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Katherine L.

Leighton

Copyright © 2021 Katherine L. Leighton

Edição: Mari Vieira

Preparação do Texto: Mari Vieira

Revisão: Rebecca Pessoa

Revisão de Idioma: Angel Alves

Consultoria de idioma e Cultura: Milena Morais de A. Elias

Revisão Final: Andreia Idalgo Cardia

Capa: Cora Félix

Diagramação: Elaine Cardoso


Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa. É proibida a reprodução total e parcial desta
obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico,
inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo o uso da
internet, sem permissão expressa da autora (Lei 9.610 de
19/02/1998).
“Cause you're the right time
At the right moment
You're the sunlight
Keeps my heart going
Know when I'm with you
Can't keep myself from falling
Right time at the right moment
It's you”

Henry Lau
It’s You

“Porque você é a hora certa


No momento certo
Você é a luz do sol
Mantém meu coração batendo
Sabe quando estou com você
Não consigo evitar cair
Hora certa no momento certo
É você”
Sumário

O que precisa saber antes de ler essa história.


Prólogo
1
2
3
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5
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8
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Epílogo
Notas da autora
Agradecimentos
Sobre a Autora
O que precisa saber antes de ler essa história.

Termos e expressões:

Kamsahamnida – Obrigado(a) (formal).


Annyeonghaseyo – Oi/Olá (polido).
Mianhada – Desculpa (informal).
Abeoji – Pai (respeitoso).
Harabeoji – Avô.
Hyung – Irmão ou amigo mais velho de homem para homem.
Noona – Irmã ou amiga mais velha de homem para mulher.
Ssi – É o senhor/senhora/senhorita do coreano e só pode ser
utilizado depois do nome da pessoa.
Jalmeokgesseumnida! – Farei uma boa refeição – obrigado(a)
pela refeição (usado para antes de comer, como agradecimento).
Appa – Pai (mais informal).
Jeokkarak – Hashi.
Omma – Mãe (mais informal).
Aigoo – Usado com o mesmo valor do “meu Deus” no português,
normalmente em situações difíceis.
Aish – Significa literalmente “ah, que porcaria!”. É um palavrão e
por isso só pode ser utilizado em situações propícias.
Chingu – Amigo(a).
Komawo – Obrigado(a) (informal).
Dasi osin geos-eul hwan-yeonghabnida – Significa literalmente
“seja bem-vindo de volta” e é muito formal. Foi utilizado no texto
devido ao tipo de relacionamento que Jae Young tem com avó.
Namdongsaeng – Irmão mais novo.
Mugunghwa – Hibisco-da-síria ou rosa-de-sarom.
Joesonghabnida! – Sinto muito, me desculpe, perdão. (formal).
Al-ass-eo (arasô)! – Entendi, ok, está bem, já saquei (informal).
Mianê – Derivação da expressão (mianhada), que significa “me
desculpe” ou “foi mal” (informal e é usado só em casos leves).
Mwo – o quê?.
Nan neoleul joh-ahae – Eu gosto de você (informal).
Ye – Sim (polido).
Appa! Bogo ship-eo – Pai, sinto sua falta (informal).
Saranghae – Eu te amo (informal).
Yeoboseyo – Saudação telefôncia “alô”.
Hajimá – “Não faça isso”.
Sesang-e! — Interjeição coreana, que corresponde a “oh meu
Deus”.
Gonbae – É o nosso “saúde”, ou o “cheers” do inglês.
Jeongmal yeppeoyo — “Você é realmente linda”.
Nê – Sim (formal).
Aniyô — Não (polido).
Andwae! – “Não!” (em tom dramático).
Daebak — Interjeição de surpresa como o nosso “uau”.
Kajimá – “Não vá”.
Samchon – Tio.
Jogeum”...” – Quer dizer ”um pouquinho”.
Joh-a haess-eo” — Expressão correspondente para “eu gostava”.
Maldo andwae – Tem a conotação de “isso é absurdo” ou “é uma
situação absurda”.
Cheonsa – Anjo.
Wae? — Por quê?.
Uri gwaenchanha – Expressão para “nós estamos bem” ou “está
tudo bem conosco”.
Mianêyô – Significa “me desculpe” ou “foi mal” (informal polido e
é usado em situações onde o grau de formalidade entre os
interlocutores é educado, porém não-formal).
Jebal – Peço para parar, ou suplico que pare de falar.
Hangeul – É o sistema de escrita coreano.
Baegopayô – Expressão que manifesta fome “estou com fome”
(polido).
Título dessa história em Coreano:
Nae Insaeng-e Hanguk Namja
Curiosidades:
Rito fúnebre: Geralmente as salas de velório sul coreanas são
dentro dos próprios hospitais, com a pessoa no necrotério e o
memorial levantado para homenageá-la, em alas específicas. É raro
fazer velórios em locais fora e de corpo presente, pois é simbolismo
de mau agouro para o lugar onde a pessoa morta é velada.
Tteokbokki: É uma das comidas de rua coreanas mais
populares na Coréia. Entre outras coisas, a receita de hoje é feita
com bolos de arroz coreanos, bolos de peixe coreanos, caldo de
sopa coreano / caldo dashi e gochujang (pasta de pimenta coreana).
Tteok: É a massa base para o bolo de arroz tteokbokki.
Kimchi: Conserva de vegetais apimentada, geralmente feita com
acelga, pepino ou outros.
Bulgogi: Trata-se de carne fatiada temperada com condimentos
e especiarias coreanas.
Doenjang jjigae: É um dos mais populares guisados coreanos
feito com pasta de soja coreana (doenjang), um tipo de pasta de
feijão fermentada feita de soja e salmoura.
Pyeongyang naengmyeon: É uma sopa fria tradicional da
Coreia; o próprio nome significa “massa fria”. O spaghetti para esta
sopa é longo e fino, feito com base em farinha de trigo-mourisco ou
araruta, que dá uma massa mais escura, e batata.
Gimbap: É um prato coreano feito de arroz cozido e outros
ingredientes que são enrolados em gim - folhas secas de algas
marinhas e servidos em fatias pequenas.
Prólogo

Diante da inércia do corpo coberto por sangue à minha frente,


assisto uma velha conhecida despontar ao longe. Seus longos
cabelos verdes balançam com o vento, suas vestes cor-de-rosa
esvoaçam secas, embora do céu desabe uma tempestade.

— Isy e seus truques!

Sorrio ao vê-la depois de tanto tempo. Ela nunca falha: sempre no


local certo na hora exata! Caminho ao seu encontro. Isy interrompe
sua caminhada assim que me avista com suas mãos na cintura.

— Eu tinha certeza que havia algum problema na minha floresta.


Consegui sentir sua presença e o aroma de violetas da minha
humilde cabana. — Ela sorri se curvando. — O que quer de mim,
Gael?

— Veja por si mesma, minha amiga. — Indico o caminho para ela.

Delicadamente, Isy põe as duas mãos sobre a saia do vestido,


erguendo o tecido para facilitar seus passos apressados. Ela estaca
ao lado do corpo, se ajoelha e se curva sobre o homem. Inala
profundamente seu odor, então volta-se para mim, chacoalhando a
cabeça.

— Outro problema que você joga para mim, Gael! Por que nunca
faz uma visita de cortesia entre velhos e centenários amigos?

Cruzo os braços jogando a cabeça para trás, gargalhando ante


seu mau-humor congênito.

— Esse caso é especial para nós dois, Isy. Uma pessoa por quem
nutrimos grande consideração sofrerá muito caso...

— Não me diga que tem a ver com as visões da pobre garota? —


Suspira profundamente, afastando os cabelos negros do rosto caído
no chão.

— Vai me ajudar?

Ela me encara com os olhos brilhando de compaixão. Como


sempre, seu coração é maior do que transparece.

— Sabe que não é correto usar a magia para interferir nos planos
divinos. Além disso, não quero me envolver em problemas com Ele.
— Ela inclina a cabeça para o alto ao mesmo tempo em que aponta
o indicador para o céu.

— Não está interferindo, posso garantir. — Junto as mãos e curvo


minha cabeça, em um gesto de respeito.

Isy estreita seus grandes olhos negros e inspira profundamente.


— Farei o possível. — Sua voz soa mais branda. Apesar do
temperamento tempestivo, ela tem a capacidade de mudar da água
para o vinho em milésimos de segundos. Isy nunca se recusa a
ajudar os necessitados. — Ele já está no túnel?

— Atravessando.

— Então não demore desta vez, não resta muito tempo. Minhas
poções não serão suficientes e não garanto que minha magia possa
suportar muito. — Sorrio em agradecimento. — Gael, não posso ser
vista por outros na minha forma real, muito menos com um
moribundo, os humanos não entenderão.

— Até parece que bruxas não são humanas.

— Segundo alguns humanos, não somos. Então...

— Assim está melhor? — Movimento minha mão em um círculo,


criando uma espécie de escudo ao redor deles. — Ninguém os verá
ou ouvirá aqui.

Isy concorda.

— Preciso de outro favor: terá que entrar na fronteira por alguns


segundos, ela está lá... Ajude-me a prepará-la. Somente sua alma,
não colocarei seu corpo em risco.

— Não garanto que terei energia o suficiente para mantê-lo e


ainda elevar a alma até lá, mas tentarei.

Seguro sua mão até que afunde na inconsciência. Seguimos pelo


túnel até entrar na fronteira onde mantenho duas almas, cuja ligação
é intensa, separadas apenas por um véu divino.
1

Jae Young
Coreia – 1995

Depois de longos e cansativos dias me dividindo entre as aulas e


as idas ao hospital, onde meu pai passou dias e noites
acompanhando minha mãe, ela se foi. Não entendi muito bem
quando ele disse isso com as mãos apoiadas sobre o meu ombro e o
do meu irmão. Só tomei consciência do significado quando vi
retirarem todos os fios dos aparelhos que estavam grudados ao
corpo dela e, em seguida, cobrirem-na com um lençol branco.

— Ela descansou. — Ouvi a voz de uma das enfermeiras,


enquanto os olhos do meu pai vertiam lágrimas.

Enfim entendi que nunca mais veria minha mãe nem receberia
seu abraço caloroso quando voltasse da escola. Não ouviria mais
sua voz suave enquanto cantava ou lia suas histórias preferidas para
mim e Jae Wook dormirmos. Não escutaria o doce som do piano
enquanto ela dedilhava as teclas alegremente, a música ecoando
pela casa nos despertando nas manhãs de sábado. Não a veria
cultivando as preciosas flores no jardim, nem saborearia mais o
kimchi que ela sempre fazia questão de preparar para nós. A cozinha
seria um completo vazio sem seu balançar enquanto preparava
nossas refeições... Meu pai agora iria trabalhar com a gravata
desarrumada, sem tê-la para cuidar dele. Seu semblante sério se
desfazia ao vê-la descendo a escada e quando tocava sua face ao
se despedirem. O sorriso dela irradiava amor e nos contagiava...
Agora, em nossos dias, haveria uma constante escuridão. Perceber
isso quebrou-me por dentro em mil pedaços.

Assim que a retiraram do quarto do hospital, meu pai nos levou


para casa para nos prepararmos e de lá retornamos para a sala de
memorial do hospital: uma ala reservada que se assemelha a um
restaurante. Havia um espaço grande com várias mesas baixas
espalhadas por sua extensão e outro menor ao lado. Nesse local
específico eu passaria três dias. Lá, uma mesa comprida — como
um altar de igreja ou templo — estava repleta de flores, velas,
incensos, frutas e um lindo retrato da minha mãe sorrindo.

Meu pai quase não se movia, não comia nem bebia. Jae Wook
chorava, mas não entendia o que estava acontecendo.

Cada vez que eu me curvava na frente da sua foto, o coração


doía e se contraía, a ponto de não conseguir respirar direito.

Não era justo conosco não ter mãe como as outras crianças. Por
que ela tinha que morrer agora? Por que os médicos não cuidaram
dela? Por que não a curaram? Os médicos estudam para ajudar as
pessoas a melhorarem, ficarem saudáveis, então, por que não
salvaram minha mãe?
Ouvir as condolências das pessoas só me deixava mais furioso.
Não me importa o que elas pensam, elas não sabem o que é perder
alguém, não entendem que eu não queria que ela descansasse, eu
ansiava por ela viva, saudável, comigo, cantando, me colocando
para dormir, me arrumando para a escola, abraçando-me e até
ralhando quando eu cometia erros...

Assim, toda vez que alguém tocava meu ombro ou se curvava


para mim, parecia que estavam me espetando com agulhas,
esmagando os restos, os cacos que me tornei.

No terceiro dia, eu e Jae Wook estávamos sendo auxiliados a


vestir o terno preto quando meu pai entrou no quarto reservado para
nós, ajoelhou-se à nossa frente, suspirou fundo e ajeitou a gravata
do meu irmão e a minha. Colocou um uma faixa em meu braço e
calçou luvas brancas.

— Você é o mais velho, por isso entrará com a imagem da sua


mãe. É seu dever. Faça com respeito. Se despeça dela para que ela
possa descansar em paz.

Não pronunciei palavra alguma, sequer tinha vontade de falar,


então apenas assenti, curvando a cabeça para meu pai.

Seguimos para a sala do altar. Meu pai me ajudou a apagar as


velas e os incensos. O café da manhã foi servido à minha mãe. Nos
posicionamos de costas para o caixão, seguindo o ritual de acordo
com a tradição. E então... chegou a hora do adeus definitivo.

Formamos uma pequena fila. Eu carreguei a imagem da minha


mãe, Jae Wook as flores e junto com meu pai e outros membros da
família deixamos o salão até o crematório ao lado — algo que eu não
compreendia plenamente o que era até meu pai explicar que o corpo
da minha mãe seria transformado em cinzas — provavelmente como
eu me sentia agora, uma casca repleta de pó.

Ao final, nos entregaram uma pequena urna em cerâmica branca


semelhante a um dos jarros de flores que minha mãe tanto gostava,
e isso foi tudo o que sobrou dela.

Seguimos para o cemitério, onde colocamos sua urna junto com


foto e flores em uma parede com pequenos buracos quadrados
fechados com vidro. Alguém poderia dizer que isso parecia uma
grande estante de livros, mas no lugar deles há pessoas
transformadas em pó guardadas em potes.

Meus olhos estavam pesados e o corpo mole. Assim que


entramos no carro, Jae Wook adormeceu sentado. Eu me aproximei
dele para que pudesse apoiar sua cabeça em meu ombro, mas
acabei pegando no sono também.

Não sei como fui parar na minha cama, acho que meu pai me
levou. Acordei com som estridente da voz da minha avó.

Sentei na cama esfregando os olhos, bocejei e fui até a porta,


entretanto, não consegui entender tudo o que falavam, ou melhor, o
que minha avó gritava. Girei a maçaneta da porta bem devagar para
não fazer barulho, olhei para os dois lados do corredor e não vi
ninguém, então caminhei até a escada na ponta dos pés.

— O que pensou que aconteceria Park Jung Hee, enquanto você


abandonava a empresa?
— Abandonava a empresa? Eu estava cumprindo meu dever de
marido cuidando de Kim Soo Min.

— Você sabia que acabaria assim quando receberam o


diagnóstico de câncer de mama. Estava ciente de que ela não teria
muito tempo devido ao estágio avançado da doença, sua obrigação
era providenciar os cuidados e o conforto necessários, e não
negligenciar nossa empresa largando o cargo!

Ouvi o som de algo batendo contra o assoalho, provavelmente


sua bengala.

— Não abandonei a empresa, mas não podia deixar Soo Min


passar por todo sofrimento sozinha.

— Estar ao lado dela diminuiu a dor de Kim Soo Min mais do que
os medicamentos?

— A senhora Lee Hye Ji não consegue sentir a menor empatia


com o sofrimento de outro ser humano? Dos seus netos? Meu?

— Os sentimentos não devem atrapalhar nossos deveres. Por


isso estou removendo-o da presidência da Park Comunicações.

— Está me demitindo quando acabei de me despedir da minha


esposa para sempre?

— Estou fazendo o melhor para toda família. Por sua incúria,


sofremos um desvio volumoso de caixa.

— Não roubei a empresa.


— Mas permitiu que outro o fizesse ao se ausentar de suas
funções.

Ao ouvir a palavra roubo, minha respiração começa a acelerar e


lágrimas escorrem pelo meu rosto. Passo as costas da mão tentando
contê-las, mas elas continuam caindo. Dói. Doí tudo. Meu corpo,
minha cabeça... Puxo os cabelos e corro gritando, descendo a
escada.

— Bruxa! Bruxa!

Ela se volta para mim e assim que chego no último degrau, Lee
Hye Ji me alcança, batendo com sua bengala nas minhas pernas,
bem atrás dos joelhos. Caio com as mãos no chão. As lágrimas
param e, mesmo com a dor latejante da pancada, não recuo. Tomo
impulso e me levanto.

— Essa é a educação que você e aquela mulher deram para ele?


Insolente!

Ela ergue de novo a bengala, preparando-se para me atingir, não


me abaixo, recebo o baque de pé, sem cambalear, de olhos bem
abertos. Fiz questão de encará-la e gravar cada detalhe do seu
rosto. Meu pai corre e se coloca na minha frente, evitando que ela
desfira outro golpe contra mim.

— Não toque nele, ou perderei o que resta de respeito por você.


Não se preocupe, senhora Lee Hye Ji, não verá a mim nem aos
meus filhos em sua frente nunca mais.

— E sobreviverá como?
— Isso é problema meu. — Meu pai passa o braço ao meu redor,
apertando-me bem junto de si. Com a outra mão, aponta para a
porta.

Ela sai com a cabeça erguida, batendo a bengala no ritmo do som


dos seus sapatos no assoalho. Meu pai não olha para ela, apenas se
abaixa me envolvendo com seu outro braço. Eu retribuo, enlaçando
seu pescoço. Ele não diz nada, me levanta do chão e sobe os
degraus carregando-me até minha cama. Coloca-me nela, arruma o
cobertor ao meu redor, senta-se ao meu lado e fica ali até que eu
durma.

No dia seguinte, assim que eu e Jae Wook descemos para o café,


meu pai já está a nossa espera, sentado na ponta da mesa com as
mãos juntas apoiando o rosto. Nos sentamos cada um de um lado.

— Vamos morar no Brasil. Vou trabalhar na confecção do


samchon: Park Soo Hyun. — Ele parece estar em outro lugar, sua
voz é tão mecânica quanto a de um robô.

— Mas e a mãe? — Curvo-me sobre a mesa buscando olhá-lo de


frente. Por dentro estou queimando e por fora congelando. Não é
justo nos afastarmos dela tão cedo.

— Não se preocupe, Jae Young, sua mãe quer o melhor para


vocês.

— Mas não poderei visitá-la nem levar suas frutas preferidas no


aniversário dela e...

— Faremos nossa homenagem de onde estivermos. E sempre


que sentir falta dela observe as estrelas, ela com certeza já se
transformou em uma. A mais bela. Aquela que mais brilhar será Kim
Soo Min.

Meu pai não é de falar muito e assim encerra o assunto.

Os dias que seguiram esse anúncio passamos organizando


nossas malas, infelizmente não poderíamos levar muita coisa.
Visitamos o memorial da minha mãe algumas vezes e todos os
nossos lugares preferidos.

Desde aquela noite, não vimos mais a minha avó e, sinceramente,


não pretendo vê-la nunca mais.

Estava frio. A primeira neve caía quando entramos dentro do


BMW M3 preto pela última vez. Meu pai ligou o carro; ouvi o rugido e
logo começamos a nos distanciar da bela e imensa casa de dois
andares amarela — virei a cabeça para trás até sua imagem
desaparecer completamente.

Adeus, omma, eu nunca a esquecerei...


2
Jae Young
São Paulo – 1995

Assim que desembarcamos em São Paulo, foi possível notar que


era um lugar bem diferente de Seul. Uma mulher alta, de cabelos
longos escorridos e pele bronzeada recepcionava os passageiros
logo no desembarque, direcionando-os com gestos e fala alta — não
entendi uma palavra do que ela disse.

Ao passamos pela porta e entramos na área de bagagens, paro,


não esperava ver tantas pessoas ali nem ouvir tantos sons
diferentes, meu estômago gela. Estico o braço até conseguir agarrar
a mão do meu pai. Ele me observa, dá um grande suspiro e estica os
lábios, esforçando-se para sorrir de forma convincente. Meneia a
cabeça apertando minha mão.

— Não tenha medo, seremos felizes aqui.

Eu não julgava da mesma maneira, mas não havia outra opção e


no fundo, só de olhar para o semblante do meu pai, eu sabia que ele
também não estava certo do que afirmava, no entanto buscava com
todas as forças acreditar em suas próprias palavras.

Eu, como filho mais velho, devia respeitar e ser exemplo para meu
irmão. Inspirei com vigor e curvei a cabeça. Meu pai pegou Jae Wook
no colo, apoiando em seu braço direito, e com a mão esquerda
enlaçou a minha firmemente. Sorriu desta vez com vontade. Retribui
o gesto confiante.

Seguimos com os outros passageiros a direção indicada.

Enquanto aguardávamos em pé na fila que se movia lentamente,


meu pai tentava nos distrair e aliviar nosso cansaço pelo tempo de
viagem — as pernas ainda estavam meio dormentes. Então, um
tanto desajeitado, se pôs a falar:

— Ele decidiu deixar a Coreia durante a guerra. — Passou a mão


bagunçando meu cabelo. Ergui os olhos para ele. — Samchon Park
Soo Hyun.

— Guerra? — Ele acenou em concordância. — Quantos anos ele


tem?

— Não sei exatamente. Ele é irmão mais novo do seu harabeoji.

Mantive o olhar nele, dedicando-lhe o máximo de atenção.

— Aquela época foi muito difícil. Muitos civis morreram... Nossa


família perdeu tudo o que tinha. Então, tio Park Soo Hyun ficou
sabendo sobre um acordo entre o Brasil e a Coreia, e em dezembro
de 1962 ele embarcou no porto de Busan com outras noventa e uma
pessoas e onze ex-soldados.
Eu nunca havia escutado o nome desse tio, sequer sabia que
vovô possuía um irmão.

— E harabeoji não veio?

— Não.

— Por que?

— Como filho mais velho, seu avô sempre cumpriu com muita
obediência o que o pai dele determinava e acatou as ordens,
permanecendo na Coreia.

— Mas nunca falou do samchon Park...

— Não podíamos. Todas as relações com ele foram cortadas.

— Igual ao que está acontecendo conosco. — Meu pai sorriu de


maneira triste, balançando a cabeça.

Não sou capaz de compreender a razão desse comportamento


nem o motivo da senhora Lee Hye Ji ser tão ruim.

— Abeoji, se perderam contato com tio Park, como conseguiu


falar com ele?

— Todos os anos ele escrevia cartas dando notícias, e apesar do


seu harabeoji não falar do seu namdongsaeng, ele guardou todas as
correspondências. Antes de morrer, ele me entregou. Respondi
algumas, retomando o contato.

Olhei para meu irmão ele não ouviu a história, não inteiramente
adormeceu com a cabeça apoiada nos ombros do meu pai.
Uma mulher de estatura mediana, corpo arredondado, cabelos
amarelos e pele branca, se aproximou. Ela pronunciou algo que não
compreendi, assim como meu pai. Então esticou o braço, apontando
para a frente e falando em inglês desta vez. Meu pai curvou-se
algumas vezes, sorrindo para a mulher ela não nos conhecia, mas ao
observar que meu pai estava há muito tempo de pé com uma criança
no colo, nos encaminhou imediatamente para o atendimento. A
mulher ainda se ofereceu para segurar meu irmão, o que papai
recusou. Não a conhecíamos, ele ficou receoso de que ela roubasse
Jae Wook.

Para mim, aquela atitude também foi estranha, entretanto,


agradeci com um gesto, pois finalmente conseguimos sair do
aeroporto e encontrar o tio Park, que nos aguardava na área de
desembarque com uma placa escrita em hangeul. Algo familiar! Meu
coração desacelera e a respiração aos poucos também entra no seu
ritmo natural.

Papai acorda Jae Wook, que pisca, esfregando as mãos nos


olhos. Então ele desce do colo do meu pai e me abraça pela cintura,
amedrontado.

Tio Park Soo Hyun tem os cabelos cinza e algumas rugas não
tantas quanto o harabeoji tinha quando faleceu. As bochechas cheias
e os lábios grossos são exatamente como os do meu avô, mas ele
sorri mostrando todos os dentes, fazendo seus olhos quase se
fecharem, algo que nunca vi em harabeoji.

Ele abre os braços e caminha até meu pai, o envolvendo


calorosamente, dando leves tapinhas nas suas costas.
— Jung Hee! É muito bom vê-lo pessoalmente! Seja bem-
vindo!

— Annyeonghaseyo, samchon.

Meu pai sorri, curvando-se completamente para ele. Tio Park


Soo Hyun continua rindo alegremente, aproxima-se de mim e de Jae
Wook abaixando-se, coloca as mãos em nossas cabeças sacudindo
nossos cabelos, então nos abraça apertado. Pensei que isso doeria,
mas não... Foi bom... Jae Wook me encara e sorri.

— Vocês estão com fome?

— Nê, samchon baegopayô! — Meu estômago emite ruídos.

— Que bom, pois temos bulgogi, arroz, kimchi, doenjang jjigae,


tteok, pyeongyang naengmyeon e kimbap. Não sabia o que mais
gostavam...

— Gosto de tudo! — Jae Wook dá pulos rindo.

— Kamsahamnida. — Meu pai o agradece, dobrando o corpo


novamente.

Caminhamos até o carro com papai ouvindo tio Park Soo Hyun
explicando sobre como as coisas são por aqui.

A princípio, ficaremos alguns dias na casa dele, até encontrarmos


um lugar para nós, e papai trabalhará com o tio em sua loja de
roupas para aprender a atividade. Teremos uma professora para nos
ensinar português e os costumes locais — isso foi tudo o que
consegui entender, depois ambos começaram a falar sobre trabalho.
Nesse instante, viro para a janela do automóvel e só então
percebo a imensidão de prédios e a grandeza a perder de vista da
cidade. O pouco que ouvi falar sobre o Brasil não chegou nem perto
do que realmente estou presenciando. É muito, muito maior que
Seul. Abri o vidro do carro e um cheiro forte de algo estragado
invadiu o ambiente, a via em que estamos seguindo margeia um rio
de águas escuras, sem nada verde ao redor. Fechei o vidro bem
rápido e ouvi o riso do tio, que me encarava pelo retrovisor.

Sua casa é grande. Não como a nossa, em Seul, mas parece ser
um padrão aqui. Tem uma parte subterrânea, onde fica a garagem, e
outro espaço separado que não entendi direito para o que serve. No
térreo há duas salas bem espaçosas, uma cozinha grande, dois
quartos com banheiros e ainda um lavabo — que o tio explicou que é
um banheiro para visitas.

Ao sair da cozinha, nos deparamos com uma área aberta cheia de


mesas e cadeiras e uma piscina.

A frente da casa é gramada e tem outra área aberta com mais


duas mesas redondas e cadeiras.

No andar de cima, ficam os quartos do tio e dos filhos dele; alguns


já não moram mais aqui, ainda assim ele mantém tudo do mesmo
modo, para quando os recebe em casa durante as férias dos netos.

O tio nos destinou os quartos do térreo.

Após tomar banho, nos reunimos com ele e sua esposa. Eu


pensei que ela fosse brasileira, mas ela também é coreana. Eles se
conheceram no navio vindo para cá.
Todos falamos apenas em nosso idioma nativo. As comidas e
objetos decorativos também remetem a nossa terra; era como se,
dentro da casa, estivéssemos em algum lugar do meu país.

Naquela noite eu dormi tranquilo, apesar de Jae Wook ter dividido


a cama comigo e ter passado a noite grudado em mim.

Em nossa primeira semana, tio Park Soo Hyun nos mostrou o


bairro chamado Bom Retiro, onde meu pai começou a trabalhar —
também foi uma das primeiras palavras que aprendi em português.

O endereço onde a loja e a fábrica do tio ficavam antigamente é a


Rua José Paulino, e foi um dos primeiros empreendimentos
coreanos naquele lugar, aberto em 1977. Hoje, a loja fica em outra
rua, cheia de lojas pertencentes a coreanos — alguns que chegaram
no mesmo período que o tio, outros há pouco.

Logo que tio Park chegou ao Brasil, foi para o interior trabalhar
com agricultura, mas ele não entendia nada sobre plantação, então
veio para São Paulo.
Primeiro trabalhou como costureiro em uma pequena confecção
pertencente a uma família de judeus, foi assim que aprendeu a
profissão.
Anos depois, ele abriu sua própria fábrica têxtil, vendendo roupas
femininas baratas.
Agora mudou o foco da sua indústria e passou a produzir roupas
de alto padrão; meu pai fará o mesmo.
O tio alugou para o meu pai um imóvel na mesma localidade de
seu empreendimento, a Rua Aimorés. As lojas são mais bonitas, com
roupas que parecem de revista expostas em suas grandes vitrines,
diferente de outros comércios abarrotados de gente pelas calçadas,
prédios velhos quase grudados e produtos mais simples no mesmo
bairro, entretanto, parece ser outra localidade.

Hoje, quando retornamos do nosso passeio de reconhecimento,


uma mulher de cabelos amarelos, olhos amendoados e estatura
mediana, nos aguardava. Ela foi contratada pelo meu tio para ser
nossa professora.

— Annyeonghaseyo — ela nos cumprimenta em nosso idioma. —


Me chamo Ana e ensinarei português para vocês. — Sua voz é fina e
baixa.

— Annyeonghaseyo — eu e Jae Wook respondemos abaixando a


cabeça.

— Trouxe um prato que aprendi a fazer com minha avó, o nome é


arroz doce. — Ela pega uma travessa de vidro que está sobre a
mesa e nos oferece.

Olho para meu pai primeiro, ele balança a cabeça em uma


afirmativa, então aceito. Ana nos serve em pequenas tigelas também
de vidro.

— Kamsahamnida — agradeço, levando a colher com a comida à


boca. Degusto devagar, para sentir todos os sabores. É um prato
simples de arroz, com um caldo grosso de leite e uns fiapos brancos
que não identifico de imediato. Bem doce.

— Obrigada. — Ana me encara atentamente. — A palavra em


português utilizada para demonstrar gratidão é “obrigada” —
pronuncia cada sílaba pausadamente, articulando os movimentos da
boca devagar. Ao final, abre um sorriso.

Repito a palavra. Ana me elogia e dá um beijo em meu rosto.


Salto para trás, cobrindo a bochecha com a mão; o local onde os
lábios dela tocaram está mais quente. Encaro meu pai, desviando o
rosto depressa para os pés.

— Mianhada. — Ela meneia a cabeça. — Esqueci que não estão


acostumados com a cultura local ainda.

Tio Park nos guia até a sala de jantar. Ana senta-se entre Jae
Wook e eu. Ela aprendeu coreano enquanto ensinava português
para outras crianças que migraram para cá como nós. Os sons de
algumas palavras são incompreensíveis, muito difíceis, embora
conheça o alfabeto devido às aulas de inglês, a sonoridade e a
escrita não se parecem em nada.

Eu me esforço, mas a pronúncia não sai como a dela, a língua


enrola e o som que emito é esquisito. Minha vontade é atirar tudo
para longe e pedir para voltar para a Coreia.

Quando nota minha irritação, Ana para, sorri e retoma. Ela é


dedicada, explica os detalhes com riqueza até aprendermos
corretamente, mas me incomoda o fato de ela nos abraçar com
frequência.

— Vocês foram bem. É difícil, mas com dedicação e paciência


vocês aprenderão. — Ela abraça Jae Wook, que retribui feliz. Faz o
mesmo comigo, entretanto, meus braços ficam estáticos, não
consigo tocá-la. Ela me solta, guarda seus objetos na bolsa e se
despede. Só então volto a me mexer.

No dia seguinte, a esposa do tio Park nos leva para a igreja


coreana de São Kim Degun. — Não somos católicos, então não
entendo o motivo. — Chegando lá, um homem se aproxima ele não
parece ser coreano. Ergo a cabeça encarando a tia.

— É um dos padres da paróquia.

— Ele vai me fazer rezar? — Ela ri, bagunçando meu cabelo.

— Não. Trouxe vocês aqui para conhecerem outras crianças


coreanas que os ajudarão a se adaptar. Algumas estão aqui há
pouco tempo, outras nasceram no Brasil. Vocês vão gostar.

O padre de olhos grandes e pele negra sorri tão a vontade que


devolvo o gesto sem pensar, nos cumprimenta, pega as nossas
mãos e nos guia para uma área nos fundos da igreja, que está
repleta de crianças. Algumas estão cantando, outras brincando ou
comendo. Reconheço alguns dos pratos, os demais não faço ideia
do que sejam.

O padre chama um menino maior do que eu e conversa com ele


em português, então se retira e o menino nos guia, apresentando as
outras crianças.

Pouco depois, eles trazem lanches que não conhecemos para


experimentarmos. Estranho a princípio, mas a cada mordida aprecio
mais o gosto dos pães, frutas, bolos, a tal coxinha, doce de abóbora,
de mamão e brigadeiro.

Depois de comer e conversar, somos apresentados às


brincadeiras brasileiras e no final realizamos atividades coreanas
mais conhecidas.

Desde esse dia, passamos a frequentar a igreja. Aprendemos a


andar pelo bairro. Encontramos algumas pequenas lojas que vendem
produtos coreanos desde doces, bebidas e salgados à livros infantis
e alguns brinquedos. Andar pelas calçadas tornou-se um dos meus
passatempos preferidos, eu vejo muitos coreanos. Algumas ruas
parecem um pedaço do meu país, onde me sinto praticamente em
casa.

Em outras é possível ouvir vários sons e ver cores e fisionomias


diversas. Tudo tão familiar e tão diferente ao mesmo tempo. As
pessoas, até mesmo os coreanos, se comportam de forma calorosa,
noto mais demonstrações de afeto do que eu estava habituado. São
gestos tão naturais, tão comuns, mas para mim, difíceis de aceitar.

A única coisa que eu ainda não gosto é a professora. Meu irmão


se apega a ela cada dia mais e meu pai, que também passou a
frequentar as aulas, vive sorrindo para Ana como nunca o vi fazer
nem mesmo para minha mãe. Meu incomodo só aumenta.

Ao término da aula de hoje, depois do abraço longo que ela dá em


meu pai, corro até ele.

— Abeoji! — Ele se vira para mim interrompendo os passos,


enquanto eu apresso os meus. Assim que o alcanço paro, curvando-
me. — Abeoji, eu... eu não estou conseguindo entender o que essa
professora ensina. Poderia contratar outra?

— Peça a ela para explicar o que você não entendeu. Tenho


notado que está mais calado que o normal, Jae Young. Sei que a
adaptação é difícil, mas você já fez alguns amigos e entende
algumas coisas em português.

— Mas abeoji...

— Não tenha medo. — Ele se abaixa. Ficando joelhos, leva a mão


até minha cabeça, bagunçando meu cabelo. — Eu decidi seguir o
conselho do tio Park; assim que vendermos a casa de Seul,
compraremos uma aqui no Bom Retiro, dessa forma, você e seu
irmão não precisam passar por outra mudança. Farei o possível para
nosso recomeço não ser tão doloroso para vocês.

Ele não compreendeu o que eu disse.

Fecho os olhos, preenchendo meus pulmões com ar rapidamente.

— Eu não gosto dessa mulher! — pronuncio mais alto do que


pretendia. Meu pai me encara arrumando os óculos. Abaixo a
cabeça. Ele fica alguns segundos em silêncio.

— Aconteceu alguma coisa entre você e Ana Ssi? Ela o tratou de


maneira inadequada?

— Não...

— Se não houve problemas, dê mais uma chance a ela. Seu


irmão gosta da moça e trocar por outra pessoa agora seria mais uma
perda para ele. Lembre-se que você é o mais velho e deve cuidar
dele. Além do mais, Ana — Ele a chamou pelo nome? Nem usou o
nome da família dela ou sequer senhorita? Isso significa intimidade...
Com a mamãe era pelo menos dois nomes! — é muito competente.
Acredito que se contar a ela quais são suas maiores dificuldades
com o idioma, ela o ajudará.

— Mas...

— Preciso trabalhar, filho. Depois conversamos melhor sobre isso.

“Conversar depois” para meu pai significa “adiar por tempo


indeterminado”.

Ele se levanta, espalhando mais uma vez meu cabelo, e sai sem
dizer mais nada.

Assim o assunto se encerra.


3

Jae Young

Não levou muito tempo para a venda da nossa casa em Seul se


concretizar. Quando meu pai recebeu a notícia, depois de três meses
da nossa chegada ao Brasil, fez questão de nos levar para
comemorar em um restaurante.

Apesar de estar feliz por vê-lo alegre e risonho, eu sentia-me ao


mesmo tempo vazio, pois isso significava que não voltaríamos mais
para nosso país. Tenho medo de nunca mais poder visitar minha
mãe... Queria ir ao memorial no dia do seu aniversário e sempre que
eu sentisse saudades. Gostaria de contar a ela tudo o que
acontecesse na minha vida. Mas agora eu tinha certeza de que não
voltaria lá, pelo menos não enquanto fosse criança.

Com a ajuda de tio Park, meu pai levou mais dois meses até
encontrar a casa do jeito que ele queria. Nós três escolhemos juntos
a decoração. Eu sugeri pintar as paredes de fora de azul, a cor
preferida da minha mãe.

Após todos os arranjos, nos mudamos para a casa azul.


Além das aulas de idioma, Ana ficou encarregada das tarefas da
casa, como uma espécie de governanta — essa foi a desculpa que
meu pai arrumou para passar mais tempo com ela, pretexto que não
durou muito.

Uma noite em que estava resfriado, eu levantei para tomar água e


quando cheguei ao final da escada, eu os flagrei sentados no sofá
abraçados.

— Abeoji! — gritei.

Meu pai saltou do sofá. Ana me encarou e abaixou a cabeça em


seguida. Senti os olhos arderem e o coração pulsar muito rápido.
Não podia acreditar que meu pai estava substituindo minha mãe.

Ele se aproximou de mim, ajoelhou e levou as mãos até meus


braços. Balancei a cabeça e me libertei dele, correndo de volta para
o meu quarto e fechando a porta com a chave. Peguei a foto da
minha mãe que estava sobre a cômoda e me deitei na cama
abraçado a ela.

— Nunca vou te abandonar, mãe! Ninguém vai roubar seu lugar.


Não terei outra mãe! Meu pai pode tê-la traído, mas eu nunca farei
isso! Vou proteger sua memória e também protegerei Jae Wook!

Não deixei as lágrimas saírem. Mais do nunca, eu preciso ser


forte. Repetia em minha mente sem parar.

Puxei o lençol até cobrir a cabeça. Apertei com mais força a foto
da minha mãe, até adormecer.
*

Ouço batidas na porta. Abro os olhos com dificuldade, meu


pescoço dói e quase não consigo movimentá-lo. A foto da minha
mãe ainda está em meus braços.

Sento na cama, respiro fundo, beijo sua imagem e a coloco de


volta na cômoda.

Vou para o banheiro, lavo o rosto com água fria, só então sigo
para o café.

Sentados à mesa, meu pai, Jae Wook e Ana. Meu pai ainda está
aguardando a regularização da nossa permanência no país, então
não estamos frequentando a escola; as aulas permanecem em casa.

Evito olhar para eles. Acomodo-me ao lado do meu irmão.

— Bom dia. — Não respondo. — Jae Young. — Finjo não ouvir. —


Jae Young, precisamos conversar!

Encaro meu pai e começo a me servir.

— Jung! — Ana coloca a mão sobre a do meu pai, balançando a


cabeça em negativa.

— Melhor esclarecer tudo, Ana, Jae Young já tem idade para


entender. — Ele se vira para mim. — Eu e Ana vamos nos casar.

Atiro o prato no chão e puxo a toalha da mesa. Meu pai intervém


antes que tudo caia. Meus olhos queimam como fogo, as mãos se
fecham, parece que levei um soco no estômago.
— Se acalme ou passará o resto da semana no seu quarto.

— Faça o que quiser! Você não se importa conosco! Nem com a


mamãe.

— Jae Young! Não fale o que você não sabe.

— Eu sei! Você está traindo a minha mãe! — Ele se debruça


sobre a mesa e rapidamente sua mão espalmada atinge minha face
do lado esquerdo. Não choro. Eu suportei as pancadas da minha
avó, um tapa não é nada. Colocar essa mulher no lugar da mamãe é
o que dói de verdade.

Ana corre até ele e, antes que ele acerte o outro lado, segura seu
braço.

— Não bata nele, Jung! Jae Young é uma criança. Você se


arrependerá muito se fizer isso.

— Não precisa me defender. Não será minha mãe nunca!

— Não sou sua mãe nem pretendo roubar o lugar dela...

— Então por que se casará com o meu pai?

— Jae Young! — Meu pai grita. Ana o encara e levanta a mão


aberta, em um pedido de pare. Ele se cala.

— São assuntos diferentes. Eu e seu pai nos apaixonamos, isso


não significa que ele não gosta mais da sua mãe. Ela sempre terá
um lugar no coração dele.

— Não importa, vocês são adultos e nunca escutarão uma


criança. Além do mais, eu não acredito em você, muito menos no
que ele diz.

Encaro meu pai, que deixa os braços caírem ao lado do corpo em


sinal de derrota. Vejo uma lágrima escorrer em sua face. Curvo-me e
vou para o meu quarto.
4

Elleanor

Bom Retiro – Fevereiro,1996

O sol atinge meus olhos assim que levanto a cabeça para o alto,
na tentativa de ver nossa nova casa por inteiro. Papai se abaixa,
encostando os joelhos no chão, passa um dos seus braços em volta
do meu corpo, me fazendo ficar bem colada nele, levanta o outro e
aponta para a frente da casa.

— O que achou, Elleanor?

Estreito os olhos para conseguir enxergar pelo menos uma parte.


Parece amarela. Mamãe diz que é creme, não sei bem que cor é
essa, para mim ainda é amarela.

— Enorme, papai. Não vou me perder aí dentro?

Os dois riem, mas eu realmente penso que é possível sumir lá


dentro. É muito maior do que nossa casa anterior. Mamãe disse que
vovó morou aqui antes de ficar doente e se mudar para outra cidade.
Não paro de pensar no quanto ela é imensa! É igual àquelas casas
assombradas dos desenhos... E se for muito escuro lá dentro? E se
aquelas pessoas invisíveis aparecerem aqui também, aonde vou me
esconder?

Enquanto os homens da mudança tiram nossas coisas do


caminhão e carregam para dentro da casa nova, sento na calçada
embaixo da sombra de uma árvore pequena para me proteger do sol.
Ao lado, na casa azul, há dois meninos de cabelos pretos e olhos
pequenos esticados. Eles estão brincando de bola e vez ou outra me
olham.

Acho que eles também não gostam de mim, como as outras


crianças... Não sorriem, nem acenam. Pelo jeito, ficarei sozinha aqui
também. Por que nenhuma criança quer ser minha amiga? As únicas
pessoas que falam comigo são aquelas que ninguém vê e que
mamãe diz que é invenção da minha cabeça.

Certa vez, ouvi papai explicando para mamãe que são amigos
imaginários e que toda criança da minha idade tem um. Só que
nenhuma criança que conheço vê os invisíveis. Além do mais, eles
surgem sem que eu os invente; eu não quero ser amiga deles.

Abraço meus joelhos e me encolho, encostando-me na árvore.


Queria ficar invisível também, pelo menos para aquelas pessoas e
para as outras crianças, assim ninguém riria de mim. Apoio a cabeça
no joelho, olhando de soslaio para a casa azul. Sorrio observando os
dois garotos brincando e pensando como seria bom se eu pudesse
me juntar a eles.

Sinto a pele molhada e grudenta, está muito quente. Só então me


dou conta de que a sombra da árvore diminuiu e o sol já atinge
metade da minha canela. Tento me encolher, mas não posso mais
fugir. A cabeça dói e minha barriga faz um barulho tão alto que
chama a atenção dos garotos de olhos puxados. Eles param de jogar
bola e me encaram. Escondo meu rosto puxando os cabelos para
frente.

— Elleanor! — Ouço a voz do meu pai um pouco longe. — Elle!

Agora o escuto bem perto. Papai se abaixa, afastando o cabelo do


meu rosto, e sorri.

— Por que está sentada no sol?

— Não quis atrapalhar. Fiquei com medo dos homens não me


verem e pisarem em mim. — Papai ri e beija minha cabeça, depois
pega minha mão.

— Por que não veriam você? — Ele me encara com os olhos bem
grandes.

— Sou pequena e eles são grandões, como vão me enxergar?

— Você não é pequena, é uma criança. — Pisca, rindo. — O que


acha de ficar no seu quarto novo? Já está pronto. Você pode colorir
seus desenhos favoritos.

Sorrio para ele e balanço a cabeça. Minha barriga faz um barulho


de novo. Papai gargalha, dando batidinhas na minha cabeça,
verificando o relógio no seu pulso.

— Está com fome? Sua mãe não teve tempo de preparar almoço,
pois está organizando a casa. O que acha de almoçarmos
sanduíches?
— Perfeito, papai! — Dou um beijo estalado em sua bochecha. —
Quero com bastante queijo e ketchup.

Papai me ajuda a levantar e segura minha mão, arrumo o vestido,


batendo na saia para tirar a poeira, então seguimos até uma
lanchonete no final da rua. Enquanto esperamos o lanche ficar
pronto, papai compra refrigerante para mim.

— Não conte para a mamãe. Nosso segredo, ok?

Ele me dá uma piscadinha com o dedo indicador na frente da


boca. Balanço a cabeça concordando, afinal, mamãe não gosta que
eu tome refrigerante durante a semana, se souber, ela ficará muito
brava comigo e com papai.

Assim que os sanduíches ficam prontos, voltamos para casa.


Papai me leva até meu novo quarto. Subo os degraus da escada
pulando; sempre quis morar em uma casa igual a dos filmes.

Acomodo-me no chão e devoro meu sanduíche. O queijo está


bem mole e escorre pelo pão junto com o ketchup. Minha mão fica
toda melecada, mas estou com muita fome e só limpo quando
termino de comer, passando-a na saia do vestido, que fica todo
manchado de vermelho.

Pego os desenhos que papai deixou sobre a cama, lápis de cor e


os vidros de tinta. Nem sinto o tempo passar, distraída pintando
minhas princesas preferidas e ouvindo o barulho de marteladas, de
furadeira, e meus pais falando alto sobre onde colocar isso ou aquilo.

Até que a luz do meu abajur acende sozinha.


Imediatamente o quarto fica frio e todos os pelos do meu braço se
levantam. Fecho os olhos abraçando o corpo e começo a cantar bem
alto, com os dedos dentro dos ouvidos. O frio aumenta, fazendo meu
queixo bater, não consigo mais cantar.

Uma mão bate no meu ombro e uma voz cochicha no meu ouvido.

— Garota, abra os olhos. Eu sei que você pode me ver. —


Empurro os dedos ainda mais fundo nos ouvidos. — Se não abrir,
vou gritar até estourar seus tímpanos.

A voz parece de um menino. Ele começa a cantarolar a mesma


música que eu estava cantando, aumentando o volume pouco a
pouco. Será que ele consegue mesmo estourar meus ouvidos?

Abro os olhos vagarosamente, meu corpo treme, não consigo


controlar, fica difícil respirar.

Quando termino de erguer as pálpebras, o menino surge na minha


frente, colocando seu rosto bem perto do meu. Cubro a face e grito.

— Papai! Papai!

Papai não vem.

O menino puxa minhas mãos e me encara. Pisco algumas vezes.


Ele parece ser um pouco mais velho do que eu. Seu rosto está todo
ralado e tem um corte grande do lado esquerdo, que vai até perto da
orelha; o sangue está seco. Seu semblante é triste e ele parece estar
tão assustado quanto eu... Talvez, se eu explicar que tenho medo,
ele vá embora.

— Que...quem é você?
— Eu? Hum... não me lembro... — Coça a cabeça e encolhe os
ombros. Suas roupas estão sujas de terra, têm manchas de sangue
e um rasgo na perna direita. Os braços estão feridos. Meu coração
acelera mais a cada novo machucado que noto em seu corpo.
Sufoco.

— Por favor, vá embora. Você está me assustando.

— Mas você é a única pessoa que consegui falar até agora. Eu já


tentei pedir ajuda para um monte de gente. Não quero ficar sozinho.

Balanço a cabeça de um lado para o outro. Gostaria de ajudá-lo,


mas eu sinto tanto medo que não controlo meu corpo. Eu não
consigo...

— Sou só uma criança, é melhor pedir para um adulto.

Me afasto de costas até bater na porta do quarto, tateio buscando


a maçaneta. Viro de frente para a porta e a abro. Corro o mais rápido
que minhas pernas conseguem se mover.

Saio pelo portão da casa e continuo correndo.

Quando olho para trás, vejo o menino parado no portão me


encarando e acenando. Mantenho o ritmo... Perto da lanchonete que
fui com papai avisto uma casa que parece abandonada. Está repleta
de mato. Paro apoiando as mãos nos joelhos, recuperando o fôlego.
Seguro na grade de ferro inclinando a cabeça até enxergar a porta.
Aberta.

— Tem alguém aí?


Nenhuma resposta. Empurro a grade com força; ela se move um
pouco, o suficiente para que eu possa entrar. Fico de lado,
atravessando a pequena abertura. Ando até a porta. Coloco apenas
a cabeça para dentro e observo cuidadosamente. Não ouço nenhum
ruído, não vejo nenhum objeto ou móvel, apenas folhas, sujeira e
paredes rabiscadas. Também noto a presença de teias de aranha.

— Não gosto de nenhum inseto, mas gosto menos ainda de


pessoas como aquele menino.

Respiro fundo e adentro a casa. Ando um pouco pela sala,


procurando um lugar limpo, entretanto, está tudo igualmente sujo.
Sento no chão, encostando-me à parede de frente a porta. Canto
algumas músicas, aos poucos me acalmo e relaxo.

Os olhos começam a pesar e coçam como se estivessem cheios


de areia. Esforço-me para mantê-los abertos. Bocejo uma vez...
duas... três...
5

Jae Young

Desde o casamento do meu pai com Ana, as horas dos meus dias
são gastas no meu quarto, no quintal e no meu refúgio secreto. Não
vou mais aos encontros na igreja de São Kim Degun.

No início, eu acreditei que pudéssemos ser felizes aqui, mas


agora eu sei que não pertenço a esse lugar, não é meu povo nem
minha família, idioma, sabores... Para ser honesto, não é confortável
estar com essas pessoas e não quero. Às vezes acho que as
demonstrações de afeto são para esconder as verdadeiras intenções
deles.

Ver Ana ocupando o lugar da minha mãe, distribuindo sorrisos e


abraços, andando para cima e para baixo com Jae Wook — que a
chama de mãe — faz meu coração se espremer como uma laranja
velha.

Ela tem a mania de bagunçar meu cabelo quando estamos na


presença do meu pai, que é o único momento em que sou obrigado a
permanecer com eles.
Meu pai me prometeu que se eu me comportar, poderei voltar
para a Coreia, só não disse quando, por isso suporto as mãos
espinhentas daquela mulher me tocando, ao contrário de Jae Wook,
que retribui os gestos dela.

Aliás, ele já se comporta de maneira muito diferente de um ano


atrás. Talvez o fato do meu irmão ser bem mais novo do que eu e
não entender direito o que aconteceu com a mamãe, nem ter tantas
lembranças dela, facilitou para que ele aceitasse esse casamento e
aprendesse os costumes locais. Jae Wook passa facilmente por um
nativo.

Depois de terminar o café, pego ele pela mão e vamos para o


gramado da casa. O dia hoje começou bem quente, mais do que os
outros. Embora o céu seja sempre embaçado devido a fumaça, é
possível ver o brilho do sol especialmente intenso.

O tempo que passamos juntos com as crianças no centro da


paróquia nos ajudou a desenvolver habilidade em uma das paixões
do país, o futebol, principalmente meu irmão. Meu pai mandou fazer
duas traves e instalou no gramado. Essa é a nossa atividade
preferida.

Jae Wook chuta a bola, que passa longe da minha trave,


chocando-se com as grades de ferro do portão, que chacoalham e
fazem um barulho alto. Dois segundos depois, o som que ouvimos é
a voz melosa e irritante da Ana.

— Meninos, cuidado para não se machucarem e para a bola não


ir para rua!
— Desculpa, mamãe. — Jae Wook corre até o batente da porta
da sala, que está aberta.

Viro de costas e caminho em direção a bola. Um carro branco


para na calçada em frente a nossa casa. Uma mulher de estatura
baixa salta do carro, ela sorri e empurra o encosto do banco, dando a
mão para uma garotinha de rosto redondo cheio de manchas
pequenas. Um homem alto e magro sai do lado do motorista, levanta
os braços e os agita no ar. Após alguns segundos, um caminhão
grande estaciona em frente da casa ao lado.

— Hyung! — Ao ouvir Jae Wook, giro a cabeça em sua direção,


parado com as mãos na cintura e um bico gigante. — Não é para
segurar a bola com a mão. Não aprendeu ainda? Você precisa jogar
para mim!

— Esqueci. Vou chutar agora, está bem?

Ele estica os lábios, se posicionando na frente da trave. Coloco a


bola no chão movimentando o pé contra ela, que rola entre as
pequenas folhas verdes até Jae Wook, que a espera pronto para
dominá-la e correr com ela entre seus pequenos pés. Mantemos o
ritmo de tocar a bola um para o outro, mas, por alguma razão, meus
olhos insistem em observar aquelas pessoas.

Enquanto alguns homens andam apressados carregando caixas e


móveis para dentro da casa, o senhor que chegou de carro
juntamente com a mulher e a garotinha de rosto redondo, olham para
a construção, mais especificamente para o andar superior. A menina
pisca algumas vezes, depois aperta os olhos, enquanto o homem se
ajoelha abraçando-a. A boca dele se mexe, mas não consigo
entender o que ele diz. Os adultos parecem rir, mas ela não.

— Ai! — A bola bate na minha cabeça. Massageio o local


encarando meu irmão. Jae Wook ri cruzando os braços.

— Se prestasse atenção no jogo, não teria te acertado.

— E se a bola atingir minha cabeça outra vez, jogará sozinho.

Volto a brincar com ele, entretanto minha atenção é toda da


garotinha, que não demonstra estar feliz. Ela olha para nós, mas não
sorri, pelo contrário, abaixa a cabeça e segue para debaixo da árvore
que fica na calçada entre as nossas casas. Não consigo mais vê-la
direito. Estico o pescoço sempre que corro naquela direção, no
entanto, a única coisa visível é a ponta dos seus sapatos de boneca
pretos.

— Wook e Young, hora do lanche!

Ana aparece na varanda carregando uma bandeja com maçãs,


dois copos de suco de laranja e duas fatias de bolo de chocolate.
Meu irmão solta a bola, que rola até a grade, e corre até Ana. Sem
pestanejar ando até lá, aproveitando para analisar mais de perto a
garotinha. Abaixo cuidadosamente agarrando a bola, encosto o rosto
na grade. Seu corpo minúsculo parece se fundir ao tronco da árvore,
os joelhos estão dobrados e os braços cruzados apoiados no joelho,
como se fossem um travesseiro, onde ela repousa a cabeça com os
cabelos escondendo parte do rosto. Será que ela está chorando?
Provavelmente também não queria se mudar...
O coração começa a pulsar mais forte, ouço as batidas como se
ele estivesse no pescoço e não no peito, a respiração também
acelera e o estômago esfria.

Sem pensar, estico a mão, que passa entre as grades do portão,


tocando de leve alguns dos fios do seu cabelo, que na luz do sol
emitem um brilho dourado. Mãos pequenas envolvem meu pescoço,
fazendo com que puxe o braço de volta na velocidade da luz,
saltando para trás e caindo de bunda no chão.

A garota levanta o rosto em câmera lenta, dou impulso com as


mãos no chão, pondo-me de pé antes que ela gire por completo em
minha direção. Jae Wook junta os olho e franze a testa, revezando o
olhar entre mim e a garota.

Quando seus olhos finalmente alcançam meu rosto, sinto um calor


nas bochechas e um caroço na garganta, que me impede de engolir
a saliva. Ela aparenta estar desconfortável, movimentando a cabeça
como um raio, se escondendo entre os joelhos de novo. Não foi
minha intenção assustá-la.

Penso em chamar sua atenção e pedir desculpa, mas desisto,


puxando Jae Wook para dentro de casa, que tenta se soltar
reclamando.

— Ainda quero brincar, hyung! Mamãe nem chamou para o


almoço.

Não respondo, apenas continuo arrastando-o até adentrar a sala.


Ligo a televisão, colocando-o no sofá. O som dos chinelos de Ana
estalando contra o assoalho me faz levantar no mesmo instante.
Ando rápido, mas não o suficiente, e acabo encontrando-a em frente
à escada. Interrompo os passos. Ela me encara, inclinando a cabeça
para o lado esquerdo, uma de suas mãos apoiada na cintura e a
outra segurando uma colher de pau.

— Aconteceu alguma coisa? — Nego sacudindo a cabeça. —


Está se sentindo bem? Seu rosto está pálido.

Ana tira a mão da cintura levando até minha testa, dou um passo
para trás antes que me alcance. Ela abaixa a mão levantando a
sobrancelha. Inspira profundamente.

— Me chame se precisar, que avisarei Jung na loja ou te levarei


para o hospital.

Ela olha para os pés movendo o corpo. Assim que noto espaço
suficiente para minha passagem, corro, saltando os degraus da
escada de dois em dois. Paro no topo e observo rapidamente: ela
está sentada ao lado do meu irmão, alisando seu cabelo. Jae Wook
deita a cabeça sobre suas pernas.

Sigo para o quarto. O coração ainda bate apressado e o rosto


permanece quente. É estranho, mas pela primeira vez, não me
incomodo com a cena que acabei de assistir; o rosto triste da
garotinha preenche todos os meus pensamentos, embora eu não a
conheça.

*
Os olhos coçam e a boca se abre em um longo bocejo, estou
debruçado sobre o livro de português, aberto desde o término do
almoço, as letras se embaralhando, os ombros doloridos.
Espreguiço-me na cadeira. O relógio na parede acima da
escrivaninha marca quatro horas, meu pai ainda demorará a chegar
do trabalho e Jae Wook provavelmente está jogando vídeo game.
Esse é o horário que Ana começa a preparação do jantar, ela nunca
percebe quando saio.

Calço meu tênis. Abro a porta com a precisão de uma flecha,


rápido e sem ruído. Piso suavemente com a ponta dos pés até
alcançar a escada. Paro. Estico o pescoço até enxergar a sala por
completo. Vazia!

Avanço pelos degraus prendendo a respiração, me esgueirando


pela parede. No último degrau, aguardo, atento. Assim como a sala,
pela quietude, aparenta não haver ninguém na cozinha.

O estômago reclama, ignoro, caminhando até a porta. De novo ele


ruge, então me arrisco até a cozinha, observando com cuidado para
me certificar de que Ana realmente não está.

Caminho apressado até a geladeira e pego alguns pedaços de


kimbap, enfio no bolso enquanto faço o caminho de volta até a sala.

Assim que giro a maçaneta, ouço passos no alto da escada.


Dessa vez não há tempo para cautela, apenas puxo a porta,
atravessando-a o mais rápido que posso; poucos metros e eu
escapo pelo portão, correndo na calçada até me afastar de casa.
Minutos depois, a respiração volta ao normal e os pés
movimentam-se em paz. O ar está um pouco mais fresco. Cruzo a
rua certificando-me de que ninguém está prestando atenção em mim,
só então me aproximo da grade. Levo a mão para empurrá-la,
contudo há um pequeno espaço entre o portão e o batente.

— Mas eu fechei ontem quando sai. Lembro-me claramente...


Talvez seja melhor voltar. Não! Pode ser algum animal que forçou a
entrada.

Inspiro o ar preenchendo todos os espaços do pulmão, soltando


de uma vez pela boca. Ao empurrar a porta da velha casa
abandonada, meus olhos se deparam com o que causou a pequena
abertura no portão.

Ando devagar, tentando minimizar o barulho dos pés esmagando


as folhas para não assustá-la; parece que ela também precisa de um
lugar para se esconder. A garotinha do rosto redondo está sentada
no chão com as pernas dobradas envoltas pelos próprios braços,
onde repousa a cabeça. Não se mexe. Ela dormiu? Há quanto tempo
está escondida aqui? Será que está com fome?

Aproximo-me mais, até ficar de frente para ela. Abaixo, inclinando


a cabeça, o ouvido direito quase encostando em seus cabelos. Sua
respiração ressona com força. O cheiro dela é adocicado, lembra
morango. Ela é tão pequena...

Afasto uma mexa do seu rosto com a ponta dos dedos. Apesar do
formato arredondado e das manchinhas perto do nariz, ela até que é
bonita. Tem lábios proporcionais e o nariz fino.
Ela se mexe e meu braço reage ao mesmo tempo, voltando para
a lateral do meu corpo.

Se outra pessoa tivesse encontrado-a no meu lugar, poderia


sequestrá-la ou assustá-la... Definitivamente, ela não devia estar
aqui, é perigoso.

— Oi! Menina! — Cutuco sua cabeça com a mão esquerda de


leve, para não machucar. Ela se balança. — Menina! Oi?

Ela levanta a cabeça piscando os olhos, esfrega-os e só então se


dá conta da minha presença. Encosta na parede esbugalhando os
olhos, evidenciando a tonalidade verde escuro; seus olhos são
bonitos, os mais lindos que eu já vi.

— O que faz aqui sozinha? Perdeu-se? — procuro falar o mais


calmo possível.

Ela parece assustada e amedrontada. Agita a cabeça de um lado


para o outro, se encolhendo. Pego um pedaço de kimbap do bolso.

— Está com fome? — ofereço. Primeiro ela me encara, depois


sorri timidamente, então abre a mão. Deposito no meio de sua
palma.

— O que é isso?

— Kimbap. — Ela o encara juntando os olhos e fazendo bico.


Meus lábios se abrem espontaneamente, de forma tímida, contudo a
sensação é agradável, igual a um abraço de mãe. Da minha mãe.
6

Elleanor

Os olhos coçam, uma voz bem perto parece me chamar. A


imagem na minha frente não é clara, mas acho que é um menino. É
o garoto machucado? Pisco, me erguendo e me preparando para
fugir. Abro bem as pálpebras. O cabelo dele é preto e bem liso,
quase cobrindo os olhos, que são puxados. O garoto da casa azul!
Ele me olha de um jeito engraçado, será que é por causa do meu
vestido sujo?

— Está com fome? — Um buraco enorme se abre assim que ele


termina de perguntar, meus olhos seguem para sua mão, que segura
uma espécie de biscoito preto.

— Kimbap. — Não é biscoito. O que é então? — Pode comer, é


gostoso.

Eu mordo um pedaço. Tem um gosto diferente, mas não é ruim.


Continuo tirando pedaços pequenos e o buraco na minha barriga vai
diminuindo. Fecho os olhos, erguendo e abaixando os ombros
enquanto saboreio a textura de papa, nem doce nem salgada.
— Parece arroz com ovo e outra coisa esquisita. — Ele vem para
o meu lado e senta no chão. Olha de esguelha para mim.

— É feito de arroz, legumes cozidos e ovo. Essa parte preta é


alga. — Encosta a ponta do dedo no tal kimbap.

— Alga? Aquela planta que tem nos desenhos animados? — Rio.


Pensei que fossem de mentira.

— Sim. Você é uma garotinha engraçada que tem olhos bonitos.


— Ele me encara. — Por que está aqui sozinha?

— Não estou só, estou com você. — Sorrio satisfeita por ter
pensado nessa resposta. Não posso contar que fugi do menino
invisível. Ele balança a cabeça e acho que devolve o sorriso, pois os
lábios se curvam um pouco. Será que ele não aprendeu a rir? Ou
está triste?

— Eu quis dizer antes de eu chegar aqui. Está brincando de


esconder? — Nego com a cabeça. — Alguém brigou com você?

— Não. — Viro o rosto para a parede. Ele segura nos meus


ombros e puxa de volta.

— É perigoso vir sozinha para cá. — Seu semblante lembra o do


meu pai quando está bravo, instantaneamente abaixo os olhos. — O
que aconteceu?

— Se eu te contar, não vai acreditar em mim. Ninguém acredita.


— Ele se curva até nossos rostos se encontrarem outra vez. Franzo
minha testa juntando os lábios, que ficam um pouco mais altos.
— Vai me contar uma mentira? — Pisco, torcendo a boca e
crispando ainda mais a têmpora.

— Eu não minto! — Arrumo a postura e cruzo os braços.

— Então por que eu não acreditaria?

Seus olhos puxados se esticam até quase rasgar. Ele continua


sério, mas fala com calma. Rosto de criança com jeito de adulto...
Talvez seja um anjo como nas histórias que a mamãe conta ou como
Gael.

— Pode me falar, eu acredito em você.

— Como, se eu nem te contei ainda? — Ele enfia a mão no bolso


e me entrega outro kimbap. Enquanto mastigo, ele me observa.

— Você quer? — Pego o pedaço que sobrou e levo até a boca


dele, que se inclina para trás.

— Come, eu não estou com fome. — Coloco o restante na boca


sob seu olhar atento. Assim que engulo, ele sorri. — Agora me conte
exatamente o que te fez se esconder aqui.

Como ele sabe que estou escondida? Abaixo a cabeça. Ele se


abaixa até seus olhos encontrarem os meus. Não entendo a razão
de repetir tanto isso. Ah! É possível que ele não enxerga direito?

— Você nunca será meu amigo se eu te contar. Fugirá de mim


como as outras crianças.

— Já disse que acredito em você. E só não serei seu amigo se


você não quiser.
— Verdade? — Levanto a cabeça depressa, sorrindo. É a primeira
vez que ouço isso.

— Verdade.

— Eu só queria me esconder do menino machucado.

— Menino machucado?

— Sim. — Ele me analisa deitando a cabeça para o lado. Acho


que eu devia ter ficado calada. Suspiro. — Ele apareceu no meu
quarto... Eles sempre aparecem para mim. Só eu consigo vê-los.

— Hum... Fantasmas?!

— O que é um fantasma?

— São pessoas que não vivem mais neste mundo. Como minha
mãe...

— Você também as vê?

— Não. Mas acredito em você... Não acho que eles te farão mal.

— Mas eu não quero vê-los. Nem falar com eles. Sabe como
posso mandá-los embora? — Ele bate de leve na minha cabeça.

— Não. Mas se surgir algum de novo, pode me chamar, eu te farei


companhia. — Dou um sorriso bem grande, sentindo as bochechas
quentinhas.

— Jura?

— Sim, eu juro.
Ele pega minha mão e fecha os dedos, deixando apenas o dedo
mindinho e o polegar soltos, repete a mesma coisa com a mão dele.
O que ele está fazendo? Meus olhos grudam em nossas mãos,
prestando atenção a cada movimento. O menino dos olhos puxados
junta seu dedo mindinho no meu inclinando sua mão até nossos
polegares se tocarem.

— Agora tenho que cumprir o que te prometi.

— O que isso significa? — Ele solta minha mão.

— Um juramento ou promessa. O mesmo que cruzar os dois


dedos assim — Ele faz um xis com os indicadores beijando-os em
seguida. — Entendeu?

— Sim. — Ele toca minha cabeça sacudindo e desarrumando o


cabelo. É agradável, mesmo que depois dê trabalho para penteá-los.
— Você não me disse seu nome.

Seguro as mãos na frente do corpo, encostadas ao vestido.


Inclino um pouco para o chão, mexendo o pé direito como se fizesse
alguns riscos.

— Você também não.

— Me chamo Elleanor. — A pele do meu rosto se aquece como se


estivesse em chamas.

— Park Jae Young.

— Parque? — Levanto a cabeça encarando-o. — Nunca conheci


ninguém com esse nome. Achei que parque fosse só um lugar onde
tem brinquedos.
— De onde venho é um nome comum, meu nome de família. E
não é esse tipo de parque. Mas pode me chamar de Alex. O nome
brasileiro que meus colegas me deram.

— Vou te chamar de Jae, é diferente e único, Alex é muito


comum.

— Isso significa que sou especial?

— Precisamente.

Ele sorri deixando seus dentes bem aparentes, os lábios quase


encostando nas orelhas. No rosto, duas bolinhas rosadas se formam,
uma de cada lado. Seus olhos ficam menores e esticados, como se
sorrissem também. Ele é um menino bonito! Devolvo seu gesto para
ele e para mim mesma.

— Vamos? Já escureceu e seus pais provavelmente estão


preocupados com você. — Concordo meneando a cabeça.

Jae Young coloca as duas mãos nos bolsos e começa a caminhar.


Eu o sigo quase correndo, tentando acompanha-lo com minhas
pernas curtas. Para cada passo dele, preciso de três meus.

Embora ele pareça mais um adulto do que uma criança, acho que
posso gostar dele com facilidade. Pela primeira vez, não quero me
esconder nem correr para longe e meu coração pula alegre como as
batidas de uma música de festa.

Não trocamos mais nenhuma palavra, no entanto não é


necessário, só a presença dele basta.
Quando chegamos em frente ao portão da minha casa,
escutamos meus pais me chamando. Mamãe resmunga que me
deixará de castigo por uma semana.

— É melhor você entrar. — Ele toca o topo da minha cabeça.

— Sim... — Jae me ajuda a abrir o portão. Dou alguns passos e


paro. Viro para ele. — Obrigada por hoje.

— Não precisa agradecer. E se receber visitas indesejadas, me


chama.

— E se for à noite? — Inclino a cabeça para o lado, quase


encostando em meu ombro, segurando a barra do vestido. Meus
lábios se abrem um pouco e bem onde fica o coração esquenta.

— Eu virei do mesmo jeito.

Algo que não sei explicar toma conta de mim e me impele a correr
até ele. Quando me aproximo o suficiente, impulsiono o corpo com
os pés, beijando meio sem jeito o seu rosto do lado esquerdo, perto
do queixo. O máximo que alcancei.

Ao tocar os pés no chão, noto os olhos de Jae Young arregalados


e a mão esquerda sobre o local que meus lábios tocaram.

Antes que ele brigue comigo, corro para dentro de casa saltitando,
um sorriso enorme que não quer desaparecer se forma, até dar de
cara com mamãe furiosa — seu rosto assemelhava-se a um dragão
pronto para cuspir fogo em mim.

— Posso saber onde a senhorita se meteu desta vez? Faz ideia


do quanto a procuramos? — Inclino a cabeça para baixo soltando o
ar. Definitivamente, muito encrencada! Mordo os lábios. — Está de
castigo pelo resto da vida, Elle!

Ela eleva a voz e as mãos, agitando-as com força. Aproveito para


correr pelos degraus direto para o quarto, trancando a porta atrás de
mim.
7

Elleanor

Depois de três dias sem brincar do lado de fora, meu castigo


finalmente acabou e pude voltar a explorar a casa nova. Ela é bem
mais bonita do que a antiga e tem um quintal em cima do telhado
que fica bastante iluminado à noite — dá para ver as estrelas, igual a
uma casa na árvore!

Também descobri que a janela do quarto do Jae Young é perto da


lateral desse quintal, praticamente colada. Posso vê-lo sempre que
quiser.

Hoje eu o observei lendo para o irmão. Os dois sentados na cama


lado a lado. Ele é muito carinhoso e atencioso com o pequeno. Eu
queria ter um irmão que cuidasse assim de mim. Deve ser muito
bom! Ele bem que poderia ser meu irmão...

— Elle! — Papai aparece na porta. — Então é aqui que a


senhorita está! — Abre os braços para mim. Corro até ele, que me
eleva rodando no ar. Rio com o frescor gostoso que o movimento
causa. Ele para e me coloca no chão. — O que faz aqui sozinha?

— Olhando as estrelas. Elas são bonitas.

— São lindas, concordo com você, querida. — As mãos dele


repousam na cintura, a cabeça erguida em direção ao céu. Papai
sorri, acho que ele também gosta de admirar o céu. Após alguns
segundo, ele se volta para mim. — É muito bom ficar aqui, mas
agora é hora de dormir. — Pisca para mim, envolvendo minha mão
na sua e me guiando para dentro. — Adivinha quem vai contar
história para minha princesinha hoje?

— Você! — Adoro quando é o dia do papai me colocar para


dormir. Ele conta histórias engraçadas, imitando as princesas e os
bichos. Por isso, eu solto sua mão e corro na frente, para chegar
mais rápido no meu quarto.

Ao finalizar o conto, ele me cobre com o lençol e dá um beijo na


minha testa. Espera eu fazer minha oração e só depois me deseja
boa noite.

— Abajur aceso, certo?

— Correto, papai!

Ele sai puxando a porta atrás de si. Fecho bem os olhos, embora
o ritmo acelerado do meu coração me deixe agitada — contrariando
os bocejos — mantendo-me acordada.

Um barulho perto do guarda-roupas me faz sentar rápido,


cobrindo a cabeça com o lençol. O coração pulsa na garganta, que
está seca, não conseguiria engolir a saliva nem se houvesse ao
menos um pouco.

Algo toca o tecido, agarro suas pontas com força, mas seja lá o
que for, é mais forte do que eu e o retira de mim. Mantenho os olhos
apertados o máximo que posso.

Pontas de dedos gélidos tocam meu braço, todo meu corpo se


arrepia e treme igual a uma batedeira de bolo. Meu corpo recebe
impulsos que o joga para os lados.

— Menina! Ei! Abra os olhos!

— Vai embora, por favor... Só quero dormir. — Meu rosto é


banhado pelas lágrimas que brotam nos cantos dos olhos.

— Por que está chorando? Eu só quero conversar. Olhe para mim


ou continuarei te sacudindo.

A voz familiar me faz recordar a face ensanguentada de dias


atrás, só pode ser o menino que apareceu no dia da mudança. Não
quero vê-lo, mas sou forçada a abrir os olhos. Ele sorri, e além do
rosto, também há sangue escorrendo da sua boca e alguns dentes
faltando.

— Por que está atrás de mim? — A voz sai tremula e baixa, quase
um sussurro.

— Estou sozinho, não encontro meus pais. Pode me ajudar?

— Eu não sei quem é você e nem como te ajudar. Peça para um


adulto. Por favor, vá embora.
— Eu já tentei, mas só você me vê. E se não me ajudar, eu ficarei
aqui para sempre. — Meus olhos piscam e não consigo respirar, o
coração que saltava freneticamente, de repente perde a força, acho
que parou! Ele não pode ficar aqui!

Salto da cama e o empurro. Saio correndo pela casa. As luzes


estão desligadas, meus pais provavelmente já dormiram. As palavras
de Jae surgem na minha cabeça e meu coração volta a bater. Vou
para a escada que dá acesso ao quintal de cima. Subo saltando os
degraus. Empurro a porta com força — ela bate e seu ruído ecoa.
Interrompo os passos aguardando meu pai aparecer, entretanto nada
acontece.

Meu peito se movimenta para cima e para baixo ligeiro. Volto a


caminhar até me aproximar da janela do quarto do Jae Young. Tudo
escuro. Penso em desistir, contudo, ao ouvir sons que lembram
passos, retomo o plano original.

— Jae! — chamo baixinho, para não acordar todos os vizinhos,


mas parece que ele também não ouve.

O coração pulsa tão forte que dói. Todos os membros fraquejam,


balançando como gelatina. Os passos atrás de mim se tornam mais
fortes, olho na direção da escada e o garoto machucado caminha
com lentidão ao meu encontro. Nesse momento, as pernas não
suportam mais o meu peso e caio sentada.

Com o auxílio das mãos, me arrasto até encostar na mureta,


trazendo as pernas até a barriga e as envolvendo com os braços,
apertando o máximo que sou capaz. Deito a cabeça nos braços,
fecho os olhos com força e começo a cantar.
Subitamente todo meu lado esquerdo gela.

— Por que vive correndo de mim? — A voz do menino é fraca e


ele pronuncia cada palavra pausadamente.

— Vai embora! — Peço com cuidado, em meio às lágrimas que


voltam a escorrer pela minha face.

— Eu não sei para onde ir. Não tenho mais ninguém para me
ajudar. Eu... Nem ao menos sei onde estou... Você é a única pessoa
que me vê. Por favor...

Meu coração se aperta, dividido entre o desejo de abraçar o


menino e a vontade de fazê-lo sumir. Assim, a imagem do meu
amigo de olhos puxados surge de novo... Jae jurou me proteger... Ele
disse para chamar por ele... É o único que acredita em mim...

— Park Jae Young! Park Jae Young! — repito cada vez mais alto.
De repente, escuto o ruído de algo que se assemelha uma porta se
abrindo.

— Elleanor? — É a voz do Jae. — O que houve?

Outro barulho, mas dessa vez parece com uma pancada no chão
ou parede. Levanto a cabeça apressada, o rosto molhado pelas
lágrimas, e encontro Jae me encarando com os olhos arregalados.
Todo o corpo vira gelatina, as órbitas queimam, jorrando água
salgada como uma cachoeira.

Ele se abaixa abrindo os braços que, assim que me alcançam, me


trazem para junto do seu corpo. Ao contrário do que imaginei, seu
abraço apertado é confortável e me aninho como um gatinho. O ar
que ele solta pelo nariz balança alguns fios do meu cabelo.

— Por que chora? — Ele alisa meus cabelos. Sinto seu coração
bater apressado. Será que eu o assustei? O afasto com cuidado até
que seja possível observá-lo.

— Não queria te incomodar, mas eu não tive escolha. Desculpa...

— Shh! Não precisa se desculpar. Sou seu amigo. Está


tremendo? Frio? — Nego com a cabeça. — Outra visita indesejada?

— Sim... Você disse que eu podia te chamar...

Ele seca minha face com os polegares. Inspira o ar


profundamente. Seus olhos brilham como as estrelas e aos poucos
noto meu corpo recuperar as forças. Jae segura minha mão,
ajudando-me a levantar, passa um dos seus braços sobre meu
ombro, mantendo-me junto de si.

— Você fez bem ao me chamar. Agora não chore mais. Ficarei


aqui até o fantasma ir embora, combinado? — Mexo de leve a
cabeça. Jae sorri contidamente com a boca e com os olhos. Meu
corpo volta para seu compasso normal. — Ele ainda está aqui? —
Seu olhar é terno e a voz mansa transborda proteção.

— Acho que sim.

— Acha?

— Tenho medo de olhar.


— Pense que é como nos filmes de aventura e que juntos
descobriremos que no final não é o que parece, o monstro é só um
animal assustado ou alguém disfarçado, como no desenho do
Scooby-Doo. — Coloca meu cabelo atrás da orelha. — Vamos
tentar? Se não conseguir, tudo bem. Fico com você até amanhecer,
se for necessário.

— Sim — a voz sai fraca.

Sua postura e confiança de alguma forma me dão um pouco de


coragem. Respiro fundo e giro o pescoço para o local onde o menino
estava antes. O encontro lá, nos observando, mãos para trás, olhos
tristes, como se fosse chorar. Talvez Jae tenha razão e o menino não
seja mau.

— Ele continua no mesmo lugar... — Pendo a cabeça suavemente


em direção aos pés. Jae aperta minha mão.

— Ainda com medo?

— Um pouco...

— Então não olhe mais para lá. Podemos contar as estrelas no


céu e esperar ele desaparecer. — Jae apoia meu queixo em sua
mão, elevando meu rosto. Inspira o ar e me encara bem fundo.

— Na verdade, eu penso que você está certo. Ele é o mesmo


menino daquele dia... Parece perdido... Acredito que está chorando...
— sussurro a última parte.

— Talvez ele só queira ajuda. — Meu estômago gela e o coração


se aperta. Será que sou má? Afinal, ele é uma criança como eu...
machucado e sozinho.Sei como é se sentir assim... Se não fosse
Jae, estaria como o menino... Meus ombros pesam e eu os deixo
cair.

— Quer tentar falar com ele? — Meneio a cabeça


afirmativamente. — Vamos nos aproximar um pouco. Você me guia?

De mãos dadas, avançamos alguns passos, parando a uma


distância na qual sinto-me segura. Troco olhares com o menino,
entretanto, não faço a menor ideia do que dizer. Jae pisca para mim,
oferecendo seu sorriso tímido.

— O que foi? Quer desistir?

— Não. Só não sei o que dizer?

— Hum. — Jae olha para o alto, inspira e volta a me encarar. —


Eu também não faço ideia... Tente perguntar se ele sabe o que
aconteceu?

— Ele já disse antes que não se lembra de nada. — Jae coça a


cabeça.

— Acho que você precisa explicar para ele... Questione se ele


entende que morreu?

Morrer? Encaro o menino, que dá de ombros, negando. Engulo a


saliva com dificuldade, volto a observar Jae, balançando a cabeça
para ele.

— Morrer significa deixar seu corpo e ir para outro mundo. —


Minhas sobrancelhas se juntam. O menino chega mais perto,
prestando atenção em Jae. Dessa vez não me afasto, embora ainda
haja desconforto.

— É como se você dormisse, só que não acordará mais. Lembra


o que eu disse sobre minha mãe, Lia? — A forma como ele me
chama é agradável, mesmo diante da situação. Sua explicação me
faz recordar da minha avó; minha mãe também disse que ela estava
dormindo para sempre...

Jae fecha os olhos, curvando um pouco a cabeça para baixo,


parece tão triste quanto o menino. Em um impulso, pulo, passando
os braços sobre seu pescoço, apertando-o com força. Quando o
solto, vejo um sorriso contido nos seus lábios. Retribuo o gesto que,
por mais discreto que pareça, é um dos sorrisos mais bonitos que já
vi.

Só então lembro do menino e me volto para ele. Meu semblante


denota confusão.

— Por que ele está aqui, então?

— Talvez não saiba o caminho para o outro mundo...

— É isso? Você não sabe chegar no céu? — pergunto ao menino.

— Não. Nem sabia que eu tinha que ir para lá. — Seus olhos
grandes brilham iguais aos de um filhote de cachorro.

— Não consegue se lembrar de nadinha mesmo? Nem quem


você é?

— Só vejo o rosto de uma mulher sorrindo de braços abertos para


mim e um homem correndo comigo nos ombros.
— Devem ser seus pais. — Repito o que o menino disse para Jae,
que concorda comigo.

Olho para o fantasma parado, suas íres grandes brilhantes,


depois para Jae, que continua me observando atentamente.

— Nunca mais verei meus pais? — O menino indaga com voz de


choro.

— Eu não sei como é no céu, mas talvez um dia eles te


encontrem lá. — Lágrimas escorrem por seu rosto. Seu aspecto se
transforma: as manchas de sangue desaparecem, todos os seus
dentes ficam brancos, os machucados cicatrizam, a sujeira e os
rasgos das roupas somem.

— Não queria ir embora...

— Mas acho que você não tem escolha... Não fique triste lá no
céu, existem outras pessoas boas como minha avó e a mãe do meu
amigo. Com certeza elas cuidarão de você.

Jae me observa sem questionar, sinto as bochechas


esquentarem. Espero que ele continue sendo meu amigo! O menino
gira o rosto para o lado e pisca. Então me encara novamente e abre
um sorriso.

— Obrigado, Elleanor. — De repente o rosto do garoto começa a


emitir uma luz clara, ele vira para o lado e dá alguns passos.

— Ei! Garoto! — Ele para e olha para mim. — Desculpa por não te
ajudar antes. — Meu coração se comprime e os olhos ardem,
enchendo de água.
— Você me ajudou agora. — Sorrindo, ele volta a caminhar, sua
imagem esmaecendo até desaparecer em meio a um brilho forte.
Uma lágrima escapa, escorrendo pela minha face.

Jae balança a mão na frente do meu rosto, só então volto a


prestar atenção nele.

— Lia! Tudo bem?

— Sim... Acho que o menino não voltará! — Encaro Jae erguendo


os ombros. Ele limpa o lado direito do meu rosto com as pontas dos
dedos, dando leves batidinhas semelhantes a uma massagem.

— Provavelmente encontrou seu lugar. — Balanço a cabeça em


concordância, liberando todo o ar do meu peito. — E agora você
pode dormir. — Jae solta minha mão enquanto abaixa o tronco até
seu rosto ficar no mesmo nível que o meu, então, bagunça meu
cabelo. — Você foi muito corajosa.

— Não, eu só consegui porque você estava aqui. Não teria feito


nada disso sozinha, nem saberia como. Obrigada, Jae, parece que
posso flutuar agora. — Rio.

— Cumprir aquilo que nos é dado faz bem, por isso você está
assim.

— O quê?

— Alguém te deu essa habilidade, é como se fosse um


superpoder, então quando você usa e consegue ajudar alguém, fica
feliz. — Apoio o queixo na mão.

— Não entendi muito bem, mas acho que é algo bom.


— É sim. — Jae passa a mão na minha cabeça.

Coloco as mãos atrás das costas balançando o corpo. O rosto


começa a ficar quente outra vez.

Jae segura meus ombros — seus olhos sorridentes brilham agora


brilham mais do que as estrelas no céu.

— Melhor irmos dormir. Se seus pais acordarem e nos pegarem


aqui, ambos passaremos o mês inteiro sem poder brincar.

Ele tem razão, dessa vez mamãe com certeza me deixará de


castigo pelo resto da vida. Encaro Jae e meu coração pula alegre.
Acho que eu ganhei um amigo de verdade! Aproveito que sua face
está ao meu alcance e toco sua bochecha com os lábios. Ele corrige
a postura rapidamente. Seu rosto inteiro enrubesce e ele desvia o
olhar. Sorrio satisfeita, uma sensação tão boa quanto comer
chocolate aquecendo meu peito.

— Boa noite, Jae.

Corro para a escada fechando a porta. Desço os degraus pulando


e cantando em pensamento, não é porque estou feliz que serei
descuidada, não quero que meus pais descubram.

Chego a minha cama em segurança, deito me cobrindo com o


lençol. Antes de fechar os olhos, agradeço pelo amigo que fiz e peço
ao meu anjo da guarda para cuidar do menino fantasma.

Quando termino de falar com Gael, os bocejos surgem um atrás


do outro. Meus olhos tornam-se pesados a ponto de não poderem
mais continuar abertos.
8

Elleanor

Os raios de sol atravessam o tecido fino da cortina cor-de-rosa


acertando perfeitamente seu alvo: meus olhos. Viro para o lado
levando o lençol à cabeça, até escondê-la completamente. A boca se
abre em um bocejo preguiçoso, demorando um pouco para voltar a
sua posição normal. Aperto os olhos com força.

— Elle! Filha, hora do café. Levante e vá logo para o banheiro.

Embora mamãe esteja fora do quarto e a porta fechada, ouço-a


como se estivesse sentada na beirada da minha cama. Justo hoje
que consegui dormir tão bem!

— Elleanor! — Agora é papai quem chama.

O toc-toc do sapato aumenta gradativamente, com certeza ele


vem em direção ao meu quarto. Bato as pernas na cama algumas
vezes, até afastar o lençol para longe. Movimento-me lenta e
desajeitada, bocejando. Meus braços e pernas estão moles e os
olhos lutam para permanecerem abertos.
A porta se abre, revelando a figura de cabelos úmidos e olhos
acinzentados vestindo calça jeans e uma camisa de manga longa
dobrada até o cotovelo. Papai sorri apoiando o corpo no batente da
porta. Cruza os braços e sacode a cabeça para os lados.

— Tisc-tisc-tisc. — Estala a língua contra o céu da boca. — Minha


garotinha não quer acordar para tomar café comigo hoje?

— Não é isso, papai! Só dormi bem.

— Hum... Sem sonhos essa noite? Nem com príncipes e


princesas?

— Não. Nadinha.

— Isso é bom?

— Sim. Por isso queria aproveitar mais. — Espreguiço-me e


passo as mãos nos olhos, tentando afastar o sono. Papai caminha
até minha cama e senta ao meu lado, me envolvendo em um longo
abraço. — Papai, vai quebrar meus ossos! — Ele ri, me apertando
ainda mais.

— Vamos, se apresse ou sua mãe ficará brava. Ela já preparou


seu leite morninho, como você gosta, e o pão quente com a
manteiga derretendo. — Papai fecha os olhos inclinando a cabeça
um pouco para o alto, junta os dedos como se fosse uma flor com as
pétalas fechadas e posiciona-os perto do rosto. — Hum... Com
certeza está delicioso.

Minha barriga se remexe por dentro e emite um ronco alto. Acho


que estou com fome! Papai gargalha, levantando da cama e me
ajudando a ir até o banheiro. Escova meus dentes e penteia meus
cabelos. Abre o guarda-roupas e tira um vestido amarelo.

— Troque de roupa. Estamos esperando por você na cozinha.

Papai deixa um beijo suave em minha testa antes de se dirigir


para a porta e sair. Tiro o pijama e coloco o vestido apressadamente,
fechando apenas alguns dos botões, pois os outros eu não consigo
sozinha. Corro pela escada imaginando a manteiga bem amarela no
pedaço de pão ainda soltando fumaça... Vou direto para o meu lugar
na mesa. Mamãe me rodeia num abraço, beijando o topo da minha
cabeça.

— Bom dia, Elle!

— Bom dia, mamãe. — Sorrio para ela, que me devolve o gesto


servindo um copo quase cheio de leite morno. A boca se enche
d’água, principalmente quando ela corta a fatia do pão recém-
assado, a fumaça espiralando como imaginei.

Assim que mamãe passa a manteiga com a ponta da faca, ela se


transforma de sólida para líquida em segundos. Espero mamãe
sentar-se e dou a primeira mordida: o gostinho da massa adocicada
misturada ao sabor levemente salgado da manteiga me faz respirar
mais devagar. Mastigo bem para que o gosto permaneça por mais
tempo na boca.

— Então seu novo cliente é nosso vizinho? — Mamãe está


animada.

— Sim, Jung Hee Park. Ele é coreano, sobrinho do senhor Soo


Hyun. Coincidência, não acha?
— Concordo... A esposa dele é brasileira. Sempre a encontro
quando estou limpando a calçada e na padaria. Ana... Acho que esse
é o nome dela...

Viro o copo de leite com cuidado, observando atentamente meus


pais. Pelo nome engraçado, deve ser o pai do Jae.

Papai assumiu a empresa do vovô desde que ele ficou doente.


Vovô é costureiro, foi isso que a mamãe me explicou. Ele fabricava e
vendia roupas para as lojas, e meu pai assumiu esse trabalho.

É engraçado imaginar papai sentado atrás de uma máquina de


costura usando avental, com uma faixa na cabeça e óculos,
colocando linha no buraco da agulha como vi a vovó fazer algumas
vezes. Ele sai na rua assim para vender as roupas nas lojas? Mordo
mais um pedaço do pão rindo com a imagem do papai na cabeça,
enquanto ele e mamãe continuam falando da família Park.

— Que bom, Lucio! Deveria convidar o senhor Jung para almoçar


aqui.

— Você tem razão. Ele chegou há pouco tempo no Brasil, parece


que ainda está se adaptando e o filho mais velho tem causado
problemas. — O quê? O Jae não causa problemas, ele é meu amigo.
É muito educado e carinhoso.

— Jae não é assim. — Bato com o punho cerrado sobre a mesa.

— O que disse, Elleanor? — Papai me encara com a sobrancelha


erguida. Mamãe ri.
— Elle e os filhos do vizinho, ou melhor, do senhor Jung, estão
próximos. Eles brincam juntos.

— Que bom, princesa! — Papai alterna o olhar entre mim e


mamãe. Seus lábios esticam de leve, desenhando um pequeno
sorriso, e os olhos parecem brilhar. — Eu disse que seria uma
mudança boa, não foi? Já conseguiu amigos!

— Sim, papai. Jae é bom. Ele cuida de mim e do irmão. E sempre


lê para Wook.

— Quem? — Papai faz uma careta engraçada, franzindo a testa,


um monte de risquinhos surgem ao lado dos olhos.

— Wook é o nome do outro menino, o mais novo.

— Na verdade, eles se chamam Jae Young e Jae Wook. Mas só


chamo de Jae o meu amigo. Como Wook nasceu depois, acho que
não devo chamar de Jae também, além do mais, como vão saber
com quem estou falando?

Papai pisca, sua boca está aberta e a xícara suspensa, próxima


ao seu rosto. Mamãe morde os lábios e vira para o lado do papai, os
olhos arregalados fixos nele. Por que eles estão com essas caras
esquisitas? Adultos são difíceis de entender!

— Mamãe, eu terminei. Posso ir brincar?

— Pode, mas não vá longe de casa, Elleanor. — Papai continua


como uma estátua e mamãe ri, balançando a mão na frente do rosto
dele.
Afasto a cadeira e saio saltitando. Pego a casinha de boneca que
esqueci na varanda no dia anterior e começo organizar as peças
menores. Troco a roupa da pequena boneca e penteio seu cabelo,
tentando ouvir algum barulho na casa azul. Silêncio total por um
longo tempo, até que uma pancada no portão ao lado produz um
ruído parecido com o de um trovão. Salto esbarrando na casinha,
espalhando tudo o que arrumei. Jae! Enfim eles acordaram! Com
certeza estão jogando bola de novo!

A boneca se move mecanicamente, nem me recordo do que


estávamos fazendo, olhos e ouvidos atentos ao que acontece do
outro lado do muro. Eles riem, gritam e jogam a bola repetidas vezes
contra a grade.

Sento no chão cruzando as pernas, aliso o cabelo da boneca com


força. A perna direita se agita contra a cerâmica que reveste a
varanda. Por que eles não me chamam? Será que não querem
brincar comigo hoje? Jae enjoou de mim?

Mudo de posição, ficando de costas para a rua, jogo a boneca


dentro da casinha. Há um pequeno galho caído ao meu lado. Pego.
Fricciono-o na cerâmica, realizando movimentos que em um papel
produziria imagens de coração e estrelas, os sons da casa azul não
permitem que me concentre em mais nada.

Começo a cantar baixinho depois vou aumentando o volume e


apertando o galho com mais força. Outro baque no portão. Silêncio.
Continuo com a música.

— Elleanor? Oi? Lia? — Há alguém me chamando mesmo ou


estou imaginando coisas? Talvez outro fantasma?
— Elleanor? Está chorando? — É a voz do Jae? Paro de cantar e
giro todo o corpo para a rua.

— Noona! Quer brincar? — Wook pula, sacudindo a mão para


mim enquanto Jae segura as barras de ferro do portão me olhando
com seu jeito de adulto. Solto o galho. Suspiro bem fundo — a
barriga e o estômago ficam agitados, como se eu estivesse com
fome e meu coração esquenta, pulsando alto e forte como em um
pula-pula.

Agarro o braço de uma das cadeiras erguendo-me. Caminho até o


portão limpando as mãos na saia do vestido. As bochechas formigam
e minha boca se abre em um sorriso.

— Estava chorando, Lia? — Jae me observa pelo vão da grade,


seus olhos opacos não sorriem como de costume. Ele está doente
ou triste?

— Não. Eu só estava cantando... Cansei de brincar com a


boneca.

— Quer brincar de esconder? — Wook puxa minha mão através


da grade, sorrindo e balançando nossas mãos. Jae arregala os olhos
de um jeito que parecem que vão saltar do rosto pálido, mais do que
o normal. Puxo a mão, mas Wook a segura com força, alternando o
olhar entre Jae e eu. Um incômodo me invade e provoca o desejo de
empurrar Wook para bem longe.

— Me solte, você está me machucando! — Wook me encara por


alguns segundos. Seu sorriso desaparece instantaneamente. Ele me
liberta e meu braço cai ao lado do corpo. Jae não olha para mim.
Sua face está voltada para o outro lado. Impulsiono o corpo na ponta
dos pés e toco o rosto do Jae.

— Você está doente?

— Não. — Ele pega minha mão e afasta da sua face.

— Acho que está.

— Hyung fica assim quando está mal-humorado. Mas depois que


começar a brincar ele melhora. Vamos, noona? — Leva sua mão
outra vez até a minha, mas afasto antes que ele a toque. Concordo
porque quero brincar com Jae. Corro até mamãe para obter a
permissão, seguindo com eles para a casa azul.

Por insistência de Wook, nós brincamos de esconder, não sei se


ele não entende ou não sabe, mas só escolhe lugares óbvios, e
apesar de Jae conhecer com exatidão onde o irmão está, finge não
vê-lo e o deixa vencer. Isso me faz perder também, já que Jae me
encontra.

Quando chega a vez de Wook contar, Jae pega minha mão e me


arrasta para o seu esconderijo — pelo menos agora ele resolveu
brincar de verdade! O problema é que Wook demora a nos encontrar
e Jae não me deixa sair para chegar no “pique” primeiro. Gruda
minha mão como cola.

— Por que não me deixa ir, quero ganhar pelo menos uma vez!
Você só favorece o Wook! — Ele vira o rosto para mim com o dedo
indicador sobre a boca.
— Shh! Ele te ouvirá. — Confere se Wook está por perto. — Se
ele perder, vai chorar, então Ana vai aparecer...

— Não é justo só ele ganhar.

— Eu sei... Mas sou o mais velho, é meu dever cuidar do meu


irmão. Sou responsável por ele. Entende?

— Não entendo. Eu queria ter irmão, mas se for assim, desisto.


Pensei que adultos é que cuidavam de crianças e não outra criança.
— solto o ar pela boca, e abaixo a cabeça. Ele bagunça meu cabelo.
Seus olhos agora brilham, acho que ele melhorou como o irmão
mencionou.

— Desculpa, Elleanor. — Ele sorri tímido e os cantos dos olhos se


juntam ainda mais. Sem desejar, devolvo o gesto com o coração
apressado.

— Vamos brincar de outra coisa? — Jae curva o corpo até seu


rosto alcançar a altura do meu, seu sorriso se expande, revelando os
dentes brancos.

Os olhos se abrem, não tanto quanto os meus, que aproveitam a


oportunidade do seu rosto tão próximo para ver em detalhes sua face
e seus olhos sorridentes. A pele dele é perfeitamente lisa, assim
como os fios dos seus cabelos. A coloração dos olhos que, a
distância parece marrom, de perto noto que é mais amarelada, como
mel. Os lábios não são finos nem grossos demais, avermelhados,
igual quando uso batom.

— Está bem. O que quer fazer? — O que pode ser divertido sem
termos que deixar Wook ganhar sempre? Mordo os lábios franzindo
a testa ao mesmo tempo que meu pé direito bate na parte cimentada
na lateral da casa. Já sei!

— Balanço. Você pode balançar a mim e seu irmão juntos. — Jae


retoma a postura, me encarando. Sua face está seria como adulto de
novo, entretanto, mais bonito do que antes.

— Vou balançar vocês, já que faz sentido o que disse. — Como


um menino pode ser tão bonito? E tão diferente das outras crianças?
— Por que ainda está me encarando com os olhos arregalados? Tem
algum fantasma aqui? — Parece preocupado comigo.

— Não. — Rio em pensamento.

— O que foi então? — Ele se abaixa um pouco outra vez, mas


não tão perto quanto antes.

— Você é bonito! — Bolinhas rosadas surgem em suas


bochechas de novo. Ele se levanta rapidamente, agita o corpo de um
lado para o outro, com os braços batendo feito asas de passarinho.
Jae resolveu dançar agora? Ele levanta a perna esquerda. Pisco e
quando abro os olhos, Jae está no chão. Agacho ao seu lado,
curvando o corpo por cima do seu, não vejo nenhum arranhão nos
braços e pernas, e seu rosto também permanece igual, então
estendo a mão, embora não seja forte o suficiente.

— O que estava fazendo, Jae? — Ele não olha para mim. Passa a
mão na cabeça, segura minha mão e com a outra empurra o chão
até seu corpo ser completamente içado.

— Eu... Só... Desequilibrei. — Wook aparece e assim que nos vê,


aponta com os dedos.
— Achei! Achei! — Aproxima-se de nós. Observa-nos com
expressão séria, em seguida espalma as mãos sobre o peito de Jae
e o empurra com força. Jae apenas dá um passo para trás e solta o
ar pela boca. Wook mostra a língua e corre.

Disparo logo atrás dele, que ri saltitante assim que bate a mão no
muro antes de nós dois. Jae chega depois de mim, ainda com as
bolinhas rosadas na face, — parece que comeu pimenta — rio
abaixando a cabeça.

— Agora é sua vez, hyung! — O que Wook come para correr


tanto? Ele não se cansa? Encho as bochechas com ar soltando os
braços.

— Não quero mais esconder, Wook!

— Mas eu gosto. — Chega mais perto de mim arregalando os


olhos, como se me desafiasse.

— Que tal eu balançar vocês dois? Assim Lia descansa um pouco


e depois voltamos a esconder. — Jae se curva, colocando as duas
mãos sobre os ombros do pequeno. Ele protege Wook como se
fosse o pai dele, e não o irmão.

Algo dentro de mim se agita e me impulsiona a entrar no meio


deles. Posiciono-me de costas para Jae. Junto as mãos e inclino a
cabeça levemente para o lado.

— Por favor, Wook. Vamos balançar só um pouquinho?

Ele olha primeiro para o irmão, com as sobrancelhas juntas e os


lábios puxados apenas para um lado, depois para mim. Após um
tempinho, ele abre um largo sorriso. Olhando somente para Jae,
enlaça minha mão.

— Está bem, noona!

Corre, me arrastando até o balanço no fundo da casa. Wook


escolhe o da esquerda, eu sento no outro, segurando com as duas
mãos nas cordas laterais.

Jae anda lentamente em nossa direção com as mãos no bolso.


Quando chega perto, ele pisca para mim, sorrio em cumplicidade.
Acho que isso pode ser considerado mais um segredo nosso... Como
verdadeiros melhores amigos!

Jae se posiciona atrás de nós dois, empurrando-me primeiro e em


seguida o irmão. Mantém um ritmo lento, cadenciado. Wook reclama,
mas Jae não cede dessa vez.

Embora seja mais divertido quando o balanço alcança o alto, é


agradável lento, consigo ver nitidamente cada objeto disposto no
quintal: a grama, a pequena árvore com flores brancas, além de
sentir uma brisa leve tocar minha face.

Ao fechar os olhos, o frescor se torna mais gostoso. Elevo a


cabeça com os olhos ainda cerrados, apreciando o momento
delicioso.

As pontas dos dedos do Jae tocam suavemente meus cabelos: a


barriga esfria e o coração esquenta. Inspiro o ar, sorrindo ao soltá-lo.

— Meninos! Venham! Hora de almoçar. — Jae para no mesmo


instante. Salto do balanço e Wook corre ao encontro da mulher que
Jae chama de Ana, abraçando-a pelas pernas.

— Vou para casa, mamãe com certeza está a minha espera. —


Jae coloca as mãos no bolso e me segue. Ao nos aproximarmos da
mulher, sua mão envolve meu pulso a ponto de interromper meus
passos. Encaro Jae, que curva-se para Ana.

— Elleanor pode almoçar conosco? — O seu semblante de adulto


voltou. Ana me observa com os olhos brilhando, sua face emana
bondade, as bochechas levantadas em um sorriso. Volta-se para
Jae, que a evita. Ainda sorrindo, ela responde:

— Claro que pode. Enquanto vocês brincavam, eu falei com


Marta. — Agora ela se fixa em mim, abaixando até minha altura. —
Wook e Young gostam muito de você, Elleanor! É sempre bem-vinda
aqui em casa. E não se preocupe, Marta concordou com o meu
pedido. — Jae contempla Ana e, pela primeira vez, o vejo esboçar
seu sorriso tímido enquanto a acompanha com os seus olhos
puxados.

— Kamsahamnida! — Jae curva-se de leve. Ana passa a mão em


minha face esquerda, levanta sua mão e estica até quase tocar a
cabeça de Jae, entretanto, Jae dá um passo para trás, fazendo-a
recuar. Viro de frente para ele, meus olhos se abrem até quase
saltarem do rosto e o queixo cai. Por que ele agiu assim? Ela não é a
mãe dele de verdade, mas é boa.

— Entrem, a mesa já está posta. Elleanor — Ana chama minha


atenção. — Jae Young te mostrará onde fica o lavabo. — O que é
isso? Pisco. — Banheiro, querida. Corram, vão lavar as mãos! —
Bate palmas uma vez, dando passagem.
Após cumprirmos as ordens de Ana, seguimos até uma sala que
fica entre a cozinha e a sala da televisão. Sento entre Jae e Wook na
mesa retangular com oito lugares.

Há várias travessas pequenas com um monte de comida


estranha. Uma grande panela de arroz. Em frente a cada lugar, há
uma tigela pequena branca e um prato redondo, uma colher de cabo
extenso e dois palitos longos de metal, semelhantes aqueles palitos
de fazer espetinhos. Como vou comer com isso? Devo pegar com a
mão? E como cortarei os alimentos?

Um homem de óculos e olhos puxados como Jae, puxa cadeira,


acomodando-se na ponta da mesa. Seu semblante é mais sério do
que o de Jae ou da minha mãe quando está brava. Hum... Talvez ele
esteja mesmo com raiva... Engulo em seco.

Ana começa a servir. Primeiro o homem, depois Jae. Chegando a


minha vez, observo-a encher minha tigela com arroz. Vou ter que
comer tudo isso? As mãos começam a suar e o estômago parece
uma montanha-russa.

O homem me olha. Abaixo a cabeça. Jae inclina-se para perto de


mim.

— Não se preocupe, é diferente, mas não é difícil. Eu te ensino.


— Os ombros caem um pouco mais leves, mas só por um instante.

— Então, você é a famosa Elleanor? — A voz forte do homem faz


os ombros se comprimirem outra vez, as pernas balançam. Aperto
um dedo seguido de outro. O estalo arranca risos da Ana e do
homem.
— Não precisa ter medo, querida. Jung Hee é o pai dos meninos.
Ele tem cara de bravo e voz assustadora, mas é um doce! — Ana
pisca para mim. O senhor Jung continua rindo. Jae segura e aperta
minha mão por baixo da mesa, sem me olhar. Devolvo o gesto com
força, como se o ato me fornecesse algum tipo de coragem,
exatamente como à noite, no terraço.

— Seu pai é o senhor Lucio Arantes, correto? — Assim como Jae,


ele fala engraçado, o som é diferente de quando falo ou meus pais, e
até mesmo Ana.

— Sim.

— Trabalhamos juntos, de certo modo. Meus filhos e Ana gostam


muito de você. Somos gratos pela amizade e pela forma carinhosa
que nos recebeu em seu país. Então a consideramos como parte da
família já. Fique à vontade, Elleanor Ssi. — Senhor Jung curva a
cabeça, demorando um pouco para levantá-la.

Minhas pernas param de balançar, os ombros ficam leves e


consigo respirar sem sentir a montanha-russa dentro do estômago.
Ergo a cabeça, sorrindo para ele.

— Obrigada, tio. Mas meu nome é Elleanor Arantes. Não tem Ssi.
— Todos riem, até Jae, que é mais contido.

— Ssi significa senhorita. — Senhor Jung inclina a cabeça para o


lado e pisca. A voz dessa vez sai mais baixa.

— Ah. Entendi. — Eles têm mesmo umas palavras diferentes.


Seria mais fácil se todos falassem igual! Ana termina de servir a
todos.
— Jalmeokgesseumnida! — Eles dizem juntos. Encaro um por
um. Será que eu devia dizer isso também? Deve ser uma oração.
Uno as mãos. Ninguém fala mais nada. Jae, de novo, aproxima seu
rosto do meu ouvido.

— Essa palavra quer dizer: obrigado, comerei bem. — Olho de


soslaio, apertando sua mão mais uma vez.

Senhor Jung leva a primeira colherada de arroz à boca e, como


em um balé, todos começam a comer de forma sincronizada. Copio
tudo o que Jae faz. Primeiro o arroz, que é semelhante ao que comi
antes.

Jae segura os pauzinhos e coloca em seu prato os alimentos que


estão nas travessas, servindo o meu prato também.

— Elleanor, querida, se não gostar de algo, tem batata frita e bife,


como não está acostumada, pode ser que o sabor não te agrade.

Ana pega minha mão por cima da mesa, sorridente. Analiso a


forma como eles seguram os palitos. Esforço-me, mas não consigo
pegar nenhum pedaço do que quer que seja que o Jae me serviu,
talvez eu deva aceitar o bife com batatas fritas.

Um suspiro escapa na terceira tentativa. Jae se vira para mim. Ele


ouviu. Congelo. Ele coloca seus pauzinhos ao lado do prato.

— Appa! — Aguarda a atenção do pai. — Posso ensinar Elleanor


a usar o Jeokkarak? Ela está com dificuldades.

Ah! É assim que isso se chama! Encaro os pauzinhos.


— Pode. — Volta-se para mim. — Mas Elleanor, não prefere usar
garfo e faca?

— Gostaria de aprender, tio. Parece divertido comer com os


palitos. — O senhor Jung sorri. Os olhos dele ficam menores do que
já são, iguais aos de Jae. Tio Jung também sorri com os olhos! Ana
falou a verdade. Jae Young se levanta, dobrando o corpo para o pai.

— Kamsahamnida. — Retoma a postura e só então chega perto


de mim; pega os dois palitos bem devagar. — O Jeokkarak, é como
garfo para você. A mão que utilizar a colher não deve ser usada para
segurá-lo. Não use os dois ao mesmo tempo. Compreendeu até
aqui?

— Sim.

— Coloque um deles entre os dedos médio e polegar. Esse você


mantém preso com o auxílio do dedo anelar, para não mexer. O outro
você segura com o indicador e a ponta do polegar. É ele que você
movimentará. Assim. — Ele executa o movimento, observo com
atenção. Wook resmunga.

— Appa, também quero ensinar a noona! Eu sou melhor que o


hyung.

— Seu irmão é o mais velho, portanto, é quem o fará. — Wook


olha para Jae fazendo um bico enorme, depois abaixa a cabeça e
volta a comer.

Jae Young segura minha mão com firmeza, fazendo os


movimentos com o Jeokkarak sem a comida, em seguida repete,
pegando algo que parece carne fatiada, igual as que mamãe usa
para fazer estrogonofe.

— Quer tentar sozinha? — Balanço a cabeça afirmativamente.

Apesar de entender a explicação, usar os utensílios sem ajuda é


difícil, não consigo pegar muita coisa e ainda derrubo, mas persisto,
e acabo me divertindo com a experiência nova.

Algumas coisas têm um sabor bom, outras eu não sei se gosto.

— Jae, o que é isso? — Aponto para o alimento no prato.

— Kimchi. — Repito o que ele fala para gravar na memória. — É


feito com acelga fermentada e uma pasta, que nós usamos como
tempero. Essa pasta é feita normalmente com pimenta em pó, alho,
cebolinha, gengibre, molho de peixe e frutos do mar, como camarão,
por exemplo.

— Parece salada de alface murcha, mas é gostoso. — Sussurro


para ele, que sorri contido, bagunçando meu cabelo em seguida.
Depois de engolir, aponto para a carne que comi antes.

— Isso é Bulgogi. Carne cortada em pedaços pequenos. Minha


mãe costumava fazer para nós. Antes de grelhar, ela colocava os
pedaços de carne dentro de uma bacia com molho de soja doce e
outros temperos que não lembro. Depois de passar algum tempo no
molho é que ela cozinhava. — Os olhos dele brilham, focados no
nada. — Sou capaz de sentir o cheiro só de lembrar da mamãe
mexendo a panela no fogão. — Fecha os olhos suspirando. Dessa
vez, sou eu quem segura a mão dele por baixo da mesa.
— Você sente muita falta dela?

— Sim. — Me olha esticando os lábios um pouco. É como se ele


quisesse sorrir, mas não tem vontade de verdade.

Solto sua mão e volto a comer. Experimento alguns legumes


cozidos. O sabor é bem diferente dos que como em casa. Jae
permanece com os olhos vazios, parece estar em outro mundo. Será
que devo perguntar mais alguma coisa? Ele está tão concentrado,
talvez queira ficar quieto.

Ao finalizarmos a refeição, seguimos para a sala. O senhor Jung


se despede.

— Elleanor, espero que nos faça companhia mais vezes durante o


almoço. — Passa a mão delicadamente em meus cabelos.

— Obrigada, tio! A comida estava muito saborosa.

— Que bom que gostou! Ana cozinha muito bem. Meninos, se


comportem. — Repete o mesmo gesto que fez comigo e se retira.

Jae ainda está disperso. Acho que eu ficaria assim também se


não pudesse mais ver minha mãe ou meu pai. Sento ao lado dele no
sofá.

— Você está bem?

— Estou, Lia.

— Você parece triste.

— Não se preocupe com isso.


Wook senta ao meu lado, cruza os braços e faz uma careta,
mostrando a língua para Jae, que simplesmente ignora.

— Noona, por que você fica mais com o hyung do que comigo? —
O que eu digo? Viro para Jae com a boca e os olhos abertos.

— Elleanor brinca comigo e com você juntos igualmente. — Jae


aperta de leve meu ombro. Volto-me para Wook.

— Então você gosta de mim também, noona? — Seus olhos


encaram os meus, tão intensos, que meus braços se arrepiam. Jae
também me observa profundamente, mas com ele é confortável, bem
diferente do Wook.

— Sim. Sou sua amiga. — Forço-me a esticar os lábios para ele.


Wook me abraça abruptamente chego a pensar que esmagará meus
ossos. Ele é pequeno, entretanto, é mais forte do que eu!

— Mãe! Mãe! — Ana, que já havia se retirado, chega apressada


na sala. Wook se afasta de mim, pula do sofá e corre até ela, a
abraçando pela barriga. — Elleanor gosta de mim!

— Eu disse, não foi? — Ela o envolve.

— Vou casar com a noona quando crescer, igual papai casou com
você. — Algo dentro de mim se agita de forma desconhecida, mas
muito intensa. Volto-me para Jae. Só consigo olhar para ele, que se
esquiva, abaixando a cabeça e escorregando o corpo, afundando no
sofá. Meu corpo esquenta por inteiro, a respiração acelera mais e
mais.
— Querido, você ainda é muito novo para pensar em casamento.
— Ana se vira para mim com o semblante indecifrável. — Está
assustando sua amiga. Isso é assunto de adulto. — Pisca para mim.

— Mas se ela gosta de mim, tem que casar comigo! E não pode
ser amiga do hyung nem de mais ninguém! — Empurra Ana, que
arregala os olhos e leva a mão sobre o peito. Wook sobe a escada
saltando os degraus.

— Jae Wook! — Ana grita, mas ele não olha para trás. — Wook
está com ciúmes de você, Elleanor, ainda é muito pequeno e não
entende. Não se preocupe com essa história.

— Está bem, tia. Eu preciso voltar para casa. — Ela concorda e


sai em direção ao andar de cima.

— Jae, eu...

— Vá ou sua mãe ficará brava. — Ele continua deitado no sofá,


evitando meu rosto.

Eu não vou casar, muito menos com o Wook! Mas Jae ficou
chateado, provavelmente pensa que aceitei. Eu devia ter respondido
que nunca me casarei. E se me obrigarem a casar com ele? Não
mesmo, nunquinha...

Balanço a cabeça para mim mesma. Papai não permitirá.


Caminho até a porta. Jae não levanta para me acompanhar. Paro.
Encho o peito de ar. Ando depressa até o sofá, ajoelho e encosto os
lábios no lado esquerdo da sua face.
— Não vou casar com o Wook, e se me forçarem, eu fujo com
você! — Viro as costas e corro até chegar em casa. Tenho
dificuldade para puxar o ar enquanto corro, mas só paro quando
entro no meu quarto e deito no conforto da minha cama.
9
Elleanor

Desde a conversa que meus pais tiveram no café sobre o senhor


Jung, papai vem se aproximando cada vez mais dele. E as visitas
trocadas se intensificaram de um simples café, até partidas animadas
de cartas e xadrez.

Papai lhe mostrou como é o churrasco brasileiro feito em nosso


terraço e tio Jung preparou uma refeição com vários pratos coreanos,
incluindo Bibimbap, uma mistura de arroz com legumes, a carne que
eu já havia experimentado, mas com ovo quase cru por cima. Errr!
Papai adorou, mas eu não!

Ao sentir o cheiro do ovo e ver aquela textura gosmenta, meu


estômago rebolou algumas vezes e um líquido amargo subiu até a
minha garganta. Desprendi um esforço descomunal para não deixar
escapar na frente de todos — Jae foi o único a perceber meu
desconforto, e sua mão mais uma vez passeou por baixo da mesa
até encontrar a minha, apertá-la e mantê-la ali, bem quentinha.
Com a cabeça baixa, observo nossas mãos, meu corpo se torna
tão leve que acredito poder voar como o Peter Pan!

Com cócegas nas bochechas, espio Jae, que, com seu jeito sério,
sorri com os olhos. Esse simples ato isolado espanta qualquer
desarranjo em mim, mental ou não.

Nossas famílias tornaram-se praticamente uma só. Mamãe, que


por causa de mim e meu talento especial sempre evitou outras
pessoas, encontrou em Ana uma amiga e companheira. Papai e tio
Jung descobriram que, além de formarem uma excelente parceria
profissional, também partilhavam muitos gostos, como jogos, cerveja,
churrasco e pescaria.

A consequência disso é que eu aproveito ainda mais a companhia


de Jae, e às vezes de Wook, quando ele não faz birra ou tenta afastar
Jae de mim. Mas apenas Jae conhece meu segredo e continua me
ajudando quando meu corpo, embora entendendo o que aquelas
pessoas são, falha ao não respirar corretamente, e não suporta o
meu próprio peso. Basta Jae se aproximar e me envolver com seus
braços, ou apenas segurar minha mão, que tudo volta ao seu lugar.

Recentemente, o fantasma de uma mulher bem jovem me visitou.


A princípio foi normal, ela contou sua história totalmente consciente
do que lhe acontecera, chorou inconformada por ter deixado o filho
ainda bebê sozinho. Enquanto ela relatava sua história, a única coisa
que vinha à minha mente era o rosto de Jae com olhos tristes,
contando-me sobre a mãe ao meu lado na mesa.

Lágrimas deslizaram pela minha face e, sem entender, eu andei


até ficar a apenas um passo da pobre mulher; subitamente a abracei
pela cintura e, naquele instante, eu me dei conta de que a estava
sentindo da mesma forma que sinto quanto toco meus pais. A única
diferença é que ela era completamente fria, como um cubo de gelo.
Normalmente apenas sinto o toque deles em mim, nunca o contrário.

De repente a mulher se desfez como fumaça. Não queria que ela


fosse assim, mas também não desejava que ficasse.

Comecei a tremer, com muito frio, e o choro não cessava.


Confusa, só pensei em uma coisa: Jae Young. Gritei por ele,
receando que meus pais aparecessem, mas eles não vieram, no
entanto, Jae sim. Apesar de estar dentro do quarto, ele me ouviu e
correu até mim.

Assim que entrou, sorriu, aproximando-se até me alcançar. Passou


a mão por meus cabelos, tomou minhas mãos entre as suas. Sem
dizer uma palavra, somente o som da respiração calma e firme dele
foi capaz de me trazer de volta.

Mais um segredo, conhecido apenas por nós dois. Apenas... Jae e


Elleanor...

É com essas memórias enchendo minha mente que entro no carro


em pleno sábado, sob os primeiros raios de sol, os olhos insistindo
em se fechar e a boca abrindo seguidamente, como um leão pronto
para devorar sua refeição.

Todas as vezes que vamos acampar, papai segue o mesmo ritual.


Prepara malas, acondiciona bebidas e comidas em caixas térmicas.
Panelas e utensílios de cozinha vão para uma caixa específica, de
cor verde. Lanternas, pilhas, fitas coloridas, bandeiras vermelhas,
sinalizadores, fósforos, baralhos... E o principal: as varas de pesca,
que são presas ao teto do carro. Tudo organizado durante a noite que
antecede a pequena viagem.

Ele acorda antes de mamãe e eu. Prepara nosso lanche e o café,


guardando dentro do carro, então nos acorda apressado, só tenho
tempo de fazer a higiene e trocar de roupa.

Dessa vez teremos companhia, mais do que perfeita. Os Park!

Papai abre o portão e saímos com o carro. Enquanto ele o fecha,


vejo tio Jung entrando no veículo dele com todos os outros
integrantes devidamente acomodados em seus lugares.

Papai segue à frente, guiando tio Jung. O local preferido do papai


é a região montanhosa de Juquitiba, cercada por vários rios, por isso
existem muitas opões de atividades na natureza, entretanto, sempre
vamos para o mesmo acampamento, devido às cabanas de madeira
e uma área propícia para pesca.

O trajeto até lá é relativamente rápido. Passamos pela pequena


cidade de Juquitiba e seguimos por mais alguns quilômetros,
entrando em uma estreita estrada de terra.

Alguns metros depois, papai para o carro e abre a porteira de


madeira. Mamãe assume a direção e passa com o carro, parando
novamente um pouco à frente. Tio Jung atravessa logo depois, só
então papai a fecha, voltando para o nosso carro.

Percorremos mais um pequeno trecho de estrada de terra até


estacionarmos em frente a cabana de madeira de sempre. Os adultos
abrem os porta-malas e começam a descarregar tudo para dentro da
acomodação, que dessa vez será partilhada com os Park’s.

Tia Ana leva Wook nos braços, dormindo e de boca aberta. Ela o
coloca com cuidado no sofá, cobrindo-o com uma manta xadrez. Eu e
Jae sentamos no tapete felpudo em frente a uma espécie de lareira;
não é exatamente igual a que tem nas casas dos filmes, mas dá para
colocar um pouco de lenha e acender fogo. Papai logo entende que é
isso o que desejamos, deixando para terminar de organizar o restante
das coisas depois de colocá-la para funcionar.

O dia está nublado. Um pouco frio. Mamãe traz duas canecas com
chocolate quente para nós. Jae me entrega a dele e corre para o
quarto, voltando de lá com uma caixa.

— Enquanto não podemos brincar lá fora, quer jogar? — Seu


sorriso tímido aparece e as bochechas rosadas também. Não
reconheço a caixa, que tem um monte de desenhos e risquinhos.

— Não sei brincar disso. — Estico os lábios para o lado esquerdo


de leve, levantando e abaixando os ombros.

— Eu te ensino. — Retira a tampa piscando para mim. Diante da


confiança dele e do brilho em seus olhos amendoados, acabo
cedendo.

O cheiro de cebola, alho e arroz fritando faz minha barriga roncar.


Jae ri, mas a dele ruge ainda mais alto. Gargalhamos juntos.

Papai e tio Jung surgem vestidos com chapéus verdes, botas de


borracha, calças largas e camisas de manga longa. Quase gêmeos,
se não fossem os olhos puxados do tio Jung e seu cabelo preto
escorrido. Nos ombros, duas varas de pesca, em suas mãos, maletas
semelhantes à de um médico, porém mais larga e cinza.

— Avise a mamãe que estamos na beira do rio um pouco abaixo


da cabana. E não precisam nos esperar para almoçar. — Papai beija
o topo da minha cabeça fazendo meus olhos se apertarem e os
lábios se abrirem com seu carinho gostoso. Envolve o pescoço do
Jae com os braços. Os olhos do Jae parecem explodir. Eu seguro sua
mão, mas ele não se afasta do meu pai como faz com Ana. Talvez
Jae não tenha medo do meu pai, ou não quis me assustar.

— Cuide do seu irmão, está bem? E obedeça a Marta e Ana. —


Tio Jung encara Jae, que levanta, curvando-se para o pai. Tio Jung
faz um carinho em sua cabeça, na minha e na de Wook, que continua
apagado no sofá com uma das pernas penduradas. Ambos saem
rindo e falando sobre peixes.

Jae, ao notar a perna do irmão fora do sofá, engatinha até


alcançá-lo, ajeitando Wook de forma que fique confortável. Meus
olhos não saem de cima dele nem por um segundo. Como uma
criança pode ser tão zelosa? Tão responsável? Será que o cérebro
dele é diferente? Ou ele é mesmo um anjo igual ao Gael, só que com
corpo de humano?

— O que se passa nessa cabecinha? — Jae repousa a mão direita


sobre meus cabelos, deslizando-a suavemente pelos fios. Seus olhos
estão sobre os meus. Sinto minha face inflar como se fosse um balão
cheio de ar. Pisco, desviando o rosto para o fogo que crepita baixo.
— O que foi? Viu algo...

— Pensei em como você é diferente...


— Só tenho os olhos diferentes dos seus.

— Não é isso. Você age como adulto, sempre. E... — Engulo a


saliva, meus olhos concentrados no tom alaranjado das chamas.

— E? — Jae deita o corpo um pouco, até enxergar meu rosto. —


Pode falar, Lia. Somos amigos, lembra?

— Parece um anjo... Cuida tão bem do Wook e de mim... — Ele


sorri, colocando meu cabelo atrás da orelha.

— Sou mais velho que vocês, preciso ser responsável... Mas se


quiser que eu seja seu cheonsa, eu serei. — O lado esquerdo
aquece, retumbando mais forte, esse calor chega até minha face,
induzindo-me a estampar um grande sorriso.

Mamãe nos chama para almoçar. Enquanto Jae e eu seguimos


para nossos lugares à mesa, tia Ana senta-se ao lado de Wook,
acariciando seu rosto e cabelos, pronunciando seu nome docemente
até acordá-lo. Com todos finalmente sentados e devidamente
servidos, podemos enfim começar a comer.

Ao engolir a primeira colherada de arroz com carne moída, o


estômago vibra, pedindo mais. Mastigo rápido a fim de saciar a
voracidade do meu corpo. Jae me encara com o semblante
engraçado, não ligo, a fome é mais importante neste momento. Além
do mais, quero sair para brincar.

Assim que terminamos, mamãe e tia Ana juntam a louça e nós três
saímos para brincar. Seguimos a trilha até papai e tio Jung. Os
meninos se animam e pegam uma vara cada. Sento ao lado do
papai, imitando-os. Ninguém abre a boca, nem o som da respiração
deles posso ouvir.

Depois de um tempo, solto a vara no chão, abraçando meus


joelhos.

— O que foi, Elle? Não quer pescar hoje? — Papai passa o braço
por meus ombros.

— Não. Isso é chato. Vocês nem conversam! — Puxo algumas


folhas do mato ao redor, deitando minha cabeça sobre os joelhos.

— Por que não volta para a cabana e fica com a mamãe, querida?

Os meninos se divertem com a quietude. Libero o ar com força,


erguendo-me e batendo as mãos na parte de trás da calça retirando
as folhas úmidas de mim. Beijo o rosto do papai e saio em direção à
cabana.

Ao me aproximar, ouço folhas sendo esmagadas com força, paro,


mas nem dá tempo de me virar, pois minha mão é agarrada por outra
bem quentinha. Antes mesmo de olhar, já sei que é Jae — só ele
pega minha mão assim.

— Quer explorar a mata? — Ele me encara com seu sorriso


contido.

— Quero! Mas é melhor avisar nossos pais antes.

— Já falei com eles quando saí do rio.

— E Wook?
— Ele está muito concentrado, competindo com papai. Não viu
quando saí. — Quero grudar no braço do Jae como um gato quando
passa entre as pernas e ronrona pedindo carinho. — Peguei um
sinalizador, fósforos, essas fitas para amarrarmos nos galhos e
marcar o caminho e... — Jae abre mais seu sorriso e tira de dentro da
mochila um saco de biscoitos. Balança na frente do meu rosto. —
Então, vamos?

— Claro que sim! — Dou pulinhos, balançando nossas mãos


unidas. Até que enfim um pouco de diversão! E o melhor: apenas nós
dois! Sem adultos para impor limites e sem Wook choramingando.

Jae toma a dianteira e iniciamos a caminhada. O aroma de folhas


secas misturado a outros tipos de plantas que compõe a vegetação
local é muito bom. Nunca respiro ar assim em casa! Há árvores de
tamanhos e folhas diferentes, algumas com tonalidade bem escura,
outras mais claras. É possível ver algumas flores entre as plantas
rasteiras. Seus formatos são bem simples, entretanto as cores vivas
e alegres as tornam fascinantes.

Jae diminui o passo até pararmos e se inclina de leve em minha


direção.

— Consegue ver aquela borboleta? — Aponta para o lado direito,


um pouco à nossa frente. Me apoio em seu braço ficando na ponta
dos pés; estico o máximo que consigo o pescoço, e então, lá está o
objeto que capturou sua atenção e a minha também.

— É linda! As asas são verdes?


— Sim. — Jae pega minha mão e nos aproximamos lentamente,
como uma cobra rastejando silenciosa para atacar a presa, contudo
não queremos pegar a borboleta, apenas observá-la de perto. — Não
dá para chegar mais perto do que isso, se não ela se assustará.

— Eu consigo ver bem daqui. — Jae pende sutilmente o rosto para


frente. Ele está mais alto ou é impressão minha? As mãos também
parecem maiores e mais fortes. Em compensação, eu devo ter
diminuído. Perto dele tenho a sensação de ser bem menor do que
sou! Volto para a borboleta.

— Repare nas formas que aparecem nas asas dela!

Ele analisa, todo concentrado, o inseto, que é realmente bonito.


Talvez seja o único em que eu encontro algum tipo de beleza, pois
em geral não gosto deles.

As asas daquela criatura específica, além da cor vibrante,


apresentam desenhos que se assemelham a um coração. Dentro das
pequenas formas há outras cores. O centro avermelhado clareia em
direção à borda dos contornos, até adquirir um tom mais amarelado,
no entanto, o que eu mais admiro no momento é o jeito de Jae: ele
não pisca nem se move. Seus olhos pequeninos sintilam. Lábios
delicadamente esticados. A pele do rosto lembra o tecido de uma
blusa da minha mãe que eu adoro, liso e macio.

Ergo a mão cuidadosamente, e quando estou prestes a encostá-la


em seu rosto, trago-a de volta para o meu corpo. É raro Jae se
mostrar à vontade e feliz, e é assim que eu acredito que ele está se
sentindo agora... Decido apenas admirar o encanto da sua face
irradiante.
— Vamos continuar o passeio? — concordo sorrindo.

Percorremos um bom tempo em silêncio, até chegarmos em uma


clareira. As pernas estão bambas, o ar passa pelo nariz com
dificuldade e o estômago reclama novamente. Já faz muito tempo
que almoçamos?

Os pés já não me obedecem e praticamente se enraízam no solo.


Jae se distancia. Deixo meu corpo me levar para o chão.

Após o que acredito ter sido um minuto é que ele nota que não
estou ao seu lado. Vira-se como uma flecha. Ao pôr os olhos em mim,
corre, jogando-se de joelhos ao solo.

— O foi Lia? Se machucou? — Segura meu rosto entre suas


mãos. A face dele está sem cor, os olhos apagados, como se
estivessem perdidos em uma caverna fria e escura.

— Não consigo dar mais nenhum passo. Podemos descansar?

— Desculpa, eu devia ter prestado atenção em você. Às vezes


esqueço que é bem mais nova do que eu. Você e Jae Wook tem
apenas um ano de diferença. Mas eu...

— Virou adulto, por acaso? — Mostro a língua impulsivamente. Ele


sempre age como um, entretanto é criança também!

Meu coração se aperta e a respiração acelera. Meus olhos se


juntam, assim como a boca, que forma um bico.

— Não. Contudo, mesmo crianças nós temos responsabilidades,


Elleanor. E eu sou responsável por você agora...
— Só por que é quatro anos mais velho do que eu?

— Exato. E por não ter nenhum adulto por perto. — Tiro as mãos
dele da minha face e olho para o chão. Eu gosto que ele cuide de
mim. Nunca tive amigos antes dele surgir, mas... Por que essa
sensação é ruim?

Ele senta ao meu lado. Pega o pacote de biscoito, abre e põe em


minhas mãos. Não olho diretamente para ele, mas sei que está rindo.
Jae coloca a mão esquerda dentro do pacote, retirando alguns e
levando até a boca.

O som do biscoito se quebrando com a mastigação dele faz meu


estômago gemer outra vez. Tento resistir, mas meu corpo não aceita
e acabo pegando alguns. Assim que engulo pela segunda vez, a
respiração volta ao normal, a musculatura do rosto relaxa. Acho que
esse sentimento estranho era fome!

O céu escurece e mesmo sob a roupa a pele se ouriça. Um clarão


surge como o flash de uma câmera fotográfica, seguido por um
estrondoso barulho de algo que cai e se quebra. Gotas frias atingem
o topo da minha cabeça. Jae se levanta rapidamente, agarrando meu
braço e içando-me do chão. Abre o zíper da mochila e tira duas
capas de chuva. Entrega uma para mim.

— Vista. — Passa o braço esquerdo primeiro depois o outro, fecha


os botões e puxa o capuz, escondendo toda a cabeça. Copio-o, não
com tanta rapidez. E mais uma vez ele me socorre, auxiliando-me a
abotoar e cobrir a cabeça. — Precisamos voltar para a cabana.
Amanhã faremos outro passeio, está bem?
— Sim.

Ele segura firme minha mão. Percorremos a trilha de volta. Jae


prendeu algumas fitas nos galhos das árvores, marcando o percurso
que fizemos. Papai já havia me explicado sobre isso, mas eu nunca
lembro — e hoje não foi diferente.

A chuva engrossa. Diminuímos a velocidade dos passos até nos


abrigarmos em um trecho onde a copa das árvores é mais densa. Jae
me envolve com o braço, puxando-me para o seu lado, quase
colados. Sua mão movimenta-se por meu ombro, subindo e
descendo, massageando o local.

— Está com frio?

— Não. — Mesmo assim, ele continua a esfregar meu ombro.

— Melhor esperarmos um pouco para ver se a intensidade da


chuva diminui. Não precisa ter medo.

— Não tenho medo. Estou acostumada a acampar, é normal


chover por aqui.

— É por isso que às vezes esqueço que você é mais nova do que
eu. Sábia Elleanor! — Ergo meu rosto até conseguir encarar seus
olhos puxados.

— O que quer dizer? Está brincando comigo?

— Não. Apenas não sou o único que age como adulto. — Sorrio e
volto a prestar atenção na chuva. As bochechas queimando e o
coração saltando forte. Jae me comparou com ele! Iguais! Um suspiro
longo e profundo escapa. Os lábios permanecem esticados.
A chuva para.

— Hora de seguir! — Seu braço sai do meu ombro, deixando o


local repentinamente frio. A mão dele enlaça a minha e de novo Jae
me guia pela trilha, agora muito escorregadia. Ele anda devagar,
praticamente rasteja, sem levantar os pés do chão, sempre inclinado
para o lado.

Verifica de instante em instante como estou, entretanto, todo seu


cuidado não é suficiente, pois tropeço em uma pedra — pequena em
relação às outras, mas grande o suficiente para me desequilibrar.
Meu corpo pende para o lado direito, o pé vira, e em seguida vem o
barulho do baque do corpo contra o solo e de algo se rachando.

— Ai! — O tornozelo lateja. Lágrimas brotam dos meus olhos.

Jae vira para trás, seus olhos e boca abrem em câmera lenta. Ele
joga-se no chão curvando-se sobre mim que estou sentada.

— Lia! Se machucou? — Passa a mão no meu rosto. Seus olhos


varem meu corpo em busca de indícios de ferimento.

— Acho que sim... Meu pé está doendo muito.

Jae leva a mão até meus pés, examinando. A cada apertão,


mordo com mais força meus lábios, para evitar que os gritos
escapem. Ele enfim, acha a contusão. Ergue a cabeça e os olhos
puxados me encaram cheios de culpa e preocupação. Será que
quebrei o pé? Não quero ficar de castigo de novo! Jae inspira e
expira pesadamente.
— Eu me esqueci de trazer um kit de primeiros socorros. Não
poderei imobilizar seu pé. — Volta a apalpar o local, mas os
movimentos agora são leves. Acho que ele está tentando diminuir a
dor, e de certa forma a sensação é de que dói menos. — Eu não
devia tê-la trazido aqui. Desculpe-me, Elleanor. Não imaginei que
você pudesse se ferir. — Sua face empalidece, os olhos estão baixos
e carregados de pesar, como se minha dor irradiasse para o corpo
dele. Toco seu braço.

— Não é a primeira vez que eu caio. Sempre que a gente vem


para cá, eu volto com algum machucado. Não é sua culpa.

— Não acredito que os adultos pensarão assim. Eu a trouxe...

— Jae, eu tropecei em uma pedra, como você poderia impedir?

— Não sei. — Ele evita me olhar. — Dói muito?

— Não. — Sorrio. Ele sacode a cabeça, suspirando. — Foi só um


acidente. Você não precisa ficar com cara de cachorro quando destrói
os móveis da casa.

— Você realmente é mais adulta do que parece, Elleanor! — Ele


quase sorri. Aperta minha bochecha. — A melhor coisa que
aconteceu para mim desde que perdi minha mãe, foi conhecer você!
Garotinha dos olhos lindos.

— Me dê sua mão. — Abro a minha oferecendo a ele. Ele a pega.


Entrelaço meu dedo mindinho no dele. Jae emite um brilho diferente
nos olhos. — Prometo ser sua amiga para sempre.
— Eu também. Prometo que estarei ao seu lado para sempre. —
Selamos nossa promessa grudando os polegares.

Jae levanta-se, me encarando com o semblante sério e, ao


mesmo tempo, aparentando uma criança que está planejando
aprontar alguma arte cujos pais não vão gostar. Coloca a mão no
bolso e tira um canivete de escoteiro, desses que tem todo tipo de
utensílio em miniatura.

— O que pretende fazer?

Ele não responde, apenas ri, então começa a riscar com força o
tronco da árvore ao nosso lado. Tento ver o que ele desenha ou
escreve, mas seu corpo esconde totalmente o que quer que seja.
Alguns minutos depois, ele finaliza sua arte. Abaixa de costas, com
um dos joelhos apoiados no chão.

— Me dê sua mão.

Obedeço. Jae segura com força e me puxa para suas costas.


Prende minhas mãos ao redor do seu pescoço, depois, passa minhas
pernas por sua cintura, segurando uma em cada braço, só então
ergue-se do chão.

— Está vendo?

— Sim. — Não contenho o sorriso mais gostoso que já dei na vida


nem as lágrimas que se formam. Esqueço completamente a dor, para
ser sincera, nem me lembro da sua existência.

— Jae e Elleanor! Não importa o que aconteça, lembre-se que eu


estarei com você para sempre, assim como essa marca ficará na
árvore, até ela não mais existir. Você é especial para mim, Lia.

Será que o coração pode se multiplicar? Porque eu acho que foi


isso o que aconteceu com o meu. Sinto seus golpes no peito,
garganta, pescoço, pulsos, cabeça e em todo o resto. Chorei muitas
vezes por não ter amigos, agora eu choro por ter o melhor de todos!

— Hora de voltar! — Aguardo ele se abaixar para que eu possa


descer de suas costas, mas ele apenas caminha carregando-me.

— Me levará até a cabana?

— Claro! Você não pode andar.

— Mas assim sou eu que vou te machucar.

— Sou forte, Elleanor! — Não respondo, embora concorde


plenamente com ele. Além do mais, é muito confortável ser carregada
assim!

Encosto a cabeça em seu ombro, sentindo seu cheiro e calor. Aos


poucos, o coração se aquieta, assim como tudo a minha volta. Os
olhos pesam, cada vez mais...
10

Jae Young

O vento sopra forte, jogando as gotas de chuva contra a janela. O


som assemelha-se a pedras sendo arremessadas contra a parede.
Sento na cama, afastando o cobertor. A pele se ouriça, embora o
clima agradável do verão contradiga a sensação gélida.

Sigo para o banheiro. Enquanto escovo os dentes outro arrepio


perpassa meu corpo. Será que estou gripando? Toco minha testa,
não noto diferença na temperatura. Meu coração acelera e algo revira
no estômago. Diferente de Elleanor, não sou uma pessoa sensitiva,
entretanto, neste momento, o pensamento de que isso seja algum
tipo de aviso martela com insistência apavorante.

Saio do banheiro arrancando a camiseta do pijama e vestindo em


seguida a roupa da escola.

Ao chegar à sala de jantar, todos estão em seus lugares, como de


costume. A única diferença é o silêncio excruciante. Até um inseto
perceberia a atmosfera pesada. Talvez minha intuição esteja correta!
O ar escapa pela boca com vigor enquanto sento-me ao lado do meu
pai, que mantém a cabeça apoiada entre as mãos sem olhar para
nenhum de nós.

Ana prepara um pão com presunto e queijo e coloca em um prato


à minha frente, evitando a mim e a meu pai. Eles brigaram? Fiz algo
errado outra vez? Busco sinais em suas faces, contudo, suas
expressões são ilegíveis para mim.

Ana enche meu copo com leite. Meu irmão apenas me encara,
imóvel em sua cadeira, parece temer olhar para qualquer outro lugar,
buscando respostas em mim, que igualmente não tenho ideia do
motivo daquela nuvem tempestuosa pairando sobre nós.

Mordo um pedaço do pão, que tornou-se um dos alimentos que


mais aprecio na culinária brasileira, e mastigo rápido. Jae Wook me
imita, ao que parece, ambos desejamos sair daqui o quanto antes.
Melhor as aulas de português do que essa atmosfera horripilante.

— Jae Young, tenho pensado no que me pediu logo que


chegamos nesta casa. — Definitivamente deveria ter pulado o café
da manhã e seguido direto para escola. Agora até a minha coluna
está eriçada como um gato acuado. — Seu comportamento, apesar
de ter melhorado, ainda é arredio.

Ana levanta da mesa levando consigo meu irmão.

— Mãe, eu nem terminei de comer. — Wook esperneia pendurado


em seus braços.

— Seu pai precisa conversar com Young. Eu preparei um lanche


bem gostoso para você levar.
— Ana fique, assim Jae Wook tomará ciência da minha decisão
também. — Ela vira-se, encarando meu pai com fogo nos olhos. Meu
coração bate na garganta. Uma fraqueza inexplicável atinge todo o
meu corpo, impossibilitando qualquer movimento.

— Não é hora de Wook ouvir. Sinceramente, espero que repense


sua decisão. Não considero certo o que pretende fazer. — Ana dá as
costas, andando apressada rumo à escada. As palavras dela são
como um golpe. A cabeça gira e flashes das vezes que eu implorei a
ele para retornarmos para casa explodem aos montes na minha
mente.

— Eu juro que não é o que meu coração deseja, filho, mas sinto
que você sofre por estar longe de casa, pelo meu casamento... Pela
falta de sua mãe.

— Já me adaptei...

— Não é verdade. Você nem ao menos consegue ver Ana como


uma amiga. Sempre recluso em seu quarto, no quintal, ou em outro
lugar onde eu e ela não estejamos presentes.

— Jebal, Abeoji...

— Você não permite que eu me aproxime... Tranca a porta do


quarto à noite. Já não consigo ler para você como fazíamos antes...

A cabeça pesa, não sou capaz de mantê-la elevada. Os olhos


ardem. Pontadas agudas no lado esquerdo do meu peito dilaceram o
coração, que palpita de maneira irregular, cada vez mais fraco. Ouço
o velho e forte Jung Hee soluçar. As pálpebras se fecham
imediatamente, entretanto, não permito que as lágrimas escapem.
— Não posso voltar à Coreia, não teríamos como sobreviver lá...
No entanto, prefiro ter você longe a te assistir sofrendo por minha
causa, Jae Young. — Ele vai manter sua palavra. Voltarei para casa,
contudo não tenho mais lar. — Sua harmeoni receberá você.

— Lee Hye Ji, não, por favor!

— Sua outra harmeoni está doente, não poderá de cuidar de


você... — Empurro a cadeira com o pouco de força que encontro.
Curvo-me por completo.

— Era só isso?

Ele concorda. Agarro a alça direita da mochila, enfiando apenas


um braço. Retiro-me, seguindo porta a fora sem olhar para trás.

Não espero por Ana e Jae Wook. Caminho pela rua sob as gotas
de chuva que caem agora mais calmas, entretanto mais tristes. As
pessoas ao entorno são como um borrão, os olhos quase
transbordando deixam tudo embaçado.

— Sou apenas um peso para eles! Ficarão melhores sem mim!


Nem mesmo meu próprio pai me quer. É mais fácil atirar-me para
Lee Hye Ji, afinal, ela tem seus métodos para fazer com que todos
dancem a música no seu ritmo, do que me ter por perto e atrapalhar
a vida com sua nova e perfeita esposa!

Encaro o céu com suas densas nuvens cinza. Elas parecem tão
pesadas! Assim como eu agora. Um buraco profundo abre sob meus
pés e o peso do meu corpo força-me para seu interior. Os joelhos
não resistem e se dobram até tocar o chão.
— Omma, por que você tinha que morrer? Wea? — A chuva
torna-se novamente pesada, rio com ironia. — Até o céu está contra
mim!

O toque quente sobre meus ombros me tira do mundo onde


vagava. Uma mulher de cabelos curtos bem lisos usando óculos me
encara, cobrindo-me com seu guarda-chuva. Seus olhos puxados
como os meus se apertam.

— Você está bem? Precisa de ajuda?

— Não. — Ela abre a boca, mas não emite nenhum som. Abaixa-
se, entrelaçando seu braço ao meu, elevando-me do chão.

— Entre na loja e espere a chuva passar. Se ficar aqui, além de


encharcado, pegará um resfriado. — Ela aponta para as amplas
portas do pequeno comércio com inscrições em hangeul. Apesar de
não conhecê-la, aceito a oferta.

Assim que adentro, ela gesticula para um banco atrás do caixa.


Sento. Enquanto relembro a surra com a bengala que levei da
senhora a quem serei entregue e suas duras palavras contra meus
pais, a mulher coloca em minha mão uma lata de suco de melancia e
Tteokbokki apimentado. Meneio a cabeça em agradecimento.

— Quer que eu chame seus pais? — Ela se ajoelha na minha


frente.

— Não. Eu só gostaria de ficar sozinho um pouco.

A mulher sorri, levantando-se e dando o espaço que pedi. As


lágrimas insistem em escapar. Sou mais forte. Vejo o rosto sorridente
da minha mãe, ela ao piano, cantando, cozinhando, lendo para mim,
cuidando dos meus ferimentos...

Ela sorria mesmo naquela cama de hospital. Mesmo sem cor no


rosto e sem vontade. Sua bondade era infinita. Ela foi forte até o
último suspiro, para que eu e Jae Wook não sofrêssemos. Eu sei que
se ela estivesse aqui, nada parecido com isso aconteceria a mim ou
a Wook, minha mãe nunca permitiria. A única coisa boa em tudo isso
é poder visitá-la.

Sentirei falta do meu irmão, a quem eu jurei proteger. E de


Elleanor... Quebrarei minha promessa de estar ao seu lado para
sempre. A garotinha sorridente dos lindos olhos verdes, que me
dedicou sua amizade e me deu o carinho que apenas minha mãe foi
capaz de me fazer sentir.

Observo ao redor do pequeno mercadinho cheio de produtos


coreanos e um pequeno objeto capta minha atenção. Caminho até
me aproximar. Os lábios se abrem instantaneamente e a face de
Elleanor sorrindo surge na minha mente. Pego o objeto e sigo para o
caixa. O valor consome praticamente toda a minha mesada, mas fico
feliz por ter gasto.

Decidi não falar nada para Elleanor nem para nenhum dos meus
amigos da escola. Passei os dias restantes na companhia dela e do
meu irmão, realizando suas vontades.
Toda noite, ao deitar, o peso da proximidade da partida deixava-
me exausto.

Da minha janela, observava Lia conversando com suas visitas


invisíveis. Às vezes ela ainda gritava por ajuda, outras lidava bem.
Preocupa-me o fato de não poder mais apoiá-la quando não for
capaz de enfrentar sozinha. O coração dispara sempre que penso
nisso, uma dor aguda e constante que não me permite dormir em
paz. Pesadelos me atormentam até o último dia.

Levanto da cama tropeçando nas malas espalhadas pelo quarto.


Sigo para o banho. Visto a calça grossa, pois embora aqui seja verão,
lá provavelmente já ocorreu a primeira neve. Camisa social, gravata e
colete. Encaro minha imagem no espelho inspirando e expirando o ar.

Tomo meu último café na presença do meu pai e meu irmão. Ana
está calada. Há dois dias que ela não dirige a palavra ao meu pai.
Não gosto dela, mas admito que é uma mulher justa e nunca me
tratou como a senhora Lee Hey Ji. Finalizo o café e retorno ao quarto.
Despeço-me daquele lugar. Pego a caixa com fita rosa e corro pelos
degraus, avançando pela porta e ignorando o chamado do meu pai.

— Elleanor! Lia!

Tia Marta abre a porta. Seus olhos me analisam com curiosidade.


Ela vem até mim. Sorri, destranca o portão e dá passagem para que
eu entre.

— Bom dia, querido! Está muito elegante hoje.

— Obrigada, tia. — Curvo-me. — Posso falar com Elleanor?


— Ela está terminando o café. Entre. — Marta me guia até a sala,
apontando para o sofá. Sento apoiando a pequena caixa sobre
minhas pernas e segurando com as duas mãos. O rosto transpira, o
coração pulsa na garganta. Enquanto aguardo, penso em mil
maneiras de contar a Elleanor, nenhuma parece boa. Não faço ideia
de como ela reagirá.

Os minutos passam, meu peito parece explodir cada vez que o ar


entra, queimando a garganta e todo o trajeto até chegar nos pulmões.
Seco a testa com o dorso da mão esquerda.

Ao elevar a cabeça, vejo Elleanor saltitando em minha direção, de


vestido rosa com babados na saia e cabelos presos nos dois lados.
Traz consigo um sorriso largo estampado na face. Algo semelhante a
um tapa no rosto me golpeia por dentro. E mesmo antes de começar
a falar, os olhos já estão ardendo.

— Jae! — Segura com as mãos a barra do vestido, balançando o


corpo.

— Oi, Lia. — Abaixo a cabeça, pois se olhá-la, não conseguirei


falar.

— Não vai para a aula hoje? Essa roupa parece de festa. Está
bonito.

— Não vou para a escola... Eu... Queria te dar isso. — Estico as


duas mãos com a caixa para ela.

— Um presente? Mas não é meu aniversário.


Tia Marta se aproxima de nós. Olho para ela soltando todo o ar.
Ela parece entender o que se passa e sinaliza com a cabeça para
que eu prossiga. Posiciona-se atrás de Elleanor com as mãos em
seus ombros, que nem percebe o toque da mãe, completamente
absorta desfazendo o laço. Abre a tampa da embalagem. Seus olhos
cintilam e ela dá pulinhos.

— Uma bailarina!

— É uma caixinha de música. Minha mãe tinha uma semelhante a


essa. — Pego a caixinha, dou corda e a bailarina começa a dançar
conforme a melodia triste toca.

— É linda! Obrigada. — Ela levanta o rosto e me encara. Seu


sorriso desaparece e os olhos se juntam. — Por que está me dando
um presente?

A saliva trava e não consigo engolir. Expiro com força. Tia Marta
desliza as mãos, descendo e subindo nos ombros de Elleanor. Ela
joga a cabeça para cima, analisando o rosto da mãe e voltando-se
para mim.

— O que houve, Jae? Por que você está vestido assim?

— Eu... Vou para a Coreia.

— E quando você retorna? — Inspiro e expiro. Encaro Marta. Ela


traz Elleanor mais próxima de si. Abaixo a cabeça. — Então, quando
você volta?

— Não é uma viagem.


— Acabou de dizer que vai para a Coreia... — Elleanor se liberta
mãe e dá alguns passos. Põe a mão em meu queixo e o eleva. —
Você está estranho hoje... Não entendo...

— Morarei lá outra vez.

— Vocês estão se mudando? Por quê?

— Apenas eu vou embora. — Ela se afasta balançando a cabeça.

— Você é uma criança. Não pode morar sozinho.

— Por isso viverei com minha avó.

— Você não gosta mais daqui? Não gosta de mim?

Ela joga a caixinha de música sobre o sofá, se aproxima de mim,


agarra meus braços e os sacode. Não reajo. Ouço o meu corpo se
quebrando por dentro da mesma forma que aconteceu quando
mamãe partiu.

Se não fosse por tia Marta, que agiu rápido e com destreza, a
caixinha de música teria ido ao chão, se despedaçando como eu.

— Não pode ir! Você prometeu! Até jurou com os dedos, lembra?
— Ela grita. Marta tenta afastá-la de mim. Em vão. Elleanor me
aperta com muita força, que eu nem sabia que ela tinha.

— Eu sinto muito, Lia.

— Então fique! Seja meu amigo para sempre! Cumpra sua


promessa... Permaneça ao meu lado, Jae. Você é meu único amigo...
Não quero te perder.
— Continuarei sendo seu amigo, Lia. Nunca vou te esquecer.

— Elleanor, o fato de não se verem todos os dias não significa que


perdeu seu amigo. Podem manter contato de muitas formas. Além do
mais, ele com certeza passará as férias aqui. — Tia Marta consegue
acalmá-la, e aos poucos as mãos afrouxam, até caírem por completo
ao lado do seu corpo frágil. Ela aperta os olhos e um rio de lágrimas
corre por sua face, pingando na gola do vestido.

— Eu sempre serei seu amigo, Lia.

— Amigos não mentem. Você prometeu estar ao meu lado, e


agora está quebrando sua promessa. Não poderá me proteger de
longe.

Todo meu esforço vai por água abaixo e as lágrimas finalmente


escapam. Não tenho vontade de contê-las. O coração bate fraco,
penso que não há mais vida em mim; outra vez, me transformo em
uma casca oca.

— Elleanor! Você não é a única ferida, minha filha. Não exagere.


Jae Young está sofrendo também.

Lia abraça a mãe soluçando.

— Perdão, Lia, por não cumprir meu juramento. Não foi minha
decisão. Eu devo obediência e respeito ao meu pai...

— Tio Jung? Ele que está te mandando embora? Eu falo com ele,
Jae. Vou pedir para ele deixar você morar aqui. Pode ficar na minha
casa. Não pode, mãe? — Vira-se outra vez para Marta, que apenas
meneia a cabeça.
— Gostaria que você pudesse convencê-lo, Lia. Só que o mundo
dos adultos não funciona assim. É mais complicado do que imagina.

Elleanor chega perto de mim outra vez e envolve minha cintura


com seus pequenos braços.

— Por favor, não vá.

Meus olhos se fecham. Retribuo o gesto dela, apertando com


delicadeza e força ao mesmo tempo. Meu choro aumenta e sons
altos escapam da minha boca. Dói tanto! Dói em todas as partes do
meu corpo, não sei definir onde o ferimento é maior.

Tia Marta respira fundo e assim que Elleanor me liberta, é ela


quem me abraça e seca meu rosto.

— Elle, querida, você quer que Jae seja feliz? — Lia sacode a
cabeça afirmando. — Então não chore, pois assim ele se
entristecerá. A amizade de vocês é muito forte e bonita, não se
acabará por isso. — Seca o rosto dela. — Lá Jae estudará em uma
escola muito boa, e quando crescer, ele voltará e poderá trabalhar no
que quiser. Será importante para ele.

— Ele já estuda aqui.

— Mas lá é melhor. — O peito de Elleanor sobe e desce, ela


engole a saliva com a cabeça baixa. Desliza o dorso da mão sobre os
olhos. Quando eleva a cabeça, faz bico, movimentando a cabeça
para cima e para baixo. Encara-me com as órbitas vermelhas.

— Me dê sua mão. — Estendo a mão direita. Ela entrelaça seu


dedo mindinho no meu e, a partir daí, acompanho automaticamente.
— Acreditarei em você mais uma vez, então não jogue fora sua
palavra de novo. Deve me prometer que não me esquecerá, me
escreverá, e o mais importante: voltará quando terminar de estudar.

— Prometo.

— E é bom pensar em um jeito de me compensar depois. — Ela


cruza os braços. Rio e confirmo, curvando-me para ela. As lágrimas
retornam.

Encosto meu polegar no dela, selando mais um juramento. Por


que eu não fui capaz de segurar o choro com ela? Eu precisava
passar segurança, do mesmo modo que minha mãe fez.

Solto nossas mãos, dou um último abraço em tia Marta. Ando até
o portão seguido por elas.

— Tia Marta, desculpe-me. Eu não queria que Elleanor sofresse.

— Oh, querido, não precisa se desculpar. Compreendo


perfeitamente que não é algo que está ao seu alcance para resolver.
Será sempre bem-vindo em nossa casa, não importa quanto tempo
passe. — Ela sorri gentilmente.

Abro o portão e saio. O coração chora, nem sinto meus pés


tocarem o chão. De repente, algo se choca contra mim. Braços finos
e pequenos envolvem minha cintura por trás. Seguro suas mãos,
abrindo-as. Fico de frente para ela.

— Desculpa por brigar com você.

— Não se preocupe, Lia.


— Eu sentirei saudades, Jae. — Sua face banhada pelas lágrimas
faz com que o verde de seus olhos se torne mais intenso e brilhante,
como uma pedra preciosa. Vê-la assim me faz desejar ter coragem
de enfrentar meu pai, de ir contra tudo o que me foi ensinado.

— Eu também, Elleanor. Eu também...

— Eu esperarei por você. — Ela me encara com seriedade e


determinação, nem parece uma criança. — Não importa quanto
tempo passe, estarei aqui quando voltar. — Toco sua face. Com os
polegares, enxugo suas lágrimas, que insistem em escorrer.

Ouço as batidas do meu coração ecoarem pelo cérebro, a imagem


dele pulsando e sangrando surge por trás dos meus olhos. Ela me
deu mais um sopro de vida, mais alguns segundos.

— Eu voltarei, Lia. — Seguro sua mão e a abraço. Elleanor


aproxima seu rosto do meu e deposita um beijo quentinho e
demorado na minha face esquerda. Meus olhos se fecham e meus
pedaços se dissolvem cientes de que não receberão esse afeto por
um longo tempo, aliás, não receberei carinho algum.

Os braços de Elleanor deslizam, e antes que ela se afaste, levo as


mãos ao seu rosto e beijo sua testa. Ela me encara sorrindo e
tocando o local com a ponta dos dedos. Se vira e corre para casa.

Observo-a desaparecer dentro de casa e os estilhaços do coração


correm pelas veias, rasgando-as. Deixo as últimas lágrimas se
libertarem enquanto Lia desaparece da minha visão.

Eu a perdi! A única pessoa que se importava comigo. Agora não


me resta mais nada.
Ao adentrar o portão da casa azul, suspiro fundo, limpo o rosto e
me recomponho. Na sala, meu pai, Ana, Wook e tio Park me
aguardam. Todas as malas já estão no carro. Ana me entrega um
sobretudo e ajuda a colocar a mochila nas minhas costas. Não
recuso dessa vez, será seu último gesto de cuidado comigo.
Desnecessário, mas se ela quer.

Jae Wook observa toda a movimentação, mas não acho que


entenda direito o que está acontecendo. Abraço-o apertado contra o
meu peito. Inalo seu cheiro. Perdão, mãe, não poderei cuidar dele de
perto. Não por um tempo. Solto ele, que me encara sorrindo.

— Hyung, vai viajar?

— Vou para a Coreia para estudar, voltarei quando terminar. —


Bagunço seu cabelo. — Você precisa cuidar do papai. — Wook
balança a cabeça agitado.

— Eu tomarei conta do papai e da mamãe. Não deixarei eles


sentirem sua falta. — Enche o peito e se estica, tentando parecer
mais alto do que é. Concordo com a cabeça.

— Komawo!

— Não peça dinheiro a sua avó. Eu enviarei o suficiente para


você. E me avise de tudo o que precisar.

Curvo-me para meu pai.

— Jae Young! Eu o amo, meu filho. Decidi o que julguei ser o


melhor para você, no futuro compreenderá. — Opto pelo silêncio e
respeito, contudo não acredito em suas palavras. Se me amasse de
verdade, não me entregaria para Lee Hye Ji!

— Cuide-se, Young. Volte quando quiser. Está é a sua casa. — A


voz de Ana está embargada e sua face banhada por lágrimas.

— Kamsahamnida.

— Hyung! Elleanor agora é só minha! — Jae Wook acena e ri,


mostrando a língua em seguida. Sacudo a cabeça e até sorrio com
sua competitividade infantil. Viro-me para tio Park, sinalizando que
estou pronto.

Entramos no carro, eu, tio Park e meu pai, mas quem me


acompanhará será tio Park. O senhor Jung Hee não pode deixar o
Brasil no momento, ao menos foi o que ele alegou.

Observo através do vidro do carro a casa azul e o terraço ficarem


para trás até desaparecerem. Todas as lembranças boas surgem
como um filme. Sufoco por tudo o que estou deixando.

Encosto o queixo no peito, cerro as pálpebras e inspiro o máximo


de oxigênio que sou capaz.

Meu corpo deixará este solo, mas meu coração ficará naquele
terraço onde vi as estrelas acompanhado da pessoa mais especial
que conheci até hoje.
11

Elleanor

Os pingos pesados da chuva me encharcam. A mistura de lama


com folhas espalhadas pela trilha que se estreita a medida que
avanço, dificultam ainda mais o percurso. Grandes troncos de
árvores devastadas parecem se multiplicar e já não sei para onde
devo seguir. O ar fica mais escasso, as narinas ardem. Pouso a mão
sobre o lado esquerdo: o coração se movimenta devagar. Cerro as
pálpebras.

Subitamente a água cessa. Abro os olhos. Aquela paisagem


sombria desapareceu, em seu lugar há uma linda clareira repleta de
flores e borboletas. Os raios de sol refletem nas pétalas coloridas. Os
lábios esticam de leve. Inspiro o ar puro.

Então, avisto um menino de costas. Seus cabelos são negros e


bem lisos. Ele está ereto, com as mãos nos bolsos, sua postura firme
remete a um adulto, se não fosse o formato de seu corpo infantil,
teria a certeza se tratar de um homem.
Ouço as batidas do meu coração apressadas, sua sonoridade
estrondosa assemelhando-se a bateria de uma banda de rock.

Meu corpo, impulsionado pelo ritmo do coração, corre ao encontro


do garoto. Os lábios esboçam um sorriso de satisfação. A brisa leve
em meu rosto balança os fios dos cabelos, lembrando-me das
brincadeiras de infância.

Paro atrás dele. Inspiro fundo. Assim que expiro, toco seu ombro.
Ele movimenta-se devagar e a cada traço de seu rosto que surge,
mais se agitam minhas entranhas. Aquela pele impecável, sorriso
contido e olhos puxados amendoados não me deixam dúvida: Ele
voltou! Voltou para mim!

Jae curva a cabeça levemente, e quando levanta, pega uma flor


oferecendo-a para mim.

— Por que demorou tanto?

Ele apenas mexe os ombros, abrindo um pouco mais seus olhos.


Pega uma das minhas mãos, guiando-me pela clareira. De repente
me dou conta de que meu corpo não é mais o de uma menina, no
entanto ele permanece exatamente igual.

Jae interrompe os passos, vira-se para mim e se distancia um


pouco — contudo, ainda posso alcançá-lo. Passa a mão em minha
face enquanto a dele se transforma. Dos seus olhos, lágrimas vertem
sem o menor pudor. O sorriso se desfaz. Todo seu rosto parece se
contorcer de dor.

Ele desliza a mão na nuca e quando retira, observa a própria


palma vermelha, voltando a me encarar. Meu corpo se petrifica: não
consigo movimentar nem mesmo minha boca.

Jae dobra o corpo em uma reverência.

— Joesonghabnida, Elleanor!

O chão treme e rachaduras surgem ao nosso redor. Fendas


pequenas tornam-se buracos enormes. Jae esfrega as mãos
rapidamente em frente ao seu rosto, gesto que na cultura dele é uma
forma de implorar por clemência ou perdão. Não adianta, o solo
embaixo dos seus pés se abre por completo, o sugando.

Enfim meus lábios se desgrudam, embora não possa movimentar


meu corpo.

— Jae Young! Não! Não! Por favor! Não o tire de mim assim! Jae!

Quando recupero meus movimentos, meu corpo desaba, indo de


encontro ao solo. Todos os meus membros parecem gelatina. Meu
coração lateja insanamente. Talvez eu enfarte agora! Não seria uma
má ideia. Poderia encontrar Jae no outro mundo...

Uma luz radiante me cega, ao mesmo tempo em que mãos


quentes cercam meus ombros, apertando-me com força e tirando-me
do chão, como se fosse o pilar que me sustenta nesse momento.

— Elleanor! Se acalme. Está segura agora. Abra os olhos


devagar.

Obedeço à voz doce, suave e tão familiar que me acompanha


desde a infância, sempre que me perco de mim mesma. Conforme
elevo as pálpebras, a visão das paredes brancas, uma espécie de
cômodo que divide o mundo dos vivos e dos mortos, surge. Há
meses que esse pesadelo me atormenta e me traz ao mesmo lugar.

— Gael, o que significa esse sonho? Por que sempre acabo aqui
na fronteira?

— Infelizmente eu não sei a resposta, Elleanor. Eu recebo minhas


missões e as cumpro. Sinceramente, não faço ideia do porquê e se
seu sonho significa alguma coisa. Não é meu departamento.

— Tem certeza de que Jae Young não apareceu na sua lista,


ceifador? — Cruzo os braços.

— Até o momento não. — Suas belas íris violetas não transmitem


mentira. — Mesmo que estivesse, Elleanor, você não conseguiria
fazer absolutamente nada. Não pode mudar os planos Dele. — Gael
aponta para o alto.

— Eu sei. Mas...

— Mas?

— Eu moveria céus e terras para encontrá-lo e permaneceria ao


seu lado até o último minuto...

— Não sofra por antecipação. Talvez seja apenas um sonho


devido ao seu medo de não vê-lo nunca mais, — Minha boca se
abre. Ele não precisa pronunciar tudo o que pensa! — ou visões, ou
qualquer outra coisa.

Gael me segura de frente para ele com seus belos olhos fixos em
mim. Penso que eles podem ver muito além do corpo humano, que
enxergam nossa alma completamente, com todas as nossas
cicatrizes, as que recebemos e as que causamos em nós mesmos e
nos outros.

— Você é uma bruxa com poderes necromantes, não uma


vidente. Já te aconselhei outras vezes e volto a repetir: procure por
Isy. Você sabe onde encontrá-la. Isy tem muitos talentos e alguns
séculos de experiência.

Gael não tem asas, se passaria por um humano facilmente, não


fosse a excentricidade de seus olhos. Apesar de ser um ceifador, ele
age como meu anjo da guarda particular. Durante todos esses anos,
foi ele quem me ensinou a lidar com meu dom singular.

Após a partida de Jae Young, perdi o controle e a confiança, e o


medo me dominou. Sem o calor da mão dele, eu simplesmente fui
afetada por todas as sensações dos espectros que se aproximavam
em busca de ajuda. Aquilo me consumiu a ponto de ferir meu próprio
corpo.

Acredito que a dor da perda do meu melhor amigo liberou mais


uma habilidade, foi então que Gael, que só aparecia vez ou outra em
meus sonhos, surgiu em carne e osso, acompanhando-me com
frequência.

Gael ensinou-me a lidar com meu dom, a controlar o que desejo


ou não sentir, a aceitar-me como sou e, principalmente, a admitir o
meu destino, que é ajudar as almas que se perdem no limbo entre as
fronteiras, a quem nós, humanos, denominamos de fantasmas.

— Supondo que sua hipótese esteja correta, se isso é apenas um


sonho, por que sempre acabo aqui no seu território?
— Isso não é difícil de entender. Seus poderes ampliam de acordo
com a intensidade das suas emoções. Você é uma humana que
transita entre os dois mundos, vir para dentro do meu humilde
espaço é como adicionar um ingrediente a mais em uma receita de
bolo. Imagine que isso é a cobertura de chocolate.

Ele pisca e sorri, massageando meus ombros. Relaxo um pouco,


entretanto, algo continua me incomodando bem no fundo. Meu
coração diz que não é só um sonho, e mesmo que não tenha o dom
do xamanismo nem vidência, talvez, com pessoas mais próximas, eu
possa pressentir o futuro.

— Ou, repito, seja apenas saudades daquele lindo coreano.

— Lendo meus pensamentos de novo? Não é justo! — Pouso as


mãos na cintura, sacudindo de leve a cabeça.

— É natural para mim, não escolho ver o que se passa na cabeça


dos humanos. Sinceramente, eu preferia não saber. Vamos deixar
esse assunto para depois. Hora de voltar para o seu mundo. —
Concordo sorrindo.

Ele assopra um beijo e no mesmo instante estou de volta à minha


cama, no conforto da minha casa.

O relógio marca 4h. O sono se foi. Embora meu corpo implore por
descanso, a mente não aceita. Deixo o quarto, descendo as escadas
com cuidado para não acordar ninguém, seguindo direto para a
cozinha.

Preparo café bem forte. Não me considero uma apreciadora da


bebida, no entanto, se não tomar, hoje não serei capaz de trabalhar.
Retiro do armário o pão que minha mãe trouxe do interior, quando
ela e papai vieram me visitar no final de semana.

Desde que papai se aposentou e vendeu a confecção, eles


decidiram mudar-se daqui, e foi a melhor opção para eles.

Mamãe resplandece saúde e aparenta ser muito mais jovem do


que é. E papai... Bem, seu espírito sempre foi juvenil, contudo, aos
meus olhos ele está mais alegre, disposto. E se antes gostava de
pescar, agora nem se fala: passa mais tempo na beira do rio do que
em casa — palavras da minha mãe.

Ela também encontrou suas paixões. Adotou alimentos orgânicos


que produz em sua própria horta, nos fundos da casa, e um lindo e
imenso jardim. Redescobriu seus dons natos, desenvolvendo
remédios através de chás e pastas a base de folhas e flores.

Todas as vezes que eles vêm me visitar ou que vou para lá,
sempre tem frutas, legumes e verduras frescas e sem agrotóxicos
para mim. Doces de mamão, abóbora e laranja, geleias e massas
caseiras, tudo feito com carinho, amor e saúde, algo que, para
mamãe, é importantíssimo. E o sabor? Ah! É inigualável.

Assim que coloco a tampa no pote de geleia de jabuticaba, ouço


os passos de Mariana descendo as escadas. Sirvo outra xícara de
café, colocando no lugar em que ela costuma sentar — não leva nem
meio segundo para ver sua silhueta se arrastando preguiçosamente
em direção à mesa.

Ela levanta os braços, alongando-se, em seguida, passa as mãos


pelos cachos negros. Puxa a cadeira, deixando seu corpo longilíneo
de formas perfeitas acomodar-se no assento.

— O que te derrubou da cama dessa vez, Elle? — Apóia o queixo


entre as mãos, me encarando. Seu jeito espontâneo e animado só
despertam depois de tomar seu amado café, aliás, ela toma
praticamente o dia todo.

Rio inclinando a cabeça e soltando um longo suspiro.

— Pela sua reação, só há duas possibilidades: — Mari leva a


xícara à boca, ingerindo uma boa quantidade do café. — alguma
visita esquisita te acordou antes do horário — vira a xícara de novo,
abrindo seus grandes olhos castanhos, analisando cada mínimo
movimento ou intenção minha de fazê-lo. — ou sonhou com seu
coreano encantado pele enésima vez.

Desvio os olhos para minha mão, que segura o pão com geleia,
solto-o por um momento e coloco uma mexa desprendida de cabelo
atrás da orelha. Não pretendia contar a ela, no entanto, nesses anos
todos de amizade, Mari reconhece cada expressão minha. Somos
irmãs, mesmo não compartilhando os mesmos pais ou qualquer
traço de DNA.

Mari pousa sua mão sobre a minha; elevo o rosto até encontrar
sua face.

— Acertei de novo. — O riso sai da minha boca desajeitado e sem


permissão. — Não o conheço pessoalmente, mas morro de
curiosidade, afinal de perto ele deve ser uma mistura de deus grego
com romano e todas as outras divindades existentes, para te fazer
esperá-lo até hoje.
— Ele era o menino mais bonito que conheci sim... Mas acima de
tudo, ele foi a primeira pessoa a se aproximar de mim sem me julgar
ou ter medo. Foi ele quem me encorajou... E fica mais bonito
conforme o tempo passa, basta olhar para as revistas que estampa.

— Já sei essa história de cor e salteada! Você só está se


esquecendo de um detalhe: essa perfeição de criatura te fez
algumas promessas e nunca cumpriu. — Suspiro, virando o rosto
para o lado contrário. — Em compensação, o irmão dele, esse sim,
posso afirmar que é o primor da imagem máscula de um coreano,
beija até o chão que a senhorita pisa.

— Não começa com isso de novo, Mariana Simões! Wook é só


um amigo para mim, o máximo que ele pode chegar a ser é como um
irmão. — Ela termina de ingerir o que restava do café, secando a
boca com o guardanapo e soltando sua gargalhada carregada de
sarcasmo.

— Elleanor, ou você é realmente ingênua ou finge não saber que


Wook é perdidamente apaixonado por você desde... Desde que nos
conhecemos!

— Mari, eu não vejo Wook de outra forma, embora até tenha


tentado vez ou outra. — Levanto da mesa depositando a xícara e o
pires na pia. Ligo a torneira e começo a lavar.

Mari deixa sua louça sobre a minha, parando ao meu lado. Põe a
mão direita em meu ombro.

— Para mim, você está perdendo uma oportunidade de ser feliz


de verdade e esquecer quem provavelmente nunca voltará a ver.
Afinal...

— Afinal nada. — Deixo a louça dentro da cuba, fecho a torneira e


giro o corpo até ficar de frente para ela. Solto o ar engolindo a saliva.
— Eu te respeito, aceito seus posicionamentos, mas eu não quero e
não vou me envolver com um... Amigo. Além do mais, nunca
consegui me sentir confortável com Wook. Não sei explicar... Apenas
não é natural. — Mari ergue as duas mãos em rendição. — Vamos
mudar de assunto. Não gosto de brigar com você, ainda mais por
uma besteira como essa.

— Quem disse que eu ia brigar com você? Sabe perfeitamente


que sou a verdadeira personificação da calma. — Rio caminhando
atrás dela até a sala. Nos jogamos cada uma em um sofá.

— Agora a senhorita é quem vai me explicar o motivo de chegar


tão tarde em plena terça-feira. — Atiro uma almofada nela, que vira o
rosto sorrindo igual a uma criança que consegue o brinquedo que
tanto quer.

— O escocês que ajudou no casamento do Marcus e do André


está em São Paulo. Veio a negócios e entrou em contato comigo. Eu
apenas fui gentil e fiz companhia a ele para jantar. — Suas
bochechas se elevam um pouco, como sempre acontece quando ela
tenta evitar sorrir e quando não quer admitir algo.

— Sei, Mariana. Quer enganar quem? — Ela pisca. Levanta do


sofá e segue para o quarto. Mari poderia me ensinar a andar
elegante assim! Até de pijama fica linda. Aliás, ela é assim desde
criança.
Algumas imagens agradáveis do dia em que nos conhecemos na
escola surgem na minha mente.

Naquela época, fazia um ano da partida de Jae. Eu só tinha Wook


como companhia, embora houvesse momentos em que preferia ficar
só, mas ele não permitia. Grudou em mim como carrapato.

No entanto, nossa amizade nunca chegou a se desenvolver da


mesma forma que era com Jae. Nunca contei a ele sobre meu
talento. Não compartilhávamos os mesmos gostos e sempre me
irritava o fato de ele pensar que todos a sua volta deveriam realizar
suas vontades, como se ele fosse o centro do universo.

No fim, acabei me acostumando com sua presença imposta, tanto


na escola, como em casa, já que nossas famílias só fortaleciam os
laços.

No dia em que retornarmos para a escola após as férias,


conhecemos Mariana e Marcus, que tinham acabado de se mudar
para o nosso bairro. Eu e Wook estávamos sentados em um banco
perto da quadra de basquete, quando vimos uma pequena
aglomeração vindo em nossa direção.

Lembro-me de apertar a mão dele, preparando-me para puxá-lo


caso fosse necessário correr. Pensei que estivesse acontecendo
uma briga entre os dois valentões da escola. Na realidade, era
apenas Mariana caminhando lindamente junto com o irmão gêmeo.

Ela sempre foi alta, e já se vestia muito bem — cá para nós,


Marcus também. Óbvio que a dupla fez muito sucesso no primeiro
dia. E Marcus, com seu par de olhos esverdeados contrastando com
a pele negra, se destacava ainda mais que Mari.

Somando-se a isso, simpatia e alegria dos dois, o resultado não


seria outro: conquistaram admiradores por toda escola.

O mais impressionante foi que assim que ambos nos viram


naquele banco, quietos e reclusos, se aproximaram sorrindo e
sentaram ao nosso lado. Podemos dizer que foi amizade à primeira
vista. Desde então, somos quase inseparáveis até hoje.

Quando meus pais decidiram se mudar, ambos queriam que eu


permanecesse morando no Bom Retiro, entretanto aquela casa é
grande demais para uma pessoa. E ficar sozinha perto de Wook não
me pareceu uma boa ideia. Até hoje ele tem hábitos parecidos com
os de Jae, como se preocupar com o que eu como, se eu trouxe ou
não guarda-chuva, evitar que eu me acidente... Contudo, algo em
sua personalidade soa estranho para mim, não me parece natural. O
que nunca aconteceu com Jae.

Então convenci meus pais de que alugar a casa seria a melhor


opção.

Mariana me convidou para morar com ela no apartamento que


seu pai a havia ajudado a comprar, é perto da loja de moda feminina
que ela montou com o irmão.

Marcus não quis morar conosco por ter sua vida emocional
estabelecida, mas mora no mesmo prédio, com o marido André.

Pago um valor mensal à ela, sob forte protesto e resmungo,


equivalente ao que pagaria se alugasse o mesmo espaço em outro
lugar. Minha renda não se compara a dela, mas é suficiente para me
manter.

Mari foi um dos grandes presentes que o destino colocou no meu


caminho. Temos nossas diferenças, mas se não fosse por ela, minha
vida seria triste. Mari tem o dom de levantar o astral de todos; não
consigo lembrar-me de vê-la cabisbaixa.

Ela ama o sol, também não é para menos, ela é como o próprio
Sol para todos nós, iluminando nossas vidas. Embora tenha se
machucado inúmeras vezes em seus relacionamentos amorosos,
nunca permitiu que isso a definisse nem desistiu do amor.

Mari tem garra, e se ela coloca na cabeça que fará algo, pode ter
certeza de que conseguirá. Essa sua determinação também reflete
em mim, pois ela não me permite desistir de nada. E ser for
necessário se transformar em guincho para me fazer ficar em pé, ela
o faz.

— O que ainda está fazendo deitada nesse sofá? Sonhando como


coreano encantado? — Ela aponta para o relógio na parede da sala.
Dou um pulo, tropeçando nos pés e quase levando a mesa de centro
junto comigo para o chão.

— Ai! — Ela se abaixa contendo o riso e me ajudando a levantar.

— Elleanor e seu equilíbrio! — Mostro a língua, dou-lhe as costas


e corro para o quarto.

Madá nunca briga quando me atraso, contudo, o fato dela ser


minha tia já é motivo suficiente para que alguns colegas de trabalho
não me vejam com bons olhos.
12

Jae Young

Coreia

O peso da mala parece mais leve que o meu cansaço, pelo


menos ela tem rodinhas... Quanto a mim, não posso tirar minha
cabeça do corpo e deixá-la em outro lugar para aliviar o fardo.

Após retirar a segunda mala da esteira, ajeito o cachecol, coloco a


máscara cobrindo nariz e boca, óculos escuros e dirijo-me ao
cumprimento dos trâmites legais, para só então cruzar os portões do
aeroporto de Incheon, pela enésima vez, ganhando o abraço
congelante do frio.

Suspendo os passos observando ao redor. Gasto apenas dez


segundos para localizar o carro da empresa à minha espera —
embora eu nunca tenha aceitado cargo algum na Park
Comunicações, minha avó continua a tratar-me como se fosse o seu
sucessor.
Senhor Choi, com sua postura impecavelmente ereta, me aguarda
ao lado da porta do passageiro. Nem ao menos tenho a chance de
tentar outro meio de transporte para chegar à casa onde vivo desde
os dez anos. Lee Hye Ji não folga! Por que ainda me surpreendo?

Cerro as pálpebras soltando o ar devagar, só então volto a


caminhar em direção ao carro. O motorista curva-se, abrindo a porta
de trás. Movimento a cabeça em agradecimento. Ele fecha a porta
assim que termino de me acomodar.

Mantenho os óculos escuros, pois apesar de ser calado, ele é


muito observador e sabe usar como ninguém o retrovisor interno
para ler os olhos de quem tem o prazer — ou o desprazer — de ser
transportado por ele e sua direção suave e, como sempre, não o
permitirei desnudar meu interior.

Apoio a cabeça no encosto, deitando de leve para o lado direito.


Ouço o barulho do motor, seguido do movimento lento do automóvel,
que aos poucos ganha velocidade.

Através do vidro escuro, observo a paisagem verde misturada ao


cinza da estrada me embalar. A simplicidade dessa imagem e o
silêncio funcionam como uma espécie de meditação, um bálsamo, e
transportam-me para outro lugar, mais verde e denso, no entanto
igualmente quieto, com uma das mais belas e saudosas lembranças.

Ah! Se eu pudesse voltar àquela época e parar o tempo...

Não chego a dormir, apenas aproveito a paz das memórias


revividas como se assistisse a um filme antigo na imensa tela presa
na parede do meu quarto.
Adentramos pelo suntuoso portão de ferro contornando pelo
calçamento que atravessa o enorme jardim onde, ao centro, há uma
estátua de um guerreiro empunhando a espada sobre seu cavalo,
feita de mármore escuro, tão assustadora quanto a sua proprietária.
Circundando-a, um pequeno lago.

O carro passa pela criatura de pedra, parando bem em frente à


porta principal da casa.

A governanta e mais dois empregados estão a postos. Para


muitos, essa demonstração exagerada de riqueza é um sonho; ser
tratado como rei, paparicado por todos à sua volta. Não é o meu
caso. O que idealizo é um lugar onde o único ser humano presente
seja eu mesmo, onde haja liberdade para ser quem eu realmente
sou, sem questionamentos e regras demasiadas.

Os trabalhadores aqui seguem os costumes de gerações, algo


natural para eles. A maioria demonstra gentileza e discrição, e há
aqueles que sorriem de bom grado, oferecem alegria honesta. Ainda
assim, minhas entranhas se comprimem toda vez que sou obrigado a
passar por esse ritual, e a todos os exageros a que fui submetido
desde o dia em que pus os pés nesse lugar.

Senhor Choi sai do carro e anda a passos largos até abrir a porta
para que eu possa deixar o interior do veículo. Eu executaria
perfeitamente bem essa simples tarefa, mas não quero prejudicá-lo.
Lembro-me bem das reprimendas que levou nas vezes em que eu
recusei seus serviços.

Tiro os óculos, enviando ordens para o meu corpo agir de acordo.


Não ser simpático demais nem frio ao extremo. Inspiro e expiro.
Coloco primeiro o pé direito, depois o esquerdo, erguendo-me e
abotôo o paletó. Curvo de forma suave o pescoço para todos,
devidamente de acordo com o código de conduta da senhora Lee
Hye Ji.

— Seja bem-vindo de volta, Park Jae Young Ssi.

— Kamsahamnida!

Seguro as mãos enrugadas da governanta Kim Bo Ah


demorando-me um pouco e oferecendo meu sorriso tímido,
entretanto sincero. Essa é a única desobediência que faço, pois foi
ela quem me acobertou e socorreu, evitando que minha avó
soubesse do mais simples descuido às suas regras. Também foi ela
quem me deu carinho escondido, lendo e até cantando, como minha
mãe fazia, preparando lanches noturnos quando era proibido de
jantar por qualquer motivo. Como foi, e é, a única capaz de me fazer
sorrir um pouco nessa fortaleza fria e sombria.

Assim que solto as mãos da senhora Kim, os dois rapazes


gesticulam, aguardando a permissão para carregar as malas.
Confirmo e eles desaparecem ligeiros para dentro da fortaleza.

Ela abre a porta, indicando o caminho para que adentre a casa,


como se fosse minha primeira vez ali. Passo pela porta trocando os
sapatos.

O peso volta a tomar conta de todo o meu corpo, e o aperto


habitual no peito o faz latejar, aumentando à medida que ingresso na
sala.
Do lado de uma das imponentes vidraças que vão do chão ao
teto, sentada em sua cadeira de rodas, Lee Hye Ji encara a imagem
do seu belo jardim. A cadeira gira antes que eu alcance os degraus
da escada.

— Dasi osin geos-eul hwan-yeonghabnida.— Ela cumprimenta-


me, apontando para o sofá ao seu lado.

— Kamsahamnida, harmeoni. — Apesar dela sempre dizer que


sou bem-vindo, não sinto veracidade em suas palavras, mas devolvo
o gesto em sinal de respeito, contudo permaneço de pé.

— Depois de todos esses anos, você ainda não se sente em casa.


— Solta o ar com aspecto pesado.

— Como a senhora está hoje? — Obrigo-me a aceitar a oferta,


acomodando-me ao seu lado, embora minhas pernas não parem de
mexer e as mãos piniquem, como se eu estivesse segurando folhas
de urtiga.

— Aceite minhas boas-vindas, Park Jae Young. Não fui uma avó
carinhosa ou mãe exemplar...

— Não precisamos falar do passado, harmeoni. Não te fará bem.


— Não pretendo carregar mais peso na minha bagagem para o outro
mundo.

— Quando chegar à minha idade, compreenderá que não há


tempo a perder. Não pretendo nem espero alcançar mais nada nesta
vida. Todo dia a mais é um presente.
Ela pousa sua mão trêmula sobre a minha. Contorço-me e o
músculo cardíaco é golpeado por milhares de pequenas facadas e
bengaladas — iguais as que ela desferiu contra mim naquela fatídica
noite.

Gostaria de ter coragem e simplesmente colocar para fora tudo o


que está arraigado dentro de mim, mas os ensinamentos da minha
mãe e o respeito por sua memória não me permitem.

Embora toda vez que olhe para Lee Hye Ji eu escute tudo o que
ela proclamou contra minha mãe logo após nos despedirmos dela
para sempre e sua voz ecoe me deixando tonto, ainda assim não
consigo expressar tudo o que comprime meu peito.

— Kamsahamnida. — Mantenho os olhos fixos no meu colo. Sou


um covarde mesmo! — Como foi à quimioterapia?

— Igual a todas as vezes. Hoje os sintomas melhoraram e


consegui me alimentar um pouco.

— Muito bem, harmeoni. — Estampo um sorriso amarelo,


elevando a cabeça para que ela veja. Coloco minha outra mão sobre
a dela, dando uma leve batida —ouço em minha mente o ranger das
engrenagens velhas e enferrujadas forçando-se até quase se
quebrarem para realizar o movimento tão banal, ínfimo. — Está
usando um lenço novo?

— Oh! Sim. Gostou? — Ela o toca e sorri.

Quando eu era criança, nunca a vi mostrar qualquer sentimento


que não fosse autoridade ou ira. Se me contassem, eu não
acreditaria que ela sabia ou sequer tinha a habilidade para executar
tal façanha.

— Combinou com a senhora.

— Recebi ontem do Brasil. — Lee Hye Ji me encara


profundamente. Somente a menção ao país foi suficiente para que
as facadas terminassem de rasgar meu peito e todo meu corpo
estremecesse. — Park Jae Wook me enviou.

— Namdongsaeng? — Ele não era tão rígido quanto eu em


relação a Lee Hye Ji, mas chegar ao ponto de enviar um presente?
Com certeza quer dinheiro outra vez, resta saber o motivo. Os
rendimentos da loja já não dão conta dos gastos dele há tempos.

— A agência está com problemas. Contratos cancelados e sem


caixa para pagar os funcionários esse mês. Ele pediu que eu o
ajudasse financeiramente. — Fecho os punhos, inalo o ar contando
até dez.

— O que ele aprontou agora? Discutiu com cliente? Negou-se a


cumprir o que acordou? Não estava inspirado e faltou a sessão de
fotos pela milésima vez?

Se ao menos tio Park Soo Hyun ainda estivesse por perto, ele
poderia ajudar, mas três anos depois que me trouxe de volta para cá
ele faleceu, e a esposa e os filhos deixaram São Paulo rumo à
Coreia, como eu.

Sua esposa não demorou muito a partir para o outro mundo


também, e o pouco contato que desenvolvi com os netos do tio Park
foi se esvaindo até desaparecer por completo.
— Jung Hee o mimou demais. Devia tê-lo deixado comigo.
Educaria Jae Wook como eduquei você. Um coreano deve viver
como coreano. — Enche o peito alongando a coluna. Lee Hey Ji de
sempre! Entretanto, dessa vez tenho que concordar com ela. Jae
Wook necessita de limites. Quem sabe assim torna-se adulto.

— Há mais um problema: Ana.

— Mwo? — Solto os braços ao lado do corpo.

— Ela está doente.

— O que ela tem? Por que ele não me ligou? E ainda te pediu
dinheiro?

— Jae Wook alegou que você já se responsabilizou demais por


ele. Que envergonhava-se da situação, mas era dever dele cuidar da
mãe, por isso tomou coragem e me pediu. Quanto a Ana, ainda não
saíram os resultados dos exames. Mas tudo indica que é Alzheimer.

— Desconfio que o motivo do contato com a senhora seja outro.


— Coço o queixo.

— Eu também...

Uno as mãos apoiando a testa. O peso só aumenta... Sempre


soube o que fazer, que decisão eu devia tomar. Mas não agora...
Nem meu corpo coopera, imóvel e dolorido... devo ter participado de
alguma luta da qual não me recordo, pois não há um único pedaço
de carne em mim que não lateje.

— Todos nós erramos, Jae Young. — A voz da minha avó me traz


de volta. — Às vezes descobrimos tarde demais, como eu... O que
fiz com Jung Hee, — Ela suspira fundo. Daebak! Será que estou
delirando? Ela está tentando se redimir de verdade? Lee Hye Ji tem
consciência? — foi impiedoso. Eu só percebi quando o perdi... —
Meus olhos se afogam em lágrimas, me esforço para não permitir
que escapem. — Ana cuidou do Jae Wook como se tivesse saído do
próprio ventre... E teria feito o mesmo por você. Ambos
reconhecemos isso, não é mesmo?

— A senhora está certa, harmeoni.

As palavras saem sem pensar. Não encontro forças para mover-


me, olhar para minha avó então, impossível, não estou preparado
para ouvir suas confissões.

— Não fique com a culpa. Você ainda pode se entender com ela.
Aceite-a como a mulher do seu pai, mãe do Jae Wook.

O peito pesa e mal consigo respirar. É como se ela pudesse ver


não apenas minha casca, mas tudo o que há dentro de mim. Minha
parte feia. As mãos suam e a cabeça assemelha-se a uma bomba
relógio em contagem regressiva.

— Faça o que é correto e não carregue fardos como eu, que


provavelmente terei que pagar todos na próxima vida. — Lee Hye Ji
aperta meu ombro. — Está na hora de você voltar para o Brasil. Não
é um fato que me agrade, entretanto é preciso. Além do mais, Jae
Wook deve ser domado e é seu dever fazê-lo. Ou perderão a loja e a
agência.

Retira a mão do meu ombro, gira sua cadeira e desaparece rumo


à cozinha.
Assim que consigo mover meus membros, arrasto-me para meu
quarto com a sensação de carregar uma tonelada em cada perna.
Os passos são suficientes apenas para chegar até a cama, onde
desabo sem a menor cerimônia.

Afundo o rosto no travesseiro. Cenas das brincadeiras com Jae


Wook na grama da casa azul no Bom Retiro, sob o olhar atento da
mulher do meu pai e seus lanches caprichados. As conversas em
nossa língua materna que Ana fazia questão de manter, embora não
fosse seu idioma; seu esforço para aprender a preparar alguns
pratos coreanos, meu pai na cozinha ensinando-a a fazer kimchi,
pasta de soja, bulgogi, kimbap, bibimbap.

Ela e papai sempre eram carinhosos um com o outro e isso me


machucava, pois eu gostaria de tê-lo visto agir da mesma maneira
com minha mãe, entretanto, com ela sua atitude era mais reservada.
Para mim, Ana estava recebendo o que pertencia a minha mãe, ou
deveria ser dela para sempre.

Acredito que se tivesse convivido com eles, entenderia e aceitaria


com o tempo. Meu pai não pensou assim. Ele nunca pediu que eu
voltasse a morar com ele, nem mesmo depois de adulto. Isso ainda
me fere.

Quando recebi a notícia do enfarto dele, eu não quis visitá-lo. Não


me despedi... Nem pedi perdão... Ou perdoei... Ou revelei que,
mesmo ferido, eu o amava. Se não fosse pela decisão de trazer o
corpo dele para cá, não participaria do seu funeral.

Eu critiquei Lee Hye Ji todos esses anos e no fundo existe um


lado meu tão obscuro quanto ela.
A dor em meu peito comprime mais e mais o músculo, dificultando
o bombeamento do sangue para o resto do corpo, a respiração é
árdua, pés e mãos gelam e a boca seca.

Mergulhei no trabalho, assinando contratos seguidamente, só


para manter a mente ocupada, o que fiz até o momento. Tudo para
me esconder do mundo, e principalmente de mim mesmo. Agora me
resta o vazio. O trabalho não cumpre mais seu objetivo.

E ainda tem outra questão que nunca resolvi, não por completo.

Afrouxo o travesseiro sendo tomado pela imagem do sorriso mais


inocente e gostoso que já presenciei. Seus pulinhos ao conseguir o
que desejava. A espontaneidade dos seus gestos...

Empurro o travesseiro, que cai no chão do outro lado da cama.


Com um movimento rápido, sento, me recompondo. Abro a gaveta
da mesinha de cabeceira.

— Ainda está aqui! — Passo o dedo pela imagem impressa na


fotografia desbotada. O sangue flui como lava pelas veias.

Dou um longo suspiro e coloco a imagem, dentro do meu bolso.


Levanto seguindo para o banheiro. Lavo o rosto encarando a
imagem refletida no espelho.

Puxo a toalha, esfregando-a na face. Volto para o quarto apenas


para pegar a chave do meu carro e minha carteira. Visto a máscara
preta, os óculos escuros e um boné da mesma cor.

Corro pela escada parando apenas quando chego à minha vaga.


Entro no carro. Giro a chave e acelero, levantando algumas pedras
pelo cascalho.

No caminho, apenas um pensamento, que nem mesmo a bela


paisagem verde consegue aliviar.

Paro o carro em frente à floricultura. Compro um arranjo de


Mugunghwa, a flor que nunca murcha, assim como o amor.

Volto para o carro e dirijo até chegar ao meu destino. Estaciono na


primeira vaga que encontro. Deito a cabeça sobre o volante juntando
os cílios, apertando-os. Permaneço na posição por um tempo que
não sei precisar. Abro os olhos, engulo a saliva, amarga feito fel.
Destravo a porta e a empurro.

Salto do carro com o coração acelerado.

Passo a mão por cima do sobretudo livrando-me dos amassados.


Elevo os olhos para o céu, que está limpo e claro. O vento gelado
parece cortar a pele do rosto exposta em micro pedaços;
contrariando o frio, as mãos umedecem — seco-as na lateral da
calça. Não transcorre nem um minuto e elas voltam a transpirar.

Inspiro e expiro algumas vezes. Pego as flores que pareciam mais


leves na floricultura, agora não consigo mantê-las nas mãos, então
envolvo-as com os braços, apertando-as, sem muita força, contra o
peito.

O ar se torna difícil de puxar, não preenche os pulmões como


deveria. Caminho lentamente, chutando as pedras pela curta trilha
até chegar na árvore da minha família. Deito as flores lado a lado,
como as urnas de Kim So Min e Park Jung Hee que estão debaixo
desse solo.
Novamente surpreendo-me comigo mesmo, pois os olhos
marejam outra vez. Passo as mãos pela face, subindo até os cabelos
e jogando-os para trás. A cabeça automaticamente pende para
baixo.

— Omma! — A língua enrola, dificultando a fala. —


Joesonghabnida! Perdão! — Junto as palmas das mãos esfregando-
as rapidamente, como se tentasse aquecê-las, implorando a ela por
misericórdia. — Não tenho sido um bom filho. Faz tempo que não te
visito. Nem apareci no seu último aniversário...

Lágrimas rolam pela face, passo o dorso da mão para secá-la. As


pernas tremem e fraquejam. As bochechas queimam. Embora não
veja minha mãe, sei que, de algum lugar, ela me enxerga,
provavelmente mais do que apenas esse amontoado de carne e
ossos...

— Não cumpri o que te prometi. Não tomei conta do Jae Wook


como deveria e agora ele está com problemas. Por isso eu devo
reparar meu erro. Voltarei para o Brasil. Quebrarei outra promessa.
— Sorrio sem vontade, chutando o nada. — Mais uma entre tantas...
Sabe o que isso acarretará? Uma enorme confusão e minha
completa ruína!

Retiro a foto do bolso. A face queima, o sangue borbulha. Levo-a


até o peito.

— Não sei se conseguirei manter distância o suficiente... Não


acho que posso suportar... Vivi no inferno esses anos todos. Sabe
bem o quanto me custou manter minha palavra! Ajude-me! Não
quero ferir Jae Wook... Prometi que cuidaria dele, que o protegeria...
Não sei se conseguirei.

De repente, o vento frio torna-se agradável e algo toca minha


face, tão suave como um beijo. As pernas tremem a ponto de não
serem mais capazes de suportar meu próprio peso. Os joelhos se
dobram e vão ao chão. Encaro o tronco da cerejeira imaginando o
rosto sorridente da minha mãe.

— Omma, é você? Bogo ship-eo. Anseio pelo seu abraço quente


e seus conselhos sábios...

Meu âmago parece encolher, algo pesa e aperta meu ombro


esquerdo, aquecendo toda a região. Meu pensamento se volta para
a outra pessoa cujos restos mortais também repousam ali.

— Abeoji?

Bato duas vezes no meio do tórax, o rosto banhado pela água


salgada que corre do canto dos olhos até o queixo, pingando na gola
da blusa branca. Encho o peito de ar e grito até não restar nada
dentro de mim. Curvo o corpo, tocando as mãos no chão.

— Eu sinto muito por não ter aparecido quando mais precisou.


Não tive coragem de encará-lo. Doía e ainda dói o que me fez. Eu
não sei se te perdoei. Aqui dentro está tudo confuso... — Bato o
punho fechado em meu peito. — Não consigo perdoar nem a mim
mesmo... Desculpe-me por ser assim. Joesonghabnida! — Curvo-me
outra vez. — Abeoji... Joesonghabnida!

Mudo a posição das pernas, sentando-me escorado na Cerejeira.


Inclino a cabeça para o alto, absorvendo o ar calmamente. Fecho os
olhos e a mente. A única coisa que me permito é sentir o vento. Aos
poucos os músculos relaxam, a respiração entra no ritmo certo, e
apesar da dor constante, o coração bate sem pressa.

Uma folha cai em meu colo, exalando um aroma doce. De alguma


forma, tenho a certeza de que eles estão e estarão comigo.
13

Elleanor

Entro no quarto chutando os chinelos dos pés, que voam para cair
em qualquer lugar. Sigo para o banheiro me livrando das peças do
pijama, que ficam pelo piso. Tomo uma ducha fria, a fim de me
ajudar a acordar e também evitar demorar mais do que o necessário
ali.

Saio do banheiro secando o corpo apenas o suficiente para não


molhar meu belo uniforme roxo, cor preferida da minha tia. Prendo o
cabelo em um rabo de cavalo bem alto, pego a bolsa jogando o
celular dentro. Enfio os pés nas sapatilhas, terminando de calçá-las
enquanto caminho.

Como Mariana já foi para o trabalho e Marcus está viajando, corro


— literalmente corro — até o ponto de ônibus, que já está quase
saindo.

— Ei! Espere por mim! — Balanço os braços no alto. Um rapaz


nota meu desespero e avisa ao motorista. Graças a essa boa alma
eu não perco o transporte.
Apesar de ter me formado em publicidade, descobri seis meses
depois que não tenho a menor vocação para a profissão. Não sou
criativa nem tenho paciência para lidar com os pedidos inusitados e
sem nexo de alguns clientes.

Apesar disso, sou boa em lidar com pessoas e, embora meu


quarto não seja um exemplo de organização, como diz o ditado:
“casa de ferreiro, espeto de pau”, sou sim muito habilidosa com
organização administrativa e planejamento.

Quando Madá me ofereceu a vaga, eu aceitei sem pestanejar.


Não sou como a Mari, que mesmo antes de terminar a faculdade já
abriu a empresa junto com o irmão, e não quero ser um fardo para os
meus pais.

Madalena é solteira convicta e muito feliz com sua opção. Não


quis ter filhos, nem mesmo adotivos — se bem que ela faz questão
de dizer a todos que é minha segunda mãe. Não posso negar, pois
ela realmente cuida de mim e se preocupa tanto quanto meus pais.
Até quis que morasse com ela, mas Madá é um espírito livre e não
gostaria de tirar isso dela.

Ela traz essa essência para dentro da empresa, com seu gosto
requintado e autêntico. Ama mudar a cor dos cabelos, atualmente
está com um corte Chanel com as pontas azuis.

Sua filosofia e alegria foi o que fizeram com que a empresa se


tornasse uma das mais requisitadas de São Paulo, então não há a
menor possibilidade de dias livres na agenda. Mesmo que seja um
pequeno coquetel, trabalhamos de domingo à domingo.
A escala de funcionários tem que ser planejada com muito
cuidado, tanto para não colocar a mesma pessoa trabalhando
domingos seguidos, como para seguir o perfil exigido pelos clientes
para cada tipo de evento. Minhas planilhas atuam como verdadeiras
celebridades nesse aspecto.

Além disso, também controlo os fornecedores, agenda dos


eventos e a idealização, junto com os clientes, de como acontecerá
sua recepção detalhe por detalhe.

O ônibus para. Hora de saltar e caminhar mais uma quadra. O sol


está escaldante hoje. Se tivesse me maquiado, estaria parecendo
aqueles bonecos de cera dos filmes de terror. Olho para o relógio em
meu pulso: corre, Elleanor!

Pernas bambas, respiração ofegante, rosto suado, mãos apoiadas


nos joelhos: é assim que paro na porta da empresa esperando até
que alguém abra. Para minha sorte, Madá me recebe e ela não está
sozinha, duas funcionárias da equipe da cozinha a acompanham.
Elas entreolham-se, cochichando com braços cruzados e narizes
torcidos. Madá sorri, entrelaçando seu braço ao meu.

— O que houve para chegar aqui tão deplorável, Elle?

— Perdi a hora. Perdoe-me, Madá, só mais uma vez? — Junto as


mãos na frente do rosto, fechando um olho e deixando o outro
aberto.

— Venha morar comigo que não se atrasará mais. — Mantenho


as mãos na mesma posição fazendo bico. Ela leva a mão até minha
orelha esquerda, torcendo de leve. — Vou te dar um despertador
daqueles antigos e bem barulhentos. — Solta minha orelha
sacudindo a cabeça e rindo.

— Pode descontar do meu salário esse atraso.

— Elle, não tem mais o que descontar esse mês, ficará sem
salário, querida. — Escondo minha face com as mãos.

— Então desconte do próximo.

— Pensarei em outra forma de compensar isso, entretanto, deve


se esforçar mais, querida. — Pulo, abraçando-a pelo pescoço e
estalando os lábios em sua bochecha. — Vá para o vestiário e
melhore isso, — Ela balança a mão para cima e para baixo indicando
minha aparência. — mas antes tome água e coma uma fruta. —
Entrega-me um copo com água quase transbordando e se retira.

Sigo suas instruções iniciando minhas atividades em seguida.


Primeiro verifico os eventos do dia e a escala de funcionários. Depois
vou até a cozinha observar o estoque e as entregas agendadas. Até
o momento, tudo correndo dentro do cronograma.

Devido ao atraso, opto por almoçar no café que fica no mesmo


prédio que a agência de modelos do Wook, não tem refeições, mas
os lanches são gostosos e o atendimento é rápido. Além do mais,
são apenas duas quadras daqui. Aviso Mari que não poderei
encontrá-la no local combinado.

O estômago reclama enquanto aguardo na fila para fazer meu


pedido, o celular no ouvido respondendo a um cliente que quer
mudar a data do evento.
Ao olhar para a porta, Mariana e Marcus acenam. Retribuo
sorrindo, apontando que eles peguem logo uma mesa. Marcus pisca
seus lindos olhos esverdeados sentando-se onde mostrei. Desenho
com o dedo um coração para ele, que gargalha. Mari estampa sua
expressão de indignada, mas acompanha o irmão.

Assim que faço meu pedido, caminho até eles, sentando-me ao


lado de Marcus.

— Desculpem por fazê-los vir até aqui, mas...

— Chegou atrasada e está compensando no almoço. — Olho


para baixo. Isso tem acontecido em demasia. Talvez eu deva aceitar
o despertador que Madá me ofereceu... e parar de sonhar acordada.

— Ei! Não precisa ficar triste, Elle. — Marcus passa o braço por
meus ombros. — Mariana está de mau humor porque certo alguém
prometeu entrar em contato e até agora... — Mari lhe dirige um olhar
mortal, a sensação que tenho é de que Marcus pode virar cinzas em
poucos segundos.

— Ah! O escocês! — conspiro com Marcus.

— Estou apenas irritada com os croquis e amostras de tecido que


recebi. E você, deveria — volta a fulminar o irmão — se preocupar
também. Afinal, o lançamento da coleção será em dois meses.

— Eu já te disse que resolverei. Se acalme ou acabará com rugas


nos olhos. — Contenho o riso para não deixá-la ainda mais furiosa.
— E você, Elle? Esses atrasos... Não tem dormido direito, não é?

— Vamos dizer que sim.


— Ela continua sonhando com o coreano encantado.

— Coreano encantado? Estão falando de mim? — Wook surge,


sentando ao meu lado e puxando-me para um abraço bem apertado.
Como não o vi entrar se estou de frente para a porta? Mari olha
discretamente para mim erguendo o ombro direito e as sobrancelhas,
um gesto de desculpas. Meu rosto arde e a barriga gela.

— Os pesadelos estão atormentando Elleanor de novo. — Marcus


e sua calma resgatando-me de um abismo e jogando em outro.

— Que história é essa, Elle? — Viro o rosto completamente para


Wook, o coração pulsando no pescoço, a respiração acelerando ao
mesmo tempo em que as mãos se fecham em punho.

— Exagero dos dois. Muito trabalho resultando em poucas horas


de sono e sonhos ruins relacionados a clientes mal-humorados. —
Piso com força no pé da Mari por baixo da mesa.

— Elle, você sabe que...

— Exatamente, sei que estou me sobrecarregando, mas faz parte


do meu trabalho. Você está fazendo tempestade em copo d’água,
Mari. — sinalizo com a cabeça para ela se calar.

— Calma, Lia! Mariana só está preocupada com você.

— Wook, por favor, já te pedi para não me chamar assim. — Bato


os dedos na mesa evitando olhar para ele.

— Desculpa... Eu vi vocês e resolvi entrar, pois tenho um pedido,


na verdade, um convite, para você, Elleanor. — Mari e o irmão
entreolham-se. Ela mexe no cabelo, desviando o rosto para o lado.
Eles estão se preparando para sair e me abandonar com Wook.

Encaro Marcus.

— Por favor. — Movimento a boca em um murmúrio quase sem


som. Ele apenas dá de ombros. Ambos levantam-se, alegando que
precisam resolver a questão das amostras com urgência. Enquanto
eles saem, meu sanduíche de frango com pesto chega. Não me
resta escapatória.

— Qual é o convite? — Mordo um pedaço, evitando olhar


diretamente para ele.

— Acabei de assinar contrato com uma rede de joias, como eles


não sugeriram modelos ou celebridades para a campanha, eu pensei
em você. — Ele sorri, abrindo bem os lábios. Embora seus olhos se
juntem, não parecem sorrir como Jae.

Mastigo o pedaço do sanduíche pensando na resposta. Extra é


sempre bem-vindo... Wook não é exatamente o motivo dos meus
problemas, é insistente e por vezes possessivo, entretanto, nunca
me fez mal. Também não é um convite para um encontro. É só
trabalho.

— Não sou modelo, Wook, nem fotogênica como você acha.

— As outras campanhas que você fez foram um sucesso. São


apenas fotos do seu rosto. Não vai desfilar, nem poderia, com sua
altura. — Ri bagunçando meu cabelo.
— Tudo bem, eu aceito. — Ele faz um coração com as mãos. —
Mas não me culpe se seu cliente não gostar. Nem vou pagar multa
contratual.

— Será perfeito! Não se preocupe. — Volto a comer. Ele se cala


por alguns minutos. O ar fica pesado e desconfortável. — Vocês
estavam falando do hyung quando cheguei.

Não é uma pergunta. Tento engolir o pedaço do sanduíche que


prende na garganta, me fazendo tossir. Ele dá tapinhas nas minhas
costas até que a tosse cesse.

— O que está acontecendo, Elleanor?

— Nada, já disse. Não há relação com Jae. Mari cismou com um


cliente dela com quem nos encontramos outro dia, mas nem sei se é
coreano. Apenas chamou minha atenção. — As bochechas
esquentam.

— Outro coreano que te interessa e não sou eu. — Wook apoia a


cabeça, com o rosto bem próximo do meu. Engulo a saliva ácida.
Suspiro, desviando a face para a porta. — São com ele?

— Não. Já disse, são apenas pesadelos, nada demais.

— Se não é nada demais, então conte. — Seus olhos se abrem e


a voz sobe um tom, sinal de que a paciência dele está se esvaindo.
No entanto, não lhe devo satisfação.

— Não quero falar sobre os meus sonhos. Perderá seu precioso


tempo se continuar batendo nessa tecla. — O encaro com seriedade.
— Como está Ana?
— Bem, na medida do possível. Deveria visitá-la, ela ficará feliz.

— Claro... Os resultados dos exames saíram?

— Alguns.

— E?

— Apontam para Alzheimer, mas ainda tenho esperanças.

— E a agência?

— Com problemas outra vez. Cancelei alguns contratos por não


conseguir cumprir a agenda, já que estou acompanhando a mãe
durante esses dias.

— Falou com seu irmão sobre isso? — Wook me encara com a


face tempestuosa.

— Jae provavelmente está aproveitando a vida e as belas


companhias, por que se importaria em me ajudar? Ele não gosta de
Ana, se esqueceu? — Sorri torto, cruzando os braços.

— Não perguntei o que você acha que Jae está ou não fazendo.
Ele pode não gostar de Ana, mas ele te ama. Tenho certeza de que
ele te apoiaria.

— Você continua iludida com Jae. Ainda o defende, mesmo


depois de todos esses anos sem pisar os pés aqui, sem contato com
você, Elle!

— Não estamos falando sobre mim, e sim, sobre os seus


problemas. Realmente, ele e eu não temos mais contato, mas vocês
dois têm. Se não me falha a memória, ele te ajudou a abrir a agência
que você tanto queria. Ele sempre fez todas as suas vontades.

— Enviar dinheiro é suficiente? Se Jae se importasse comigo de


verdade, ele teria voltado. Não há mais nada que o impeça de voltar.
Nem quando meu pai estava doente ele apareceu. — Wook se
arruma na cadeira como se estivesse desconfortável. Seus olhos
ganham uma coloração avermelhada.

— Eu não tenho irmãos, mas se tivesse, não agiria como você. Já


perdeu pai e mãe. E Ana está doente, necessitando de atenção e
cuidados. Nesse mundo, vocês só têm um ao outro.

— Quando você deixará de defendê-lo, Elleanor?

— Nunca. Ele não voltou porque teve algum motivo.

— Sim. Fama, dinheiro e muitas mulheres.

— Talvez você devesse seguir os passos dele, Wook. Você o


ataca constantemente, mas eu nunca vi uma foto ou fofoca sobre
Jae em nenhuma revista. — Limpo a boca com o guardanapo.
Coloco a bolsa no ombro direito e afasto a cadeira, pondo-me de pé.
— Preciso voltar ao trabalho. — Começo a andar.

Wook me segue e assim que passamos pela porta, ele segura


meu braço.

— Você devia aceitar meu pedido logo e parar de ficar esperando


por ele! — Solto o ar com força pela boca. Agarro seu pulso
libertando meu braço.
— Já te expliquei que não o vejo com outros olhos. Você é um
amigo.

— Você nem ao menos considerou. Prefere esperar por quem não


te ama. — A garganta dá um nó, o estômago arde e o coração quase
para de tanta dor.

— Não espero nada, contudo o amor não se força, não se exige


nem se impõe. Ele nasce. E entre você e eu só nasceu amizade.

— Você é muito dura comigo e conivente com Jae. — Elevo o


olhar para o céu, implorando por paciência.

— Você faz comparações demais. Cobra um sentimento que não


existe sequer da sua parte. Cultivou uma ilusão de criança e por isso
acha que gosta de mim.

Ele se aproxima, pegando-me pelos braços com força e puxando-


me até meu corpo quase colar ao seu.

— Eu sei o que sinto, Elleanor! E o que quero. Não desistirei de


você até conseguir. Guarde bem isso dentro dessa sua cabecinha
linda e oca. — Seus olhos escurecem, como se houvesse um
tornado dentro deles. A luz de alerta se acende em mim. — Ainda
me amará, não importa o que eu precise fazer para isso. Sempre
consigo o que quero! — Estica os lábios em um riso que mais se
parece com uma ameaça.

Minha pele se arrepia, minhas entranhas se agitam e se


comprimem. Balanço os braços para me livrar dele, mas Wook não
solta, então piso com força em seu pé com a ponta do salto.
— Ficou louca, Elleanor? Isso machuca!

Aproveito para me afastar, entretanto, não chego a dar muitos


passos. Ele me agarra pelos ombros e me gira, ficando de frente.
Sua respiração está acelerada e seus olhos arregalados disparam
fogo contra mim.

Sacudo meu corpo, buscando me libertar, mas ele apenas crava


seus dedos com força, me imobilizando completamente.

— Não terminei de falar, Elle.

— Me solta!

— Você fica mais bonita brava. — Ri. — Isso me deixa mais


interessado.

— Você enlouqueceu?

— Por você. — Ele movimenta o corpo, se inclinando sobre mim.


Meu coração se agita, assim como o estômago, causando náusea.

— Não se aproxime ou farei um escândalo!

— Se fosse Jae, não teria problema.

— Ele nunca tomaria uma atitude como essa.

— Claro, ele não a vê como mulher! — Abre um sorriso imenso,


como se tivesse acabado de vencer uma competição.

— Socorro! Socorro!

Ele solta meu ombro e leva a mão à minha boca. Antes que a
cubra, elevo minha mão aberta, tentando alcançar seu rosto. Ele
desvia.

— Nunca mais toque em mim! — Meu peito sobe e desce


freneticamente.

Wook me observa, inspira o ar devagar, abaixa a cabeça e a


sacode.

— Desculpa. Eu ando nervoso esses dias. Perdi o controle com


você, não sei o que deu em mim. — Seu tom de voz agora é quase
um sussurro, embora pareça um tanto mecânico. Ombros caídos
denotando cansaço.

Dou um voto de confiança devido ao tempo que nos conhecemos,


embora meu íntimo ainda grite que há algo de muito errado com as
atitudes dele.

— Nunca mais repita isso... Volte para casa e fique com Ana.
Aproveite para dormir um pouco e, principalmente, colocar sua
cabeça no lugar.

Wook não responde, apenas concorda e sai.

Retorno para o trabalho com o coração esmagado e o


pensamento do outro lado do mundo — mesmo que eu não deseje, a
mente sempre se transporta para lá...

Talvez eu seja uma idiota por não ver o óbvio. Por mais que Jae
não tenha cumprido sua promessa, não o enxergo como uma pessoa
ruim. Apenas seguimos direções diferentes do que imaginamos
naquela época.
14

Jae Young

O vento frio bate contra meu rosto assim que saio do carro. Inalo o
ar profundamente. Ajeito o cachecol enquanto o taxista abre o porta-
malas e retira minha bagagem. Desta vez, Lee Hye Ji não se
intrometeu.

Eu agradeço o senhor de pele enrugada e olhos simpáticos,


praticamente sem cabelos no topo da cabeça. Entro rapidamente no
salão de embarque. Confiro o status do voo. Aeroporto Internacional
de Incheon: British Airways para Londres 10h35. Confirmado.

Os pés falham, não obedecendo ao comando para se


movimentarem, os pulmões seguem a mesma atitude. Será que essa
é a decisão certa? Não existe mesmo outra forma de ajudar Jae
Wook?

Encaro o passaporte, apertando-o nas mãos, tentando normalizar


a respiração.
O atendente do guichê me chama, tirando-me do transe. Caminho
até ele com as mãos suando, despendendo tamanha energia que
nunca imaginei ser necessário para dar apenas alguns passos.
Entrego o passaporte e despacho a bagagem.

Sigo para a o departamento responsável pela entrada e saída de


pessoas do país, cumpro os requisitos e os procedimentos exigidos,
e só então vou para o portão de embarque, carregando comigo
apenas uma mochila.

Faltam apenas alguns minutos para anunciarem o voo, a


companhia aérea já anuncia os preparativos para o início. Pego o
celular procurando o contato; levo o dedo sobre a tela, hesitando
antes de chamar.

Você ainda pode desistir, Jae Young! Não! Não posso continuar
fugindo! Wook precisa de mim! Hora de assumir as consequências
pelas escolhas que fiz independente do quanto isso me custará.

Toco com o indicador sobre a tela e o número discado começa a


chamar. É tarde da noite lá, mas ele com certeza ainda está
acordado. Quando estou prestes a desistir, ele atende.

— Hyung!

— Jae Wook, eu te acordei?

— Que nada, relaxa. Trabalhando na edição das imagens do


ensaio de hoje. — Suspiro, organizando os pensamentos antes de
voltar a falar. Uma voz feminina ressoa por todo salão de embarque,
convidando os passageiros de outra companhia a embarcar. — Está
no aeroporto? Qual o destino da vez?
Como sempre, Jae Wook é direto — herdou isso da senhora Lee
Hye Ji.

— Estou em Incheon, em dez minutos o embarque começará,


então tenho pouco tempo. Apenas me escute.

— Certo. Falando assim, você me deixa intrigado e preocupado, o


que aconteceu? — Sua simpatia dá lugar à ânsia exagerada.

— Ontem, quando cheguei da Alemanha, soube dos problemas da


agência e de Ana através da harmeoni. Nunca pensei que você
esconderia seus problemas de mim, Park Jae Wook! Na falta dos
nossos pais, eu sou o responsável por você. Só temos um ao outro.
Além do mais, sou sócio majoritário da empresa.

— Não é exatamente assim...

— Não me interrompa.

Ouço sua respiração pesada e consigo imaginá-lo mordendo os


lábios e socando a mesa. Não é a melhor sensação do mundo falar
dessa forma com ele, ainda mais agora que é adulto. Entretanto, na
maior parte do tempo não age como tal.

— Sei dos seus sentimentos por Ana, e por isso mesmo estou
profundamente desapontado, pois mesmo que eu não nutra toda
essa consideração, reconheço minha responsabilidade para com ela,
por ser esposa do meu pai e por toda dedicação e cuidado com
vocês dois durante esses anos. Jamais me omitiria.

— Nunca questionei seu senso de responsabilidade, hyung.


— Mas não confiou em mim, embora tenha feito o meu melhor
para cuidar de você e manter minha palavra a você e a mamãe.

— Não quis sobrecarregá-lo. Harmeoni comentou o quão cansado


está com os compromissos. Desculpe desapontá-lo.

— Suas atitudes não condizem com suas palavras. — Os olhos


ardem. Ultimamente isso tem acontecido com frequência. Talvez a
idade diminua as habilidades de controlar as emoções, o que a meu
ver deveria ser o contrário. Admito a exaustão e a inabilidade de lidar
com certos sentimentos que só pioram a cada dia. — Eu aprendi a
conviver com a solidão, e até me acostumei com ela, por acreditar
que era apenas por um tempo, não pensei que ela seria para a vida
toda.

— Pode ser mais claro?

— Independente de como você se sente ao meu respeito, estou


voltando, Wook. Amanhã sairá uma nota comunicando minha
aposentaria como modelo. Assumirei o controle da agência e da
família.

— Não precisa voltar, Park Jae Young! Não sou criança. Toquei a
agência sem você até hoje, ela cresceu sob o meu comando. Ainda
acha que não tenho capacidade? — Ouço as batidas dos seus pés
contra o piso, além da sua tonalidade alterada. Jae Wook não perdeu
sua essência de criança mimada, se não for como ele quer, sai do
controle.

— Crescimento? Recebi os relatórios da agência. Perdemos


cinquenta por cento da nossa carteira de clientes. Estamos operando
com prejuízo há seis meses!

— Sabe bem como anda o cenário econômico mundial. — Passo


a mão livre pelo cabelo.

— Cenário econômico! Desmarcar sessões em cima da hora, não


comparecer aos compromissos sem qualquer explicação, se recusar
a cumprir o acordado por falta de inspiração e não contratar outros
fotógrafos. Isso é o que chama de cenário econômico e gestão, Park
Jae Wook?

— Não é verdade...

— É perda de tempo argumentar o contrário. Já decidi, amanhã


estarei no Brasil.

— Você prometeu que não voltaria. Sabe da minha situação com


Elleanor. — Afasto o aparelho da orelha.

— Ela não é o motivo do meu retorno. Não procurarei por ela.


Retirei-me completamente da vida dela desde aquele dia. Respeitei
quando confessou seus sentimentos por ela e como estavam
envolvidos.

— Elle pode ficar confusa quando vê-lo...

— Confusa wae? Vocês não se amam? Pelo menos foi o que você
afirmou. — Wook emudece por alguns segundos. Meu coração pulsa
de maneira errônea. Será que eles terminaram? Isso justificaria essa
atitude dele. Essa simples hipótese acorda o vulcão adormecido em
mim.

— Uri gwaenchanha.
— Se estão bem, sua preocupação deveria ser a saúde da mulher
que você chama de mãe. — Wook se cala. — Amanhã
conversaremos melhor. Ficarei no Palácio Tangará até encontrar uma
casa adequada. Quando se sentir à vontade, vá até lá.

A voz suave da atendente anuncia o início do embarque, primeiro


em coreano, depois em inglês. Levanto, colocando a mochila nas
costas. Então, minha própria imagem desponta em minha mente, só
que o que vejo é apenas um garotinho de dez anos desembarcando
neste mesmo solo com todas as suas esperanças destruídas,
carregando junto ao peito apenas o desejo de sobreviver e, quem
sabe, um dia ser livre e poder fazer as próprias escolhas... E se ela
não me esquecesse, cumpriria a promessa... Contudo, nem mesmo
adulto sou livre.

Talvez agora eu possa cumprir minhas promessas às duas


mulheres que habitam em meu coração. Estarei ao lado de Elleanor
— não da forma como eu gostaria, mas a protegerei e farei de tudo
para que seja feliz. De alguma forma, isso me trará alívio e, quem
sabe, alegria... Cuidarei de Jae Wook no lugar dos meus pais.

Meus passos ecoam pelo salão, como se não houvesse mais


ninguém. Posiciono-me atrás de uma família que conversa
animadamente. Família... Nunca tive de verdade e provavelmente
nunca terei...

— Hyung! — Jae Wook arranca-me do transe. — Não desligue.


Desculpe, estou um pouco cansado e não raciocinei direito. Não
precisa ficar no hotel. Venha para casa.
— Não quero incomodar. Ana ficará desconfortável com minha
presença... Tudo pronto para a sessão da H&H?

— Sim.

— Conseguiu a modelo? — Wook ri com ironia, suspirando em


seguida.

— Quer saber se Elle aceitou? — O que deu em mim para


continuar a conversa, e ainda entrar nesse assunto? Entrego o
bilhete juntamente com o passaporte para a representante da British
Airways, enquanto me amaldiçoo em pensamento.

— Quero assegurar-me de que tudo correrá bem e não


perderemos mais um cliente.

— Ela aceitou... Hyung, você faz de tudo para ajudá-la, mesmo de


longe. Qual o seu real interesse? Admita que ainda gosta dela. — O
peito explode assim que as palavras dele atravessam meus ouvidos,
um zumbido aterrorizante deixa-me surdo, incapaz de ouvir qualquer
coisa ao redor, apenas o eco daquela frase. Ele não é o único com
medo desse reencontro.

— Você não se importou em como me sentia quando resolveu se


relacionar com ela. — Ouço apenas a respiração dele. — É tarde
para isso. No momento, mencionei trabalho. Espero que haja como
profissional também.

Jogo a cabeça para trás, apoiando na poltrona. Todos os músculos


se contraem, a garganta se fecha. Torço internamente para que ele
não tenha notado a voz estremecida. Por que eles tinham que se
apaixonar?
— O embarque finalizou. Até amanhã. — Encerro antes que ele
tente argumentar qualquer coisa. Se minha atitude naquela época
fosse um pouco diferente, provavelmente Park Jung Hee não me
enviaria à Coreia e talvez eles não se envolvessem tanto. A culpa é
minha.

Coloco os fones no ouvido e escolho um filme qualquer, a fim de


ocupar meus pensamentos com algo banal. Essa tática funciona até
certo ponto. Troco a imagens por música, um rock bem pesado e
ensurdecedor, tentando calar as malditas vozes ecoando na minha
cabeça.

Fecho os olhos e tento dormir. O ruído causado pelas lembranças


insistem em manter-me acordado. Ouço as palavras que aquelas
duas crianças inocentes trocaram na calçada em frente à casa azul.
Não fazíamos ideia do quanto a vida é eficiente em impor obstáculos,
nem de como eles nos afetam e mudam nossos rumos.

A letra ainda malfeita, em linhas tortas, nas poucas cartas que


trocamos. Frases de construções simples, mas ricas em emoções.
Desenhos deformados que, aos meus olhos, pareciam uma tela de
Monet ou Picasso, finalizadas com o reforço da nossa promessa.

Até que, pouco a pouco, minhas responsabilidades aumentaram.


Diminuí os envios até que as cartas cessassem completamente. Com
certeza eu a decepcionei, principalmente quando ela notou que eu
não voltaria mais. Minhas palavras devem ter soado como mentiras,
promessas vazias. Um homem sem palavra não tem valor.

Assim, o tempo até Londres torna-se mais longo do que realmente


é.
A espera pela conexão para o Brasil leva algumas horas.
Aproveito para analisar outros relatórios, contratos perdidos e
vigentes, inteirar-me da situação exata da agência e assim começar a
traçar as estratégias para recuperá-la.

Compro uma refeição simples, no intuito de não ver o tempo


passar lentamente. Passeio pelo saguão olhando objetos aleatórios
nas lojas espalhadas pelos corredores, entretendo a cabeça com
qualquer futilidade.

Enfim é chegada a hora de embarcar. Enquanto os pés avançam


um na frente do outro, a respiração acelera.

Acomodo-me na minha poltrona, observo o corredor da aeronave


em direção a porta e os outros passageiros andando apressados
para seus lugares. Um dos comissários avisa pelo sistema de
comunicação que o embarque está encerrado e as portas fechadas.

— Definitivamente, não tem mais volta!

Solto todo o peso no encosto da poltrona. Olhos cerrados, coração


saltando, frio na barriga e mais um turbilhão de incertezas na cabeça.
De novo, me pego contando as horas, os minutos...

Peço algumas xícaras de chá de camomila, que parecem


tranquilizar-me, ou talvez seja a exaustão falando mais alto.
Adormeço profundamente.
15

Elleanor

A clareira florida já não me remete a bons sentimentos. Assim que


o vejo, corro, embora a fadiga tente me impedir. A garganta se fecha,
dificultando a passagem do ar. Ouço os golpes do coração, o peito
parece saltar muito alto e arde em meio às chamas que consomem
minhas entranhas.

— Espere! Não vou te deixar partir desta vez!

Ele se vira, sorrindo com os olhos, que emitem um brilho


diferente, como se a cor escurecesse. Quanto mais me aproximo,
mais opaco eles ficam. A distância entre nós é curta, não entendo o
porquê não o alcanço.

Ele abre os braços à minha espera. Meu corpo responde, fazendo


mais força para correr. Estico o braço, buscando desesperadamente
tocá-lo.

Só mais um passo.
Um vento forte começa a soprar contra mim. Seu sorriso
desaparece assim como a clareira. Infelizmente sei o que isso
significa: estamos à beira do abismo.

— Não! De novo não! — Puxo meu cabelo com força.

O céu rapidamente escurece. Nuvens densas emitem raios sem


parar. Ouço o estrondo dos trovões e também da terra abrindo-se em
fendas imensas em torno dele.

Lágrimas banham seu rosto e o meu. A chuva despenca.

— Sinto muito, Elleanor! — Os sulcos aumentam. Não posso


permitir que ele suma diante de mim outra vez. Não posso! Jae!
Aguente mais um pouco!

Ele esfrega as mãos rapidamente em frente ao seu rosto,


implorando por perdão ou pela vida.

— Lia! Miane! — O solo abre-se mais e mais em uma velocidade


assustadora.

— Gael! Gael, cadê você? Apareça! — Agarro meu pescoço,


tentando lembrar como se respira, enquanto Jae é engolido pela
terra. — Gael! — A voz sai entrecortada pelo pânico. — Gael! Por
favor? Não me abandone!

Em um impulso, me jogo para cima de Jae e consigo agarrar sua


mão. O peso do seu corpo começa a me arrastar para dentro do
abismo, onde há apenas escuridão. Já não enxergo seu rosto,
apenas o pedaço de sua mão que seguro com toda minha força,
como se não apenas a vida dele dependesse disso, mas a minha
também.

As minúsculas pedras me cortam através do tecido, provocando


arranhões, contudo, o que fere de verdade é a incapacidade de
salvá-lo.

— Gael! Por favor! Não o leve...

— Solte-o, Elleanor! — Mãos quentes me envolvem, resgatando-


me do buraco. — É só um sonho. Precisa deixá-lo. Agora! — Ele me
sacode e, com o solavanco, não suporto o peso de Jae, que
desaparece na escuridão. O chão se fecha, a paisagem se desfaz e
eu... Eu desabo nos braços de Gael.

Assim que os olhos piscam, vejo a brancura familiar da fronteira


novamente.

Gael estala os dedos e duas poltronas brancas aparecem. Ele me


acomoda em uma e senta-se na outra, bem em frente a mim. Não
sou capaz de conter as lágrimas, nem o fogo que me devasta.

Gael me encara, suas órbitas violetas transparecendo


compreensão. Acaricia meu cabelo como meu pai costumava fazer
para me acalmar.

Gael canta uma melodia desconhecida e extraordinariamente


relaxante. O aroma suave de flores preenche o lugar.

Uma mulher exuberante e exótica surge. Sua pele é diferente de


qualquer outra que eu já tenha visto antes: parece macia como a de
um bebê e levemente brilhante. Seus cabelos longos e verdes
destacam ainda mais seu belo e delicado rosto. Seus olhos... Nem
sei a melhor maneira de descrevê-los, pois é como se não fossem de
uma única cor: o fundo é escuro, mas há vários pontos coloridos em
sua íris.

O vestido leve cobre seus pés. Ele é de um tom rosa bem claro
com a barra alaranjada. Em seus braços, pulseiras de flores naturais:
margaridas brancas, pequenas rosas vermelhas e algumas violetas.
Na lateral direita da sua cabeça, um lindo girassol serve como
enfeite.

— Por que me trouxe aqui, Gael? — Apesar de direta em seu


questionamento, ela não demonstra insatisfação, apenas
curiosidade. Gael sorri para a mulher, pega sua mão e deposita um
beijo sobre o dorso. Ela ri, muito à vontade. — Você e seus
galanteios. Diga o que precisa, sabe que não tenho permissão para
entrar aqui por muito tempo. — Gael aponta para mim.

— Gostaria de apresentar Elleanor. — Ela se aproxima e o aroma


floral torna-se mais forte e inebriante.

— Ah! Sua protegida. Não mencionou que se tratava de uma


bruxa. E se está aqui sem sofrer nenhuma consequência, é uma
necromante. — Ela sorri. — Sou Isy.

— Então você é... Diferente do que imaginei. — Gael recosta-se


na poltrona cruzando as pernas, observando-nos.

— Nunca mencionei a aparência dela, Elle. Seu conceito


equivocado de bruxa que a fez imaginá-la uma idosa com vassoura e
caldeirão. — Escondo o rosto com as mãos. Ele sempre revelando o
que não é necessário.

— Não se acanhe querida, apenas o ignore. — Sorri. — Ele


comentou sobre mim com você. Hum... Interessante. Conhecendo-o
bem, deve ser especial, ou ele precisa muito do seu talento com os
fantasmas fujões. — Rio da sua piada, balançando de leve a cabeça.

— Digamos que, desde que eu me recordo da minha própria


existência, recebo visitas dos “fujões”.

— Agora que já se apresentaram, vamos ao que interessa. Isy


não tem muito tempo.

Gael descruza as pernas, pondo-se de pé. Estala os dedos


novamente, acrescentando uma mesa e outra poltrona à decoração
monocromática. Isy senta e ele se escora na mesa.

— Elleanor, você e sua mãe são descendentes de uma antiga


linhagem de bruxas. No entanto, diferente de você, Marta tem os
poderes da mãe natureza de forma mais branda, já que ela optou por
não desenvolver seus dons, utilizando-os apenas para a cura. —
Minha mãe é bruxa também? Meus olhos se abrem para não perder
nenhum detalhe. Talvez isso explique a preocupação dela comigo...

— Nunca pensou que sua mãe fosse uma bruxa como você, Elle?
— Gael ri.

— Já te pedi para não ler minha mente. — Torço o nariz. Ele


movimenta os ombros rindo. — Guarde para você, então.
— Acostume-se, querida, com o tempo você não se importará
mais com esse detalhe. — Isy pisca para mim.

— Isy é como sua mãe, domina os elementos da natureza, mas


desenvolveu seus conhecimentos e talentos muito além da maioria, o
que lhe rendeu anos e anos a mais no seu mundo e uma beleza
extraordinária. — Sorri para a bruxa com os olhos brilhando.

— Não me chamou aqui apenas para contar histórias. Diferente


da sua amiguinha necromante, sofro consequências por entrar no
seu mundo. Seja mais direto, Gael. — Ele coça o queixo.

— Elleanor vem sonhando repetidamente com a mesma coisa há


algum tempo. Além disso, ela sempre acaba aqui. Sabemos que
mesmo transitando entre os dois mundos, isso não deveria ocorrer,
não com essa frequência. — Gael encara Isy. Ela morde os lábios,
voltando a face para mim.

— Provavelmente está desenvolvendo outros dons, como


clarividência. Tem algum Xamã na sua família? — O semblante de
Isy é sério.

— Não sei. — Coloco o cabelo atrás da orelha.

— À que se refere seu sonho?

Relato detalhadamente tudo o que acontece e a diferença desse


último. Suas expressões faciais são confusas para mim, entretanto
não indicam algo bom. Minhas pernas balançam inquietas. Estalo um
por um os dedos das minhas mãos enquanto pratico meu monólogo
sob os olhares de cumplicidade trocados pela bruxa e o ceifador.
— Acredito que sua ligação com esse rapaz seja forte o suficiente
para amplificar seu acesso aos dois mundos e expandir seus
poderes, permitindo que desenvolva outros dons, como premonição.
Possivelmente, o sonho revele antecipadamente algo que
acontecerá com ele.

— Então ele vai mo...

— Não dá para afirmar. Até estudei um pouco sobre vidência, mas


estou longe de ser especialista... Todavia, acredito que você deve se
preparar para ajudá-lo... Os elementos presentes em seu sonho
significam algo ruim, algum tipo de perigo.

— Não! Eu não serei capaz! — Viro-me para Gael. — Sabe que


não suportarei! — Meu coração se despedaça, o corpo inteiro lateja.
A cabeça gira e a visão embaça. — Se ele morrer, eu não poderei
guiá-lo, pois não quero que ele vá... Gael, não o envie para mim, por
favor! Por favor!

— Elleanor, se acalme. Isy não mencionou morte. Pode ser


apenas alguma situação difícil para ele. — Gael caminha até mim,
sentando-se no braço da minha poltrona envolvendo-me em um
abraço.

— Se meu talento é ajudar as almas perdidas, o que mais eu


poderei fazer por ele? Impedir que ele morra? Você mesmo disse
que quanto a isso não há saída...

— Elleanor, não se aflija. Eu só levantei uma possibilidade devido


a sua essência, talvez não seja nada disso. — Isy exala calma.
— Você pode me fazer esquecer essa conversa? — Inclino meu
corpo para a frente, pegando as mãos dela e apertando com força.
— Por favor?

Isy levanta os olhos para Gael, depois volta para mim.

— Darei um alívio momentâneo, mas não sei por quanto tempo


isso funcionará. Você pode se lembrar em poucos minutos, dias ou
meses... Não há garantias.

— Só faça parar de doer... Ou me levem antes do Jae. — Prostro-


me de joelhos em frente a Gael, agarrando a barra do seu paletó. —
Me leve antes, por favor! Fale com Ele. — Olho para o alto,
apontando com o indicador. — Transmita o meu pedido. Se for a
hora de Jae, então me leve no lugar dele. Prefiro morrer a perdê-lo.
Diga ao seu Chefe que eu me ofereço em troca.

Isy se abaixa, acariciando meus cabelos. Gael parece uma


estátua.

— Prometa, Gael! Prometa! — Ele nega, completamente aturdido.


Lágrimas banham meu rosto e pescoço. O restante das minhas
forças se esvai.

— Não posso prometer, Elleanor. A decisão não é minha. E se


essa for a vontade “Dele”, você precisará ser forte e aguentar. Ele
tem seus motivos.

— Que motivos? Tirar a vida de alguém jovem! Por quê? Jae já


perdeu demais! E agora você levará a vida dele sem que ele ao
menos tenha a oportunidade de amar, de ser amado?
— Elleanor, não sabemos se é o que acontecerá. Ele não está na
lista. — Gael se abaixa, segurando meus ombros. Direciona o olhar
para Isy, sinalizando algo que não compreendo. Gael se afasta e Isy
me abraça.

— Desculpe querida, é para o seu bem. — Isy leva uma mão em


concha até o meu nariz, mantendo-a lá. Tudo fica escuro, as vozes
disformes e a mente embaralhada. O coração não pulsa... O ar não
entra. Estou em um limbo de sentimentos, tudo vazio.

Será que finalmente aceitaram minha oferta?


16

Jae Young

Acordo com o solavanco da aeronave tocando o solo e


impulsionando meu corpo para frente. Meu estômago se agita, o ar
entra queimando e os pulmões não reconhecem muito bem o
oxigênio, expulsando-o quase imediatamente. A senhora sentada ao
meu lado toca minha mão com receio.

— Are you, ok? — Ela provavelmente pensa que não falo


português, ou talvez ela não fale... Enfim, apenas meneio a cabeça
afirmativamente. Ela permanece me encarando por alguns segundos,
acredito que para certificar-se de que eu realmente estou bem.

O desembarque inicia quinze minutos depois que pousamos.


Rápido até.

Ao acessar o saguão do aeroporto, interrompo os passos,


absorvendo o ar e confirmando a mim mesmo que estou de volta. De
volta à minha segunda Pátria.
Apenas siga o fluxo, Park Jae Young, como fez na primeira vez
que pisou nesse solo.

Solto o ar.

Assim como os demais passageiros, pego minha bagagem, passo


pela imigração e, enfim, oficialmente no Brasil! Atravesso a porta de
desembarque.

Antes que possa finalizar o pedido de transporte para o hotel,


avisto um homem com jeans rasgado, camiseta preta, brinco na
orelha esquerda e olhos puxados quase idênticos aos meus
segurando os óculos escuros na mão direita. Ele caminha apressado
ao meu encontro, abrindo os braços.

— Achou que eu não viria te buscar, hyung?

— Você não parece nada contente com o meu retorno. E não te


passei as informações do voo. — Ele curva-se. Em seguida, me
envolve em um abraço, batendo nas minhas costas com a mão
espalmada.

— Subestimando minha inteligência outra vez? — O bom humor


dele voltou, assim como suas frases cheias de si. Rio devolvendo o
abraço. — Ouvi claramente a chamada da British Airways, então,
pela hora que você embarcou, foi fácil descobrir os detalhes do seu
voo.

— Kamsahamnida! — Meneio a cabeça de forma sutil.

— Aish! — Estala a língua e faz careta, franzindo a testa e


torcendo o nariz. — Não há necessidade de formalidades coreanas
por aqui, muito menos entre nós, hyung!

— Então por que ainda me chama de hyung?

— Park Jae Young! Maldo andwae! Que outro termo devo usar
para chamá-lo de irmão? Brother? Já sei! Mano soa ainda melhor,
concorda?

— Al-ass-eo! — Ergo as mãos em rendição.

— É mesmo coreano nato! — Passa o braço pelo meu ombro


colocando os óculos escuros. — Vamos?

Empurro o carrinho com as malas caminhando ao seu lado,


enquanto Jae Wook me enche de perguntas sobre as viagens
modelando, as coreanas que harmeoni me fez conhecer nos
encontros às cegas, e sobre o jantar de hoje. Algo impensável, só
quero chegar ao hotel, tomar banho e cair na cama.

O trânsito de São Paulo continua o mesmo. Na verdade, acho que


um pouco pior. Depois de duas horas presos na lentidão das
imensas filas de carros, finalmente chegamos ao hotel. Wook me
auxilia com as malas e com o check-in e me acompanha até a suíte.

— Ainda preferia que ficasse em casa conosco. A mãe se


entristecerá se souber que está aqui e rejeitou nossa casa. — Joga-
se na poltrona, apoiando os pés sobre a pequena mesa de centro.

— Não é conveniente devido a situação dela...

— Aquela casa também é sua. — Lança um olhar inquisitivo.


Afrouxo a gravata, livrando-me dela em seguida. Pego uma garrafa
de água, acomodando-me na poltrona ao lado dele.
— Prefiro assim. — Coloco a água no copo e tomo um pouco,
refrescando-me e aliviando a secura da boca.

— Quando vai se entender com a mãe, hyung? Está crescidinho,


não acha? — Levanta o braço bem alto, piscando.

— Vamos com calma, Park Jae Wook. Voltei por vocês dois. Sei
da minha responsabilidade.

— Não me referi a isso... E quanto ao pai? — Ele abaixa a


cabeça, movimentando-a como se seguisse as batidas de alguma
música agitada. Apoia os braços sobre as coxas unindo as mãos,
voltando a me encarar. — Ele sentia muito sua falta. Desde a sua
partida, ele tentava esconder a tristeza, mas nas raras vezes em que
sorria, não demonstrava alegria ou sinceridade. Não deve continuar
a culpá-lo. Você foi o único responsável pela decisão dele.

Tomo o restante da água em um único gole. Deposito o copo


sobre a mesa, recostando-me na poltrona com a cabeça inclinada
para o alto. Wook foi gentil demais até agora, sabia que algo estava
errado.

— Tudo ao seu tempo. Estou exausto. Komawo pela carona.

— Tudo bem, hyung. Volto à noite para jantarmos. — Se põe de


pé rodando a chave no dedo.

— Certo. — Ele aperta meu ombro e sai.

*
Após o banho, o corpo parece um pouco mais leve. Com a toalha
na mão esquerda secando a cabeça, abro uma das malas
procurando algo confortável e fresco para vestir. Mais outra coisa
para me acostumar novamente: o clima.

No entanto, o que encontro primeiro não é o que desejo: a minha


caixa de Pandora! Repleta com minhas mais doces e doloridas
lembranças.

— Esqueci-me completamente que a coloquei nessa mala. Não...


Só pode ser minha atração pela dor! Não existe outra explicação.

Pego-a nas mãos e me sento na cama. Retiro a tampa. Os


envelopes amarelados do tempo chegam a emitir luz diante dos
meus olhos. Passo a mão sobre eles. Inalo o cheiro de papel velho,
mas que, para mim, são como o perfume mais suave e agradável.
Mesmo sem tirar as folhas dobradas de dentro deles, sei decor cada
linha escrita.

Nossa foto... E as várias imagens de todas as fases dela, que


obtive com Ana e durante as passagens pelo Brasil escondido.

A caixa de música da mamãe... Fotos dela e do pai juntos...

Já não tenho mais certeza sobre minha decisão.


17

Elleanor

Desde a hora que acordei, não reconheço meu próprio corpo.


Nem se ingerisse bebida alcoólica estaria tão ruim assim. Além de
enxergar em duplicidade, pareço estar fora de mim, dividida em
duas: a externa e a interna. Os olhos querem fechar o tempo todo,
até uma simples ligação não fui capaz de atender hoje.

Já tentei desmarcar as fotos, mas Wook insiste, afirmando que


não pode avisar o cliente em cima da hora sob o risco de
descumprimento do contrato, multa, etc... Ou seja, não me restou
escolha.

Saio da empresa caminhando cuidadosamente as duas quadras


até o prédio da agência.

Assim que chego na portaria, sou atingida por uma forte dor de
cabeça. Cenas desconexas piscam diante dos meus olhos, como
aqueles painéis luminosos de anúncios no alto dos grandes edifícios.
Apoio-me no balcão da recepção para não cair. Pego o
documento de identidade e entrego para a mulher com semblante de
tempestade que mal olha para o meu rosto. Será que ela está de
TPM? O que você tem a ver com isso, Elleanor?

Aperto as têmporas, massageando com os dedos. Sinceramente,


essas fotos ficarão muito, muito ruins! Não estou com a menor
condição de fazê-las. Aquelas luzes em cima de mim... Ah! Só de
pensar a dor aumenta.

A mulher entrega minha identidade e o cartão de acesso para o


andar da agência.

A distância até o elevador é curta, entretanto, quando tudo a sua


frente gira e aparece em duplicidade, mesmo um ato tão
insignificante se torna uma tarefa hercúlea.

Não me recordo de ter sequer saído ontem, para levantar a


hipótese de estar bêbada, ter sido drogada ou qualquer outra coisa
semelhante... O que eu aprontei? Minha mente lembra um livro
faltando páginas.

A duras penas chego ao elevador e, por sorte, um senhor alto de


terno preto e cabelos grisalhos — o resto eu não consigo distinguir e
nem tento — aperta o botão, e logo as portas se abrem. Ele espera
que eu adentre primeiro.

— Para qual piso senhorita?

— Cobertura. — Ele pressiona o botão correspondente ao seu


andar e o meu. — Obrigada! — Tento sorrir, mas não posso afirmar
se obtive êxito. Nem mesmo sei a expressão que aquele senhor
gentil fez, e se fez.

O elevador para e ele desce. Continuo sozinha até o meu destino.


A porta se abre e assim que passo por ela, meu coração dispara
ensandecido. Levo a mão ao peito, expirando pela boca e inspirando
pelo nariz. A visão torna-se turva e me faz jogar as costas contra a
parede, evitando outra vez meu encontro com o chão. Fecho os
olhos.

Estou enfartando? Morrerei hoje? Gael por que não me avisou?

Subitamente, todas aquelas sensações desaparecem, incluindo a


dor aguda na cabeça, e o corpo volta a agir normalmente.

Estou enlouquecendo? Provável.

Arregalo bem os olhos, certificando-me de que enxergo


normalmente. Apenas um corredor, uma porta e um adolescente com
fones de ouvidos maiores que sua cabeça, saindo da agência. Tateio
meu corpo. Remexo. Confortável, como roupa feita sob medida. Uma
só de novo!

Ajeito o cabelo, voltando a andar. Cumprimento a recepcionista,


que me reconhece, embora não chegue nem perto das belas
modelos que por aqui transitam.

— Elleanor, pode seguir direto para o camarim. Está em cima da


hora!

Pisco para ela apressando o passo. Ao virar para frente, esbarro


em um homem alto, de boné preto e máscara da mesma cor. Seu
perfume atinge meus pulmões quase instantaneamente,
arrebatando-me por inteiro. A respiração sai do compasso. Esse
aroma é tão bom! Tão familiar... De onde eu... Elevo a cabeça,
encontrando olhos pequenos, amendoados e puxados. Asiático. Vejo
muitos por aqui, mas ele é diferente... Estilo... Postura...

— Desculpa. — Ele curva-se por completo. Quanto mais se


abaixa, mais seu cheiro se intensifica. E o sotaque ecoa em minha
cabeça.

Flashes da minha infância surgem... Eu reconheceria em qualquer


parte do mundo. Coreano! Será?

Os pelos dos braços e o cabelo se eriçam, como se estivesse


sofrendo um choque ou sob forte estática. O estômago se enche de
borboletas ao mesmo tempo em que as mãos transpiram e o coração
salta tão forte que descompassa.

Meus olhos não se desprendem dele nenhum instante, seguindo


cada movimento seu até ele voltar à postura normal.

Eu me perco naquele fundo amarelado dos seus olhos, que


parecem sentir o mesmo, já que também me encaram com
voracidade.

Braços enormes me envolvem pela cintura, puxando-me para


longe do coreano e quebrando o encanto entre nós. Pela audácia e
agitação, só pode ser Wook. Não ouso verificar se estou certa,
mantenho o foco no objeto do meu interesse.

O coreano desvia o olhar para baixo e coloca as mãos nos bolsos.


Um forte golpe atinge meu peito. Minha boca se abre. Ele leva um
pé à frente, depois o outro. Meu coração para, se eu não enfartei no
elevador, será agora.

Apenas uma pessoa que conheci caminhava dessa forma, com as


mãos nos bolsos...

Empurro Wook, me livrando dele. Dou dois passos largos,


esticando meu braço até alcançar o pulso do homem misterioso.

Ele interrompe seus movimentos, mantendo a outra mão no bolso


e a cabeça voltada para a frente.

Aproximo-me sem solta-lo. A pele macia e quente parece ganhar


vida própria, permitindo que eu sinta sua pulsação acelerada. Fico de
frente para ele, que não move um músculo sequer.

— Você me é familiar. Eu te conheço. Aonde nos vimos? — Ele


não responde. Wook gruda em meu braço, sacudindo-o,

não me importo, pois estou presa ao fascínio daquele lindo coreano


de olhos amendoados. — O gato comeu sua língua?

Ele não responde, entretanto, seu nervosismo é visível: a glote se


move para cima e para baixo enquanto ele tenta engolir a saliva, seu
peito sobe e desce em velocidade anormal. Ele movimenta sua mão
com força, mas não o suficiente para se livrar de mim.

— Elle? O que está fazendo? Vai assustá-lo. Está fora de si,


querida. — Wook esbraveja. Viro o rosto em sua direção, ainda
mantendo cativo o coreano.
— Querida? — Minhas sobrancelhas se juntam enquanto analiso
a face de Wook. Gotas de suor escorrem pela testa, olhos
arregalados e bochechas vermelhas. — Solta meu braço agora! O
que deu em você para me chamar assim? Quem é ele, Wook? Eu o
conheço, sem a menor sombra de dúvida.

— É um dos nossos novos modelos. Como você poderia conhecê-


lo? — Dá alguns passos, posicionando-se quase de frente para mim,
formando uma barreira entre o coreano misterioso e eu.

— Porque ele não é qualquer modelo. Ele é J...

Wook força meus dedos, libertando o homem, que sai


praticamente correndo, sem emitir mais nenhum som além do pedido
de desculpa.

— Por que se intrometeu, Wook? — Balanço a cabeça


negativamente com a voz um tanto alta.

Com um solavanco, me livro da mão dele. Caminho de um lado


para o outro com as mãos na cintura, assoprando o nada sem parar.
Wook não tinha esse direito! Certeza que existe alguma coisa aí.

— Elleanor, você está atrasada, vá para o camarim e depois


conversamos.

Ele sinaliza para uma de suas assistentes, que passa seu braço
no meu, arrastando-me para dentro da sala. Troco de roupa e sento
na cadeira de frente para o espelho. Enquanto a maquiadora
trabalha na minha face, permaneço com a imagem do homem
misterioso. A forma como colocou as mãos nos bolsos... Não pode
ser outra pessoa, impossível tal coincidência!
— Elleanor, se continuar se mexendo desse jeito, não consigo
finalizar a maquiagem hoje. É a quarta vez que preciso refazê-la. —
Mordo os lábios com força, evitando proferir palavras desagradáveis
para a mulher que não tem absolutamente nada a ver com minha
irritação.

— Desculpa. — Colo as costas no encosto e aperto as mãos nas


laterais da cadeira, contraindo todos os músculos a fim de não
atrapalhar mais a moça. Canalizo toda energia para as mãos. Minha
vontade é usar essa mesma robustez em Wook, por ajudar o
coreano a fugir de mim.

A mulher enfim termina sua árdua tarefa e sou encaminhada


direto para o estúdio. Um fundo claro destaca a cor do vestido verde,
escolhido com o propósito de realçar as esmeraldas penduradas em
minhas orelhas e pescoço. A iluminação foca em mim.

Wook dita às regras do jogo por aqui, informando cada movimento


que devo realizar. Óbvio que minha cabeça continua bem longe, e
isso resulta em algumas crises histéricas dele — para meu deleite.

— Você pode, por favor, ouvir com atenção o que te peço,


Elleanor?

— Estou ouvindo. — Giro o pescoço para os lados, focando o


fundo do estúdio. Estalos os dedos da mão.

— Claro, todos nós percebemos como está atenta.

Com sua câmera pendurada no pescoço, ele se aproxima,


corrigindo minha postura, juntando as mãos em forma de prece. Eu
posso, só não quero! Considere como sua punição! Estico os lábios
em um sorriso voluntariamente falso.

Ele coloca as mãos na cintura, inclinando a cabeça para o chão e


soltando o ar.

Os flashes retornam assim como as ordens. Meus olhos varrem o


local procurando por outros olhos puxados.

— Elle! Ei! Olhe para a câmera e não para os lados!

Wook vem até mim outra vez, segura meu rosto com as mãos,
corrigindo minha postura.

— Não há necessidade de ser bruto e menos ainda de me tocar!


Se encostar em mim de novo procure outra modelo!

— Então, por favor, pela vigésima vez, concentre-se! — Une as


mãos, soltando o ar pela boca. Antes de ele começar a emitir suas
luzes, verifico mais uma vez o local. As pernas e os braços se
agitam.

— Podemos começar, Elleanor? — concordo com a cabeça. —


Controle seus braços e pernas. Apenas congele na posição que te
coloquei.

Com certeza o coreano foi embora. Melhor terminar logo isso e


voltar para casa!

Posiciono o rosto conforme Wook solicita e o primeiro clique vem.


Mudo a posição. De repente, avisto-o entrando como um gato,
tamanho o cuidado dele ao pisar e se embrenhar entre outros
membros da equipe, buscando se misturar.
Meu âmago, que até então estava vazio, se enche. Embora não
goste de fotografar, neste momento dou o melhor de mim para
executar o que me é solicitado. Mantenho a vigilância e, mesmo de
soslaio, consigo notar o olhar do coreano acompanhando-me. Um
sorriso satisfeito brota no canto da minha boca.

— Até que enfim resolveu trabalhar, Elleanor!

— Não reclame, estou te fazendo um favor depois de um longo


dia na empresa. — Wook põe as mãos na cintura e morde os lábios.

Assopro um beijo em sua direção, ou melhor, para os dois, já que


estão em paralelo. Jae Wook para de fotografar, piscando e girando
a cabeça para os lados alternadamente — deve imaginar que não foi
para ele, pois seus olhos faíscam irritação. Já o outro cruza os
braços e encara os próprios pés, voltando a me observar alguns
segundos depois por entre a aba do boné.

— Para quem reclamou até a pouco de mim, decidiu descansar


agora, Wook? Só para te lembrar, não disponho de tanto tempo livre
como você.

— O que deu em você, Elle, me atacando o tempo todo? Fiz algo


que te desagradou?

— Tenho certeza de que sabe o motivo. Não quero discutir com


você agora. Vamos retomar.

Ele me observa com intensidade. Massageia o pescoço e


posiciona-se. Não trocamos mais nenhuma palavra.
Passo algumas horas entre troca de roupas e o piscar da câmera.
Assim que Wook finaliza, batendo palmas para todos, o mascarado
se apressa em direção ao corredor.

Olho para Wook que, junto com seu assistente, verifica as


imagens. Volto a atenção para o homem que está me tirando a paz
nesse momento. Ah! Nem pense em fugir outra vez! Não mesmo!

Seguro a saia do vestido longo, erguendo-a do chão. Embora a


sandália de salto finérrimo não ajude nenhum pouco, corro, mal me
equilibrando sobre elas. O único som é das batidas do salto ecoando
pela sala.

Passo por ele, parando de braços abertos. No meu pensamento,


eu realmente achei que seria autossuficiente para contrabalançar
meu peso. Não foi o que aconteceu, escorreguei assim que os pés
bateram na cerâmica.

Fechei os olhos, antecipando o ruído e o impacto da minha queda,


se braços longos e fortes não tivessem me cercado, evitando o
incidente, e me acolhido próximo ao seu peito firme.

Percebo seu corpo inquieto, seu coração choca-se com força


contra a minha face. Meu corpo corresponde a mesma medida: o
músculo em questão acelerado como se corresse uma maratona, a
respiração descompassada e a pele fervilhando.

Engulo em seco abrindo os olhos, que levam apenas um segundo


para encontrar os puxadinhos amendoados quase se rasgando de
tão abertos. Seu cintilar intenso me prende, sequer consigo piscar.
— Você está bem? — A sonoridade do seu sotaque e o perfume
me arrebatam de novo, destruindo a percepção de qualquer outro ser
ao nosso redor. Somos nós dois e mais nada. Essa proximidade é
suficiente para que meu corpo, mente e coração tenham plena
certeza de quem ele é.

— Por que estava fugindo, coreano? — Ele se afasta lentamente,


auxiliando-me a ficar em pé. Poe sua postura perfeitamente ereta e
as mãos nos bolsos, evitando meu rosto.

— Como sabe que sou coreano? — Ele limpa a garganta e engole


a saliva, movimentando a glote devagar, ato que me faz sentir sede.

— Seu sotaque é inconfundível... Seus olhos... — Elevo a mão,


mas ele se afasta um pouco.

— Isso não é suficiente para afirmar com tanta convicção. — A


voz dele é debochada. Consigo imaginá-lo sorrindo de maneira
contida por baixo da máscara preta.

— Sabe de uma coisa? — Ele me encara com os cantos dos


olhos quase se juntando, formando um sorriso. Olhos que sorriem! —
Concordo com você. — Subo na ponta dos pés, aproximando-me do
seu corpo. Ergo minha mão direita, agarrando a lateral da sua
máscara, enquanto a esquerda retira o boné. — Park. Jae. Young.
18

Jae Young

Quando acordei hoje, eu não imaginei que o meu dia acabaria


assim.

Ontem à noite, Jae Wook e eu conversamos sobre a agência. Ele


estava ciente de que agora eu assumiria o controle, mas em nenhum
momento me informou sobre a sessão de fotos da H&H.

Passei a manhã inteira reunido com gerentes e equipes, me


inteirando dos assuntos que ainda não conhecia. Discutimos e
traçamos novas estratégias para o financeiro e o comercial. Novas
diretrizes para a área de recursos humanos, incluindo a abertura de
vagas para fotógrafo, diminuindo assim a dependência de Wook.
Tentando evitar a perda de mais clientes e o retorno de antigos.

Meu irmão não apareceu, pois passou o período com a mãe em


uma consulta com outro especialista, por isso não me atentei para a
agenda dele, presumi erroneamente que não haveria sessões hoje.
O resultado é essa enorme enrascada. Não pretendia esconder
de Elleanor que voltei, entretanto, não estava pronto para vê-la,
muito menos assim, tão próximos...

Mal consigo lidar com tudo o que se passa na minha mente, quem
dirá com esse tornado arrancando tudo do lugar, tudo o que nem
estava bem fundado.

Tocar sua pele e encarar seus olhos, que ofuscam até mesmo as
esmeraldas que emolduram sua face, me faz desejar o que não é
para mim. Não podia assisti-la cair e se machucar.

Quando nos afastamos e ela começou a me questionar, cogitei a


possibilidade de sair ileso. Tolo! Completamente ingênuo!

Assim que nos esbarramos, eu devia ter deixado a agência, mas


permiti que a emoção falasse mais alto do que a razão... Há tanto
tempo sem vê-la... Fraquejei, por isso fui pego, e meu cérebro
desistiu de me ajudar, já que não pensou em uma maneira de me
tirar dessa situação antes que ela tivesse certeza...

Sesang-e!

Meu corpo todo congela.

Ela sobe lentamente na ponta dos pés com os braços erguidos,


aproximando seu corpo do meu novamente. Vejo-me com nove anos,
recebendo aquele beijo na face. Mesmo antes que ela me alcance,
posso sentir o toque dos seus lábios macios e quentes na minha
pele, e o coração bate tão ligeiro como da primeira vez que recebi
seu gesto.
Entretanto, o que acontece é bem diferente.

Com uma habilidade inesperada, ela usa as duas mãos para


arrancar meu disfarce, descendo lentamente e estampando um
sorriso malicioso no rosto.

Assim que seus pés tocam o chão, os braços se cruzam. Ela solta
o ar e o sorriso desaparece, transformando-se em uma enorme
carranca. Tento engolir a saliva, mas não passa nada pela garganta.
Questiono-me se serei capaz de manter o corpo em pé ou se vou
desmoronar em poucos segundos.

— Park. Jae. Young. — Elleanor dá dois passos e salta sobre


mim, envolvendo-me com seus braços.

Meus olhos se fecham de forma involuntária. O coração golpeia


forte, de um jeito que julguei nunca mais ser possível. Tento me
conter, mas os braços não obedecem e a cercam também. Quero
congelar o tempo!

Da mesma maneira que ela me abraçou, abruptamente se afasta.


Eleva um pouco a cabeça, encarando-me de igual para igual com os
olhos marejados. Ouço todos os meus ossos quebrando e os órgãos
rompendo. Já que eu mesmo cavei o buraco, o jeito é mergulhar com
tudo no abismo.

Respiro fundo.

— Elleanor, certo? — Ela abre bem os olhos e solta uma risada,


como um personagem possuído de filme de terror. Morde os lábios
com tanta força que sinto dor por ela, torço para não sangrarem.
— Você está na dúvida de verdade ou é só uma brincadeira sem
graça? Espero honestamente que seja a segunda opção. — Sua fala
ríspida parece o rugido de um leão. Ainda assim, insisto na
estratégia.

— Não... — Nem termino a fala e ela está girando nos


calcanhares com as duas mãos na cabeça, bufando como um touro
raivoso pronto para atacar o toureiro.

— Eu não mudei tanto assim, Park Jae Young! — Embora a voz


esteja carregada de raiva, seus olhos denotam decepção. O rio de
lagrimas transborda.

Isso é o suficiente para me desarmar e fazer minhas entranhas se


contorcerem de dor.

— É claro que me lembro de você, Lia. Faz muito tempo, mas eu


nunca esqueci seu rosto. — Ela me encara, soltando os braços ao
lado do próprio corpo, que parece ter relaxado, mas seu semblante...

Vê-la assim é o mesmo que levar vários socos no estômago.


Perco o restante de coragem e força, se é que isso pode ser
chamado de coragem, talvez o adequado seja covardia.

— Você não mudou quase nada. — Coloco a mão sobre sua


cabeça como fazia quando criança, mas antes que eu possa
acariciar seus cabelos, ela segura meu pulso, afastando-me. — Suas
sardas sumiram... — Nem um simples rascunho de sorriso ela
demonstra. — E... Não cresceu muito... Sua cabeça mal consegue
alcançar meu peito. — Apelo para o lado cômico que nunca tive.

— E você continua com sua inabilidade para piadas.


— Sua língua ficou afiada. Onde está a garotinha dócil?

— No mesmo lugar que você a deixou. — Ela tem razão, não sei
fazer piadas. E fui eu quem a deixou... Minha cabeça pesa, mirando
o chão. Passo a mão pelo pescoço.

— Elleanor, eu sei que... — Wook chega abraçando sua cintura


por trás. Minha cabeça zune, gira e o estômago assemelha-se ao de
um lutador que recebeu incontáveis golpes no local. — Onde pensa
que vai vestida assim, parecendo uma alegoria carnavalesca?
Precisa trocar de roupa e deixar as peças da coleção, pois devo
entregar ainda hoje para o cliente. — Aperta a bochecha dela.

Ela vira a cabeça para o meu irmão, seus olhos em brasa.


Espalma as mãos sobre seu peito e o empurra com força. Wook
desequilibra, apoiando-se na parede.

— Qual o seu problema, Wook? Esqueceu o que eu disse? Não


encoste em mim! Quebrarei todos os seus dedos sem a menor culpa!

Wook cerra os punhos com tanta força que a cor da pele arroxeia.
Inspira o ar profundamente, desviando o rosto dela e de mim.

Ou eles estão passando por alguma crise no relacionamento, ou


não estão mais juntos, o que explicaria o desespero de Wook com
meu retorno. Afinal, é normal existir um grau diferente de intimidade
entre casais...

Elleanor retira as peças apressada e atira com força sobre Wook,


que as apanha furioso. Em seguida, ela começa a abrir o zíper do
vestido. Em um impulso, vou para trás dela e seguro suas mãos
suaves e quentes — elas continuam como antes. Sorrio por dentro.
Wook esmurra a parede.

— Sei que está furiosa, mas aqui não é um bom lugar para se
despir. Quando recobrar seu juízo, provavelmente se sentirá mal por
tal atitude.

Cerro as pálpebras por um instante, permitindo que o ar entre e


saia dos pulmões com calma.

Elleanor não reclama por tê-la impedido. Solto-a lentamente,


dando um passo para trás. Ela gira o corpo até seus olhos me
encontrarem. Apesar de não estar nu, sinto como se estivesse
despido sob seu escrutínio, que tenho certeza de que é capaz de
enxergar muito além do meu corpo.

— Tentando se livrar de mim de novo? — A voz tremula.

Ela encara os próprios pés, que mexem freneticamente, igual à


época de criança. Tudo o que mais desejo é envolvê-la em meus
braços e não permitir que nada a machuque. No entanto, contenho-
me.

— Não. Só que hoje... Não é o momento certo para


conversarmos. Prometo entrar em contato para nos encontrarmos
em um local mais apropriado.

— Promete?! Promete! E acha que eu acreditarei outra vez? — O


golpe foi tão forte que perdi a capacidade de responder. Embora ela
tenha razão, ouvir as palavras saindo de sua boca me dilacera.

— Vá se trocar, Elle, outro dia vocês conversam. — Wook


aparenta estar mais calmo, ou ao menos se esforçando para isso.
— Você é outro que me deve uma explicação. No momento, não
acredito em nenhum dos dois. — Aponta o dedo para mim. — Passei
anos à espera de algo em vão. E ambos só pensaram em si
mesmos. O mínimo que mereço é saber a verdade... Você me deve
isso, Park Jae Young.

— Você tem razão. Mude a roupa. Eu a esperarei no café.

— Se me enganar mais uma vez, esqueça que existo! Se bem


que já fez isso!

Elleanor tira as sandálias, segurando-as com a mão esquerda, e


caminha arrastando a barra do longo vestido pelo corredor.
Atravessa a porta e desaparece. A punhalada no peito lateja a ponto
de deixar-me tonto.

— Devia ter me comunicado sobre o ensaio. Evitaria o mal-


entendido.

— Não pensei que fosse necessário. Presumi que já estaria no


hotel a esta hora. — Curvo a cabeça para baixo e aconchego as
mãos nos bolsos.

Seguimos em silêncio para o café que, durante a noite, funciona


como um bar em estilo informal. Muitas pessoas param aqui após o
trabalho para relaxar, encontrar amigos ou mesmo colegas de
trabalho.

Wook escolhe uma mesa mais ao fundo e afastada das demais,


ele deve prever alguns excessos da parte de Elleanor. Pedimos
caipirinha, sugestão do meu irmão.
— À nossa sobrevivência. Gonbae! — Wook bate seu copo no
meu.

— Sinto-me muito melhor ao ouvir isso. Komawo! — Ele ri com


amargor e vira todo o líquido de uma vez.

O acompanho, copiando sua atitude. Gesticulo para o garçom


pedindo outra dose. Quando volto minha atenção para a mesa,
Elleanor está puxando a cadeira o mais afastado que consegue de
nós dois. Antes de falar qualquer coisa, ela pede ao garçom, que
está colocando minha bebida na mesa, uma dose para si. Sinalizo
para o Wook. Ele apenas ergue os ombros e solta o ar. Nunca a vi
beber, mas não acredito que tenha o hábito.

— Você tem certeza de que é uma boa ideia beber hoje, Lia? —
Ela se debruça sobre a mesa apoiando o queixo nas mãos.

— Ora, apenas acompanharei vocês, afinal, seu retorno merece


ser comemorado! — Wook me encara rindo, divertindo-se.

Sua bebida chega. Ela pega o copo, elevando-o em minha


direção, depois vira todo o conteúdo de uma vez, apertando os
olhos. Erguendo a mão para cima, sinaliza para o garçom.
Definitivamente isso não terminará bem.

Assim que o garçom se aproxima, peço um petisco. Não estou


com fome, contudo se ela continuar bebendo assim, terei que levá-la
para o hospital.

— Elle, talvez... só talvez, esteja exagerando um pouco na bebida.


— Wook pisca para ela, que não corresponde de maneira amigável.
— Não se envolva nas minhas escolhas. Duas caras! — Aponta o
dedo em riste para ele. — Quanto a você, — Volta todo o corpo em
minha direção. Tomo um gole da caipirinha, que desce queimando
não sei se devido ao teor alcoólico ou ao meu âmago tempestuoso.
— há quanto tempo voltou?

— Cheguei ontem. — Elleanor bebe mais um pouco.

— Se chegou ontem, por que não me procurou? Aliás, você ao


menos pensou em falar comigo?

— Como acabei de mencionar, cheguei ontem à tarde. Não tive


tempo de me organizar ainda, por isso não entrei em contato.

— Claro, suas prioridades são outras. — A comida chega,


posiciono o prato na frente dela. Lia ignora, puxa o garçom pelo
braço solicitando outra dose. Solto o ar, enquanto Wook bebe e
come, apenas assistindo a cena.

— Não foi o que eu falei. Por favor, não distorça as coisas, Lia.

Ela ingere quase toda a dose do seu copo de uma vez e limpa a
boca com o dorso da mão. Seus movimentos estão amplos e
exagerados. Ela parece ter chegado ao seu limite, entretanto, está
inacessível.

Empurro meu copo, pois ao contrário dela, não sou capaz de


beber mais nada. Aproximo minha cadeira da dela — do jeito que
está ela pode cair.

— Não pense que me chamando assim eu vou amolecer. Se você


se importasse um pouco, como vocês dizem: “jogeum"... — Ela junta
o indicador e o polegar na frente dos olhos quase os grudando, fecha
um olho. — Quando esbarrei em você, teria se identificado. Mas
fugiu. E depois se esgueirou de novo. Se eu não insistisse, não
teríamos conversa alguma.

— Não foi intencional.

— Então, por quê? — Ela bate o copo na mesa, respingando o


restante do líquido em seu rosto.

Eu e Wook nos aproximamos para secá-la ao mesmo tempo. Ela


impede meu irmão, levantando o braço para que ele não a alcance.
Aproveito e passo de leve meu lenço em sua face. Os olhos dela se
fecham. Ela vira para mim.

— Não faça mais isso, por favor. Não haja como se você se
importasse comigo, quando não é verdade. — Me afasto com o
estômago nauseado. Outro golpe certeiro, daqui a pouco vou à
nocaute.

— Eu me importo.

— Se isso fosse verdade, não teria se afastado como fez. Eu o


esperei todos esses anos feito boba. — Encosta a ponta do indicador
no meio do meu tórax. — Acreditei que voltaria, e quando nos
encontrássemos... — Ela se cala. Lágrimas caem pela sua face.

Ouço o meu coração se partindo em cacos. O oxigênio parece


veneno, passa queimando pelas narinas e mal para no pulmão.

— O que pensou, Elleanor? — Wook solta o copo sobre a mesa


com força. As pessoas a nossa volta ficam em silêncio e nos
encaram assustadas.

— Esquece. — Ela pega meu copo e entorna o resto do conteúdo.


Coloca a alça da bolsa sobre o ombro.

Passo as mãos pelos cabelos, que mais parecem espinhos


furando minhas palmas. As pernas fraquejam, as mãos tremulam.

Ela se levanta e tropeça. Seguro seu braço. Wook empurra a


cadeira e rapidamente está em pé ao lado dela. Solto seu pulso. Ele
a abraça pela cintura. Demora apenas alguns segundos para que ela
perceba e então o empurra.

— Eu te disse para não encostar em mim! Quem pensa que é


para me tocar? — Wook a solta levantando as mãos. — Você é
egoísta e culpado como seu irmão. Eu posso estar alterada devido
ao álcool, mas não sou burra! Jae não chegaria aqui do nada e
apareceria na agência sem o seu conhecimento. Você mentiu para
mim sabendo como eu me sentia.

— Elleanor, você está exagerando.

— Exagerando!? — Wook dá um passo para a frente, tentando


cercá-la. — Não se aproxime! Você não tem o direito de decidir por
mim. Não é assim que amigos agem um com o outro. Não me
procure! — Amigos!? Aigoo! Eles não estão mais juntos. Wook
mentiu...

Ele passa as mãos no rosto sem parar, chuta o pé da cadeira, que


vai ao chão. Provavelmente está envergonhado e frustrado.
— Melhor se acalmar e encerrar o show, Park Jae Wook!
Controle-se. — Ele me encara furioso.

Elleanor vira as costas, cambaleando e tropeçando entre as


mesas. Ela não chegará inteira em casa! Não posso deixar que saia
assim...

Abro a carteira, deixando sobre a mesa algumas notas que


imagino serem suficientes para a conta. Caminho na direção dela.
Wook agarra meu braço.

— Kajima! Não será bom para você nem para ela... — Rio sem
vontade.

— Ou não é conveniente para você, Jae Wook? — Ele solta meu


braço. — Pense no bem-estar dela, já que afirma com veemência
que a ama. Ela deveria ser sua prioridade, não o seu ego! Assim, ela
não chegará em casa inteira.

— Tem razão, hyung. Desculpe-me. — O semblante dele é uma


máscara: frio e sem emoção.

Corro atrás dela pela calçada. Elleanor troca os passos, tentando


se equilibrar. Aumento a velocidade até alcançá-la, diminuindo para
uma caminhada ao chegar ao seu lado. Demora alguns minutos até
que ela note minha presença e interrompa os passos.

— Quantas vezes eu tenho que repetir que você não pode beber,
Elleanor? Dessa vez realmente passou do limite, está vendo o Jae
Young. — Bate com a mão direita na lateral da testa. Pisca, rindo, e
esfrega os olhos.
— Eu te levo para casa, vamos? — Ofereço o braço. Ela balança
a cabeça em negativa. Aproxima o rosto, esforçando-se para abrir
mais os olhos. Coça a cabeça. Rindo, bate com as duas mãos perto
dos meus ombros.

— Você deve ser algum fantasma, pois eles eu posso tocar,


alucinações ainda não consegui. — A envolvo com meus braços,
mantendo-a de pé. O hálito de álcool é tão forte que quase me
embriaga. — Para um fantasma, até que você é bem macio... —
Alisa com as mãos o meu peito, afundando os dedos em seguida,
parece testar algo. — Hum... Forte. Dever ser bonito sem camisa,
todos os gominhos bem aparentes. — Dá um tapa.

— Dói, Lia. — A pele onde ela acertou esquenta e arde. Elleanor


escorrega, aperto mais sua cintura. — Não tem a menor condição de
ir para casa sozinha, teimosa. Nem arrastada. Ainda bem que
aluguei um carro até conseguir me organizar por aqui, caso contrário,
estaríamos em sérios apuros, garotinha!

Segurando-a firme pelos pulsos, me abaixo, ajoelhando de costas


para ela. Puxo-a para cima. Ela deita quase dormindo em meu
ombro. Prendo seus braços enlaçando meu pescoço e seguro suas
pernas com meus braços, curvando-me um pouco para que não
escorregue.

— Você é pequena, mas pesa, sabia? — Ela aconchega ainda


mais sua cabeça no vão entre meu pescoço e o ombro. Eu te
carreguei algumas vezes assim no passado e não me incomodo de
fazê-lo quantas vezes for preciso, Lia, só lamento que o motivo seja
sua infelicidade.
— Jae...

— Hum.

— Seu cheiro é melhor do eu me lembrava...

A saliva se torna espessa demais, dificultando a deglutição. Os


olhos queimam e quase transbordam. Os membros sofrem
espasmos e chego a duvidar se serei capaz de carregá-la. Respiro
fundo duas vezes antes de voltar a movimentar-me.

— Por que você me esqueceu?

— Afinal, você gosta ou não do Wook? E por que foi se envolver


com ele se não o amava? Wae? Aish, Lia! — Ela bate em meu peito
com os punhos cerrados. — Você tem força. Está bêbada mesmo?
— Ela emite um ruído de riso misturado com ronco. — Mesmo que
fosse fingimento, eu te carregaria, eu suportaria qualquer coisa só
para você se sentir melhor.

Seu corpo relaxa, aumentando ainda mais o peso. Os braços


afrouxam, permitindo que eu respire melhor, o ruído estranho se
torna apenas ronco.

Poucos passos e chegamos ao estacionamento. Tiro-a das


costas, apoiando-a na lateral do carro, assim consigo pegar a chave
do veículo.

Com a mão direita, abro a porta do passageiro. Ergo-a do chão e


a acomodo no banco. Vou para o meu lugar. Envio uma mensagem
para Wook pedindo o endereço dela. — só me recordo do caminho
para casa azul e sei que há algum tempo ela saiu de lá. — A tela do
celular acende; verifico a mensagem e coloco a localização no GPS.

Durante o trajeto, ela murmura várias coisas ininteligíveis, mas em


alguns momentos chama por mim. Checo sua temperatura e retiro os
fios de cabelos grudados em sua testa suada.

Paro em uma farmácia perto de sua casa e compro algo para


aliviar sua ressaca quando acordar. Pouco depois, estaciono em
frente ao seu prédio. Solto meu cinto de segurança e depois o dela.
Destravo minha porta.

— Eu te esperei... Tanto... Tanto... Por quê?... Por quê? — De


olhos fechados, com lágrimas correndo por sua face, ela se encolhe
no banco em posição fetal, parece sentir muita dor. — Acreditei que
voltaria para mim... Você foi meu melhor amigo... Meu primeiro e
grande... — Suspira fundo.

— Seu grande... Mwo? Amigo? É isso? — Balanço ela de leve.


Nenhuma reação. — Aigoo! Se calou, logo agora!

Debruço-me sobre o volante com a cabeça voltada para sua face.


Ela se tornou ainda mais linda! Minha mão corre por seu rosto
cuidadosamente, deslizando por cada traço, memorizando a
sensação do toque de nossas peles.

Meu rosto segue até ela, encostando nossas testas, assim os


olhos também podem guardar a imagem desse momento. Seu aroma
doce, mesmo com o forte cheiro de álcool, entra em meus pulmões,
as pálpebras se juntam e não resisto.
Com seu rosto em minhas mãos, deposito um beijo em sua testa,
descendo até a ponta do nariz, parando apenas quando meus lábios
tocam suavemente os dela.

— Mianeyô! Não devia ter feito isso com você inconsciente. —


Volto para o meu banco, permanecendo apenas com a mão em seu
rosto. — Eu quero escolher o certo, mesmo que me machuque ainda
mais. Contudo, te ver assim me faz duvidar. Estar perto de você tira
minha sanidade. O que eu faço, Elleanor? O que faço com tudo o
que está guardado aqui dentro? — Minha mão esmurra o centro do
tórax vigorosamente, entretanto a brutalidade não causa dor, não o
suficiente para mascarar a ferida, que só aumenta. — Jae Wook é
minha única família, não posso perdê-lo também. Você... É a mulher
que meu irmão ama... E eu t... O que sente por mim é ilusão,
amizade ou outra coisa?

Ela não move um músculo, completamente apagada. Tiro a mão


do seu rosto e seguro o volante com força. Mais uma vez me vejo no
passado, não muito distante.

— Só me lembro daquela cena, vocês dois juntos, abraçados e...


— Sacudo a cabeça afastando as imagens. — Não é que não possa
perdoar, eu apenas não sei o que há de verdade entre você e Jae
Wook. Você demonstra uma coisa e Wook outra. Faz ideia de como
isso me tortura? Como ignorar e passar por cima de tudo? Estou
sem rumo...
19

Elleanor

Uma faixa luminosa atinge meus olhos, e por mais ínfima que
seja, é o suficiente para me despertar. Levanto as pálpebras
vagarosamente, nunca foi tão difícil abrir os olhos, nem tão doloroso.
Ardem. As imagens são turvas e confusas. Não permitem reconhecer
onde estou, entretanto, não me incomodo, pois meu corpo pede que
eu continue na mesma posição.

Uma batida na porta quase me deixa surda, a cabeça gira com o


barulho e imediatamente o estômago corresponde, forçando para
fora o que quer que ainda restava ali dentro.

Sento na cama segurando a cabeça, para ver se o ambiente — ou


eu — para de rodar.

— Elle! Perdeu a hora de novo? — A voz da Mariana. Estou em


casa. Respiro um pouco aliviada.

— Sim. Obrigada por me chamar. Saio daqui cinco minutos.


— Vou te esperar, acredito que precise de carona hoje, ou dessa
vez Madá vai te torturar!

— Aceito.

Sigo segurando pelas paredes até o banheiro. Pelo reflexo no


espelho, noto que estou com as mesmas roupas de ontem. Eu não
me troquei? O que eu fiz ontem? A cabeça ou o banheiro gira.

Seguro na pia, abro a torneira e mergulho o rosto na água gelada.


Meu hálito cheira a álcool azedo. Elleanor, o que você aprontou? Não
tenho tempo e não posso chegar ao trabalho exalando cachaça.

Mari precisará de um pouco de paciência comigo hoje e muita


agilidade na direção!

Sento no sanitário e me livro da roupa. Ligo a ducha, deixando na


temperatura fria. Odeio banho gelado, mas só assim para melhorar
um pouco!

Enquanto a água cai sobre a cabeça, prendo os lábios entre os


dentes para não gritar. Minha pele se eriça e os músculos tremem
com o frio. Lavo bem a cabeça, esfregando com força o couro
cabeludo. Conforme a água leva a espuma pelo ralo, cenas
relampejam diante dos meus olhos.

— Jae Young... Não foi um sonho! Você voltou! — Apoio as mãos


na parede, inclinando o tronco, permitindo que a água massageie as
costas e ajude as lembranças do dia anterior a se manifestarem.

Saio do chuveiro um pouco melhor. A cabeça pesa uma tonelada


e lateja sem parar, mas consigo andar sem me apoiar na parede.
Enrolo-me na toalha e passo pela porta seguindo direto para o
guarda-roupas.

Pego meu tão famoso uniforme roxo, vestindo-o o mais depressa


possível. Desisto dos saltos, optando por uma sapatilha, já que meu
equilíbrio hoje em uma escala de 0 a 10 está em -1!

Sento na cama penteando os cabelos; provavelmente ficarão do


tamanho de uma vassoura, já que não há tempo para secá-los.

Assim que observo a mesinha de cabeceira em busca do meu


celular, vejo uma cartela de comprimidos com um copo de água
coberto. Tomo.

— Quem deixou isso aqui? Não sei nem como cheguei em casa...
Certamente não estava raciocinando o suficiente para cogitar que
acordaria tão mal... Wook? Não... Ele não pensaria nisso, não cuida
nem da própria ressaca. Será que... Jae!?

Coloco o remédio dentro da bolsa, só por precaução.


Provavelmente até o almoço não haverá mais vestígios do álcool em
meu corpo — o estômago revira com força. Talvez dure mais do que
gostaria.

Sigo para a cozinha. Mari está à minha espera sentada à mesa


com sua xícara de café. A mesa está posta e, sobre ela, um pacote.

— O que aprontou ontem, Elleanor Arantes? Está com uma cara


péssima! E alguém enviou isso para você. — Leva a xícara à boca,
bebericando seu apreciado líquido preto favorito e apontando para o
pacote dentro de uma sacola com inscrições em coreano, a qual eu
reconheço muito bem: isso vem do mercadinho que frequentava com
Jae e Wook no Bom Retiro quando criança, e que hoje é o maior
vendedor desses produtos aqui.

Sento ao lado de Mari, deitando sobre a mesa até alcançar o


pacote e puxá-lo para perto.

Abro, retirando os objetos: um vidro semelhante ao de


refrigerante, entretanto escuro, com inscrições em hangeul, e um
papel escrito à mão em um português sofrido: “Contra Ressaca”. O
outro é uma embalagem de isopor, dessas para acondicionar comida
mantendo a temperatura, com outro bilhete. Mesma letra: “Sopa
Antirressaca”.

Mariana apoia o rosto na palma da mão observando os itens e


minha face.

— Hum... Alguém bebeu além da conta ontem a noite, não é


mesmo, Elleanor? O que aconteceu para te levar ao extremo? E
quem é o anjo enfermeiro cuidando de você? — Solto o ar, deitando
por completo o troco sobre meus braços cruzados na mesa.

— É uma longa história.

— Não tem problema, posso pedir para Marcus cuidar da loja


sozinho, então sou toda ouvidos para você.

— Eu encontrei com Jae Young ontem. — Mari solta a xícara com


tanta força sobre a mesa que foi um milagre não ter se partido em mil
pedaços, além de cuspir o café parecendo um chafariz sobre mim.

Ela pega guardanapo e seca meu rosto.

— Desculpa, Elle. Queimei você?


— Tudo bem. Mas isso foi muito nojento. — Ela ri, dando um beijo
na minha cabeça.

— Voltando ao nosso assunto. O coreano encantado voltou? Isso


é ótimo!

— Não é ótimo, nem perfeito, nem nada bom. — Ela encosta na


cadeira, cruzando os braços. Levanta uma sobrancelha.

— Está com transtorno de personalidade ou bipolaridade? O amor


da sua vida volta e você age assim!? Não compreendo.

— Vamos, no caminho eu te conto. Não quero deixar Madá


preocupada e os outros funcionários com mais raiva de mim do que
já têm.

Pego a bolsa junto com as soluções para meu estado, e seguimos


para o meu trabalho. No trajeto, relato cada detalhe do que lembro
antes de beber.

— Elle, vou repetir só mais uma vez: deixe seu passado para trás.
Isso é só uma ilusão de menina. Ele foi seu primeiro amor e você o
idealizou até hoje. — Mariana vez ou outra olha para mim, dividindo
sua atenção com o trânsito, tentando ser o mais suave possível, já
que quase vomitei duas vezes em seu carro.

— Não sei no que acreditar. — Abro o vidro e tomo o líquido, um


sabor que não é bom nem ruim: acho que meu paladar está
danificado.

— Confie em mim. Sou mais experiente do que você e me


preocupa o fato de não seguir em frente. Se dê uma chance! — Ela
para no sinal vermelho e me encara. — O Wook seria uma excelente
opção, já que você tem essa forte atração por asiáticos. — Pisca.

— De novo esse assunto? Não se engane, ele não é tão bonzinho


quanto pensa.

— Para mim, é implicância sua, já que seu coração bate pelo


irmão mais velho. Devia repensar. — Me cutuca com o cotovelo. O
sinal abre e ela foca no trânsito outra vez.

— Não é nada disso. Receber a atenção dele é incômodo... As


atitudes, sua personalidade e até o sorriso... Não são... Naturais. —
um arrepio gela minha nuca.

— É sempre assim: quem gostamos não gosta da gente e quem


gosta da gente nós não gostamos. — Balança a cabeça em negativa.

— Não é hora para ironia. Pode não acreditar em mim, mas


repare no comportamento dele. Wook mudou... Perde a calma com
mais facilidade, age como se houvesse algo mais entre nós além de
amizade... Persegue-me com sua insistência em namoro... E de uns
tempos para cá, ele fala mal de Jae praticamente todas as vezes que
o nome do irmão surge em alguma conversa. Ele me causa calafrios,
me intimida, terrifica. Nunca aconteceu isso com o Jae. Nem mesmo
agora, que estou furiosa. — Mari esfrega os próprios braços e faz o
sinal da cruz.

— Você conseguiu acordar todos os meus alertas de perigo. Não


vou mais interceder a favor do Wook. Aliás, seu status foi alterado
para mau-partido. — Ela debocha, contudo, seu sorriso é forçado.
Com certeza está apavorada. — Que tal te apresentar alguns amigos
meus? — Seu medo não durou muito. Ela chega a dar um saltinho
no assento, tamanho entusiasmo, que eu não compartilho.

— Não é o momento. — Morde os lábios com força.

— Então perdoa logo seu coreano encantado e lute por ele! Elle, a
felicidade só depende de uma única pessoa: você mesma!

— Eu sei... Mas estou magoada. Doeu muito vê-lo tentando se


esconder de mim.

— Te entendo, no seu lugar eu deixaria de gostar dele no mesmo


instante. Só que você não é assim. Resolve logo esse mal-
entendido, ou o que quer que seja. Se finalmente ficarem juntos,
bem, se não, ao menos colocará um ponto final nessa história e
poderá seguir em frente.

— Tenho receio. Não quero perdê-lo. Mesmo que seja apenas


como amigo, eu o quero de volta.

— É isso? Ou seu medo é descobrir que ele não gosta de você


como mulher? — Desvio a atenção para fora do carro, os prédios
passam, assim como minha vida: eu não faço nada, de fato.

— Não sou confiante nem linda como você. Não tenho sua altura,
postura, pele perfeita e...

— E o que, Elleanor? — Paramos no estacionamento da


empresa. Solto o cinto de segurança encarando minhas pernas. —
Que desculpa mais esfarrapada! Cada pessoa é única com sua
própria beleza. Você não é alta e não tem minha postura, nem
compartilhamos o mesmo gosto por moda. Mas tem suas próprias
qualidades. Olhos lindos, rosto de boneca, delicado. Cabelos
brilhantes naturalmente ondulados e possui um dos sorrisos mais
doces do mundo, embora nem sempre seja afável de verdade. — Ela
gargalha. — Use suas armas e conquiste-o! Se não der certo, te
empresto meu ombro, e depois que se recompor, te ajudarei a
conseguir um gentleman escocês. — Pisca, erguendo os ombros e
sorrindo alegremente.

— Escocês, claro. Vou pensar no que me disse. — Devolvo o


sorriso.

— A propósito, quem é seu anjo enfermeiro? Wook? — Nego com


a cabeça.

— Pela letra feia e os erros de português... Jae Young.

— Um ponto positivo para ele. De alguma forma, gosta de você,


do contrário não se preocuparia. — Pisca e mexe os dedos em
despedida.

— Tchau, Mari.

Salto do carro apressada e sem respondê-la. Mesmo com sua


ajuda, cheguei atrasada — não muito, só o suficiente para manter
minha fama e os cochichos habituais, algo que hoje não me abalará.

Entro seguindo direto para o meu escritório. Ligo o computador e,


assim como as luzes da tela se acendem, minhas memórias da noite
anterior também começam a retornar nos mínimos detalhes.

Tudo o que disse no café, a forma como empurrei Wook e a raiva


que senti dele — diferente de Jae que, mesmo machucando-me, não
impedi que me tocasse. — O jeito como saí, Jae me carregando nas
costas igual quando éramos crianças...

Um sorriso surge involuntariamente, desaparecendo em seguida.

— Ah, meu Deus! Por que falei tanta bobagem? — Bato na


cabeça duas vezes, escondendo o rosto em seguida com as mãos.

“... Seu grande... Wae? Amigo? É isso? Aigoo! Se calou logo


agora!”

Ele não entendeu o que eu disse. Não sei se fico aliviada ou


preocupada! Aish, Elleanor!

Toco meus lábios e meus olhos se fecham, deliciando-se com a


sensação dos lábios dele nos meus... Ele me beijou? Ou estou
delirando? Deve ser fruto da minha imaginação.

“... Mianêyô! Não devia ter feito isso com você inconsciente. Eu
quero escolher o que é certo... Contudo, te ver assim me faz
duvidar... O que eu faço, Elleanor?... Jae Wook é minha única
família, não posso perdê-lo também. Você... É a mulher...”

É a mulher que o quê?!

Esqueci justo essa parte! O que estava tentando me dizer?

Deslizo as mãos pelos cabelos, batendo os pés no chão. Quem


mandou beber mais do que suporta?

“... Só me lembro daquela cena, vocês dois juntos... Faz ideia de


como isso me tortura? Como ignorar e passar por cima de tudo?...”
Me perdoar? Que asneira acha que eu fiz? Quando me viu com o
irmão dele? Não deve ser isso, como ele veria o que nunca existiu?
Ainda mais que não pisa os pés aqui há mais de vinte anos...

Massageio a testa. O cérebro fervilha e pulsa dolorosamente.

— Wook! — Bato com os punhos fechados na mesa. — Será que


ele falou algo que Jae interpretou errado? Se ele fez isso, vou jogá-lo
em uma piscina cheia de piranhas sanguinárias com mãos e pés
amarrados e deixá-las devorá-lo vivo!

Debruço-me sobre a mesa, espalhando todos os objetos com os


braços até caírem no assoalho. Permaneço na posição por alguns
minutos, sem vontade de me mexer.

Controlo a respiração. Arrumo a postura e os cabelos. Bebo um


copo de água e chá de camomila. Tiro o telefone do gancho e desligo
o celular; não suporto o som de absolutamente nada hoje, sou
apenas um fantasma.

“... Estarei ao seu lado sempre, mesmo que não perceba e não
saiba...”

A frase ecoa sem parar na minha mente, até que uma nova cena
desponta: Jae me deita na cama, tira meus sapatos, afrouxa o zíper
do vestido e joga o lençol sobre mim. Depois, senta ao me lado na
cama. Coloca uma mexa do meu cabelo atrás da orelha e beija
minha face. Nesse momento, ele pronuncia a frase ressoante.
Desliza o dedo indicador sobre o meu rosto. Ouço seus passos
afastando-se com cuidado...
Então ele me carregou até meu quarto... Deito a cabeça no
encosto da cadeira. Os lábios se movimentam até alcançarem a
orelha. Mariana pode estar certa... Você terá que se explicar
corretamente, nos mínimos detalhes! Não permitirei que escape de
mim, nunca mais!
20

Jae Young

Desde que deixei Elleanor em casa, meus dias parecem mais


longos e arrastados. Carregá-la nos braços até seu apartamento e
colocá-la na cama foi agradável, repetiria isso mil vezes sem cansar
ou reclamar. Aliás, eu adoraria...

Embora exista uma imensidão de atividades acumuladas da


agência, às quais eu deveria dedicar toda minha atenção, a única
coisa que preenche meu cérebro é Elleanor! Cada palavra dita ou
murmurada por ela... As suas mil faces e gestos... Voz... Cheiro...
Tudo isso torna meu dia um enorme fardo.

Entender como funciona o mundo da moda é apenas um pequeno


quesito para uma agência de modelos, que é uma empresa como
qualquer outra, e minha pouca intimidade com gestão por si só, é
complicação mais do que suficiente.

A graduação em administração forneceu-me apenas a teoria, a


pouca prática que adquiri foi assumindo algumas funções provisórias
na Park Comunicações.
Gastei mais tempo sob os holofotes do que nos bastidores. Há
muito o que aprender e, para isso, concentração é mais do que
essencial, todavia, não consigo focar no trabalho nem mesmo por um
mísero minuto.

Agora, olhando para a tela do celular, perdi qualquer esperança


de encontrar a habilidade para trabalhar hoje. A mensagem de Wook
foi a gota d’água que faltava. Um buraco se abre sob meus pés e
parece engolir tudo o que há nesta sala.

Solto o aparelho sobre a mesa inclinando a cabeça para o alto.


Deixo o peso do corpo no encosto da cadeira, enquanto as mãos
sobem devagar pelo rosto até a parte de trás da cabeça, onde os
dedos se unem.

Eu sabia que a tia dela é uma das maiores empresárias de


eventos, por isso boa parte dos nossos clientes é compartilhada, eu
só não contava ter que participar de um lançamento realizado em
sua casa de festas tão cedo. Não estou preparado para assumir essa
função agora, mas Ana acabou de ser hospitalizada e Wook, como
responsável, necessita acompanhá-la.

Começo a acreditar que o destino está contra mim, já que toda


hora insiste em me pôr à prova. Não sei se Elleanor trabalhará essa
noite e se este é o único evento delas, entretanto a incerteza é ainda
pior.

Pisando em brasas e saltando fogueiras, é assim que passarei


essas horas até encontrá-la ou retornar para meu lar em segurança.
É minha primeira noite na minha nova casa. Acabei de comprá-la,
nem me organizei direito. Supostamente, passaria o tempo tranquilo,
sozinho, no aconchego da minha intimidade, sem cruzar com um
monte de desconhecidos, curiosos e jornalistas à espera de uma
exclusiva explicando o motivo da minha aposentadoria prematura
das passarelas.

Apesar de não ser tão antecipado assim, consideraram precoce


por eu estar no auge. Havia muitas propostas em discussão e até
contratos recém-assinados com marcas renomadas que cancelei.

O fato é que hoje eu esperava encontrar paz e liberdade. Poder


deixar todas as minhas emoções fluírem, sem me preocupar se há
pessoas ao redor me observando.

No lugar da paz surgiu a desordem.

Assim que organizo minha bagunça interna o suficiente para ser


capaz de movimentar-me, deixo a empresa e rumo para casa. Ainda
com a ajuda do GPS, chego com tempo de sobra antes do
compromisso repentino.

Abro a porta adentrando com o pé direito — um pouco de


superstição não faz mal a ninguém. Caminho até o aparador,
deixando a chave do carro e a carteira. Seguro o retrato da minha
mãe sorrindo. Inspiro fundo, passando o dedo por sua face.

—Omma, o que achou da casa? Minha primeira casa. Tantos


anos desejando meu espaço... Finalmente consegui. Acredito que
esteja feliz.
Devolvo-a para o seu lugar. Tiro o sapato jogando a pasta sobre o
sofá. Afrouxo a gravata, subindo a escada enquanto a retiro. Entro
no quarto com parte da camisa desabotoada. Jogo o paletó sobre a
cama, dirigindo-me para o banheiro. Um banho longo e relaxante
deve ajudar a me recompor.

Saio da banheira, coloco o roupão e corro para preparar um chá


de camomila. Calmante seria mais adequado, mas remédios e álcool
não combinam, e hoje não há alternativa: recusar-me a beber com
um cliente não é uma opção aceitável.

Preparo o chá esforçando-me para manter Elleanor longe — algo


quase impossível.

Retorno para o quarto com o chá. Sento na cama com as pernas


esticadas. Ligo a televisão, passando canais até parar no primeiro
filme com muita ação e efeitos especiais barulhentos que encontro.
Deve servir para ocupar a mente por enquanto.

De frente para o espelho, arrumo o paletó branco e verifico pela


décima vez as mensagens. Nada. Jae Wook ainda deve estar
ocupado com Ana. Com o dedo indicador toco sobre seu nome,
assim que ouço chamar, deslizo o dedo sobre a tela, encerando a
ligação.

— Sou presidente agora. É meu dever.


Aperto a parte de cima do vidro que espirra o líquido sobre os fios
da frente do meu cabelo, com a ponta dos dedos modelo o topete.
Observo minha imagem no espelho, entretanto, o que vejo bem no
fundo dos olhos é a imagem de Elleanor.

Desvio a cabeça para o chão, inspirando o máximo de oxigênio


que sou capaz. Dou as costas para o espelho liberando o ar.

Passos largos e fortes ecoam pelo grande vazio da casa. Pego a


chave do carro e a carteira, abrindo a porta para a garagem em
seguida.

O trânsito não colabora, embora esteja grato por isso, quanto


mais perto do local, mais eu transpiro. O coração aumenta o ritmo de
suas batidas gradualmente e, sem planejar, noto formações
enrugadas na minha face ao observar o movimento atrás de mim
pelo retrovisor. Desde quando elas estão ali? O que isso importa, Jae
Young?

Ligo a seta para a direita, verifico os dois retrovisores trocando de


faixa para, alguns metros à frente, acessar o estacionamento do
salão de festas.

Seis homens de terno preto em pé, com as mãos cruzadas na


frente dos corpos e semblantes nada amigáveis revezam entre si a
guarda dos veículos.

Paro o mais próximo deles. Abro a porta. Salto cumprimentando o


primeiro e lhe entregando a chave. Abotoo o paletó. Respiro fundo
enfiando as mãos nos bolsos. Ergo a cabeça e inicio os passos em
direção à recepção.
Assim que me identifico, uma mulher me acompanha até a mesa
reservada para a agência; cumprimento outros membros da equipe
que já estão presentes. Circulo entre as mesas de clientes e figuras
conhecidas.

A todo momento, meus olhos varrem o salão em busca dela.


Talvez não esteja trabalhando hoje... Um dos garçons completa
minha taça com vinho.

Os colabores da agência conversam entre si, rindo e cochichando,


enquanto eu ainda nem sei seus nomes.

O evento começa. Um dos nossos modelos é o apresentador. Ele


tagarela as mesmas baboseiras de sempre, tecendo elogios à marca
estrela da noite. Beberico um pouco, os olhos fixos no palco e a
mente bem longe dali.

Pouco depois, o estilista responsável pela marca no Brasil sobe


ao palco e apresenta o conceito da nova fragrância. Os modelos que
dão rosto ao perfume são chamados ao palco.

As luzes se apagam, restando apenas alguns pontos desfocados


e os refletores apontados para a entrada do casal segurando as
embalagens cobertas por um tecido verde.

Assim que eles passam pela mesa, meus olhos alcançam o que
tanto procuravam. Um frio abrupto se instala no estômago, as veias
em meu pescoço saltam fervorosamente. A glote quase se fecha,
afrouxo um pouco o nó da gravata, mas não surte efeito algum.

Pego a taça, levo à boca e tomo todo o vinho, como se minha vida
dependesse dele para continuar. As pessoas na mesa voltam a
atenção para mim, calando-se.

Abaixo a mão lentamente, até a taça tocar a mesa, desvio o rosto


para o palco novamente. Entretanto, o pouco de controle que eu
tinha esvaiu-se assim que a vi. Não enxergo nem ouço coisa alguma,
apenas vultos e ruídos sem sentido.

A cerimônia termina sob os aplausos de todos. Um DJ dita o ritmo


do que agora se transforma em uma festa. As pessoas perambulam
de mesa em mesa, se abraçando e distribuindo sorrisos.

Uma dessas criaturas faceiras, ao cumprimentar um dos


integrantes da agência, esbarra na mesa e a taça de vinho que
acabara de ser preenchida vira sobre mim. Tento não chamar
atenção. Pego o guardanapo e cubro a mancha, seguindo para o
banheiro.

Ao ficar de frente para o espelho, percebo o estrago. Paletó e


camisa brancos agora apresentam duas imensas manchas roxas.
Tiro o blazer e o deposito sobre o mármore ao lado da pia. Dobro as
mangas da camisa. Abro a torneira, molho o guardanapo e passo
sobre a roupa.

— Aish! Ou é muito azar ou castigo dos céus! — A mancha se


espalha pelo tecido, alcançando lateral e costas.

Atiro o guardanapo no espelho e viro de costas, apoiando as


mãos na pia. Inclino a cabeça para o alto. Fecho os olhos. Pense.
Pense. Talvez possa usar isso como desculpa para voltar para casa
antes que Elleanor me encontre.
Giro o corpo para a posição inicial. Pego o blazer, retirando de
dentro do bolso interno meu celular. Checo. Meu irmão não retornou
a ligação nem deu notícias. Eu sei que não deveria sair no meio do
evento, mas o principal já finalizou e existem outras pessoas nos
representando. Também posso alegar que não estou me sentindo
bem... Isso!

Com a decisão tomada, saio do banheiro. Celular na mão,


começo a digitar uma mensagem para Jae Wook, no intuito de
descobrir o estado de Ana.

— Parece que você precisa de ajuda. — Todos os meus


movimentos são interrompidos assim que aquela voz invade meus
ouvidos. Não levanto a cabeça, olhos ainda fixos na tela do aparelho.
Engulo farpas de arame que descem rasgando minha traqueia.
Sobre minhas mãos, uma toalha felpuda surge. — Não vai pegar?
Meu braço está cansando. — Ela sacode o tecido.

— Komawo. — Arrumo a postura, dando de cara com seus lindos


olhos verdes e um sorriso presunçoso. Aceito a toalha.

— Alguém te confundiu com uma taça?

— Um pequeno acidente.

— Eu vi, estava apenas te imitando ao fazer a piada sem graça.


— Pisca. Elleanor está brincando? Será que a raiva passou? Ela é
adulta agora, então possivelmente entendeu meu lado. Certo?

Braços cruzados, cabeça inclinada em minha direção como quem


aponta uma arma, olhos excessivamente abertos. Errado!
— Você viu? — Claro, foi o que ela acabou de dizer!

— Não vai tentar limpar?

— Agradeço sua preocupação, mas eu já estou de saída.

— Só por causa de um “pequeno acidente”, Park Jae Young? —


Levanta a sobrancelha fazendo bico. Aigoo! Ela faz isso wae?
Pretende me matar? O coração quase para.

— Hum-hum — Limpo a garganta. — Não, eu havia decidido partir


antes. Estou com dor de cabeça. Acho que exagerei na bebida.

— E sua dor de cabeça começou antes ou depois de me ver? —


Sua expressão se transforma de ironia para responda agora ou
morra.

— Como mencionei, estava com dor de cabeça antes do


problema com o vinho. — Movimento os ombros para cima e para
baixo segurando a camisa.

— Você continua péssimo com mentiras, Jae Young. Não


desconverse. Sei que me viu por trás dos modelos. Apesar de você
se virar para a mesa no mesmo instante, eu notei. — Minha mão
esquerda vai para a cabeça, empurrando os fios já bagunçados para
trás. Respiro profundamente, tentando organizar meu raciocínio.

— O que quer que eu diga, Elleanor? — Ela desvia o olhar para o


lado, rindo e mordendo o lábio inferior. Parece divertir-se com a
minha dor.

— Assuma que estava fugindo de mim de novo. — Coloca as


mãos na cintura batendo o pé direito constantemente no chão,
semelhante a marcar o ritmo de uma dança. Com certeza não será
uma valsa!

— Eu... Eu não queria me desentender com você. Mianiêyô. —


Embora seja verdade, meu coração se comprime, tornando-se
minúsculo. Tão miúdo que não é capaz de bombear sangue para
todo o corpo. As extremidades formigam, anestesiadas.

O rosto dela é uma tela em branco, sem qualquer expressão.


Outra punhalada em mim.

— Que bom que admitiu. Agora, me explique por que esse receio
todo comigo, Jae Young Ssi? Entendo que muito tempo se passou...
Mas...

— Eu não sei explicar, Lia. Sinto muito não poder voltar no tempo
e ficar ao seu lado como prometi, e como eu gostaria... Não dá para
mudar o que aconteceu.

— E o que exatamente aconteceu? Hein? — Ela bate em meu


peito com os punhos fechados. Dou um passo para trás, apoiando as
mãos na cintura. Os olhos ardem como se pegassem fogo. — Você
foi embora e simplesmente me esqueceu? Conheceu alguém e se
apaixonou?

— Aniyô...

— Não me vê como mulher? — Seus olhos são como duas facas


afiadas prontas para me perfurarem. Evito seu rosto, focando nos
meus pés. Ela veio preparada para acabar comigo!
— Não tem como não a ver como mulher, mesmo com sua
estatura minúscula. — Procuro uma abordagem mais descontraída.

— Não se faça de desentendido! — Não surte o efeito desejado.


Ela dá um passo à frente, exigindo de mim um esforço enorme para
não envolvê-la em meus braços e carregá-la para longe daqui.
Quanto mais próxima, mais suas formas ficam evidentes no vestido
preto perfeitamente ajustado ao seu corpo. — Responda!

— Jeongmal yeppeoyo! Tão linda que é capaz de enlouquecer o


juízo de qualquer um. — Ela sorri vitoriosa.

— Não sente nada por mim? — Que diabos está planejando,


Elleanor? Eu já vivo no inferno, sente prazer em me atormentar ainda
mais? Hajimá!

— Andwae!... Não sei...

— Não? Não sabe mesmo? Nesse caso, você deveria esclarecer


seus sentimentos, concorda? — Meus olhos se fecham e a
respiração acelera. Ela espalma as mãos no meu peito, provocando
uma ardência no local. E de novo. — Não significo nada para você?
Sou apenas a garotinha da sua infância e nada mais?

Suas mãos vêm em minha direção outra vez. Antes que me


atinjam, agarro seus pulsos, prendendo-os contra a parede.
Aproximo-me dela até sentir cada célula do meu corpo agitar-se.

O brilho dos seus olhos é como imã, e quando dou por mim,
minha testa está colada na dela, nariz com nariz e lábios tão
próximos que nem mesmo um mosquito conseguiria passar entre
nós. Passo a língua sobre meus lábios secos, tão secos quanto um
deserto. Os olhos se fecham. Tento me concentrar em respirar.
Jamais poderia imaginar que seria tão difícil.

— Nunca diminua a sua importância para ninguém, Elleanor.


Principalmente para mim. Não duvide de mim, mesmo que minhas
atitudes não sejam as que você espera. Existem algumas coisas que
necessito elucidar, que estão em um imenso e complexo confronto
aqui dentro. — Levo sua mão esquerda sobre o meio do meu peito.
Solto o ar devagar. Beijo sua testa.

— O que quis dizer com “não é que não possa perdoar” e “passar
por cima de tudo”? O que eu fiz para você que foi tão errado? — Meu
coração para.

Ela não estava dormindo? Como... O que você esperava, Jae


Young? Se ela pode se comunicar com o outro mundo, ouvir
dormindo não deve ser nada demais!

As mãos não têm mais força para segurá-la, libertando seus


pulsos, que caem devagar. Seus olhos presos aos meus enxergam
dentro do meu ser. Afasto-me.

— Sobre o que...

— Quando me deixou em casa... Lembro de cada palavra que


saiu da sua boca, Jae. — Os lábios secam e não sou capaz de
formular nenhuma frase inteligível. — Você se referiu a mim e a
Wook. — Tudo em volta gira. — O que quis dizer?

— Eu realmente não...
— Espero que seu irmão não tenha inventado nada a meu
respeito. Eu e ele só existiu, existe e existirá de uma única maneira:
amigos.

Sua frase soa como um desfibrilador, fazendo meu coração voltar


a bater. A luta entre emoção e razão recomeça, mais uma batalha
sangrenta. Aperto as costas contra a parede.

Ela se aproxima até alcançar minha camisa. Segura as pontas do


colarinho com força.

— Não vai abrir a boca. Continua protegendo e colocando seu


irmão à frente de tudo e de todos. Incluindo de você mesmo. Tem
ciência de que ele não faria o mesmo por você, não tem? —
Confirmo com a cabeça. — Se por um acaso pensou em desistir de
mim pelo seu irmão, saiba que eu não o amo, nunca o amei, e não
ficarei com ele, independentemente de você, Park Jae Young! Não
sou um objeto para ser deixada, largada ou dada a outra pessoa! —
Uma lágrima escapa, deslizando pela minha face.

— Lia... Eu nunca a vi como um objeto...

— É exatamente assim, Jae Young. Do contrário, não abriria mão


de mim pelo seu irmão. A menos que você não sinta absolutamente
nada por mim, o que não condiz com seu pedido de perdão, por me
beijar enquanto eu estava inconsciente... — Congelo, pois até meu
cérebro entrou em pane agora. Ela puxa com mais força o colarinho,
até que nossos rostos fiquem próximos. Seu olhar intenso quase me
transforma em pó. — Eu só quero alguém ao meu lado se eu puder
saber disso, caso contrário, volte para a Coreia e esqueça o que me
prometeu. Estou te liberando daquele juramento agora.
Seus olhos transbordam. Ela solta minha camisa, afastando-se.
Vira as costas e sai andando, cada passo mais rápido que o anterior,
até desaparecer.

Deslizo o dorso das mãos no rosto, secando-o. Atiro o paletó para


longe e levo o pé com força até a porta do banheiro. O barulho de
algo se quebrando quando a porta se choca com a parede me faz
despertar.

Recupero as forças.

Algo dentro de mim me impele a correr. Busco pela garota


impetuosa de olhos verdes como um radar. Sigo pelo mesmo
corredor que ela desapareceu. Encontro alguns funcionários
transitando com bandejas — esbarro em uns e outros consigo
desviar. Há ainda aqueles que gritam ou proferem palavras nada
elogiosas. Não a encontro nem paro.

Assim que atravesso a porta, saio do lado oposto ao


estacionamento.

Observo os dois lados, nem sinal dela. Um clarão corta o alto,


seguido pelo estrondoso som de algo se partindo ao meio. Talvez o
céu esteja se abrindo, ou até o seres do outro mundo estão irritados
comigo.

Um pingo de água atinge minha testa.

— Onde se meteu, Elleanor?

Antes de concluir minha pergunta, o céu desaba em água, forte e


pesada. Volto a correr pela calçada.
Os faróis dos carros que seguem no sentido contrário ao meu
quase me cegam, entretanto, graças a essas luzes, consigo ver um
ponto de ônibus e, aproximando-se dele, a silhueta de vestido preto
e cabelos ondulados balançando com o vento. Lia!

Corro ainda mais até alcançá-la.

— Está chovendo e você toda molhada. Venha, eu te levo. —


Pego sua mão. Ela puxa o braço, libertando-se.

— Então me diga a verdade! O que você não pode ignorar? — A


chuva torna-se mais grossa. As gostas escorrem pelo rosto dela,
misturando-se às lágrimas.

— Por favor, Lia.

— Diga agora ou desapareça!

— Eu a vi com Jae Wook no estacionamento da faculdade!


Abraçados como um casal... Ele a beijou. — Ela dá dois passos para
trás. O horror estampado em sua face.

— Como pode ver algo que nunca aconteceu? Seu irmão às


vezes é muito impulsivo, tocando-me sem permissão, mas nunca me
beijou. — Ela se cala e inclina a cabeça para baixo. Quando volta a
me encarar, há sangue em seus olhos. — Você disse que me viu...
Significa que voltou para o Brasil antes. — Balança a cabeça
fechando os olhos. — Sou uma idiota! Isso provavelmente aconteceu
muitas vezes!

Vira as costas, andando para a parada de ônibus. Caminho até


alcançá-la de novo. Paro em sua frente, segurando seus ombros.
— Não é nada do que você está imaginando.

— Não, é provável que seja pior.

— Jae Wook disse que vocês estavam namorando. — Ela me


empurra. As lágrimas aumentam. Elleanor passa as mãos sobre os
próprios braços, aquecendo-se. — Como os vi juntos...

— Chega! — Ela entra em combustão, com as mãos tampando os


ouvidos.

— Você está encharcada, me permita te levar para casa. Se não


quiser me ver depois disso, eu respeitarei. — Ela passa as mãos
pela face, seu semblante antes doce, agora é apenas uma máscara
inexpressiva.

— Não preciso de você. Eu sei me cuidar sozinha, Park Jae


Young.

— Elleanor, não seja criança, ficará doente.

— Onde esteve durante as outras chuvas que eu tomei? Quando


fiquei doente? — Ela fecha os olhos, virando o rosto para o lado. Não
respondo. Não existe justificativa. — A partir de hoje, você e seu
irmão vivam a vida de vocês longe de mim, o que para você não será
nenhuma novidade. Apenas continue como estava.

— Lia, por favor...

— Eu havia decidido lutar, mas você escolheu o contrário quando


não me deu a oportunidade de te contar o meu lado, e não procurou
saber a verdade. — Ela olha para avenida movimentada e sinaliza
com a mão. — Meu ônibus. Adeus, Jae.
Abraça o próprio corpo. Sem olhar para trás, entra no veículo.

— Elleanor! Lia! — Espalmo as mãos na lateral do ônibus


enquanto ele começa a se afastar.

Inclino a cabeça para o alto, deixando que a água lave meu rosto.
Coloco as duas mãos em forma de concha na boca.

— Aish! — Grito alto, sem me importar com os passantes.

Ando pela chuva até o estacionamento. Assim que entro no carro,


arranco, pisando fundo no acelerador, cortando os carros pelo
trânsito que, pelo tardar da hora, é tranquilo. As rodas às vezes
saem da faixa, deslizando nas poças. Só quero ouvir o barulho do
motor.

Não sei como chego em casa, pois não prestei atenção ao GPS.

Abro a porta seguindo direto para a adega. Tiro a primeira garrafa


de vinho que vejo. Abro. Bebo no gargalo.

Subo os degraus com a única companhia que mereço no


momento: a garrafa.

A cada gole, rememoro suas palavras. Cada uma é uma facada a


mais no meu peito.

As malditas lágrimas insistem em continuar escapando.

— Sesang-e! O que fez, Park Jae Young? — O braço escorrega


pela prateleira, varrendo os poucos objetos para o piso, os retratos
seguem para junto dos cacos.
Mais um gole. O peito latejando. Esmurro a parede e vários cortes
se abrem, não o suficiente para mascarar o outro ferimento.

Levo o gargalo da garrafa repetidas vezes à boca, até quase


secar. Os ecos continuam enlouquecendo-me e o reflexo que vejo no
espelho me enoja. Atiro a garrafa contra ele, que se espatifa.

Caio na cama. Cubro a cabeça com o travesseiro. Os ecos


diminuem até desaparecerem...
21

Jae Young

Um som ensurdecedor faz minhas pálpebras se abrirem num


rompante. A claridade me acerta como uma flecha e os olhos se
fecham, instintivamente puxo o lençol até cobrir-me por completo. O
cérebro parece ter crescido e não caber mais no crânio o qual tenho
certeza que se rachou devido à pressão da massa encefálica.

O barulho incessante me lembra um gongo gigante tocando


dentro da cabeça. Tateio em busca da coisa maquiavélica. A mão
bate em algo que cai, o ruído me faz estremecer. Pisco e volto a
procurar nem sei o quê.

A mão toca sobre um objeto retangular de espessura fina que


vibra. Meu celular! O levo para debaixo do lençol. A tela pisca. Toco
no ícone em forma de um relógio. Enfim o silêncio. Programei o
despertador em pleno sábado, wae?

Solto o celular. Abro os braços sobre a cama, só então percebo


todo o meu corpo dolorido. Não me recordo de ter entrado em um
ringue, entretanto acho que apanhei feio!
Abro os olhos bem devagar. A luz os fere. Inspiro e expiro,
acostumando-me com a dor. Curvo o tronco, sentando na cama.

— A luta ocorreu aqui dentro ou passou algum furacão enquanto


dormia? Espero que o restante da casa esteja intacto.

Observo as roupas: camisa branca manchada, calça social preta,


sapatos. Odor impregnado de vinho azedo, tão forte que talvez me
embriague.

A cabeça gira, apoio-a entre as mãos.

— Não foi um pesadelo! — As cenas da noite anterior despontam.

Uma turbina de avião dentro do estômago me impulsiona a correr


até o vaso sanitário. Embora não haja vestígios de um grão de arroz
sequer, meu corpo empurra o líquido ácido para fora. O gosto
amargo chega à boca.

Quando os espasmos cessam, sigo direto para o chuveiro. A água


gelada escorrendo pela pele é revigorante. Contudo, facilita o retorno
da consciência e todas as consequências dela.

“... A partir de hoje, você e seu irmão vivam a vida de vocês longe
de mim, o que para você não será nenhuma novidade. Apenas
continue como estava...”

Cerro os olhos inclinando a cabeça. As mãos movimentam-se,


jogando os cabelos para trás. O ar passa rasgando os pulmões. O
músculo cardíaco pulsa fraco, metade dele nem funciona. Desligo o
chuveiro. Pego a toalha. Seco os fios, descendo pelo peito, braços,
cintura.
“... Eu havia decidido lutar por você, mas você escolheu o
contrário quando não me deu a oportunidade de te contar o meu
lado, quando não procurou saber a verdade... Adeus, Jae...”

— Mwo! O que eu fiz?

Os olhos mergulham em água salobra; queimam; e no momento


que pisco, transbordam como um rio fluindo de encontro ao mar. As
lágrimas descem pelo rosto. Ouço a última batida do coração, que
desfalece de vez.

Os movimentos que executo são completamente mecânicos, pois


nem o cérebro está funcionando. Sou apenas uma máquina, um eco
do que já fui.

— Park Jae Wook... Preciso de uma explicação minimamente


sensata, se é que isso é possível.

Ainda enrolado na toalha, toco sobre seu nome na tela do celular.


Aguardo contando cada toque, até que ele atende.

— Caiu da cama, hyung?

— Ainda não me adaptei completamente ao fuso horário. — Seco


as lágrimas. A dor agora cede espaço para a raiva, no entanto, esse
problema não pode ser resolvido através de uma simples ligação.

— Certo, que tal fechar as cortinas e voltar para a cama? Assim


seu corpo se acostuma com o novo horário.

— Na verdade, eu estou pensando em ir pescar. Aonde íamos


com o pai. — Essa foi a primeira ideia que veio à mente. De qualquer
forma, acredito que é ideal. Estaremos a sós, isolados, ele não
poderá escapar de mim.

— Deixe para outro dia, hyung. Estou exausto. Talvez no próximo


fim de semana.

— Ontem foi um dia difícil para ambos, necessitamos relaxar e


passar um tempo juntos. Afinal, faz anos que não ficamos só nós
dois. — Ele passou o dia cuidando de Ana... E não nos falamos
depois do evento, provavelmente Wook está louco para saber se
encontrei com Elleanor. Ele permanece em silêncio. — Então, aceita
passar o fim de semana com seu hyung?

— Vamos pescar como nos velhos tempos.

— Daqui à uma hora eu passo para te pegar.

Afasto a cortina. O céu começa a ganhar algumas nuvens cinzas.


O clima lá costuma ser um pouco mais fresco do que aqui.

Visto uma calça jeans escura de modelagem mais folgada,


camiseta azul, jaqueta marrom e boné preto. Retiro uma velha capa
de chuva amarela, mais duas opções de roupas e jogo dentro da
mochila.

Pego todos os porta-retratos e os coloco em seus lugares. Junto


os cacos espalhados pelo piso e jogo no lixo do banheiro, que enche
até a borda. Coloco a mochila nas costas e desço a escada.

Sigo direto para a garagem. Atiro a mochila no banco de trás do


carro. Pesquiso um local onde possa encontrar itens para acampar.
Compro sinalizadores, fitas e fósforo.
Seleciono o endereço da minha antiga casa no Bom Retiro na tela
do GPS, guiando o carro até estacionar em frente a velha casa azul,
cuja pintura já não tem mais o mesmo vigor. Todo o resto permanece
como me recordo. Não tenho coragem de entrar. Buzino e aguardo
Wook.

Demora alguns minutos até que ele surge se arrastando


emanando preguiça, vestindo seu jeans desbotado cheio de rasgos,
blusa de moletom vermelha e a mochila pendurada apenas por uma
alça.

Apoiadas na lateral do corpo, varas de pesca e um balde. Ele as


prende sobre o teto do carro.

Abro o porta-malas e Wook deposita o balde. Volta para casa e


retorna com uma caixa térmica vermelha desbotada, que acomoda
junto com as outras tralhas.

Wook entra no carro abrindo a boca, os olhos inchados e uma


contagiante indisposição. Ele escora o rosto sobre o punho cerrado
e, com a mão esquerda, dá um tapa no meu ombro.

— Não imaginei que você ainda apreciasse esse tipo de atividade.


Sabe que lá é repleto de mosquitos, mal pega sinal de celular e só
veremos nossas caras feias.

— Pensei que adorasse pescar com o pai, pelo menos era o que
transparecia quando nos falávamos. — Wook corrige a postura,
recostando a cabeça no banco do carro. Olha para frente. Cruza os
braços.
— Joh-a haess-eo. Só não havia mais motivos para fazê-lo depois
que papai faleceu.

— Então é hora de retomar velhos hábitos de família. Afinal é o


que somos, não é mesmo? — Viro para ele, que se remexe evitando
meu rosto, denotando desconforto.

— Claro, hyung. Por que seria diferente? — Seus lábios se


esticam, mas não é o mesmo riso que costumava ver. Parece
forçado, como um robô obedecendo ao comando dado. Seus olhos
não apresentam o mesmo brilho, é apenas um grande buraco
escuro. Ligo o carro.

— Já que está com tanto sono, aproveite para dormir. Te acordo


quando chegarmos. — Levo a mão sobre sua cabeça, espalhando
seu cabelo, igual a nossa infância... Ao menos no gesto. Por dentro,
uma confusão de sentimentos opostos me atormenta.

Onde foi parar o menino alegre? Wook mudou tanto assim, ou fui
eu que mudei demais? Em que momento nos perdemos como
família? Talvez seja exagero meu... É só um mal-entendido entre nós
três... É possível que ele tenha agido sem pensar, a infantilidade de
sempre...

Respiro fundo e coloco o cinto. Acelero, saindo com o carro. Ele


fecha os olhos. Não sei se está dormindo realmente ou apenas
evitando qualquer conversa.

Apesar do dia nublado, as pessoas estão bem animadas para


deixar a cidade rumo à calmaria do interior, o que nos prende por um
tempo considerável no magnífico engarrafamento. Mesmo após
escaparmos do trânsito pesado, Wook continua dormindo. O trajeto é
silencioso.

Embora seja verão lá fora, aqui o frio prevalece. Até os pelos do


meu braço percebem, pois se arrepiam. Algo dentro de mim pisca
como um alerta.

Tento espantar os pensamentos observando a paisagem, que


alterna entre casas, plantações, pastos e pequenas faixas do que
restou de alguma floresta.

Após duas longas horas, cruzamos a porteira do acampamento:


exatamente como me lembro.

A pequena construção de madeira abriga a recepção simples de


decoração rústica. Móveis, também de madeira, exalam cheiro de
mofo. O entorno rodeado por árvores altas de folhas densas.

Pego a chave do último chalé, o mesmo em que nos


hospedávamos quando crianças. Sigo com o carro até a frente dele.
Só acordo Wook quando estaciono. Ele se espreguiça, seu
semblante está um pouco mais amigável.

Descarregamos as coisas, e enquanto ele guarda os frios e as


bebidas que trouxe, aproveito para preparar as iscas fora da cabana.
Ali, sozinho, aprecio cada memória que me visita sem permissão.

Abeoji e tio Lucio rindo enquanto atiram a linha com a isca no


meio da água, ambos com coletes laranja e suas latas de cerveja ao
lado do banquinho de madeira.
Eu e Wook sentados cada um de um lado do velho Jung Hee,
seguindo suas orientações sobre como lançar a isca atentamente.

Se fisgássemos um peixe, ganhávamos um carinho na cabeça e


um grande sorriso, que só aparecia nesses pequenos momentos.

Lia correndo de um lado para o outro chamando a atenção para


que fôssemos brincar com ela, o que eu sempre acabava fazendo.

Um sorriso escapa dos meus lábios e o coração parece ganhar


um pequeno sopro de vida, voltando a bater lentamente, tentado
juntar os pedaços.

Uma mão bate na aba do meu boné, derrubando-o no chão. Olho


para o lado e meu Namdongsaeng está lá, rindo. Não é um riso
genuinamente natural nem totalmente forçado. Provavelmente está
cansado... é só isso... não é?

— Ainda sabe como preparar as varas?

— Com perfeição. — Ergo ambas, satisfeito com meu trabalho.

— Vamos?

Ele pega a caixa térmica e sai caminhando em direção à margem


do rio, que fica a poucos metros da cabana. Carrego as varas e o
balde de iscas vivas. Não trouxemos banquinhos, como abeoji faria.
Sentamos no solo com as pernas dobradas.

Jae Wook quebra o silêncio, cantando algo desconhecido para


mim.

— Você sabe que canta mal? — Ele bate o ombro no meu.


— Tanto quanto você. — Rio.

— Ontem não nos falamos. Como foi seu dia? E... Ana? —
Observo a leve ondulação sobre a água causada pelo vento fraco.

— Médicos, hospital, exames...

— E?

— Ambos os especialistas confirmaram o diagnóstico.


Infelizmente é mesmo Alzheimer. — Ele mantém o rosto fixo à frente.
Seu peito sobe e desce lentamente. A glote se mexe para a
passagem da saliva. Toco seu ombro, mantendo a mão lá por um
tempo.

— Sinto muito.

— Obrigado, hyung. Ana é forte, ela conseguirá lidar com tudo. —


Ana? Mwo? Não a chamou de mãe? Pisco. Solto o ar pela boca de
vagar.

— Não será assim tão fácil como acredita, Jae Wook. Estou aqui
para ajudar vocês. Deveres de mais velho.

Meu irmão costumava ser muito passional, principalmente no que


se relacionava a Ana. Essa reação foi inesperada. Ele não está
gritando, nem amaldiçoando o mundo, sequer reclamou sobre o
quão pesada a vida dele se tornará, ou que Ana é muito jovem ainda.

Não o reconheço. Ambos mudamos, mas é possível alguém


perder totalmente sua essência?
Wook abre a caixa térmica cheia de gelo. Retira uma lata de
cerveja e me oferece. Só de olhar o estômago reclama.

— Obrigado, ontem foi o suficiente.

— Se está de ressaca, deve beber mais. Não há nada melhor


para curar.

— Nunca ouvi tal absurdo. — Ele ri e abre a lata, sorvendo um


gole. Desvio a cabeça para a água. Engancho a isca no anzol.
Inclino a vara para trás ganhando a distância necessária para
impulsionar e atirar a linha na água. Apesar de destreinado até que
atinjo uma boa distância, chegando quase ao meio do rio.

Wook se levanta para jogar a isca dele e, claro, mais longe que a
minha. Balanço a cabeça, recordando o quanto ele odiava perder.
Competitivo. Ele me encara piscando.

— Trouxe soju, se preferir.

— Andwae! Talvez amanhã. Temos o fim de semana todo.

Passamos um tempo em silêncio, contando os peixes para ver


quem pegava mais — até parece que conseguimos muita coisa, os
peixes claramente são mais espertos do que nós.

Wook começa a lembrar das vezes que viemos para cá, até
chegar na última, quando Elleanor caiu e machucou o pé.

Elleanor...

— Falando nela... Como foi ontem? — Ele se segurou demais. Só


agora resolveu perguntar. Mas já que ele tocou no assunto, é hora de
esclarecer algumas coisas.

— Normal, como qualquer evento, tirando o fato de terem me


confundido com uma taça de vinho. Perdi um dos meus blazers
favoritos.

— Não reclame, você tem muitos. Não fará falta.

— Não. Mas eu realmente gostava daquela peça.

— Elle estava lá? — Ele me encara com olhos inexpressivos.

— Sim. — Balanço a cabeça, desviando para a água.

— Vocês conversaram?

— Ambos estávamos trabalhando. — Vamos ver quanto tempo


ele leva para perder a paciência.

— Não ficaram sozinhos em nenhum momento?

— Ye, ficamos. — Ele paralisa, apenas seu peito se movimenta


em alta velocidade.

— Mwo?... Que... Fizeram? Sobre o que conversaram? — Wook


solta a vara, que escorrega para dentro da água. Ele ingere uma boa
quantidade de cerveja de uma vez. Minhas entranhas se reviram.

— Ela tentou me ajudar com o blazer, mas não tinha salvação. —


Mantenho os olhos fixos nele, que se assemelha a um vulcão
entrando em erupção.

— Só isso? — Posiciono a vara com cuidado ao meu lado.


Massageio o pescoço.
— Conversamos por um longo tempo.

— Sobre o quê?

— Vocês dois. — Ele aperta a lata na mão, amassando e


derramando o restante do líquido sobre suas roupas. Algumas gotas
salpicam a pele do seu rosto, ele a atira para longe.

— Que direito pensa que tem para falar sobre o relacionamento


de outras pessoas? — Põe-se de pé apontando o dedo para mim.
Ergo-me. Sou alguns centímetros mais alto do que ele, embora isso
não tenha importância: ele me deve respeito.

— Não existe relacionamento entre você e ela, além de amizade.

— Isso é temporário. Ela voltará para mim. — Estico os lábios,


segurando a vontade de socá-lo em respeito à palavra que dei a
minha mãe.

— Vocês nunca namoraram. — Wook leva as mãos para a


cintura. Morde os lábios. As veias do seu pescoço saltam.

Embora meu coração esteja sangrando por confirmar o que


Elleanor me disse, e por desejar que tudo não passasse de um mal-
entendido, também está pulsando com força, arrebentando o peito, o
sangue fluindo por todo o corpo com muita velocidade e a mente
lutando contra o desejo crescente de dar a lição que Jae Wook
nunca recebeu.

— Por que mentiu? Wea?

— Você já havia reconstruído sua vida na Coreia. E eu sempre


amei a Elle. Além do mais, foi você que nos viu no estacionamento.
— Eu vi de longe e me confundi. Elleanor afirmou que nunca
aconteceu nada, nem mesmo um simples beijo, e que nunca
acontecerá.

— Acredita na palavra dela? Você viu com seus próprios olhos.

— Aniyô, eu confundi e você se aproveitou disso.

— Nos negócios e no amor devemos agarrar as oportunidades.

— Desgraçado! — Nem mesmo pensar em minha mãe foi


suficiente para me conter. Apenas fechei o punho e atingi sua
mandíbula do lado direito.

Wook levantou a cabeça, cuspiu o sangue e gargalhou. Eu pensei


que ele me atingiria de volta, mas ele apenas riu, como se aquilo
fosse uma piada.

— Você sempre foi patético, hyung! — Esfrega a palma da mão


limpando a face. — Tão fácil de convencer! Era só choramingar um
pouco, mostrar os olhos tristes e você simplesmente cedia ao que eu
queria. — Uma náusea forte quase me faz vomitar. A cabeça gira. —
Eu sabia que chegaria naquele dia, graças a Lee Hye Ji, que ligou
avisando. E, previsível como sempre, você apareceu na faculdade.
Eu o vi chegar. Parei encostado à árvore e aguardei Elleanor
aparecer. Depois, só caminhei até ela e a cumprimentei; o resto ficou
a cargo da sua imaginação.

— Como foi capaz de uma coisa dessas comigo?

— Não fiz nada demais. Apenas mostrei o que eu queria e te pedi.


Você entregou porque quis. Aliás, sempre me deu tudo. Você é fraco,
Jae Young, não merece status de sucessor. Como Jung Hee também
nunca mereceu. Você perdeu Elleanor ao cumprir seu dever de filho,
portanto não a procure mais. — Paraliso por completo, sentindo um
gosto amargo na boca. — Você não faz bem a ela. Elleanor precisa
de um homem de verdade. E agora ela sabe disso. Volte para a
Coreia, hyung. Mais cedo ou mais tarde, Elle entenderá que é minha.
Não há outra opção para ela.

As palavras dele surtem um impacto tão grande quanto ser


atingido por um míssil. Milhares de imagens da nossa infância
passam diante dos meus olhos, e em todas elas eu estou sempre
realizando seus desejos, não importando se aquilo era algo que me
incomodava ou não gostava.

Eu sempre o protegi... Esse foi o meu erro... O acostumei a ser o


primeiro, a ter tudo o que queria.

E, como um míssil, rápido, inesperado e avassalador, me dou


conta de que Jae Wook não se importa com os sentimentos dos
outros, desde que ele esteja bem. Nem mesmo com Ana, que ele
afirma amar como mãe... Ciente das necessidades dela e de como a
doença irá progredir, sua preocupação é conseguir o brinquedo que
tanto deseja a qualquer custo, mesmo que não esteja ao seu
alcance.

Respiro profundamente, ficando de frente para ele. Seus olhos


sobressaltados e o semblante carregado de razão só confirmam o
que já sei.

A voz de Elleanor ressoa na minha mente. Eu preciso educá-lo.


Resgatá-lo antes que seja tarde demais.
— Você tem razão, Park Jae Wook. Eu e abeoji o mimamos
demais. Mas esse erro será reparado. Começando por Elleanor. Ela
é um ser humano e seus sentimentos não podem ser controlados por
você. Estando aqui ou não, ela nunca o viu como homem, nem verá.

— Não seja ridículo! Eu sou melhor e mais esperto do que você.


— Rio sem a menor vontade.

— Eu vim para ficar. Não abrirei mão de absolutamente nada para


você, nunca mais. É hora de crescer, Park Jae Wook. Estou
assumindo a posição que é minha por direito. A partir de hoje, você
seguirá as minhas regras.

— Acredita mesmo que esse seu discurso vai mudar o mundo? —


Ri debochado.

— Você ainda é um coreano, e como tal, precisa se readequar a


nossa cultura. Sou o mais velho e o sucessor, a quem você deve
obediência. Eu tenho o controle financeiro não apenas da agência,
mas das empresas Park. Não havia te contado ainda, mas antes de
viajar, assinei toda documentação que Lee Hye Ji me passou
referente à sucessão.

— Você não tem coragem, seu coração não deixa. — Sorri torto e
sua voz vacila, como uma criança amedrontada.

— Vá para a cabana, daqui a pouco partiremos de volta, há muito


o que ser preparado.

— Hyung, cuidado com o que pensa em fazer. Não sou você, que
aceita tudo calado.
— Não temos mais nada a dizer um ao outro. A decisão já foi
tomada e sacramentada.

Dou as costas sob os murmúrios indignados de um menino


birrento acostumado a receber apenas sim. Sigo em direção à trilha.

O ar está excessivamente úmido, indício de que logo começará a


chover. Olho para o alto; as copas das árvores não permitem
enxergar a cor do céu, mas não me importo, um pouco de chuva fará
bem, talvez a água leve embora todo esse peso sobre meus
ombros... Paz é tudo o que necessito para organizar emoção e
razão.

Observo os pés cruzarem a frente um do outro, e a cada piscada


dos olhos, é como se eu viajasse no tempo, indo e voltando para a
última vez em que pisei aqui. Sinto a mão pequena de Elleanor
envolvendo a minha. O peito dói.

— Aish!

Solto o ar pela boca, socando o peito com o punho fechado. O


cheiro dela invade meu nariz; se estivesse do meu lado, talvez não
fosse tão intenso... Os olhos queimam a cada nova imagem dela
mudando o passo comigo.

As flores estão abertas, semelhante ao passado; os lábios se


abrem formando um sorriso. Vejo-a admirando uma pequena
borboleta, encantada com suas cores. Daebak! Meu coração bate
tão forte quanto naquele momento. E fica mais evidente o quanto eu
gosto dela, o quanto eu sempre gostei.
— Vou me redimir com você, Lia! Nem que seja a última coisa que
eu faça nessa vida. É minha vez de ir até você!

Acelero o passo e logo chego à clareira, acompanhado da forte


presença dela em mim. A garotinha me olhando triste, com fome.
Observo de longe a forma como ela se mexia, segurando a barra do
vestido, os beijos dados de forma inesperada na minha face...

Ela sempre vinha até mim. Mesmo que eu não estivesse ao seu
alcance, ficava na ponta dos pés sem se importar com o esforço...

— Senti tanto a sua falta, garotinha dos olhos lindos!

Caminho até onde sua imagem infantil está, estico o braço para
alcançá-la. Ela sorri e desaparece.

Olho para o céu. As nuvens escuras movimentam-se


rapidamente. O vento começa a soprar.

— Omma! Mianê, mas eu não posso continuar a ser


condescendente com Jae Wook. Ele se transformou em algo ruim.
Vou pará-lo e torná-lo um homem de verdade. Serei impiedoso nesse
momento, como Lee Hye Ji. É possível que ele chore, se frustre, me
odeie... Não importa, desde que aprenda a respeitar as pessoas e ter
limites.

Dois pingos de chuva caem no meu rosto e me arrepio com a


temperatura da água. Sorrio, grato pelo momento. Mais gotas caem.
Abro os braços, permitindo que elas me toquem. Um gostinho de
liberdade.

— Hora de voltar e levar a fera embora.


Embrenho-me na mata outra vez, andando apressado. A chuva
engrossa e seus pingos parecem pedras sobre a pele. O solo
encharcado, provavelmente por outra chuva recente, torna-se
escorregadio, forçando-me a diminuir os passos.

A pele se ouriça, as pernas amolecem e o estômago gela. Assim


que olho para o lado, dou de cara com o coração malfeito esculpido
no tronco da velha árvore. Saio alguns passos da trilha, seguindo na
direção dele. Ao me aproximar, perco o equilíbrio, como se estivesse
sendo impulsionado para a frente.

Não sinto o chão; o pé afunda. Jogo o corpo para o outro lado,


mas o pé esquerdo desliza. A pele do rosto se rompe. Ouço algo se
quebrando, como os objetos em meu quarto. Uma pontada aguda na
cabeça. A visão fica turva.

Ao longe, observo a ponta do que parece ser um sapato preto;


minha bota deve ter saído do pé. Olho para cima; o coração está
bem ali. Tento esticar o braço, mas não consigo.

O coração aos poucos desacelera. As pernas ficam cada vez mais


dormentes. A dor aguda na cabeça aumenta de maneira
exponencial.

Respirar dói... O oxigênio escasso me deixa fraco. Tudo vai


desaparecendo... Apagando...
22

Elleanor

Espreguiço-me, observando a névoa sobre a copa das árvores,


cujas folhas são de um verde bem escuro. Bocejo e inspiro o ar
profunda e preguiçosamente. Ar puro.

Pego a xícara de café e levo à boca. O gosto não é tão amargo


como pensei. Ouço barulho de risos infantis. Viro para trás dentro da
velha cabana de madeira: Jae Young e Wook correm atrás um do
outro. Sorrio. Eles passam por mim em direção à porta, quase me
atropelando.

De repente, uma menina de aproximadamente seis anos, com seu


vestido vermelho, cabelos longos ondulados, sardas na face
próximas aos olhos verdes, se aproxima rindo. Estende a mão até
seus dedos me tocarem, causando arrepios.

Ela me encara e seus dedos envolvem minha mão por completo.


Balança a cabeça para cima e para baixo, puxa e me guia até
pararmos diante de um espelho com as pontas trincadas e
escurecidas.
A garotinha aponta para a imagem no espelho: a semelhança
entre nós é inegável. Toco minha face e ela repete. Sorrio achando
graça e ela imita outra vez. Ergo a perna direita, ela também. Essa
brincadeira não tem graça! Por alguma razão meu coração acelera.

Ela sacode minha blusa e quando a encaro seu corpo se


expande, ficando do meu tamanho, mas as duas imagens refletidas
no espelho são de duas crianças que de repente se fundem: nos
tornamos uma só.

O riso dos garotos me atrai para fora da cabana. Eles ainda estão
correndo. Jae para assim que me vê e caminha em minha direção.
Wook esperneia e avança para cima do irmão, empurra Jae, que
desequilibra, dando um passo para trás. Wook se posiciona entre
Jae e eu.

— Você é minha! — Wook se vira para mim com olhos vermelhos


esbugalhados, braços cruzados. — Vai se casar apenas comigo, ou
não será de mais ninguém!

Sua voz infantil me causa riso, entretanto, seu semblante faz meu
âmago se comprimir e a boca secar. Wook começa a chorar e corre
para dentro da cabana batendo a porta.

Jae se aproxima colocando a mochila em suas costas.

— Não tenha medo, eu cuidarei dele depois. Vamos? — Oferece


sua mão como se pedisse uma dança. — Você queria caminhar,
lembra?

Pouso minha mão sobre a dele. Jae curva os dedos, envolvendo-


a. Com delicadeza, me guia pela trilha.
O calor da sua mão na minha aquece meu coração. Ele é apenas
um menino com jeito de adulto, mas confio nele de tal maneira, que
nem com meu pai estaria tão calma.

A umidade do ar deixa minha pele pegajosa. Inclino para o alto,


mas as folhas das árvores não permitem ver o céu. Não me importo,
apenas o sigo pela trilha.

Estranhamente, observo nossos pés cruzarem na frente um do


outro em câmera lenta. Os olhos piscam e eu volto a ser criança
como ele. Piscam novamente e transformo-me em adulta. É assim
por todo o caminho.

O coração lateja com força, chegando a dificultar a respiração.

A brisa bate nos cabelos dele e seu cheiro toma conta de todo o
meu ser. Os olhos marejam e lágrimas caem. A cada passo, mais
apertado o peito fica.

As flores estão abertas como na última vez em que estivemos


juntos aqui. O passado ao meu lado...

A doce lembrança leva meus lábios a se moverem até bem perto


da orelha.

A pequena borboleta de cores brilhantes capta minha atenção.


Meu corpo toma mais consciência da presença dele. Inclino a cabeça
em sua direção e agora é o Jae adulto que está ao meu lado, e eu
sou apenas uma garotinha.

Meu coração pulsa na garganta e me sinto exatamente como


naquele dia do passado. A certeza de que eu já o amava é nítida,
quase posso tocá-la.

— O que está acontecendo? Por que estamos aqui?

Jae aperta minha mão e começa a correr, em pouco tempo


chegamos à clareira. Ele me solta e caminha até o centro. Lá, se
torna apenas o menino de olhos puxados que sorriem.

Abruptamente seus olhos se tornam tão tristes... Eu quero ir até


ele, mas as pernas não se movem.

Tudo a nossa volta começa a murchar e o verde dá lugar ao


cinza. As folhas caem no chão, assim como os galhos em volta. O
solo seca até formar rachaduras...

— Não... Rachaduras não... Não pode ser!

— Senti tanto a sua falta, garotinha dos olhos lindos! — Ele anda
em minha direção esticando o braço, entretanto, antes que chegue
até mim, seus passos se interrompem.

Jae sorri tão triste! Parece não me enxergar. Inclina a cabeça para
o alto. Seus lábios se mexem, mas não ouço o que ele diz. Uma leve
chuva despenca das nuvens escuras. Ele se diverte, enquanto me
esforço para alcançá-lo. Sem sucesso. As rachaduras do solo
aumentam. Ele não nota.

— Jae, corre. Sai daí!

Ele não se mexe, parece não me ouvir. O vento uiva com força e
raios cortam o céu. Minhas mãos instintivamente vão para as orelhas
a espera do rugido, que não vem.
Eu me abaixo e, com a ajuda das mãos, tento soltar meus pés.
Nada acontece. Mãos e pernas tremulam. Jae está de braços
abertos, como se esperasse por algo. Pingos me atingem; eu sacudo
o corpo com força, ele sorri.

Mais gotas grossas e violentas. Levanto, empregando robustez


nos movimentos e enfim a perna direita se solta. Jae se apressa e
entra na mata.

— Gael! Ajude-me! Me solta!

O que quer que fosse que me mantinha presa afrouxa e eu corro


a procura de Jae Young.

A chuva aumenta ainda mais, atingindo a pele com a força de


granizos. Escorrego na lama e caio. Não o vejo mais.

Apoio as mãos no chão e volto a me movimentar apressada,


cambaleando no solo encharcado. Busco por ele em todos os lados.

De repente, um estrondo: as rachaduras surgem no meio das


árvores. O chão começa a se abrir, engolindo tudo ao redor.

Embora mal consiga me equilibrar, corro o máximo que consigo. O


ar nem entra direito e já está saindo. Salto os buracos que se
formam sob os pés.

Ao virar a cabeça para o lado, encontro Jae de costas,


observando uma árvore a esquerda, hipnotizado.

Me aproximo e entendo o motivo: é a nossa árvore.


— Jae, não é hora de ficar suspirando pelo passado! Corre! — Ele
não obedece.

Outro estrondo e todo o chão se abre. Uma sombra gigante salta


para fora do buraco, abrindo os braços em direção a Jae.

Ele permanece imóvel, como uma estátua.

— Jae Young! Jae Young! Jae! — Meus joelhos se dobram


enquanto as mãos agarram o cabelo pelas laterais da cabeça.

A sombra o traga junto com as árvores em volta para dentro do


abismo.

— Não! Não posso permitir!

Respiro fundo e, mesmo sem sentir meu corpo direito, corro e


salto rumo a escuridão do buraco.

Os cabelos sobem impulsionados pela força do vento. Meus


ossos são esmagados pela pressão, causando uma dor aguda. Eu
me preparo para o impacto, que não vem; em seu lugar, dedos
envolvem meus pulsos e rapidamente me elevam.

— Me solta! Gael! Não! Me deixa ir com ele!

— Sinto muito, Elle. Mas não posso compactuar com isso.

A claridade da velha conhecida sala branca e o par de violetas


estão sobre mim de novo.

Minhas forças me abandonam de vez e assim que ele libera meus


pulsos, eu desabo. Isy também está lá. Fecho os olhos, tomada por
uma náusea insuportável. Junto com ela, toda a conversa esquecida.
— O que fez comigo, Isy? — Lágrimas correm livremente pelo
meu rosto.

— O que me implorou. — Um peso invisível me massacra.

— Não devia ter me ouvido! Talvez... Ele... — Meu olhar se alterna


de Isy para Gael. — O que aconteceu com Jae? Ou não aconteceu
ainda? — Gael toca meus ombros. Suas órbitas sempre tão cheias
de vida estão apagadas.

— Jae Young precisa de você...

— Não... — Balanço a cabeça negativamente. Ele não pode ter


partido agora. Não! Meu coração bate fraco. Todo o meu corpo
formiga, anestesiado. — Não... Diz que é um engano! — Ele não
abre a boca. Seguro seus braços, chacoalhando com o pouco de
força que ainda me resta. — Eu te pedi, Gael... Supliquei...

— Elleanor! — Isy pega minhas mãos, afastando-me de Gael.


Encosta sua testa na minha elevando as pálpebras o máximo
possível. — Não temos muito tempo. Estou velha para isso. Apenas
preste atenção aos detalhes e nos encontre logo.

— O quê? Já estou com vocês.

— Elleanor, o nome dele ainda não apareceu na lista de


coletados. Talvez ainda haja tempo.

— Não está na lista... Não entendo. O que está acontecendo?

— Acorde e seja rápida. Não demore, eu não suporto por muito


tempo, estou quase sem forças.
Isy desaparece. Gael levanta as sobrancelhas e toca minha testa
com a ponta do indicador. Tudo fica escuro. O ar não passa. Eu
puxo, e nada. De novo...

— Uff... Uff...

Levanto as pálpebras, o cenário é familiar. Estou em casa.

Sento na cama tentando normalizar a respiração. Quando


recupero o controle, ponho-me de pé, contudo, nenhuma célula do
meu corpo, nem minha alma, estavam preparados para o que meus
olhos enxergam.

As lágrimas descem descontroladas pela face. Dobro meu corpo


até as mãos atingirem os joelhos.

— Não! Não!
23

Jae Young

A cor verde é a primeira coisa que enxergo e, aos poucos, ganha


formas. Folhas, muitas, presas a grossos e altos galhos; água
escorre por elas. Os troncos das árvores são de um marrom bem
escuro.

Inclino a cabeça para o alto. Está chovendo, e não é apenas um


chuvisco. O céu parece lamentar alguma coisa...

Apesar de sentir cada gota de água que bate contra o meu corpo,
ela não transpassa o tecido. No entanto, ouço nítida e claramente o
som dos pingos batendo contra minha pele.

Meu olfato capta inúmeros aromas de maneira assustadora.


Distingo cada um deles tão perfeitamente quanto um degustador de
vinhos consegue diferenciar as notas e buquês do líquido.

Um deles se destaca mais que os outros. Ferruginoso. Sangue.

Analiso ao redor e, a princípio, não encontro nada entre as


árvores e vegetação rasteira que compõe aquela pequena floresta.
Ao olhar para baixo, observo que meus pés não tocam o chão;
pisco algumas vezes. Estou suspenso no ar. Será que é um sonho
ou delírio? Eu bebi? Esfrego os olhos, nenhuma mudança. Dou tapas
na face, a mesma coisa. Continuo focando meus pés.

Subitamente, um corpo surge diante de mim. Seu tórax está


escorado em uma árvore, como se a envolvesse. Há uma grande
mancha de tonalidade vermelho escuro sobre parte do abdômen do
lado esquerdo. Fios de cabelos negros cobrem parcialmente o rosto,
que está deitado com a face direita na lama.

Chego mais perto, observando atentamente aquele homem


imóvel.

Circundando seu crânio, há um líquido viscoso escuro. Me inclino


sobre ele e o odor se torna quase insuportável, mais sangue.
Entretanto, nem a imagem nem o cheiro causam estranheza ao meu
estômago.

Ao que tudo indica, esta parte do corpo também está bastante


lesionada, a quantidade de sangue no chão é assombrosa.

Algo neste homem me atrai como um imã. Passo a mão pelo


cabelo, estreito os olhos focando melhor os detalhes. Seu rosto me é
familiar. As vestes são muito semelhantes às minhas. Analiso meu
corpo: a mesma jaqueta marrom... Camiseta azul, calça jeans escura
e botas pretas. Semelhante? Não! Idêntica!

Toco com o polegar sobre minha boca, o volume dos meus lábios
também é igual. Inclino um pouco mais para conseguir ver melhor o
rosto dele.
Pisco. Soco meu próprio peito. Maldo andwae!

Fecho os olhos com força. Abro. Encaro novamente o monte de


carne e ossos. Isto não está acontecendo de verdade! Não pode!
Deve ser um pesadelo.

Concentro-me em acordar, imagino minha cama confortável. Nada


acontece. Sou eu mesmo jazido nesse chão! Mas como vim parar
aqui?

— Socorro! Socorro! Alguém, por favor? Tem alguém aqui? Ei! Por
favor? Por favor?

Puxo a respiração cansada, embora o ar não entre nem saia.


Procuro manter a calma de alguma forma, apesar de não reconhecer
as sensações e reações que estou vivendo nesse momento.

Examino todo o ambiente, e mesmo sem me virar, a visão alcança


360º, algo que é humanamente impossível.

Não avisto ninguém por perto nem encontro indícios de que outras
pessoas passaram por aqui recentemente, ou qualquer criatura viva
além das plantas.

Tento tocar meu corpo inerte no chão, mas as mãos atravessam.


Não há movimentação no peito, o que significa que não estou
respirando, talvez esse seja o motivo de não sentir o ar passar.

Uma sirene barulhenta se acende e grita na minha mente. Eu


morri!

— Andwae! Não posso morrer agora! Eu sou jovem, há muitas


coisas que quero e preciso fazer. Meu irmão! Se eu for agora, quem
cuidará dele? E Elleanor? Eu prometi que os protegeria! — Ando de
um lado para o outro agitando a cabeça e os braços. Passo as mãos
pelos cabelos. — O que eu faço? — Pressiono a testa com a ponta
dos dedos. — Ressuscitação cardiopulmonar...

Ajoelho diante do meu corpo. Posiciono uma mão sobre a outra e


inicio os movimentos para massagear o músculo cardíaco — as
mãos atravessam a massa corporal.

— Não posso desistir! — Aperto o nariz de leve, tentando não


transpassar-me dessa vez. Cubro meus lábios com a boca, assopro,
ou melhor, realizo o movimento, mas não sai nada. — O que eu
esperava? Eu sou apenas um fantasma agora...

Concentro-me mais. Nada.

Experimento entrar no corpo para ver se eu volto. É


desconfortável, igual tentar usar uma roupa que não serve mais.
Persisto, mas o próprio corpo me expulsa, como se não me quisesse
ali. Ainda assim, prossigo desesperadamente, empregando todo tipo
de esforço para viver.

Não sei ao certo há quanto tempo estou aqui, minha noção em


relação a esse aspecto é zero. Ora tudo passa muito depressa, ora
lento demais.

Paro ao meu lado, tentando assimilar o que aconteceu. Nenhuma


lembrança do motivo pelo qual vim para este lugar, nem de que lugar
é esse ou como morri. Morri... Pronunciar essa palavra soa estranho
e horripilante.
Estamos acostumados a falar da morte de outra pessoa, algo que
parece distante de nós e irreal, como se nunca fosse nos acontecer,
e embora este seja o meu real estado, continua não factível,
impossível! Ao menos por enquanto.

Fecho os olhos.

— O que acontecerá agora? Para onde vou?

Um aroma desconhecido impregna todo o local e,


espantosamente, me acalma assim que invade o que deveriam ser
meus pulmões. Será que é uma alucinação ou ilusão
fantasmagórica?

No mesmo instante, uma luz forte desponta na minha frente,


formando algo semelhante a um túnel, desses que frequentemente
encontramos nas vias em grandes cidades, porém menor, adequado
ao tamanho de uma pessoa.

Sua força me puxa, me suga. Apesar de não querer entrar lá, sou
incapaz de resistir, tão intenso seu empuxo. Preparado ou não, esse
deve ser o momento de prosseguir rumo à eternidade. Pelo jeito, não
existe escolha...

A princípio, a explicação que me deram sobre a morte se mostra


parcialmente real, exceto pelo ceifador. Ele não deveria me buscar?
Acho que meu destino é permanecer só, até mesmo na eternidade...

Já que não há mais nada que possa fazer a respeito, curvo-me


diante do meu próprio corpo, faço uma prece implorando pela
aceitação e, quem sabe, para que possa reencontrar meus pais,
mesmo que brevemente, se é que vou para o mesmo lugar que
eles...

Passo a mão pela minha face esquerda. Ajeito a postura e marcho


em direção à luz, que fica cada vez mais intensa, impossibilitando
enxergar um palmo adiante.

Não sinto nada sob meus pés, não sei se estou realmente me
movimentando. A expressão “correr sem sair do lugar” de repente faz
sentido para mim.

Então, subitamente, como se cruzasse uma fronteira, volto a


enxergar e a ter a sensação de pisar em solo firme.

O lugar é claro, lembra uma sala de espera de um consultório


médico, no entanto, ao olhar para cima não há telhado, é
completamente aberto. O céu é azul claro, mais claro do que de
costume. Não existem nuvens, apenas o brilho translúcido de algo
que lembra o sol.

Também não há anjos voando como imaginei, nem demônios...


Nem portões imensos de ferro, ou móveis feito de nuvens. Só um
grande vazio.

— Olá? Será que tem algum ser para me dizer o que devo fazer?
— Silêncio. — Ei! Anjos? Almas? Guardião do céu? Quem quer que
seja, gostaria de saber o que faço agora. Para onde vou?

— Você é bem insistente. — Uma voz, debochada e gentil ao


mesmo tempo, ecoa por todo lugar.
— Você é um cheonsa? Deus? Outro fantasma? — Giro a procura
do dono da voz.

Uma figura masculina se materializa instantaneamente na minha


frente. Olhos roxos e cheiro de alguma flor... Ele aparenta ser da
minha idade. Veste um terno branco com corte... Bem, não sei como
descrever, pois nunca vi nada parecido com isto. Hum... O estilista
do céu é criativo.

— Você não é nem um pouco como o descrevem. Nunca imaginei


que Deus teria uma aparência tão... Jovem e moderna!?

Apoio o queixo na mão direita, analisando-o detalhadamente.

Ele estala os dedos e uma poltrona branca surge, onde se senta


cruzando as pernas rindo ou sorrindo... Não sou capaz de discernir
com exatidão.

— Não sou o Criador, nem cheonsa. Não no conceito que você


está acostumado. Meu nome é Gael. — Abre as mãos com as
palmas para cima, gesticulando amplamente. — Em algumas
culturas, sou conhecido pelo nome de ceifador, em outras, anjo da
morte, ou apenas morte, entre outros apelidos engraçados. Mas, na
verdade, sou apenas um simples recepcionista da fronteira dos
mundos. — Estica os lábios mostrando dentes brancos e olhos
brilhantes.

— E você não deveria coletar almas?

— Ah, velhas lendas! Não busco, coleto ou apareço no leito de


morte de nenhum ser. Minha função é recebê-los, verificar a vida de
vocês e encaminhá-los para seu destino final.
— Não foi o que ouvi a seu respeito. E só existe você para
receber todos os mortos?

— Na verdade, somos muitos, mas cada um tem um território


delimitado, como uma espécie de região.

— Gael? Recepcionista? — Coço o queixo. — Existe a


possibilidade de ter ocorrido um equívoco? Você poderia reverter o
que aconteceu? Mesmo que seja por pouco tempo... Eu só preciso
me despedir de alguém muito importante e me desculpar...

— Todos que chegam aqui pedem isso. Contudo, eu não tenho


esse poder, apenas recebo as almas. — O tal ceifador de voz mansa
não demonstra nenhuma empatia.

— Quero apenas corrigir meus erros. Depois pode me trazer de


volta... Matar de novo, ou seja lá qual a nomenclatura correta.

— Primeiro, permita-me consultar sua situação.

Ele estala os dedos novamente e outra poltrona branca surge.


Aponta para ela. Sento-me lentamente, encostando parte por parte
do meu cor... da minha alma, até recostar-me no encosto. Não
atravessei o objeto!?

— Aqui tudo é tangível e sensível a você, adequado ao seu


estado molecular atual, ou melhor, à sua energia, já que não há mais
matéria presente. — Meus olhos se abrem e o queixo vai ao chão.

— Você leu minha mente?

— Sua consciência! — Me corrige. —Sim. Faz parte das minhas


habilidades para desempenhar o meu papel. — diz como se isso
fosse algo comum. Talvez seja mesmo nesse outro mundo.

— Seu nome, por favor?

— Pa... — Ele levanta a mão, me interrompendo.

— Já sei. Está tudo aqui. — Vira a mão para cima e uma espécie
de holograma meu surge com muitas anotações, ou rabiscos —
provavelmente é a língua dos anjos.

— Como você faz isso? — Inclino-me para a frente incrédulo.

— Só mais uma habilidade. — Ergue os ombros e foca na


imagem sobre sua mão, o semblante sem nenhuma emoção, como
um boneco de cera inacabado.

— Você lembra o que aconteceu que o trouxe até aqui?

Fecho os olhos procurando por algo.

— Não...

Sinto a mão dele sobre minha testa. Milhares de imagens brotam


de uma vez, rasgando-me ao meio.

— Recorda-se do acidente agora? — Abaixo a cabeça tonto,


anestesiado e, acho, tentando aceitar...

— Sabe por que estava lá? E suas decisões? — A voz não sai,
não quero falar. Eu só quero uma chance... Só mais uma, Deus. Por
favor! Nem que seja apenas por mais um ano... Só mais uma,
Criador! Gael me encara com um largo sorriso no rosto. Não é como
deboche, soa mais como satisfação. Não me incomodo. — Constam
algumas sérias pendências no seu livro.
— Livro? Que livro?

— Livro da vida.

Passo as duas mãos na cabeça, inclino o tronco para frente,


colocando os cotovelos sobre os joelhos.

— Isso significa que vou para o inferno? Posso ver meus pais
antes? Rapidamente, só uma última vez?

Ele gargalha com vontade.

— Não é o momento desse encontro ainda. Não se preocupe, não


é qualquer erro como humano que consideramos essa punição. Mas
você deve repará-los para enfim seguir seu destino. — Balanço a
cabeça.

— Você mencionou há pouco que não pode decidir, apenas


executa ordens, e que não pode me enviar de volta. Então, como vou
corrigir meus erros?

— Não posso devolver seu corpo. Contudo, existe outro detalhe


que não posso revelar agora. — Ele se levanta elegante, alinhando o
paletó com a ponta dos dedos. — Mas devido a isso, você não pode
passar pela fronteira agora. Não cruzará os portões de nenhum dos
mundos.

— Eu... — Movimento a glote, tentando engolir a saliva. — Serei


um fantasma? — Gael não responde. Gira e começa a caminhar de
frente rumo à parede. Ele vai atravessá-la?

— Vamos encontrar ajuda para sua missão. Acompanhe-me, por


favor. Eu lhe explicarei as regras.
Que opção eu tenho além desta? Assim, o sigo.

Com um simples gesto uma porta surge, passamos através dela e


novamente o clarão me cega. A luz vai diminuindo e formas
aparecendo. Quando o local se revela por inteiro, minha consciência
dá um nó. Todas as sensações de um corpo humano retornam.

O coração martela a caixa torácica, arrebentando-a por dentro.


Lateja, queima, rasga-se... Partido em infinitos pedaços. E quando a
imagem dela deitada sobre a cama se torna nítida, um vendaval
bagunça tudo em mim.

— Por que me trouxe aqui? Para me torturar? Wae? — Encolho


os ombros arregalando os olhos. — Não pode ser outra pessoa?
Com certeza existem mais humanos com os mesmos dons que ela.
Ela sofrerá, e não quero machucá-la mais do que já fiz.

Ele passa um braço sobre os meus ombros e, com a mão livre, dá


batidinhas no meu peito.

— Parte da sua pendência tem a ver com ela, por isso vocês
precisam completar a missão juntos. Você necessita que ela realize
uma tarefa importante. — Ajoelho-me diante dele. Curvo-me com as
mãos para cima em forma de prece, movimento uma sobre a outra.

— Eu imploro... Ela não merece... Culpe-me e apenas me lance


no abismo das profundezas do inferno, mas não a machuque. Por
favor!

Lágrimas correm pelo meu rosto. Passo a mão, mas não está
molhado. A cabeça recebe milhares de picadas de agulhas, e uma
fraqueza que jamais senti antes me domina.
Gael se abaixa. Segura em meus braços e iça-me do chão.

— Compreendo sua dor, Jae Young, entretanto é o que deve


cumprir. Não se preocupe, ela compreenderá quando acordar.

Observo-a. Ela se remexe e se contorce, parece com dor.


Caminho, aproximando-me um pouco mais. Seu rosto está molhado
de suor e no canto dos olhos é possível notar lágrimas jorrando.
Volto-me para Gael.

— O que está acontecendo com ela? Está doente?

— Não. Descobrirá em poucos minutos. Agora, você precisa


entender como sua condição aqui no mundo dos vivos funcionará. —
Deixo os ombros caírem. — Além dela, ninguém mais o verá ou
falará com você. — Isso eu imaginava, ainda me recordo das vezes
que a amparei enquanto lidava com coisas como eu.

— Você poderá mover objetos, atravessar qualquer coisa física.


Seus sentidos humanos também estão ativos e até mais aflorados.
Ela pode não apenas ver você, mas tocá-lo, da mesma forma você
também conseguirá tocá-la. Seus dons vêm de uma longa linhagem,
ela é uma bruxa com poderes necromantes e uma sensibilidade rara,
por isso, está sempre entre os dois mundos.

— Bruxa? Para mim só existiam em filmes de terror ou contos de


fadas.

— É só uma nomenclatura. Esqueça tudo o que ouviu sobre


bruxas e outros seres especiais.

— Mais alguma recomendação?


— Resolva tudo o que sempre te machucou, Young. Eu só ativei
algumas de suas memórias, é necessário recordar-se das peças que
faltam para completar sua missão. Descubra o que aconteceu que te
levou ao acidente. Ah! Último aviso: chegará um momento da missão
em que terá uma importante decisão a tomar, isso afetará não
apenas você.

— Decisão? — Ele coloca o dedo indicador sobre os lábios.


Aponta para Elleanor.

Ela suga o ar com força, com se estivesse se afogando. Dou


alguns passos em sua direção, mas Gael me segura pelo braço. Os
olhos dela se abrem. Ela observa o teto, possivelmente tentando
reconhecer o lugar. Sua respiração aos poucos entra no ritmo certo.

Ela dobra o corpo, girando as pernas para fora da cama e


sentando-se. Engole a saliva. Solta o ar e, com a ajuda das mãos,
ergue o corpo até ficar em pé.

Os olhos focam o chão, mas lentamente ela movimenta o pescoço


até o rosto alcançar o meu. Ela pisca sem parar e um rio de lágrimas
jorra descontroladamente por sua face.

Os meus olhos, como um espelho, imitam sua reação. O coração


queima comprimindo-se, chego a cogitar se é possível morrer mais
de uma vez.

O corpo dela pende e não sei o que fazer para não deixá-la se
chocar contra o chão, contudo, ela segura os joelhos.

— Não! Não!
Elleanor grita e escorrega apoiada na cama até sentar no chão
com os joelhos dobrados. Abaixo, sentando no chão ao seu lado.
Levo a mão até sua cabeça, mas antes de tocá-la, recolho-a. Não
quero assustá-la, afinal, agora sou apenas um fantasma, uma
energia, como definiu Gael...
24

Elleanor

Inspiro e expiro. O aroma de violeta me dá a certeza de que Gael


também está aqui. Ele disse que Jae ainda não aparecia na lista,
então por que estou vendo sua alma? Meu corpo tremula, uma ânsia
causa espasmos no estômago, entretanto não chego a vomitar.

Eu só queria que tudo isso fosse uma alucinação!

— Elleanor, o tempo está passando. Por favor, se recomponha.

Tiro a cabeça do conforto dos meus braços encontrando o rosto


de Jae Young. Seus olhos amendoados que costumam sorrir tanto
quanto os lábios, estão totalmente devastados.

Engulo um pedaço de brasa. Todo o meu corpo queima e as


lágrimas não cessam. Não importa quanto eu grite comigo mesma,
minha alma não obedece as ordens do cérebro.

— Por que você tinha que partir agora? É egoísmo, sabia? —


Toco o rosto de Jae, que deita sobre minha palma.
— Eu juro que não queria estar assim. — Lágrimas escorrem pelo
rosto dele.

— Sua palavra não vale muita coisa, Jae. — Volto o rosto para
Gael. Um gosto amargo sobe pela garganta, junto com uma força
que não conhecia. Afasto-me de Jae e fico de pé. Dou alguns passos
até Gael. — Você me disse que ele não estava na lista, então por
que raios a alma dele está aqui? Sempre confiei em você. Era um
anjo para mim. Como pôde?

— Elle, tenha calma. O que acabei de te explicar? — De braços


cruzados e fala mansa, ele me encara com as violetas apagadas.

— Se ele não morreu, então o que é isso, Gael? Você e Deus


resolveram brincar comigo? O que eu fiz de tão errado? — Uma mão
grande enlaça a minha. Olho para o lado e Jae me observa
melancólico.

— Por favor, Lia. Seja forte. Nesse momento eu preciso de você,


estou tão perdido e...Te ver assim torna ainda mais difícil aceitar o
que aconteceu.

— Gael, qual é o sentido disso para o Criador e para você? Por


acaso é uma forma de diversão? — Volto o rosto para ele e esmurro
seu peito.

— Elleanor, Elleanor. — Balança o indicador estalando a língua.


— Sabe que isso ficará registrado no seu livro, não é?

— Dane-se o livro! — O empurro. Gael apenas sorri.


— Estamos perdendo tempo com seu show. Compreendo o
choque e a dor, mas você esqueceu do que acabamos de conversar.

— Quando conversou com ela, se estava na recepção comigo? —


Jae levanta as sobrancelhas e os ombros.

— Na fronteira não há tempo nem espaço. Posso fazer muitas


tarefas simultaneamente.

— Enquanto eu sonhava, Jae estava morrendo. — Sacudo a


cabeça. — Quando me tirou do abismo, ele já estava lá... — Uma
afirmação mais para mim mesma do que para eles.

— Praticamente. — Gael se afasta e senta na janela do quarto,


balançando as pernas. Jae passa a mão nos meus cabelos, ainda
com lágrimas nos olhos.

O celular vibra sobre o criado mudo e a tela acende. O nome de


Wook surge. Jae sinaliza para mim. Pego o aparelho segurando com
as duas mãos. Engulo outra bola de fogo.

— Wook?

— Elleanor! Eu fiz uma enorme besteira. — Ele está praticamente


gritando. Jae puxa meu braço e me faz sentar na cama. O sangue
corre rasgando as veias, e todo tipo de ideia mirabolante passa em
minha mente, principalmente de como vou torturar Wook até ele
morrer.

— O. Que. Você. Fez? — Os dentes estão cerrados. Eu visualizo


o seu rosto e como o meu punho o atingirá repetidamente,
arrancando-lhe o sangue junto com os dentes.
— Eu e hyung brigamos. Acho que eu falei o que não devia e
agora ele sumiu! Não o encontro em lugar algum! O que eu faço,
noona? Você pode ligar para ele, já que não me atende? —
Aparentemente ele não matou Jae. Respiro um pouco mais aliviada.

— Onde você está?

— Na cabana. Na mesma que ficávamos...

— Juquitiba? — Os pelos do braço se arrepiam e mais lágrimas


escapam. Troco um olhar com Gael. — Há quanto tempo não o vê?

— Estava próximo da hora do almoço quando brigamos. Eu voltei


para a cabana e Jae Young foi caminhar... Não voltou até agora e
não o encontrei em lugar nenhum.

— Já chamou os bombeiros?

— Não...

— Está esperando o que para ligar? Já foi até a clareira? — Jae


arregala os olhos e a boca se abre.

— Que clareira? — Passo a mão na testa, andando de um lado


para o outro.

— Se não sabe, comente com a equipe de busca, eles devem


conhecer o local. Não perca tempo.

Desligo. Gael se aproxima.

— O que aconteceu lá, Jae?

— Não recordo com exatidão. — Sua face se enruga.


— Pense. Qualquer detalhe ajudará. — Jae aperta as pálpebras e
cessa todos os movimentos, parece uma obra de arte.

Eu, ao contrário, provavelmente gastei toda a sola do pé andando


sem rumo dentro do quarto, os braços agitados ao lado do corpo e o
coração saltando no peito, na garganta e até mesmo no cérebro.

— Eu caminhei pela trilha, acho que refazendo nosso passeio.


Cheguei à clareira... Começou a chover e eu resolvi voltar. Depois, a
única coisa que vem à mente é meu corpo rolando pela lama até
bater em um tronco... — Abre os olhos. — Por que sugeriu a clareira
para Jae Wook?

— Tenho sonhos recorrentes com você lá. Todos confusos... Mas


o de hoje eu vi com nitidez... — Inclino o pescoço para baixo
soltando o ar. Os pulmões latejam.

— Enquanto eu estava na trilha, senti sua presença. Imaginei


você comigo... Criança, como da última vez em que estivemos lá.
Segurei sua mão, vimos as flores...

— E a borboleta... — Sorrio com o peito esmagado. — Corremos


até a clareira. Você me deixou e foi até o meio, tomou chuva e entrou
na mata outra vez. Eu corri... Tentei te alcançar... Cheguei tarde
demais... Me perdoa, Jae... — Meu corpo parece ter encolhido pela
metade. Estou desaparecendo, submergindo no meu abismo interior.

— Então não foi minha imaginação? — Jae me abraça apertado.


Seu toque ainda é o mesmo, quente, como se ele estivesse vivo,
diferente dos outros fantasmas, que são frios como gelo. E mais eu
me afundo, imaginando o momento da sua derradeira partida.
— A ligação entre vocês é maior do que imaginam. Desde o início
estão presentes no livro um do outro. — Gael nos separa e segura
nossas mãos. — Aqui, no mundo dos vivos, o tempo corre e é
implacável. — As violetas brilham penetrando meus olhos. — A cena
de vocês está linda e digna de um Oscar! — Gael nos encara
batendo com o indicador no próprio pulso. — Corra, Elle, ele ainda
não está na lista!

Gael abre a palma da mão e algo como um papel em branco


surge. Meneio a cabeça para ele. Abro a porta seguindo em direção
ao quarto de Mariana. Jae me segue, mas Gael o segura.

— Você vem comigo, Young!

Entro puxando o lençol. Mari resmunga e vira para o outro lado.


Subo de joelhos na cama e me inclino sobre ela. Levo a mão até seu
rosto e arranco sua máscara. Ela salta, sentando na cama como um
robô.

— Ai, meu Deus! O prédio está pegando fogo?

— Não. Mas não temos tempo. Pegue sua bolsa e a chave do


carro. — Agarro a mão dela, arrastando-a.

— Elleanor! Enlouqueceu? O que está acontecendo? Para onde


quer sair de pijama e com um ninho de rato na cabeça? — Ela faz
força, resistindo a mim.

— Vamos para Juquitiba.

— Que asneira é essa? Alcoolizada de novo? — Cheira meu


hálito.
Pego meu celular mostrando a ligação recente de Wook para
mim. Ela balança a cabeça se inclinando para trás.

— O que isso significa? Descobriu de repente que gosta dele e


não pode esperá-lo voltar?

— Jae! Mari, — Minha respiração se descontrola, as mãos suam e


tremem. —Wook me disse que ele sumiu... E ele apareceu para
mim...

— O que está tentando dizer? Por acaso ele... — Mari engasga.

— Acho que sim... — Ela me abraça. E novamente eu desabo.


Meu choro molha sua blusa.

— Vou ligar para Marcus, acho melhor ele nos acompanhar.

Ela pega a bolsa e um cabide com roupa enquanto liga para


Marcus. A única coisa que fiz nesse tempo foi calçar um tênis, pois
de chinelos não conseguirei subir a trilha. Mariana, pela primeira vez,
mudou de roupa em tempo recorde.

Saímos apressadas e assim que chegamos na recepção do


prédio, Marcus está lá, de braços abertos à minha espera. Corro
para ele. Não cogitei recusar. Na verdade, preciso de toda força e
ânimo que puder receber.

Entramos no carro com Marcus de motorista, pois nem Mari


demonstrava condições para dirigir. Ela foi atrás comigo, mantendo-
me acolhida em seu braço, prendendo o choro para que eu pudesse
liberar o meu.
25

Elleanor

O trajeto que sempre foi colorido e cheio de vida agora tornou-se


apenas uma grande tela cinza cheia de borrões, irreconhecível, fria e
distante. O tempo gasto até lá costumava passar rápido, mas justo
hoje o ponteiro do relógio insiste em não sair do lugar. Uma enorme
adaga parece estar encravada em meu peito, matando-me aos
poucos.

Nem o colo da minha amiga, que sempre é um refúgio e fonte de


ânimo, me aquece. O frio em minhas entranhas provoca tremores em
todos os meus membros, mãos e pés formigam, possivelmente
devido ao fato de que o coração não pulsa o suficiente. A massa
encefálica lateja e os olhos inchados doem como se inúmeras
abelhas picassem o local.

O carro movimenta-se para a lateral da rodovia, adentrando o


estreito caminho de terra. Dança de um lado para o outro. Assim
somos guiados pela vontade da natureza, que nos mostra quem está
no controle. Marcus diminui a velocidade, o que só acelera minha
destruição.

Ao chegarmos à recepção, somos parados e identificados. Uma


senhora indica a Marcus a direção da cabana. Mais alguns minutos
na longa e derrapante estrada lamacenta.

Quando nos aproximamos o suficiente, avistamos viaturas da


polícia e carros do corpo de bombeiros.

Saio do carro como se eu estivesse fora do meu próprio corpo,


assistindo a cena de um drama onde o ceifador é impiedoso, e cujo
final não é feliz. Cada passo que me aproxima da cabana é uma
batida a menos em meu peito.

Logo em frente à pequena e velha construção de madeira, há um


grupo de homens em semicírculo. O que está no centro segura um
papel aberto, olha para ele e desenha algo com o dedo, em seguida
fala apontando para a mata.

Deve ser o chefe da equipe.

Ando até eles, mas antes que eu chegue, Wook vem ao meu
encontro, parando na minha frente. Seu rosto está sujo, os olhos
arroxeados e fundos. Embora o aspecto físico denote sofrimento,
seus olhos são uma enorme geleira. Não sei se anestesiado pelo
sofrimento ou por outro motivo, que me recuso a cogitar.

— Noona. — Ele curva-se. Não sei precisar há quanto tempo ele


não me chama assim, ou age conforme a cultura nativa.
Meu corpo se retesa e se encrespa. Uma brisa fria sussurra em
meu ouvido sem parar: “cuidado, cuidado”.

Nenhum som escapa dos meus lábios, nem um pingo de empatia


ao gesto dele.

Marcus e Mariana me observam e se comunicam por sinais.

— Wook. — Marcus o puxa para um abraço e Mariana acaricia


sua cabeça. — Qual o status da busca?

— Nem sinal do hyung. — Wook se volta para mim, pega minha


mão esquerda segurando entre as suas. Me livro do seu toque
espinhento imediatamente. Ele me encara e sua íris se dilata, como
um felino se preparando para atacar sua presa. — Não imaginei que
algo assim pudesse acontecer com hyung... Jamais aceitaria o
convite dele...

— Claro. Não há a menor dúvida sobre isso. — Os ombros de


Wook se abaixam e um sorriso surge em sua face. — Jae sempre
ficou em último lugar para você, por que se preocuparia com ele
agora?

Suas íris dilatam mais. Ele solta o ar pelas narinas como um touro
bufando, e em nenhum momento demonstra-se acuado, ao contrário,
me desafia.

— Elle? — Mariana sacode meu braço. — Sei que está nervosa,


mas isso não te dá o direito de agir assim. Eles são irmãos...

— Por isso mesmo! — Puxo o braço, me livrando de Mari. Marcus


levanta a mão para a irmã.
— Mariana, calma! Os dois estão nervosos. Nós viemos para
ajudar e não para colocar mais lenha na fogueira.

— O que falou para o Jae que o deixou transtornado? Qual a


mentira da vez? —Agarro a gola da camiseta de Wook, dando alguns
solavancos. Ele permanece com os olhos fixos nos meus. Seus
lábios movem-se tão discretamente que seria imperceptível para
outras pessoas, mas não para mim. É um sorriso de vitória. — O que
aprontou, Wook? No que se transformou? Eu juro que...

Marcus afrouxa os dedos da minha mão esquerda e depois da


direita. Passa os braços ao meu redor e me arrasta para longe de
Wook. Coloca-me de frente para si, seca meu rosto, segura firme
meus ombros e me olha com ternura.

— Elle! Compreendo como se sente, mas não é o momento.


Quando encontrarem Jae Young e todos estiverem mais calmos,
vocês poderão conversar, e seja lá o que você imagina ter
acontecido, será esclarecido. Transtornados como estão, ambos
tendem a proferir palavras que trarão arrependimentos futuros.
Concentre-se em encontrar Jae. Pode fazer isso?

— Sim. — Marcus me abraça. Quando se afasta, arruma meu


cabelo.

— Pronta? — Segura minhas mãos.

Solto o ar pela boca fechando os olhos. Ao assumir um pouco do


controle, volto ao plano original. Solto suas mãos e sigo até a equipe
de resgate; o senhor que vi dando instruções me recebe.
— A senhorita é da família? — Família? É o que eu esperei minha
vida inteira...

— Sim. — Marcus responde por mim, puxando a manga da blusa


do meu pijama.

— Estamos fazendo o possível. Não sairemos daqui até encontrá-


lo. — Sua voz rouca e o bigode grisalho o fazem parecer um avô
acolhedor.

— Quando éramos crianças, costumávamos acampar aqui. — Ele


abre um sorriso acolhedor. — Nós encontramos uma clareira que fica
a mais ou menos uma hora seguindo pela trilha norte.

— Clareira? Não há demarcação de área desmatada no mapa.


Tem certeza?

— Absoluta... Aquele lugar é importante, muitas lembranças...— O


ar entra como se fosse veneno, explodindo todas as pequenas
irrigações por onde passa. As veias laceram e queimam. — Faz anos
desde a última vez em que ele esteve aqui, por isso afirmo com
certeza que Jae Young foi até lá.

— Alguns grupos seguiram na direção sul margeando o rio, pois,


segundo o irmão, eles estavam pescando ali mais cedo. Também há
equipes fazendo buscas próximo à represa. E mais dois grupos para
leste e oeste...

— Por favor, procurem na trilha norte, eu insisto. Encontrarão a


clareira que mencionei. — Pego a mão do homem apertando entre
as minhas com força. As lágrimas rolam pela face.
O senhor solta um longo suspiro e, com a outra mão, dá duas
batidinhas sobre as minhas.

— Certo. Enviarei mais recrutas na direção norte. Procure manter-


se calma. Aguardem na cabana, por favor. Mesmo que conheçam
bem essa área, devido à chuva, pode haver deslizamentos.

Meneia a cabeça e se afasta um pouco. Ergue o braço para o alto,


soa seu apito e sinaliza com a mão. Os homens e mulheres que
estavam nas proximidades rapidamente se juntam a ele, que mais
uma vez aponta para o mapa gesticulando e mostrando direções
diferentes da mata, enquanto seus ouvintes apenas concordam.
Quando finaliza as instruções, as equipes se dividem e desaparecem
entre as árvores.

Os grupos saem e voltam sem nenhuma notícia. Por que eles não
o encontraram ainda? Não seguiram a trilha? Ele está lá...

A tela do celular mostra que não haverá luz por muito tempo. Não
posso mais esperar. Pego uma lanterna e um apito que vejo em uma
caixa sobre a mesa montada pelo resgate.

Mariana, Marcus e Wook estão conversando do outro lado. Dou


as costas e sigo para a trilha. Caminho poucos metros até meu braço
ser puxado com força, quase me derrubando no chão.

— Aonde pensa que vai? — Mariana me encara com os olhos


saltando do rosto.

— Encontrá-lo.
— Elleanor, tem um monte de gente procurando por Jae, acredita
que sozinha pode...

— Eu sei onde ele está. — Ela solta meu braço, coloca as mãos
na cintura e suspira profundamente. Marcus e Wook se aproximam.

— Elle, não é prudente ir sozinha, daqui a pouco escurecerá...


Você pode cair e se machucar também ou se perder. — Marcus
segura minha mão com seu jeito apaziguador.

— Conheço essa trilha como a palma da minha mão, e nada me


fará esperar mais um minuto. Talvez ele ainda esteja vivo...

— Vou com você. É minha responsabilidade encontrar meu irmão.

— Nem pense em dar um passo. — Espalmo a mão em seu


ombro esquerdo. — Comigo você não irá a lugar algum.

— Elle! Pelo amor de Deus! Está fora de si! — Mariana se coloca


entre Wook e eu. — Ei! Wook é nosso amigo...

— Que seja. Ainda assim, prefiro ir sozinha. — Dou as costas.

— Não, Ellenor, é perigoso. Eu vou com você. Mariana e Wook


ficam. Caso a equipe de resgate o encontre antes de nós, usem o
sinalizador que voltaremos. E se demorarmos demais, sabem o que
fazer... — Mariana solta os braços em sinal de rendição, caminha
trocando passos com tamanha força que o solo afunda.

— Certo. — Wook segue a mesma direção de Mari.

Pego o braço de Marcus e o guio. Conforme avançamos, as


cenas do sonho retornam, assim como todas as emoções. Fico tonta,
mas não revelo.

Uma névoa espessa dificulta a visão, nos obrigando a caminhar


devagar.

— Continue, Elleanor. — Gael aparece. Dou um salto, assustada


com sua aparição repentina, mas retomo o controle e prossigo com
mais vigor.

— Ficou frio de repente ou é impressão minha? — Marcus fica ao


meu lado. Esfrega um dos braços. Talvez piore um pouco...

— Não pare, Marcus, estamos próximos.

— Como pode ter certeza? — Ele aponta a lanterna para o lado


direito observando atentamente entre as árvores.

— Esqueceu do meu talento especial? — Ilumino a nossa frente.

— Tem alguma alma penada te indicando o caminho, por acaso?


— Tenta descontrair, apesar de a sua voz soar com seriedade. Será
que Marcus está com medo de fantasmas? A ideia alivia a tensão
por alguns segundos.

— Eles não gostam que os chamem assim. E não é uma alma, é


só um ceifador. — Ele interrompe os passos, virando para mim com
os lábios sem cor.

— Está tentando me amedrontar, Elle? Além de fantasmas, um


colhedor de vidas? Há mais algum ser sobrenatural de que devo ter
ciência?
— Melhor continuar ignorando, para o bem da sua sanidade. —
Ele pisca sem parar. O arrasto de volta para a trilha, seu braço
completamente esticado e imóvel. Se fosse em outra situação, riria,
sem dúvida.

O aroma de violeta fica mais forte. Miro a lanterna para o lado


esquerdo. Saio da trilha. Aponto para as árvores uma a uma.
Algumas folhas no solo parecem ter sido arrastadas. Marcus tenta
me parar.

— É por aqui. — Balanço a lanterna chamando a atenção dele


para o rastro.

— Eu trouxe um sinalizador. Vou acionar. — Seguro sua mão.

— Espera, deixe-me ter certeza, pode ser de algum animal. Fique


aqui e ilumine bem, talvez encontre mais algum indício. Vou só mais
alguns passos a noroeste.

— Elleanor, não devíamos nos separar.

— Não vamos. Só alguns metros. — Mostro o apito para ele. —


Qualquer coisa, siga o som.

Caminho entre as árvores seguindo o rastro e o cheiro de Gael.


Movimento a mão, iluminando os trechos mais escuros.

A cada passo, mais intenso se torna o aroma. Paro e cerro as


pálpebras, me concentrando nos detalhes do sonho. O chão se
abrindo o barulho e... A árvore!

Ilumino o tronco das árvores um pouco mais acima, uma a uma,


até avistar a marca: o coração entalhado no velho tronco. Corro para
lá.

Alguns passos à frente pareço atravessar uma cortina, os olhos se


contraem um pouco. O coração para. As mãos vão direto para o
rosto, o estômago revira, perco completamente as forças.

Os cabelos verdes de Isy balançam com a brisa. Suas mãos


impostas sob o que parece um corpo coberto por folhas, galhos,
diversas plantas e flores desconhecidas para mim. Ela balbucia
repetidamente uma espécie de mantra; não compreendo aqueles
sons.

Gael está ao seu lado com a mão sobre a cabeça dela, emanando
uma luz fraca da mesma cor de seus olhos. E de frente para ambos
o fantasma dele...

— Jae Young! — Ele atravessa por cima do próprio corpo


colocando as mãos quentes sobre meus ombros.

Minha cabeça gira, assim como tudo a nossa volta. Ver corpo e
alma separados me leva de joelhos direto ao chão.

Passo a mão sobre seu rosto, afastando as folhas.

— Ainda bem que chegou. Isy está quase sem forças. — Gael
sorri. Meus olhos se abrem. Como ele pode sorrir diante...

— Sorrio por você estar aqui, Elleanor. O estado dele não é bom,
sua respiração enfraquecida e seu pulso sumindo... mas ainda está
vivo.

— Vivo? Como? Ele... — Novamente sou banhada pelo rio de


lágrimas que transborda.
— O espectro está fora do corpo, mas ainda existe uma ligação.
— Isy permanece imóvel, de olhos fechados. Gael me encara
calmamente. — Como disse, o nome dele não consta na lista, ainda
há tempo. É sua hora de agir, querida.

— Obrigada, Gael.

— Preciso tirar Isy, as pessoas não saberão lidar com alguém tão
diferente, é perigoso para ela. — Balanço a cabeça concordando
com ele. — Assim que tirá-la de perto dele, Young não respirará
sozinho por muito tempo.

Antes de Gael partir com Isy, coloco meu braço envolta do seu
corpo e o abraço, agradecendo-a mentalmente. Seu cheiro de flores
aumenta e me acalma.

— Ela sabe querida. — Estico os lábios em uma tentativa de


sorrir.

Gael a envolve completamente em seus braços. A luz violeta se


intensifica até desaparecer, assim como os dois seres.

Levo o apito à boca e assopro com toda energia que ainda me


resta. Coloco minhas mãos sobre o corpo de Jae, enquanto sua alma
me cerca com seus braços.

— Obrigado por não desistir, Lia. Aconteça o que acontecer, a


partir de agora, saiba que fez tudo ao seu alcance. Não se culpe.

— Por acaso isso é uma despedida? Desistiu de viver, Park Jae


Young? — Assopro outra vez, acariciando sua face.
— Aniyô! Só não quero perder mais tempo. — Jae passa a mão
sobre meus cabelos. Ouço o som de folhas amassadas e gravetos
se partindo. — Estão chegando.

— Permanecerei ao seu lado, não o deixarei nem por um


segundo. — Jae beija o topo da minha cabeça. O primeiro rosto que
vejo é o de Marcus que se abaixa ao meu lado, acendendo o
sinalizador e disparando em seguida.

— Você estava certa, afinal. — Marcus checa o pulso de Jae. —


Ainda está vivo, Elle! — Me abraça. — Tudo ficará bem. — Esfrega
meus braços, aquecendo-me.

Soamos nossos apitos sem parar, até os primeiros integrantes das


equipes de resgate surgirem.

Jae segura minha mão apertando-a, como fazia quando eu estava


com medo.

Eles protegem a cabeça e o pescoço. Imobilizam a perna direita e


o levantam em sincronia, como uma coreografia repetidamente
ensaiada. Acomodam Jae na maca e correm pela trilha o mais rápido
que podem.

Apesar das pernas fraquejarem, o cérebro continua ordenando,


forçando-as a seguirem no mesmo compasso da equipe.

Assim que o colocam no veículo do resgate, eu nem espero


permissão e apenas me enfio lá dentro.

— A senhora não pode ir aqui, ele está muito ferido. — A médica


socorrista aponta para fora. Levo minha mão até a dela
movimentando-a para baixo.

— Não vou sair do lado dele. Eu prometi que estaria com ele o
tempo todo... Podem ser seus últimos momentos e não o deixarei
sozinho.

O chefe e outros integrantes sinalizam para a médica permitir que


eu fique. As portas se fecham. O som alto das sirenes, assim como o
motor, rompem o silêncio da noite. Seguro a mão dele entre as
minhas. Os procedimentos de tratamento são iniciados. Fecho os
olhos, concentrando-me apenas na respiração.
26

Jae Young

Observo as paredes brancas, um sofá-cama amarelado abaixo da


janela, cujas cortinas têm o mesmo tom pálido. A cama ao centro, do
lado esquerdo da cabeceira, vários monitores pequenos emitem um
bib-bib constante. Meu corpo jaz sobre ela imóvel. No meu rosto,
uma espécie de máscara transparente cobre boca e nariz. Na testa e
couro cabeludo, curativos e eletrodos grudados. Na parede em frente
a cama há uma televisão desligada.

Ao lado direito da cabeceira, em uma cadeira metálica,


desconfortavelmente acomodada, está Elleanor. Quadril sobre o
assento, pés cruzados com apenas as pontas tocando o chão. Os
braços sobrepostos na cama servem de travesseiro para sua
cabeça. Ela ainda traja pijamas e tênis. Os cabelos revoltos e
eriçados.

Deslizo com suavidade a mão, arrumando os fios. Ela se mexe e


aos poucos desperta. O verde dos olhos praticamente não existe
mais, a vermelhidão tomou conta de toda sua face. Ela inspira o ar
profundamente, passa o dorso da mão sobre os lábios corrigindo a
postura.

— Lia, hora de ir para casa. Seu corpo precisa de repouso. Os


médicos estão fazendo o que podem. — Ela espreguiça-se e em
seguida me encara, juntando as sobrancelhas.

— Eu disse que ficaria do seu lado. Não costumo quebrar minha


palavra como certo alguém. — Rio desviando a face. Ela não
esqueceu o assunto nem diante da situação.

— Você é diferente de mim, eu sei. Entretanto, para cumprir o que


prometeu não poderá ficar doente. — Esfrego sua cabeça.

— Não adoeço com facilidade. — Ela segura minhas mãos,


movimentando os polegares sobre o dorso. Seu toque é tão quente e
acolhedor que me recorda a sensação do sangue fluindo por minhas
veias acelerando o coração.

Abaixo até nossos rostos estarem na mesma altura. Encosto


minha testa na dela.

— Elleanor, preciso que me ajude com algo. — Ela mexe a


cabeça. — Não sei quanto tempo tenho... — Ela engole a saliva,
acelerando a respiração. — Gael me disse que devo resolver
assuntos inacabados e descobrir o que realmente aconteceu no
acampamento... Você poderia...

— Antes de pensar nos seus pecados, deveria lutar para viver,


para só então corrigir seus erros. — Uma lágrima cai do canto do seu
olho direito pingando em sua coxa.
Meu peito pesa, no entanto não posso partir assim. Além do mais,
devo prepará-la para nossa despedida.

— Eu quero viver mais do nunca, Elleanor, existe um motivo muito


forte para desejar permanecer nesse mundo. Contudo, talvez o
destino não concorde.

— Sendo assim, de qualquer jeito você carregará uma dívida


eterna, uma promessa que não cumpriu. — Ela solta minhas mãos
abaixando a cabeça.

— Sinto muito, Lia. Sinto tanto que dói, mesmo sem corpo. Mas
eu preciso aceitar os fatos... — Elleanor cobre minha boca com sua
mão.

— Comece perdoando tio Jung. Ele sempre te amou, não pense o


contrário. Eu também fiquei magoada com ele por te colocar naquele
avião para a Coreia. — A ferida que julguei parcialmente curada se
abre e um buraco gigantesco surge em meu coração.

— Não sei como...

— Repense. Tente olhar por outro ângulo além do seu próprio.


Nossos pais são seres humanos imperfeitos tanto quanto você e eu.
Costumamos enxergá-los como super-heróis, e conforme
percebemos os defeitos, a dificuldade em aceitá-los é grande...

— Não sei se é esse o caso... Ele escolheu me enviar para a


mulher de quem ele mesmo havia se afastado devido ao caráter,
mas ficou com o outro filho... e a outra mulher...
— Ele errou. E sabia disso. Tio Jung culpou-se todos os dias
quando se condenou a não mais sorrir, a não fazer nada que lhe
dava qualquer tipo de alívio. Ele também se feriu... Todos nós nos
ferimos de alguma forma, Jae Young, apesar de não haver intenção.

Algo em mim parece se transformar, como a lagarta que


metamorfoseia-se em borboleta. No entanto, não identifico de
imediato o que foi, só noto que a agitação em meu peito diminuiu.

— Refletirei sobre o que me disse.

— Aproveite para refletir também sobre Ana, sua avó, eu... —


Elleanor solta o ar e seca o rosto. Ao ouvi-la se incluir, uma força
inesperada me empurra para ela. Eu a abraço, sua cabeça deita em
meu ombro. Afago seus cabelos.

Sei que Lia tem razão, preciso encontrar uma forma de ver todo o
passado por outros prismas.

Foi necessário que Mariana e Marcus viessem até o hospital para


que Elleanor cedesse e aceitasse ir para casa repousar.

Mariana permaneceu dentro do quarto com meu corpo e com meu


irmão.

Lia não quis deixá-lo sozinho comigo, ela está arredia com Jae
Wook, evitando-o. E, de alguma forma, eu também sinto certo
desconforto na presença dele.

— Ele disse a Elleanor que brigamos... Mas qual o motivo?

Wook é egoísta na maior parte do tempo, mimado e irresponsável,


mas não seria capaz de fazer mal a ninguém, ainda mais a mim...
Seria? Não... Deve ser apenas um mal-entendido...

Assim que Marcus leva Elleanor para casa, o quarto torna-se um


ambiente vazio, solitário demais... Observar aquelas duas criaturas
em silêncio, enfermeiros entrando e saindo, injetando medicamentos
e monitorando os equipamentos — que, no momento, é tudo o que
mantém o meu corpo vivo — é monótono e exaustivo demais.

A mente só consegue pensar em Lia.

Não sei quanto tempo me resta. Prefiro mil vezes passá-lo ao lado
dela e tentar, de alguma forma, cumprir uma pequena parte do que
lhe prometi.

Fecho os olhos e me concentro na imagem do seu rosto; quando


os abro, estou na sala do apartamento. Elleanor está deitada no
sofá, cabelos enrolados na toalha, camiseta e short. O celular está
na mão direita com o viva-voz ativado: ela conversa com Madalena,
relatando o acontecido.

O contorno dos olhos está escurecido e fundo, as pálpebras tão


inchadas que quase se passaria por uma coreana. Dos cantos ainda
escorrem lágrimas. Meu coração se despedaça em mais partes.

É estranho ser afetado por emoções que deviam ser geradas


apenas por reações químicas, ou seja, somente um corpo
supostamente seria capaz.

O coração salta apressado e latente, o peito sobe e desce,


realizando os mesmos movimentos que meus órgãos e músculos
fariam, além da nítida sensação do ar passando pelas vias aéreas e
sangue fluindo nas veias.

— Já contou para os seus pais?

— Não. Gostaria de esperar um pouco mais, Madá, então poderia,


por favor...

— Claro, querida. Mantenha-me informada e tire quantos dias


forem necessários.

— Obrigada, eu compensarei depois.

— Elle, não se esqueça de se alimentar e repousar. Para ajudar


outra pessoa, precisa estar saudável.

— Farei o possível.

Quando ela finaliza a chamada eu me aproximo. Elleanor vira de


lado, colocando o celular junto ao rosto. Os olhos se fecham e um
pesado e longo suspiro escapa dos seus lábios. Paro, agachando de
frente para ela. Seus traços são exatamente os mesmos da
garotinha que conheci, me inebriam e, de certa forma, acalmam a
agitação constante em mim.

Apenas a admiro, evitando tocá-la, apesar do desejo intenso de


fazê-lo. Ela necessita de repouso.
— O que faz aqui? — Ela murmura sem se mexer. Será que está
sonhando? — Ao invés de encontrar uma forma de voltar? — Abre
os olhos encontrando os meus, onde permanece com intensidade. E
por mais que não diga uma palavra, posso observar dentro deles
angústia e dor.

— Você me deixou na companhia daqueles dois chatos. Acredita


que nem falam comigo? — Sorrio pousando minha mão sobre a dela.
Lia se esforça para tentar me devolver o gesto.

— Desejei tanto ver esse sorriso pequeno e tímido...

— Demorei muito, Lia... Se servir de consolo, saiba que me


arrependo o tempo todo, cada vez que te vejo, ou que recordo... —
Com a outra mão, ela desliza a ponta dos dedos no dorso da minha.
Ouço as batidas do meu coração tão fortes que chegam a ecoar.

— Que tal corrigir isso? Melhor do que carregar arrependimentos.


— Rio, imaginando uma maneira de consertar esse ato falho. Sento
no sofá acariciando seu rosto. Lembranças do passado ressurgem
junto com nostalgia.

— Sabe qual cena nossa mais vem à mente? — Ela se mexe


mudando de posição. Costas apoiadas no braço do sofá, joelhos
dobrados com a cabeça apoiada neles, dedicando máxima atenção a
mim.

— Não. — Sorri fraco, mas é melhor do que a ver tão chorosa.

— Seu jeito curioso quando me viu dentro da casa abandonada.


Para mim, seus olhos sempre foram os mais bonitos que já vi. — As
bochechas dela enrubescem enquanto seus lábios formam um bico
na tentativa de segurar o sorriso. Embora avermelhados, o fundo
verde de suas íris ganham um singelo brilho. — E... Todas as vezes
que me surpreendeu subindo nas pontas dos pés e tocando meu
rosto com os lábios. — Ela ri de verdade e eu também, com os dois
lados do meu rosto queimando; tenho certeza de que meu corpo
estamparia bolas vermelhas na face.

— Acho que compartilhamos alguns momentos favoritos, com


visões diferentes, pois no dia em que nos conhecemos, seus olhos
puxados sorridentes me hipnotizaram. Tão diferentes... — O que ela
quer dizer com olhos sorridentes? Toco o canto dos olhos
instintivamente.

Ela me encara e leva suas mãos sobre minha face.

— Toda vez que você sorri, os cantos dos olhos se juntam ainda
mais, lembrando o formato dos lábios ao sorrir. — Abaixo um pouco
a cabeça. — Exatamente assim!

— Isso significa que acha meus olhos bonitos? — Coço a cabeça


inclinando um pouco para o lado.

— Claro. E... — Volto a observá-la de frente. — o modo como


ficava sem graça quando eu fazia isso! — Ela estala os lábios em
meu rosto, pegando-me completamente desprevenido. Deita a
cabeça de lado mordendo o lábio inferior. Aperto sua bochecha com
os dedos.

— Eu não era o único com momentos de timidez. Você também


perdia o jeito e o equilíbrio quando eu segurava sua mão. Se bem
que...
— O quê? — Corrige a postura arregalando os olhos.

— Equilíbrio não era seu forte! — Ela esconde o rosto entre as


mãos.

— Jae!

— Verdade. Lembra-se que caiu do balanço parado? — Ela mexe


a cabeça em negativa. — Tropeçar nos cantos das paredes e
móveis então, acontecia pelo menos duas vezes ao dia. Brincando
de amarelinha na escola, você nunca conseguia passar do terceiro
quadrado. — Rio e ela me olha entre os dedos com o rosto ainda
escondido. — E quando nos escondíamos lá em casa, você se
atrapalhava com os próprios pés. A sua sorte é que eu estava
sempre por perto e a segurava pelo braço. Sem contar às vezes que
torceu os pés...

— Todas elas com você! — Aponta para mim. — E em todas você


me carregou nas costas... O melhor ano da minha infância... Em
compensação, o outro foi um dos piores...

— Para mim também, Lia.

— Não havia mais quem me protegesse, perdi as contas do


quanto caí. Tropecei o triplo... e nas vezes em que me feri, não tive
ninguém para me carregar... — Olha para as mãos estalando os
dedos.

— Eu me preocupei com isso todos os dias, tinha certeza de que


se machucaria... desculpe não estar por perto. — Seguro sua mão
entrelaçando nossos dedos. — Não foram dias fáceis para mim
também, acredite. Harmeoni só me deixava sair do quarto para
estudar. Não fiz amigos. Minha agenda era como a de um adulto.
Escola em tempo integral, aulas particulares de inglês, chinês,
francês e alemão. Taekwondo, natação, artes e piano. Ia para a
cama exausto. Nos dias em que conseguia ficar um pouco mais
acordado, escrevia para você. Sei que não recebeu todas as cartas,
minha avó não permitia.

Elleanor aperta minha mão. Com a outra, faz carinho no topo da


minha cabeça.

— Seu pai me consolou algumas vezes explicando o quão


rigorosa sua avó era, mas eu não acreditava, pensei que fosse
apenas uma desculpa e que você estava se divertindo com outros
amigos. — Rio levantando a sobrancelha. — Por que parou de
escrever?

— Quando me tornei adolescente, a senhora Lee Hye Ji julgou


perigoso continuar tendo contato com o Brasil. Fui proibido de enviar
cartas e receber ligações. As obrigações só aumentaram e ainda tive
que a ir a inúmeros “encontros às cegas” e três noivados desfeitos.

— Você teve noivas? No plural? Não quer dizer uma?

— Não. Esse fato rendeu-me fama de mulherengo. Eu nunca


cheguei a namorar de verdade essas mulheres. Foi tudo decidido
pelas famílias, com alguns encontros vigiados para nos
conhecermos. Entre as famílias abastadas mais tradicionais ainda
existe casamento arranjado.

— Pensei que isso fosse apenas roteiro dos dramas.


— É real. Para me livrar dos compromissos, eu as tratava mal, e
se não funcionasse, contratava meninas para se passarem por
namoradas... No final, nenhuma família importante me queria como
integrante.

— Então nunca...

— Não da forma como você imagina...

— Ah... — Elleanor desvia o rosto, aparentemente um tanto


desapontada.

— E você?

— Eu? Eu... Apenas estudei e trabalhei. — Cenas dela com Wook


surgem em minha mente; eles abraçados, mas também ela o
repelindo, questionando suas investidas... Isso me deixa tonto! Sei
que existe algo nessa história que eu preciso lembrar... Devo
perguntar? Não... Ela melhorou um pouco o ânimo, se entrar nesse
assunto agora, se aborrecerá. — E acompanhei sua carreira.

— Mwo... Por quê?

— Era a única forma de saber sobre você, já que não tínhamos


mais contato e Wook não falava quase nada para mim, apenas
comentários sobre festas que você participava e namoradas... Então
sempre que podia, eu pesquisava sobre você, assistia trechos de
alguns desfiles... Cheguei a ver alguns dramas que você participou.

Minha boca se abre, parando no chão. Não esperava por isso de


forma alguma. As palavras fogem de mim. Apenas a encaro
extasiado.
— Não desista, por favor? Viva. Fique bem e saudável. — Pega
meu rosto entre suas mãos. — Ainda não te perdoei por me julgar
errado. Se recupere e trate de me convencer do porquê de ter
escolhido ouvir apenas a versão do Wook.

Do que ela está falando?

Balança a cabeça devagar, apertando os lábios entre os dentes.


Beijo sua testa e a puxo para perto do peito, onde a mantenho em
silêncio, apenas aproveitando o calor da sua pele e tudo o que ela
provoca em mim.

Apenas mais uma chance... Só mais uma... Me ajude a lembrar!


27

Elleanor

Não fazia ideia do quão cansada estava até apagar no sofá.


Acordei sem ter a menor noção de quanto tempo dormi. As dores
musculares e a sensação de peso diminuíram, exceto em meu peito,
esse ainda lateja, partido em infinitos pedaços, os quais nem sei se
um dia serão capazes de se recuperar. A falta de apetite permanece,
entretanto considerei a necessidade de continuar saudável e comi a
refeição que Mari preparou para mim.

Agora, estou sentada na cama, perdida entre o que devo e o que


posso fazer, lembrando palavra por palavra tudo o que conversamos,
todas as vezes em que estivemos juntos nessa vida durante o ano
em que convivemos.

Solitária, observo a porta do guarda-roupa que normalmente eu


evito abrir.

Lá dentro estão guardadas todas as lembranças do que vivi ao


lado dele, e são elas que me atraem com tamanha intensidade, que
sou incapaz de resistir. Salto da cama, abro a porta e lá está a caixa
rosa. As mãos vão até ela, segurando com delicadeza. Trago-a para
junto do corpo, voltando para o conforto e o consolo da minha cama.

Removo a tampa. Tiro um a um os objetos escondidos ali, meus


tesouros. O papel da primeira bala que ganhei de Jae Young.
Embalagens dos sorvetes que dividimos escondidos de Wook na
lateral da casa azul. O elástico que ele usou para prender meu
cabelo no dia em que caí do balanço, após me socorrer e carregar
até a cadeira da varanda. Uma caixa de suco de melancia. Pacote
vazio de lámen...

A primeira vez em que comemos macarrão instantâneo na casa


dele, eu jurava que seria como minha mãe preparava em casa, mas
quando vi tio Jung colocando broto de feijão, cenoura e alga, tinha
certeza de que era outro prato. Quando ele quebrou o ovo e misturou
no macarrão, lembro nitidamente de apertar a mão do Jae com muita
força e tapar a boca com a outra, o que o fez rir. Assim que tio Jung
aproximou-se de mim com o prato...

“Appa, Lia não gosta de ovo quase cru. Eu fico com esse.”

Minha cabeça foi direto para o chão. Eu queria me esconder


debaixo da mesa. Mas Jae apertou minha mão, fazendo-me olhar
para ele, e com a outra bagunçou meu cabelo, então a timidez e tudo
o mais desapareceu como num passe de mágica...

Com ele tudo era tão simples, tão fácil...

Coloco o pacote de lámen sobre a cama e fecho os olhos,


inspirando e expirando. Uma lágrima rola pela face e pinga em minha
blusa.
O band-aid que Jae pôs na minha mão em uma das inúmeras
quedas que levei. O pacote de pipocas do nosso único passeio no
parque... A fita amarela que ele usou para demarcar o caminho
quando acampamos. E... Todas as cartas que recebi...

Abro um dos envelopes, mas nem chego a terminar de ler a


primeira linha quando Mari irrompe pela porta do quarto, sentando ao
meu lado e tirando-a das minhas mãos.

— O que está fazendo, Elle? — Mari analisa a bagunça sobre a


cama. — Ei! — Segura as minhas mãos. — Sessão tortura? —
Balança a cabeça negativamente, soltando o ar.

— Desde quando lembranças da infância são “sessão tortura”? —


Forço um sorriso ao mesmo tempo em que algumas lágrimas me
traem.

— Nem todas as recordações são boas, e mesmo aquelas que


são bonitas, às vezes machucam, e, bom, quando isso acontece,
elas são uma forma de tortura. Autoflagelo!

Minha cabeça não suporta e pende para baixo. Mariana solta


minhas mãos, passando os braços em volta de mim até minha
cabeça se aconchegar em seu ombro. Mais lágrimas rolam. A cada
entrada de ar, uma pontada no peito.

— Como esquecer a parte mais bonita da minha vida? — Ela me


aperta, até os ossos estalarem.

— Elle, compreendo o quão difícil é essa situação. Você esperou


mais de vinte anos pelo retorno do seu grande amor e... — Ela
suspira e silencia por uma fração de segundos. — Ele ainda está
vivo, certo? Os médicos estão trabalhando duro para que Jae Young
se recupere. Não é hora de agir assim.

— Eu sei...

— Não estou dizendo para alimentar falsas esperanças...

— Está tentando me consolar ou me enterrar viva? — Corrijo


minha postura, afastando-me dela.

— Quero somente que você seja realista, pés no chão. Não se


desespere e nem espere demais. Extremos não fazem bem a
ninguém. Esteja preparada para ambas as situações, seja de ganhos
ou de perdas.

— Sua forma de alento é praticamente uma pancada, uma flecha


bem no centro do alvo! — Ela seca meu rosto. Inspira e expira
novamente. Põe as duas mãos espalmadas sobre o colchão,
lançando seu olhar sério e, ao mesmo tempo, terno sobre mim, ao
estilo amiga e irmã mais velha.

— Sinto muito, Elle. Não quero te ferir... Mas precisa ser forte.
Wook também está sofrendo. Ele estava devastado, Elleanor. Um
farrapo. Enquanto vocês procuravam por Jae Young, ele ficou se
martirizando, pedindo perdão ao pai, a mãe e implorando para o
irmão ser encontrado logo. — Meu coração dispara, arrebentando o
peito, garganta, cabeça, pulsos. O sangue corre borbulhando pelas
veias e a saliva não desce.

Algo no comportamento do Wook me atormenta. Desejo muito


estar enganada, mas acho que ele tem algo a ver com o acidente de
Jae.
— Wook não é quem você pensa, Mari. Para mim não passou de
teatro. Eu vi nos olhos dele...

— Presta atenção, Elleanor! Você não é assim, egoísta! — Ela


segura meus ombros e me sacode com força, olhos esbugalhados
penetrantes. — Você está sofrendo e Wook também! Tem noção do
quanto ele estava assustado? Chorou feito uma criança perdida,
deitado com a cabeça nas minhas pernas. — Para, respira, solta
meus ombros. Ajeita o cabelo e lança seu ataque final. — Ele perdeu
os pais e agora está prestes a... — Ela morde os lábios, mantendo-
os presos entre os dentes. Aperta as pálpebras, abaixando a cabeça.

— A perder o irmão... — completo a frase. Nesse momento, um


golpe agudo atinge minha face e outro o estômago.

— Elle, não quis dizer isso... Só estou tentando te mostrar que


ambos estão no mesmo barco. Vocês precisam de equilíbrio e força.
Foi um acidente, não há culpados.

Seco as lágrimas desviando o rosto para o lado, só então o noto


parado de pé, encostado na janela de braços cruzados. Ele
movimenta a cabeça para cima, sorrindo com tristeza. Viro de volta
para ela.

— Não quero mais falar sobre Wook. Estou cansada. — Ela faz
um carinho na minha cabeça.

— O que acha de guardar suas memórias agora? — Pega o


pacote de lámen, alguns envelopes e coloca dentro da caixa.

— Jae está aqui. — Mariana simplesmente se transforma em uma


estátua.
— Por que não me avisou antes? Ele ouviu tudo? — Sussurra
baixinho. Jae se aproxima com as mãos nos bolsos, uma visão de
tirar o fôlego mesmo em seu estado atual. Ele pisca, rindo com
vontade da expressão agitada de Mariana.

— Eu só percebi agora. — Ela volta a se mexer, na ilusão de que


ele apareceu apenas no final da nossa conversa. — Mari, ele pode te
ouvir mesmo sussurrando, os sentidos dele funcionam diferente
agora. — Ela abre a boca e dá um tapa ardido no meu braço
esquerdo.

— Sinto muito se escutou algo desagradável, não quis ofendê-lo.


— Ela gira a cabeça para todos os lados, olhando ora para cima, ora
na mesma altura que seus olhos alcançam. Apesar das
circunstâncias, é divertido vê-la insegura, logo ela, que nunca perde
a compostura. — Bom, — Ela se põe de pé. — vou deixá-los a sós.
— Caminha apressada, para não dizer correndo, fechando a porta
atrás de si.

Jae dá alguns passos e senta ao meu lado na cama. Passa o


braço por meu pescoço. Apoio minha cabeça em seu ombro e, em
troca, recebo carinho com as pontas dos dedos em meu cabelo.

— Mais calma agora?

— Você sempre teve esse efeito em mim.

— Mariana tem razão. — Remexo na cama, ele me traz de volta


para si. — Eu posso voltar, mas...

— Você voltará! Tem uma promessa a cumprir e precisa me


convencer a te perdoar. — Inclino a cabeça até nossos olhos se
encontrarem. Ele coloca o dedo indicador sobre meus lábios e os
pressiona.

— Moverei céus e terras para conseguir remissão. Contudo, se eu


partir, você precisa seguir em frente. Cuidará da sua saúde,
encontrará alguém com quem possa ser feliz, viajará, terá filhos... No
início serei uma grande ferida, mas com o tempo ela cicatrizará e eu
me tornarei só uma doce lembrança. E se não puder me perdoar por
isso, eu entenderei.

O empurro. Saio da cama andando até a janela. A escuridão da


noite já dominou o dia, o céu nublado sem nuvens, tão triste. Até a
natureza sabe como eu me sinto.

— No seu lugar, eu também não gostaria de falar sobre isso, mas


deve estar consciente do que pode acontecer. Eu já causei muitas
feridas em você... Tudo o que desejo é que seja feliz, Elleanor. De
onde quer que eu esteja te protegerei e cuidarei de ti. Até o dia em
que nos encontrarmos na eternidade.

— Estou ciente de tudo isso, portanto não preciso ouvir essas


palavras da sua boca também. Quero que expresse o contrário: que
lutará pela vida e vencerá. Me protegerá e cuidará de mim aqui
nesse mundo.

Ele vem até mim e me abraça pelas costas, como nas cenas dos
dramas que assisti. Desejei tanto viver isso, entretanto de outra
forma. Devia ser o corpo dele tocando o meu...

O peso retorna. O ar escapa pela boca com dificuldade. Tiro seus


braços do meu corpo e me afasto.
— Para onde vai, Lia?

— Encontrar conforto. — Sigo direto para a sala. A adega é


pequena, então há poucas opções, e mesmo que existissem muitos
rótulos, não saberia diferenciar; isso pouco importa.

Pego a primeira garrafa que atrai meus olhos. Vou para a cozinha
tirando o lacre com a boca. Com a ajuda do saca-rolha, me livro da
mesma. Jae resmunga atrás de mim.

— Blasfeme o quanto quiser, eu vou beber. Então te restam


apenas duas alternativas: me fazer companhia e admirar o céu como
nos velhos tempos, ou ir para qualquer outro lugar sem a visão de
uma mulher se embebedando.

Ergo a garrafa em sinal de brinde, levando em seguida à boca.


Tomo um gole. O líquido desce queimando. O teor de álcool deve ser
alto, ao menos para mim, que tenho baixa tolerância. Giro e ando até
a porta. Sigo para a escada que dá acesso a laje da cobertura.
28

Jae Young

Ela sobe os degraus da escada saltando, o mesmo hábito de


quando era menina, com a diferença da mão — naquela época, elas
se agitavam como se estivessem dançando e agora segura uma
garrafa de vinho. — O líquido bordô respinga nos degraus a cada
salto, sorte ela não tentar beber enquanto pula pela escada, acabaria
se engasgando sem a menor sombra de dúvida.

— Confesso que a imaginei bêbada algumas vezes, mas em


todas elas eu estava fisicamente presente e cuidava de você, Lia...
Não posso fazer isso adequadamente no momento. Embora seja
capaz de tocá-la, não sei se poderia carregá-la por uma longa
distância.

Elleanor finalmente põe o pé na laje. Vira-se de frente para mim.


Inala o ar, fechando os olhos. Solta o ar e ergue as pálpebras, então
sorri de uma maneira linda, recordando-me da pequena garotinha
sardenta, contudo é só uma imitação, pois não demonstra alegria
sincera. É apenas uma encenação.
— Só por hoje, não quero ser responsável. Só por hoje
esquecerei a realidade. E, só por hoje, agirei como se quem
estivesse presente aqui comigo fosse o Jae de corpo e alma que
voltou para cumprir sua promessa.

Lágrimas jorram por sua face sorridente.

Esqueço que deveria me controlar e dou dois passos, pegando-a


pelo braço esquerdo e trazendo-a para junto de mim. Seu rosto se
encaixa perfeitamente no meio do meu peito. Meu coração pulsa
forte e tudo o que nunca permiti que saísse de dentro de mim
explode.

— Eu voltei por você. — Encosto meu queixo no topo de sua


cabeça, mantendo-a o mais apertado possível. — Assim que meu
período obrigatório no exército terminou, a primeira coisa que fiz foi
pegar um voo para cá.

Elleanor força as mãos contra minhas costelas. Mudo a posição


dos braços para que ela não consiga sair. Apoio sua nuca com a
mão direita.

— Ana me disse onde você e Jae Wook cursavam a faculdade...

A lembrança vívida me faz viajar no tempo e baixar a guarda.


Elleanor aproveita para se soltar. Dá dois passos para trás,
mantendo os olhos fixos em mim. Seu semblante é calmo. Ela não
parece surpresa.

— Já me contou que voltou antes. Só não comentou que foi por


minha causa. — Vira a garrafa, ingerindo uma boa quantidade de
vinho. Ela se lembrará dessa noite de uma forma bem dolorosa
amanhã!

— Quando conversamos? — Algumas cenas estão embaralhadas


em minha mente.

— Do que se lembra, Park Jae Young? — Cruza os braços


segurando a garrafa pelo gargalo. — Desde o dia em que chegou no
Brasil até o acidente?

— Não sei explicar, as lembranças parecem um quebra-cabeça


cujas peças não se encaixam nunca. — Elleanor direciona a cabeça
para o céu junto com a garrafa, derrubando uma quantidade
considerável do líquido bordô na boca.

— Jae, é provável que você, de forma inconsciente, não queira


recuperar a memória, pois se decepcionou muito com Wook, a quem
você amou mais do que a si próprio.

— Do que está falando, Elleanor? — Ela envolve meu pulso e me


guia até o parapeito.

— Eu não posso interferir, apenas confortar e acalentar as almas


para que elas descubram sozinhas suas pendências, mesmo que eu
possua a informação que elas necessitam. — Meu peito recebe as
pancadas, que vão se intensificando a medida que ela fala. — Como
seu estado não é esse, teoricamente não estou infringindo nenhuma
regra. Além do mais, pode ser perigoso não saber.

— Realmente não compreendo, está me confundindo... não


identifico essa pressão desconhecida em mim...
— Como expliquei, isso é você lutando para que os
acontecimentos dolorosos não voltem. Wook mentiu sobre namorar
comigo, Jae. — As palavras dela me golpeiam violentamente e tudo
gira. Pontadas agudas na cabeça me fazem ir ao chão.

Elleanor vem ao meu encontro e me levanta. Segura minha mão


enquanto relata os acontecimentos que presenciou. O som da sua
voz me embala e as imagens, antes distorcidas, ganham formas e se
encaixam. Apenas uma parte está faltando: a cabana.

— Obrigado, Lia. Agora eu recordo. Mianê! — Elleanor esmurra


meu ombro enquanto ingere mais vinho. O arrependimento me
massacra sem dó. Desperdicei minha vida toda por ser um covarde...

— Wook sempre foi insistente, e hoje, analisando mais


atentamente, era obsessivo. Mas sempre fui honesta com ele, deixei
explícito que não existiria nada entre ele e eu, que nunca o vi de
outra forma. — Elleanor pousa sua mão sobre a minha. — Entende
agora por que não pode desistir? Por que fiquei tão furiosa? —
Fecho os olhos, movimentando de leve a cabeça. — Você não me
deu oportunidade de explicar e ainda desistiu de mim, como se eu
fosse àquela caixinha de música que seu irmão reivindicou e você
apenas repassou.

— Mianê, Elleanor. Eu errei, mas você não foi a única a sofrer.


Essa decisão acabou comigo. Por fora, a embalagem que todos viam
podia ser bonita, mas por dentro, a destruição tinha a mesma
proporção de uma guerra.

Acaricio sua face, seus olhos brilham em meio a água que os


circunda. Seguro seu rosto entre minhas mãos. Não tenho mais
tempo a perder.

— Desde o momento em que a vi admirando a casa ao lado da


minha, meu coração te escolheu, mesmo antes de ser capaz de
entender ou nomear tal sentimento. — A água presa em suas belas
órbitas verdes, transborda. As minhas ardem, desejando imitá-la.

Elleanor bebe o restante do líquido espremendo os olhos e


sacudindo a cabeça. Coloca a garrafa no piso.

— Gostaria que tivesse me dito isso em carne e osso. — Ergue-


se, virando de costas para mim. Repousa os braços sobre o
parapeito. Abaixa a cabeça. Lágrimas pingam sobre o concreto frio.

Ponho-me de pé e me aproximo dela. Envolvo-a com os braços


até minhas mãos se unirem em frente à sua barriga. Repouso o
queixo em seu ombro. Agradeço por poder sentir o aroma fresco da
sua pele. Meu coração parece pulsar ali.

— Mianê! — Toco sua face com meus lábios. — Adoraria voltar no


tempo e corrigir todos os meus erros... Sinto saudade das noites no
terraço da sua casa, quando passávamos horas observando o céu
escondidos dos nossos pais, ou quando você recebia visitas
especiais... Às vezes eu torcia para que eles aparecessem com mais
frequência, assim poderia ficar ao seu lado e segurar sua mão.

— Sempre pensei que se incomodasse com eles.

Ela pousa as mãos sobre as minhas. Inclina de leve o pescoço,


aconchegando ainda mais minha face e permitindo uma proximidade
maior. Nem parece que passamos tanto tempo distantes um do
outro.
— Pelo contrário. Quando eles surgiam, eu tinha uma justificativa
para me aproximar. — Meus lábios instintivamente se esticam,
alegres.

— Eu também gostava. Sua mão quentinha me pacificava. Você


era o lugar mais seguro do mundo para mim, mais até do que meu
pai.

— Se tio Lucio souber, ficará muito bravo comigo.

— No fundo ele sempre soube, só não admite. — Lia ri pela


primeira vez de forma descontraída. A aperto um pouco mais entre
meus braços.

— E seus visitantes, ainda vêm com frequência?

— Não. Cada vez menos. De qualquer forma, não me assustam


mais e não demoro tanto tempo para ajudá-los. Experiência!

— Isso me tranquiliza.

— São apenas pessoas perdidas, Jae. Não tiveram tempo ou não


souberam como resolver questões importantes para eles antes de
cumprirem seu destino e ir para o outro mundo.

— Entendo perfeitamente a situação. — É irônico, mas o meu


estado é o mesmo que o deles atualmente. — Você devia descansar,
Lia. — Ela meneia a cabeça concordando.

Tiro os braços do seu corpo. Elleanor pega minha mão,


entrelaçando nossos dedos. Olha bem no fundo dos meus olhos, dá
um longo e profundo suspiro, e então me presenteia com o mais
doce e singelo sorriso. Seguimos andando devagar pelos degraus,
corredor e, enfim, apartamento adentro.

Acomodo-me em sua cama enquanto aguardo-a se preparar para


dormir. Lia sai do banheiro vestindo uma camiseta rosa claro e short
cinza. Cabelos soltos. A face ainda inchada e avermelhada, no
entanto, isso não afeta em nada sua beleza para mim.

Abro os braços sorrindo. Elleanor se aproxima, movendo-se pela


cama feito um gatinho manhoso, deita ao meu lado usando meu
braço como travesseiro. Acaricio sua cabeça.

— Nan neoleul joh-ahae, Elleanor Ssi.

Ela eleva o corpo até ficarmos com os rostos na mesma altura.


Lentamente aproxima-se. Para, me encarando com seu olhar intenso
e profundo. O coração palpita em mim e em meu corpo — consigo
senti-lo perfeitamente, pulsando com vigor e em duplicidade.

Elleanor toca meus lábios com os dela, demorando-se um pouco,


o suficiente para me despertar e o que quer que fosse que não me
permitia ter ciência da ligação entre minha alma e meu corpo,
desaparece nesse exato momento.

Minha cabeça parece explodir, as costelas latejam, pés e mãos


formigam. Uma corrente de ar me puxa. Forço minha permanência
ao lado de Elleanor, a fim de não assustá-la.

— Eu também gosto de você, Jae Young. — Ela deita outra vez


em meu braço.
Seguro do lado contrário da cama, enquanto algo semelhante a
um elástico esticado pelas duas pontas tenta me puxar. Beijo sua
testa.

Aos poucos, sua pulsação diminui até entrar em um ritmo


constante; o corpo relaxa e enfim os olhos se fecham, embora
lágrimas ainda passeiem por sua face.

Seco-as aproveitando para deslizar a mão pelo seu rosto,


assegurando-me de que não vou esquecê-la nem mesmo no outro
mundo.

Afrouxo a mão devagar. Hora de ir! Fecho os olhos, permitindo


que a outra ponta do elástico vença.
29

Jae Young

Quando sou capaz de me mexer, analiso ao redor. Paredes


brancas... Será que estou na recepção de Gael? Giro a cabeça. Uma
cama ao centro, monitores... Meu corpo. Estou de volta ao quarto do
hospital. O bip-bip dos aparelhos martelam alto.

Ao lado da cama, sentado na cadeira de metal, Jae Wook.


Cabelos despenteados, camisa xadrez, jeans desbotado e rasgado.
Nos pés, sandália.

— Aigoo! — Cruzo os braços estalando a língua. — Park Jae


Wook, que péssimo senso de moda! Definitivamente! Eu não morri
ainda e já está um trapo! Como será no meu velório, então?

Aproximo-me mais.

Seu rosto afundado no colchão, com as duas mãos segurando a


minha. Ruídos semelhantes a soluços escapam de sua boca.
Suspiro, passando a mão sobre seus cabelos.
Sentada no sofá, Mariana observa a cena com mãos inquietas,
morde os lábios e solta longas lufadas de ar.

— Mianhada! Eu juro que não queria que você se machucasse,


hyung! Eu... Eu... Errei.

Nunca o ouvi dizer que errou, nem com a voz falha. Jae Wook em
geral é seguro de si. Não costuma demonstrar emoções tão fortes
assim. Nem quando o velho Jung Hee se foi...

— Sei que fui egoísta. Te responsabilizei por algo que não existe
culpa ou culpado... Não devia ter gritado com você. Então acorda.
Reage!

Jae Wook aperta minha mão com muita força. O soluço aumenta
até virar um pranto.

Tento tocá-lo, mas algo me impede, como se houvesse um grande


muro entre nós.

Wook demonstra estar crescendo! Meu âmago se aperta, lágrimas


invisíveis rolam por minha face...

— Jae Young, precisa se lembrar do que me disse: que me


protegeria, que cuidaria de mim pela mamãe e pelo papai. Você é o
mais velho, é seu dever! — Seu corpo treme como se estivesse
convulsionando.

—Omma, Joesonghabnida! As coisas não saíram como eu


imaginei. E infelizmente eu não poderei mais cuidar do Wook. —
Procuro tocá-lo e, de novo, não consigo, como polos magnéticos que
se repelem.
Ele ergue a cabeça, olhos envoltos em água, entretanto, o fundo é
vazio, frio, oposto ao que aparenta por fora.

— Eu só tenho você, hyung! Ana está viva, mas na maior parte do


tempo ela já se foi, não tem consciência nem da própria existência.
Elle está me evitando. Não quer falar comigo... Você é meu porto
seguro, hyung!

Meu coração pulsa forte; ouço nitidamente o som emitido pelo


monitor mudar para um ritmo mais acelerado. A mão que ele segura
formiga não apenas na alma, mas no meu corpo físico. Eu consigo
senti-lo perfeitamente!

— Miane! Miane! — Me concentro, tentando mexer os dedos. A


sensação é de que eles me obedecem, no entanto não noto nenhum
movimento. Talvez seja apenas meu desejo.

Jae Wook ergue a cabeça, saltando do chão e pondo-se em pé.


Toca cada dedo, cada micro pedaço de pele da minha mão. Ele
analisa todo o meu corpo, mexe em meu rosto. Volta a agarrar minha
mão com vigor.

— Hyung! Acorda! — Ele sacode minha mão. — Jae Young! Eu sei


que está me ouvindo! Por favor! Você tem que viver!

— O que está fazendo, Wook? — Mariana corre até ele e segura


suas mãos, o virando de frente para ela. Seca suas lágrimas.

— Ele mexeu, eu juro! — Ela encara meu corpo imóvel, seus olhos
marejando. Passa a mão na cabeça do Wook.
— Calma. Eu sei que deseja que seu irmão acorde, mas confie
nos médicos. Está bem? Vou buscar algo para você comer e te
ajudar a se acalmar.

Mariana caminha até a porta, puxa a maçaneta e desparece pela


abertura. Não transcorre nem uma fração de segundo e Jae Wook
limpa o rosto com as palmas das mãos. A debilidade e a fragilidade
do corpo se evaporam.

Jae Wook se aproxima do meu corpo outra vez. Em pé, encostado


à cama, apoia o corpo com as mãos no colchão, curvando-se até seu
rosto ficar de frente para o meu.

— Você devia ter ficado na Coreia. Por que diabos tinha que voltar
e me forçar a isso? Wae? Só precisava continuar ganhando dinheiro
com seu rostinho lindo.

Sua íris se expande. Ele ri. Toca minha face com a ponta do
indicador duas vezes.

— Assim de perto, nem é tão bonito. Não sei o que viram em


você, sou muito melhor. Não importa.

Ele olha para os monitores, depois para o meu corpo. Toca meu
peito e me encara. Minha garganta se fecha. A sensação de
sufocamento me arrebata e, abruptamente, algo como uma corrente
de ar muito forte me puxa, sugando-me.

A roupa que não servia por ser grande demais agora cabe com
perfeição. O corpo que antes me recusava, agora acolhe-me.
— Sabe o quanto é insuportável esse seu senso de
responsabilidade e sua obsessão por cuidar do irmãozinho no lugar
da pobre mãe que morreu cedo demais? Você é chato. É patético,
Park Jae Young!

Os olhos ardem, o coração lateja, todo o meu corpo parece


encolher. Sinto lágrimas escorrem pela face.

— Aigoo! Você está ouvindo! — Gargalha. Leva a boca até meu


ouvido esquerdo. — Se continuasse com sua postura de irmão
protetor e aceitasse deixar Elleanor para mim, eu não o teria
empurrado.

Meu peito é golpeado sem parar. A massa encefálica cresce,


pressionando mais e mais o crânio, que parece se partir ao meio. O
som do monitor se intensifica e reduz o intervalo entre os bip-bip.

— Elle nunca será sua, nem de ninguém, apenas minha. Então vá


de uma vez fazer companhia à mãe e ao pai. Já basta ter que cuidar
da Ana, você também será demais. E não demore muito ou terei que
te dar outro empurrão.

Uma pontada extremamente aguda atinge o peito pela última vez.


O oxigênio não entra mais. Toda a minha força se esvai.

O monitor dá um grito, silenciando em seguida. E, como uma


cortina encerrando o último ato de uma peça de teatro, rapidamente
meu palco escurece. Todas as luzes se apagam...
30
Elleanor

Tateio a cama notando o vazio ao meu lado. Minha cabeça está


acomodada sobre o travesseiro sem vida nem emoção. Luto contra
as ordens do meu cérebro, que insiste para que abra os olhos. Temo
a certeza do que constatei sem ver.

— Elleanor! Se apresse! — O aroma de violeta preenche o


ambiente. Sento na cama de um salto. Os olhos umedecem. Levo a
mão sobre o coração, massageando o órgão esmagado.

— Jae não está aqui. O que... — Um nó gigantesco se forma na


garganta, impedindo a fala e a respiração.

— Apenas corra, Elle.

O rio em meus olhos transborda ao mesmo tempo em que meu


corpo reage mecanicamente, tirando uma peça de roupa e colocando
outra sem ao menos distinguir se é adequado. Escovo os dentes,
prendo o cabelo.
Pego a bolsa com a carteira, abro. Antes que coloque o celular
dentro dela, sua tela acende com o nome de Wook. Gael surge em
minha frente com o semblante sério. Aponta para o aparelho. Passo
o dedo sobre a tela levando-o até a orelha.

— Elleanor, não desligue, por favor. Hyung... — O coração,


mesmo aos farrapos, bate tão forte que me pergunto se a caixa
torácica não vai se partir com os golpes. — Algo sério está
acontecendo. Há enfermeiros e médicos entrando a todo o momento.
Eu já perguntei, mas ninguém responde. Ignoram-me. Venha rápido.
Ajude meu hyung!

O aparelho é pesado demais. Minha mão não suporta e deixa que


ele caia. Ando porta a fora sem enxergar um palmo à minha frente,
sem reconhecer qualquer ruído, apenas as palavras do Wook
ressoando sem parar.

Pego um taxi até o hospital. Quando chego, tiro qualquer valor da


bolsa sem nem ao menos conferir. O motorista emite algum som,
mas não há tempo. Passo pela recepção voando, entro no elevador
parando no andar onde Jae está, ou deveria estar...

Meus passos no corredor parecem ser o único barulho que


escuto, até ver algumas pessoas vestidas de branco correndo,
entrando e saindo do quarto de Jae. Não penso. Sigo os passos
deles, irrompendo pela porta.

Uma mulher põe as mãos nos meus ombros, tentando me impedir


de entrar. Levo as mãos aos seus pulsos, apertando com toda minha
força.
— Não sairei daqui nem morta! — Empurro a mulher, que se
desequilibra e quase cai. Aproximo-me da cama.

— Você não pode ficar aqui! — Ela grita. Apenas ignoro.

Médicos e enfermeiros administram substâncias desconhecidas


para mim. Um homem de jaleco branco bombeia com a mão um
respirador manual. Outro verifica os olhos dele.

— Está caindo de novo. Rápido! — diz uma das enfermeiras. Não


a entendo, mesmo assim, observo o monitor e noto que as linhas
que fazem curvas ritmadas estão cada vez mais espaçadas e
menores.

Volto-me para o rosto do Jae e o vejo em pé ao lado do seu


próprio corpo.

— Sinto muito, Elleanor! — Lágrimas correm por sua face corporal


e espectral.

O monitor apita um som irritantemente agudo. As linhas agora


estão retas. Os médicos se apressam e começam a retirar a maca
do quarto.

— Depressa! — Um homem de óculos grita para os demais.

— Não! Jae Young! Você não pode me deixar! Não vou te


perdoar! Jae! Não vai embora! Por mim! Fique por mim, por favor! —
Seguro na mão de Jae enquanto corro junto com os médicos pelo
corredor.

— A partir daqui a senhora não pode entrar. — Um rapaz com


rosto bem jovem, retira minha mão, liberando Jae. Os outros entram
com ele. — Faremos o possível para que ele volte! Por favor, confie
em nós. — Me solta e corre porta adentro.

Minha própria alma abandona meu corpo, que cai livremente no


chão do hospital. Soco meu peito. O coração para de bater, a
respiração se esvai.

— Gael...

Tudo ao redor se apaga. Perco a consciência do meu corpo.


Como se estivesse apenas flutuando bem alto, leve como um balão.

Talvez Gael tenha me levado também. Prefiro morrer a não ter


Jae na minha vida!

— Sabe que isso ficará registrado no seu livro como uma


transgressão?

Gael! A escuridão cede lugar para o grande quarto branco.


Fronteira outra vez. Os ombros caem junto com o ar que escapa dos
pulmões.

Estou deitada sobre um grande sofá branco. Tentando me


assustar, sem a menor sombra de dúvidas.

— Fazendo mau juízo de mim outra vez. — Sacode a cabeça para


os lados estalando a língua. — Deixou-me muito preocupado,
Elleanor.

— Por que estou aqui? Morri antes dele?

— Vejamos. — Ele abre a palma da mão e minha imagem


aparece. — Não há vagas para você ainda. — Gael sorri com as
violetas me encarando, o bom humor de sempre. Para ele, nada
demais está acontecendo, só mais um dia de trabalho.

— Não o leve. — Saio do sofá e vou em sua direção. Paro,


dobrando os joelhos até tocarem o chão, uno as mãos encarando-o.
— Eu te imploro. Jae já perdeu tanto na vida, dê a ele apenas mais
uma chance.

Gael se abaixa, envolvendo minhas mãos entre as suas. Sorri de


um jeito diferente, com empatia.

— Não decido sobre a hora dos humanos partirem, você sabe


disso. — Afaga minha cabeça.

— Fale com Deus, por favor, Gael. Você tem mais proximidade
com Ele do que eu, uma bruxa. — Gael abaixa a cabeça em silêncio.
— Se não quer me ajudar, então me esqueçam. Não me enviem
mais nenhuma criatura perdida. Desapareça para sempre da minha
vida!

— Chantageando o pobre ceifador, Lia? — Ouvir sua voz foi o


mesmo que me matar. Empurro Gael para longe. Ponho-me de pé,
virando-me para Jae Young.

— Não... — Ele vem até mim, cercando-me em seus braços.


Pousa os lábios em minha cabeça. — Não, por favor! Não é justo!

— Miane, Elleanor. Não consegui. Você precisa ser forte. Viva


bem, viva intensamente, e quando for sua hora, estarei aqui à sua
espera. — Jae sorri contido. Ele aceitou seu destino, mas eu não.
— Como serei feliz? Me diga? Dói tanto Jae! Tanto... — Aperto-o,
meus braços em volta de sua cintura.

— Eu sei, Lia. Mas precisamos seguir nossos caminhos.

— Não... Não...

— Se afaste de vez de Wook. Ele está fora de controle, se perdeu


por completo. É perigoso, Lia.

— Foi ele que...

— Sim...

— Eu vou...

— Hã-hã. — Gael tosse. — Desculpe interromper a sessão


drama, mas existe uma questão importante a definir.

Passo a mão na face, secando as lágrimas. Giro, ficando de frente


para Gael, mas com os braços ainda envolvendo Jae. Se o soltar,
talvez ele desapareça na luz, e não estou pronta para dizer adeus.

— Park Jae Young, seu nome aparece na minha lista nesse


momento. — Fecho os olhos, implorando mentalmente e diretamente
a Deus para mudar de ideia e permitir a Jae viver mais um tempo. —
No entanto, está pela metade. Significa que a escolha é sua. Você
está com um pé no meu mundo e outro no mundo dos vivos.

— O quê? Você disse que...

— Nem eu sei todas as regras, nem os motivos. “Ele” e apenas


“Ele” decide como, quando, e se. — Eleva a mão direita em direção
ao céu.
— Mwo? Eu não morri? — Jae alterna o olhar entre Gael e eu.

— Ainda não. Estão trabalhando com muito afinco para te salvar.

— É claro que Jae voltará, certo? — Seguro as mãos dele,


encarando-o com súplica.

— Não há garantias de que sua vida será a mesma se optar por


voltar. Seu corpo sofreu muito, poderá ter sequelas, como perda
parcial ou completa de memória. Atrofia ou paralisia dos membros
inferiores, por exemplo... Você pode até mesmo passar o resto dos
seus dias preso a uma cama. — Gael nos observa atentamente.

Não sei se isso é uma benção ou castigo. Talvez eu tenha


cometido algum erro muito grave, transgredi alguma regra celeste e
agora estamos recebendo nossa punição. Quero que ele viva sim,
mas sofrendo?

— Memórias podem ser reconstruídas de outras formas. Os


outros problemas também posso encontrar um meio de conviver. —
Toco seu rosto.

— Eu quero que... — Ele cobre minha boca com a mão. Beija


minha testa. Abre seu sorriso contido, afasta-se, curvando-se
completamente para Gael, que, por sua vez, une as mãos em forma
de prece. Então, vira-se para mim estalando os dedos.

Os olhos ardem, minha boca está seca. Levanto as pálpebras


devagar. Meu cérebro pressiona o crânio, causando uma dor aguda.
A visão embaçada, o peito movimentando-se para cima e para baixo
com dificuldade.
Pisco algumas vezes, até que as imagens ao redor ganhem
forma.

O primeiro rosto que vejo é o de Mariana, cujos olhos estão


inchados e vermelhos e, ainda assim, ela sorri, debruçando-se sobre
mim.

Quando me solta, noto que Marcus também está ao meu lado. Ele
acaricia minha cabeça.

— Nos deu um baita susto, Elle!

— Está se sentindo melhor? — Mari faz um bico enorme.

Vejo um cateter no meu pulso esquerdo, inclino a cabeça e há um


balão enorme de soro pendurado. Hospital... Eu estou doente?
Fecho os olhos e tudo o que aconteceu vem à tona de uma única
vez!

— Jae? Onde ele está?

Os irmãos se entreolham. Balançam a cabeça negativamente.

Solto o ar de uma vez, junto com uma enxurrada de lágrimas. Meu


corpo todo dói, ferido em todas as partes. Minhas entranhas
transformam-se em migalhas.

Sento na cama e arranco o soro do braço. Mariana segura minha


mão, mas Marcus sinaliza para ela me largar.

Desço do leito e sigo em direção à porta. Antes que eu chegue até


lá, Wook a atravessa com o rosto em prantos. Quero apertar seu
pescoço até sua alma abandonar o corpo, mesmo que eu vá para o
inferno com ele.

Quando o pé direito se move para a frente, as pernas vacilam.


Sou amparada pelos braços de Marcus, que me impedem de realizar
meu desejo.
31

Jae Young

Ouço o som do ar passando suavemente pelo nariz. Percebo os


movimentos de subida e descida da caixa torácica. Comprimo a
musculatura da garganta, nada entra. A boca está seca. Forço os
olhos a se abrirem, as pálpebras pesam. Uma. Duas. Três. Só então
elas levantam por inteiro.

A princípio, a luz me impede de ver qualquer coisa. Dói de tal


maneira que algumas lágrimas me escapam.

Algo quente e macio toca minha face. Mesmo sem enxergar do


que ou de quem se trata, meu coração se alegra, saltando
apressado. O sangue flui, irrigando toda a extensão do corpo que
parecia adormecido, e agora se aquece.

— Jae! Está me ouvindo?

A voz doce e trêmula soa quase como um sussurro, e por um


breve instante a dúvida prevalece. Dura apenas uma fração de
segundo, pois assim que a pronúncia do meu nome sai de sua boca
pela segunda vez, sei com precisão de quem é o toque.

— Lia? — Tusso devido a sequidão. A visão aos poucos ganha


foco. Paredes claras. Poucos objetos ainda disformes. Formas
humanas ao redor.

— Sim.

A pronúncia falha da minúscula palavra, assemelha-se a um


choro contido. Levanto o braço com certa dificuldade; meu corpo não
obedece bem aos comandos... Estranho...

Pisco algumas vezes até que os olhos verdes tão familiares se


tornam evidentes. Pouso a mão sobre a dela, bem ao lado do meu
ombro.

— Que bom que acordou...

O entorno dos olhos de Elleanor estão escurecidos e fundos, as


bochechas afundaram. Lágrimas correm por sua face.

Meu cérebro pulsa e lateja. Algumas imagens embaralhadas de


Elleanor chorando, empurrando Wook, e meu irmão e eu em pé,
aparentemente discutindo nas margens de um rio, despontam como
uma tela de cinema diante dos meus olhos. Aperto a cabeça.

Lia se abaixa, aproximando o rosto do meu.

— Jae? Está com dor? Mari, chame um médico ou um enfermeiro,


rápido.

Seguro sua mão, puxando-a para o meu peito.


— Lia. Estou bem. Só um pequeno incômodo na cabeça. —
Mariana se aproxima da amiga, e só então a noto de verdade. Ela
abraça Elleanor.

— Elle, Jae Young acabou de acordar. Acredito que seja normal


depois de tantos dias, ele sentir desconforto. — Dias? Balanço a
cabeça, confuso.

— Hyung! Deu-nos um grande susto.

Giro em direção a voz de Wook.

Camiseta preta e jeans rasgado. Ele vem até a cabeceira. Sua


proximidade provoca reações estranhas em mim: um aperto
esmagador no peito, respiração acelerada, quase sufocante.

Ele coloca sua mão em meu ombro. Então, como se levasse um


choque, os pelos da nuca se arrepiam.

Elleanor, com um rápido movimento, o afasta de mim. A luz de


alerta se acende. Mariana gesticula para Lia, como se a advertisse
de algo, entretanto, Elleanor não recua.

— Wook, vou à cantina comprar algo para Elle comer, pode me


ajudar?

— Hyung acabou de acordar, prefiro ficar com ele. — Encara Lia.


— Você deveria ir com Mariana, assim descansa. Eu cuido do meu
irmão.

— Não sairei do lado de Jae. — A forma como Elleanor o observa


é semelhante a um cão de guarda, pronto para atacar ao primeiro
sinal de perigo.
Pisco, e a imagem dela chorando na chuva entrando em um
ônibus surge.

— Por que estou aqui?

— Não se lembra do que aconteceu? — Lia afaga meus cabelos.

— Não tenho certeza...

— Você caiu enquanto fazia uma trilha em Juquitiba. — Wook fala


apressado. Elleanor solta o ar pela boca desviando o rosto.

— O que estava fazendo lá? Fui sozinho? — Alterno o olhar entre


os dois.

— Wook estava com você...

— Você queria descansar e relembrar a época em que


pescávamos com o pai. Então me chamou...

— Vocês dois brigaram... — Ambos parecem metralhadoras


disparando sem parar em lados opostos de um campo de batalha.

— Não brigamos, foi apenas uma discussão boba. Insinuações


sem fundamento. De novo, Elleanor, você não estava lá, como
pode...

— Apenas repetindo o que você mesmo disse quando eu cheguei


no acampamento...

— Parem! — Seguro a mão de Lia enquanto encaro meu irmão.

— Mianê, hyung. — Wook caminha até o sofá. Senta cruzando as


pernas. Pega uma revista e folheia.
Elleanor permanece ao meu lado. Apenas puxa uma cadeira onde
acomoda-se, praticamente colada à minha cama.

— Ainda bem que cumpriu o que me prometeu, ou não te


perdoaria dessa vez. — Elleanor sorri com um misto de satisfação e
dor.

Aigoo! O que ela está fazendo? Wook bem perto? Será que ela e
eu...

“Espero que seu irmão não tenha inventado nada a meu respeito.
Eu e ele só existiu, existimos e existiremos de uma única maneira:
como amigos.”

A imagem dela vestida de preto me encarando e dizendo isso


martela sem parar na minha mente. O coração golpeia massacrando
os ossos, que com certeza, racham.

Elleanor segura minha mão junto de si. Wook nos observa em


silêncio. Para ela, é como se ele não existisse.

“Como pode ter visto algo que nunca aconteceu? Seu irmão às
vezes é muito impulsivo, tocando-me sem permissão, mas nunca me
beijou.”

Outra lembrança surge, dando certeza de que há algo errado


entre Wook, Lia e eu. Juntos os dois não estão, e parece que nunca
estiveram, o que significa que alguém mentiu...

*
Após uma semana e todos os exames apontarem melhora
significativa, o médico enfim me liberou. Elleanor e Wook ficaram o
tempo todo comigo, e quando digo o tempo todo, é literalmente isso.
Não revezaram entre si, ficaram ambos ao mesmo tempo.

Lia, embora eu consiga caminhar e organizar minhas coisas, não


consente, e neste exato momento, em que o médico acaba de fechar
a porta atrás de si, ela dobra meus pijamas e outros itens pessoais,
guardando-os na mala de mão.

Wook permanece sentado no sofá olhando para a televisão sem


realmente prestar atenção. Seu semblante nesses últimos dias está
sempre carregado, mandíbulas travadas, olhar vago.

Elleanor não permite que ele se aproxime dela, e quando Jae


Wook me cerca, ela corre para o meu lado, como se estivesse me
protegendo ou vigiando-o.

As lembranças ainda continuam uma bagunça, contudo, a cada


novo pedaço que chega, mais certeza tenho de que eu e Lia nos
aproximamos... mais do que velhos amigos de infância.

Quanto ao meu irmão, o desconforto só aumenta. Ainda não


recordei nada significativo, mas meu corpo o repele. Seu toque agita
meus órgãos e o cérebro cresce, pressionando a cabeça: uma
bomba prestes a detonar.

Abotoo a camisa branca observando através do espelho do


banheiro Elleanor fechando zíper da mala. Ela coloca a mão na
cintura, solta o ar e vira-se para o meu lado bruscamente. Saio do
banheiro.

Wook se põe de pé, pegando a mala.

— Está pronto, hyung?

— Ye. — Lia se aproxima, auxiliando-me a fechar o botão do


punho direito.

— Pensei que sua carreira de modelo o teria ensinado a se vestir


sozinho. — Ela sorri concentrada na tarefa.

— Eu sei fechar sozinho, só demoro um pouco mais quando uso a


mão esquerda.

— Agora podemos ir? — Wook caminha puxando a mala, abre a


porta e para, segurando-a.

— Sim. — Sorrio para Lia. — Vamos?

— Tomei a liberdade de pegar sua chave e entreguei a Marcus,


que se encarregou de organizar tudo. Como não sabia seu endereço,
precisei da ajuda do RH da agência. — Olha para baixo igual a
garotinha do passado quando fazia algo sem me consultar.

— Obrigado, Elle. Mas hyung ficará conosco. Ele ainda requer


cuidados. — Elleanor o encara com olhos em brasa. Morde os lábios
com tanta força que sou compelido a intervir para que ela não se
machuque.

Envolvo sua mão e a aperto. Ela observa nossas mãos unidas,


então levanta a cabeça até encontrar meus olhos. Meneio a cabeça
e estico os lábios um pouco. Ela liberta os lábios que estão roxos e
com marcas profundas dos dentes.

— Eu te farei companhia. Madá me deu alguns dias de férias...

— Hyung necessitará de mais tempo, Elleanor, é melhor ele ficar


com a família. Comigo e Ana em Bom Retiro. — Ana... De novo ele a
chama pelo nome ao invés de mãe...

— Eu vou com você, Wook. Acredito que um tempo juntos pode


me ajudar a relembrar.

— Jae, você precisa de repouso e Ana de atenção, por isso o


melhor é ir para sua casa. Eu cuidarei de você e Wook pode se
preocupar apenas com a mãe. — As íris verdes imploram
silenciosamente, brilhando e liberando água pelos cantos.

— Hyung sempre cuidou de mim, agora é a minha vez, Elleanor.


Minha responsabilidade, como única família de Jae Young. — Veias
saltam do pescoço de Wook. Seus olhos estão arregalados e as
pupilas dilatadas. Um arrepio perpassa toda a extensão da minha
coluna.

— Chega de discussão. Vamos para o Bom Retiro. Esse ambiente


me cansa. — O corpo de Wook relaxa. Os lábios se alargam mais
para o lado direito, formando um sorriso torto, com ar de quem sabia
com antecedência que venceria a disputa.

Elleanor cerra os olhos, desviando o rosto para o outro lado por


alguns segundos, até retomar a postura, soltando o ar de uma vez.
— Se é assim que Jae prefere, eu vou com vocês. — Cruza os
braços imitando o sorriso de Wook, que apenas dá as costas,
andando à nossa frente com a mala.

— Por que está tão preocupada, Lia?

— Se você ao menos se lembrasse do acidente, eu ficaria mais


tranquila. — Abaixa a cabeça. Bagunço seu cabelo.

— Confie em mim.

— Eu confio, mas há coisas que você precisa tomar cuidado... —


Eu sei, Elleanor...

Caminhamos pelo corredor lado a lado, quase colados. Nossas


mãos se tocam conforme nos movimentamos — parece que
voltamos à adolescência, pois esse simples gesto aquece meu
coração, que salta depressa.

Elleanor segura o riso e duas bolinhas vermelhas surgem no topo


da sua bochecha. Não resisto. Envolvo sua mão, entrelaçando
nossos dedos. Ela me observa com os olhos marejados.

O que quer que tenha acontecido antes, não deixarei mais que
nos separe, nem mesmo Wook...

— Isso fez muita falta. Não sabe o quanto, Jae. Você segurou
minha mão e me protegeu todas as vezes que eu precisei. Agora eu
farei o mesmo por você. Se quiser soltar minha mão, eu não
permitirei.

Interrompo os passos, deixando Wook se afastar. Ela sorri em


cumplicidade. Puxo-a para junto de mim e envolvo todo seu corpo
com meus braços, apertando-a. O calor de sua pele faz meu sangue
ferver e fluir com a velocidade de um jato. O coração martela no
peito, garganta, pulsos e cabeça. O ar não é suficiente, e necessito
de um esforço maior para conseguir encher meus pulmões. Afago
seus cabelos, que reluzem com a luz refletindo sobre eles.

Afasto-me devagar.

Com sua face entre minhas mãos, levo os lábios até sua têmpora,
seguindo o lado direito e depois o esquerdo do rosto.

— Também não deixarei você...

Suas mãos vão para os meus ombros, onde ela se apoia,


impulsionando o corpo até seus lábios tocarem os meus, paralisando
meus movimentos.

Ela desce a mão pelo meu peito voltando a ficar sobre seus
próprios pés. Enlaça minha mão de novo e guia-me.

— Só estou pegando de volta o que você roubou antes.

Seus passos curtos são mais rápidos que os meus. Meu corpo
está enferrujado e não se mexe bem.

Como um flash, eu me vejo abaixando lentamente o rosto e


pousando minha boca sobre a dela, que está de olhos fechados no
banco de um carro. Sorrio, compreendendo o que ela disse.

Recupero minha agilidade e acompanho seu ritmo até chegarmos


perto de Jae Wook.
Ao passar pela recepção, soltamos as mãos, assim que notamos
a cabeça do meu irmão se voltando para nós.

Adentramos o carro controlando a respiração e evitando sorrir.


Cúmplices do mesmo crime...
32

Elleanor

A porta se abre de repente, chocando-se com a parede. Salto,


derrubando a camiseta branca que havia acabado de dobrar. Um
furacão de cachos perfeitos, bufando feito um touro, para bem diante
de mim.

— Você vai mesmo fazer isso?

— Sim.

— Elleanor, se o que me contou é verdade, estará em perigo tanto


quanto Jae Young. Vamos pensar em outra forma de ajudá-lo.

— Qual, Mari? — Seus ombros sobem e descem. — Não o


deixarei sozinho naquela casa.

— Volte para cá pelo menos para dormir. Preciso saber que você
está bem, Elle.

— Ainda não sei como vai funcionar isso... Depende da reação de


Ana e da evolução de Jae.
— Me ligue, dê notícia todos os dias, certo? Sempre que for
possível, eu e Marcus passaremos por lá. — Ela me abraça. — Tome
muito cuidado.

— Não colocarei minha vida em risco, principalmente as de Jae e


Ana... Acredite em mim.

Mariana se distancia, expirando e meneando a cabeça. Simula um


sorriso que mais parece uma careta, um choro dolorido. Ela deixa o
quarto.

Assento a última peça de roupa na mala. Puxo o zíper de uma


ponta a outra, o coração esforçando-se para manter o ritmo.
Deposito a mala no chão. Elevo a alça. Analiso todos os detalhes do
meu quarto. Inalo o ar bem devagar, soltando em seguida. Giro os
calcanhares partindo para o meu destino.

Com a mala ao lado, toco a campainha. Aproveito enquanto a


porta ainda está fechada e acalento meu interior permitindo que os
olhos passeiem pela casa ao lado, mais especificamente no terraço
vizinho. As boas lembranças daquele ano são como alimento;
fortalecem corpo e mente para continuar lutando. O rangido da porta
se abrindo faz meu pescoço movimentar-se em direção ao som,
encontrando duas faces familiares analisando-me.
Ana coça o topo da cabeça. Franze o cenho e pisca algumas
vezes, só então abre um largo e caloroso sorriso. Caminha até o
portão e o destranca. Não resisto e a envolvo em meus braços.

— Tia! Não sabe o quanto esse abraço fez falta!

— Ah! Querida, venha mais vezes. Sua visita é sempre muito


agradável. Quando Jung voltar da loja, ficará tão feliz!

Meus olhos se inundam no mesmo instante. Formo uma barreira


de contenção para que a água não escape e a assuste. Ela me
reconheceu, entretanto, está em outro momento do passado...

— Claro, tia. Espero que não se incomode com minha presença


aqui. Só ficarei alguns dias para ajudá-la nos cuidados com Jae.

Ana passa seu braço pelo meu, guiando-me até atravessarmos a


porta.

Wook manteve a postura desde o momento em que apareceu ao


lado da mãe: braços cruzados, lábios esticados para um lado, olhos
apagados. De amigo a inimigo. Uma guerra declarada.

Ao passar por ele, todo meu corpo se ouriça.

— Ficará aqui para ajudar o hyung, ou para forçá-lo a te aceitar


como mulher? — Ana solta meu braço e desaparece rumo a cozinha.
Não sei se ela não ouviu ou se sua memória apagou. Inspiro e
expiro. Decido manter a cabeça à frente. Aperto com força a alça da
mala. — Ontem pôde notar que eu sou um excelente irmão. Jae não
necessita de você ou de quem quer que seja para tomar conta dele.
— Já que você é um exemplo de como relacionamentos entre
irmãos devem ser, não há o que temer. Sou apenas um reforço.
Retribuirei a Jae o que ele fez por mim quando precisei.

— Ele nunca moveu um dedo por você, Elleanor. Diferente de


mim... — Volto a caminhar, subindo os degraus.

Ouço passos pesados que logo me alcançam. Uma mão grande


agarra a alça da minha mala, obrigando-me a parar faltando apenas
um nível para o segundo piso.

— Eu levo para você.

— Não estou doente nem sou fraca, além do mais, conheço bem
a casa. Não quero ser um incômodo para ninguém.

Com firmeza, trago a mala para junto de mim. Wook retira a mão,
permanecendo no topo da escada.

Ando apressada pelo corredor rumo ao quarto ao lado do de Jae.


Assim que a porta se fecha atrás de mim, deixo a mala e escorrego
até o chão. As pernas parecem gelatina recém-preparada. O coração
salta na garganta, a barriga esfria. Escoro na porta buscando o
controle da respiração, do corpo e da mente.

Quando me recupero, a primeira atitude é tomar um banho gelado


para ajudar a relaxar e, ao mesmo tempo, manter todos os sentidos
em alerta. Visto um short de moletom e uma camiseta bem
confortável. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo. Abro a porta da
forma mais delicada possível. O corredor está escuro e silencioso.
— Não veio até aqui para se amedrontar, Elleanor! — sussurro
para mim mesma, encorajando-me.

Solto o ar. Caminho na ponta dos pés até parar em frente ao


antigo, e agora de novo, quarto de Jae. Bato de leve com a
articulação radio cárpica do dedo indicador. Poucos segundos
depois, a porta se abre, e o que vejo diante de mim, embora em uma
situação frágil, ainda é a imagem mais linda do mundo.

Jae sorri contido, com os olhos se juntando. Ah! Aqueles olhos


sorridentes pelos quais tanto ansiei! Penso estar a beira de um
enfarte, pois a agitação no peito é tão forte que acredito não ser
capaz de suportar.

— Daebak! Você veio de verdade...

— Eu dei minha palavra...

— Nunca deixaria de cumprir, ao contrário de m...

Subo na ponta dos pés. Com a mão aberta, selo sua boca. Seus
olhos esticam, emitindo um brilho intenso. Minha face arde. É
provável que a pele esteja rubra.

De maneira impulsiva, toco o lado direito da sua face com os


lábios, demorando-me um pouco ali.

Aproveito o calor e a maciez da sua pele, que tem o poder de


relaxar todos os meus músculos e espantar para longe as
preocupações.

Os calcanhares se apoiam no chão outra vez. Encaro os pés,


elevando sem pressa minha cabeça.
Jae permanece imóvel e agora, além das órbitas cintilantes, a
face está avermelhada.

— Cof, cof! — Rio, desviando o rosto para o lado.

— Seu quarto está bagunçado?

— Mwo?

— Não me convidará para entrar? — Jae abre passagem se


desequilibrando e gesticulando com a mão. Logo que adentro, ele
empurra a porta desajeitado, os lábios desenhando discretamente
um sorriso. Seu peito movimenta-se um tanto mais rápido do que o
usual. Me acomodo na poltrona ao lado da cama. Jae me copia,
ficando na beira do colchão. — Como se sente hoje? Ainda dói?

— Apenas um incômodo na costela. — Ele se remexe.

— E a cabeça?

— Não se preocupe, Lia. O médico explicou que demoraria um


pouco para a completa recuperação. É normal que ainda haja dor de
cabeça.

— Só quero saber como está. — Inclino o corpo. Pouso minha


mão sobre a dele. Noto sua glote se movimentar. De certa forma,
isso causa satisfação e sorrio com a cena. Algo semelhante ao que
alguns descreveriam como “borboletas no estômago”, me faz puxar o
ar com mais força.

— Não quero atrapalhá-la. Acredita mesmo ser necessário deixar


seu trabalho para cuidar de mim? — Ele me encara emanando
timidez.
Seus olhos amendoados emitem um brilho cativante, assim como
uma noite estrelada. Meu coração briga com minha mente, que
ordena para ele se comportar – algo que o órgão insiste em ignorar.

— Sim. Você esteve ao meu lado quando eu não sabia lidar com
as minhas assombrações. — Envolvo meus dedos sobre o dorso de
sua mão, apertando-a. — Só quero retribuir e...

— E? — Deita a cabeça para o meu lado, estreitando os olhos.

Desvio o rosto para baixo, refletindo se é correto dizer a ele tudo o


que sinto. Talvez eu o esteja pressionando demais.

Elevo a face até encontrar a dele. E a razão se esconde de forma


que não sou capaz de encontrá-la.

— Recuperar um pouco do tempo que perdi ao lado do meu...


Chingu. É assim que se fala, não é? Amigo. Melhor e especial amigo.

Jae corrige a postura, mexendo a cabeça e desviando o olhar.

— Sim essa é a expressão que usamos. — Ele fica mudo. Algo


deve estar importunando-o. Uma lembrança? Minha presença? Ou
será que foi o que disse?

— Vamos tomar um pouco de sol?

Levanto-me e coloco meu mais amplo sorriso no rosto. Estendo a


mão. Jae Young me observa com a face indecifrável. Minha garganta
seca e por dentro estou tremendo. Penso em recolher a mão,
contudo, antes de fazê-lo, Jae põe sua palma sobre a minha e
entrelaça seus dedos. Meus olhos umedecem. Ele se ergue com
cuidado.
— Você ainda é uma menina travessa! E continuo o mesmo
garoto que não sabe dizer não para ela... — Rimos em silêncio e
sincronia. Nem o tempo foi capaz de roubar esse entendimento tácito
de nossos corpos e mente. — Só não corra, Lia. — Pousa a mão
livre sobre a lateral esquerda do tronco. Concordo, comprimindo sua
mão.

Seguimos escada abaixo, sorrateiros, tanto para que ele não sinta
dor, como para não chamar atenção de ninguém. Atravessamos a
porta andando até o velho balanço. Jae estica os lábios com
vontade, deixando parte dos dentes brancos aparentes. Seus olhos
repetem o ato, sorrindo para mim. E como gelo, me derreto.

— Quer balançar?

— Adoraria que você me empurrasse como antes, mas não agora.


Quando seu corpo se curar, eu mesma o lembrarei da oferta. Por
hoje, apenas sentarmos juntos já basta.

O ajudo a se acomodar no pequeno assento. Suas longas pernas


o deixam em uma posição engraçada. Rio elevando os ombros.

— Não caçoe. Analise por outro aspecto. Sou um belo homem


alto, forte e generoso realizando seu desejo.

Sento ao seu lado segurando as cordas do brinquedo. Inclino a


cabeça para o alto, absorvendo o ar e refrescando-me com a leve
brisa.

— Era seu brinquedo preferido.


— A única forma de me livrar do esconde-esconde e de ter sua
atenção, já que sua prioridade era o Wook. — O encaro. Jae abaixa
a cabeça e sorri contido.

— Minha visão dessa época é diferente. Eu acreditava que era


meu dever proteger Wook e fazer de tudo para que ele fosse feliz.

— E, como na infância, permanece o priorizando.

Busco no fundo dos seus olhos algo que me diga que estou
errada. Que Jae não confia cegamente no irmão, não mais. De
repente, Jae põe sua mão sobre a minha. A respiração se torna
irregular.

— Não é sobre isso que me refiro. Quando nos escondíamos, era


nosso momento. Estávamos sempre juntos. — O peito se agita mais,
meus olhos piscam repetidamente. — Éramos só nós dois.
Sussurrávamos sobre coisas engraçadas, e eu recebia tantas
recompensas! Sorrisos lindos, elogios como “você é um menino
bonito” enchiam meu pequeno mundo de paz e alegria, e o melhor,
furtos de beijos na face.

Desvio o rosto para a frente. De soslaio, noto Jae fixar seu olhar
em meu rosto como se analisasse uma obra de arte ou estivesse
decifrando algum enigma. Uma lágrima teimosa escapa pelo canto
do olho esquerdo.

— Lia! — Volto-me para ele. — Já conversamos algo semelhante


antes?

— Semelhante... em que sentido? — O aroma de violetas surge e


invade todo o local. Gael...
— Sobre meu irmão... Você me disse que eu o preteri sobre tudo,
inclusive sobre mim mesmo. — Gael se materializa ao lado de Jae.
Sinaliza com a cabeça.

— Não usei essas palavras, mas discutimos sobre isso.

— O que exatamente Jae Wook fez?

— Você sabe. — Jae fecha os olhos.

Gael impõe a mão sobre sua cabeça. O que está fazendo?


Encaro Gael, que ri, dando de ombros.

— Eu tenho visto algumas cenas, ou sonhos, não sei ao certo. —


Jae apoia a cabeça, pressionando a lateral da têmpora, cerrando os
olhos e juntando as sobrancelhas. Meu coração dispara. Gael,
parece que ele está com muita dor.

— Confie em mim Elleanor. — Gael some como fumaça.

Saio do balanço. Ajoelho no gramado. Seguro o rosto de Jae


entre minhas mãos.

— Quer entrar? Você não parece bem.

— Ele me disse que vocês namoravam. Você ficou furiosa comigo


por ter acreditado nele...

— Sim, fiquei. Mas não estou mais. — Enlaço seu braço,


auxiliando-o a caminhar. Passamos por Wook, que desce os degraus
apressados. Ele para e nos encara. Ignoro-o, levando Jae comigo.

— O que aconteceu, hyung?


— Nada. Apenas se cansou, por isso estamos voltando para o
quarto. — Não olho para Wook nem paro de andar. Quanto mais
longe dele, melhor.

Deito Jae em sua cama e o cubro com um lençol. Pego o remédio


prescrito pelo médico. Sirvo água que está em uma jarra sobre a
mesa de cabeceira. Ele toma. Sento-me ao seu lado e acaricio seus
cabelos.

— Elleanor, eu...

— Shh. Eu sei. Já me disse. Descanse.

Levanto da cama. Antes que me afaste, Jae segura minha mão e


me puxa com força. Caio sobre ele. Por um milímetro nossos lábios
não se tocam.

O coração enlouquece com a proximidade e nossos olhos são o


espelho um do outro, um imã atraindo seus polos.

— Nan neoleul joh-ahae, Lia. — As lágrimas presas até aquele


momento, agora fogem descontroladas. — Não sei se vou recordar
de tudo, nem quando. Por isso não quero mais perder tempo.

Sua mão coloca uma pequena mecha do meu cabelo atrás da


orelha, deslizando até minha nuca e trazendo-me para si. Seus
lábios quentes e macios tocam os meus com carinho e suavidade.
Meu peito aquece, meu coração bate no mesmo ritmo do dele. Seu
gosto em carne e osso é mais doce do que em seu outro estado.

Ele solta meus lábios devagar.

— Hoje é nosso primeiro dia.


— Se eu não visse dramas coreanos, não o compreenderia. —
Jae ri. — E o que faremos em nosso primeiro encontro oficial?

— Não pensei sobre isso ainda, já que não estou...

— Apenas permanecer ao seu lado é suficiente.

— Elleanor, podemos manter em segredo por enquanto? — Jae


ainda se preocupa com o que Wook sente ou está com medo? De
qualquer maneira, também não acho prudente que ele saiba.

— Claro. Será divertido, oppa. — Ele sorri com a face rubra.

Jae solta o ar como se tivesse se livrado de um enorme fardo.


Suas íris amendoadas brilham. Ele acaricia minha face e afaga
minha nuca, isso é suficiente para que todas as células do meu
corpo anseiem por mais. A espera foi muito longa, praticamente uma
eternidade. Sorrio para ele, que seca as lágrimas em meu rosto.

Levo minhas mãos para sua face e quem toma seus lábios agora
sou eu. Entrego-me com toda força ao amor que vive em mim desde
a primeira vez que vi seus olhos puxados.
33

Jae Young

O leve balançar da cadeira embala a viagem em que minha mente


se encontra. Divagando no vai e vem entre os documentos sobre a
mesa e as incontáveis imagens que mais se assemelham a um
quebra-cabeça antigo, cuja principal peça fora perdida. Persisto na
árdua tarefa de encaixar as peças, e quando penso que finalmente
decifrei o enigma, surge uma nova informação que não se liga
corretamente àquele desenho.

Toc-toc. O ruído me retira do jogo, trazendo-me de volta à


realidade parada a porta da minha sala. Elleanor sorri com uma mão
apoiada na maçaneta e a outra fechada, chocando-se contra a
madeira.

O sol adentrou e iluminou completamente o recinto!

— Não devia estar trabalhando? — Ela fecha a porta atrás de si,


dobra o braço esquerdo e observa o próprio pulso. Com a ponta do
indicador direito, toca sobre o relógio.
— Sei que sou uma humana um tanto diferente, mas meu
estômago funciona igual ao de todos os outros. — Anda até se
aproximar de mim. Puxa a cadeira, senta e massageia a barriga. —
Hora do almoço. Decidi aproveitar a companhia de certo coreano
enquanto me alimento.

— Então não posso permitir que a senhorita fique com fome por
mais tempo.

Ela meneia a cabeça mordendo os lábios. Deixo o assento,


caminho até ela. Inclino o corpo, meu rosto quase tocando o seu. Lia
cerra as pálpebras e faz um biquinho lindo. Toco sua testa com os
lábios, demorando um pouco. Retomo a postura. Ela abre uma
pálpebra; quando nota que não a beijarei, cruza os braços e bate os
pés no piso.

— Não podemos.

— Estamos a sós, acredite, nem mesmo uma alma bisbilhoteira


nos observa. — Movo o pescoço para os lados. — Supostamente,
deveríamos nos divertir, o contrário de agora.

Enlaço seu braço a içando da cadeira.

Caminhamos pelos corredores da agência lado a lado, Elleanor


resmungando impropérios como uma criança malcriada. Assim que
atravessamos a recepção, Jae Wook aparece.

Há dias que ele me cerca a maior parte do tempo. Nunca comenta


sobre Elleanor, como se a tivesse esquecido, ou nem a conhecesse,
no entanto, usa toda sorte de estratégias para que gaste mais tempo
com ele e a evite.
Ele nunca trabalhou tanto quanto agora.

— Hyung! Que coincidência! Estava a caminho da sua sala neste


exato momento.

— Do que precisa?

— Quero tirar uma dúvida sobre a sessão de hoje à tarde.

— Esse não foi o assunto do jantar ontem? — Elleanor o encara


levantando as sobrancelhas.

— Hyung, não levará muito tempo, só o necessário para


acertarmos os últimos detalhes. — Wook me encara como se não
enxergasse Lia diante de si.

— Jae Young, faz apenas um mês do acidente, você ainda


demanda cuidados, e alimentar-se adequadamente é um deles. —
Elleanor agarra meu braço e se interpõe entre Wook e eu. —
Quando ele retornar do almoço, vocês resolvem o que falta. — Os
olhos de Jae Wook faíscam. Sua glote se movimenta devagar. Ele
afasta para o lado e ela aproveita para me arrastar dali apressada.

— Combinamos de manter nosso relacionamento em segredo,


Lia. — Certifico-me de que meu irmão não nos ouve.

— Não contei para ninguém, nem mesmo para uma insignificante


mosca.

— Atitudes também revelam.

— Continuo agindo normalmente. Poderia ter te abraçado ou te


chamado de meu bem. — O atrevimento e espontaneidade da doce
garotinha evoluíram para um sarcasmo ácido.

Ela escolhe um restaurante nos arredores da agência devido ao


pouco tempo disponível. Pedimos macarrão.

Uma das coisas de que mais senti falta quando saí de São Paulo
foi a diversidade culinária e cultural.

O pensamento agradável provoca reações em meu corpo,


levando os lábios a se esticarem e quase tocarem as orelhas.

— Um milhão por seus pensamentos.

— Mwo?

— Devo sentir ciúmes? — Seu tom de voz não denota repreensão


e sim divertimento.

— Refletindo sobre a saudade dessa cidade. Amo meu país, mas


também aprendi a amar essa pátria.

— Pode ser um pouco mais claro?

— Nostalgia das comidas daqui. — Ela leva o garfo à boca e um


pouco de molho suja o canto direito da face, próximo aos lábios.
Passo meu polegar sobre a sua pele.

— E eu desse cuidado. — Suspira, se balançando no assento.


Rio.

— Você nem ao menos chegou a desconfiar que eu poderia estar


ao seu lado nas vezes em que vim para o Brasil?
— Jae Young, você nunca apareceu para mim, como eu
desconfiaria? Sabe que precisa me recompensar por isso? —
Sacode o indicador em minha direção.

— Mais? — Os olhos dela saem do prato direto para os meus. —


Te acompanhar até o ponto de ônibus com o guarda-chuva para que
não se molhasse no dia da sua primeira entrevista de estágio, não
conta?

— Do que está falando? — Ela limpa a boca com o guardanapo.


Após arrumá-lo sobre o colo, descansa os braços sobre a mesa.
Bagunço seu cabelo. Lia pisca erguendo os ombros.

— O cara de capuz preto, aliás, todo de preto, incluindo uma


máscara cobrindo a boca e nariz, e óculos escuros, que surgiu do
nada com um guarda-chuva correndo ao meu lado como se fosse
pegar o mesmo ônibus, e nem entrou, era você?

Coloco o garfo cheio de espaguete na boca e mastigo enquanto a


observo.

— Claro, Elleanor, quem nessa cidade faria isso?! — responde


para si mesma. — Por acaso também foi você que se jogou na frente
do ciclista e me protegeu com o corpo para não ser atropelada?

Concordo com a cabeça. Ela recosta no encosto. Abre a boca


olhando para o alto.

— Quem mais nesse mundo sabe sobre seu senso de equilíbrio e


distração, garotinha?
— Não exagera... — Come mais um pouco. — A rosa que recebi
na colação de grau... Você era o rapaz das flores? — Não respondo.
— O que mais você fez por mim? Quantas vezes esteve por perto
sem que eu soubesse?

— Muitas.

— E seu irmão sabia?

— Na maioria, não. Houve situações em que eu vim apenas para


te ver de longe, entre um trabalho e outro... Passava algumas horas
em solo paulista, ou então dormia em algum hotel discreto, voltando
no dia seguinte para cumprir agenda.

— Como sabia onde eu estaria e o que aconteceria?

— Comentários soltos em meio a assuntos diversos de Jae Wook,


Ana... Eu também pesquisava sobre você: trabalho, eventos da
faculdade, os extras que fazia para a agência...

— Pessoa certa, na hora certa, no momento certo.

— Digamos que sim, filósofa.

Elleanor se inclina sobre a mesa. Suas mãos seguem para a


minha face. Ela faz um carinho e depois aperta os dois lados do meu
rosto com os dedos, sacudindo de leve.

As pessoas que estão nas mesas mais próximas nos olham com
certa curiosidade. Sinto o rosto ficar quente. Imediatamente nos
imagino repetindo o ato em Seul. Um calor aquece a região do lado
esquerdo do meu peito.
— Hoje volto para minha casa. — Ela une as mãos, descansando-
as sobre as pernas.

— Eu me recordo. — Pouso minha mão sobre as dela,


pressionando-as. Lia sorri abaixando a cabeça.

— Jae Young, não se demore naquela casa, por favor...

— Gostaria que você me contasse tudo o que sabe, facilitaria. —


Ela morde os lábios. Expira pela boca. A cabeça se movimenta em
negativa.

— Analisando friamente, parece mais fácil, entretanto, no


momento em que ouvir a versão que eu sei dos fatos, sem que sua
mente veja essa cena, é possível que haja dúvidas da sua parte, e
não correrei o risco de arranhar nosso relacionamento.

Seu semblante pesado denota dor e incerteza. Com a mão livre,


coloco seus fios atrás da orelha. Apoio seu queixo com meu dedo.

— Tudo bem, não se preocupe. Embora algo dentro de mim tenha


modificado a forma como vejo Ana, minha estadia na casa azul é
incômoda, não sei explicar com precisão... O que importa é que eu
decidi que é o momento de ir para o meu canto. — Ela abre um
amplo sorriso. Seus braços amolecem e os olhos se fecham por um
segundo.

— E quando pretende fazer isso?

— Em dois, no máximo três dias.

— Eu te ajudarei.
— Não precisa. É apenas uma mala.

— Vai dispensar a adorável companhia dessa mulher


extraordinária, oppa? — Joga os cabelos para trás, o que me faz rir.

Pego seu rosto entre minhas mãos trazendo-a para perto.


Deposito um beijo em sua cabeça.

— Esperarei por você, Elleanor Ssi. Faremos isso juntos. —


Chamo o garçom com um gesto. Solicito a conta.

Nos levantamos. Enquanto Elleanor acomoda a bolsa sobre o


ombro esquerdo, chego ao seu lado. Como não há nenhum
conhecido por ali, entrelaço nossas mãos. Observo-as juntas.
Embora a diferença de tamanho seja grande, elas se encaixam de
forma perfeita. Subo o olhar até encontrar a face dela e seu sorriso
espontâneo e brilhante a minha espera.

Não sei como sobrevivi até agora longe desse calor que me
aquece e faz todo o meu corpo dançar por dentro.

Caminhamos assim até quase em frente ao prédio da agência,


então, Elleanor solta a minha mão. Uma pontada aguda me atinge.
Sei que é apenas por algumas horas, ainda assim, não sou capaz de
evitar essa sensação semelhante à perda.

— Voltamos juntos para casa ou você pegará suas coisas antes?

— Claro que vou com você. Combinei com a Mari para ela me
buscar após o jantar. De qualquer forma, hoje ela tem um
compromisso inadiável com um escocês que ela jura ser apenas
amigo. — Elleanor chuta o ar, gargalhando.
— Assim posso desfrutar mais alguns momentos junto dessa
mulher extraordinária que está ao meu lado. — Analiso ao redor e
beijo sua mão rapidamente.

— Me prometa que, caso você se lembre de qualquer coisa, falará


comigo primeiro?

— Prometo.

— Jae Young, não importa o quão insignificante possa parecer,


não comente com Wook. Nem acredite no que ele relatar sobre você,
ou qualquer outro assunto. — Embora concorde com o motivo dela
para não revelar o que conhece, lá no fundo gostaria de saber tudo
de uma vez. Minha intuição grita para afastar-me do meu próprio
irmão, mas a razão exige um fundamento.

— Não direi uma palavra. — Junto nossos dedos mindinhos e


encosto o polegar. Ela fica na ponta dos pés furtando um selinho. —
Você já parece uma adolescente, com isso, dá certeza para qualquer
um que nos veja juntos.

— Não se engane imaginando que tenho problemas com minha


altura. — Coloca as duas mãos cercando a boca. — Eu sempre
aparentarei ser mais nova do que realmente sou.

Sorri vitoriosa. Gira na ponta dos pés e sai andando para o lado
oposto ao meu.

Para mim, você sempre será a garotinha sardenta de olhos verdes


e sorriso espontâneo, mais linda desse Universo, mesmo que tenha
cem anos!
34

Elleanor

Graças a Marcus e sua habilidade nata em transformar minha


inquietude em calmaria, o percurso até a casa azul foi mais rápido do
que cogitei. Marcus cantou junto com as músicas da playlist que
colocou para tocar no carro e me fez ser sua backingvocal, igual a
nossa infância.

Assim que estacionou em frente a velha grade de ferro, soltei o


cinto de segurança e abri a porta, mas antes que pudesse sair,
Marcus segurou minha mão. Seus olhos ternos me encararam e não
fui capaz de fugir dele.

— Elle, mantenha a calma, como fez durante todos esses longos


dias. Jae Young necessita da sua força. Aguente firme só mais um
pouco.

— Eu sei. Não perderei a compostura. Juro. — Levanto as mãos.

Ele meneia a cabeça. Pega minha mão esquerda mantendo entre


as suas.
— Acredito em você. Quer que espere por vocês dois? Hoje não
há nenhum compromisso e André está na casa da mãe, então...

— Não precisa. Peço um carro quando terminarmos de organizar


tudo.

— Está certo. Se acontecer qualquer imprevisto, me avise ou a


Mari, que viremos ajudar, não importa a hora.

— Obrigada.

Toco com os lábios em suas têmporas. Saio do carro acenando


com a mão direita, enquanto a outra se apoia na alça da bolsa que
transpassa em diagonal meu corpo. O carro desaparece aos poucos
pela rua já escura.Toco a campainha. A mão livre se junta a outra,
não sei ao certo quem apoia quem, se as mãos que seguram a alça
ou o contrário. Meu coração salta apressado, permitindo que eu ouça
seus choques contra a caixa torácica.

Alguns segundos e a porta abre. Jae Young surge e, por trás dele,
Ana, estreitando os olhos — seu esforço para reconhecer os traços
da minha face são evidentes.

Jae presenteia-me com seus olhos e lábios sorridentes, devolvo o


gesto. Por dentro, uma batalha entre meu desejo e razão é travada
com intensidade. A razão vence por um triz, assim que atravesso o
portão e dou de cara com outro par de olhos puxados. No entanto,
esses provocam arrepios que perpassam minha coluna, eriçando-a
como um gato acuado.

Ao aproximar-me mais de Ana, seus lábios se abrem, assim como


os braços.
— Querida! Quem bom tê-la aqui! Os meninos chegaram da
escola há pouco. Acredito que Jung já está a caminho também, ele
ficará feliz por jantar conosco essa noite.

Aceito seu abraço afagando suas costas. Meu coração se aperta,


dividido entre a alegria por tia Ana me reconhecer e a dor por ela não
discernir mais o tempo, por acreditar que tio Jung ainda está neste
mundo.

— Obrigada por me receber tão bem, tia.

Adentramos a sala abraçadas. Wook, sentado no sofá, a televisão


ligada com o volume baixo, cruza as pernas e abre os braços sobre o
encosto.

— Boa noite, Elleanor. Pensei que não viesse hoje, já que saiu
sem ao menos se despedir, como uma fugitiva. — Os dedos se unem
as palmas das mãos com força.

Inalo o ar e obrigo meus lábios a se esticarem. Não sei se a


expressão em minha face se assemelha a um sorriso ou a uma
careta no momento. Conto mentalmente até vinte. Solto o ar.

— Oi, Wook. Não podia perder a carona de Mari naquele dia. Não
sei por que imaginou que estava fugindo, não tenho motivos para
isso... Ou será que tenho?

Ele leva as mãos ao lado esquerdo do peito. Abre a boca em


forma de “O”, como se atingido por uma flecha ou tiro.

— Nossa, que língua afiada, Elle! — Jae agarra meu pulso e


desliza os dedos, quando alcança os meus, enlaça minha mão e a
aperta.

— Jae Wook! Não brigue com sua amiga!

— Eles não estão brigando, Ana. O que acha de descansar um


pouco?

Jae Young mudou a forma de tratá-la desde que saiu do hospital.


Aos poucos ele tem se aproximado. Posso afirmar que conseguiu
nutrir certo carinho e afeição por ela. Espero que tio Jung, aonde
quer que esteja, consiga ver; isso o fará muito feliz, e acho que a
mãe de Jae também.

Ele abre a mão devagar, soltando a minha aos poucos. Caminha


até Ana, coloca as duas mãos sobre seus ombros e a guia até o
sofá. Ela senta ao lado de Wook. Jae se curva à sua frente.

— Elleanor e eu vamos organizar minha mala. Assim que


terminarmos, descemos para jantar. Não demoraremos.

Wook pega o controle da televisão e aumenta um pouco o


volume, fixando o olhar na tela, evitando o irmão. Ana concorda com
a cabeça. Seus olhos piscam e ela volta o olhar para a TV, embora
não pareça enxergar de verdade o que se passa ali.

Seguimos para o quarto. Em poucos minutos finalizamos a mala.


Jae a carrega e deixa encostada à parede da sala ao lado da porta.
Caminhamos até a sala de jantar. Ana e Wook já estão em seus
lugares, os mesmos da época de crianças. A ponta da mesa vazia.

Sento ao lado de Ana, ficando de frente para Wook. Jae se


posiciona ao lado do irmão.
Ana serve meu prato com kimchi e bulgogi. Depois Jae e Wook.
Esperamos ela começar a comer. Ana mastiga em silêncio, ainda
aérea. O semblante de Wook suavizou, como se não tivesse dito
nada há pouco. Ele serve mais bulgogi para o irmão, de forma
prestativa.

— Komawo. — Jae se curva de leve.

— Aigoo! Sabe o quanto esse formalismo coreano é estranho? —


Wook observa o irmão de cima à baixo rindo.

Para uma pessoa de fora, isso soaria muito agradável. Para mim
não. Mas Jae, nesse momento, é uma incógnita. Ele sorri de volta
para o irmão, entretanto não sei identificar se ele está ou não a
vontade.

— Somos coreanos, mesmo que você não queira.

— Apenas nasci lá.

— Você realmente não tem nada de coreano. Contudo, sei que o


velho Jung te criou dentro dos costumes. Você é quem não gosta.

— Gosto de alguns aspectos. Comidas, por exemplo, e soju.

Pega um pouco de bulgogi do prato de Jae e leva à sua própria


boca. Jae bagunça o cabelo do irmão. E, de repente, sou
transportada para vinte anos atrás. Vejo dois meninos brincando. A
diferença é que naquela época o clima era outro.

Confesso que se pudesse escolher, eu preferia a atmosfera do


passado...
Não quero que Jae se machuque e se decepcione com o irmão,
mas se ele nunca se lembrar, estará sempre em perigo. E eu nunca
mais confiarei em Wook.

— Ei, Elle! Quer um ovo no seu prato? — Ambos me encaram. —


Está dormindo? Cadê sua cara de nojo? — Jae sinaliza
afirmativamente.

Sinceramente não sei se ele está apenas jogando com Wook ou


não... E se está, até que ponto ele sabe ou desconfia do caráter do
irmão?

— Dispenso o ovo. — Jae sorri discretamente. Encaro Wook e


tento rir de maneira convincente. Se funcionou, eu não sei, no
entanto ele gargalha. — Pode ficar com o meu para você. Jae, você
devia me defender de Wook, já que eu estou te ajudando com sua
mudança, mas está priorizando-o, igual fazia no esconde-esconde.

— Ciumenta. Ele é meu hyung, lógico que eu sempre virei


primeiro na vida dele. — Wook enfia a colher cheia de arroz na boca.

Jae pisca algumas vezes, sua pele pálida como um fantasma. Seu
olhar vaga em outro lugar, que eu gostaria muito de saber qual é.

O trajeto até a casa de Jae foi um martírio mudo. E mesmo


enquanto desfazíamos sua mala, ele não pronunciou uma palavra
sequer.
Após terminar de organizar tudo, Jae se aproxima, abraça-me
pela cintura apoiando a cabeça em meu ombro.

— Como você sabe se está vendo um fantasma ou se está


alucinando?

— Curiosidade sobre como é a vida de uma necromante ou está...

— Às vezes surgem algumas imagens... É diferente de quando


sonhamos...

— Acontece quando está acordado?

— Ye... Eu não consigo definir se são lembranças... Há cenas que


parecem um filme de ficção. Não são factíveis para mim.

Pouso minhas mãos sobre as dele. Tento respirar normalmente,


entretanto o coração bombeia com tanta pressão que não sou capaz
de controlar adequadamente a entrada do ar.

Para completar, o cheiro de violeta impregna o quarto. Fecho os


olhos. Abro. Lá está Gael, sentado sobre a janela.

Ele acena com a mão, sorrindo.

— O que faz aqui? Problemas, Gael? — pergunto em minha


mente. Ele nega, balançando o indicador. — Certeza? Jae está em
perigo outra vez? — Continua negando.

— Não se preocupe, Elleanor. Estou aqui para ajudar. — Gael


sorri.

Jae inspira com força. Uma. Duas. Três vezes.


— Lia, está sentindo esse cheiro de flor? — Gael mostra as
palmas e ergue os ombros.

Jae me solta e senta na beira da cama, de frente para mim.

— Ye. — Imito sua forma de dizer sim.

— Então eu não estou louco. Você sabe do que se tratam essas


visões, ou sejam lá o que são essas cenas estranhas, não sabe?

— Talvez...

— Estivemos juntos durante meu coma. Eu fui um fantasma?!

— Não exatamente. Como você não morreu, ou seja, seu corpo


estava vivo, não podemos considerar essa definição.

— Se eu não virei um fantasma, então o que eu era? — Olho para


Gael que ri e gesticula, como se fechasse um zíper sobre a boca.
Agita a mão no ar e se transforma em fumaça roxa outra vez.
Obrigada por me deixar com a bomba armada, Gael!

— Não sei explicar o motivo Jae, é possível que haja uma ligação
muito forte entre nós e por isso eu pude ter contato com você dessa
forma. Mas não tenho uma nomenclatura e, sinceramente, isso não é
o mais importante.

— Está bem. Preciso de um banho.

— Então vai para o chuveiro. Estou com fome e você?

— Jantamos a pouco, Lia. — Jae ri. — Onde cabe tanta comida?


— Shh! — Coloco o indicador na frente dos lábios. — Farei uma
sopa, que é leve. Gastei muita energia organizando sua roupa.

Ando até a porta. Giro a maçaneta.

— Elleanor? Você e Wook nunca...

— Você sabe disso. Não vou repetir. E lembre-se: eu ainda não


tenho certeza se te perdoei por não me dar a mesma oportunidade
que deu a Wook.

Ele abaixa a cabeça e ergue os braços em rendição.

Saio do quarto saltitando para cozinha. Abro a geladeira e levo um


susto. Devíamos ter passado no supermercado antes.

Bem, se a vida nos dá limões, o jeito é fazer uma limonada!


Apesar de aqui estar mais para um milagre.
35

Jae Young

A fumaça esbranquiçada preenche todo o espaço do banheiro,


formando uma nuvem espessa. Desligo a ducha. Passo a mão não
vidro do boxe. Empurro uma das faces de vidro, que corre para
lateral.

Pego a toalha. Seco os cabelos, depois o corpo. Enquanto


envolvo minha cintura com o tecido felpudo, ouço de longe Elleanor
cantando. Sua voz desafina e ela pronuncia a maioria das palavras
erradas e em desacordo com o idioma que ela tenta reproduzir, ainda
assim é agradável, me faz acreditar que pertenço a esse lugar, meu
verdadeiro lar. Não pelas paredes, mas pela presença dela aqui.

Visto o primeiro short e camiseta que encontro, passo a mão


pelos fios, assentando-os no lugar. Apresso-me pelos degraus com
cuidado. Quanto mais me aproximo, mais alta é a melodia
dissonante. Sigo direto para a cozinha e me deparo com Elleanor de
costas, remexendo o quadril e sacudindo a cabeça em frente ao
fogão. Meus lábios se esticam até tocar as orelhas.
Permaneço em silêncio, desfrutando da cena que me remete a
outra deliciosamente reconfortante: minha mãe na cozinha. Assim
como Lia, quando cozinhava ela também cantava, a diferença era
sua afinação impecável. Embora assim seja mais divertido.

Elleanor se vira, segurando o cabo da colher como se fosse um


microfone. Suas pálpebras estão fechadas. Ao se abrirem, seus
olhos praticamente saltam da face, assim como ela que, em câmera
lenta, se desequilibra, batendo no cabo da panela que entorna sobre
seu antebraço direito.

Corro em sua direção. Estendo o braço o máximo possível até


alcançar suas costas abaixo das escapulas. Desequilibro, todavia
consigo evitar que ela vá ao chão, pois quem cai sou eu, servindo
como amortecedor para seu corpo. Sua cabeça bate exatamente
sobre meu peito.

— Elleanor? Está bem? — Afago sua cabeça.

— Sim. — Sua voz sai baixa e chorosa.

Não me incomodo com seu peso sobre mim, muito pelo contrário,
o calor e o aroma que sua pele emite, fazem com que meu sangue
flua e irrigue meu corpo mais depressa, desejando que ela
permaneça ali. Meus braços a circundam e pressionam contra mim
com força.

Ela assopra o ar pela boca sobre o próprio braço, então me


lembro que o líquido gosmento e quente derramou sobre ela.

Apoio um dos braços no chão, empurrando-nos até ser capaz de


nos levantar. Levo-a até a pia. Abro a torneira e coloco seu braço
sob a água.

— A sopa... — Elleanor ergue os olhos marejados até os meus.


Esparramo de leve seus fios de cabelo.

— Precisamos cuidar do seu ferimento primeiro. Depois pedimos


comida pelo telefone ou podemos comer lamén.

— Está tarde... Melhor voltar para casa. — Tiro seu braço debaixo
d’água. Elleanor o dobra, avaliando a extensão da lesão. Flexiono os
joelhos, inclinando o tronco o suficiente para alcançar suas pernas.
— Jae Young! O que está fazendo? Ainda não se recuperou
totalmente. E se...

— E se isso infeccionar? — Seus lábios se movimentam um


pouco, desenhando um sorriso tímido. As órbitas verdes cintilam. —
Hoje eu cuidarei de você. Avise a Mariana que dormirá aqui.

— Dormir aqui?!

— Dormir, apenas isso. — Apesar do quanto meu corpo implore


por mais proximidade, a lógica compreende que não é o momento
ainda.

Carrego-a em meus braços através das escadas até meu quarto.


Limpo a ferida. Aplico um gel para queimadura, cobrindo em seguida
com gaze. Assim que finalizo, noto que seus olhos se fecharam e
sua respiração é profunda. Arrumo o travesseiro, retiro os chinelos
dos seus pés e a cubro com o lençol.

Deito ao seu lado, de frente para ela. Observo cada pequeno


detalhe da sua face delicada. A sensação de já ter vivenciado essa
mesma cena me invade. Deslizo a ponta dos dedos por seu rosto,
meu peito recebe golpes do músculo cardíaco, o impacto é violento.

Abruptamente, me vejo em dois lugares ao mesmo tempo: no meu


quarto com Lia e no que parece ser o dela.

Com Elleanor em meus braços, adentro seu quarto, acomodo-a


na cama. Abro o zíper do seu vestido, tiro seus sapatos e a cubro.
Sento-me ao seu lado e toco suavemente seu cabelo, com medo de
acordá-la. Uma mexa cobre seu rosto. Com cuidado, a coloco atrás
da sua orelha. Meus olhos sofrem a influência de um poderoso imã,
que me atrai direto para ela. Deixo-me levar e deposito um beijo na
sua bochecha.

Logo em seguida, outra imagem no quarto dela irrompe meus


olhos.

Deito-me na sua cama, ansioso para que ela apareça, e quando


Elleanor surge com os cabelos soltos, meu mundo para, ouço
apenas as batidas do coração. Abro os braços e o sorriso. Ela
engatinha pela cama até deitar-se sobre meu braço, de frente para
mim. Como agora.

“— Nan neoleul joh-ahae...”

Vejo quando ela se aproxima do meu rosto. As batidas do coração


aumentam com vigor, tão forte que parecem pulsar duplamente. A
sensação de estar em dois lugares ao mesmo tempo não é apenas
nessa espécie de filme, pareço vivenciar tudo de novo. Então,
Elleanor me beija. A cabeça explode, lateja com intensidade, minhas
costelas se partem, pés e mãos dormentes.
O mesmo aroma de flor invade o quarto outra vez. Meus olhos
ardem, aperto as pálpebras, quando as elevo, tenho a certeza de
que enlouqueci: em pé, recostado com os braços cruzados no
batente da porta do meu quarto há um homem de olhos roxos com
um terno branco elegante e futurista. Ele me encara e sorrindo.
Cubro Elleanor com meu corpo.

— Jae Young. Quanto tempo? — Daebak! Além de alucinação,


ouço vozes também?! — Hum! Interessante! Trocou meu apelido.
Não sou mais o recepcionista?

— Recepcionista? — A palavra repete sem parar na minha mente.


Os olhos pesam, embora empregue toda força que possuo para que
continuem abertos, eu perco a luta.

“— Não sou o Criador, nem anjo... Em algumas culturas sou


conhecido pelo nome de ceifador... Sou apenas um simples
recepcionista...”

Observo a chuva caindo sobre mim sem molhar nem mesmo o


que deveria ser a pele exposta da mão. As folhas verdes nos galhos.
Minha audição sobre-humana... Meu corpo no chão e todos os
malabarismos que fiz para reanimá-lo. A força da luz do túnel me
sugando para dentro de si... A sala branca sem teto. Gael e seu
estilo único...

“— Você leu minha mente?”

Rio da pergunta estúpida que fiz enquanto minha face é banhada


pela água salgada que escorre pelos cantos dos olhos.
Todas as emoções que experimentei durante aqueles momentos
agora retornam feito uma produção de ficção-científica na tela do
meu globo ocular, somadas a outras sensações desconhecidas do
presente.

Tateio a cama. Meus dedos encontram a pele macia de Elleanor,


deslizo por ela. No final da extensão estão seus dedos, os quais
entrelaço junto aos meus como se minha vida dependesse disso.

Abro a boca. Pronuncio seu nome com os lábios, entretanto


nenhum som sai por eles.

Será que era assim que ela se sentia quando recebia a visita dos
fantasmas?

Não obtenho resposta, apenas me mantenho agarrado a ela e,


aos poucos, conforme mais lembranças chegam, seu toque não
permite que eu afunde na dor.

Cada nova imagem é como entrar e sair de uma montanha-russa.

O momento em que ela vê meu espectro e seu desespero... Ela


enlouquecida à minha procura na mata, até mesmo a visão que eu
tive dela criança caminhando ao meu lado antes do acidente... Os
momentos que passamos juntos no hospital, em sua casa. Os
diálogos... toques... confissões...

Wook... Me buscando no aeroporto... Comigo no hotel. A


sequência de eventos que sucederam na agência... Suas atitudes
com Elleanor... A mentira... Cada detalhe destruindo minhas
entranhas de novo.
A mulher de cabelos verdes...

— Quem é ela?

— Isy. Uma amiga. — Gael sorri. — Está quase acabando por


hoje, Jae Young. Aguente firme.

— Por hoje? Ainda haverá mais?

— Não posso interferir além disso.

A mulher exótica se ajoelha ao lado de meu corpo. Inala o odor ao


redor.

“— Farei o possível... Ele já está no túnel?”

A voz é suave, no entanto a tonalidade é semelhante a de


alguém que está pronto para guerrear. Sua imagem não é tão nítida
quanto as outras memórias.

Quando Gael desaparece, ela me cobre com folhas secas.


Levanta. Ouço o esmagar de galhos próximo a mim, ora
praticamente em cima do meu corpo, ora mais afastado. Após
algumas repetições desses sons, suas mãos voltam a trabalhar
sobre meu corpo.

Sua imagem ressurge. Ela esmaga algumas flores e outras folhas


que não reconheço. Deposita a pasta dessa mistura em cima dos
ferimentos da minha costela e cabeça.

Sobre as folhas secas que cobrem o resto do meu corpo, ela


espalha mais plantas. Estende as mãos sobre meu peito, longe o
suficiente para não tocá-lo. Seus lábios se mexem, embora eu não
ouça nada do que ela pronuncia. Quando para de mexê-los, troca a
espécie de curativo a base de plantas.

Com uma mão em forma concha, despeja algo em minha boca,


em seguida retorna para seu mantra, ou oração...

Um toque suave inicia nas têmporas, descendo e subindo pela


lateral do meu rosto. Os olhos preguiçosamente se abrem. O sorriso
doce e contagiante dela é a primeira coisa que enxergo.

— Bom dia! — Elleanor sussurra com os lábios encostados em


meu ouvido. — Não queria acordá-lo. Sua respiração parecia tão
cansada! Acho que te dei muito trabalho essa noite... Desculpa... Eu
tenho que ir... Não quero atrasar e colocar Madá em outra situação
constrangedora com os funcionários.

— Você foi meu cheonsa, Elleanor.

Ela cobre o rosto com as mãos. Sacode a cabeça para os lados.


Meu coração pulsa mais forte e os olhos ardem com as recordações
da noite.

Puxo-a para junto de mim. Passo os braços sobre seu corpo. Seu
coração corre tão rápido quanto o meu, lado a lado, na mesma
velocidade em busca da linha de chegada.

— Komawo, por me esperar. Por não desistir.


Elleanor espalma as mãos sobre meu peito, pressionando até se
erguer o suficiente para me encarar. Eleva as sobrancelhas, inclina
de leve a cabeça para o lado esquerdo. Movimenta os lábios até um
esboço de sorriso tímido surgir.

— Por que está dizendo isso? E o que significa de verdade?

— Gratidão. — Ela ri, soltando o ar pelo nariz. Beija minha testa, e


as duas bochechas. Antes que ela saia de cima de mim, seguro sua
face e trago até nossos lábios se tocarem. — Bom dia. “You're the
Sun light Keeps my heart going”.

— Você conhece essa música?

— Henry Lau. — Rio.

— Jae Young, está agindo muito suspeito hoje. — Salta da cama


e corre para o banheiro.

Não posso contar a ela ainda. Não até ter certeza do quanto
Wook está envolvido no meu suposto acidente...
36

Jae Young

Desde a saída de Elleanor para o trabalho, minha mente fervilha


empenhando-se para encaixar as últimas peças do quebra-cabeça
interminável. Mesmo durante as duas reuniões que participei pela
manhã, não consegui me concentrar em outra coisa.

A tela do computador brilha e irrita os olhos. Esforço-me para


escolher as imagens que farão parte do nosso catálogo. Embora não
realizei muitas modificações, do momento que assumi até agora, as
poucas alterações que fiz como a contratação de gestores com mais
experiência em captação de clientes, gestão de pessoas e fotógrafos
de renome mais experientes que Wook, já melhoraram a situação e a
imagem da empresa.

Graças a eles, os projetos que estavam em andamento foram


concluídos com sucesso durante minha recuperação e novos clientes
entraram para o portfólio.

A troca do diretor de produções artística também foi uma


estratégia importante, trouxe mais rigor e profissionalismo, reduziu
egos excessivamente elevados.

É visível a insatisfação de Jae Wook com as novas diretrizes,


visto que elas atingem em cheio seu trabalho.

Os clientes mais importantes foram retirados da sua


responsabilidade e o fato de ter seu status rebaixado de Presidente
para “apenas fotógrafo” feriu seu orgulho, mas é a única forma de
discipliná-lo.

Fecho a tela do computador. Pego café e sigo para a laje da


cobertura. Observar o céu e a paisagem ao redor me ajuda a ordenar
os pensamentos. Influência das inúmeras noites no terraço da casa
de Elleanor. Hábito que carreguei por todos esses anos, mesmo nas
noites mais frias, ver os flocos de neve caindo acalmava meu ser.

Aproximo-me do parapeito. A mão livre segue imediatamente para


meu bolso. Observo os grandes prédios de São Paulo, o céu
parcialmente coberto por nuvens de chuva e poluição escondem um
pouco o brilho do sol, ainda assim, é impossível não admirar sua
beleza.

Tomo um gole do saboroso líquido escuro. Inspiro e expiro o


oxigênio. A cada encontro dos cílios, um novo fragmento da memória
dá o ar da graça e mais uma peça se encaixa. A maioria delas
composta pela face de Elleanor, Gael e a tal bruxa de cabelos
verdes: Isy.

Só não compreendo por que os acontecimentos relacionados ao


meu irmão quase não são revelados.
— Omma! — Ingiro mais um pouco do café. — Receio que
minhas escolhas afetaram, de alguma forma, o comportamento do
namdongsaeng. Eu acreditei que o estava protegendo e que isso
garantiria a felicidade dele, contudo, não avaliei sua personalidade.

O peito pesa, dificultando a respiração. E o cérebro pulsa como se


estivesse inchado, provocando um grande incômodo.

— Nunca cogitei que ele pudesse sofrer algum desvio de caráter.


Infelizmente estou chegando a essa conclusão... Talvez eu necessite
tomar algumas medidas que não a deixarão feliz.

Mais um pouco de café. O vento que soprava leve no momento


que cheguei, se torna mais forte, jogando os fios de cabelos para
trás. O paletó do terno agita-se contra meu corpo. Um arrepio atinge
a nuca. Essa sensação me remete a um dos dias mais tristes. Uma
das últimas conversas com o velho Jung Hee.

— Appa! Mianhada. Foram muitos anos de incompreensão. Se eu


o tivesse entendido antes, poderia ter prestado atenção em Jae
Wook. Embora eu não tenha como saber se seria capaz de fazê-lo
entender o quão perigoso suas atitudes egoístas eram, porventura,
evitaria chegar nesse ponto.

Tomo o restante do café. Curvo-me com o pensamento em meus


pais. Quando retomo a postura, uma mão toca meu ombro,
apertando-o. Não preciso olhar para saber de quem se trata.

— Previsível como sempre. Perdeu a memória, mas não esse


costume chato de conversar com os mortos. A morte é o final de
tudo. A existência acaba aí.
— Respeito sua crença. Faça o mesmo. Cada pessoa tem a sua
forma de ver a vida.

— Do que estava se queixando dessa vez, hyung? Por acaso era


sobre mim? Renovando sua promessa para a mamãe? — Ele
gargalha.

— Seu comportamento só piora, Jae Wook. Não sei em que


momento começou a se desviar. — O encaro. Seus olhos parecem
mais escuros, olheiras profundas. Hálito de soju misturado com
cerveja. Semblante pesado que me faz imaginar se, além de álcool,
ele também usa alguma substância ilícita...

— Ah! O filho mais velho, responsável, correto, que toma conta de


toda família! — Escárnio e desdém escorrem por sua boca. Como
uma naja, ele só está esperando o ataque final.

— É o que deveria ter feito. Foi um erro não levá-lo para a Coreia
quando abeoji se foi.

— Ora! Ora! Park Jung Hee voltou a ser seu pai? — Ele ri de
forma desmedida e estrondosa.

Meu cérebro pesa como se não coubesse dentro do crânio. Pulsa


e lateja com tamanha intensidade que o ar começa a se esvair. A
visão turva. O céu gira. As mãos correm sobre o topo da cabeça e a
apertam.

— Ah! Meu Deus! — Ouço pisadas fortes vindas em nossa


direção. Não reconheço a figura, apenas noto que se trata de um
homem. — Senhor Park! — Uma bituca de cigarro cai ao lado do
meu pé.
As pernas perdem a força. Observo meu corpo ir de encontro ao
chão em câmera lenta. Fecho os olhos esperando o impacto, no
entanto, braços passam por mim, agarrando-me pelos dois lados. A
pele do lado esquerdo é perfurada por inúmeras facas. A dor
aumenta.

“— Nos negócios e no amor devemos agarrar as oportunidades...


Você sempre foi patético, hyung... é fraco... não merece status de
sucessor... cuidado... não sou você, que apenas aceita tudo
calado...”

Estou de frente para o coração gravado na árvore. Galhos se


quebram atrás de mim. Giro o pescoço. Um homem com capuz
preto. Seus lábios esticados formam um sorriso macabro.

“— Adeus, hyung!”

Suas palmas me atingem com força na altura das escápulas.


Tento permanecer em pé, mas perco o equilíbrio, sendo
impulsionado para frente. O pé se dobra e afunda. Jogo o corpo para
o outro lado, mas deslizo e caio rolando até o troco da árvore me
parar...

O cheiro forte de flor me traz de volta à consciência. Assim que


levanto as pálpebras, vejo parado à minha frente o ceifador de íris
roxas.

Dois homens me amparam: o diretor de produção e Jae Wook;


meus braços pendurados sobre os pescoços de ambos, que me
arrastam para dentro da empresa. Eles conversam. Não consigo
discernir o que falam, entretanto, o som da voz de Jae Wook me faz
encontrar a peça que faltava:

“— Vá de uma vez fazer companhia à mãe e ao pai... E não


demore muito ou terei que te dar outro empurrão.”

O coração acelera e se parte em mil pedaços mais uma vez. O


estômago revira e despendo um esforço descomunal para não
vomitar ali mesmo. Minhas entranhas gritam para que afaste esse
ser repugnante de mim. As mãos se fecham, emanando o desejo de
ir direto para seu pescoço e apertá-lo pouco a pouco, até sua
respiração cessar e seu coração parar, e então jogar seu corpo
ribanceira abaixo até desaparecer em um abismo sem fundo, da
mesma forma que fez comigo.

Gael me acompanha o tempo todo.

Eles me acomodam na cadeira. O diretor se afasta, ligando para o


Samu, sua fala urgente e alta denota preocupação, diferente de Jae
Wook, cuja face transparece regozijo e diversão.

— Não faça isso! — Gael me encara balançando o dedo indicador


em negativa. — Se deixar sua raiva falar mais alto, estará em perigo,
assim como Elleanor. Você não se recuperou por completo para
entrar em uma briga.

Apesar de toda repulsa e de todo esforço que faço para manter a


razão acima das ideias e desejos de acabar com Jae Wook, sigo as
orientações de Gael.

O ceifador se aproxima exalando seu forte aroma. A respiração e


os batimentos cardíacos retomam o ritmo.
— Está melhor, hyung? — Jae Wook e seus olhos escuros me
estudam, provavelmente desejando que eu piore.

— Não se preocupe, namdongsaeng. Provavelmente foi algo que


comi. Estou praticamente novo em folha outra vez.

— Ainda bem, hyung. Não nos assuste mais, ou meu coração não
aguentará. — Aperta meu ombro e sai, deixando-me na companhia e
cuidados do diretor.

Gael meneia a cabeça e evapora como água quente.

— Senhor Alvez, por favor, reúna os outros diretores e a gestora


de pessoal, e me encontrem em uma hora, aqui mesmo.

O homem acata e sai da sala apressado. Assim que a porta se


fecha, abro a lista de contatos tocando com a ponta do dedo sobre a
tela. Após o quarto toque, ela atende.

— Harmeoni.

— Park Jae Young, diga o que aconteceu. — Como esperado, ela


nunca perde tempo.

Relato todos os detalhes. Ela não emite nenhum som, parece que
falo sozinho, mas sei que Lee Hye Ji está atenta a cada palavra.

— Sabe o que deve fazer, Jae Young.

— Nê.

— Peça a Nam Dong Ki para providenciar tudo agora mesmo. —


desliga.
Repasso ao subordinado da minha avó, que está no Brasil desde
o meu acidente, todas as diretrizes do que deve providenciar.

Apoio a cabeça entre as mãos massageando as têmporas,


tentando manter-me no controle, enquanto os minutos teimam em
não andar.

A reunião com a diretoria ocorre a portas trancadas. Enviei Jae


Wook para uma sessão de fotos de última hora, garantindo o
distanciamento dele da empresa. Anuncio aos diretores a remoção
de Park Jae Wook de todas as atividades da agência.

Nam Dong Ki chega quase no final, trazendo consigo os


documentos necessários para o afastamento de Jae Wook não
apenas das atividades da agência no Brasil, mas também de tudo
referente à Park Comunicações.

Finalizo com a aquisição da agência pelo grupo, o qual desde a


minha vinda para o Brasil aceitei assumir a liderança.

A princípio eu não queria, mas harmeoni convenceu-me. Devido


ao acidente, eu não havia concluído a posse de fato, esse foi um dos
motivos para Lee Hye Ji enviar seu homem de confiança. E graças a
perspicácia dela e a Nam Dong Ki, que ajudou a diretoria da agência,
Jae Wook não reassumiu o controle.
Embora não fosse meu desejo, é meu dever zelar pela família, e
principalmente frear Jae Wook.

Lee Hye Ji permanecerá na liderança do grupo na Coreia,


apoiando-me nos primeiros meses, até que a sucessão se complete.

A reunião termina, agradeço a todos, que saem em seguida,


apenas Nam Dong Ki continua comigo.

Assim que a última pessoa sai, Elleanor irrompe correndo. Olhos


vermelhos e respiração curta. Ela ignora a presença do secretário,
parando somente diante de mim. Sobe na ponta dos pés. Passa os
braços em meu pescoço. Seu corpo pequeno está trêmulo, sinto as
marteladas em seu peito.

Meus braços imediatamente a envolvem, com a mão direita afago


seus cabelos.

— O que aconteceu, Lia?

— Eu é que te pergunto, Park Jae Young! Por que não me ligou?


— Ela se afasta. Sua face está coberta por lágrimas. De alguma
maneira, chegou aos seus ouvidos o que sucedeu horas atrás. — Se
não fosse sua secretária...

— Shh. — Pego seus ombros e a puxo de volta para mim. —


Apenas um susto, Lia. Só dor de cabeça.

— Mesmo que pareça pouco, me prometa que sempre me


informará. Não faz ideia de como fiquei quando ouvi que desmaiou.
— Rio e me inflo de satisfação por saber que ela se importa comigo.
— Mianê. Surgiu um assunto urgente e inadiável, por isso não
liguei.

Elleanor gesticula com a cabeça concordando. Expele o ar de


uma vez e seu corpo relaxa em meus braços.

Wook aparece na porta. Seus olhos saltam. Ele morde os lábios,


sorri torto e caminha adentrando a sala.

Enquanto minha atenção está em Wook, Elleanor não o nota. Fica


na ponta dos pés de novo, e só me dou conta do que ela está
prestes a fazer quando não há tempo para impedi-la, pois suas mãos
já estão em minha face. Seu ato final se completa ao pousar seus
lábios nos meus.

— Elleanor!

Jae Wook grita com a boca espumando feito cachorro raivoso.


Meus olhos jubilam com a cena. Meu corpo solta fogos de artifício
por dentro. Depois de tudo o que ele fez, é bom ver sua cara de
perdedor.

Contudo, meu júbilo dura pouco, pois vê-lo dar passos largos
arregaçando as mangas acorda meus sentidos.

Com o braço esquerdo, afasto Elleanor para o lado e dou um


passo à frente. Ela gruda no tecido da minha camisa pelas costas.
Nam Dong Ki abeira-se de nós. Seu rosto é uma máscara sem
qualquer expressão.

— O que está fazendo? Enlouqueceu? — Ele alonga o pescoço.


— Meça as palavras, Jae Wook. — Ponho em prática as táticas
aprendidas nos treinos de Taekwondo: controlar a respiração e a
emoção.

— Você é mesmo um fraco, hyung. Pensam que eu não notei


essa aproximação de vocês? — Gargalha.

— Não te devo satisfação. — Ele passa as duas mãos sobre seus


cabelos, bagunçando os fios.

— Está enganando, Young. Ela é minha. Eu disse que nunca


ficariam juntos.

Elleanor, mesmo tremendo, entrelaça nossas mãos e vem mais à


frente.

— Nunca fui nem serei sua, ou de quem quer que seja. Só


pertenço a mim mesma.

— Eu devia ter te domesticado, mas nunca é tarde para ensinar


boas maneiras. — Wook volta a se aproximar. Ponho a mão sobre
seu peito.

— Eu não estou com paciência para suas crises infantis, Wook. —


A mão dele agarra meu pulso. Elleanor começa a balançar as
pernas. Sua respiração acelera.

— Se ainda te resta um pouco de consciência, vá embora Wook.


Respeite minha escolha. Sempre soube que é Jae Young. Insistiu
como uma criança mimada e invejosa. É hora de crescer e aceitar a
decisão das outras pessoas.
— Sempre aceito, Elle. Desde que a minha prevaleça. — Wook
solta meu pulso. Seu braço direito se posiciona preparando o ataque.

Entro na frente de Elleanor. Sinalizo para Nam Dong Ki. Fecho o


punho, acertando o queixo do meu irmão. Ele cambaleia, mas não
cai. Antes que recupere o equilíbrio, golpeio seu peito com o pé;
Wook cai.

— Jae Young! — Elleanor grita sentada no chão.

Dong Ki corre para o lado de Wook e o imobiliza, eu sigo para


junto de Lia.

— Calma, está tudo bem. Ninguém se machucou. — Seguro seu


rosto, encarando-a. Sinto algumas pontades devido ao esforço,
entretanto mantenho para mim. — Não era intenção agredi-lo, mas
precisava pará-lo.

— Desgraçado! Isso não ficará assim, Young! — Jae Wook


esperneia. Seu pescoço preso pelo braço em uma bela gravata dada
pelo secretário, e um de seus pulsos atrás das costas.

— Você tem razão, Jae Wook. Nada será como antes. O


secretário Nam o acompanhará gentilmente no próximo voo para a
Coreia.

— Não vou a lugar algum.

— Não há outra opção para você. Todos os seus bens foram


confiscados para pagar um dos empréstimos que você fez com
harmeoni. — Mostro o documento assinado por ele enquanto eu
estava em coma, com prazo de trinta dias para pagamento. Ele
pensou que Lee Hye Ji simplesmente esqueceria.

— Isso não é motivo para ser enviado contra vontade para fora do
país.

— Não. Mas sabe como harmeoni é. Uma simples ligação para o


embaixador. — Elleanor alterna o olhar entre Wook e eu. Olhos
arregalados e sobrancelhas juntas.

— Resolveu usar o que sobrou do cérebro, hyung? Admito que


essa você venceu. Mas não vão me segurar lá por muito tempo. E
quando voltar...

— Para voltar precisará de dinheiro. Mais uma informação: Lee


Hye Ji solicitou sua remoção da sucessão. Não tocará em nenhum
centavo da empresa.

— Pode demorar, hyung, mas retribuirei toda sua gentileza em


dobro. — Ele cospe um pouco de sangue no chão. Caminho sem
pressa até ele. Seguro seu queixo.

— Eu me certifiquei de retribuir a sua comigo. Lee Hye Ji tem


planos perfeitos para você, e uma bengala nova te aguardando.
Lembre-se, estou apenas devolvendo o empurrão. — Viro as costas,
caminhando para Elleanor, que ainda está sentada no chão. —
Secretário Nam, pode levá-lo, os seguranças estão aguardando.

Jae Wook despeja uma quantidade infinita de impropérios


enquanto é arrastado para fora da sala. A porta bate. O ar se
purifica. Meu corpo assemelha-se à uma pluma, todo o peso se
dissipa.
Elleanor pisca sem parar, apoiando o corpo com as duas mãos
abertas no piso. Me abaixo. Ela eleva os olhos até os meus,
derramando um rio em sua face. Seco deslizando os dedos por sua
pele.

— Você se lembrou? — Sorrio com os olhos ardendo. O coração


apaziguado agora acelera apenas por ela.

— Perdão, Lia. Eu devia tê-la procurado e ouvido o seu lado da


história. Acovardei-me por medo. Só de pensar na hipótese de ter
que dizer adeus outra vez para você, me fez fugir... Não queria
morrer de novo... E, ironicamente, foi o que aconteceu. Era apenas
um corpo vagando sem vida, na verdade.

— Eu te perdoei há muito tempo. Mas não podia admitir, ou não


teria nada para te ameaçar a lutar pela vida.

Elleanor me envolve com seus braços e praticamente salta em


meu colo. Elevo-a do chão. O verde de seus olhos brilham e me
fazem esquecer completamente onde estamos. Seu sorriso
espontâneo reforça o convite, que não recuso. Apoio sua nuca com a
mão e tomo seus lábios para mim. Seu gosto doce e sua maciez
aumentam minha ânsia por mais e mais.

— Hoje é nosso primeiro dia oficial. — Elleanor balbucia sem


soltar meus lábios. Rio.

— Temos que apresentar as famílias de maneira adequada.

— Tem certeza?

— É...Tio Lucio... Pensando bem.


— Não tem volta, então nem pense. — Elleanor me cala com um
beijo.

O restante do dia foi estranho e calmo ao mesmo tempo. Embora


esteja grato por tudo ter se resolvido sem grandes perdas, a
comprovação de que meu irmão foi o causador da maioria dos
problemas entre Elleanor e eu e descobrir sua verdadeira face ainda
é difícil de aceitar...
37

Elleanor

O carro para em frente a suntuosa casa toda iluminada situada no


Jardim Europa. Mariana retira o cinto de segurança. Mão esquerda
sobre o volante. Observa a casa e os arredores e, por fim, seus
grandes olhos negros com cílios naturalmente longos me encaram.
Ela sorri, expira e uma lágrima rola por sua face.

— Não acha muito cedo para se mudar? Espaço não falta lá em


casa.

— Eu sei, Mari, mas você e seu escocês encantado — Mari


gargalha por me ouvir usando o mesmo apelido que ela deu a Jae —
precisam de privacidade.

— Elle, você é minha irmã, Jerry tem consciência disso.

— Mesmo que eu fosse sua mãe! É o momento de vocês dois.

— Morrerei de saudades! — Mariana faz bico. Uma cachoeira cai


de seus olhos. Seco com as mãos e a abraço.
— Eu também. De qualquer forma, manteremos nossos almoços,
cafés e sempre a visitarei.

— Pelo menos por enquanto.

— Shhh! — Posiciono o indicador em frente a minha boca. —


Sem antecipações. Esperamos vocês hoje à noite.

— Sim, senhora. — Sorri. — Até à noite, Elle.

Saio do carro. Ela abre o porta-malas. Sigo para a parte de trás, e


quando estou prestes a pegar a primeira mala, Jae atravessa pelo
portão, acena com discrição para Mari. Vem com as duas mãos no
bolso em meu auxílio.

— Não ia me chamar para ajudar?

— São apenas duas malas.

— Maiores que você. — Tira a mão direita do bolso e bagunça


meu cabelo, voltando a descansá-la na lateral da calça.

Cruzo os braços e inclino a cabeça um pouco para o lado,


erguendo as sobrancelhas. Seu sorriso se alarga. Com uma destreza
que eu não vira antes, suas mãos me alcançam pela nuca e cintura:
em um piscar de olhos, meu corpo está totalmente junto ao dele e
seus lábios aprisionam os meus habilidosamente — meu coração
fica tão confuso que não decide se bate com força ou para.

— Ei! Pombinhos, namorem no aconchego da casa, pois estou


atrasada! — Mari grita, nos observando pelo retrovisor.
Jae me libera, seu rosto com as maçãs vermelhas. Retira minha
bagagem e curva-se para Mariana. Ela ri e gesticula, fazendo
mímicas para comentar o jeito sério de Jae Young. Assopra um beijo
e sai.

Ele faz questão de levar minhas coisas até o quarto. Embora a


casa seja imensa e disponha de vários aposentos, ele me acomoda
na suíte principal — traduzindo: na sua.

Não é a primeira vez que dividimos a mesma cama, mas... De


fato, só dividimos o espaço no sentido literal da palavra. E agora eu
não sei como será... Eu esperei muito por isso... Só não estou certa
de que é a hora.

— Organizei o closet. Acredito que há espaço suficiente para


nossos objetos pessoais. — Mordo os lábios mantendo o foco em
todos os lugares, exceto em seu rosto. — Também desocupei
algumas gavetas e um dos lados do armário do banheiro para você.
Então fique à vontade para arrumar tudo como quiser.

À vontade! Existe uma mistura insana de emoções dentro de mim,


mas nada se parece com essa descrição!

— Gostaria de ficar e te ajudar, mas preciso ir até a agência.


Voltarei cedo para cuidar dos preparativos para o jantar junto com
você.

— Não se preocupe. — Expiro, balançando os braços.

— Lia! Adoro quando sua timidez aparece! — Jae segura minha


mão e me traz para junto de si. Seus braços envolvem meu corpo. O
perfume cítrico combina perfeitamente com o aroma natural de sua
pele. E o coração se assanha todo com nossa proximidade. — Se
acalme e aproveite cada minuto. Essa situação é nova para mim
também, e eu estou amando, pois, a partir de agora, todos os dias
estarei ao seu lado. Você é meu lar.

Seus braços me comprimem com força, entretanto não machuca,


acalma. Jae afaga meus cabelos. Deposita um beijo caloroso no topo
da minha cabeça. Sai em seguida, com as mãos no bolso e pés
cobertos pelas meias. Ele cultiva o hábito de não entrar nem usar
sapatos no interior da casa.

Mal finalizo o banho e a campainha toca. O cabelo ainda enrolado


na toalha, a qual puxo, jogando sobre a cama. Jae sai do banho
cobrindo-se apenas da cintura para baixo, cabelos molhados,
algumas gotas pingando sobre o peito definido. Antes de perder o
que me resta de juízo, viro de costas, seguindo com os cabelos
embaraçados rumo à porta.

Isso foi o que eu realmente desejei fazer, contudo a mão de Jae


agarra meu pulso e me obriga a ficar de novo frente a frente com
aquela escultura!

— Aonde vai com tanta pressa?

— Não ouviu a campainha?


— Não. De qualquer modo, nossa secretária atenderá. — Só
então me lembro de que Jae Young contratou uma pessoa para
gerenciar a casa. Algo fora do meu habitual. — Termine de se
arrumar com calma. — Beija minha testa.

— Está bem. — Jae leva a mão até a toalha que cobre parte de
seu corpo. — Por que não se veste no banheiro?

— Elleanor, já me viu com menos do que isso.

— Sim. Crianças! — Ele põe as mãos na cintura, eleva a cabeça


para o alto e gargalha com vontade.

— Voltarei para o banheiro.

Ao fechar a porta, apresso-me. Penteio o cabelo sem fazer


questão de secá-lo. Uma maquiagem simples. Jae retorna
devidamente vestido. Calça, camisa, cabelos arrumados e perfume,
rescendendo.

Ah... como amo esse aroma!

— Jeongmal Yeppeoyo!

Ele me abraça por trás, aconchegando a cabeça em meu ombro


direito. Encosta o nariz no meu pescoço. Inala. Depois seus lábios
tocam com suavidade a pele do local.

Definitivamente, ele quer me enlouquecer! Quando vejo os


dramas eles parecem tão inocentes!

— Vamos? — Me liberto dele. Enlaço sua mão e seguimos até a


sala.
Mariana com seus cachos bem-feitos e sorriso magnífico está de
braços dados com Marcus, tão elegante quanto. E, para minha
surpresa, minha tia Madá. Ofereço meu melhor sorriso para Jae, ao
meu lado, e para as outras pessoas importantes na minha vida.

Quando chegamos ao último degrau, Jae solta minha mão e eu


corro para um abraço triplo.

— A casa é realmente muito bela. — Marcus estende a mão para


Jae.

— Elle, sei que está cansada, mas secar o cabelo não toma muito
tempo. Assim não fará jus ao seu modelo particular. — Jae a
cumprimenta com o rosto rubro. Mari repara e diverte-se. Ele será
um prato cheio para ela!

— Madalena. — Jae curva-se. Ao retomar a postura, dá um


aperto de mão singelo, mas Madá, toda expansiva e alegre, o abraça
e beija seu rosto. Agora ele assemelha-se um pimentão gigante.

— Agradeço por aceitarem nosso convite. Por favor, sintam-se em


casa. — Abre as mãos apontando para o sofá.

Todos se acomodam.

Jae contratou dois garçons para nos auxiliar com as bebidas e


com a comida. Nossa secretária, pelo visto, entende
maravilhosamente bem a arte da culinária. Além de pratos já
conhecidos, Jae providenciou alguns petiscos como tteokbokki
apimentado, frango frito e kimbap.
A recepção transcorre agradável. Jae Young se solta aos poucos
e se rende as piadas de Madá e Mariana, que juntas, parecem uma
dupla de stand up. Marcus, como sempre, polido e gentil. Meu
coração transborda de emoção. Meus melhores amigos, minha tia e
meu grande amor interagindo e, ao que demonstram, se entendendo
bem.

Embora Jae Young conhecesse todos, Madá pela parceria com a


agência e outros eventos com ele, e Mari e Marcus desde o resgate
até agora nos dando suporte, ainda não os havia encontrado em
uma atmosfera de amizade como agora.

Devagar tudo entrará nos eixos, e pelas faces risonhas acredito


que Jae foi mais do que aprovado e aceito; aqui ele encontrou um lar
no coração de cada um deles.

O garçom chega para completar as taças de vinho vazias e trazer


a sobremesa.

— Eu gostaria de aproveitar esse momento para contar uma


novidade. —Marcus beberica um pouco de vinho. Seca os lábios
com o guardanapo.

Mari pousa a mão sobre a do irmão, sorrindo de orelha a orelha.


Seus olhos brilham, emanando orgulho e cumplicidade. O restante
de nós não emite nenhum som, atentos ao seu pronunciamento.

— André e eu decidimos nos mudar para a França. Ele foi aceito


na escola de culinária que estava tentando entrar há anos. E eu
aproveitarei para fazer uma especialização em moda e ampliar
minha rede de contatos.
— Ah! Marcus! Sabe o quanto estou feliz por vocês dois? Nem sei
como expressar. — Deixo meu lugar ao lado de Jae. Abraço Marcus
pelo pescoço, que permanece sentado. Encho sua face de beijos. —
Sentirei muito sua falta. — Jae se remexe um pouco desconfortável
com minha atitude, que para seus costumes não é natural.

— Eu também. — Ele sorri.

Madá ergue a taça e faz um breve discurso de desejos prósperos


aos dois.

— Ficarão em Paris?

— Sim.

— Levarei Elleanor para visitá-los. Eu conheço algumas pessoas


que podem ajudá-lo lá. Todos no universo da moda. — Pisco para
Jae em agradecimento. Volto para meu lugar, enquanto os dois
trocam contatos. Embora sinta ciúmes, ele não permite que isso o
afete.

— E... Elle, não se preocupe, farei um lindo vestido de noiva


especialmente para você!

— Nem sabemos se e quando vamos nos casar. Isso soa como


intimação da sua parte. — Marcus ri novamente.

— Antes você fará o meu, irmãozinho. — Mari vira todo o líquido


da taça. Alterno o olhar entre Jae e Madá, que denotam o mesmo
nível de entendimento e curiosidade que eu. — Jerry propôs hoje
durante o almoço. — Eleva a mão com o dorso virado para nós.
Mexe os dedos. E lá está o lindo e enorme solitário em seu anelar
direito. Ela bate os pés e cobre o rosto.

— Então o escocês encantado conseguiu te fisgar de verdade? —


Mari mostra a língua para mim. Jae ergue a taça em sua direção e
todos brindamos.

— Parabéns, querida! Faço questão de presenteá-la com a


organização da festa. Sempre foi tão boa com minha Elleanor! Sabe
que vocês fazem parte da família, não é?

— Obrigada pela gentileza, Madá. Tem mais um detalhe. — Mari


se vira para Jae e eu. — Você e Jae Young aceitam serem meus
padrinhos?

Não preciso nem comentar qual foi nossa resposta.

Assim, finalizamos o jantar com o planejamento do casamento de


Mari, que acontecerá em dois meses. Celebramos o amor, a vida e a
amizade.

Mariana e Marcus saíram primeiro. Madá ficou mais alguns


minutos. Jae serviu soju para ela experimentar; espirituosa como
ninguém, ela adorou. Mostramos toda a casa.

— Já está na minha hora.

— Não prefere dormir aqui, Madalena?

— Obrigada, querido. — Ela segura a mão de Jae entre as suas.


— Na verdade, eu gostaria de te pedir um favor.
— Aconteceu alguma coisa e escondeu de mim, Madá? — Ela ri
divertindo-se da minha expressão.

— Não querida. — suspira. — Estou envelhecendo. Tenho o


suficiente para viver até os cem anos. Existe muita coisa que ainda
não fiz, muitos lugares para conhecer, e um irmão que amo e que
desejo aproveitar mais da sua companhia.

Jae entrelaça nossas mãos e, assim como na infância, a aperta


em sinal de apoio. Olho para ele, que sinaliza para que eu dê a
atenção que Madá necessita.

— O que pretende fazer, tia?

— Vender a empresa. — Encara Jae sorrindo, ele devolve o olhar


terno, como se a compreendesse melhor do que eu. — Por isso,
peço a você para que cuide bem de Elleanor por mim.

— Ah, Madá!

— Eu cuidarei dela como se fosse minha própria vida.

— Obrigada. — Madá o abraça a ponto de quase o sufocá-lo.


Repete o mesmo comigo. — Não precisa ir trabalhar, Elle. O novo
proprietário assumirá essa semana, eu só organizarei o casamento
de Mariana e depois sigo viagem.

— Que jeito mais original de demitir alguém! — Madá caminha


acenando de costas.

— Você teria que sair de qualquer jeito, Lia.


— Não está cogitando a possibilidade de me tornar dona de casa,
não é? Eu não tenho a menor vocação, e gosto de trabalhar, além
do...

Jae se curva até ficarmos da mesma altura. Seu nariz encosta no


meu.

— Quero que trabalhe comigo, no grupo Park.

— Como?

— É uma posição a nível internacional, já que além da agência,


temos as outras empresas que fazem parte da Park Comunicações.
Será muito cansativo e faremos muitas viagens. É provável que
precisemos manter pelo menos duas residências: aqui e em Seul

— Prometo que vou pensar.

Ando em direção às escadas. Jae ergue-me do chão,


carregando-me pendurada em seu ombro, a ponta dos dedos
deslizando sob a sola do meu pé, impedindo-me de falar. Apenas
gargalho como eu não fazia desde o dia em que ele deixou a casa
azul.
38

Jae Young

Enquanto Elleanor arruma nossas malas, eu sigo até a casa azul


pela enésima vez. Perdi as contas de todas as tentativas frustradas
de convencer Ana a morar conosco. O fato de Jae Wook ir embora
do dia para noite não contribuiu muito para a saúde dela.
Confesso que harmeoni e eu não avaliamos esse aspecto,
entretanto o comportamento dele com Ana mudou e tampouco seria
benéfico. Não enxergamos possibilidades diferentes. Permitir que
continuasse solto, já que não havia provas, nem um simples indício
que o ligasse ao meu acidente, seria um risco enorme.
Ele provavelmente atentaria contra mim ou Elleanor para nos
separar, e algo mais grave ou a morte certa de alguém, era uma
probabilidade muito alta, com a qual não poderíamos arcar.
Optamos por contratar duas cuidadoras que se revezam durante
dia e noite. Nós a visitamos diariamente, às vezes em mais de um
horário.
Por cinco vezes a levamos para nossa casa, e todas foram um
completo desastre, com fugas e as pobres cuidadoras correndo
pelas ruas a procura de Ana. Elleanor e eu deixando atividades no
trabalho pela metade para ajudar na busca, sem contar com as
crises de choro e gritos desesperados de Ana pensando que havia
sido sequestrada, por não reconhecer a casa e nenhuma face que a
cercava. Chegamos a conclusão de que o melhor seria um ambiente
que ela se sentisse bem: A casa azul em Bom Retiro.
A doença tem progredido rapidamente, atribuo isso à perdas de
pessoas importantes para ela. Porventura, acredito que Ana em seu
íntimo deseja partir desse mundo e se juntar aos seus. Espero que
quando esse dia chegar Gael a recepcione bem e a guie para o
mesmo lugar de meus pais e que mamãe e papai a recebam com
carinho em sua morada no mundo dos mortos. Mas até lá eu farei o
que estiver ao meu alcance para atenuar suas dores.
E hoje, após gritar e atirar objetos contra mim, em um dos poucos
momentos de parcial lucidez ela me reconheceu. Ao mencionar
Marta e Lucio, Ana se aquietou e aceitou ir conosco visitá-los.
Cheguei a nossa casa com Ana e as cuidadoras, nem saímos do
carro. Elleanor veio correndo. Um dos seguranças e nossa secretária
a ajudou com as malas acomodando-as no porta-malas.
Parte do percurso transcorreu com tranquilidade, já que Ana
dormiu acordando a poucos minutos de chegarmos no nosso
destino.
Reduzi a velocidade diante das tentativas de Ana de saltar do
carro, mesmo cercada pelas duas mulheres experientes com esse
tipo de problema. Ela arranhou o braço de uma delas e beliscou a
outra. Na visão de Ana naquele momento ela era uma menina de
cinco anos.
Paro o carro. A casa é grande com um jardim florido a frente,
muro baixo e apenas um cerca de madeira pintada de verde claro
liga as paredes de alvenaria. O clima e aroma bucólico dão asas à
imaginação, como se estivéssemos em outra dimensão, planeta ou
mesmo dentro de um livro.
A bela imagem acalma a alma e aquece o coração. Marta e Lucio
abrem a porta ao ouvir o barulho do carro. Assim que nos veem,
Marta corre em nossa direção abrindo a portinhola da pequena
cerca.
Salta sobre Elleanor a envolvendo em um longo e apertado
abraço, desses que somos capazes de ouvir os ossos rangerem,
mas não são causadores de dor e sim de batidas fortes e alegres do
músculo cardíaco.
Lucio e seu largo e espontâneo sorriso que contagia a todos,
copia a esposa. Lia desaparece no meio do emaranhado de braços
que a cercam. Assim que a soltam cumprimentam as duas mulheres,
Ana que de alguma forma os reconhece e parece muito a vontade se
mantendo abraçada a Marta. Só então se voltam para mim. Elleanor
não tira seu sorriso. Nem há como negar que isso ela herdou do pai.
Até o jeito que as bochechas sobem é o mesmo!
Lucio me abraça com as palmas chocando-se contra minhas
costas, igual cumprimentava meu pai; cena que consigo ver diante
dos meus olhos provocando ardor. Contenho as lágrimas que tentam
se escapar. Marta também me contorna com os braços, no entanto
sua maneira é materna. Uma sensação que há muito não sentia.
— Entrem. — Lucio se coloca de lado abre a mão e indica a
direção da casa.
— Estava contando as horas para vê-los. Desde que Elle ligou
avisando. — Entrelaça seu braço ao da filha. — Quanto a você
mocinha, quero ouvir qual é sua desculpa para ficar tanto tempo sem
nos visitar.
— Além do trabalho, a chegada de Jae e o acidente.
Acontecimentos seguidos... Mas não foi muito tempo, apenas três
meses.
— Para quem vinha ao menos um fim de semana por mês! —
Lucio assopra o ar e junta as sobrancelhas. — Nos deixou muito
preocupados. Principalmente quando descobrimos sobre o ocorrido
com Jae Young, bem depois.
— Teríamos ajudado vocês. Iríamos para São Paulo. E faria uma
pasta de ervas para os ferimentos, e pílulas de flores para a
memória. — Marta acrescenta.
— Obrigado pela consideração tia. Elleanor aprendeu bem com a
senhora e cuidou de mim direitinho. Não havia porquê tirá-los da
tranquilidade.
— Mesmo assim, devem nos manter informados sobre tudo o que
acontecer com vocês.
— O senhor tem razão tio. — Abaixo a cabeça. Lia solta o braço
da mãe e vai para o meio das flores, fugindo da bronca dos pais
como uma criança.
— E seu irmão? Não sabia que ele planejava ir embora, Elle
nunca comentou e nem ele. — Marta me encara cheia de
curiosidade.
Decidimos não revelar a verdade sobre Jae Wook, para não
preocupá-los. Apesar de tudo eu gostaria que um dia ele se
redimisse e pudesse recomeçar. Pela promessa que fiz a minha mãe
rogo que isso um dia aconteça.
— Ele precisava ter um pouco de vivência com a cultura da Pátria
mãe. Minha avó está doente, Jae Wook quase não conviveu com ela.
Os ensinamentos da senhora Lee Hye Ji são preciosos,
especialmente para ele.
Adentramos a casa. Uma bela mesa posta nos aguardava para o
café. Pão quentinho, bolos, geleias, café, dois tipos de chás, ambos
com um aroma desconhecido, todavia muito bom. Frutas, queijos,
leite e manteiga.
Os olhos e sorriso de Ana brilham. Elleanor desde o inicio da
doença mantém os pais informados sobre Ana, afinal nossas famílias
foram mais do simples vizinhos: amigas. Posso afirmar que desde
aquela época formamos uma só família ligada pelos laços do
coração.
Marta ajuda Ana a se acomodar a mesa, senta ao lado dela. Ao
invés de leite e café, serve um dos chás e entrega para ela, junto
com uma fatia de um bolo cuja massa tem cor violeta.
— É bolo de frutas vermelhas, que não são de fato vermelhas,
mas não vou dar uma aula de botânica para vocês, e algumas flores
de pétalas rosas, brancas e amarelas. — Observo ambas: Ana e
Marta.
Ana mastiga com olhos fechados, sua respiração está mais lenta
e os gestos mais tranquilos. Marta gesticula com as mãos enquanto
explica, tocando ora ou outra o ombro de Ana. — Servem para
melhorar o funcionamento dos órgãos. O chá, além de camomila e
cidreira, contém outras duas flores. Auxiliam no sistema nervoso. Vai
deixá-la mais calma e ajudarão também na memória.
Lia pega minha mão por baixo da mesa, comprime. Aproxima o
rosto.
— Mamãe depois que veio para o interior desenvolveu seus
talentos com as plantas.
— Que tal explicar usando uma linguagem que eu entenda?
— Meus dons especiais vêm de uma longa linhagem de bruxas.
Minha mãe tem o dom, ou poder, se assim preferir, da natureza. Ela
consegue extrair o melhor das plantas e terra para ajudar as
pessoas.
— Igual a mulher de cabelo verde.
— Sim. Mas Isy está em um nível muito difícil de alcançar. — Isy!
Por causa dela, Elleanor e Marta, o sentido da palavra bruxa mudou
por completo para mim. Sorrio para Lia, que inesperadamente beija
minha face, atraindo os olhares de todos para nós. Endireito minha
postura mordendo rapidamente um pedaço de pão com manteiga,
tão saboroso como jamais provei antes.
— Então, quando vão assumir o relacionamento? — Engasgo.
Minhas pernas se agitam, o estomago revira, rosto esquenta e as
mãos suam. Lucio coloca as duas mãos na mesa. Seu olhar fixa em
mim.
— Esse foi o motivo de virmos hoje, pai. — Eu devia falar
primeiro! Coço o pescoço e tomo o café de um gole.
— Sei que o correto é pedir a permissão antes. Mas devido às
intercorrências não pude... De forma alguma tive a intenção de
passar por cima da aprovação de vocês. Então gostaria de solicitar
oficialmente que concitam o relacionamento.
Elleanor apoia o rosto sobre os dedos entrelaçados inclinando
totalmente para o meu lado. Seus olhos saltam e transparecem
estranheza. O queixo de Marta quase vai ao chão. Assim que paro
de falar, ela leva a mão aberta à boca passando a observar Elleanor
e Lucio. Ana também alterna o olhar entre todos na mesa sem parar
de comer. As outras duas mulheres riem. E Lucio... Bem nunca vi
essa expressão antes, não sei explicar. Será que eu não me
expressei direito? Devia ter escolhido outras palavras?
— Park. Jae. Young. Não estamos em uma produção televisiva de
época. — Elleanor pisca balançando a cabeça como se agisse
erroneamente. Então todos riem, até Ana que parecia alheia.
— Young sempre gostou de Elle. Acho que quando ficarem
adultos eles acabarão se casando. — Ana pronuncia com
serenidade.
— Sempre soube disso, Ana. — Marta pousa a mão sobre a dela.
Como isso poderia ser obvio quando nem Lia nem eu sabíamos?
— É... Apesar de apoiar a amizade das crianças na época, ver a
forma como cuidava da Elle me deixava feliz por ela ter interação
com outra criança e me tirava o sono e os cabelos, pois sabia que
mais cedo ou mais tarde isso aconteceria. — O que devo fazer
agora? Me curvo? Peço desculpas? Imploro? Ou mudo de assunto?
Será que está tudo bem? Inspiro e expiro contando mentalmente até
dez. Coloco a mão sobre o joelho de Lia. Ela corrige a postura. E sua
mão encontra a minha, segurando com força.
— Lembra-se de quando você me explicava sobre a cultura
coreana durante as refeições? — concordo. — Acalme-se. Está
tudo bem. A pergunta do meu pai foi só uma brincadeira. Ele já sabia
que estávamos namorando. Se fosse no século passado você
provavelmente teria que pedir permissão. — Ela ri.
Todos voltam a comer. Troca-se o assunto. Ana parece muito à
vontade. Após o café, uma das cuidadoras a leva para dormir.
Marta e Elleanor, vão para o quintal dos fundos, que mais se
assemelha a uma floresta particular. Lucio me carrega para fora.
Entramos em uma velha Pick-up preta. Repleta de varas de pesca e
outros apetrechos.
— Enquanto elas colocam os assuntos em dia, vamos pescar.
— Não é melhor avisá-las antes?
— Besteira, é pertinho daqui. Além do mais as duas nem
perceberão que saímos. E acredite, só vão notar quando chegarmos
com os peixes. — Dá dois tapinhas no meu ombro. Entramos no
carro e como ele mencionou gastamos apenas vinte minutos para
chegar ao pequeno riacho.
Lucio tira dois banquinhos, os mesmos que usava com o velho
Jung Hee. Uma pequena caixa térmica. Entrega-me um colete
surrado. E ele coloca o outro. Os olhos são mais forte que a mente e
em uma fração de segundos transbordam.
— Jung esperou muito por esse momento. Ele planejava levá-lo
para pescar quando voltasse adulto. Comprou quatro coletes iguais...
Ele me entregou pouco antes... — Ele olha para o meio do rio. Coça
a cabeça. Prepara-se e lança a linha que afunda bem no meio das
duas margens. — Como nunca pode realizar seu desejo, eu os
guardei, mas hoje vou repassá-lo para você. Assim como o antigo
colete dele... Você sempre gostou muito mais do que Wook desse
tipo de atividade, por isso deve ficar com isso... Sempre se pareceu
mais com Jung... Gostavam das mesmas coisas... o mesmo jeito de
andar, a mesma formalidade.
Seco as lágrimas, atiro a linha. E tudo o que enxergo é meu pai.
Rindo sem deixar os dentes a mostra. As mãos no bolso. O jeito
suave que bagunçava nossos cabelos. A voz grave e imponente...
Appa! Bogo sip-eo! Não sabe o quanto!
— Apenas pegue muitos peixes e o deixe orgulhoso! Jung não
gostaria de vê-lo chorar. Ele comentava com muito pesar sobre tê-lo
enviado a Coreia.
Abre a caixa térmica, pega uma cerveja para ele e uma garrafa de
soju. Lucio conseguiu me pegar desprevenido! Chacoalha a garrafa,
batendo com o cotovelo no fundo, depois abre e me entrega. Antes
de beber a cerveja, Lucio joga um pouco na grama repito o ato.
— Seu pai pensou em trazê-lo de volta Young. Inúmeras vezes.
Mas as noticias sobre você eram sempre boas, então ele desistia, e
quando isso acontecia, íamos para o rio só nós dois e as garrafas de
soju. Esses eram os únicos momentos que ele chorava e se permitia
revelar o quanto sentia sua falta, o quão arrependido...
— Obrigado por me contar. Se não fosse o senhor, eu jamais
saberia a verdade. Agora eu compreendo meu pai.
— Então realize seu desejo. Seja feliz meu filho, assim ele
também o será. — Lucio toca a lata de cerveja na garrafa de soju.
Tomamos ao mesmo tempo. Apesar de estar sem o copo e não
seguir as regras da cultura em sua plenitude. Estou leve, pelas
descobertas de hoje.
— Tio! Eu preciso de outra permissão.
— Permissão? — Ele olha de esguelha.
— Assumi todas as empresas da minha família. Na minha cultura,
como mais velho, é minha responsabilidade cuidar dos mais novos.
— Ele fica em silêncio, apenas focando o rio. — Por isso, eu
passarei muito tempo indo e vindo entre os dois países. Morarei
parte do ano lá e parte aqui. — Ele morde os lábios e abaixa a
cabeça. — Gostaria de propor casamento a Elleanor... E se ela
aceitar...
— Elle gosta de você. E a inversa é verdadeira... Sei que cuidará
dela e a protegerá no meu lugar, sempre foi assim. É responsável
como seu pai. Confio em você Young. Mas se um dia agir diferente e
a fizer chorar vou atrás de você e o castigarei. — Rio aliviado.
— Komawo. — Levanto do banquinho. Junto aos braços na
lateral do corpo e curvo-me. Lucio faz um carinho desajeitado no
meu cabelo.
Passamos o restante do tempo em silêncio, bebendo e atirando a
vara na tentativa de pegarmos algum peixe.

Esses dois dias com Marta e Lucio nos deram um novo fôlego.
Parte da agitação que ainda me consumia se apaziguou. O clima de
família que há muito eu não vira, só aumentou a certeza da minha
decisão.
Observo Elleanor que dorme tranquilamente no banco do carro.
Marta sugeriu que deixássemos Ana com eles durante essa semana,
para ver se a atmosfera mais tranquila do interior se adequa melhor
a ela. E assim, apenas nós dois seguimos de volta para casa.
Ao nos aproximarmos da entrada de Juquitiba, Elleanor desperta.
Observa a paisagem pela janela do carro. Se espreguiça bocejando,
parece uma daquelas gatas persas bem manhosas. Ela me encara,
inala o ar e pega minha mão.
— O que acha de passar no acampamento?
— Não podemos ficar hoje, deixe para outro fim de semana?
— A intenção não é acampar. Ainda é desconfortável...
— Um pouco. O que pretende?
— Agradecer.
Beijo o dorso de sua mão. Pego o retorno e dirijo até a velha e
familiar cabana. Embora as entranhas estremeçam um pouco,
adentramos a trilha. Dessa vez seguro de verdade a mão de
Elleanor. Da mulher e da garota que ainda existe dentro dela.
Paramos apenas quando encontramos nossa árvore. Os pés
querem se afundar, mas os forço a se arrastarem até lá. Ainda vejo
meu corpo ensanguentado encostado ao tronco. Elleanor entende,
pois me abraça pela cintura e na ponta dos pés beija minha face.
Sua influência sobre mim é tamanha que me tranquiliza quase
inteiro.
— Isy! — Lia aguarda mais alguns segundos. — Isy!
O cheiro forte de flor nos rodeia. Em seguida a figura conhecida
do ceifador se materializa diante de nós.
— Gael! — Ele curva-se nos cumprimentando. — Elleanor chama
a bruxa e quem aparece é você, recepcionista?
— Ainda pode vê-lo? — ela pisca algumas vezes. Leva o
indicador direito até os lábios.
— É raro, mas aqueles que pisam na fronteira, após retornarem
para o mundo dos vivos podem recuperar suas memórias e
desenvolverem uma pequena sensibilidade. — Gael aponta para
mim com um sorriso divertido no rosto.
— Jae pode ver fantasmas agora? — Elleanor se vira para mim
analisando-me de cima a baixo.
— Só vejo o ceifador. Pelo menos até agora.
— Não acredito que passará disso. — Gael gira a cabeça para a
esquerda. — Pelo cheiro e brisa, sua invocação funcionou Elle!
Ambos direcionamos o olhar para o mesmo lado que Gael.
Aproximadamente um minuto depois, a mulher exótica com seus
cabelos verdes e vestes rosa flutuantes, aparece andando apressada
até nós. Primeiro ela observa um a um.
— Será que essa é a primeira vez que recebo uma simples visita?
Expressões tranquilas, respirações normais, peles bem tratadas... O
único detalhe que ainda causa estranheza é você, Gael. — Ele ri
apoiando o queixo em sua mão esquerda. — Sempre me traz
problemas.
— Dessa vez não fiz nada. — Ele eleva as mãos abertas.
— Eu que a chamei. — Elleanor dá um passo chegando-se mais
perto dela. Isy a encara e enfim abre um sorriso singelo. —
Obrigada. — Lia abre os braços que são aceitos por Isy.
— Eu também gostaria de agradecê-la por salvar minha vida.
— Você sabe quem sou? — Isy não demonstra surpresa, sua
pergunta soa mais como um teste.
— Sim. Você me cobriu com folhas, colocou umas coisas
gosmentas no meu corpo e me fez beber um líquido esverdeado com
cheiro e sabor muito peculiar.
— Não ofenda a mãe natureza, nem minhas habilidades. — Eleva
a cabeça e abre bem os olhos enquanto fala.
— Mianêyô! Mas, não é ofensa. Eu sou profunda e eternamente
grato por manter-me vivo. Você, junto com Gael e Elleanor me
proporcionaram uma segunda chance. Nasci outra vez. Komawo! —
Abaixo o tronco com os braços unidos a lateral do corpo quase toco
o chão com o topo da cabeça.
— Não precisam agradecer-me. Fui agraciada com esse dom,
então não faço mais do que recebi. — Isy pega minha mão e a de Lia
e as segura unidas. — Aproveitem essa chance e sejam felizes.
Esqueçam e se afastem daquilo que os fazem mal. Às vezes a
distância é a resposta certa.
— É difícil esse tipo de emoção mexer comigo, mas estou tocado
pela atitude de dois simples humanos. — Gael cruza os braços com
suas órbitas roxas brilhando. O sorriso é sincero, diferente das outras
vezes em que denotava diversão, alegria. — Elleanor. — Gael se
aproxima. — Tenho um presente para você.
— Presente? — Ela une as sobrancelhas e eleva os ombros. Não
consigo imaginar que tipo de mimo pode vir dos céus. Coço o queixo.
— Você tem nos ajudado desde sua tenra idade. Contribuiu mais
do que imagina, e mesmo amedrontada aceitou seu dom. Se
ignorasse, em pouco tempo não receberia nenhuma alma perdida.
— Nunca soube disso.
— Nós nunca sabemos. O tempo e a intuição nos ensinam muito
do que desempenhamos como bruxas. — Isy põe a mão sobre o
ombro de Elleanor, sorrindo para nós dois.
— Desde que ajudou Jae Young, não recebeu mais visitas.
— Pensando bem, não vi mais nenhum fantasma, mas há tempos
que a frequência diminuiu...
— Não receberá mais. Vocês poderão viver o resto de suas vidas
humanas em paz.
— Eu não me importo em ajudar...
— Sabemos, mas já fez sua parte.
— Não o verei mais?
— Nunca se sabe. — Gael abre as mãos. — Vivam bem,
mantenham-se saudáveis e felizes. E você, — Gael aponta para
mim. — Seja bom para Elleanor e a compense pelo tempo perdido.
— Aceno com a cabeça em concordância. — Hora de ir! Até um dia!
Isy, virei mais vezes visitá-la.
Antes que ela responda, Gael e seu cheiro desaparecem em meio
a sua marca registrada: fumaça roxa!
— Ah! Obvio que ele não me deixaria em paz! Virá com mais
casos urgentes. Gael deveria agir apenas como ceifador, mas tem
ego de anjo.
— Acho que é só desculpa para poder vê-la. — Elleanor pisca
para Isy.
— Mesmo que fosse verdade, seria impossível. Já ouvi lendas
sobre anjos que conseguiram se transformar em humanos, mas
ceifadores, só se falam sobre coletar as almas, e existe um motivo
para isso, algo que não posso revelar.
— Não duvide, afinal você já viveu mais do que qualquer humano
que eu já soube. Nada é impossível, Isy! — Agora é Elleanor que
toca os ombros de Isy. A bruxa sorri discretamente, mas evita nos
encarar. Acredito que entre esses dois exista muito mais do que
amizade, só não conseguiram se entender ainda.
— Precisamos ir. Nunca a esquecerei, Isy. — Pego a mão de
Elleanor. Ela assente, movendo os lábios com suavidade.
— Quando vierem acampar, talvez eu os encontre. — Isy abre os
braços e passa por nossos pescoços ao mesmo tempo. —Procurem
cultivar apenas o que for bom e principalmente o amor e a felicidade.
— Você também, Isy. — A voz de Lia é trêmula.
— Até qualquer dia.
— Até. — Isy vira de costas. Trago Elleanor para meu lado.
Permanecemos ali até as vestes rosa e a última mexa verde
desaparecer entre a densa folhagem da mata. Lia toca nas nossas
iniciais dentro do coração esculpido na árvore, me encara com os
olhos lacrimejando. Aproximo de seu rosto e deposito um beijo em
seus lábios. A claridade começa a diminuir. Seguimos de mãos
dadas até o carro.
39

Elleanor

Três meses depois...

O coração bate em ritmo acelerado desde que os primeiros raios


de sol irromperam pela janela. Por dentro, todos os meus órgãos se
agitam conforme os minutos passam.

Jae continua dormindo profundamente, sua respiração pesada


ressona pelo quarto e ecoa em meus ouvidos.

Salto entre as duas malas de mão abertas sobre o assoalho do


quarto, tomando cuidado para não acordá-lo. Desço os degraus
deparando-me com outras duas malas já devidamente lacradas,
acomodadas próximas à porta que dá acesso à garagem.

O silêncio predomina por toda casa. Nem mesmo nossos


ajudantes estão acordados. Sirvo um copo de água e preparo chá de
camomila com cidreira e um pouco das pétalas de flores secas que
mamãe me trouxe ontem quando ela e papai vieram buscar Ana.
Enquanto a água ferve, coloco a mistura dentro do pequeno bule
de infusão.

Durante esses meses, meus pais têm nos ajudado a cuidar de


Ana. A ideia de mamãe de levá-la para o interior aos poucos foi
excelente. Começamos com uma semana, aumentando
gradativamente os dias para que ela não se assustasse.

Ana, mesmo nos momentos em que sua mente fica


completamente em branco, sente-se em paz; é possível que seja
devido à proximidade e intimidade de anos com meus pais, mas
também a toda quietude existente na pequena cidade, e, claro, ao
tratamento alternativo de dona Marta.

Para meus pais, Ana também acrescentou algo, uma forma a


mais de se sentirem úteis, contribuindo para melhorar a qualidade de
vida de um ente querido. Ana permanecerá com eles enquanto
ficarmos na Coreia, acompanhada pelas cuidadoras.

Nós dois e meus pais assumimos legalmente a curatela


compartilhada de Ana. Destinamos toda a renda da antiga loja do tio
Jung, que Jae conseguiu recuperar depois de muito esforço, para
seus cuidados.

A casa azul continua ao dispor dela, quando Ana torna-se


inquieta, é para lá que a levamos, e meus pais se dispuseram a agir
da mesma forma. Essa casa nunca será alugada ou vendida, pelo
menos enquanto estivermos vivos.

Despejo a água em ponto de ebulição dentro do bule. Espreguiço-


me, alongando a coluna. A boca abre em um longo e preguiçoso
bocejo, resultado da noite maldormida.

A tela do aparelho telefônico acende enquanto ele vibra sobre a


bancada de mármore. Deslizo para o lado direito.

— Mãe.

— Bom dia, filha. — Sua voz alegre aumenta minha agitação.

— Tudo bem por aí?

— Sim. Terminou de arrumar as malas?

— Faltam só alguns itens de higiene pessoal e poucas peças que


Jae insiste que eu leve na mala de mão, já que passaremos algumas
horas na Alemanha até a saída da conexão para a Coreia.

— Ele está certo, essa época do ano é frio lá, não é?

— Bastante. Papai e Ana estão bem?

— Elleanor, não se preocupe, estamos todos bem, com saudades


já. Entretanto, faz parte da vida. Logo nos acostumaremos com a
nova realidade de vê-la nessa ponte aérea.

— Nunca ficamos tanto tempo sem nos ver... — O coração torna-


se pequeno, a voz embarga e as lágrimas surgem. Coloco o chá na
xícara.

— Não pense nisso, filha. Aproveite sua vida. Desfrute e aprenda


as coisas boas de outra cultura, conhecimento nunca é demais.
Assim, quando vierem os frutos desse amor tão bonito de vocês,
estará pronta para educá-los unindo o melhor das duas culturas, e
contribuindo com a humanidade ao formar pessoas com bom caráter,
honestidade e sabedoria. — Sua voz sobe uma oitava. Consigo ver
sua face banhada por lágrimas e seus olhos vermelhos.

— Rá rá rá. Já começou a pensar em netos? — Rio em meio ao


choro, uma mistura de emoções que não consigo explicar. —
Obrigada por tudo, mãe. Amo vocês.

— Seu pai está me chamando. Elle! Cuide-se. Não se esqueça de


sair bem agasalhada. Use luvas, suas mãos gelam com o frio daqui,
imagine lá! E sempre tenha guarda-chuva com você, ouvi dizer que o
tempo é instável. Envie-me fotos suas e dos lugares que visitar.
Quero muito ver as cerejeiras floridas. — Ela fica em silêncio de
repente, significa que não consegue conter o choro. Estou na mesma
situação.

— Seguirei todos os seus conselhos. Mãe! Quanto à cerejeira, eu


te levarei para vê-las pessoalmente um dia.

— Tá! — Ela desliga.

Braços grandes e quentinhos envolvem meu pescoço. Jae apoia o


queixo sobre minha cabeça. Um longo suspiro escapa de sua boca.

— Então tia Marta quer ver a florada das cerejeiras?

— Até quando a chamará de tia? — Jae ri e puxa a cadeira ao


meu lado. Senta. Beija minha face. Seca meu rosto com a ponta dos
dedos.

— Está cheia de olheiras. — Observa minha xícara em seguida.


— Ainda ansiosa? — Abaixo a cabeça concordando. — Relaxe, Lia.
Lembre-se de que a tecnologia evoluiu muito, use-a a seu favor.
Faça muitas chamadas de vídeo com seus pais. Eles vão adorar, e
você diminuirá a distância e a falta que sentirá deles.

— Eu sei.

Jae prepara o café da manhã. Fazemos o desjejum juntos. Em


seguida, subimos para o quarto para finalizar as malas.

Recebo uma foto de Mari e Jerry no final da viagem de lua-de-mel


deles, seguida pelo desejo de boa viagem. Sorrio enquanto coloco o
cachecol dobrado dentro da mala.

Jae se aproxima, observando por cima do meu ombro a foto dos


nossos amigos.

— Mariana emite energia positiva até nas fotos.

— Ela sempre foi assim. Linda e influente!

— Concordo, ela devia ter seguido carreira de modelo.

— Aconselhei-a várias vezes... Ela de noiva, então! Parecia uma


princesa!

Jae apoia o queixo entre os dedos em forma de L. A maneira


como me encara é diferente. Analisa-me ou avalia-me, como se
estivesse planejando algo...

— Marcus estava bem emocionado com o casamento da irmã. —


Coloco o celular sobre a cama. Fecho o zíper da mala.

— Ele se preocupava muito com a Mari. Pensava que ela


idealizava demais os relacionamentos. Tinha medo de ela nunca
encontrar o amor por ter altas expectativas. Vê-la feliz trouxe paz
para o coração dele.

— E os pais deles os apoiam... Pareciam orgulhosos dos filhos.

— Foi um longo caminho até aqui. Principalmente para Marcus e


o pai. O que importa é que eles se amam. Uma linda e imperfeita
família.

— Ninguém é perfeito, aí que está a alegria da vida. — Jae pega


as duas malas pelas alças e as leva para a sala.

A porta da sala de desembarque abre. Somos recebidos pelo ar


congelante, contrariando o sol brilhante e o céu sem nenhuma
nuvem. Olhando para cima, pode-se jurar que é verão.

Jae abre minha mala de mão. Retira o cachecol e o par de luvas.


Coloca o cachecol em meu pescoço enquanto eu calço as luvas. Um
sedã preto aproxima-se e estaciona ao nosso lado.

Um senhor magro de cabelos grisalhos, trajando um terno preto


impecável e óculos, sai do lado do motorista e caminha até nós.
Curva-se.

— Dasi osin geos-eul hwan-yeonghabnida, Park Jae Young Ssi.


— Minha cabeça vira instantaneamente para Jae e minha boca se
abre sem que eu possa controlá-la.
— Acho que preciso urgentemente de aulas de coreano. — Jae ri.

— Kamsahamnida. — Curva-se para o homem, voltando-se para


mim em seguida. — Esse é o senhor Choi, funcionário de confiança
da minha avó, a quem chamamos de secretário.

— Entendi... Jae, nós ficaremos na casa da sua avó?

— Não. Harmeoni apenas solicitou que ele nos buscasse em


Incheon, para nossa comodidade.

— Annyeonghaseyo. — Tento pronunciar o mais parecido com o


que Jae me ensinou, mas esqueço de me curvar. Apenas aceno com
a mão direita.

O homem me analisa de cima a baixo, oferecendo-me o que


prefiro encarar como um sorriso torto.

Ele abre a porta de trás. Jae gesticula para que eu entre primeiro,
acomodando-se ao meu lado em seguida. O senhor de semblante
sério demora-se um pouco a retornar para seu posto, pois estava
acomodando a bagagem no porta-malas.

O carro movimenta-se, ganhando velocidade aos poucos.


Observo a paisagem pela janela. A vegetação bem diferente da
nossa, assim como a arquitetura. Os olhos parecem cheios de areia,
ardem e pesam. O corpo amolece. A mão de Jae toca minha face do
lado esquerdo e então a cabeça pende até se aconchegar no seu
ombro. Não enxergo mais nada.

As pálpebras se levantam devagar. Jae desliza a ponta dos dedos


com suavidade pelo meu rosto. Seu aroma faz meus sentidos
despertarem mais rápido e quando finalmente vejo seus lábios
perfeitos estampando o sorriso contido que tanto amo, a consciência
volta por inteiro. Sorrio de volta.

— Chegamos.

Ele me estende a mão. Eu seguro confiando meu peso totalmente


a ele, que me oferece empuxo para sair do carro sem perder o
equilíbrio. Ao tocar os pés no chão, elevo a cabeça. Os olhos se
enchem com a vista de tirar o fôlego.

Uma casa pintada de amarelo com as janelas contornadas de


branco. Pé direito alto, tornando sua arquitetura imponente. Uma
pequena fonte circular no centro do lindo jardim, cujas flores que
sobrevivem não estão tão bonitas devido ao frio.

O entorno da mansão é repleto de árvores e outras plantas. Um


espaço impressionante, como se estivéssemos em uma pequena
propriedade rural.

— Gostou? — Jae me observa com as mãos nos bolsos. Seus


olhos sorriem.

Se eu soubesse pintar, esse seria o momento perfeito para


eternizar. A imagem mais bonita que já presenciei até agora.

— Nunca vi nada tão lindo! — Ele pende a cabeça para baixo,


levantando-a em seguida. Seu sorriso se alarga e meu coração
quase para.

— Há tempos eu a monitorava e um mês atrás recebi a notícia de


que estava à venda, não perdi um segundo e a comprei. — Ele
admira a construção com devoção. Seus olhos brilham
intensamente. — Essa é a casa em que vivi com meus pais. Aqui
está cheio de sorrisos e risos alegres da Kim Soo Min, minha mãe.
Suas lindas canções, o cheiro de encher a boca de água de suas
refeições temperadas com alegria e amor. Abraços e beijos
quentinhos. É nessa atmosfera que pretendo viver com você nas
temporadas que passaremos em Seul.

Ele entrelaça nossas mãos e a beija, então me guia. Senhor Choi


nos segue carregando as malas, que são entregues a dois
funcionários que nos aguardam. Jae os cumprimenta dentro dos
costumes locais. Por enquanto, apenas imito os sons que ele produz,
até aprender como devo me comportar aqui. Ele emana uma luz
intensa como eu nunca vi antes e que me contagia.

Depois de descansar, no meu caso dormir, já que meu corpo não


teve tempo de se adaptar ao fuso horário, somos servidos com uma
tradicional refeição coreana com nove acompanhamentos.

Ao finalizarmos a refeição, seguimos para a casa da avó de Jae.


Por dentro, sou como uma gelatina, tudo o que ouvi sobre a lendária
Lee Hye Ji ainda me perturba, entretanto, essa impressão só dura
alguns momentos.

A senhora de pele enrugada e lenço cobrindo a cabeça nos


recebe em sua cadeira de rodas empurrada por outra senhora de
meia-idade, que, segundo Jae, é a cuidadora. O tratamento
quimioterápico não surtiu efeito desejado, e devido à idade
avançada, os médicos temem que não resista à cirurgia.
Esperava ser recebida com indiferença, contudo ambos, Jae e eu,
fomos surpreendidos. Ela segurou minha mão entre as suas com
dificuldade. A voz fraca e trêmula.

— Welcome, dear! Eu gostaria de aprender seu idioma e assim


poder recebê-la de forma mais confortável, mas minha mente já não
consegue armazenar novas habilidades. — Não fala português, já o
inglês é melhor do que o meu.

— Obrigada pela consideração.

— Por favor, sentem-se.

Jae curva-se para ela, em seguida se aproxima e beija suas


mãos. Engulo a saliva com dificuldade, esforço-me para conter o
choro que começa a se formar no canto dos olhos. Ela sorri com
gosto. Toca a face de Jae, acariciando-o. Para mim, ela não se
parece em nada com a mulher rígida que foi descrita.

Conversamos sobre a viagem, Ana, meus pais, os negócios no


Brasil. Ela se ofereceu para me ajudar com a adaptação na Coreia,
inclusive ensinar-me um pouco do idioma até contratarmos uma
professora, o que aceitei de bom grado. No final da visita, ela nos
surpreendeu mais uma vez.

— Elleanor, obrigada por cuidar bem do meu neto e dar a ele o


que eu não soube demonstrar: afeição e amor. — Congelo sem
saber o que e se devo dizer algo.

Então, como se isso não fosse o suficiente, curva o tronco em


direção a Jae. A cabeça dela quase toca os joelhos.
— Mianhada, Park Jae Young!

— Não precisa pedir perdão, harmeoni. Eu não a compreendia


antes, mas agora entendo.

Aquele ditado que diz que a vida nos ensina, essa cena é a
certeza de que ele está certo. Voltamos para casa mais leves e mais
humanos.

Assim que amanheceu, embora ainda muito sonolenta, tomei o


primeiro café da manhã tradicional coreano, ou seja, um almoço
antecipado. Agasalhei-me seguindo as orientações da minha mãe e
entramos no carro. Jae fez questão de dispensar o motorista.

Visitamos o que considero como túmulo dos seus pais. Um lugar


bem diferente do que estamos acostumados no Brasil.

A construção se assemelha a um prédio cheio de pequenas salas,


cujas paredes têm uma espécie de prateleira com portas de vidro.
Em seu interior, há vasos de cerâmica com tampa, denominados
urnas. Algumas são decoradas com pinturas, outras apenas brancas.
Ao lado, fotos das famílias e da pessoa que ali descansa, flores e
outros objetos.

Atrás desse prédio existe algo parecido com um jardim. A família


de Jae possui um espaço considerável de terra ali.
Quando tio Jung faleceu, enterraram a urna ao pé de uma linda
cerejeira. E Jae moveu as cinzas da mãe para esse mesmo espaço.
Hoje trouxemos tulipas brancas, alguns pêssegos, maçãs e soju.

Jae conversa com os pais contando sobre a avó, a viagem, a


pescaria com meu pai e Ana.

— Omma! Essa é Elleanor. Enfim você pode conhecê-la pessoal e


oficialmente como minha namorada.

— Annyeonghaseyo, sogra. — Jae ri. — Você está se tornando


muito atrevido, quase não há resquício daquele menino tímido. —
Cruzo os braços. Ele me abraça por trás. — Mesmo assim, eu gosto
cada vez mais dele, sogra, então pode ficar tranquila, pois farei o
meu melhor para cuidar dele. Tio Jung, espero que esteja bem e
feliz.

— O velho Jung ficará muito triste. Você não o chamou de sogro.


— Jae bagunça meu cabelo.

— Tio, desculpa. Vou chamá-lo de sogro de agora em diante.


Sinto sua falta. Meu pai diz que pescar sem o senhor não é a mesma
coisa. Quando vai à São Paulo sempre compra soju; o senhor ficaria
orgulhoso se o visse tomando e comendo bibimbap. Ah! Foi Jae que
o ensinou a preparar.

— Appa, Lia ainda não come bibimbap como manda a tradição.

— Sogro, joesonghabnida! — Junto as mãos em forma de prece.


— Eu não consigo, só de imaginar o ovo com a gema mole
escorrendo sobre o os outros ingredientes o estômago sofre.
Passamos um tempo ali conversando, comendo e tomando soju,
ou melhor, eu tomei, pois Jae é o motorista.

Ele observa o relógio. Pega minha mão. Então ajoelha-se quase


deitando no chão.

— Joesonghabnida, abeoji. Eu não o entendia antes. Demorei


muito, eu sei. Perdão por não estar presente nos seus últimos
momentos... Eu sempre o amei e vou amá-lo. É tarde para admitir,
mas sinto muito sua falta. Queria abraçá-lo pelo menos uma vez...
Omma, mianê por não ter cuidado do pai por você.

Uma brisa suave nos beija a face. Folhas secas caem da árvore.
Jae olha para o céu e sorri.

O aroma de violeta e a imagem de Gael surgem. Ambos o


encaramos ao mesmo tempo, o semblante de Gael é divertido.

— Meus pais estão bem?

— Como você, eu só vejo Gael, mas acredito, pela forma como


ele nos olha, que estão em paz e juntos. — Respondo, na dúvida se
ele se dirigiu a mim ou ao ceifador.

— Eu também. — Uma lágrima cai por seu rosto.

Gael curva-se e vai embora.

Depois da conversa no acampamento, raramente o vemos, e


quando acontece é sempre de forma silenciosa.

Jae se levanta, limpa os joelhos, pega minha mão e seguimos de


volta para casa.
Epílogo

Jae Young

Inspiro e expiro. Pego a caixa. Abro. Fecho. Caminho pela sala


iluminada pelos raios de sol que atravessam o tecido fino da cortina
branca. Ouço passadas longas no andar de cima. Confiro mais uma
vez o conteúdo. Meu bolso vibra. Pego o aparelho, vou até o pé da
escada, o barulho persiste no mesmo lugar, passo o dedo sobre o
símbolo verde.

— Yeoboseyo?

— Tudo pronto. Acabei de deixá-los no local.

— Komawo.

Encerro a chamada. Cinco segundos depois, ouço passos cada


vez mais fortes e próximos. Viro de frente para a escada. E se meu
coração estava saltando antes, agora ele se assemelha ao motor de
um carro de Fórmula 1.

Elleanor desce os degraus devagar, parecendo um pouco


desconfortável. Usa um tênis branco, saia com listras coloridas
marcando a cintura e camiseta rosa, cabelos presos, bolsa
transversal. Ela parece uma menina! É como voltar ao dia em que a
vi pela primeira vez observando a casa ao lado do pai.

Sorrio oferecendo a mão.

— Tem certeza de que não é muito curta? — Pega minha mão e,


com a outra, puxa a barra da saia para baixo.

— Está perfeita! Mais de seis meses e ainda estranha a moda de


Seul?

— Claro, um decote comportado provoca escândalo, mas esse


pedaço de pano que mal cobre as nádegas é trivial! — Encosto os
lábios em sua testa, rindo.

— E a blusa? Gostou?

— Quando assistia os dramas na televisão me imaginava usando


roupas de casal com você, entretanto agora parece muito brega. —
Ela segura minhas mãos e as afasta do corpo. Seus olhos se juntam
e os lábios formam um sorriso só de um lado.

— Ah! Mas hoje sairemos assim! E se prepare para as fotos,


corações e muitas caras fofas! — Elleanor cobre o rosto com as
mãos.

Gargalhando, enlaço seu braço arrastando-a para fora.

Abro a porta para ela e a ajudo a se acomodar no carro. Assumo


meu posto na direção, dou a partida e iniciamos o trajeto. Lia dá o
play em uma de suas listas de música. A mais eclética possível, com
músicas brasileiras, música popular coreana, e outras de várias
partes do mundo, as quais ela tenta acompanhar cantando e
dançando no banco do carro.

Harmeoni lhe ensinou regras de etiqueta, um pouco de história


coreana e cultura. As aulas diárias do idioma estão funcionando
bem. Elleanor aprende rápido e tem uma memória admirável.

Apesar da diferença cultural, ela conquistou a admiração de


algumas mulheres da empresa por sua espontaneidade, disposição
em aprender e ajudar.

Já fez grandes amizades, até me deixou duas noites sozinho para


dormir na casa de uma das amigas para consolá-la pelo rompimento
do noivado, que ocorreu poucos dias antes da data do casamento.

Elleanor dá aulas de português para os colaboradores do grupo


que, devido a decisão de expansão, foram designados para
assumirem posições no Brasil e em Portugal. Além do idioma, ela
sempre comenta sobre os hábitos e costumes, e mesmo não sendo
seu forte, prepara alguns pratos vez ou outra, ensinando a receita.

— Você não disse ainda para onde vamos.

— Vamos para a Ilha de Yeouido. — O sinal fecha.

Olho para Elleanor concentrada, possivelmente tentando lembrar-


se de alguma informação sobre o local.

— Não me recordo do nome.

— É a primeira vez que vamos. Confie em mim, a paisagem é


linda.
Ela volta a cantar e se remexer no banco, fazendo muitas caras e
bocas engraçadas. Embora ria de tudo o que ela faça no momento,
por dentro estou congelando, obrigando-me a respirar.

O trajeto parece ser o mais longo que já percorri em toda minha


existência!

Paro o mais próximo que consigo do nosso destino. Estamos em


plena primavera. Flores abertas colorem ainda mais o panorama. O
vento fresco e agradável faz com que muitas pessoas aproveitam os
dias com amigos ou família nos parques. Muitos casais também
gastam o tempo juntos sentados no gramado, andando de bicicleta e
outras atividades ao ar livre.

Entrelaço nossas mãos. Ela observa atentamente cada pequeno


detalhe. Desde as folhas e pétalas trazidas pelo vento aos animais e
crianças correndo de um lado pelo outro.

— Ah meu Deus! Que lindo! — Chegamos a uma das áreas mais


belas do parque: o caminho pelas árvores de cerejeiras em flor.

A vista é de encher os olhos e o coração. As pétalas que caem


formam um imenso tapete cobrindo o caminho.

Ela para de caminhar toca os próprios lábios abertos em O com a


mão.

— Sabia que gostaria.

— A florada é muito mais bonita do que as imagens que vi nos


vídeos.
— Vamos? — Ela sobe na ponta dos pés e beija minha face. Ao
tocar o solo de volta, me arrasta exalando energia.

Minhas entranhas se agitam, o gelo derrete dando lugar a um


calor inexplicável. Os pés parecem não tocar o chão.

Paramos próximo a uma barraca de tteokbokki. As primeiras


vezes que comeu, Elleanor chorou com a pimenta, devido a falta de
costume, agora tornou-se apreciadora do petisco. Aguardo enquanto
ela termina de comer, por dentro continuo um caos. Ela limpa a boca
e voltamos para a caminhada, assim como inúmeros casais.

Paramos em frente a uma das copas com o formato mais bonito.


Tiramos algumas fotos. Quando Elleanor abre a bolsa para guardar o
celular, o elástico que prende seu cabelo se solta. Abaixo. Pego.
Limpo. É agora! Encho o peito de ar. Posiciono-me à sua frente.

Minhas mãos seguem para seus cabelos. Deslizo-as sobre os


fios, juntando-os e prendendo-os em seguida. Quando termino, seus
olhos estão presos ao meu rosto.

— Vocês sabem realmente prender o cabelo de uma mulher?!

— Se você me permitir, eu farei isso pelo resto de nossas vidas.


— Seus lábios se esticam em um meio sorriso. Ela inclina a cabeça
para o lado.

Observo ao redor e encontro o rosto do secretário Choi. Sinalizo


com a cabeça. Ele aproxima-se e me entrega o arranjo com tulipas
vermelhas. O sorriso desaparece da face dela, que empalidece.
Apenas dois pontos avermelhados nas bochechas.
— Naquela manhã, quando acordei e corri para jogar bola com
meu irmão, eu não podia imaginar que meu destino estava prestes a
mudar. Jamais poderia supor que o olhar curioso e inocente de uma
garotinha cheia de sardas chamaria tanto a minha atenção, mas ela
me hipnotizou assim que saltou do carro e caminhou pela calçada,
passando através da grade da minha casa. Foi naquele exato
momento que nossos caminhos se encontraram. — As mãos
tremem. Controlo a respiração.

— Entretanto, foi na tarde daquele mesmo dia, quando você abriu


os olhos encontrando os meus, que meu coração reconheceu o que
a mente ainda não era capaz, e então dois caminhos se tornaram
apenas um: o que nos trouxe a este momento.

— Por que... — Entrego as tulipas aproximando nossos rostos,


sem lhe dar tempo. Nossos lábios se tocam rapidamente. Retomo a
postura.

— Sabe o significado da tulipa vermelha? — Ela balança a cabeça


negando. — Amor verdadeiro. Você é meu único e verdadeiro amor,
Elleanor.

Seus olhos brilham, mergulhados em água, que transborda pela


lateral rolando por sua pele até chegar ao queixo.

— Foi ao seu lado que aprendi o que é se importar com alguém


sem querer nada em troca. Cada vez que sorria cheia de
sinceridade, quando apertava minha mão tão desesperada e
confiava em mim como se eu realmente pudesse protegê-la. Quando
furtava um beijo na ponta dos pés, estava na verdade me dando
muito mais. Por isso, peço que me permita retribuir tudo o que
recebi.

Abaixo, apoiando o joelho esquerdo no chão enquanto dobro a


outra perna. Retiro a caixa preta de dentro do bolso. Coloco entre as
mãos, abro e estico os braços em sua direção.

Ela abraça com força as flores. Meu coração vacila.

Será que eu devia ter esperado um pouco mais? E se ela disser


não? Agora não há como voltar atrás.

Inalo o máximo de ar que sou capaz e solto de uma vez.

— Elleanor, me aceita como seu destino?

O buquê de tulipas cai no chão. Ela dá um passo e toca minhas


mãos. Sorri misturado ao choro. Meneia a cabeça para cima e para
baixo.

Dou impulso erguendo-me do chão. Retiro o anel de dentro da


caixa e coloco em seu dedo. Minhas mãos correm para seu rosto.
Seco as lágrimas dela com os polegares e a trago para mim.

Para junto de mim.

Nossos lábios se encontram saudosos um do outro. Destilando


todo nosso sentimento. Seu peito sobe e desce desesperadamente e
coração bate contra o peito tão forte que o sinto como se estivesse
dentro do meu próprio peito. O meu corresponde na mesma
intensidade. A maciez e o calor da sua pele em minhas mãos. O
cheiro de morango invade meu nariz conforme o vento balança seus
cabelos.
Palmas e gritos ao nosso redor nos fazem rir com os lábios ainda
grudados. No entanto, é hora de finalizar a proposta. Distancio-me
devagar.

Quando abrimos os olhos, a surpresa final se concretiza: Lucio,


Marta, vovó, Marcus, André e as duas melhores amigas coreanas de
Elleanor.

Recebemos os cumprimentos de todos. Marta entrega seu celular


para Lia com Mariana, Jerry e Ana em uma videochamada. Ana não
apresenta condições de saúde para uma viagem, então Mariana e
Jerry estão cuidando dela.

Recebemos as felicitações. Elleanor está com os pais. Marta


acaricia os cabelos da filha e o pai a abraça. Minha avó observa o
comportamento deles com curiosidade e um pouco afastada.

Uma silhueta ao fundo desperta minha atenção: cabelos escuros


na altura dos ombros, boné preto e camiseta da mesma cor, óculos
escuros e jeans surrados. Ele se mantém imóvel e distante. A
postura discreta e recatada. Não preciso que ele revele seus olhos
para reconhecê-lo: Jae Wook. Curvo a cabeça para ele que repete o
gesto e se retira. Seu andar ainda é o mesmo. Sua atitude, não
posso afirmar.

Desejo que de alguma forma encontre paz e felicidade meu irmão!

Assim que todos entram nos respectivos carros, seguimos para o


almoço organizado por Lee Hye Ji.

Minha avó está cada vez mais debilitada, não demorará muito a
nos deixar, contudo, ela ainda teve tempo para experimentar dar e
receber afeição. Fez questão de providenciar, além de pratos
tradicionais coreanos, comida brasileira. Acompanha os pais de
Elleanor todo o tempo. Lucio e Marta, por sua vez, parecem apreciar
a companhia dela.

Marcus e André trouxeram alguns doces franceses para nós.


Como sempre, ambos muito atenciosos e alegres. Entregam uma
caixa para Lia a mando de Mari. Não vi o conteúdo: ela levantou a
tampa e a fechou na velocidade da luz, mas notei que sua face foi da
cor naturalmente pálida para uma tonalidade vermelha, o que
significa que eu aprovarei o presente.

Pego uma taça de vinho e aproximo-me da minha noiva


aproveitando que todos estão distraídos, levo-a para o jardim. Passo
os braços por sua cintura, as mãos sobre seu ventre. O céu está sem
nuvens e o sol brilha. Meu corpo se aquieta. E o dela também
aparenta a mesma sintonia. Ela suspira.

— Acredito que agora tudo está em seu devido lugar.

— Eu também. Não sei descrever, apenas não há mais emoções


brigando aqui dentro. — Ela leva a mão ao peito.

— Saranghae!

— Desejei muito ouvi-lo se declarar assim, com esse sotaque que


me derrete!

— Você assiste muito drama, Lia! — Rio. Ela se vira, ficando de


frente para mim.
— Saranghae! Te amo, coreano dos olhos que sorriem. — Passa
o braço sobre meu pescoço. Beijo sua têmpora e depois seus lábios.
— Agora seguimos um único caminho. Esse é apenas o começo da
nossa vida juntos!

FIM
Notas da autora

Um coreano em minha vida é uma obra fictícia. Embora envolva


a lenda do Ceifador, a mesma não é seguida à risca. Nessa história,
o Ceifador não é o tão temido ser místico que vem até a Terra
coletar a alma dos que estão prestes a morrer. Nessa versão, optei
por deixá-lo mais próximo a um trabalhador que cumpre ordens,
porém faz o seu melhor, sempre com simpatia e um sorriso no rosto.

Nossas bruxinhas aqui também não seguem à risca o que


ouvimos falar e lemos sobre elas. Nessa versão elas são mais
humanas e seus poderes são tratados como habilidades e dons
recebidos ao nascer e que, por escolha, elas desenvolveram para o
bem do próximo.

Esse romance foi desenvolvido não apenas pela minha paixão


em contar histórias que tratam de amor, mas também minha paixão
pelas séries asiáticas, mais conhecidas como Doramas, e pelo
encanto do universo da magia. Portanto, é um romance com doses
generosas de realismo mágico.
Agradecimentos

Este livro é muito especial para mim por ser o primeiro romance
no estilo Dorama, e para que isso acontecesse, eu contei com ajuda
direta e indireta:

Primeiro agradeço a Deus pelo dom da vida e da escrita.

Aos inúmeros roteiristas maravilhosos que nos encantam com os


dramas repletos de emoções, lições, e muita imaginação como: Kim
Eun Sook, Park Hye Ryun, Jung Kyung Yoon, entre outros que, com
suas histórias maravilhosas, me deixaram apaixonada pelo universo
dos dramas asiáticos.

Um abraço gigantesco de urso para minha assessora Mari Vieira


junto com as lindas Andreia Idalgo Cardia, Cora Felix, Angélica
Alvez, Rebecca Pessoa que revisaram e embelezaram esse livro.
Sem vocês meu trabalho seria muito difícil!

À Milena Morais de A. Elias, por tirar minhas dúvidas durante o


desenvolvimento do texto sobre as palavras corenas e pelos áudios
gravados ensinando-me a pronúncia.

Meu marido e meu filho, por serem minha fonte de inspiração e


força, por continuarem me apoiando e acreditando em mim. Minha
mãe e minha irmã, que além de serem minhas fãs também opinam e
ajudam a divulgar. Os nomes de Isy e Elleanor foram sugestões da
minha irmã Daiane.
A todos os leitores que continuam me seguindo, apoiando, me
fazendo chorar de alegria com as mensagens que me enviam, e
principalmente por acreditarem no meu trabalho e lerem cada linha
descrita aqui com muito amor.

A todas as dorameiras que contagiam nos grupos sempre com


dicas maravilhosas sobre produções incríveis.

E a você, que é novo por aqui, obrigada por conhecer um pouco


da minha escrita.
Sobre a Autora

Katherine Laura Leighton é natural de São Paulo, passou boa


parte de sua vida morando em cidades de Mato Grosso do Sul e
hoje vive com o marido e o filho em Natal, Rio Grande do Norte.
Formada em Administração, profissão em que atuou por dez anos,
hoje dedica-se exclusivamente à sua paixão por livros, adotando o
romance como seu gênero de escrita, trazendo para suas histórias
seu fascínio pelo poder do amor em todas as suas formas, e o
encanto do realismo mágico e da fantasia.

Para conhecer um pouco mais do trabalho da autora sigam nas


redes sociais ou acesse o site:
https://www.facebook.com/katherinelaura.leighton.9

https://www.instagram.com/autora.katherinelaura/

http://kathelaura.com/

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