo o tempo. Lucio e Marta, por sua vez, parecem apreciar
a companhia dela.
— Saranghae!
FIM
Notas da autora
Este livro é muito especial para mim por ser o primeiro romance
no estilo Dorama, e para que isso acontecesse, eu contei com ajuda
direta e indireta:
https://www.instagram.com/autora.katherinelaura/
http://kathelaura.com/