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Copyright © 2021 – Alice Bacivangi

Todos os direitos reservados

É proibida a reprodução total e parcial desta obra de qualquer forma ou


quaisquer meios eletrônicos, mecânico e processo xerográfico, sem a
permissão da autora. (Lei 9.610/98)
Essa é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos na obra são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes e acontecimentos reais é mera
coincidência.

REVISÃO E PREPARAÇÃO DO TEXTO:


Karen Patrícia - KP AcessoriaTextual

LEITURA CRÍTICA:
Heloísa Fachinni - @Readbyhelo

CAPA:
Ellen Ferreira @Ellfdesigner

Tipografia do título:
L Chagas Design

DIAGRAMAÇÃO:
Imaginare Editorial

Texto revisado segundo o acordo ortográfico da língua portuguesa.


Sumário
Nota da autora
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Epílogo
Agradecimentos
Esta obra é uma ficção, portanto nomes, lugares e informações que
existam na realidade foram utilizados apenas com o intuito de enriquecer a
trama. Não é recomendada a leitura para menores de 18 anos por conter
cenas de sexo explícito envolvendo práticas de BDSM[1], tortura física,
violência gráfica, depressão e pensamentos suicidas, além do uso de drogas
lícitas e ilícitas.
Mesmo tratando-se do universo da máfia, fiz o meu melhor enquanto
autora para não romantizar esse mundo, trazendo consequentemente o lado
mais podre.
Assim, sintam-se avisadas de que os pensamentos, ações e
acontecimentos expostos são meramente uma representação e não devem
ser seguidos como exemplo.
Este livro é um pequeno conto cujo os acontecimentos começam a
partir da última cena de “Feita de Prada’’, e seguem paralelamente à
segunda parte do livro “Feita pelo Caos’’, e recomenda-se a leitura da
duologia antes dele, já que conterão spoilers.
Clique aqui para acessar a playlist no Spotify ou
escaneie o code abaixo.
Para minhas leitoras, que se arriscaram
em se apaixonar pelo caos
“Querido, pois no escuro
Não dá pra ver os carros brilhantes
E é aí que você precisa de mim
Com você eu sempre compartilharei
Porque
Quando o Sol brilha, nós brilhamos juntos
Te disse que estaria aqui para sempre’’
Umbrella, (épica trailer version)- J2, Jvzel

Quando se fica tempo suficiente no escuro, você acaba se adaptando


tanto que, de repente, sente que não precisa mais da luz. Você se vê
aceitando rastejar pela escuridão, sem viver realmente, até que um dia, por
alguma razão, se depara com um flash forte bem no meio da sua cara. Dói,
pois não está mais acostumado com enxergar o mundo de forma diferente
da qual se acostumou por tanto tempo, mas, mesmo que feche bem os olhos
e os cubra com tudo à sua frente, não consegue fugir disso, dela. E quando,
depois de tantas sombras, finalmente há luz, você não foge, é atraído por
ela, como um maldito inseto querendo voar até o sol e ser queimado por seu
calor. É viciante. Era exatamente o que a mulher deitada em meus braços
era. Completamente hipnotizante e viciante para caralho. E totalmente
minha.
Tracei preguiçosamente uma linha imaginária nas suas costas nuas,
expostas para mim, trazendo comigo uma trilha de arrepios. Seu corpo
inteiro estava relaxado, colado ao meu. Sua respiração estava calma, ainda
que um pouco ofegante depois da sétima rodada de orgasmos que
proporcionei a ela.
O quarto exalava sexo, e se não estivesse tão morto quanto ela,
estaria mais que pronto para outra, já que meu pau se enrijecendo por baixo
da sua coxa gostosa pressionada por cima dele parecia necessitar disso tanto
quanto meu coração precisava ouvir sua próxima respiração. Pela forma
como seus seios raspavam na minha costela, mostrando-se rijos e prontos
para minha boca, sabia que Isabel também estava no mesmo estado que o
meu.
Afastei seus fios negros, que estavam espalhados e colados em seu
pescoço suado, e ela estremeceu.
— Minha pequena ninfa... — grunhi com a voz rouca de tesão.
Porra, será que um dia eu seria capaz de ficar perto dela sem a
necessidade louca de estar dentro dela? Algo me dizia que não. E nem
queria. Não depois de tudo. E olhando para nós dois assim agora, não pude
deixar de me perguntar como consegui ficar um ano sem isso, caralho?
Isabel abriu um sorriso preguiçoso, e era a porra mais sensual de
todas, enquanto me encarava, tão apaixonada como acabada depois de
cavalgar no meu pau por horas, mantendo-me à sua mercê com as algemas
agora descartadas em algum lugar do quarto. Não que esse tenha sido o
auge do sexo que fizemos hoje.
Os flashes de memórias voltaram com tudo à minha mente. É, com
certeza não foi o ponto alto. Tampouco foram seus seios deliciosos
balançando enquanto ela montava na minha boca, ou na visão de seu corpo
de ponta-cabeça enquanto eu a fodia em pé... todas foram posições
magníficas, mas a visão que não queria descolar da minha cabeça era ela
com aquele maldito chicote, jogado no chão do outro lado da sala.
Isabel com a porra de um chicote, pronta para me dominar enquanto
eu estava pendurado... porra, eu gostei daquilo mais do que esperava, talvez
tanto quanto quando trocamos de posição e ela ficou no meu lugar.
Como disse, ela era a minha luz, e era excitante para cacete.
Quando suas mãos safadas começaram a passear pelo meu corpo, foi
a minha vez de sorrir e me virar para ela, deixando-a embaixo de mim.
— Quer mais, ma puce[2]? Ter meu corpo cinco vezes não foram o
suficiente? — provoquei, já duro e pronto para deslizar dentro da sua boceta
apertada.
Quando ergui sua perna e a coloquei sobre meu quadril, toquei-a
com os dedos para ter certeza de que não estava tão machucada. A
desgraçada estava encharcada, tão molhada que escorria por suas pernas.
Seus olhos de fogo encontraram os meus, séria, resoluta.
— Nunca será o suficiente. — O caralho que sua resposta não fez
meu pau pulsar na mesma proporção que provocou um nó no meu peito.
Trinquei os dentes enquanto me ajeitava sobre ela.
— Estou tão bravo com você, ma puce... Bravo por ter se fechado.
— Grunhi quando, sem esperar mais, entrei de uma vez, até o talo,
arrancando um gemido longo e gostoso da minha mulher. — Por ter me
privado dessa porra de som delicioso, que sabe que é o meu favorito.
Isabel estremeceu em meus braços.
— Manon...
— Bravo por ter se afastado de mim — continuei, me movendo
sobre ela sem cuidado algum, a euforia subindo pela minha espinha. — Ai,
putain[3]!
Senti suas mãos agarrarem meu cabelo com força, nossos olhos se
encontraram no meio da confusão suada que nossos corpos estavam.
— Me desculpe! — Ela arqueou.
Um sorriso tomou meu rosto quando acelerei o ritmo.
— Ainda bem que também nunca será suficiente para eu castigar sua
boceta apertada, arregaçá-la para receber meu pau... — Isabel gritou quando
saí por completo apenas para meter mais forte e fundo, encontrando aquele
ponto dentro dela que a fez revirar os olhos. — Porque eu vou puni-la, ma
puce... tenha certeza disso.
Suas unhas rasparam com força minhas costas, com certeza
arrancando sangue, e eu fiquei ainda mais duro, porra!
Então, mesmo sentindo o tremor dos meus músculos que
queimavam com o esforço, me forcei a manter em um ritmo agora lento.
Não estava nem perto de acabar com ela. Mas, mesmo me movendo em
espaçadas estocadas, não a impediu de gemer como nunca em meu ouvido
enquanto eu a comia sem brinquedos ou barreiras daquela vez.
Quando, depois de incontáveis minutos, suas paredes praticamente
ordenharam meu pau e ela gozou, tomei seus lábios com avidez. A porra do
seu gosto era minha perdição.
— Eu amei vê-la me dominando hoje, ma puce... — admiti
enquanto acelerava o ritmo. — Amei ver você tomando o controle.
Isabel gemeu, perdida em seu próprio prazer, mas, de alguma forma,
teve forças para me encarar.
— E eu amei estar no controle — ela disse, com a voz rouca de
tanto gritar.
Suas paredes latejaram novamente, e senti um aperto a mais na
cabeça do meu pau enquanto ela esguichava comigo ainda dentro dela,
criando uma pressão quase insuportável.
Um arrepio gelado tomou minha coluna.
— Mais do que quando eu controlo você? — questionei, sentindo-a
gozar mais uma vez, seu gozo escorrendo pelo meu pau ainda enfiado até o
talo nela, até nossas pernas.
— OH DEUS! — ela gritou.
— Responda — ordenei enquanto mordia seu seio já roxo e cheio de
marcas.
— Eu... acho que... acho que dos dois.
Com mais duas estocadas, era eu jorrando meu gozo dentro dela,
gemendo em seu ouvido enquanto sua boceta sugava cada gota.
— PUTAIN!
Isabel acariciou meu cabelo e costas, esperando eu me acalmar.
Finalmente me virei e deitei de barriga para cima, e simples assim,
ela voltou à posição original, com seus seios e metade do seu corpo em
cima de mim, sua perna em cima do meu pau.
— Foi diferente — ela disse após alguns instantes, sua respiração já
controlada. — Estar no controle, poder decidir o que aconteceria e como e
quando...
Acariciei suas costas.
— Eu entendo.
— É por isso que faz o que faz? Por isso que...
— Que gosto de ser dominador? — Ela assentiu.
Suspirei fundo.
— Algo como isso.
Obviamente minha resposta não foi o suficiente. Isabel se ergueu,
olhando nos meus olhos.
— Me conte.
Peguei uma mecha do seu cabelo e comecei a brincar com meus
dedos.
— Depois do que aconteceu, quando... fui levado. — Não terminei,
nem precisava. Pela expressão em seu rosto, eu sabia que Isabel sabia a que
parte do passado eu me referia. — Simplesmente era mais fácil, para mim,
estar no controle, saber que eu era quem infligiria algo a alguém, e não o
oposto.
— Então, por que comigo nunca fez algo tão... intenso, como você
costuma fazer? Não que o que fazemos não seja bom ou intenso à sua forma
— Isabel completou quando arqueei a sobrancelha.
— Eu entendi.
Ponderei por alguns segundos antes de responder, e ela esperou
pacientemente, brincando de trilhar a tinta preta em meus braços.
— Não sei dizer ao certo. — Exalei, soltando seu cabelo. — Com
você, nunca me senti estar no controle, e de alguma forma, apesar de não
gostar, não conseguia parar. — Refleti. — Suas ações, pensamentos,
sentimentos... nunca pude controlá-la, ma puce... — Isabel abriu um
sorrisinho, e eu sorri de volta. — Acho que, de alguma forma, no meu
inconsciente, não sentia uma necessidade de controlar tudo, apesar de
gostar, de precisar.
Isabel espalmou a mão no meu peito, tocando minha pele com a
ponta dos dedos, me avaliando.
— E você gostou de hoje? Quando eu o algemei e...
— Sim — respondi, e era verdade.
Sempre senti como se precisasse controlar tudo ao meu redor, mas,
desde que Isabel entrou na minha vida, não tinha mais controle de nada.
Passei quase duas décadas pensando que só conseguiria me relacionar da
forma que fazia, porque a verdade era que eu não queria me relacionar, até
ela. Com ela... foi libertador e quente para caralho.
E honestamente não sabia o que preferia, então acrescentei:
— Tanto quanto eu gosto de submetê-la.
— Acho que eu também — ela admitiu sorrindo antes de se deitar
novamente.
Meu braço se apoiou em sua cintura e a manteve presa ali comigo.
Depois de quase um ano vendo apenas seu fantasma, esperando o dia em
que ela partiria da minha vida, sem vê-la sendo ela mesma ou sequer
vivendo... vê-la sorrir fazia ainda mais coisas comigo que a possibilidade de
ela ser dominatrix[4].
Traçando sua pele, ainda conseguia sentir a saliência dos ossos, de
tanto peso que ela perdeu nesse tempo todo. Eu quase a perdi tantas vezes
desde que a tive que a mera lembrança de horas atrás, quando eu ainda
sentia esse constante medo, fez meu peito se apertar.
Então, olhando para ela bem ali, linda, nos meus braços, minha e
feliz, me fiz uma promessa silenciosa a nós dois. Eu não a perderia
novamente, não depois de tudo. Nem se o preço para isso fosse destruir
tudo que já tinha construído.
Iríamos reinar o submundo, eu e ela, para destruir a máfia, e eu
botaria fogo em tudo se isso significasse manter aquele sorriso lindo no
rosto dela.
— Isabel?
— Hm?
— Você nunca mais vai fazer aquilo. Nunca mais vai me deixar.
Ela me encarou com lágrimas nos olhos, e eu as limpei antes que
descessem pelas suas bochechas.
— Eu prometo.
Era isso que eu precisava ouvir.
Então, com a decisão já tomada, segurei seu maxilar, trancando
nossos olhares, e falei sem nem esperar um segundo.
— Case-se comigo.
Diversão tomou seu rosto, mas eu permaneci encarando-a com meu
coração na boca, esperando sua resposta.
Alguns segundos que poderiam ser a porra de anos se passaram
enquanto ela engolia seco e percebia que falei sério.
— O quê? — ela sussurrou.
— Case-se comigo — repeti. — Case-se comigo e seja minha
mulher. Seja minha para todos verem. Seja minha, e vamos destruí-los
juntos. — Seja minha para sempre.
Finalmente, finalmente porra, um sorriso tomou seus lábios. Então,
ela se virou, montando em mim novamente.
— Sim.
Sentei e tomei seus lábios, embriagando-me por ela enquanto nossas
línguas dançavam e se acariciavam. Então, com um movimento rápido e
ágil das suas mãos segurando meu pau duro e dolorido, estava novamente
dentro dela, deixando que ditasse o ritmo enquanto me cavalgava, mas
agora como minha noiva, e em breve, seria como minha esposa.
E quando gozamos juntos e ela caiu sobre mim, apenas marquei
ainda mais a promessa que tinha feito. Eu não a perderia novamente.
— Por onde começamos? — ela perguntou ainda ofegante.
— Você vai se tornar minha rainha... — falei, dando beijos suaves
em seu rosto. — E depois, vou apresentá-la ao resto da nossa corte.
Enterrando o passado
“Mil noites passaram
A mudança não acontece de um dia para o outro
Não é visível no início
É importante se manter firme (aguente firme)’’
Black Sea, Natasha Blume

O vento gelado raspava na minha pele como um chicote, e apesar de


o céu estar coberto de nuvens, ainda não tinha começado a chover. Não
estava frio, mas eu tremia mesmo sob duas camadas de casaco. Tinha algo a
ver com esse lugar, eu tinha certeza.
O cemitério era um dos maiores e mais conhecidos de Paris, e
obviamente conseguimos duas covas sem ter que esperar por uma fila de
anos. Ambas estavam vazias, ocupando um espaço que talvez quem
realmente tivesse que ser enterrado não receberia, outra coisa que poderia
ser considerado uma vantagem de ser quem éramos – não que eu fosse ligar
para essa questão agora.
A lápide da esquerda já estava ali há um tempo, foi um dos
primeiros pedidos que fiz depois de algumas semanas sem praticamente
falar nada após fugirmos naquele dia, há um ano. Lydia Dourand, um
sobrenome adequado para a amiga que perdi, que merecia ter uma irmã
também.
Eu não estava encarando, no entanto, a que estava sendo posta
naquele momento na nossa frente. Não conseguia olhar, e acho que nunca
iria conseguir.
A verdade era que nem queria estar ali, e mesmo que estivesse
apenas com quem importava, acho que aquilo tornava tudo ainda mais
difícil, uma vez que sentia o olhar de todos sobre mim, especialmente do
homem ao meu lado, que me abraçava e me aquecia enquanto enterravam
um caixão vazio, onde pensavam que deveria estar o corpo da minha irmã.
Um corpo que nunca preencheria aquele espaço, mas por razões que eu
sabia, e eles aparentemente não.
Fiquei em silêncio, no entanto, durante toda a coisa ridícula, ainda
que sentisse uma pontada no meu peito me impedir de quase respirar.
Permaneci firme, o máximo que pude, por fora, pois, ainda que apenas
Astrid, Can, Dick, Luk, Marcus e sua família, e meu noivo, Manon,
estivessem aqui, sempre haveria um par ou mais de olhos em nós, onde quer
que fôssemos, especialmente em momentos como esse, em que esperam ver
uma rachadura na nossa armadura.
A verdade que Manon me contou não muito tempo atrás é que,
mesmo que o que aconteceu tenha de alguma forma incitado mais conflitos,
já estávamos em guerra, sempre estaríamos. Pois quando se trata de poder, a
disputa é eterna, apenas se torna uma batalha mais silenciosa, porém nunca
deixa de estar lá.
Então, se todos quisessem ver a futura rainha dos Martin cair, teriam
que ralar muito para tentarem me derrubar, e eu não desistiria fácil. Na
verdade, depois de tudo que havia passado, tinha certeza de que não
desistiria nunca, não mais. O caixão sendo coberto por terra bem diante de
mim - verdadeiro ou não – era um ótimo lembrete do meu objetivo, como
uma lenha mantendo o fogo aceso dentro do meu peito.
Portanto, mesmo que eu sentisse minha garganta raspar por emoção,
sem nem saber ao certo por quê, me permiti derramar apenas uma lágrima
teimosa, o que me fez travar o maxilar com mais força, tanta força que
sabia que me arrependeria e me renderia uma dor de cabeça, mas era um
preço que pagaria com prazer se isso significava não fraquejar.
Quando enfim a terra se nivelou aos nossos pés, Can e Marcus
jogaram as pás no chão e voltaram a ficar no nosso meio-círculo para
observar o nome entalhado no mármore.
— Deveríamos dizer alguma coisa? — Can perguntou, e senti todos
os olhares em mim novamente.
Mesmo que minha garganta rasgasse e minha boca estivesse mais
seca que o normal, me forcei a olhar nos olhos do garoto que me disse que
foi o melhor amigo da minha irmã, e assenti.
— Acho que ela gostaria disso — falei com a voz um pouco rouca
demais, o que fez com que o aperto de ferro na minha cintura aumentasse.
Olhei para Manon, que acenou com a cabeça, sabendo exatamente
do que eu precisava. Não me apoiei totalmente nele, mas ele viu minha
gratidão com aquele olhar, e era o suficiente.
— O que se dizer para alguém que nunca pensou que perderia? —
Can falou, acho que mais para si mesmo do que para qualquer um. — Vou
sentir sua falta, princesa. Sentir falta da sua perturbação, dos bons socos que
dava no treino... — Um sorriso molhado de lágrimas se abriu no rosto de
Astrid, sua irmã. Ela também era muito próxima de Rosa.
— Vou sentir falta de perturbá-la, amiga. — Foi tudo que ela
conseguiu dizer antes de chorar mais, fazendo com que Can a abraçasse.
Ambos olharam para Dick, como se esperassem que dissesse algo.
Ele deu de ombros, tenso.
— Não tenho nada.
Sua fala fria fez com que Astrid o encarasse com raiva, mas ele não
olhava para ela, e sim para mim. Havia algo naquela expressão, em
conjunto com o terno que vestia, que me enviou um arrepio gelado, e eu
estremeci. Então, ele simplesmente se virou e saiu.
— Babaca — Astrid praticamente cuspiu.
— Cada um lida com o luto do seu jeito — Luk comentou.
— É bom que ele lide da sua forma desumana longe de mim.
— Astrid — Can tentou intervir.
— Ele era tão próximo dela quanto nós, e nem foi capaz de dizer
uma palavra pro túmulo dela? — Ela parecia revoltada.
Dei de ombros.
— Eu também não tenho nada a dizer. — Não enquanto eles
estivessem aqui, pelo menos.
Com minha declaração, todos nos calamos, como se esperando para
ver quem sairia primeiro. Depois de alguns instantes, Astrid se aproximou
da lápide e depositou um beijo em sua mão e tocou-a levemente, saindo e
sendo seguida por Can.
— Vemos vocês em casa — disse se despedindo.
Senti outro aperto na cintura e me virei para olhar para Manon, que
já me encarava. Havia tanto naquele olhar... amor, preocupação. Derreti-me
um pouquinho sob ele, me inclinando quase como se fosse um ímã.
— Pronta para ir, ma puce?
Suspirei fundo.
— Quero ficar um pouco mais... — falei, sondando-o. — Posso?
Ele abriu um sorriso pequeno e beijou minha testa.
— Você não tem que me pedir permissão para isso. Não tem que me
pedir permissão para nada. — Sua fala desenrolou ainda mais o nó no meu
peito, e eu relaxei. — Vejo você em casa. — Assenti e me inclinei para
roubar um beijo curto de seus lábios.
Era para ser um beijo curto, mas, quando senti seu calor sobre mim,
não pude evitar me inclinar um pouco e colocar a ponta da língua em seus
lábios, gemendo baixinho quando Manon entrou em meu sistema ao juntar
sua língua na minha.
Arfei e segurei o topo da sua cabeça, deixando que tomasse tudo,
como sempre fazia. Um calor líquido e pungente tomou conta do meu
ventre, porém, antes que pudesse gemer em sua boca, ouvimos um coçar de
garganta.
— Fico feliz que os pombinhos tenham se resolvido, mas acho que
eu e os mortos não gostamos de ser plateia — Luk resmungou, fazendo com
que Manon e eu nos desgrudássemos.
Seus olhos ficaram nos meus, tão escuros que cobriam o verde pelo
qual eu era apaixonada, quando ele disse em uma voz rouca.
— Volte logo para casa. — Um arrepio tomou conta do meu corpo
com a mera expectativa de voltar para ele e ver o que planejava fazer, mas
eu ainda tinha que ficar.
Ele enfim se afastou.
— Marcus...
— Eu fico com ela — Luk interrompeu.
Manon assentiu e partiu em direção ao estacionamento.
— Pode ir para casa com sua família — Luk disse se virando para
Marcus, que estava um pouco afastado com sua mulher e filhos.
Marcus assentiu.
— Senhorita Isabel.
As duas meninas dele vieram e me deram um beijo na bochecha
antes de jogarem uma rosa no túmulo da minha irmã. Com um pequeno
empurrão, o menino mais velho veio e acenou para mim.
— Senhori...
— Me chame apenas de Isabel, já não lhe falei, Bastian? — O
menino corou, e eu abri um sorriso pequeno.
Ele pigarreou.
— Sinto muito pela sua perda.
— Merci[5]. — E lá estava aquela pontada chata no meu peito
novamente.
Ele se virou e jogou a flor antes de correr de volta para os pais e eles
partirem com um aceno.
Então, só sobrou Luk e eu.
— Como você está? — perguntei depois de um momento. — Sei
que... — se interrompeu. — Talvez, da última vez em que falamos, sei que
posso ter sido...
— Você estava certo — disse, virando-me para ele. — Estava me
afogando em minha própria dor e não vi que não era a única sofrendo.
Estava certo em tudo que disse. Obrigada. — Toquei levemente seu braço, e
ele assentiu.
Alguns momentos se passaram enquanto nos encarávamos, até que
ele abriu um sorrisinho.
— Fico feliz que seguiu meu conselho, chienne[6].
Revirei os olhos.
— Sabe que não pode mais usar esse apelido comigo, não é? Serei
sua rainha.
Seu sorriso se alargou.
— É mesmo? E o que vai fazer a respeito?
Ponderei por uns instantes.
— O mesmo que farei com qualquer homem que me subestimar.
Torturá-lo lentamente.
Luk assentiu.
— E eu lhe ajudarei nessa tarefa, chienne.
Não pude esconder meu sorriso quando ele passou o braço pelo meu
ombro.
— Fico feliz, de qualquer forma — ele voltou a falar. — Que esteja
seguindo em frente... — Ele apontou para a lápide. — Enterrando o
passado.
— Não enterrei — retruquei. — Hoje não foi sobre isso.
— Isa... — Ele pareceu querer rebater.
— Ela não está morta, Luk.
Ele me soltou e me encarou incrédulo.
— Então, que porra estamos fazendo aqui? — Hesitei.
É, o que estávamos fazendo aqui? Eu estava aqui apenas por um
motivo, que estava me esperando voltar para casa.
Quando, há apenas algumas semanas, conversamos e ele topou meu
plano de vingança, algo em mim se afrouxou. Sentia-me como eu mesma e
finalmente me sentia mais leve... feliz. Ainda que parte de mim se sentisse
culpada, mas como não poderia? Estava noiva do homem que amava, que
me amava mais que tudo e destruiria as máfias ao meu lado. O homem que
traí, e que, mesmo tendo dificuldades de confiança, me perdoou, escolheu
ficar comigo mesmo quando eu ainda não tinha tido forças para escolhê-lo
de volta. Então, quando ele me ofereceu a lápide para Rosa, não recusei,
pois sabia que talvez ele precisasse daquilo mais do que eu, uma
confirmação que eu estava ali agora.
— Ela tomou um tiro no peito, eles explodiram a casa...
— Se saímos de lá, eles também podem...
— Está se ouvindo agora? — Luk me cortou. — Porra, é melhor não
falar nada disso com Manon.
Ergui o queixo de repente, enviesada, e encarei meu amigo.
— E é melhor você não dizer o que devo ou não dizer ao meu noivo.
Ele parou e suspirou fundo.
— Desculpe, é que, Isa... Perdemos você por um ano. Não pensamos
que a teríamos de volta. Por favor, não se perca novamente. — Suas
palavras fizeram eu me calar, todo o fogo e raiva que sentia sendo apagados
com a mágoa em seu olhar. — Manon quase enlouqueceu. Porra, há apenas
alguns dias, ainda não tínhamos você...
Assenti, sentindo uma lágrima escorrer pelos meus olhos e
limpando-a rapidamente.
— Está certo — admiti. — Está certo, eu estou falando bobagens...
— Suspirei passando a mão no rosto. — É só que vir aqui, e...
— Eu entendo — respondeu, analisando-me.
Abri um pequeno sorriso, mesmo que tudo dentro de mim se
amargasse.
— Estou pronta para voltar para casa — falei dando meu braço a
ele.
Luk olhou-me por alguns instantes, como se estivesse procurando
algo na minha expressão, e quando se sentiu satisfeito com o que via, enfim
aceitou meu braço e me guiou para fora.
— Vamos.
Mantive-me tranquila, fingindo estar bem. Estava ficando cada vez
melhor naquilo. Com uma breve olhada para trás, no entanto, fiz a minha
promessa para o túmulo vazio: Eu não iria desistir. Eu iria encontrar minha
irmã. Mesmo que, para isso, tivesse que continuar fingindo e mentindo para
todos. Apenas torcia para não perder mais ninguém no processo, nem eu
mesma.
Eu terei a minha vingança
Seu silêncio é meu som favorito
Me veja fazer eles se curvarem
Um por, um por um
Um por, um por um
Conto minhas cartas, vejo elas caírem
Sangue em uma parede de mármore
Eu gosto do jeito que todos eles gritam
Me diga o que é pior
Viver ou morrer primeiro
(...)
Você deveria me ver em uma coroa
You should see me in a crown, Billie Ellish

O som das conversas chegava aos meus ouvidos, assim como a


melodia suave da música dentro do salão, mesmo que eu estivesse no andar
de cima e a festa fosse do outro lado da propriedade.
Somente o fato de saber que em breve desceria e encontraria todas
aquelas pessoas causava uma sensação estranha no meu peito, em uma
mistura de ansiedade e determinação que queimava meu estômago.
Hoje era importante, o primeiro passo para nosso plano, e talvez
fosse apenas um nervosismo com a expectativa de acabar logo aquilo, ou
porque não ficava no meio de tantas pessoas há meses, e parte de mim se
sentia mais exposta e vulnerável que nunca, mas seja qual fosse a exata
razão, me fez ficar parada encarando meu reflexo no espelho.
Esta noite, deixei meus cabelos presos em um coque, e usava um
vestido sem alças vermelho-sangue com detalhes prateados presos no tecido
indo até meus pés, com um belo decote bem cavado e fenda na minha coxa.
Ele se parecia com um vestido que usei no passado, e era como uma
estranha sensação de déjà vu[7], já que da última vez que usei... foi como
tudo começou, ou melhor, quando tudo começou a dar errado.
Encarei o anel de diamante vermelho no meu dedo, o meu anel de
noivado, e um leve sorriso se formou em meus lábios. Ao menos dessa vez
eu não estaria sozinha.
Depois que ele me pediu em casamento, Manon trouxe o anel que
pertencia à sua mãe. Era uma enorme pedra de rubi, vermelho-sangue,
adornada de pequenos diamantes brancos, e era espetacular. Tão grande e
brilhante que parecia que de alguma forma me vestia, como se eu tivesse
sendo feita por aquele mesmo material.
Ele foi pegá-lo assim que terminamos nossa longa sessão de amor,
para compensar o tempo perdido. Então, lá estava eu, enrolada nos lençóis,
quando ele se ajoelhou diante de mim usando apenas sua calça e abriu a
caixinha.
— Uma vez eu lhe disse que diamante nenhum faria jus a você, ma
puce... mas acho que este pode chegar perto. — Sorri, mesmo sentindo um
certo peso ao me lembrar de quando essas palavras foram ditas, pouco
antes de eu traí-lo.
Manon pareceu notar aonde minha mente me levou, então
continuou.
— Sei que passamos pelo inferno, e eu lhe disse que, se você se
tornasse minha, faria questão de nunca deixar que voltássemos para lá.
— Sou sua — respondi na mesma hora, e ele sorriu, estendendo sua
mão para tocar meu rosto em uma carícia suave.
— Boa garota... — ele murmurou enquanto encaixava o anel em
meu dedo.
Não pude deixar de admirá-lo – tanto o anel quanto o homem
apoiado em um joelho perante a mim.
— É lindo — comentei quando me levantei e deixei que a luz do sol
vindo pela fresta da janela refletisse nele.
— Uma joia para uma rainha — Manon disse ao depositar beijos
suaves na pele exposta do meu pescoço, fazendo-me estremecer e curvar os
dedos do pé.
— Nunca o tire — pediu-me.
— Não vou — prometi, me virando para ele e entrelaçando minhas
mãos em seu pescoço. — Mesmo que seja uma forma ridícula de marcar
território.
Manon abriu um sorriso diabólico.
— Podemos encontrar outras formas de marcar você como minha,
se não gosta dos meus métodos.
— E você?
Ele arqueou a sobrancelha, confuso.
— Não sou sua propriedade. Se vou ser “marcada’’ — fiz aspas com
as mãos —, também deveria.
— É justo. — Foi tudo o que ele respondeu antes de tomar seus
lábios aos meus.
E aqui estava agora, esperando e enrolando para descer e encontrar
aquelas pessoas, mesmo que fosse exatamente um dos objetivos: mostrar a
eles quem eu seria em breve.
Uma batida à porta me fez ter um pequeno sobressalto.
— Está pronta, senhorita?
Revirei os olhos para a brecha entreaberta.
— Marcus, já falei para me chamar apenas de Isabel.
Ele suspirou fundo, entrando no quarto.
— O chefe nos mandou chamá-la como fazemos com ele.
— Você é meu amigo, não é? — Ele hesitou por apenas alguns
momentos, mas logo assentiu. — Bom... amigos não deveriam ter que se
referir uns aos outros como “senhor’’ ou “senhora’’, ou qualquer derivado
desses pronomes de tratamento — enfatizei a última parte quando Marcus
pareceu querer debater.
Quando ele apenas exalou, eu sorri; sabia que tinha vencido essa
pequena batalha, ao menos por enquanto.
Apesar de saber que era importante haver respeito entre os homens
de Manon, não suportava quando eram formais demais comigo, ao menos
não no particular.
Por fora, sabia que tínhamos que demonstrar força e
impassibilidade, como se, de alguma forma, fosse dar liberdade demais aos
soldados, caso não nos vissem como o resto do mundo teria que ver: algo a
temer.
Se bem que, admito, ver alguns deles, os quais sabia que já me
chamaram de chienne ou algo pior pelas minhas costas – até na minha cara
– quando fiquei com Manon há mais de um ano, tendo que engolir tudo e
me obedecer tinha um sabor especial. Na verdade, não conseguia decidir o
que era melhor: vê-los tendo que me chamar de senhora, e não prostituta, ou
o fato de que eles o faziam de cabeça baixa e, em breve, obedeceriam a
todas as minhas ordens.
— Estou pronta — como se esse pensamento fosse a dose de
coragem que eu precisava, anunciei saindo do quarto sem olhar para trás no
espelho novamente.
Eu sabia exatamente o que veria naquele reflexo, o que eu precisava
ser: a rainha da máfia.

O salão de festas ficava do outro lado da propriedade. Manon


comprou esta casa pouco depois que tudo aconteceu com Popov e a antiga
acabou explodindo – cortesia da inteligência que buscava apagar provas.
Apesar de não ficar tão perto do centro da cidade, o que poderia ser
ruim caso tivéssemos que fugir de alguma invasão, ao menos tínhamos mais
privacidade do que antes.
Tirando o evento de hoje, quase ninguém fora do círculo mais
próximo de Manon visitava, e além de Astrid, Can e Dick, geralmente
ficávamos totalmente isolados.
O lugar era enorme, com mais de quarenta quartos, mais a área de
serviço e o galpão no campo oeste. Dava até para criar animais, se
quiséssemos.
Mesmo tendo ficado por um ano, ainda me perdia por esses
corredores, em parte porque, quando fiquei, não estava realmente aqui, e
mal saía do quarto. Algo pelo qual eu não queria nunca mais ter que passar,
mas era por essa razão que permiti que Marcus guiasse o caminho até onde
a festa acontecia há pouco mais de uma hora.
Manon pediu que eu me atrasasse, disse que receberia todos e que
meu único dever da noite era ser o centro das atenções. Porque realmente
adoro isso, não é como se minhas mãos tremessem e sentisse meu coração
na boca. Mas não importava o desconforto ou nervosismo que sentia, pois,
no momento em que Marcus abriu as portas do salão, foi como mudar de
realidade: para o submundo. Todos os olhos se focaram em mim, e tudo que
eu conseguia pensar era nos olhos da minha mãe quando ela quase morreu
em meus braços, no sangue de Lydia em meu corpo, e em como fui puxada
para longe da minha irmã, deixando-a para morrer pouco depois de perder
meu pai.
Toda a dor, todo o sofrimento, tudo que passei até aquele exato
momento – os pesadelos, o medo, a sensação de estar morta – serviram para
uma coisa, e era a única coisa que me manteve de pé, de queixo erguido,
conforme caminhei até o centro do salão.
Deixei que me observassem, me julgassem, que pensassem que
poderiam tentar me destruir como tentaram tantas vezes antes, deixei que
vissem que eu não tinha medo. E quando encontrei o olhar do único homem
em quem eu confiava naquele lugar e ele sorriu para mim, a sensação
borbulhante se espalhou por cada poro do meu corpo. Eu não era mais a
mulher que entrou na boate Pleire Lune[8] há dois anos, não era mais eu
mesma há muito tempo, mas aquele momento foi a única confirmação que
eu precisava para saber que eu era muito melhor. Esta noite, eu era a porra
da vilã. E eu teria a minha vingança. Manon me daria isso, e eu aceitaria de
bom grado. Talvez até pedisse por mais.
A rainha
Uma tempestade se aproxima
Desejo queima
Uma guerra está chamando
As marés estão viradas
Impérios sobem
Impérios caem
Nós vivemos ou morremos
Para tomar o trono
Apenas um vai ficar no final de tudo
Empires , Ruelle

O teto alto do salão permitia que a iluminação desse um ar mais


sombrio – tanto quanto o que a festa representava. Não havia mesas
espalhadas pelo salão, Manon mandou retirar tudo. Esta noite, eles nos
observarão em pé, sussurrou em meus ouvidos poucas horas atrás. “Eles
nos observarão em pé, e se ajoelharão na porra do chão se você quiser’’,
ele disse antes de me deixar para arrumar tudo.
Apenas nos cantos havia mesas dispostas com comidas para a noite,
enquanto poucos funcionários perpassavam entre os convidados
distribuindo bebidas. Mesmo com a simplicidade da decoração, tudo
naquela festa gritava riqueza e poder. Tanto pelo dourado que adornava as
pilastras nas laterais do salão, com mais de três metros, quanto a música
clássica sendo tocada por músicos que usavam máscaras ao fundo.
Mas o principal fator era nada mais nada menos que o enorme trono
em uma espécie de palco no fundo, que praticamente obrigava que todos
olhassem para aquela direção. Como não olhariam, quando o enorme trono
preto cheio de detalhes de pontas espetadas no encosto com tinta vermelha
se assemelhando a sangue gritava desafio? Ou seria o homem sentado
relaxadamente como a porra do rei do mundo, vestido com uma camisa
preta um pouco aberta e arregaçada nas mangas e calça social?
Pela mistura de medo e desejo das poucas expressões que ainda
olhavam para o sujeito de maxilar bem definido com barba por fazer,
cabelos louros agitados e caídos por cima dos olhos verdes mais intensos
que poderia existir, e não para mim, sabia que a resposta só poderia ser
uma: era impossível não olhar para uma direção na qual Manon Martin
estava.
Uma vez, eu disse que ele exalava poder e masculinidade, mas agora
sabia que estava errada. Manon era poder e masculinidade. E todos neste
maldito salão orbitavam em torno dele.
Quando continuei a caminhada e cheguei mais ou menos ao centro
do salão, meu noivo ergueu uma mão, e de repente, a melodia suave do
violino parou. Os burburinhos, risadas e poucas conversas que ficaram no
ambiente logo morreram. E se antes ainda havia poucos olhares em outro
lugar, agora todos estavam em mim, com um espaço de quase 3 metros de
cada lado, pois todos os convidados foram mais para perto das paredes,
como se dividisse o mar vermelho. Até que a analogia não estava tão
errada assim. Agora que eu prestava um pouco mais de atenção, percebi
que todos vestiam preto: os homens usavam variações de camisas sociais ou
smokings, enquanto as mulheres usavam lindos vestidos e variados, com
brilho, foscos, decotados, mas todos pretos, sem nenhuma exceção,
enquanto eu era a única de vermelho ali.
A óbvia diferença na cor da vestimenta fez parte de mim querer se
encolher e corar, mas a fala de Manon me manteve firme.
— Boa noite a todos — ele começou, ficando de pé. — Como
muitos de vocês questionaram o motivo da repentina reunião de hoje, mas
vieram sem hesitar, acho que merecem um pouco da minha boa vontade de
compartilhar algumas coisas. Isabel — ele chamou, estendendo a mão.
Tomei-a, surpresa com a rapidez que cheguei até ele, mal tendo
notado como me movi enquanto ele falava. Subi no palco com a ajuda de
Manon, que logo me puxou para seu lado. Se antes estava nervosa com as
agulhas pinicando minha pele de tantos olhares, o calor do corpo do homem
que me segurava possessivamente com ele fez minha pele formigar por
outra razão.
Manon se inclinou levemente até que seu hálito fizesse cócegas no
meu pescoço exposto.
— Você está linda nesse vestido, ma puce... tão linda que estou
quase cogitando levá-la daqui para poder arrancá-lo. — Sua fala misturada
com a rouquidão em meus ouvidos me fez estremecer de leve.
— Eu não reclamaria.
Pude sentir o sorriso em seu rosto quando ele respondeu:
— Aguarde mais um pouco, temos algo a fazer antes.
Assenti, sabendo que ele estava certo, sabendo que estava fazendo
aquilo por mim. Mas antes que tivesse a oportunidade de falar com ele
novamente, Manon se virou para as pessoas que ainda nos observavam com
uma mistura de curiosidade e intriga.
— Algumas coisas estão prestes a mudar para os Martin — ele
anunciou. — Como sabem, um ano atrás, tivemos um terrível incidente
envolvendo um traidor em um conflito com os russos.
— É, ficamos sabendo tudo sobre isso — alguém resmungou.
— Não foi essa puta a culpada de trazer a inteligência para a
confusão? — outra pessoa questionou em um não-tão-sussurro.
Enrijeci a coluna com o comentário, mas Manon não se abalou,
apenas abriu um sorriso ferino e mortal que causou um arrepio gelado em
minha coluna.
— Quem falou isso?
Um silêncio quase ensurdecedor se prosseguiu por alguns segundos
antes que o mar de pessoas se abrisse novamente e mostrasse um homem
alto e magro no fundo.
Seus cabelos eram da altura do queixo, tão sebosos que colavam em
sua pele suada. Ele cambaleou, claramente alterado.
Com um simples meneio na cabeça, vários homens foram para cima
do sujeito e o derrubaram no chão com socos e chutes.
— Tragam-no aqui à frente — Manon ordenou, parecendo quase
entediado.
O homem gaguejou de dor e começou a tentar se debater, sem
sucesso, enquanto era arrastado até o centro do salão, bem embaixo do
emblema Martin desenhado no chão.
— Você sempre foi um empecilho para seu tio, Joseph. Fico feliz em
resolver essa questão — meu noivo disse olhando diretamente para o
homem, Joseph, que tremeu e começou a implorar.
— Por favor, me perdoe pelo meu comentário, eu não quis dizer
isso, eu juro...
— Joseph servirá como um bom exemplo para todos esta noite —
Manon disse, ignorando os protestos dele antes de um de seus homens
apontar sua arma para a cabeça dele.
— Não, não, por favor... — Ele chorou, e um frio cortante desceu
pela minha garganta quando o tiro ecoou pelo salão. O som dos tiros
raspando em meus ouvidos enquanto Lydia morria em meus braços. O tiro
ensurdecedor quando Rosa caiu diante de mim quando atingiram seu
peito... Acho que meu coração parou um pouco naquele momento.
A voz de Manon me tirou do meu transe.
— Qualquer um que disser ou fizer qualquer ato desrespeitoso a
Isabel terá um destino ainda menos misericordioso. Se eu sequer suspeitar
de que estão pensando em algo que não me agrada, não hesitarei em atirar.
— Sua fala em um tom tão forte e gelado calou todo e qualquer possível
comentário, e eu torci para que mais ninguém ousasse abrir a boca enquanto
via a poça de sangue aumentar, manchando a rosa fincada com a espada no
chão, mesmo que seus homens tenham sido rápidos e eficientes enquanto
arrastavam o corpo sem vida pelo salão.
Meu coração batia tão rápido no meu peito que estava sendo difícil
me manter em pé, fria e impassiva. Eu sabia que hoje seria feio, que seria
necessário, assim como sabia que muito provavelmente todos naquele
ambiente mereciam o inferno que causaríamos a eles, mas aquilo não me
impediu de me sentir culpada, pois o que eu estava prestes a fazer não me
faria ser como eles?
Não tive tempo de pensar muito mais, pois logo Manon voltou a
falar, mas dessa vez apenas comigo.
— Ele estava trabalhando como um agente duplo para uma pequena
gangue aqui em Paris. — Quão ruim eu era por exalar aliviada com a
explicação de Manon? Ter motivos para matar à sangue frio assim faria o
pecado ser menor do que os deles?
Manon me observou com atenção por alguns segundos.
— Sente-se.
Franzi de leve o cenho.
— Não há cadeiras. — Hesitei quando finalmente percebi o que ele
queria dizer.
Manon ergueu a sobrancelha, mas eu não cedi.
— Você primeiro.
— Sente-se, Isabel. — Seu tom não estava para discussão, mas já
bastava o olhar de ódio mútuo que todos despejavam em mim. Não queria
causar mais a morte de ninguém naquela noite, especialmente sendo da
família do meu noivo. Traidores ou não.
Eles mereciam minha vingança? Sim. Na prisão perpétua, não sendo
fuzilados. E não eram exatamente todos os Martin. Se iríamos fazer aquilo,
precisávamos de aliados, como Luk disse. Naquele momento, no entanto,
não me parecia que ganharíamos nenhum.
— Não — falei trincando os dentes.
— Você vai se sentar, ou me obrigará a outro show de
demonstração? — Engoli seco com seu tom condescendente.
Manon xingou baixinho antes de se aproximar mais ainda da minha
orelha.
— Fiz o trono para você, ma puce, e quero que se sente nele. —
Quando tentei debater novamente, ele me interrompeu: — Se você quer se
vingar, se quer destruí-los, primeiro precisa ter poder sobre eles.
— E quanto aos aliados?
— Apenas faça o que falei. Confie em mim, por favor.
Suspirei fundo e fechei os olhos, as lembranças de tudo que
aconteceu e a dor voltando como flashes em minha mente. Nem percebi que
já estava virada em direção ao trono e sentando-me nele, de forma que
cruzei uma perna sobre a outra.
Um suspiro coletivo se fez quando tomei o lugar do Don dos Martin,
mas Manon não deu chance que mais ninguém falasse quando se sentou no
braço da cadeira, seu braço adornando o encosto de couro, um pouco abaixo
dos espetos pintados de vermelho acima da minha cabeça, que agora notava
que parecia uma coroa em cima de mim.
— Como estava dizendo, algumas mudanças serão feitas entre os
Martin. — Ele se interrompeu, desafiando alguém a falar algo novamente,
mas estava tão quieto que conseguia escutar os batimentos cardíacos das
primeiras fileiras de pessoas.
Eu apenas poderia torcer internamente que eu estivesse mantendo
uma expressão serena.
— Esta noite, quero que conheçam oficialmente minha noiva, Isabel
Dourand, e que em breve será minha esposa, uma Martin.
Cada célula do meu corpo gritava para eu sair correndo dali e nunca
mais olhar para trás. Podia ver tudo sentada naquele maldito trono. Inveja,
raiva, resignação de alguns poucos, indignação em sua maioria.
— Quero que conheçam a futura rainha de vocês — Manon
concluiu antes de erguer sua mão, fazendo com que alguns homens se
aproximassem com algumas caixas e equipamentos.
Engoli em seco quando ele se virou para mim.
— Pronta para fazer isso, ma puce?
E mesmo que parte de mim ainda quisesse me encolher naquele
assento ou fugir, a certeza no olhar dele, do homem que eu amava, assim
como suas palavras ecoando pelos meus ouvidos, me fez assentir.
— Pronta.
E com isso, Manon pegou a maquininha preparada por um de seus
soldados antes de se afastar.
— Encoste no trono e relaxe, irei acabar assim que possível — ele
sussurrou novamente.
Engoli o bolo na minha garganta enquanto encarava a agulha.
— Faça o que tiver que fazer.
Então, Manon começou a me tatuar. Bem no centro do meu esterno,
um pouco acima dos meus seios. O símbolo que representava exatamente o
que ele dissera naquela noite, a promessa que fez para mim há algumas
semanas. E quando ele pegou a tinta vermelha, sabia que não havia mais
volta. Ele preencheu a rosa, e todos suspiraram em surpresa. Não precisei
pensar muito para perceber que vi apenas homens com a tatuagem colorida.
Ao chegar a essa conclusão, um sorriso se abriu em meu rosto, quase tão
ferino quanto o que ele deu há poucos momentos, mas sincero.
Manon realmente cumprira sua promessa, e a rosa pintada com
vermelho sangue, fincada por uma espada que se tornava o próprio caule,
exposta para todos verem, provava aquilo: éramos iguais. E eu realmente
governaria ao seu lado, como sua rainha.
Eu vi uma pessoa morrer pela primeira vez quando tinha 6 anos.
— Manon, acorde meu filho — Yohan, meu pai, que era o Don dos
Martin, raramente entrava no meu quarto. Ele jamais me pusera para
dormir, como mamãe fazia, e praticamente não falava comigo. Então, abri
os olhos de prontidão quando ele me chamou de “filho’’.
Ele apenas falava assim com Lorenzo, meu meio-irmão.
— Vamos, levante-se, quero lhe mostrar uma coisa — me apressou.
Esfreguei os olhos, mas fiz o que me foi requerido. Parte de mim
tinha medo de não fazer rápido o bastante, e perder novamente sua
atenção.
— Não precisa trocar de roupa, apenas venha.
Assenti e segurei a enorme mão do meu pai pela primeira vez que
podia me lembrar.
Quando descemos as escadas, uma sinfonia de gritos me fez hesitar.
Bastou olhar de relance para Yohan e ver o seu sorriso para engolir em
seco.
Apesar de ainda ser muito pequeno – e por isso que mamãe me dizia
que meu pai não me dava atenção –, eu sabia exatamente o que sons como
aquele eram. Meu irmão e eu aprendemos nosso lugar no mundo tão cedo
que eu achava que sabia antes mesmo de falar, portanto não foi surpresa
quando fomos até o porão e encontrei a cena à minha frente.
Papai estava torturando um homem que tentou matá-lo, ele explicou
conforme me mandava ficar ao lado do meu irmão, que já estava na sala e
com uma expressão de quem estava prestes a vomitar.
Não que eu estivesse muito melhor. O cheiro metálico era muito
forte, e havia sangue por toda parte, jorrando do corpo do homem no meio
da sala.
Não costumava ter pesadelos à noite ou dificuldades para dormir,
mas desde aquele dia, nunca mais dormi bem.
— Vejam, meus filhos, homens como nós têm que fazer coisas muitas
vezes terríveis para protegerem quem amam — Yohan nos disse quando
gritei assustado com o barulho do tiro e a visão da cabeça caída para a
frente. E eu soube, ele estava morto.
E mesmo tentando, eu não acreditava que Yohan Martin realmente
era capaz de amar alguém.
Foi como se uma chave tivesse se virado a partir dali. Poderia ter 6
anos, mas descobri naquele dia que nunca poderia ser normal.
Quando me tornei adolescente, sonhava em fugir de casa. Sair da
família, viver uma vida normal. Eu odiava tudo na máfia. Odiava a
constante competição na qual eu e meu irmão vivíamos. A pressão em ser
um homem frio, que meu pai criou para ser uma máquina assassina. Odiava
o dinheiro sujo, o choro das mulheres que imploravam misericórdia. Odiava
o submundo. Era apenas irônico perceber que eu não era tão diferente de
Yohan Martin, depois de tudo.
Matei ainda mais pessoas que ele em seu legado. Causei tanto medo
na França que meu território tinha quase nenhuma revolução ou grupos que
ousavam desafiar.
Eu me tornei um monstro ainda pior, e agora que isso estava prestes
a acabar, me questionava se a promessa que fiz para a mulher por quem eu
estava perdidamente apaixonado poderia ser cumprida.
Engoli vagarosamente o líquido ardente e escarlate no copo de vidro
e me recostei melhor no trono confortável. A festa acabara há poucas horas,
logo depois de brindarmos à Isabel quando eu a tatuei. Apesar de saber que
a demonstração de hoje não fora o suficiente, já era um começo.
A lembrança da sensação da máquina em minha mão enquanto a
agulha pincelava sua pele que se arrepiava ao meu toque me fez ajeitar
minha calça e voltar a beber com mais avidez, encarando o salão agora
escuro e vazio.
Depois de tudo, Isabel e eu tivemos uma sessão calma e cuidadosa
de sexo, já que não queria arriscar machucar onde havia feito a tatuagem, e
ela caiu no sono logo depois.
Mas havia uma inquietação em meu peito que me impediu de
conseguir dormir, e aqui estava, encarando o pedaço do chão que ainda
continha um pouco de manchas de sangue do homem que matei esta noite.
Apesar de que a única imagem que estava vendo eram os olhos abalados da
minha mulher, o olhar que ela me deu logo depois que matei Joseph.
Eu botaria fogo no mundo por ela, mas não sabia com certeza se
conseguiria impedir que essas chamas me seguissem e nos destruíssem. Eu
saberia ser normal? Saberia viver uma vida que não consistia em estar no
poder e controle de tudo? E o mais importante: eu conseguiria sair bem-
sucedido para dar a ela o que ela merecia?
— Estava me perguntando onde estava. — A voz da razão pela qual
estava acordado a essa hora me sobressaltou quando Isabel entrou pelo
grande salão.
Ela estava linda, assim como estava há poucas horas, quando entrou
com aquela porra de vestido lindo e vermelho que tinha certeza de que
deixou todos na festa de pau duro, só que, dessa vez, ela vinha apenas com
o fino lençol da nossa cama a cobrindo.
A verdade era que ela poderia usar um vestido, esse pedaço de pano
ou andar pelada, que ainda caminharia como uma rainha.
Um sorriso tomou seus lábios quando ela parou diante de mim e
tomou um gole do meu uísque.
— Por que está acordado a essa hora?
Estendi o braço e puxei-a para que se sentasse no meu colo, sua
cabeça apoiada em meu peito.
— Por que você está?
Isabel deu de ombros.
— Não gosto de dormir sem você — ela tentou dizer casualmente,
mas eu sabia o significado por trás das suas palavras.
Toquei seu queixo, fazendo com que seus olhos cor de fogo
encarassem os meus.
— Estou bem. — Ela suspirou.
Eu apenas a olhei em silêncio.
Nós dois sabíamos da mentira que saiu de seus lábios, mas eu não a
forçaria a se abrir comigo. Durante todo esse ano, percebi que ela tinha que
vir até mim, saber que poderia contar comigo.
Então, eu apenas toquei de leve sua bochecha e esperei.
Finalmente, ela encostou a cabeça no estofado do trono, se virando
para ficar de frente para mim.
— Tive um pesadelo.
— Quer me contar sobre ele?
Ela pareceu ponderar antes de encarar o salão.
— Estávamos na festa de hoje, só que todos os... — Ela engoliu
seco. — Todos os convidados estavam mortos.
Tracei círculos lentos em seu braço, deixando que ela tomasse seu
tempo.
— Havia tanto sangue, e... — Quando lágrimas se formaram em
seus olhos, puxei sua cabeça para meu peito novamente enquanto esperava
ela se acalmar. — Você também estava entre eles, e...
— Shhh... está tudo bem, ma puce.
Ouvir sua voz esganiçada e sua expressão triste era como cravar
uma faca em meu peito. Fechei os olhos com força. Porra, eu era um
idiota.
— Acho que forcei demais com você hoje — disse após alguns
segundos. — Não deveria ter matado aquele homem na sua frente, já faz
muito tempo desde que viu algo assim. Eu deveria ter pensado melhor, me
desculpe, ma puce...
— Não. — Isabel ergueu rapidamente sua cabeça, seus olhos,
mesmo que marejados, estavam firmes e determinados.
Limpei algumas lágrimas que escaparam de suas bochechas.
— Talvez devêssemos esperar até que esteja bem, ou deixá-la nos
bastidores para que não veja...
— Não fale nem mais uma palavra, Manon Martin. — Isabel se
empertigou, e eu me calei.
Ela fechou os olhos e suspirou fundo.
— Eu consigo fazer isso.
— Mas não precisa.
Sua expressão desesperada girou a maldita faca no meu peito, se
tornou difícil respirar.
— Eu devo isso a elas.
Não poderia discutir com aquilo. Se Isabel queria vingar sua irmã e
sua amiga, ela mais que deveria. Mas e o preço a se pagar?
— Posso fazer isso por você.
Sua mão tocou minha bochecha, e ela sorriu.
— Sei que pode, e está fazendo tanto.
— Claramente não o suficiente. — Bufei.
Agora, suas duas mãos seguravam meu rosto, obrigando-me a
encará-la.
— Estamos nessa juntos. É o suficiente.
Engoli em seco, de repente sentindo aquele nó em minha garganta,
que esteve lá desde que a botei na cama e vim para cá, se desfazer.
Então, segurei com força sua nuca e colei seus lábios aos meus.
Isabel ofegou, mas logo passou um braço pelos meus ombros e me puxou
em sua direção enquanto sua outra mão arranhava meu tronco. Minha
língua abriu caminho pela sua boca, e quando a passei pelo céu da sua boca
e chupei a sua, ela gemeu.
— Preciso de você — implorou enquanto desabotoava os botões da
minha calça, logo libertando meu pau duro como aço que estava sem cueca.
Porra, ela nem precisava pedir duas vezes.
Levantei-me com ela no meu colo e a deixei sentada no trono, me
livrando do tecido preso em minhas coxas enquanto observava com fome
seu corpo delicioso e todo exposto para mim.
Se antes eu já a achava a mulher mais linda do mundo, agora, com
aquela maldita tatuagem, a minha tatuagem, o meu símbolo entre seus seios
até um pouco abaixo da sua clavícula, me fazia ficar de bolas roxas.
Passei os dedos com leveza sobre a pele ainda em processo de
cicatrização, e Isabel arfou, inclinando seu corpo e empinando seus lindos
seios com os mamilos já rígidos que imploravam por atenção.
Peguei um deles entre meu polegar e indicador e belisquei com
força, arrancando um grito que enviou um arrepio pela minha coluna. Eu
estava no limite, e nem estava dentro dela ainda, caralho!
— Está com dor? — perguntei, dando a mesma atenção ao outro
mamilo, torcendo e beliscando até que ela arfasse e eu pudesse sentir o
cheiro de sua excitação quando ela começou a se tocar, impaciente.
— Manon...
— Preciso saber se está com dor, ma puce, para cuidar bem de você.
— O único que está me torturando é você — ela protestou quando
agarrei seus pulsos, impedindo que ela continuasse acariciando seu clítoris
bem na porra da minha frente.
— Abra as pernas — rugi quando encarei sua boceta melada,
sujando o lençol enrolado em seu corpo de tão excitada.
Isabel obedeceu prontamente, apoiando uma em cada braço do
trono.
— Segure-se no braço e não se mova, ma puce — ordenei enquanto
me ajoelhava diante dela, já salivando ao imaginar seu sabor na minha
língua.
Novamente, ela obedeceu, e eu sorri.
— Amo o fato de você me obedecer direitinho — falei, agarrando
suas coxas e me inclinando sobre ela.
Suas pálpebras tremeram em expectativa.
— Eu sei que sempre terei minha recompensa.
Meu sorriso se alargou, e eu beijei bem no seu centro, fazendo com
que ela se retorcesse.
— Certamente, sempre terá.
Puta merda, ela estava ficando cada vez mais molhada. Não resisti, e
tracei com meu dedo todo o caminho até sua entrada, que o engoliu
facilmente de tão escorregadia. Isabel grunhiu e fincou os dentes com força
em seus lábios carnudos.
— Agora relaxe, ma puce, pois eu vou fodê-la com minha língua e
depois com meu pau, até apagar todo e qualquer resquício do pesadelo que
possa ter sobrado.
— Já... já apagou — ela gaguejou quando a fodi lentamente, apenas
com aquele dedo, observando cada reação em seu corpo e sem conseguir
parar de olhar para a maldita tatuagem.
— Melhor eu garantir, então — grunhi antes de cair de boca na
boceta da minha mulher, arrancando o grito mais rouco e erótico de sua
garganta, que ecoou pelo salão.
Girei minha língua sobre seu clítoris e a fodi com três dedos
enquanto ela tremia com a necessidade de me tocar, mas sem fazê-lo,
obedecendo-me pacientemente.
— Porra, eu amo esse som.
Enfiei minha língua em sua entrada apertada, amando a sensação das
suas paredes, chupando-a, fazendo com que meu pau pulsasse com a mera
ideia de que logo seria a vez dele.
— Obedeça um pouco mais, e deixarei que você goze — provoquei,
amando o fato de ela estar convulsionando sobre o trono enquanto se
controlava, à beira do precipício.
— Manon! — ela gritou, e eu sabia o que pedia.
— Boa garota, ma puce. Agora, venha para mim, goze na minha
boca — ordenei, e logo voltei a alternar minha língua e meus dedos em sua
entrada.
Um líquido quente e ácido espirrou em meu rosto e escorreu pelo
meu pescoço conforme Isabel esguichava seu gozo, e eu continuei metendo
meus dedos naquele ponto sensível dentro dela, bebendo cada gota
enquanto ela enfiava as unhas tão forte no assento que tinha certeza de que
rasgaria o couro.
Levantei-me com um maldito sorriso no rosto, observando como ela
relaxou sobre o trono. Pelada, bem fodida e linda. Minha rainha.
Peguei-a nos braços, e ela se aconchegou em meu peito conforme
atravessei o salão, levando-a de volta para o nosso quarto.
Se ela achava que aquela noite tinha acabado, estava tremendamente
enganada.
Reine-me
Você quer um minuto, eu te darei mais
Talvez eu não queira o que você quer
Nós estamos inquietos, criaturas noturnas
Pregadores da sombra, criaturas noturnas
Você me faz querer amar, odiar, chorar, pegar cada parte de você
Você me faz querer gritar, queimar, tocar, aprender cada parte de você
Shadow Preachers, Zella Day

Sonhamos com o que tememos ou desejamos, ao menos é o que


dizem.
Quando minha vida virou de cabeça para baixo há quase dois anos,
meus sonhos se dividiram. Uma parte deles, eu estava segura, em casa, com
minha mãe e meu pai, com minha irmã ainda pequena, um lugar onde
ninguém poderia nos atingir; e em outra parte, lá estava ele, o homem cuja
mera presença fazia cada parte do meu corpo se arrepiar em desejo. Mesmo
antes de ceder ao que sentia por Manon, sonhava frequentemente com ele.
Mas depois de tudo que aconteceu na sua antiga casa, quando meu pai
morreu em meus braços e deixei minha irmã sangrando à beira da morte...
eu apenas tinha pesadelos.
Por um ano, me senti como uma sombra de mim mesma. Não
comia, não falava, apenas revivia cada momento horrível que passei
enquanto tentava encontrar minha irmã, até perdê-la novamente naquela
noite. Mal pregava os olhos, pois sabia o que encontraria do outro lado.
Depois de algum tempo, o médico dos Martin começou a me dar
alguns medicamentos que me ajudavam a dormir, e quando acordava, não
lembrava com o que tinha sonhado, ainda que soubesse que não deveria ser
algo muito diferente.
Mas, desde que embarquei nesse novo plano de vingança com
Manon, algo em mim, que antes pensei ter perdido, voltou. Eu não acordava
porque abria os olhos pela manhã, mas porque queria acordar. Eu queria
levantar e observar o rosto sereno do homem que eu amava dormindo ao
meu lado, o homem que também lidava com seus demônios diariamente,
apenas por dormir na mesma cama que eu.
Eu queria traçar seu maxilar com as mãos, sentir a aspereza da sua
barba nas palmas e as ondas de calor que enviava para o meio das minhas
pernas só de lembrar onde aqueles pelos rasparam em minha pele. Entre
minhas pernas, no meu pescoço, nas minhas costas...
Tudo que pensei que tinha deixado para trás, a vontade de viver o
suficiente para ver o dia seguinte, voltara. Eu queria viver aquilo todos os
dias. O seu toque, o seu olhar repleto de paixão e amor, e tudo que jamais
pensei que precisava até ter. Assim como a sensação de satisfação que viria
quando finalmente tivesse a minha vingança.
Pensei que havia derrotado finalmente aquilo que ainda me
consumia. Pensei que estava melhorando, que talvez tivesse realmente
enterrando o passado. Então, não pude nem descrever a dor que senti
quando percebi que estava errada ao acordar naquela noite após o pesadelo
mais terrível que tive em muito tempo.
Não contei tudo a Manon. Ele sabia que havia mais, mas não
insistiu. Não contei que não eram apenas os convidados e ele que estavam
mortos naquele salão. Que, na verdade, todos nós estávamos mortos, e
quem segurava a arma era Rosa. Minha irmã. Sua filha.
A mera lembrança de seu olhar e suas palavras antes de atirar em
mim causou arrepios gelados em minha pele.
— Você me abandonou — ela acusou friamente antes de pressionar
o gatilho.
Mas, mesmo sem poder derrotar totalmente as sombras que
rodeavam minha mente, havia algo que meu noivo sabia fazer com
maestria: me amar. Profunda e intensamente. Ao ponto de que eu não
conseguia pensar ou sentir nada além daquilo.
Portanto, me aconcheguei de bom grado em seus braços enquanto
Manon me carregava de volta para a torre, para o nosso quarto. Apenas para
quando ele parasse no batente da porta eu sussurrasse.
— Me leve para outro lugar — disse sem conseguir olhar para a
cama, como se só por estar ali o pesadelo retornaria à minha mente.
Manon me encarou e arqueou a sobrancelha inquisitiva, me
analisando com tanto cuidado que senti as sombras ainda presentes em
minha cabeça, mesmo depois de tudo que fizemos na sala do trono, se
encolherem. Ele suspirou, mas seguiu pelo corredor sem comentar nada.
O arrepio, que antes era tomado por medo e insegurança, se tornou
um arrepio quente e cheio de expectativa quando notei para onde ele nos
levava: à sala de jogos.
Finalmente, depois de abrir a porta e trancá-la, Manon me deixou de
pé no centro da sala. Ele ainda vestia sua calça de pijama, mas eu estava
totalmente nua e exposta para ele enquanto ele me rondava. Ambos
esperando com ansiedade qual seria o jogo daquela noite.
Mesmo com ele tendo me dito que não sentia que precisava disso
para sentir prazer, eu sabia que ser dominador era parte de quem ele era, ou
ao menos foi por grande parte da sua vida. Assim como sabia que me
submeter a ele lhe dava muito prazer – não que eu também não me sentisse
totalmente livre quando lhe entregava a tocha.
Mas, ultimamente, nossos jogos se tornaram mais intensos,
especialmente porque passei a ser uma jogadora mais ativa, já que ele
parecia gostar tanto de me dominar quanto de ser dominado por mim.
Então, sempre havia a expectativa inquietante de quem daria as ordens. Eu
torcia para que fosse ele esta noite. Para que eu pudesse apenas me render
aos seus comados e ao meu prazer enquanto ele cuidava do resto – do meu
corpo e da minha mente –, assim como fizera momentos atrás no grande
salão. Pois fato era: mesmo de joelhos perante a mim sentada no trono, era
ele quem tinha o verdadeiro poder. E eu lhe daria novamente de bom grado.
Fui pega de surpresa, no entanto, quando ele se aproximou de mim e
me entregou o chicote, uma mensagem silenciosa de quem escolheria o quê
naquela noite.
— Eu... — Hesitei, ainda sem pegar no objeto.
Manon segurou minha mão com delicadeza, colocando a parte do
bastão nela e fechando-a.
— Manon...
— Sei que ainda tem pesadelos — ele falou, interrompendo minha
tentativa de negar o que oferecia. — E sei que talvez essa não seja a melhor
maneira de fazer isso, mas também sei que vai ajudar.
— Eu...
— Faça comigo o que quer fazer com seus demônios. — Incitou, se
ajoelhando perante a mim pela segunda vez naquela noite.
Suspirei fundo, apertando com força a base do chicote.
Sem conseguir respirar. Ele estava louco?
Balancei a cabeça.
— Não posso fazer isso. Não quero.
— Ma puce...
— É isso que faz comigo? — perguntei, de repente chateada. —
Quando estamos aqui, você... mata seus demônios assim? — Andei um
passo para trás.
Manon segurou minha cintura com firmeza, mantendo-me no lugar.
— Não. Não com você.
— Eu não entendo.
— Eu fiz muito isso, com outras mulheres, no passado. Mas com
você, ma puce... nunca nem senti meus demônios quando estava com você.
Exceto por aquela vez em...
— Moscou — terminei por ele.
Fechei os olhos, acalmando os nervos do meu corpo enquanto
inspirava fundo.
— Se não faz comigo, não posso fazer com você.
Manon se levantou, segurando meu queixo, obrigando-me a encarar
seus olhos verdes.
— Não faço isso com você porque não preciso mais. Porque não
quero nunca ter que precisar expurgar algo quando estou com você. Porque,
quando estou com você, apenas você está na minha mente.
— E é exatamente por isso que não farei isso. — Quando comecei a
tentar me afastar novamente, ele me parou com suas palavras.
— Se não posso matar seus demônios por você, ao menos deixe-me
ajudá-la dessa forma. Eu sou seu, ma puce. Você me tem. A porra do
homem mais poderoso da França. Use-me, querida. — O verde em seus
orbes foi ficando cada vez mais escuro, e eu engoli seco quando sussurrou
em um tom grave: — Reine-me.

Finalmente o aperto no bastão do chicote se intensificou. Isabel


pareceu ponderar a questão por mais um segundo antes de erguer o queixo,
e o fogo em seu olhar quando ela me encarou me disse que era exatamente
disso que ela precisava. Dominatrix ou não, traumatizada ou não, aquela
mulher me tinha na merda de uma coleira, e não pude evitar de abrir um
sorriso diabólico quando ela deu sua primeira ordem da noite.
— Sente-se naquela cadeira.
Fui em direção ao objeto, perto da mesinha no lado esquerdo do
quarto. A cadeira era parecida com o trono do salão: feita de madeira,
reforçada com couro, só que essa tinha algumas coisinhas mais divertidas.
Assim que me sentei, Isabel pegou a coleira de couro que estava no
encosto e amarrou com força no meu pescoço, não o suficiente para me
sufocar, mas para causar desconforto caso me movesse demais, me
privando de um pouco de ar que poderia passar pela minha garganta.
Minhas mãos foram as próximas a serem atadas com os mesmos laços de
couro nos braços da cadeira, assim como minhas pernas logo depois.
Isabel finalmente se ergueu, parecendo orgulhosa do seu trabalho, e
até mesmo com um traço de diversão em seu rosto ao me ver daquele jeito.
— Não está incomodado em ficar preso dessa forma? — provocou.
Mas tudo que pude responder era a verdade:
— Não estou tão diferente do resto do tempo, ma puce... à sua
mercê.
Seus olhos se encheram de emoção, que também se espelhava em
meu peito.
— Bom — ela respondeu com a voz rouca. Então, um lento sorriso
se abriu em seu rosto. — Porque a verdade, amour[9], é que você pode ficar o
dia inteiro comandando a máfia, mas sabe que, no final do dia, quem manda
sou eu.
Abri um sorriso similar, relaxando ao máximo que podia na cadeira.
— Contanto que você nos reine sentando no meu pau sempre que
puder, ma puce, não me importo em dividir o poder. E sabe que, se quiser
comandar durante o dia, é só dizer. — E eu quis dizer cada palavra.
Se ela quisesse, comandaria tanto quanto eu, mas Isabel estava
focada em apenas uma coisa: Vingança. Contanto que eu a desse para ela,
estava satisfeita. E porra, eu daria. Entregaria em uma bandeja dourada cada
filho da puta responsável por impedir que minha mulher dormisse bem à
noite. Hoje, faríamos figurativamente. Eu lhe daria o controle. Não que
fosse um sacrifício. A visão dela pronta para me dominar era a coisa mais
erótica que já vi nas minhas três décadas de vida.
O fogo que ambos sentíamos começou a queimar mais e mais, até o
ponto que se tornara insuportável com a tensão palpável no ar, e ela
finalmente se ajoelhou perante a mim.
— Não goze — disse lambendo vagarosamente seus lábios, como se
estivesse morrendo de sede na porra do deserto e soubesse que meu pau
seria sua maldita fonte. O caralho que apenas essa visão já não me deixou
de bolas roxas.
Não tive tempo hábil para responder, no entanto, pois Isabel
arrancou meu membro para fora da calça que eu ainda vestia, colocando sua
boca quente bem na base enquanto chupava-a como a porra de um pirulito.
— Pooooorrraaaaa! — exclamei, com a necessidade pulsante de
agarrar seus cabelos e meter até o talo naquela boca gostosa, mas quando
tentei me mexer, fui impedido pelas amarras em todo meu corpo.
Isabel abriu um sorriso zombeteiro, como se soubesse exatamente
dessa necessidade, porém logo fez o que mais queria e aprofundou o
boquete, deixando que minha glande estocasse até a sua garganta.
— PUTAIN! — xinguei, tremendo quando ela voltou ao topo e
continuou fodendo sua própria boca com meu pau, um mero instrumento
pulsante e quente, doido para jorrar dentro dela.
Suor escorria pela minha testa, pelo meu cabelo, acumulando-se na
minha nuca, tornando o couro em meu pescoço ainda mais quente. Estava
ficando cada vez mais difícil respirar, pois eu não parava de lutar contra as
amarras enquanto ela me chupava com uma pressão incrível.
Cerrei os dentes, sentindo minha carótida pulsando na coleira,
entorpecendo os meus sentidos. Arrepios quentes e gelados se misturaram
em meu quadril, subindo até a base da minha coluna, a euforia do orgasmo
se formando em meu corpo, mas antes mesmo que eu pudesse piscar, a
sensação parou.
Isabel se afastou abruptamente, quase tão ofegante quanto eu,
lambendo o canto de seus lábios com o meu pré-gozo.
— Venha aqui — rosnei.
Ela balançou a cabeça.
— Não é você quem dá as ordens agora — comentou com um
sorriso provocante nos lábios ao se abaixar, pegando novamente o chicote e
apontando para mim de forma acusatória. — O que eu disse sobre gozar?
Não pude evitar o sorriso em meu rosto ao responder:
— Disse para eu não o fazer.
Um estalo soou no ar, em sintonia com a onda de arrepios em meu
corpo, quando ela me bateu com o chicote na virilha, bem perto do meu
pau, que deu um salto, pelo visto despreocupado com o risco de ter atingido
minhas bolas.
Arqueei a sobrancelha, divertido com sua atitude, mas irritado para
caralho pela onda de tensão por não ter gozado ainda.
— Por que isso?
— Você iria me desobedecer.
Mordi o lábio, doido para me soltar quando ela colocou a perna
sobre a minha, se abrindo com a mão enquanto passava a outra pela sua
boceta encharcada.
— Sim — afirmei, hipnotizado pela visão dela se dando prazer.
Eu iria gozar, independentemente do que ela ordenara. Não podia
nem me sentir culpado, era a porra de uma missão impossível. Isabel gemeu
baixinho, sem tirar os olhos dos meus enquanto se fodia.
— Qual será a minha punição? — perguntei com minha voz mais
rouca do que o normal.
Um outro sorriso tomou seus lábios, e ela me bateu novamente com
o chicote, dessa vez bem nos meus mamilos. A dor entre as minhas pernas
se intensificou com a porra das bolas roxas pela necessidade de gozar.
Isabel se aproximou, soltando as amarras das minhas mãos e pernas.
— Não me toque — ladrou quando abracei sua cintura.
Trinquei os dentes com a ordem, mas obedeci. Esta noite era sobre
ela e apenas ela, e faria tudo que ela precisasse sem hesitar.
Isabel me puxou pela mão, para que eu ficasse de pé, mas não soltou
a coleira de couro em meu pescoço, apenas da cadeira. Um calafrio tomou
meu corpo quando ela pegou a corrente metálica e prendeu ao gancho do
objeto, me guiando como a porra de um cachorro até a cama.
— Deite-se.
Fiz o que foi pedido e me deitei de costas, com curiosidade sobre o
que minha pequena lontrinha faria a seguir. Finalmente, seu corpo quente
veio até o meu quando ela colocou suas pernas entre meu corpo, sem ainda
nos tocarmos efetivamente. Isabel prendeu a corrente em meus pés, me
imobilizando ao mesmo tempo em que me enforcava com a coleira. Garota
esperta. Não pude evitar sorrir de orgulho, mas logo o sorriso morreu com a
porra do arrepio que subiu pelo meu corpo quando ela se recostou em mim,
seus mamilos duros como pontos de incêndio em minha pele.
Ela roçou seus lábios levemente aos meus, porém eu já estava
ficando impaciente, e como ela ainda não havia restringido minhas mãos,
enlacei sua cintura com um braço enquanto puxava sua nuca com o outro.
Ela arfou surpresa, e aproveitei a abertura para enfiar minha língua em sua
boca quente e gostosa sem aviso.
Gememos com o contato.
Seus lábios eram doces como a porra de uma fruta, sua língua estava
enroscada em movimentos sintonizados com a minha, recheadas de fome, e
quando ela rebolou em meu colo... PUTA QUE PARIU! Movi meu quadril
tentando chegar até ela, mas o movimento fez com que a coleira se
apertasse em meu pescoço, e o simples fato de estar parcialmente atado
aumentou ainda mais meu tesão. Meu pau pulsava tão forte que sentia que
estava prestes a explodir, mas novamente ela me afastou, pegando minhas
mãos e colocando-as em cima da minha cabeça.
Observei seu corpo acima do meu. Seus lindos e cheios seios
rosados, demarcados com a porra da minha tatuagem entre eles, um pouco
acima da caixa torácica. A visão fez meu coração obscuro e obsessivo bater
com satisfação. Seus mamilos rijos imploravam pela minha boca, sua
barriga chapada contraía com suas respirações pesadas, sua boceta brilhante
pulsava, assim como seus quadris que ainda se moviam, como se lutassem
para voltar a montar meu pau enquanto ela se esfregava em mim.
Depois, olhei para o seu lindo rosto, para as sardas que iam em suas
bochechas, contei-as inúmeras vezes, e perdia a conta de propósito para
começar tudo de novo. Os cachos negros e rebeldes de seu cabelo caíam
como cascata na pele pálida, adornando aquele maxilar delicioso, mas não
tanto quanto sua boca, com lábios inchados pelo beijo.
Finalmente, como se ela tivesse recobrado seu autocontrole, Isabel
voltou a falar.
— Vire de costas.
Certa cautela surgiu em minha mente.
— O que vai fazer?
Nossos olhos jamais se deixaram. E enquanto os meus deviam
mostrar exatamente minha hesitação, os dela me asseguravam de que estava
tudo bem.
— Confia em mim?
— Sempre — respondi, já me virando.
Demorei um pouco para me ajeitar, já que ainda estava parcialmente
imobilizado, mas quando finalmente o fiz, meu corpo se contraiu ao sentir
seu hálito quente naquele lugar.
— Relaxe — ela sussurrou.
— Ma puce...
— Se incline para mim, amor. Preciso que suba um pouco os seus
quadris — Isabel disse. Ironicamente, palavras muito similares já saíram da
minha boca mais de uma vez.
Soltei um suspiro ainda um pouco receoso e o fiz.
Mas nada nunca me preparou para a sensação quando sua língua
traçou aquele ponto.
— PUTAIN! — gritei no travesseiro.
Meu coração batia forte no peito, o couro estalava de tanto apertar
em meu pescoço, minhas pernas não paravam de se mover, e eu lutei para
permanecer o mais parado que consegui, sem querer acreditar no que senti,
no que queria sentir novamente.
Isabel soprou aquele ponto novamente, fazendo cada célula do meu
corpo vibrar com um prazer que nunca tinha sentido antes. Então, sua
língua estava lá novamente, lambendo, explorando, chupando, e eu relaxei
por completo quando suas mãos começaram a massagear as minhas costas
por trás. Gemendo e rosnando, sem forças para fazer qualquer outra coisa
que não me entregar a ela.
Apenas uma vez alguém havia me tocado daquela forma. Apenas
uma vez, e me senti violado, vulnerável, nojento. Nunca mais deixei
ninguém chegar perto de mim. Porra, praticamente não permitia que as
mulheres me tocassem quando as fodia para extravasar tudo dentro da
minha cabeça fodida. Até ela. Até Isabel. Então, era óbvio, caralho, que a
primeira pessoa que me tocaria ali, a primeira pessoa que permitiria chegar
tão longe, seria ela. Os anos e as cicatrizes daquele abuso, que se fincaram
tão forte no fundo da minha mente, deixando-me tão violento, tornando-me
o homem frio da máfia que, por alguma razão, nunca consegui ser com ela,
sumiram. Pois tudo que ainda rasgava em minha memória ao ser tocado lá
era diferente do que sentia agora.
Quando Isabel continuou massageando minhas bolas e finalmente
me penetrou com sua língua, não me senti violado, vulnerável, ou nem
mesmo dor. Não. O que senti foi prazer.
E sem nem mesmo saber que chegaria, um espasmo cortou meu
corpo inteiro, fazendo com que minha visão se borrasse, minha respiração
congelasse enquanto eu gozava tão forte que meu cérebro parecia que iria
explodir.
Nunca tinha tido um orgasmo tão intenso quanto aquele, e mal havia
notado que ela já havia me desamarrado, que já estava de barriga para cima
novamente, com ela me observando enquanto eu voltava ao maldito planeta
Terra.
Finalmente, minha respiração se normalizou, e quando minha visão
voltou ao normal, o sorriso lindo que ela me deu apertou a porra do meu
peito.
Eu a amava tanto que sentia dor física com aquilo.
— Venha aqui.
Dessa vez, ela veio, sem hesitar. Abraçando-me com suas pernas e
braços até que estivéssemos tão enrolados um no outro que não poderíamos
diferenciar que parte era de quem.
— Obrigado — foi tudo que pude dizer, sentindo a emoção apertar
minha garganta, agora livre da coleira. Não precisei elaborar, pois ela sabia
o que aquele momento havia significado.
— Eu amo você — ela respondeu, me apertando mais ainda no
nosso abraço.
— Também amo você, ma puce.
Ficamos ali em silêncio por um tempo. Eu raciocinando tudo que
aconteceu nessa última meia hora, e ela provavelmente fazendo o mesmo.
Finalmente, depois de alguns minutos, virei-me para ela, erguendo
seu queixo para que me encarasse.
— Expurgamos todos os demônios esta noite?
Um sorriso de apertar o coração e deixar meu pau ainda duro e
dolorido surgiu em seu rosto.
— Acho que a maioria, sim.
— Ótimo. — Sorri de volta, me inclinando sobre ela. — Porque
agora vou fazer amor com você.
E eu fiz. Lentamente. Por horas e horas, até que os raios de sol
apareceram pelas frestas da janela, mas ambos caímos na escuridão dos
sonhos.

O tique-taque constante do relógio era o único som da sala além do


exalar da fumaça que eu tragava dentro do meu escritório. Luk franziu o
cenho, encarando sem parar para o cigarro em minha mão, e eu abri um
sorriso zombeteiro. Ele estava tentando largar, mas, comparado ao tanto de
vícios que tínhamos sendo quem éramos, o cigarro era o menor deles.
— Não vai matá-lo mais rápido que uma bala na sua cabeça —
caçoei, finalmente chamando a atenção do meu amigo de volta para mim.
Ele tossiu.
— Não estamos ficando mais jovens, Manonzinho. — Seu olhar
adquiriu aquele tom zombeteiro de volta quando ele sorriu para mim. —
Quero ter certeza de que ainda terei tudo funcionando daqui a vinte anos.
— Não é uma preocupação minha.
— Quando sua futura esposa começar a reclamar, vai ser. — Ele riu
quando arqueei a sobrancelha.
— Quer dizer que você só sabe satisfazer uma mulher quando usa o
pau?
— Oh, Manonzinho. Pensei que já soubesse que, para eu satisfazer
alguém, meu pau é apenas um paliativo.
Soltei uma gargalhada, me recostando na cadeira do escritório.
Ele chegou há algumas horas, fazendo um tour por Paris e deixando
pequenos recados para as gangues que estavam começando a se mostrar um
tanto rebeldes.
Olhei-o de soslaio. Luk usava uma camisa social preta, mas que não
escondia as manchas de sangue ainda presentes nela. Como meu executor e
braço direito, ele sabia muito bem o tipo de trabalho que carregava, e como
conhecia meu amigo, mesmo que ele negasse quando jovem, dizendo que
também não queria essa vida, sabia que gostava dessa parte tanto quanto eu.
Ou até mais.
Soltei um suspiro quando o ar da brincadeira passou. Eu sabia que
ele tinha muito a dizer. Desde que Isabel e eu entramos nesse acordo de
governarmos juntos as máfias para derrubar o sistema, Luk tem estado
muito inquieto. Sabia que ele não concordava nem um pouco com o plano,
mesmo ele não tendo dito nada.
— Só fale de uma vez.
Luk também se encostou na cadeira oposta da minha mesa, bebendo
um grande gole do uísque em sua mão. Uma pontada de humor surgiu. Ele
não quer fumar, mas não tem problemas com beber feito um cavalo, pelo
visto.
— Já faz semanas, Manon. Os grupos rebeldes estão crescendo cada
vez mais, e sinto que os nossos também já estão começando a querer andar
com as próprias pernas.
— Então, corte-as, e lhes dê nossa muleta — Cortei arisco. —
Precisamos dos nossos números.
Luk balançou a cabeça.
— Não importa quanto sangue eu derrame, Manon. O medo não vai
funcionar. Não dessa vez.
— O que sugere?
— O que já estamos tentando conseguir: aliados.
Bufei, me servindo de mais bebida. Apesar de ter vontade de
exterminar todos aqueles desgraçados na rua, ele estava certo. Já havíamos
derramado muito sangue, e eu precisava do máximo de homens que pudesse
reunir quando entrasse realmente em guerra com os outros.
— Isso é uma merda — comentei.
Luk deu de ombros.
— Foram vocês quem decidiram embarcar nessa de vingança. —
Ele se inclinou para a frente, me encarando com atenção. — Escute,
Manon. Sei que está fazendo isso por Isabel, mas ainda dá tempo de
desistir. Podemos pensar em outra coisa. Você sabe tão bem quanto eu que
essa história de vingança apenas resulta em mais vingança. Veja o que
Popov fez com vocês por conta de uma maldita guerra de dezoito anos
atrás.
Uma risada amarga se formou em meu peito.
— Isso não é uma vingança comum, Luk. Não estamos brigando
apenas entre famílias.
— Justamente por isso — ele me interrompeu. — Porra, Manon, se
seguirmos com isso, o mundo ficará sabendo. Não haverá mais volta.
Foi a minha vez de dar de ombros.
— Que assim seja.
Meu amigo me encarou incrédulo.
— Vai mesmo desistir? Jogar fora todos os anos de trabalho? Tudo
pelo qual lutamos? Quem você é?
— Se não me engano, até pouco tempo atrás, você me dizia que só
estava nessa por minha causa, e agora que quero sair, você está me pedindo
para não o fazer?
Luk exalou, passando a mão pelo rosto frustrado.
— Nunca quis essa vida — ele disse.
— Nem eu — rebati.
— Mas não tivemos escolha, Manon. Ou melhor, tivemos, e desde
que assumiu, quase sete anos atrás, temos feito essa escolha todos os dias.
A família e o sangue acima do resto.
— Isabel é a minha família.
— Manon... — Luk pareceu debater.
— Eu não estou fazendo isso apenas por ela. — Luk se calou, me
olhando como se não acreditasse. — Grande parte é sim, porque sei que,
com ou sem a minha ajuda, ela vai se vingar. Você conhece minha mulher.
— Minha mulher doce, destemida, e forte para caralho. — Mas não é
apenas por ela — voltei a falar. — É por mim. Por todos os anos que me
forcei a ser a versão que mais odeio de mim mesmo. Por todo o sofrimento
que causei. — Luk continuou quieto, ouvindo. — Um dia, eu irei colocar
um ou mais filhos no mundo, e não quero que eles conheçam apenas essa
parte. Quero que vivam, que sejam livres desse lado podre. Que um deles
não tenha que ser um Don um dia apenas por ser meu filho homem e mais
velho. — Nossos olhares se trancaram. — Quero que tenham escolhas.
Depois de alguns momentos, Luk se levantou, pegando um cigarro
do maço da mesa, acendendo-o com meu isqueiro.
Ele inalou a fumaça, prendendo-a em seus pulmões antes de soltar e
se virar para a janela.
— Mesmo que consigamos com êxito, achar que um dia será livre é
uma ilusão — ele disse sombriamente. — Nós controlamos o mundo,
Manon. Mesmo que apenas saíssemos da máfia, seríamos exilados,
procurados por todos. Nunca seremos livres. Nem os nossos filhos. —
Então, ele se virou para mim. — Estamos amaldiçoados.
Toquei a ponte do meu nariz, apertando-a levemente. Porra, ele
estava certo. Mas, mesmo que essa escolha nos condenasse, não era como
se fôssemos ter uma longa vida.
— Isso não significa que não devamos tentar, porra — falei, me
levantando também.
Fui até ele e toquei seu ombro.
— E eu sei que, se tiver você ao meu lado, teremos muito mais
chance de sair dessa vivos.
Luk me encarou por alguns instantes antes de assentir, me abraçando
de volta.
— Você sempre me terá ao seu lado. Na terra, no inferno, ou aonde
quer que vamos entre eles.
Aquilo era tudo que eu precisava ouvir.
Um toque interrompeu um dos nossos poucos momentos fraternais,
e eu me virei para pegar o celular em cima da mesa. Mesmo com o sol forte
do meio dia passando pelas janelas, iluminando e aquecendo o cômodo
revestido de madeira, um arrepio gelado tomou meu corpo quando atendi.
A voz falou por alguns instantes, e eu respondi. Luk se colocou em
alerta, e se pôs diante de mim, esperando encerrar a ligação para saber que
merda iríamos ter que fazer. Quando enfim desliguei, ele se aproximou.
— Quem era?
Tomei o resto do uísque na mesa e segui para fora.
— Vamos, temos que encontrar Isabel.
— Manon?
Olhei por cima do ombro.
— Era Padilha. — Só de falar o nome dele, o arrepio voltava. O
desgraçado era um psicótico do caralho, e pela reação de Luk, eu sabia que
ele não estava muito diferente.
— O que ele queria? — ele perguntou conforme caminhávamos pela
mansão até a área privada que dividia com Isabel.
— Ele quer reunir a tríade. — Foi tudo que precisei dizer antes de
seguirmos.
Luk sabia o que aquilo significava. Porque quando a tríade se reunia,
nada de bom poderia acontecer.
Covil de cobras
“Parece que eu estou caindo
Em um mundo
Em um mundo
Que eu não posso controlar
Eu ouço-o chamando
Sob minha alma
Agarrando meus ossos
Isto não me soltará’’
Bad Dream, Ruelle

Se antes eu tinha dito que nunca havia frequentado bailes e festas,


desde que me envolvi com Manon, seja para me vingar ou agora sendo sua
noiva, tenho percebido que logo perderia a conta de tantos eventos. Pelo
visto, a máfia gostava de esbanjar. Não era como se eu não soubesse disso,
baseado nas festas às quais já tinha ido e nas pesquisas que fiz sobre eles, ao
que parecia uma vida atrás. Mas depois de um ano isolada, acho que havia
me esquecido desse fato.
Dois bailes em um intervalo de quase duas semanas, para mim, era
bastante coisa. O primeiro, obviamente, foi o nosso, portanto apenas os
Martin atenderam à nossa casa. E se aquele já havia me deixado nervosa,
nada me prepararia totalmente para o desta noite.
Uma mão quente envolveu a minha enquanto o carro se movia.
— Estou bem — garanti, me virando para Manon.
Ele assentiu, mas não me soltou.
Uma parte de mim não pôde deixar de ficar grata por isso. Estava
aprendendo cada vez mais que me apoiar em quem amava não fazia de mim
um peso.
Durante toda a minha vida, eu sempre cuidei de tudo e todos. Eu iria
estudar para cuidar da fazenda da família, cuidava da minha irmã,
sacrifiquei meu coração, mesmo que brevemente, para aqueles que amava,
para salvar Rosa. Ou assim eu pensei.
Manon estava me ensinando que eu poderia ser cuidada, e me
mostrando que eu gostava muito disso, na verdade.
Antes, chorar na frente de alguém, especialmente de um homem tão
poderoso e forte, seria algo que eu nunca faria. Não apenas porque na época
não confiava nele, mas porque tinha medo de como isso mudaria a forma
como ele me via. Eu queria ser forte como ele. Queria que ele visse que eu
aguentava.
Nunca estive tão enganada, no entanto. O que percebi, na verdade, é
que as pessoas mais fortes são as que mais são quebradas por dentro.
Porque toda a dor as moldou, e nem sempre para algo necessariamente
bom. O exterior era apenas uma armadura para alguém que também
precisava de ajuda. E quando aprendi a pegar a mão que me estendiam,
percebi que não precisava ficar sozinha, não mais. Pois eu o tinha. Assim
como ele tinha a mim.
Apertei levemente sua mão, apenas para mostrar que eu estava ali.
Luk abotoou seu paletó, de onde estava sentado diante de nós. Este
SUV tinha bancos virados um para o outro – para reuniões e trabalho,
supus.
— Já contou tudo para ela? — ele questionou a Manon, que coçou a
barba por fazer.
— O que há para contar?
Além do que já sabia: Os Del Toro faziam parte da tríade, as três
famílias mais poderosas da Europa, em conjunto com os Caruso e nós.
A festa era na mansão Del Toro, na Espanha. Hoje era sobre duas
coisas: pesquisar e avaliar. A tríade estaria reunida, o que era uma ocasião
rara, e precisávamos de aliados. Manon, Luk e eu teríamos que nos
certificar de quem seriam nossos amigos e quem seriam nossos inimigos
nesse começo de jogo de xadrez.
— A festa de hoje vai ser um pouco diferente do show que vocês
deram alguns dias atrás — Luk começou.
— O que quer dizer? — perguntei, sentindo minha coluna enrijecer.
— Quer dizer que não estaremos em nosso território esta noite —
Manon pontuou. — O que significa que não temos números para enfrentar
as duas famílias, caso seja uma armadilha.
— Ok... você me disse isso quando me contou da reunião. — Como
disse, a reunião da tríade é rara, e devido aos últimos acontecimentos,
poderia ser uma armadilha.
Não ir não era uma opção, no entanto precisávamos demonstrar
força.
— Precisamos que esteja em alerta máximo — Luk alertou. — Você
será a esposa de um Don, e aparecer lá será uma demonstração de força,
mas não se engane que não haverá cobras que tentarão derrubá-la.
— Ele está falando das mulheres — Manon explicou quando viu a
confusão no meu rosto.
Franzi ainda mais o cenho.
— Estão com medo das mulheres? Elas não são apenas as esposas
dos verdadeiros inimigos?
Eles se entreolharam.
— Achei que a essa altura soubesse que são muito mais que isso —
Luk comentou, com um sorriso zombeteiro.
— O que significa....
— Significa que elas são informantes. São elas quem colhem
informações através de fofocas, sendo “amigas’’ — Luk frisou, fazendo
aspas com os dedos — das outras mulheres, entre as famílias. Os maiores
escândalos e brigas vêm através delas. Tudo que elas têm é informação.
— E informação é poder — completei.
Suspirei fundo.
Até que gostei dessas mulheres. Saber que faziam mais do que
apenas serem submissas de seus maridos corruptos me fez sentir menos
apática com relação a elas. Pelo menos, esperava que pudesse reunir
aliadas, e não inimigas, ali.
— Não fale nada que elas não têm que saber — Luk instruiu. —
Certifique-se, também, de não acreditar somente em uma versão dos fatos.
Arqueei a sobrancelha.
— Está mesmo me ensinando a virar amiga de esposas de mafiosos
e a fofocar?
Manon tossiu, engolindo uma risada, mas Luk permaneceu sério.
— Vai entender que precisará de todas as orientações possíveis
quando pisar naquele ninho.
— Isso é um pouco sexista, Luk, considerando que se refere às
mulheres como cobras, mas não aos seus maridos.
Ele deu de ombros.
— Pode ser. Mas nós — ele disse apontando para Manon —
sabemos o que iremos enfrentar. Você não cresceu entre as famílias. Não
sabe como a dança funciona.
Trinquei os dentes, ficando cada vez mais irritada.
— Não se preocupe comigo. Eu sei me virar.
— Chega, Luk. Ela já entendeu.
Luk encostou no banco e ficou calado.
Um arrepio tomou meu braço quando Manon inclinou sua boca para
perto do meu ouvido.
— Vai ficar tudo bem, ma puce.
Olhei para ele e assenti.
— Eu sei.
Encaramo-nos em silêncio por uns instantes antes de ele suspirar.
— Quando entrarmos na festa, você verá uma versão de mim que
pode não gostar.
Meu coração acelerou com seu comentário.
— O que quer dizer?
— Até agora, você não me viu realmente agindo como realmente
sou para as outras pessoas. — Como um mafioso?
Engoli em seco. Isso não era verdade. Alguns dias atrás mesmo, ele
matou um homem sem hesitar. Mas então me atingiu. Ele apenas puxou um
gatilho.
Minha mente voltou para aquela noite, para o olhar em seu rosto
quando ele fez aquilo. Parecia que ele queria ter feito mais. Comecei a
repassar tudo que vivi com ele desde então. Foram poucos momentos que
tivemos entre outras pessoas, a maior parte do tempo estávamos isolados na
sua casa. E em Moscou, estávamos brigando e eu estava apavorada demais
com a noção de que o amava. Parando para refletir, nunca tinha visto
mesmo esse lado dele, ou melhor, esse pior lado dele.
Olhando no fundo dos olhos do homem que eu amava, vi que ele
estava hesitando. Será que ele achava que eu o abandonaria caso
conhecesse quem ele era de verdade? Mesmo que agora eu soubesse que
grande parte disso seria apenas atuação? Ou melhor, hoje seria atuação.
Eu o faria? Não. Claro que não.
Eu não o deixaria. Não depois de tudo. Depois do que estávamos
fazendo. Do que ele estava fazendo por mim.
Só por saber que hoje era mais um passo para conseguir o que ele
me prometera, meu coração se derreteu um pouquinho, e me firmei com
determinação.
— Faça o que tiver que fazer.
Como se ele visse o que precisava em meus olhos, Manon assentiu,
roubando um beijo dos meus lábios, tão curto que mal deu tempo de me
afundar em seu calor, mas que não impediu que os arrepios se espalhassem
por todo meu corpo conforme minha boca formigava.
Então, ele pegou minha mão.
— Vamos.
E todos os arrepios se tornaram alfinetes gelados em minha pele
quando notei que o carro havia parado, que agora estávamos na mansão Del
Toro.

Toda e qualquer esperança de fazer alguma amizade, ainda que


falsa, esta noite foi pisoteada até virar pó. Sempre soube que Manon era
importante. Mas saber isso e ver eram coisas bem diferentes.
Nas poucas ocasiões que o vi publicamente, ele nunca foi tratado de
forma que me fizesse pensar no quão reais eram os rumores do homem mais
poderoso da França. Hoje, estava tudo diferente. Pois, mesmo ele estando
na presença de homens à altura, uma vez que os Caruso e o Del Toro tinham
tanta influência quanto os Martin, era palpável o recuo que muitas pessoas
deram em alguns passos quando chegamos. Em sua maioria, pelo que vi
através das tatuagens de um touro com uma lua e estrela acima da cabeça,
que todos carregavam à vista em seus punhos ou decotes de vestido, os Del
Toro.
Será que um dia eu seria capaz de me acostumar com esses olhares
sequer furtivos? Era impossível, percebi. Era impossível me acostumar com
expressões assustadas, misturadas a famintas por uma brecha, dentro da
multidão do baile de máscara.
Todos se viraram para nós com a nossa chegada, e mesmo já estando
aqui há meia hora, eles ainda nos encaravam como se temessem que um de
nós resolvesse fazer outro banho de sangue, ou talvez apenas torcessem
para o fato de que, se observassem o bastante, poderiam ver todos os nossos
segredos, e concluiriam se deveriam ou não nos matar.
A vantagem de ter enterrado o que aconteceu de verdade e apenas
algumas poucas pessoas saberem se mostrou esta noite. Até então, a história
que todos sabiam era que a inteligência se uniu com a família Popov,
tentando derrubar Manon, e ele lhes deu um banho de sangue em sua casa,
antes de explodi-los em pedacinhos. E agora, com o pódio Popov vazio,
várias famílias russas já disputavam para estar entre as cinco, inclusive o
grupo da Bravta.
O meu papel nisso tudo foi reduzido. Eu era uma mera prostituta em
Paris, que se tornou noiva do Don dos Martin. Era tudo que sabiam.
E ainda que houvesse certos rumores de meu envolvimento, Luk foi
bem eficaz em transformá-los em nada menos que fumaça. A julgar pelo
escrutínio escancarado das mulheres de quem eu deveria me tornar amiga,
todas caíram na mentira. Ninguém sabia que eu era filha de Mourand, que
minha família fazia parte da máfia, porque seria muito mais complicado
inventar uma mentira do porquê de nunca saberem da minha existência até
pouco tempo atrás, quando fui prometida a Manon sem nosso próprio
conhecimento. Isso levaria a mais perguntas, e se investigassem o bastante,
levariam à minha irmã. Então, eu estava bem em ser conhecida como a puta
de um mafioso, se esse fosse o preço de manter alguns segredos bem
guardados.
Era um tanto irônico pensar que tudo que meu pai lutou para evitar,
o que inclusive custou sua vida, estava acontecendo. Eu era noiva do
homem de que papai tentou me esconder, me casaria e me tornaria alguém
que minha família custou em evitar. Mesmo que temporariamente.
O salão era deslumbrante. A mansão, eu ousei perceber, era muito
maior que a de Manon, o que pensei que era impossível. Não que meu
noivo parecesse ligar para aquilo. Pelo visto, os Del Toro vinham de uma
longa linhagem de ancestrais com muito dinheiro, e esse lugar –
praticamente um palácio – estava na família há gerações.
Portanto, era justificável o teto alto, cheio de pilastras com detalhes
encrustados com ouro, assim como grandes pinturas nas paredes. Mas a
figura que mais chamava atenção era a que ficava bem no centro do salão,
no chão, com o símbolo que eles carregavam na pele: a cabeça de um touro
com os olhos opacos, uma lua e uma estrela bem em cima; junto com a rosa
encravada por uma espada dos Martin, e o lobo comendo uma cobra, dos
Caruso. A dinâmica dos três se entrelaçava de uma forma interessante,
fazendo parecer que era um desenho só, não três. Não era Caruso, Del Toro
ou Martin, aquele era o símbolo da tríade.
Observei todos ao meu redor. Os homens usavam ternos e gravatas
combinando, com máscaras em sua maioria pretas cobrindo seus olhos,
enquanto as mulheres dispunham de lindos vestidos e máscaras com certeza
feitas sob medida para combinar com a vestimenta.
Manon permaneceu com seu braço em volta da minha cintura, em
um aperto poderoso e possessivo, que me mantinha firme na mesma medida
que ansiosa. Com toda a loucura dos últimos dias, tínhamos tido poucas
horas a sós. Eu estava com muita saudade do seu toque. Pela forma como
seus orbes estavam escuros, sabia que ele deveria sentir o mesmo.
Mantivemos, no entanto, a compostura. A expressão de Manon era
fria e indiferente debaixo da máscara também preta que cobria seus olhos,
enquanto eu mantinha meu queixo erguido, devolvendo o escrutínio com o
olhar, para todos aqueles que me davam também através da minha máscara
vermelha repleta de penas, combinando com o meu vestido da mesma cor.
O profundo decote ia até a minha barriga, deixando à mostra minha
tatuagem pouco acima dos seios. Todo o resto estava coberto, no entanto,
com as mangas compridas de acabamento de penas vermelhas como fogo
no tecido repleto de brilho.
Caminhamos por entre os convidados, a confiança em cada passada
aumentando quando a raiva passou a borbulhar no meu estômago.
— Ora, ora, vejam só quem resolveu aparecer. — Uma voz
masculina disse em Francês, a poucos metros de onde estávamos.
Um calafrio gelado desceu pela minha coluna quando o homem alto
e moreno parou diante de nós, com o sorriso mais ferino que já vi em um
rosto, mesmo por trás da máscara de touro que usava. O fato de ser o
símbolo da família não parecia ser o verdadeiro motivo que esse homem
escolheu o desenho do animal. Era quase como se fosse...uma provocação.
O aperto de Manon aumentou na minha cintura, e o homem não
deixou de notar. Seu sorriso aumentou de tamanho quando ele me encarou.
— Escobar — Manon disse à guisa de um cumprimento.
O tom duro do meu noivo não abalou Escobar, o que sabia ser o
líder atual dos Del Toro.
— É bom vê-lo, Manon. Quase pensamos que não compareceria
esta noite, o que seria mais que compreensível. — O tom de provocação de
Padilha mostrou que era exatamente o que ele queria. — E você deve ser a
linda noiva do Don dos Martin — ele disse ao se virar para mim
novamente.
Peguei em sua mão, mesmo que todos os meus instintos gritassem
para recuar. O brilho divertido nos olhos de Escobar me dizia que ele
percebia exatamente aquilo. Ele percebia tudo, pelo que notei.
Uma onda de náusea tomou meu corpo, mas não me permiti
fraquejar quando ele levou nossas mãos unidas aos seus lábios e beijou
meus dedos.
— Ela é deslumbrante, Manon. Acho que agora todos entendemos
os motivos para escondê-la de nós.
— Não escondo nada de ninguém — Manon respondeu em um tom
frio. — Apenas não pensei que demorar a apresentar minha noiva ao mundo
causaria tamanha ofensa a vocês.
— Bobeira. Considere qualquer ofensa perdida — Padilha
respondeu sorrindo. Ele se virou para mim novamente, e logo soube que
não gostava de ter a atenção daquele homem sobre mim. — Não faço ideia
de onde minha esposa está neste momento. Provavelmente ainda está se
arrumando para receber todos os convidados. — Algo em seu tom ao se
referir à esposa não parecia certo. — Mas farei questão de que ela se
apresente a você, Isabel, certo?
Assenti de leve.
— Estou ansiosa para conhecê-la. — Se ela fosse qualquer grama
parecida com Escobar, queria estar o mais longe possível.
Ele sorriu satisfeito.
— Bom... Já que chegou, podemos começar a reunião.
— Vendetto já chegou? — Manon questionou, olhando ao redor.
— Oh, não. Ele aparentemente teve um imprevisto, mas mandou
Lino em seu lugar.
Se Manon já parecia incomodado com a presença de Escobar, a
menção de Lino Caruso pareceu deixá-lo uma estátua de tão tenso.
Não poderia culpá-lo. Já tinha ouvido falar de Lino quando
pesquisei sobre as famílias, há algum tempo. Manon poderia ser o homem
mais poderoso da França, e as três famílias, as mais influentes, mas os
rumores de Lino iam muito além disso.
Conhecido como diabo, ou diavolo, Lino era o braço direito do líder
dos Caruso, Vendetto Caruso, e seu executor. O maior assassino de toda a
Europa. O mais temido também.
Não pude deixar de me lembrar da primeira vez que Manon falou
sobre ele. Os Martin não gostavam muito dos Caruso, era uma rixa antiga
que permanecia até os dias de hoje. A tatuagem do lobo comendo uma
cobra era mais que o brasão da família, era uma promessa de sangue, pelo
que ele me contou. “Sempre evite os Caruso”, ele me disse ao que pareceu
uma década atrás, pouco antes de eu o trair no baile beneficente. E agora,
como sua noiva, sabia que ele se referia a um Caruso em específico.
— Bom, melhor seguirem então para a reunião, cavalheiros — falei
após alguns instantes de um silêncio incomodo. — Estarei rondando por aí.
Manon trincou o maxilar, claramente desconfortável em me deixar,
mas Luk logo se apressou e me ofereceu seu braço.
— Eu cuido dela — garantiu, já me afastando dos dois.
— Foi bom falar com você, Isabel. — A voz de Escobar me seguiu,
e se havia uma coisa da qual eu tinha certeza, era que eu faria questão de
não ter que falar com ele novamente.
Marcus e Luk se postaram atrás e ao meu lado cada um, enquanto
Manon seguiu pelo salão para a reunião com os Dons e Capos das outras
famílias. Eu ainda estava tendo calafrios com a apresentação de Escobar
Padilha.
O homem era alto, moreno, e muito bonito, mas havia algo em seu
olhar – além da óbvia lascívia, por claramente ter ouvido os rumores sobre
mim. Aquele homem era maldade pura, eu sabia. Ele tinha o mesmo ar de
loucura que Mikhail. E nada de bom poderia vir dali.
Outra onda de náusea me tomou, e agradeci mentalmente por estar
longe dele quando me senti tonta, ainda que quisesse que o homem me
amparando enquanto andávamos em direção a um dos cantos do salão fosse
meu noivo.
Era melhor que nos separássemos, no entanto, para podermos
conversar com o máximo de pessoas possível. Não queria ser aquele tipo de
esposa chaveirinho, que ficava grudada no marido durante essas reuniões
até ele ter que se ausentar para tratar dos negócios. Não. Eu andaria pelos
meus próprios pés, muito obrigada.
— Se pretende ficar no canto do salão pelo resto do baile, não a
julgarei. — Luk disse ao meu lado. — Todos aqui parecem que querem
comê-la viva.
Fiz uma careta com seu comentário. Ele estava certo, no entanto. O
calor pinicando minha pele muito provavelmente vinha dos raios laser que
as mulheres pareciam direcionar a mim.
— Está tudo bem? Parece desidratada — ele perguntou quando
voltou sua atenção a mim.
— Só estou com um pouco de calor, eu acho.
Eu estava me sentindo um pouco doente há alguns dias. O estresse
com as milhões de coisas que tínhamos que resolver em tão pouco tempo
estava cobrando seu preço.
Luk me encarou novamente, analisando-me.
— Talvez devêssemos trazer o médico para vê-la, quando
voltarmos. Não parece muito bem há alguns dias.
— Talvez — concordei fracamente.
— Se ela está cedendo tão rápido, é porque deve estar realmente
doente — Luk comentou para Marcus atrás de mim.
Ele grunhiu uma resposta em concordância.
— Vocês falam como se eu fosse uma criança mimada e teimosa. —
Bufei.
— Ora, é você quem está dizendo... — Luk soprou sobre um
pequeno sorriso em seu rosto.
Revirei os olhos, voltando a escanear as centenas de pessoas no
salão. Tirando as mulheres, sem Manon, parecia que menos pessoas
estavam interessadas em mim.
Música fluía pelo ambiente, assim como risadas e o tintilar de copos
em conversas leves.
Havia algo que me atingia toda vez que ia para algum evento assim.
Observar a tranquilidade e leveza com a qual essas pessoas ficavam nesse
evento, como se não estivessem sob um constante alvo e risco de o inimigo
com quem conversavam resolver se revoltar naquele instante. Não. Não era
apenas isso.
Era olhar para aqueles sorrisos de porcelana, falsos e afiados, e a
tranquilidade com que lidavam com o sangue em suas mãos.
Todos ali eram criminosos. Assassinos. A elite podre que controlava
a sociedade. Mas se portavam como anjos em festas como esta, que fazia
parecer que estávamos no céu.
Como um diamante de sangue.
— Só beba uma água. Marcus, vá pegá-la, e depois...
— Senhor Vair? — uma voz feminina interrompeu-o em um inglês
um pouco arrastado.
Olhamos ambos ao mesmo tempo para a figura que se aproximava
de nós com mais um de seus sorrisos falsos. Era uma mulher alta, com uma
linda pele marrom escura, que reluzia com as luzes do baile e o forte batom
vermelho em seus lábios, que eram a única coisa que a máscara branca não
cobria.
Se não fossem pelas pequenas linhas de expressão ao lado dos
olhos, aparentes pelos buracos da máscara, e os poucos fios de cabelo
branco em seu penteado trançado, ela poderia se passar por alguém de vinte
anos. Quando ela se aproximou, no entanto, sua postura rígida acentuada
pela magreza em seus ombros, deixando sua clavícula afiada por fora do
vestido verde musgo que ela vestia, assim como o olhar duro, o que fazia
seu sorriso falso dar calafrios, dizia que ela era muito mais velha.
— Não a tinha visto aí, escondido no canto. — Não me passou
despercebido como ela nem mesmo olhou em minha direção, mesmo ao
parar bem diante de nós.
Luk aprumou a coluna, tenso.
— Estou fazendo companhia para a noiva do Senhor Martin — ele
respondeu em um tom frio que jamais o tinha ouvido usar antes, mesmo
quando era direcionado a mim.
— Oh, sim. — Finalmente ela voltou sua atenção para mim. — A
futura esposa do Don. Isabela, não é?
Trinquei os dentes quando a mulher abriu outro sorriso falso e me
olhou da cabeça aos pés, como se visse cada rachadura dentro de mim, o
que me deixou ainda mais irritada.
— Isabel — corrigi com um sorriso tão falso quanto. — E você é...
— Oh — Ela deu um tapinha dramático na testa antes de estender a
mão para mim. — Que educação a minha. Me chamo Olga Gonzáles.
— Gonzáles? — repeti quando compreensão surgiu em minha
mente com o nome ao apertar sua mão de leve. — Como...
— Bem, os Gonzáles são uma família bem grande aqui na Espanha.
Eles são o braço direito dos Del Toro — Luk interrompeu-me com uma
breve explicação ainda na língua em que estávamos conversando, que nada
tinha a ver com que eu estava prestes a perguntar. Qual era o... Então, eu
me liguei.
O nome por onde reconheci veio de Sol Gonzáles, a ex-noiva de
Escobar Padilha. A ex-noiva de dezessete anos fugitiva. O sumiço da garota
foi um estardalhaço. Todos – inclusive quem não fazia parte do círculo
íntimo da máfia – ficaram sabendo. Um verdadeiro escândalo.
Ao notar a forma como a mulher diante de mim hesitava, acho que
talvez ela fosse uma parente próxima da menina. Aquilo deveria ter trazido
a vergonha para a família dela.
Mesmo não entendendo muito como funcionava a dinâmica interna
de cada família, Astrid, assim como Manon e Luk, me disse o suficiente
para eu saber.
Era apenas engraçado ver que todo e qualquer escrutínio que Olga
parecia ter sobre mim sumiu com a mera menção de Sol.
— Bem... — ela abriu um sorriso, com a compostura reposta. — Na
verdade, eu...
— Tia, aqui está você! — Outra voz feminina disse em espanhol
atrás de Olga, que encarava Luk com uma expressão indecifrável.
Ele pareceu ficar ainda mais rígido com o aparecimento de outra
bela morena ao lado da que estava diante de nós.
Olga finalmente se virou para falar com a mulher que era apenas
alguns centímetros mais baixa que ela, com a pele um pouco mais clara
também. O cabelo longo, preto e sedoso estava solto, diferentemente do da
tia. Tirando isso e a máscara de renda preta que a mulher usava, as duas
pareciam cópias idênticas. Mas tinha algo nos olhos grandes e
arredondados, nos lábios grossos e no queixo empinado da recém-chegada
que a tornava única.
— Onde você estava? A festa começou há mais de meia-hora.
A mulher, que não deveria ter mais que vinte anos, abriu um sorriso
tenso.
— Estava terminando de me arrumar — ela respondeu em um tom
seco, nada parecido com a simpatia com a qual chamou Olga, antes de se
virar para nós, ou melhor, para mim. — Meu marido me alertou da sua
presença, é um verdadeiro prazer recebê-la aqui, Isabel, não é? Espero que
me perdoe pela indelicadeza do meu atraso — ela disse em um inglês
perfeito.
Choque passou pelo meu corpo conforme peguei a mão dela, mas
consegui disfarçar em minha expressão quando segurei a mão da mulher de
quem eu já sabia o nome, mas que era completamente diferente do que eu
tinha imaginado.
— De forma alguma. É um prazer.
— Caterina Del Toro — ela disse mesmo assim quando apertou
minha mão de volta antes de soltar.
Não pude evitar em arquear a sobrancelha, esquecendo-me do fato
que muito provavelmente Caterina não poderia ver.
— Não gosta de Padilha?
Algo cintilou nos olhos de Caterina antes de ela abrir um pequeno
sorriso, menos tenso daquela vez.
— É o nome da nossa casta, afinal. Não vejo por que mudar.
— Nem deveria — deixei escapar, recebendo um olhar repreensivo
de Luk ao meu lado e um curioso de Olga.
Mas Caterina apenas sorriu novamente, claramente mais relaxada do
que quando chegou.
— Bom... — Olga disse ao coçar a garganta. — Vejo que agora
estão em boas mãos, se me dão licença... — Então, ela saiu sem nem olhar
para trás.
— Novamente, peço desculpas por não ter estado aqui para recebê-
la assim que chegou, mas espero poder compensar isso ao apresentá-la a
algumas pessoas esta noite.
— Eu adoraria. — Abri um sorriso verdadeiro, o primeiro da noite
desde que havia entrado no covil de cobras, como Luk se referiu.
Falando nisso, não me passou despercebido o fato de Luk ter ficado
congelado ao meu lado durante toda a interação, e quando olhei por cima do
ombro para ele, vi que não estava congelado, estava paralisado. Encarando
Caterina.
Não que ela não fosse compreensível. Ela era linda. Caterina
poderia ser considerada facilmente uma das mulheres mais lindas do salão,
com um lindo vestido preto que caía como luva em seu corpo cheio de
curvas, se destacando apenas pelo detalhe prateado no decote, que reluzia
em sua pele marrom clara com uma linda tatuagem no ombro: um touro
com os olhos vazios e uma meia lua com estrela acima de sua cabeça – o
símbolo Del Toro.
Caterina Del Toro era filha do líder dos Del Toro e única herdeira à
posição. Mas, depois do assassinato de seus pais, Escobar Padilha, seu tio,
tomara o lugar. Apesar de doentio, casamentos assim não eram tão raros ou
discriminados entre as máfias quanto deveriam.
O certo seria ela apenas se casar com outra pessoa quando se
tornasse adulta, mas desde que a noiva de Padilha havia fugido e muitos
ainda queriam a verdadeira linhagem Del Toro no poder, casar com
Caterina foi uma decisão estratégica. Distorcida, mas inteligente. Eu apenas
não tinha imaginado que um homem com quase cinquenta anos, como
Padilha certamente deveria ter, se casaria com uma que mal tinha vinte –
especialmente sendo sua sobrinha. Pelo menos não tinha imaginado até
conhecê-lo. E agora que o fazia, certamente senti mais simpatia pela
menina.
Na minha cabeça, Caterina era mais velha. Talvez rígida, mimada ou
até maléfica como o marido. Mas olhar para a menina que há pouco se
tornara mulher e saber que era casada com aquele monstro... meu coração
doeu por ela. E mesmo Luk tendo apenas trinta anos, ainda era velho
demais para ela. Caterina não precisava de mais problemas em sua vida, e
pela forma como notei que ele a encarava e ela se esforçava para não olhar,
sabia que havia mais nessa história do que poderia contar.
Pigarreei, e finalmente meu amigo me encarou.
— Se não se importa em ficar sozinho, vou rodar um pouco com a
senhora Del Toro.
Caterina abriu um sorriso afiado, que mudou tão completamente
suas feições que, por um instante, esqueci de toda a análise da menina
fragilizada que pensei que ela poderia ser.
— Não se preocupe, cuidarei bem dela — foi a única coisa que ela
disse a Luk antes de praticamente me arrastar pelo braço.
Pude jurar ouvir um rosnado atrás de mim e não consegui deixar de
abrir um sorriso. Tirando Olga, nunca tinha visto uma pessoa tirar tanto Luk
do sério.
— Eu sei que disse que a apresentaria a algumas pessoas —
Caterina disse, fazendo minha atenção se voltar para ela quanto cruzávamos
o salão —, mas acho que é uma segunda tortura, e não compensação.
Meu sorriso se alargou.
— Quer saber? Acho que seremos boas amigas.
Caterina sorriu de volta, me levando para o outro lado, onde uma
outra mulher com pele mais pálida que o lustre no teto do salão já
aguardava, contrastando com seu vestido vinho estonteante, que abria um
enorme decote em sua coxa, combinando com sua máscara vermelha que
ela segurava com uma mão, e que cobria apenas seus olhos.
— Achei que a tinham abduzido novamente — ela falou em inglês
para Caterina quando nos aproximamos, que respondeu com uma risadinha.
— Apenas estava resgatando essa aqui — disse apontando para
mim.
Estendi minha mão para a frente, observando o rosto em formato de
coração se contrair com curiosidade, alguns fios ondulados do seu cabelo
preto caindo em seu rosto repleto de sardas, que apareciam mesmo por cima
da maquiagem.
— Isabel — falei quando ela ainda não tinha segurado minha mão,
mesmo que já tivesse baixado a máscara em seu rosto.
Normalmente eu me irritaria e cairia fora, mas o escrutínio da garota
era diferente do das outras mulheres no salão, por isso aguardei.
— Alessia — Caterina disse em repreenda.
Finalmente Alessia pegou minha mão de volta, um sorriso se
formando em seus lábios ao observar minha tatuagem colorida.
— Vai nos contar como convenceu seu noivo a pintar essa rosa?
Um sorriso similar ao rosto dela se abriu no meu quando dei de
ombros.
— Quem sabe. O que você tem para dar em troca?
Malícia brilhou em seus orbes tão negros que parecia que era
possível se afundar neles. Caterina era linda, mas Alessia? Deslumbrante. E
diferente da menina que vi se esforçando para se manter quando o mundo
parecia determinado a destruí-la. Um olhar para Alessia bastava para saber
uma coisa: ela era fatal.
— A noite é uma criança, podemos descobrir alguma coisa.
E com isso, me juntei às duas. Uma Del Toro e uma que sabia muito
bem agora ser uma Caruso – ainda que houvesse apenas poucos meses.
Ambas parecendo mais do que insatisfeitas em suas posições. Casadas com
homens que odiavam, com seus inimigos. Forçadas pela família, pelo
sangue.
Não pude evitar em abrir mais um sorriso quando brindamos nossas
taças com o champagne caro da noite, um pensamento se assentando em
minha mente: Talvez esta noite eu não conseguisse apenas uma aliada, mas
duas.
As mentiras que eu não te contei
“Apagam-se as luzes neste lugar
E ela brilha como uma estrela
E juro que já conheço o seu rosto
Só não sei quem você é
E continua aqui’’
Closer J2 feat. Keeley Bumbford

Estava a caminho do escritório quando recebi uma chamada de um


número desconhecido. Parei de andar no corredor e ergui o queixo
indicando para que Luk continuasse sem mim antes de atender o telefone.
Cautela tomou meu corpo quando uma voz feminina atingiu meus ouvidos.
— Manon Martin... — a mulher falava em um tom baixo, como se
estivesse sussurrando.
— Com quem eu falo?
— Conheci sua esposa no baile há algumas noites, sou Caterina Del
Toro. — Cruzei os braços, passando a prestar mais atenção na conversa.
Isabel e eu trocamos informações do nosso progresso no fim da
noite. Ela acreditava que havia conquistado a confiança das duas esposas
mais poderosas da tríade, Caterina, por ser mulher de Escobar Padilha, e
Alessia, por ser de Lino, já que, apesar de ele não ser o líder, era o mais
próximo de Vendetto, considerando que ele não tinha esposa. Ambos nossos
maiores inimigos, mas se jogássemos com as cartas certas, poderíamos
derrubá-los sem dificuldade. Mas só porque elas pareciam ter criado um
tipo de laço naquela festa não significava que eu confiava ao menos um fio
do cabelo da minha mulher ou meu a qualquer uma delas.
— Senhora Del Toro, seu marido sabe que está ligando para o
inimigo?
— Meu marido não sabe de muitas coisas, e teria mais cuidado ao
falar comigo se quer que continue assim — ela respondeu em um tom tão
seco que arqueei a sobrancelha.
Um sorriso involuntário surgiu em meu rosto. A garota tinha garras,
como alguém que eu conhecia. Não era à toa que Isabel simpatizou tanto
com ela.
— Como posso saber que ele não está do seu lado agora enquanto
conversamos? — questionei interessado.
— Da mesma forma que eu não tenho como saber que não irá contar
ao meu marido sobre minhas... transgressões.
Não respondi nada enquanto pensava. Confiar nela era um
movimento arriscado, mas não poderia descartar a possibilidade da aliança
que precisávamos.
— Eu quero uma coisa de você — ela voltou a falar depois de
alguns instantes, como se lesse meus pensamentos.
— Que seria? — perguntei ao voltar a caminhar.
— Quero que prometa que irá me apoiar quando minha parte do
plano começar. Prometa que receberei o apoio dos Martin ao tomar o lugar
do meu marido.
— Palavras são promessas vazias — disse condescendente, virando
no corredor antes de parar diante da minha porta. — Pensei que soubesse a
essa altura, Senhora Del Toro, que não se deve confiar nas palavras de um
homem como eu.
— Não confio. É por isso que tenho algo para minha garantia.
Rangi os dentes com sua resposta.
— E o que seria?
Pude jurar ouvir o sorriso na voz da garota antes de ela responder.
— Você irá descobrir quando for a hora certa — foi tudo que ela me
falou antes de desligar.
Cacete. Fechei os olhos com força e respirei fundo. Essa menina
seria uma puta dor de cabeça se não conseguisse o que queria, disso eu
tinha certeza. Mas ao contrário do que ela pensava, se o plano desse certo
realmente, não sobrariam homens para apoiá-la, muito menos homens para
ela governar. Teria que conversar com Isabel sobre isso.
Abri a porta e entrei no escritório, e foi como se o mero pensamento
que teria que conversar com ela a tivesse invocado, já que ela estava à
minha mesa, sem sinal algum de Luk na sala.
— Ma puce, o que... — Parei de falar ao notar sua expressão severa,
como uma máscara fria por cima do seu olhar flamejante. Ela estava
irritada. E não foi à toa, percebi, quando olhei para o que ela estava
segurando em suas mãos enquanto lia os papéis em cima da minha mesa.
Isabel fechou os lábios em uma linha firme, e jogou-os em minha
direção, fazendo com que eles se espalhassem no chão, exceto pela foto do
homem de pele marrom que olhava para o horizonte enquanto atravessava a
rua de uma pequena viela em uma vila isolada. Chaol.
— Pode me dizer o que isso significa? — A voz de Isabel me fez
olhar de volta para ela. Dessa vez, a máscara fria tinha sido substituída por
uma de mágoa.
— Amor...
— Pode — ela me interrompeu, erguendo a mão para que eu parasse
de andar em sua direção — me explicar como caralhos ele está vivo? — ela
disse apontando para o arquivo espalhado no chão.

Nossos olhos não se destravaram enquanto eu sentia que um balde


de água fria era jogado em meu corpo. Só que a água não escorria, ela
entrava pelos meus poros, pesando sobre mim e me afundando, como se me
afogasse de dentro para fora. Correndo livre por minhas veias, me
intoxicando como uma chama fria contraditória ao incêndio que surgiu
dentro de mim desde que a minha vida virou de cabeça para baixo com o
sequestro da minha irmã.
Nessas últimas semanas, Manon, Luk e eu nos reunimos no
escritório para discutir estratégias, e depois de decidirmos, nos encontramos
com os outros. Astrid e Can estavam em casa, Dick não podia ser
encontrado em nenhum lugar – o que em breve poderia ser um problema, já
que precisávamos dele, e agora precisávamos de mais aliados. Tinha vindo
mais cedo para encontrar com Manon, e percebi uma das gavetas da mesa
entreabertas. Uma coceira tomou meus dedos, e a abri sem pensar. Manon
não me escondia mais nada desde que prometeu que agiríamos como iguais,
e mesmo sentindo uma pontada de culpa por mexer nos seus documentos, já
que ele tem mantido sua palavra até então – ou assim eu pensava –, algo em
mim dizia que havia algo a mais. Como eu queria estar errada.
Quando abri o arquivo e vi fotos de Chaol, meu corpo inteiro ficou
tenso. Poderia ser um arquivo antigo, mas as datas e o que estava escrito
pelos homens que Manon mandou segui-lo diziam o contrário. Chaol, que
na verdade não era apenas um mercenário comum da máfia, e descobri se
chamar Chaoldan Ab Salah, era príncipe de um dos reinos mais importantes
no ramo do petróleo na Arábia Saudita, e estava muitíssimo vivo, ao
contrário do que acreditávamos.
Meu estômago se revirou com a sensação da traição. Há quanto
tempo ele sabia disso? Por que ele não me contou? Se ele sequer
desconfiava, teria dito para mim, não teria? Os documentos em minhas
mãos provavam que não. Não diria.
Luk entrara no escritório pouco tempo depois, mas ao ver o que
segurava, saiu para que eu pudesse conversar a sós com Manon.
Observei o homem diante de mim. Sua postura tensa sobre os
músculos delineados na camisa social e calça pretas que eram seu uniforme
diário, como eu caçoava, mesmo que a visão sempre me deixasse quente
por dentro. Os cabelos estavam desgrenhados, como se ele tivesse passado
muitas vezes a mão em seus fios, por frustração. A mandíbula estava
cerrada e seus olhos verdes estavam tão cheios de calor que, se não
estivesse sentada, minhas pernas teriam ficado bambas. Foi a minha vez de
travar o maxilar com essa conclusão, pois, mesmo estando puta da vida com
ele, chateada por ter me escondido algo tão importante, eu ainda me sentia
orbitando de volta para ele. Como se fosse impossível de evitar.
Lágrimas de frustação e raiva surgiram em meus olhos, e eu trinquei
com mais força meus dentes, me recusando a chorar naquele momento.
— Há quanto tempo você sabe? — perguntei, ainda que ele não
tenha respondido nada do que falei anteriormente.
Os ombros de Manon se curvaram, em uma postura de derrota, e ele
suspirou fundo.
— Ma puce...
— Há quanto tempo? — repeti, sentindo-me aliviada por minha voz
não ter saído trêmula.
— Alguns meses depois que fugimos.
Foi como levar um soco no estômago. Ele sabe há mais de um ano
que esse homem está vivo e não me disse nada? Levantei-me, sentindo-me
zonza pela informação. Quando cambaleei e ele ameaçou vir em minha
direção, não aguentei.
— NÃO CHEGUE PERTO DE MIM! — Explodi.
Manon cerrou as mãos ao lado do seu corpo e engoliu em seco.
— Sei que errei em não lhe contar.
— Errar? — Soltei um riso sem graça, dessa vez enfrentando-o de
frente. — Errar é atirar fora do alvo. Errar é esquecer a luz do banheiro
acesa quando você toma banho. Errar não é esconder algo assim por meses
— frisei, sem mais me importar se as lágrimas caíam ou não. — Sabendo o
quanto significava para mim. Não é fazer eu me sentir louca ao recusar
acreditar que Rosa está viva quando ele — apontei para a foto no chão,
perto do pé de Manon — conseguiu sair vivo também.
— Isa...
— É por isso que não me contou, não é? — interrompi quando a
compreensão me atingiu. — Porque você sabia que, se ele conseguiu viver,
haveria chances de Rosa ainda estar viva.
— Não ouse dizer algo assim sobre mim — ele rebateu ofendido. —
Não é como você está pensando.
— ENTÃO, O QUE É? — Exaltei-me novamente. — Diga-me,
Manon, porque estou cansada de descobrir tantos segredos do homem que
deveria me amar, que tinha prometido me contar tudo.
Manon suspirou e assentiu.
— Podemos nos sentar?
Parte de mim queria dizer não e sair daqui. Não apenas do
escritório, mas desta casa. Parte de mim queria deixá-lo para sempre por
essa traição, que ainda queimava no meu peito, e procurar minha irmã por
conta própria. Mas a outra parte, a que estava com bastante raiva agora,
queria ouvir o que ele tinha a dizer. Queria me resolver com ele e deixar
isso para trás e seguir em frente, porque já havíamos passado por tanto, e eu
tinha certeza de que perdê-lo acabaria comigo. Então, mesmo relutante, me
sentei na cadeira em frente à mesa enquanto ele se sentou na outra ao lado,
optando por não ficar muito longe de mim, quase como se tivesse medo de
que eu fugisse durante a conversa.
— Depois que fugimos, eles sumiram do radar, como você já sabe
— ele começou a falar, sem desviar o olhar do meu. — Não pudemos
presumir outra coisa que não a morte deles. Mas isso não significou que não
botei homens para ficarem de olho. Não lhe contei nada, pois não queria
que criasse falsas esperanças, e como, por muito tempo, não tinham achado
nada, resolvi deixar para lá de vez. — Algo no começo dessa confissão
pareceu acalmar um pouco dessa fera dentro de mim, mas foi substituído
pelo bolo de emoção com as lembranças daqueles dias não tão distantes
assim.
— Mas encontraram algo — rebati, querendo voltar a sentir a raiva
que estava sentindo no começo dessa conversa.
Manon assentiu.
— Alguns dos homens infiltrados na Arábia Saudita me mandaram
fotos de um homem muito parecido com o que descrevi, em Ardh Sams, um
dos reinos parceiros das famílias. Quando recebi, soube que era ele —
admitiu. — Quis lhe contar na mesma hora, mas você mal comia, dormia ou
falava, e não queria arriscar piorar sua situação.
Quando permaneci em silêncio, ele continuou:
— Eu não desisti das buscas. Tinha homens dentro do palácio
buscando por qualquer pista, mas não havia sinal de Rosa. Aparentemente,
Chaol estava lá desde pouco tempo depois de tudo, e não saiu mais. Era
arriscado demais, e expor os soldados infiltrados só causaria problemas.
— Só porque não a encontraram com ele não significa...
— Lembra da última coisa que falou para Chaol? — Manon
questionou, me interrompendo.
Meu coração se apertou ao voltar para aquela noite. Não que eu já
não fizesse isso com frequência. Repassei tantas vezes em minha mente que
recordava de todos os detalhes.
— Você prometeu caçá-lo — ele pontuou.
— Acha que ele está lá se escondendo de mim? De nós? — Não
parecia algo que Chaol faria.
Manon balançou a cabeça.
— O que eu acho é que há muito mais por trás dessa história do que
sabemos. E que, mesmo sem a confirmação, não há como Rosa estar em
algum outro lugar sem estar morta.
Toda vez que Manon falava aquilo era como se eu levasse um soco
no estômago.
— Não é você quem decide isso — rebati.
— Ma puce...
— Não podemos desistir, Manon. — Quando ele pareceu querer
rebater, suspirei fundo. — Eu entendo por que fez o que fez, ainda que
tenha sido errado, mas isso não muda o fato de que ela ainda pode estar
viva. — Encarei-o suplicante. — Não me peça para desistir dela — pedi. —
Eu deixei de lado as buscas por todo esse tempo porque não havia
esperança, mas se Chaol está vivo, então há uma chance...
— Você não entende, amor — ele disse segurando minha mão. Seu
toque queimava, e eu logo me afastei.
— Não. Você quem não entende — disse de pé, olhando-o com
veemência. — Se você não quer acreditar que há uma chance, tudo bem,
mas não me peça para parar de procurá-la, ou parar de acreditar. — Então,
me virei para sair da sala.
— Eu nunca parei de procurá-la. Mesmo sabendo que não há
como... eu ainda não parei, ma puce. Porque sei que isso é importante para
você. Sei que não lhe contei antes, e sinto muito, mas estou dizendo agora
— ele falou, e eu parei, com minha mão na maçaneta.
Parte de mim respirava aliviada ao saber disso. Assenti antes de
abrir a porta.
— Eu agradeço, Manon, de verdade. Mas só porque não a encontrou
até agora não significa que não iremos encontrá-la. Apenas que deveríamos
continuar tentando.
E com isso, eu saí da sala.
Quem eu tenho que ser
“Está esperando nas sombras
Todos os meus sentimentos assombrados
Me atingem como flechas
Tão fundo, onde o sangue é escarlate
É assim que isso acaba?
É assim que isso acaba?
Esse coração de vidro está se quebrando em pedaços
Quebrando em pedaços’’
Glass Heart, feat. Sam Tinnez

ALGUMAS SEMANAS DEPOIS

Dizem que o casamento é um momento mágico. É como realizar o


conto de fadas, o seu sonho desde pequena, caso sempre tenha sonhado com
se casar. O momento em que se escolhe o vestido, que se caminha até o
altar, que se diz a pequena palavra que fará a união entre você e o seu
verdadeiro amor ser eterna. Mas o que não comentam é como os momentos
que vêm antes desses são tão estressantes que dá vontade de vomitar. Na
verdade, era isso que eu tinha acabado de fazer depois de provar alguns
sabores de bolo e metade da prova para a mesa do buffet.
Dei descarga e fui até a pia, minha pele se arrepiando com o contato
da água gelada. Ainda não era inverno, mas o tempo começou a esfriar. Não
que eu reclamasse naquele momento, pois estava suando mais do que o
normal.
Eu estava exausta. Sentia como se tivesse correndo uma maratona
ao mesmo tempo que respondia as provas mais difíceis de matemática, na
época do colégio.
Encarei-me no reflexo do espelho. É, eu estava péssima.
As marcas roxas debaixo dos meus olhos, destacadas pela minha
pele pálida e o cabelo oleoso de uma semana sem lavagem, era resultado de
várias noites sem dormir planejando o casamento.
Poderíamos ter contratado uma empresa, mas não queríamos que
ninguém de fora ficasse transitando aqui em casa, portanto a tarefa sobrou
para mim e Astrid.
— Tudo bem aí? — ela perguntou da porta do banheiro.
Dei mais uma descarga e lavei a boca antes de sair do banheiro.
— Acho que isso é um “não’’ para camarões. — Astrid caçoou
quando eu me joguei na enorme cama do quarto dela.
Grunhi.
— Por favor, vamos parar de falar de comida. Não aguento mais
provar nada. — Acho que vou sobreviver um mês inteiro sem comer por
tudo que ingeri na última semana.
Astrid riu e se jogou ao meu lado.
— Tem razão. Não queremos não caber nos nossos vestidos
fabulosos dias antes do seu casamento.
Assenti, me permitindo ficar com os olhos fechados por mais uns
instantes, mesmo sentindo os da minha amiga me encarando.
— Você parece cansada.
— Ah, não diga, Sherlock — zombei, me obrigando a me sentar.
Uma coisa que gostava nela era quem eu me tornava em sua companhia.
Astrid era uma garota engraçada e divertida, ainda que eu pudesse
ver aquele traço de escuridão em seu olhar. Ela me lembrava Lydia, pelo
jeito destemido e a forma como dizia tudo na lata. E ela era a melhor amiga
da minha irmã, e também estava sofrendo com a falta dela. Isso era algo
que nos unia mais do que poderia explicar.
— Temos tanto a fazer ainda.
Ela suspirou, também cansada. Virei-me para ela e segurei sua mão.
— Obrigada por estar me ajudando a fazer isso.
Astrid sorriu, um pouco desconcertada.
— É o mínimo que posso fazer por vocês terem deixado que eu e
meu irmão ficássemos com vocês.
— Vocês não nos devem nada — retruquei. — Na verdade, eu quem
devo a vocês. — Os dois cuidaram de Rosa quando eu não estava lá. Eles a
amaram e protegeram tanto quanto puderam, por aquilo eu seria
eternamente grata.
Astrid apertou de leve minha mão.
— Você é igualzinha ao que ela dizia de você.
Falar sobre ela enviou uma pontada no meu coração.
— Rosa falava muito em mim?
— O tempo todo — Astrid respondeu. — Dizia o quanto aprendeu
com você, quão incrível você era, quanto sentia sua falta.
Ouvir aquelas coisas não estava ajudando o bolo de emoção na
minha garganta a diminuir.
— Eu também sinto muita falta dela — comentei baixinho.
— Eu sei. — Astrid se aproximou e me abraçou. — Isso que está
fazendo por ela é incrível. Aposto que ela ficaria muito feliz em participar
do plano, e de nos ajudar com o casamento.
Um sorriso torto se abriu em meu rosto.
— Ela iria me matar se soubesse qual vestido escolhi.
Astrid riu, sabendo exatamente o porquê.
— Rosa era romântica e antiquada.
A vontade de corrigi-la foi como uma pontada no estômago. Outra
que não veio do enjoo que ainda sentia. Ela é romântica e antiquada.
Segurei-me, no entanto.
Desde a conversa no escritório com Manon, concordamos em
discordar quanto ao paradeiro de Rosa. Não disse aos outros o que descobri,
nem mesmo à Astrid. Parte de mim se sentia culpada por isso, mas
honestamente? Parte de mim temia que ela já soubesse, assim como Luk,
pois então eu me sentiria ainda mais traída do que quando descobri que
Chaol ainda estava vivo.
— Muito. Eu sempre fui a irmã que matava a moda — foi o que eu
disse ao invés disso, com um sorriso ao pensar nas caretas que ela fazia com
a minha escolha de vestimenta ao longo dos anos. Não era hora de remoer
sobre aquele assunto novamente, especialmente tendo que resolver tantas
coisas.
Astrid e eu ficamos em um silêncio confortável por um tempo,
tomando coragem para voltar a fazer as tarefas, quando Astrid finalmente se
levantou depois de alguns instantes.
— Ok, já decidimos cores, convidados, jogos de mesas, e o bolo —
ela listou tudo que organizamos. — Acho que vou chamar reforço para o
resto do buffet. Luk e Can dão conta. Você ainda está um pouco verde.
Ergui o meu dedo para ela, que saiu rindo de mim.
Sozinha, me deitei novamente e suspirei. Estava realmente muito
cansada por todos os preparativos, mas não era a única razão para não estar
conseguindo dormir direito. Tinha mais pesadelos a cada dia, e Manon
estava começando a ficar preocupado.
Eu mentia toda vez, dizendo que não me lembrava sobre o que
sonhei para não ter que falar em voz alta que sonhava com todos morrendo
em nosso casamento, com Rosa invadindo e matando todos, deixando a
mim por último. Isso quando não era Manon quem matava todos e me
deixava, dizendo que não podia fazer aquilo. Ambos finais se misturavam e
entrelaçavam, rondando minha cabeça mesmo quando não estava dormindo.
Então, vinham as outras preocupações. Desde a festa da tríade, parte
de mim não conseguia parar de pensar se talvez o plano não desse em nada.
Afinal, qual era o nosso plano? Tínhamos que buscar aliados antes de
começar uma guerra entre as famílias, até reunir informação o suficiente
para mandar para a inteligência e prender todos. Era falho e poderia
demorar anos, se não décadas, antes de conseguirmos algo. Isso se não
perdêssemos e acabássemos mortos. Especialmente quando uma das nossas
aliadas queria se tornar a chefe no lugar do marido infernal.
Parte de mim questionava se valia mesmo a pena, se arriscar tudo
por uma chance de vingança, agora não apenas minha, inclusive meu
relacionamento com o homem que amava, valia a pena. Desde aquela noite,
e com a recente descoberta, uma dúvida acabou se firmando em minha
mente. Se Manon seria realmente capaz de manter sua promessa, se, mesmo
que vencêssemos, ele iria querer sair do submundo e deixar de ser o Don.
Comecei a me questionar sobre limites.
Quão flexível eu era se as coisas dessem errado? Eu deixaria de
lado essa vingança?
Mas então a outra parte, a parte sombria, que me pegava à noite nos
pesadelos ou na insônia, me dizia que não. Eu tinha que saber que me
vinguei de todos deles para dormir tranquila. Eu tinha que fazer aquilo para
seguir em frente. Então, ficava assustada ao notar que talvez eu terminasse
sozinha. Que eu o perderia.
Naquela noite, fizemos tudo que pudemos. Reunimos contatos,
possíveis aliados – Caterina poderia ser útil quando chegasse a hora, assim
como Alessia. Uma sensação de satisfação surgiu quando voltamos para
casa, apenas para ser apagada novamente, pois agora o próximo passo
estava incerto.
A reunião foi uma forma dos Caruso e Del Toro verem quão firmes
os Martin ainda estavam. Éramos, afinal, as três maiores e mais poderosas
famílias, mas aquilo não significava que não havia uma mudança nas
posições, especialmente com tudo que aconteceu com Lorenzo e Popov.
Tínhamos que fazer a guerra antes que ela chegasse à nossa porta, mas não
tínhamos certeza se conseguiríamos.
O toque do meu celular me tirou do meu estupor. Franzi o cenho ao
ver que a chamada era de um número desconhecido, sem ID. Levantei-me
devagar da cama, ainda meio tonta e me sentindo um pouco fraca depois de
vomitar. Assim que atendi, no entanto, entrei em estado de alerta.
— Isabel? — uma voz feminina questionou do outro lado da linha.
— Aqui quem fala é Alessia Carus... Milani. Eu preciso da sua ajuda.

— Não. — Balancei a cabeça, tentando ignorar a pontada de


decepção no rosto da minha mulher.
— Ela precisa da nossa ajuda — Isabel rebateu, cruzando os braços
diante de mim.
Estávamos ambos nos preparando para dormir. Tivemos semanas
estressantes desde o baile, Isabel ainda mais com os preparativos para o
casamento, já que estava fazendo praticamente sozinha. Parte de mim se
sentiu culpada ao notar as olheiras e a expressão cansada nela.
Mesmo com o dia cansativo, ela ainda era linda. Com a porra da sua
camisola vermelha e um pouco transparente, não me privando a visão dos
seus seios perfeitos e sua boceta gostosa e suculenta onde eu adoraria me
enterrar naquela noite. Não o faria, no entanto. Ela precisava descansar. E
toda vez que começávamos algo, não era capaz de parar até o amanhecer.
— Alessia Caruso não é da nossa conta — respondi, voltando ao
rumo da conversa quando parei de secar o corpo da minha futura esposa. —
Não precisamos antecipar a guerra, e pode ter certeza de que, no momento
em que Lino descobrir onde sua esposa está escondida, é exatamente o que
traremos.
— Podemos usá-la — Isabel sugeriu, inabalada na discussão em
receber a esposinha fugitiva e seu irmão, que por acaso era da família
inimiga dos Caruso. — Ela tem informações, pode nos dar coisas para usar
contra os Caruso. Além disso, a presença dela aqui pode ser usada como
moeda de troca com Lino. Podemos enrolá-lo, impedir que nos ataque.
Soltei um longo suspiro, puxando a calça para baixo e ficando
apenas de cueca depois de tirar meu relógio e a camiseta. Minha pele
esquentou, já sabendo o que eu encontraria quando ergui o olhar: os orbes
lascivos e deliciosos da minha mulher me secando.
Abri um sorriso. Talvez ela não precisasse de descanso, afinal.
Quando ela cambaleou para a cama, no entanto, grunhi e ajeitei meu pau,
me deitando ao lado dela, puxando-a para o meu peito.
— Durma, ma puce. Amanhã, temos um dia cheio.
— Vai mesmo acabar a nossa discussão assim?
— Não estamos discutindo — respondi, beijando sua cabeça antes
de apagar a luz do quarto. — Você me pediu algo, e eu disse não.
— Se acha que isso vai me impedir, está muito enganado. — Seu
comentário me fez acender a luz novamente.
— O que quer dizer?
Isabel se sentou no colchão, retirando fios invisíveis do nosso
lençol.
Trinquei os dentes.
— Isabel?
Ela finalmente ergueu o rosto para mim, e não precisei nem mesmo
perguntar, pois sua expressão desafiadora já me dizia tudo.
— Eles chegam pela manhã — informou.
— Porra! — exclamei, me levantando.
— Alessia é uma aliada, e não a ajudar nos colocaria em maus
lençóis — ela disse impassível.
— Ela é uma aliada enquanto dorme com o inimigo e não nos causa
dor de cabeça — rebati exasperado ao me virar para ela. — Eles não vão
vir.
— É tarde demais.
— Eu digo quando é tarde demais! Eu sou a porra do chefe! —
alterei-me.
— E EU SEREI A SUA ESPOSA! — Ela também levantou a voz,
se levantando da cama. Seus olhos brilharam. — Pensei que tivesse dito que
eu seria sua igual. Que, se eu quisesse reinar, bastava pedir. Que eu tenho
tanto poder quanto você.
Exalei, abaixando a cabeça para me acalmar.
— Isso não é a questão aqui. Você é a minha igual.
Isabel arqueou a sobrancelha.
— Não pareceu assim quando me escondeu a verdade sobre Chaol.
A raiva que eu mal estava conseguindo controlar voltou com força.
— Eu errei, e já disse que sinto muito. E mesmo tendo escondido,
nunca parei de procurar Rosa por você. — Relembrei. — Sempre lhe digo
tudo que vou fazer antes de ser feito quando se trata dos negócios, e quando
não chegamos a um consenso, deixamos para lá. Você sabia que eu iria
dizer não, e fez mesmo assim — acusei.
— PORQUE EU NÃO PRECISO DA SUA PERMISSÃO PARA
FAZER ALGO!
— QUANDO ENVOLVE TRAZER GUERRA ATÉ A MINHA
CASA E A MINHA FAMÍLIA, PRECISA SIM! — rebati, ficando cara a
cara com ela.
Encaramo-nos por alguns instantes. Raiva transpassando por ambos,
mas a mágoa que surgiu no rosto dela me fez hesitar.
— Pensei que fosse nossa casa, e nossa família.
Fechei os olhos com força. Porra.
— Ma puce, eu... — Tentei alcançá-la, mas ela se afastou.
Isabel riu com escárnio.
— Não sei por que pensei que seria diferente. — A dureza em seu
olhar quando me encarou enviou calafrios gelados pela minha coluna. — A
minha família morreu — ela declarou. — Minha mãe está deprimida e
isolada, ela nem sabe que estou viva porque não tenho coragem de
encontrá-la. Meu pai está morto, e minha irmã está...
— Está? — perguntei seco. Não estava gostando nem um pouco do
rumo dessa conversa.
— Ela está desaparecida. Enquanto isso, eu fico brincando de
casinha com você. — Soprou.
Naquele instante, foi como se todas as paredes ao meu redor
diminuíssem.
— Não — neguei, me aproximando dela. — Você não vai fazer isso
de novo.
Depois que nos resolvemos, concordamos em discordar. Eu achava
que Rosa estava morta enquanto Isabel se recusava a deixar para lá. Era um
assunto delicado, que, toda vez que era trazido à tona, terminava com um de
nós chateado.
— NÃO VENHA ME DIZER NO QUE ACREDITAR OU NÃO,
MANON! — Isabel gritou, se afastando de mim novamente.
Porra, cada vez que ela fazia aquilo era uma faca no meu coração.
— Eu sei que ela está por aí.
— ROSA ESTÁ MORTA, CARALHO! — gritei, descontrolado.
Isabel arregalou os olhos, chocada com a minha reação. Suspirei
fundo, tentando me acalmar, mas encará-la enquanto ela chorava e me
afastava não estava ajudando.
Fui em direção à porta.
— Ela morreu há um ano, e de alguma forma, a porra do fantasma
dela é mais importante do que o fato de eu ainda estar aqui — falei
encarando a maçaneta.
— Manon... — Senti-a se aproximar.
— Mesmo sendo contra tudo que acredito, ainda tenho homens
procurando por sua irmã, você sabe disso. Eu estou desistindo de tudo que
fiz, de tudo que conheço por você, ma puce — falei em um tom baixo, mas
sabia que ela escutava cada palavra. — E você é a minha igual. Você é. Mas
se você não deixar de lado essa história que ela ainda está viva e continuar
agindo pelas minhas costas, você...
— O quê? — ela desafiou, com a voz rouca.
Fechei os olhos, saindo do quarto, incapaz de continuar com o que
ia falar. Pois uma vez que dissesse em voz alta aquilo, sabia que não haveria
volta. E eu ainda não estava disposto a deixá-la ir. A deixá-la me perder.
Não posso te perder novamente
“Sonhos lutam com máquinas
Dentro da minha cabeça como adversários
Venha lutar para me libertar
Purificar a partir da guerra
Seu coração se encaixa como uma chave
Na fechadura de uma parede
Eu viro-a, eu viro-a
Mas eu não posso escapar’’
Hurts like hell, Fleurie

— Você precisa comer. — Astrid insistiu, oferecendo a bandeja de


comida que a esposa de Marcus, nossa nova cozinheira, fez.
Observei a cena da porta, escondido pelo batente. Era a única
maneira com que eu conseguia vê-la. Isabel ficava trancada no quarto na
maior parte do dia. Apenas o médico e Astrid entravam. Nas raras vezes em
que saía, mal nos esbarrávamos. E quando ela colocava os olhos em mim,
aquela maldita expressão perdida que ela tinha acabava comigo toda vez.
Ela me evitava tanto quanto eu a evitava. Não conseguia vê-la
sofrer daquele jeito sem querer quebrar alguma coisa ou matar alguém. O
problema era que os demônios com os quais ela lutava não eram físicos, e
ela mostrou que não estava disposta ainda para me deixar entrar e ajudá-la
com essas batalhas.
Porém, mesmo sendo doloroso para caralho, havia vezes, como
agora, em que não conseguia me impedir de ir vê-la, mesmo que por alguns
momentos. Os vislumbres dela dormindo pacificamente na cama, por estar
dopada dos remédios, ou quando Astrid a arrancava de seu estupor por
momentos o suficiente para que eu ouvisse sua voz, me faziam ter
esperança de que um dia eu a teria de volta. Eu ainda não estava disposto
a deixá-la ir, mesmo que fosse egoísta e que talvez mandá-la embora fosse
o melhor para nós dois. A ideia de tê-la longe de mim doía fisicamente.
Mais do que a dor em ver seus olhos sem vida encarando a janela,
ignorando totalmente a presença da amiga.
— Já faz dois dias que não come nada. Se não quer ficar doente, é
melhor comer — Astrid continuou.
Isabel finalmente soltou um suspiro, e a porra daquele som me
deixou hipnotizado, caralho. Eu já estava ficando louco. Depois de meses
sem tocá-la, sem ser tocado, sem ter uma sequer fuga do inferno que estava
a minha vida, aquele maldito suspiro era capaz de reacender todas as
chamas do meu corpo.
Então, algo louco aconteceu. Isabel ergueu o seu olhar para a
porta, bem na dobradiça, diretamente para mim.
Meu corpo inteiro formigou. Meu coração acelerou tanto que pude
jurar que ela poderia escutar. Isabel não moveu o olhar, e ficamos ali,
trancados um no outro, mesmo que estivesse escondido através da madeira.
E mesmo que aqueles poucos segundos tenham passado, com ela logo
desviando os olhos novamente, voltando a ficar vazia, não pude deixar de
ter um único pensamento. Aí está você, aí está a minha garota.
Nada estava totalmente perdido.
Dizer que eu dormi mal seria eufemismo. Depois da briga com
Manon, estava chateada demais para tentar procurá-lo, e logo depois, outra
onda de tontura e enjoo me tomou. Deitei-me até melhorar, mas não tive
forças para sair da cama novamente. Os raios de sol entraram pelas janelas,
e eu soltei um longo suspiro.
Não consegui fechar os olhos nem por um instante, com medo de
Manon voltar para o quarto para pegar qualquer coisa e eu o perder de vista.
Tínhamos que conversar. A briga de ontem saiu do controle. Eu percebia
que errei ao aceitar Alessia e seu irmão em casa sem nem mesmo cogitar
que poderia ser uma armação dos Caruso, para, como Manon disse, trazer a
guerra até nós. Ou talvez eles quisessem informações de dentro, para usar
contra nós. Era difícil acreditar, afinal, que a esposa de um capo tão
poderoso iria conseguir fugir assim, sem mais nem menos, muito menos
querer traí-lo ao se abrigar aqui. Mas se havia algo que notei em Alessia na
noite em que a conheci, era que ela tinha algo que a mantinha longe dos
Caruso. Poderia ser seu sangue Milani, já que sua família era teoricamente
inimiga deles, mas algo me dizia que era algo a ver com o próprio Lino.
Talvez ele fosse um monstro ainda pior com a esposa... Seja qual fosse o
motivo, iria usar isso ao nosso favor. Ter Alessia aqui poderia ser arriscado,
mas não adiantava voltar atrás agora, era melhor tirar proveito disso.
Manon estava certo em ter se chateado comigo, mesmo que parte de
mim se sentisse vingada por fazer aquilo sem informá-lo, considerando o
segredo que ele guardou por meses de mim. No entanto, eu lhe devia
desculpas. A forma como me descontrolei ontem, especialmente quando
falei de Rosa... não estava agindo como mim mesma. Eu estava irritada,
sim, e costumo falar besteira quando me sinto assim, mas era como se fosse
uma agitação muito maior do que a situação requeria.
Eu tinha que encontrá-lo logo, me desculpar e poder beijá-lo e sentir
seu toque até apagar o olhar que ele me deu antes de sair do quarto.
“Eu estou desistindo de tudo que fiz, de tudo que conheço por você,
ma puce”. Oh Deus, ele estava. Estava abdicando do papel para o qual
desempenhou por quase uma década, desistindo de sua família de sangue e
arriscando sua vida ao querer se revoltar contra a máfia, tudo por mim. E eu
o amava tanto por isso.
A forma como as coisas aconteceram fizeram parecer que apenas
voltei para Manon para poder me vingar de todos, mas não era a verdade.
Fiquei um ano sentindo um luto profundo, em um lugar tão obscuro
e sombrio que só de lembrar me dá calafrios. Não queria mais ser aquela
pessoa. Eu o amava. E me privar desse amor era uma autopunição que de
nada adiantaria, mas eu nunca poderia ser inteiramente feliz enquanto não
resolvesse aquela pendência. Então, quando meus princípios vieram à tona
e eu dei a ele a escolha de me deixar ir para fazer aquilo sozinha ou seguir
ao meu lado e ele me escolheu sem hesitar, não pude mais resistir ao que
sentia. Entreguei-me a ele. Já tinha me entregado antes mesmo de ele topar.
Eu o havia levado para a sala de jogos naquele dia, pois menti para mim
mesma que seria uma despedida, caso ele negasse, mas agora eu sabia que
nunca poderia partir sem deixar metade da minha alma junto com ele. Seja
qual fosse a escolha que eu fizesse, viveria miseravelmente pela metade
para sempre, e não poderia estar mais grata ao ver que ele não estava me
fazendo escolher.
Depois de receber os meus convidados, que estavam no mínimo
acabados e precisando de descanso, eu segui pela casa à procura do meu
noivo. Rodei por toda a área residencial e a ala norte, mas já estava cansada
demais para andar por aí torcendo para cruzar com ele. Minha ansiedade
crescia a cada minuto em que não nos resolvíamos.
Onde ele estava?
Ao virar a esquina para ir até o escritório, encontrei Luk pelo
corredor.
— Finalmente encontrei alguém nesta casa — comentei quando ele
parou diante de mim.
Luk estava com uma expressão fechada, nada como costumava me
mostrar. Mesmo ele tendo estado estranho desde o baile, havia algo a mais
ali.
— Onde está Manon? — perguntei quando ainda não tinha falado
nada.
Luk deu um sorriso venenoso para mim, parecendo quase
decepcionado.
— Está em Angers, se reunindo com os homens de lá.
Hesitei. Angers? Ele viajou para outra cidade sem me falar?
— Não pareça tão surpresa. Não é como se precisassem pedir
permissão um do outro para fazer alguma coisa — ele bicou.
Luk me encarou com sua expressão sarcástica no rosto, obviamente
sabendo da briga que tivemos na noite anterior. Mesmo sabendo que
merecia aquele tratamento, não significava que não senti uma pontada forte
no peito com a traição. E só de me lembrar da ameaça não dita quando ele
saiu do quarto... “Se você não deixar de lado essa história de que ela ainda
está viva, e continuar agindo pelas minhas costas, você...’’
“O quê?’’ perguntei, mas Manon não me respondeu. Ele apenas me
encarou por alguns segundos antes de partir. Minhas lágrimas caíram
desenfreadamente, pois eu sabia o que ele diria. Perdê-lo.
Encostei-me na parede por uns instantes, sentindo minhas pernas um
pouco bambas.
Luk logo desmontou sua máscara de indiferença e veio até mim.
— Está tudo bem?
— Está, eu... — Balancei a cabeça, mas percebi que foi um erro.
Tudo começou a girar mais e mais rápido, e mal tive tempo de registrar o
que estava acontecendo antes de cair na escuridão, mas ainda pude ouvir o
grito do meu amigo.
— CHAMEM O MÉDICO!
O acaso do destino
“Coração deitado em minhas mãos
Eu nunca quis isso
Esta lágrima nunca vai consertar
Como chegou a este’’
Slip Away, Unsecret feat. Ruelle

— Onde ela está? — perguntei, correndo para dentro da casa.


— Ela está bem agora, a enfermeira está com ela no quarto de vocês
— Luk disse enquanto me seguia, ou melhor, tentava me seguir, já que eu
corria como um maluco pela casa até chegar à minha mulher.
Porra, eu sabia que não deveria tê-la deixado sozinha em casa. A
única vez que fiz isso foi quando um dos meus homens tentou estuprá-la, e
agora ela desmaiou em plena luz do dia.
Cerrei os punhos enquanto subia as escadas. Se Luk não estivesse lá
com ela, e ela tivesse batido a cabeça ou algo do tipo... Porra, havia dois
estranhos na nossa casa agora, não podia tê-la deixado com eles, caso
Alessia estivesse a serviço de Lino ali. Ainda que arriscado, não era uma
possibilidade para se jogar fora. O cara era considerado o diabo por um
motivo: ele tem façanhas imprevisíveis.
Culpa encheu minha garganta como uma navalha me rasgando por
dentro. Eu estava bravo com ela. Bravo por ter recebido Matias e Alessia
sem falar comigo antes. Bravo por ela claramente não ter superado a morte
da irmã. Eu parti sem avisar porque queria que ela acordasse no dia
seguinte e visse que parti. Queria que ela sentisse um pouco do inferno que
eu vivia desde aquela noite, com o constante medo de perdê-la para sempre.
Queria me vingar dela, fazê-la ficar puta por eu ter ido sem dizer nada. Mas
agora, entrar pela porta e encontrá-la deitada na nossa cama com a porra de
um acesso na veia enquanto tomava soro acabou comigo.
A visão dela assim, deitada e pequena comparada ao nosso enorme
colchão, me pegou de jeito. Era tão similar à visão de quando ela estava
aqui, mas não estava. Tão igual que foi como se a navalha tivesse parado
direto no meu coração.
Nesses momentos, em que a via como frágil, e não como a mulher
forte que sempre encarei como igual, era como se tivesse me partindo com
a porra de um tiro de espingarda.
Isabel abriu os olhos quando entrei. A enfermeira se virou para
minha direção e disse algum tipo de cumprimento antes de sair, mas não fui
capaz de responder.
Sequer tirei os olhos dela conforme entrava no quarto. Cada passo
que eu dava me fazia sentir como se pesasse uma tonelada.
— Amor — ela me chamou, se sentando.
— Ma puce... — sussurrei com a voz embargada, sem ligar que
choraria na frente dela.
Nunca senti tanto medo na minha vida. Quando ela estava perdida
mentalmente doía para caralho, mas sempre tinha esperança. Se algo
acontecesse com ela... se ela morresse, eu...
— Vou deixar vocês a sós — Luk disse antes de fechar a porta.
Isabel não estava muito melhor do que eu. Lágrimas caíam de seus
lindos olhos, e nem notei que já estava diante dela até tocá-las com meus
dedos, encostando sua testa na minha.
Quando suas mãos fracas seguraram as minhas, desabei.
— Desculpe por ter ido embora. Sinto muito por tudo — sussurrei
enquanto a agarrava, sua cabeça indo direto para o meu peito enquanto ela
soluçava. Os tremores dos nossos corpos se misturando enquanto eu
também chorava.
— Eu sinto muito por tudo, Manon. Não deveria ter feito nada sem
falar com você antes. Não deveria ter falado daquela forma com você.
— Shhh... está tudo bem — garanti, beijando o topo da sua cabeça.
— Eu não deveria ter gritado, nem a ter deixado.
Isabel assentiu, e quando franziu o cenho irritada, eu sorri. Aí está
você, ma puce.
— Nunca mais faça isso — exigiu.
— Eu prometo.
Limpei o resquício do choro em seu rosto e a olhei de perto. Isabel
estava pálida, suas olheiras se aprofundaram, e notei que estava um pouco
mais magra.
— O que aconteceu?
Ela deu de ombros.
— Estou me sentindo cansada há dias, mas não parei realmente para
comer e beber propriamente. Tenho sentido tonturas e enjoos, e hoje de
manhã foi meu limite.
Suspirei fundo, afundando na cama com ela em meus braços.
— Quer adiar o casamento? — perguntei depois de alguns instantes.
— O quê? Claro que não! — Ela se aprumou. — Não estou
trabalhando igual a uma louca para adiar a data.
— Está desse jeito justamente por estar trabalhando demais —
pontuei.
Isabel sorriu, e aquela porra de sorriso apagou todo o resto. A briga,
a culpa que ainda apertava meu peito enquanto eu a olhava... Porra, eu
amava essa mulher. Amava tanto que doía, caralho. E não pensei que seria
capaz de amá-la mais ainda antes de ela dizer o que tinha para dizer.
— Essa não foi a única razão para isso — ela começou, meio que
sondando minha reação.
Sentei-me na cama e segurei suas bochechas.
— O que foi? — De repente, quis não ter dispensado a enfermeira.
Queria falar com ela ou o médico para saber exatamente em qual pé
estávamos ali. Mas qualquer preocupação a mais sumiu quando ela disse
quase em um sussurro, apenas para voltar como um caminhão desenfreado:
— Eu estou grávida.
Foi como dar um tiro. Foi como tomar um tiro. A euforia de matar
alguém por quem sente um ódio genuíno, olhando seus olhos implorando
por misericórdia, misturada com a porra do melhor orgasmo do mundo ao
mesmo tempo que alguém mete um tiro na porra do seu peito. Tudo ao
mesmo tempo.
— Pardon[10]?
O sorriso de infartar meu coração e fazer meu pau pulsar voltou com
força quando ela repetiu.
— Eu estou grávida. Nós vamos ter um bebê.
Caralho, sim!
Isabel soltou um gritinho quando a deitei e subi em cima dela,
colocando minha cabeça em sua barriga. Não havia saliência alguma ainda,
mas só de saber que ali dentro vivia meu filho, porra... aquela era a melhor
sensação da minha vida.
Minha mulher entrelaçou os dedos em meu cabelo, respirando
pesadamente.
— Vamos ter um filho — repeti com um sorriso idiota no rosto.
Ela assentiu, me olhando com admiração.
— Eu amo você.
— Eu amo você — ela repetiu com novas lágrimas nos olhos. Não
as limpei. Queria tatuá-las em meu peito, na porra da minha alma, assim
como as que agora saíam dos meus olhos.
Porque iríamos ter um filho. Isabel já era minha família, e agora
seríamos uma ainda maior.

Tudo mudou. De repente, todo o medo e preocupação ou qualquer


coisa que tenha passado na minha cabeça nos últimos meses, nos últimos
anos, não pareciam nada comparado ao que eu sentia agora sabendo que
dentro de mim havia um outro ser humaninho. A vingança teria que esperar,
talvez nunca acontecesse. Pois saber que executar algo errado faria com que
machucássemos esse serzinho dentro de mim me fazia colocar em segundo
plano todo o resto.
Não me entenda mal. Saber que abdicaria de algo que pareceu me
mover e me manter viva depois de um ano em dormência era algo que me
fazia parar de respirar com uma pressão enorme nos meus pulmões. Mas o
mísero pensamento de perder esse bebê, ainda que não tenha sido
planejado, ainda que tenha sido algo que jamais senti que reivindicaria com
tanto vigor, já que nunca me imaginei me tornando mãe especialmente tão
jovem... era simplesmente muito pior.
E mesmo ainda sentindo um nó no peito, valia a pena. Porque o
sorriso no rosto do homem que irrevogavelmente teria para sempre meu
coração foi o melhor prêmio de todos.
Ele se virou e começou a sussurrar para a minha barriga, falando
com o nosso bebê. Mesmo que ainda estivesse nas primeiras 4 semanas da
gestação, e que, por isso, ele ou ela ainda não tinha como nos escutar, não
pude deixar de sentir arrepios com a visão do meu futuro marido naquele
momento.
Seu hálito quente tocava em minha barriga, um pouco exposta pelo
tecido da camiseta que subiu em meu corpo, e pequenos tremores tomaram
minha pele com o tom rouco e sussurrado que Manon usava.
Travamos nossos olhares enquanto ele continuava falando sobre
como eu era linda e nosso bebê teria sorte de pegar minha genética, sobre
como ele me amava, sobre como estava ansioso para conhecê-lo ou
conhecê-la. Mais e mais, sua voz foi ficando profunda, fazendo com que
poças quentes se formassem entre minhas pernas.
Eu tinha certeza de que, a essa altura, Manon podia sentir o cheiro
da minha excitação, se seus olhos verdes ficando cada vez mais escuros
fosse alguma indicação.
Remexi-me ansiosa, e ele abriu aquele sorriso torto e safado que foi
como outra onda de choque pelo meu corpo, sabendo exatamente do que eu
precisava.
Então, subiu seu corpo até pairar sobre mim, e mesmo que pudesse
ver o claro volume em sua calça, ele hesitou, olhando para o acesso em meu
braço.
— Estou bem — garanti, tocando seu rosto. — Estamos bem. —
Teria que me acostumar a falar em plural durante nove meses.
O mero pensamento enviou um choquinho que percebi ser de
felicidade pelo meu coração, que no momento bombeava necessidade pelo
homem que eu amava, que seria o pai do meu bebê.
Essa conclusão fez com que outra onda de calor tomasse meu corpo,
até que se tornou insuportável não ser tocada.
— Manon... — supliquei.
Ele finalmente cedeu, me ajudando a tirar o acesso, e logo depois
minha camiseta e calça. Minhas mãos coçaram para arrancar sua roupa, mas
todo e qualquer pensamento coerente sumiu da minha cabeça quando sua
língua circulou meu mamilo esquerdo antes de ele me morder.
Soltei um gemido alto, provavelmente mostrando para todos os
empregados da casa o que meu noivo estava fazendo comigo, mas não me
importei. Nem segurei o segundo gemido quando Manon começou a descer
com beijos possessivos pelo meu corpo, dando um ou dois a mais na minha
barriga, o que me fez contorcer debaixo dele.
Minhas mãos criaram vida própria, passando por seus ombros,
braços musculosos, descendo pelo seu tronco até arrancar sua camisa,
precisando do toque da sua pele com a minha, do seu calor. Grunhimos com
o contato.
Manon continuou beijando cada parte do meu tronco, peito,
voltando para minha boca e pescoço, até que eu estivesse ansiosa demais e
ele finalmente descesse até o meio das minhas pernas, posicionando-as em
cada lado da cama, me deixando completamente exposta enquanto ele
encarava minha boceta.
Seus olhos, cheios de malícia e provocação, continuaram me
encarando conforme ele colocava sua língua para fora e lambia lentamente
toda minha extensão, o contato com seu calor enviando choques por todo o
meu corpo, fazendo-me gritar. Como se ele não resistisse mais a mim,
Manon finalmente agarrou com força as minhas coxas e enfiou a cara na
minha boceta, enquanto me lambia, chupava e mordia com vontade até eu
sentir que estava à beira de um precipício.
Então, ele diminuiu o ritmo, construindo meu prazer lentamente,
gota por gota. Apoiei-me sobre os cotovelos, incapaz de não olhar para
aquele homem enquanto ele me fodia com a língua com tanta vontade, e
rebolei bem na sua cara, prendendo seu rosto à minha intimidade ao segurar
seu cabelo. Agora, eu o fodia, e não o contrário. Pelo sorriso em seu rosto,
similar ao que se abriu em meus lábios, Manon parecia perceber exatamente
aquilo.
Então, ela veio. Como sempre vinha todas as vezes quando estava
nas mãos daquele homem. Furtiva, imperceptível antes de ser tarde demais.
Minha petit mort[11]. Minha pequena morte que me fez me jogar de volta no
colchão enquanto convulsionava sob sua língua, que não parou de entrar em
mim, lambendo cada gota do meu orgasmo.
O mundo escureceu, meus ouvidos zumbiram e minha respiração
acelerou como se tivesse subido uma remessa enorme de escadas e, ao
mesmo tempo, estivesse com energia para mais.
Lentamente, voltei para o planeta Terra, para este quarto, com o
homem que eu amava, e para o meu corpo. Manon estava bem acima de
mim agora. Ele havia se livrado da calça e cueca em algum momento,
deixando seu delicioso pau saltando perto da minha entrada.
Então, agarrando meu quadril, ele esperou apenas um suspiro antes
de entrar em mim por completo, preenchendo-me até o talo.
Agarrei com força seus ombros, fincando minhas unhas em sua pele,
já sentindo a necessidade de outro orgasmo me impulsionar para
acompanhar o ritmo de suas estocadas lentas e cautelosas.
Cada estocada era uma fala. Cada beijo e toque, uma desculpa. Eu
amo você. Eu sinto muito. Eu estou aqui. Era isso que cada movimento em
sincronia dos nossos corpos dizia enquanto ele me levava à beira do
orgasmo novamente. E quando eu arranhei suas costas com tanta força que
senti o líquido quente do sangue em meus dedos, gozando novamente em
torno do seu pau, Manon veio logo em seguida, soltando um grunhido tão
alto que fez cada célula do meu corpo vibrar e cada pelo meu se arrepiar.
Ele desabou cuidadosamente ao meu lado, ambos em uma bagunça
de suor e respirações aceleradas. Encaixei minha cabeça no vão do seu
pescoço, inspirando seu cheiro amadeirado misturado com o cheiro da
minha boceta, tremendo quando ele traçou linhas preguiçosas em meu
braço, sua outra mão como aço em volta da minha cintura.
— Pelo visto, ficaremos sem jogos por um tempo — ele comentou.
Um sorriso se abriu em meu rosto quando levantei minha cabeça
para encará-lo.
— Contanto que tenhamos cuidado e não extrapolemos, não há
problema. Ainda temos nove meses antes de ele ou ela nascer — comentei
afetada com seu olhar amoroso enquanto ele passava seus dedos pela minha
barriga.
— Você tem certeza?
Assenti, já me sentindo pulsar novamente, querendo pedir por mais.
Eu sempre pedia por mais. Com Manon, nunca era o suficiente.
Ele abriu um sorriso sujo antes de se levantar, o que fez com que eu
franzisse o cenho.
— Aonde você vai?
Manon jogou o tecido do meu pijama em minha direção.
— Vista-se — ele ordenou. — Não quero arriscar ninguém a vendo
pelada, ainda mais agora que carrega meu filho na barriga, enquanto
saímos.
— Aonde vamos? — questionei ansiosa, antecipando sua resposta
antes mesmo de ele se virar com uma expressão sombria e deliciosamente
erótica.
— Acho que temos uma punição para você, ma puce. Afinal, você
me desobedeceu, e mesmo sendo minha igual e mesmo que comande tanto
quanto eu, fazemos isso juntos. Para isso, temos que conversar. Sempre.
Engoli em seco com o nó de culpa se formando em minha garganta.
Manon se aproximou e segurou meu queixo.
— Sei que se arrepende e sei que não fará mais isso, mas quero me
certificar de que aprendeu. E para toda lição, há uma punição. — A
rouquidão em sua voz aumentou, um fogo crepitando em seu olhar quando
sua boca chegou a centímetros da minha. — Está preparada para o castigo?
— ele sussurrou sobre os meus lábios.
Nem mesmo hesitei antes de responder.
— Sim, senhor.
Punições e recompensas
“Você se levanta, eu caio
Eu me firmo, você rasteja
Você se contorce, eu me transformo
Quem será o primeiro a queimar?’’
Black Sea, Natasha Blume

O ato de perdoar é mais falho do que pensamos. Muitas vezes,


estamos presos em um ciclo vicioso tóxico. Alguém erra e nos machuca,
perdoamos. A pessoa vai e faz de novo, perdoamos novamente. E então de
novo, e mais uma vez. Perdoamos sem fim, até não ter sobrado um pingo de
vontade de perdoar, e então nos tornamos amargos.
Veja bem, perdoar, como muitos acreditam, é um dom. O ato de não
carregar mais a mágoa que nós sofremos com o peso de tê-la, e não a
pessoa com a qual nos deixou com ela. Mas, por mais santificado que seja
perdoar, não é fácil, e, muitas vezes, confundimos perdão com confiança
cega, em cometer o mesmo erro novamente. Confundimos perdão com
esquecer.
Nunca fui um homem que praticava perdão. Sendo quem eu era,
com a criação que eu tive. Perdoar ou mostrar misericórdia era um ato de
covardia. Se alguém erra ou trai você, então esse alguém assinou a porra de
uma sentença de morte dolorosa e muito sangrenta.
Não me incomodava com esse fato sobre mim mesmo, em carregar
as cruzes dos olhares que levei ao inferno enquanto arrancava suas vidas ao
invés de perdoar e seguir em frente. Mas desde que Isabel entrou na minha
vida, tenho estado em um constante estado de paciência e perdão.
Pendulando entre dar o que ela queria e perdoando quando ela falhava
comigo. E ela falhou. Muitas vezes.
Falhou quando resolveu se infiltrar na minha casa para me derrubar,
falhou novamente quando usou o que eu sentia para conseguir o que queria,
quando me deixou naquela porra de baile beneficente com o desgraçado do
policial maldito que a enganou. E mesmo soando um pouco egoísta, ela
falhou quando voltou para mim, mas não voltou inteira, não como ela
poderia ser, e sim como um fantasma dos acontecimentos do nosso passado.
E então, mesmo escolhendo-a ao invés do sangue, da tinta que
marca minha pele desde os meus dezesseis anos, ao invés do submundo e
da vida que sempre conheci, ela falhou quando ainda hesitava em confiar
em mim. Seja para expor seus sentimentos, no que, em parte, estávamos
progredindo, seja agindo pelas minhas costas, como ela fez ontem, ao
receber o inimigo em nossa casa, colocando não apenas meus homens e a
ela em perigo, mas também o bebê que agora sabíamos que ela carregava. O
nosso bebê.
Perdoar é um ato falho, não porque perdoamos inconsequentemente
repetidas vezes, mas porque, mesmo depois de traírem nossa confiança,
continuamos dando chances, sem mostrar as consequências. Esse tempo
todo em que estive com Isabel, nunca a puni de verdade. Estava na hora de
começar a mostrar o que aconteceria se ela quebrasse minha confiança
novamente.
Estávamos no quarto de jogos, mas não no usual. Esse ficava no alto
de uma das torres da mansão, do outro lado da propriedade. Era ali o quarto
que usávamos com certa frequência, mas, por ser longe demais do nosso
aposento, acabava que tornava chata a caminhada entre um e outro, então o
trancamos. Mas não nos livramos do equipamento. Um equipamento que
não era exatamente como o equipamento ao qual ela estava acostumada.
Deixei que Isabel examinasse o quarto, se familiarizasse com as
correntes no teto, as hastes metálicas na cama, e a tábua de madeira em um
corte redondo, erguida verticalmente na parede com quatro pulseiras de
couro para os pés e as mãos. Meu olhar ficou um tempo a mais no último
artefato, mas resolvi começar com algo fácil para a noite.
Aproximei-me dela como um predador quando ela voltou para o
centro do quarto. Ela não era mais tão inocente nisso como quando
começou. Já tínhamos feito coisinhas o bastante para ela saber como essa
dança funcionaria. Quando eu dava o bastão para ela, as escolhas de cada
passo eram dela, mas, quando era eu quem estava no controle, bom... era
um pouco diferente.
Seu corpo quente e delicioso trepidou em antecipação quando
segurei as alças da sua camisola e puxei-as sobre seus ombros, deixando
que o tecido acariciasse sua pele conforme fazia seu caminho até o chão.
Então, eu disse com a boca bem perto do seu ouvido em um tom
baixo, mas autoritário.
— Mãos.
Isabel ergueu suas mãos para a frente do seu corpo sem nem hesitar,
o que me fez abrir um sorriso quando me afastei para pegar as correntes.
Quando prendi as pulseiras em seus pulsos, ela tremia, provavelmente com
o contato frio do metal, mas não ousou abrir a boca antes que eu permitisse.
Boa garota.
— Você sabe por que está aqui? — finalmente perguntei, quando
girei a manivela no canto da parede, fazendo com que os braços de Isabel
ficassem pendurados para cima, deixando seu corpo exposto e à minha
mercê.
Meu pau pulsou duro, já saindo minha lubrificação apenas com sua
mera visão nua, com os seios saltados para fora, sua barriga cavada – não
por muito tempo – levando à trilha de pelos da sua boceta encharcada e
brilhante.
— S-sim senhor — ela respondeu, encarando o volume doloroso
entre as minhas pernas. Eu já havia me livrado das roupas ao entrarmos, e
seus lindos olhos de fogo cravados em meu pau não estavam ajudando
muito em minha contenção.
— Você foi uma menina muito má, ma puce. — Estalei a língua,
rondando-a antes de abrir a gaveta e pegar o objeto em minhas mãos. —
Meninas más precisam de educação. Não concorda?
Ela apenas balançou a cabeça, então estalei o chicote no ar, sem
ainda tocá-la, o som espalhando-se pelo cômodo de forma que ela deu um
pulinho assustada.
— Responda quando falo com você — rosnei em uma reprimenda.
— S-sim.
Arqueei a sobrancelha, sem parar de olhar para a banda redonda da
sua bunda, que logo ficou vermelha quando dei a primeira chicotada nela.
Isabel gemeu. As correntes no teto rangeram com a tentativa de movimento
em seus braços.
— Sim, o quê?
— Sim, senhor. — Mesmo de costas para ela, sabia que a
desgraçada estava sorrindo. Isso fez com que minha mão segurasse com
mais força no chicote e eu desse mais uma chibatada, dessa vez na outra
banda de sua bunda.
O som de seu grito rouco fez meu pau doer tanto que não consegui
não me acariciar, ao menos um pouco, porra!
Sem aguentar ficar mais um instante não olhando para seu rosto, me
aproximei e encostei seu corpo ao meu, puxando seu queixo para que ela
olhasse para mim.
— Qual sua palavra de segurança?
Isabel selou os lábios, um claro desafio em sua expressão. Isso
rendeu mais uma chibatada, mas dessa vez em seu mamilo esquerdo. A
ninfa arqueou, gemendo, como se pedisse por mais ao apoiar a cabeça em
meu ombro.
Mas ela finalmente respondeu em um suspiro sôfrego:
— Prada.
Algo possessivo se enrolou em torno do meu peito. Essa visão,
brincar com ela, puni-la... Esses momentos sempre me proporcionavam o
maior pico de adrenalina que eu poderia sentir, mais do que matar ou
torturar alguém. Nunca tinha sido assim. Com ninguém, até ela.
Cerrei os dentes com força, e outro estalo soou no ar, em uma
sinfonia erótica e deliciosa com os gritos de Isabel quando estalei o chicote
em sua boceta. Encostei minha palma em sua carne, buscando acalmar a
dor, como um bálsamo, e não pude evitar em abrir um sorriso maldito e
infeliz quando esfreguei seu clítoris e ela gemeu outra vez.
— Você está pingando, ma puce. Vai acabar encharcando o chicote
— analisei. — Quer levar outra chibatada aqui? É disso que você gosta? De
me ter aqui fodendo até os seus miolos, punindo-a por ser uma teimosa do
caralho?
Quando ela não respondeu, dei mais uma chibatada, mais forte
daquela vez.
— SIM! É disso que eu gosto! — ela exclamou.
Suas pernas fraquejaram, e eu prendi sua cintura para que ela não
forçasse todo o seu peso em seus braços pendurados ao teto.
Um rosnado saiu de mim antes que eu arrastasse o couro pela sua
pele, vendo a trilha de arrepios que se seguia. Então, eu me afastei
abruptamente, fazendo com que ela cambaleasse. Fui em direção às cortinas
grossas na parede oposta.
— O que está fazendo? — ela perguntou confusa, mas eu não lhe
respondi conforme abria as cortinas e a janela, dando boas-vindas ao ar frio
da noite – o inverno chegaria logo.
— Manon... — Isabel protestou com os olhos arregalados conforme
a paisagem do nosso jardim aparecia. Se olhasse com atenção, ainda daria
para ver o centro de Paris daqui. A Torre Eiffel um mero traço no horizonte,
mas ainda estava lá.
— Fique quieta — ladrei quando voltei para minha posição original,
dessa vez com mais um objeto em mãos.
— Mas eles vão nos ver. — Seu protesto se tornou um choramingo
quando apertei punitivamente seu mamilo.
— Shhhh... quietinha. — Larguei o chicote, sem mais querer usá-lo
para o que eu pretendia.
Puxei uma cadeira para perto do seu corpo, que tremia em uma
mistura de tesão e de frio pelo ar que entrava do lado de fora.
— Eles não podem nos ver daqui, estamos muito afastados, mas
nós? Podemos ver tudo — falei conforme passeava com o vibrador pelo seu
corpo. As correntes rangeram novamente. — Apoie seu pé no braço da
cadeira, ma puce — ordenei. — Quero você bem aberta para o que eu vou
fazer.
Dessa vez, ela obedeceu sem questionar. Então, para recompensá-la,
tracei seu clítoris pulsante com o aparelhinho em minha mão, fazendo com
que seu corpo inteiro relaxasse e ela mordesse seus lábios, soltando um
breve chiado.
— Diga-me o que você quer, ma puce. Diga-me o que você precisa
— exigi quando seu quadril começou a se movimentar na direção do meu, a
mera fricção da sua bunda com o meu pau me deixando na beira do êxtase.
— Eu quero... eu quero tudo.
Um sorriso lento se abriu em meus lábios quando mordi o lóbulo de
sua orelha, enfiando sem dó o dispositivo em sua boceta encharcada,
deixando fodê-la até senti-la pingando e escorrendo por suas coxas.
Então, tirei o aparelho de sua cavidade e o levei até sua boca, que já
estava aberta em um pequeno “O’’ pelo seu grito mudo de prazer. Isabel
lambeu e chupou o vibrador, gemendo ao sentir seu gosto nele.
Então, eu desci novamente para sua boceta, mas dessa vez
espalhando sua excitação para outro lugar. Ela ficou rapidamente tensa,
mas, quando comecei a massagear seu buraco pequeno e apertado, enfiando
lentamente o aparelho, relaxou.
— Estive tão poucas vezes aqui — apontei.
Mesmo adorando sexo anal, eu era viciado na boceta da minha
mulher, mas, naquela noite, nada era o suficiente. Eu queria tudo também.
Isabel abriu um sorriso dengoso quando encostou a cabeça em meu
peito.
— Talvez seja hora de consertar isso.
— É assim que se fala, porra! — exclamei antes de trocar de lugar
com o aparelhinho, enfiando-me até o talo em seu buraco apertado.
Isabel gritou.
A cadeira balançou, mas firmei seu quadril e não deixei que se
mexesse.
Porra, eu poderia sentir o pulsar de seu corpo pela invasão, a pressão
estava quase insuportável, e se ela não relaxasse, eu iria gozar.
— Shhhh... — Dei leves beijos em seu maxilar e pescoço, chupando
sua carne, usando minha outra mão para acariciar seu clítoris inchado. —
Relaxe para mim, amor.
E ela o fez, lindamente. Finalmente as paredes de sua entrada não
pareciam prestes a esmagar meu pau, e eu comecei a me movimentar,
cerrando com tanta força o meu maxilar que sentiria dor de cabeça depois.
Mas, naquele momento, nada mais importava, apenas a sensação deliciosa
do meu pau sendo envolvido pelo seu corpo, da umidade da sua boceta que
chorava pedindo por atenção, do som dos nossos corpos se batendo com
cada vez mais rapidez e das correntes que balançavam no teto.
— PORRA! — xinguei conforme estocava com cada vez mais
força, enfiando minha língua em sua boca gostosa, beijando-a com firmeza,
raiva e possessividade.
Isabel ofegou.
— Estou tão bravo com você, ma puce. Bravo que nunca consigo
ficar bravo com você de verdade. Porque você é tudo que eu sempre quis, e
sempre que acho que estarei satisfeito, me vejo implorando por mais,
necessitando de mais — rugi, voltando a ligar o pequeno vibrador e
colocando-o em sua boceta, arrancando uma sequência de gemidos dela. —
É você. Sempre você — admiti em seu ouvido, acelerando cada vez mais o
ritmo. — E, porra, mesmo me dando tudo, agora vai me dar um filho, nosso
filho... — O mero pensamento da porra da nossa criança dentro do seu
ventre me fez acelerar as arrematadas de tal formas que não sabia como o
teto ainda não tinha caído sobre nós.
A cadeira já estava jogada do outro lado do quarto, e eu quem
segurava sua perna, abrindo-a para a penetração dupla.
— OH DEUS! — ela exclamou, fechando os olhos com força.
— Abra — ordenei.
Isabel grunhiu.
— Abra a porra dos olhos — repeti, e ela finalmente os abriu.
Mudei o ângulo do meu quadril de forma que, quando metia, podia
sentir a porra do vibrador na boceta dela, o contato fazendo-me ranger os
dentes.
— Está vendo isso? — perguntei, virando seu rosto para a janela.
A brisa da noite entrava pelo quarto, refrescando nossos corpos
suados. A lua cheia no topo do céu era a única testemunha que poderia ver
o que estávamos fazendo. Mesmo havendo homens lá embaixo, aqui era
alto demais para qualquer um deles ver.
— Está vendo? — questionei novamente quando ela não respondeu.
— Está vendo aí fora? — Isabel assentiu freneticamente com a cabeça,
perdida demais para formular palavras, ainda que estivesse se esforçando
bem em manter os olhos abertos, olhando para fora como eu pedi. — É seu
— anunciei. — É tudo seu e da porra do nosso bebê. Paris, a França, a porra
do mundo inteiro. É seu, assim como meu coração — disse enquanto metia
cada vez mais rápido nela. — Basta pedir. Basta falar o que você quer.
— MANON! — Isabel se derreteu em meu corpo enquanto eu ainda
estocava, a força de seu orgasmo tão grande que quase não aguentei.
— O que você quer, ma puce? Basta pedir. Eu lhe darei o que você
quiser.
Falei virando seu rosto para o meu, lambendo as lágrimas que
escorreram dos seus olhos com a força do seu gozo.
— PORRA! — gritei, acariciando seu clítoris, sentindo cada parte
do seu corpo latejar, pulsar por mim, mas eu precisava ouvir.
— O que você quer? — questionei novamente.
— TUDO! — ela gritou, chorando enquanto gozava novamente. —
Eu quero... eu quero tudo. Quero você, esse bebê, minha vingança, tudo —
ela finalmente respondeu, seu corpo inteiro tremendo, e então eu não
aguentei mais.
— Então, aqui está sua punição — grunhi no auge das sensações. —
Você está presa comigo para sempre. Eu nunca vou deixá-la ir. Você é
minha. — Arrematada. — Só. — Arrematada. — Minha. — E mais uma.
— Minha... — repeti várias vezes, dando as últimas estocadas, finalmente
gozando dentro dela.
— OH SIM!
Abracei com força seu corpo, mordendo seu pescoço com a força do
meu orgasmo. Minhas pernas falharam, meu coração parecia prestes a sair
pela minha boca, e eu respirei o perfume do suor dela, do cheiro dela e do
nosso sexo enquanto me recuperava.
Finalmente saí de dentro dela, tirando-a das correntes e a segurando
no colo com força quando ela encostou a cabeça em meu peito.
— Eu não vou deixar você ir nunca — repeti a promessa, beijando
seus lábios inchados.
Sua mão acariciou meu rosto, e um sorriso satisfeito tomou o seu
quando ela fechou os olhos.
— Eu nunca vou deixá-lo.
Enrolei um lençol em seu corpo e a levei de volta para o nosso
quarto.
— Eu amo você — ela sussurrou já em seu sono quando a deitei na
cama.
Beijei de leve sua testa, lábios e depois barriga.
— Eu amo vocês, ma puce — sussurrei antes de pegar uma bermuda
e sair do quarto.
Eu estava cansado do meu dia, meus músculos queimavam pelo
esforço físico que fiz agora, mas minha mente não queria parar. Não
conseguiria dormir ainda.
Desci direto para a academia. Pendurei o saco de areia no teto e
comecei a sequência de socos. Suor escorria por minhas têmporas, meus
pulmões queimavam e meu corpo doía por ter que fazer mais exercício
depois de tomar dois voos hoje, um para Angers e outro voltando com
pressa para casa quando soube do desmaio de Isabel.
E mesmo estando satisfeito com o rumo que as coisas tomaram,
mais do que feliz em saber que teríamos um filho, e grato por ter me
resolvido com minha mulher, havia algo que estava mantendo meu coração
apertado. Soquei e chutei o saco até não aguentar mais, até que o cansaço se
tornou demais e finalmente pude retornar para o quarto e tomar um banho
antes de me deitar. Então, me virei de lado para observá-la.
Isabel dormia pacificamente de bruços, seu lindo rosto virado para o
meio da cama, um sorriso estampado nele desde que saímos do quarto de
jogos.
Um nó se formou em minha garganta conforme engoli o gosto
amargo que se formou. Eu disse a ela que lhe daria tudo que ela pedisse,
mas olhando para ela agora, sabendo que em breve haveria mais alguém
que me possuiria tanto no mundo – o meu filho –, comecei a me perguntar
se cumpriria essa promessa. Comecei a me perguntar quais promessas que
fiz a ela eu poderia cumprir, e comecei a me perguntar se, talvez, não seria
capaz de dar à minha mulher sua vingança. Apenas soube pouco tempo
depois que não teria outra escolha.
O lado escuro do meu reflexo
“Sem manchas em meus diamantes
Deixe chover (...)
Porque
Quando o Sol brilha, nós brilhamos juntos
Te disse que estaria aqui para sempre
Disse que sempre seria sua amiga
Fiz um juramento, eu vou cumprir até o fim
Agora que está chovendo mais do que nunca’’
Umbrella, (Epic trailer version) J2,JVZEL

O som do trovão se fez ouvir mesmo ao longe. Levantei a cabeça,


vendo a nuvem escura formada logo acima da catedral. Um arrepio gelado
tomou meu corpo, ainda que não estivesse exatamente frio, pois meu
vestido longo e repleto de camadas impedia que o ar gélido entrasse em
contato direto com a minha pele.
Uma única gota caiu do céu, atingindo minha bochecha ao escorrer
pelo meu rosto. Um sorriso bobo se formou em minha boca. Astrid ficaria
tão chateada se a maquiagem impecável que ela fez em mim se
desmanchasse caso começasse a chover bem ali, momentos antes de as
portas se abrirem.
Por um momento, me permiti fechar os olhos e me concentrar
apenas no caminho daquela gotícula de água em minha pele. Mas quando
as grandes portas da igreja se abriram em um som tão alto quanto do
trovão de momentos atrás, toda a calma que fui capaz de acumular se
esvaiu.
Pessoas estavam dispostas de ambos os lados, nos bancos. Todos os
olhos em mim. Não era uma sensação muito boa, considerando que não
eram olhares de amigos ou de familiares, sequer eram conhecidos por mim,
se não fosse pelas breves apresentações que tive com Manon na festa da
tríade, há poucas semanas.
Mantive o queixo erguido, no entanto, não me deixando abalar pelo
claro escrutínio dos convidados enquanto observavam eu, a noiva,
caminhando até o altar.
Assim que cheguei à metade do caminho, a figura embaçada do
lado do padre se tornou um pouco mais clara, e aquela visão, a visão do
meu noivo – que muito em breve seria marido, em seu todo imponente terno
branco, do mesmo tom do meu vestido, contrastando com suas tatuagens e
pele bronzeada, à minha espera – foi o bálsamo que precisava para as
batidas descompassadas do meu coração.
Quando dei mais um passo para a frente, no entanto, um trovão
ressoou no céu novamente, reverberando pelas paredes da igreja. Um calor
líquido se acumulou em meus pés, e um suspiro chocado uníssono atingiu
meus ouvidos.
— ISABEL! — Manon gritou, correndo em minha direção com os
olhos preocupados colados em algum lugar abaixo do meu peito.
Olhei ao redor apenas para encontrar ainda mais expressões
hesitantes dos convidados. O escrutínio tinha dado lugar para satisfação de
alguns e surpresa de outros.
Quando finalmente resolvi olhar para baixo, foi a minha vez de
soltar um pequeno suspiro chocado. Vermelho. Em toda parte. Em meu
vestido. Escorrendo pelos meus pés. Uma dor aguda apareceu bem abaixo
do meu umbigo, como se só naquele momento meu corpo se desse conta do
que estava acontecendo.
— Manon — chamei em um sussurro desesperado. Mas antes que
ele pudesse me alcançar, outro estrondo tomou o salão, e dessa vez eu sabia
que era um tiro.
O sangue agora manchava o terno do meu lindo, lindo noivo.
E quando ele caiu no chão logo diante de mim, os olhos já estavam
sem vida. E a figura loira que segurava a arma apontada para a frente
finalmente apareceu.
Todo o ar saiu do meu corpo quando Rosa abriu um sorriso
diabólico, um que jamais vi em seu rosto, antes de ela apontar a arma para
minha cabeça.
— Rosa...
— Você me abandonou — ela cuspiu antes de apertar o gatilho.
E tudo ficou escuro novamente.
Um grito rouco atingiu meus ouvidos assim que minha visão voltou
ao normal. Suor gelado tomava minha pele, e meu corpo ainda tremia com a
adrenalina do pesadelo.
— Ma puce? — a voz rouca de Manon me chamou no escuro, do
meu lado.
— Estou aqui. — Consegui responder depois de reunir um pouco de
energia.
Acalme-se, Isabel, foi apenas um pesadelo, disse a mim mesma. O
escuro do quarto não era nada igual ao escuro de quando...
— Está tudo bem? — ele perguntou, finalmente despertando.
Sua mão quente afastou alguns fios molhados do meu pescoço, e
estremeci. Não tive forças para esconder como estive fazendo nas últimas
semanas.
— Tenho tido pesadelos — admiti. — Eu me lembro vividamente de
cada um deles. São tão horríveis, Manon, que... que não tive coragem de
falar nada antes.
O carinho reconfortante que Manon estava fazendo nas minhas
costas enquanto eu ainda me acalmava parou por alguns milésimos de
segundos.
— Há quanto tempo? — ele perguntou neutro, mas eu sabia que
estava magoado por eu não estar compartilhando isso com ele.
— Desde a noite da sala do trono — soprei, envergonhada por ter
escondido isso por tanto tempo. — Me desculpe por não ter falado antes,
eu...
— Está tudo bem, não tem que pedir desculpas — Manon me
interrompeu, secando as lágrimas que nem tinha percebido que caíam do
meu rosto. — Se quiser conversar sobre isso agora, ou se não quiser falar...
Segurei sua mão com firmeza e me virei para ele. A pouca luz que
entrava pela janela do quarto, indicando que já estava próximo do
amanhecer, tornava possível olhar atentamente para os detalhes no rosto de
Manon. Sua barba por fazer ficando cada vez maior, seu maxilar definido e
tenso, mesmo quando ele dormia tranquilamente, seus lindos olhos verdes
nos quais eu adorava me perder me encaravam com tanto amor e devoção
que me apaixonei por ele novamente apenas naquele instante.
— Tenho sonhado com Rosa — falei, pois ele merecia saber.
Manon ficou tenso, mas não falou nada, deixando-me tomar meu
tempo.
— Tenho sonhado com nosso casamento, e que logo antes de chegar
até você, no altar, Rosa aparece e mata todo mundo. Ela atira em mim
primeiro, mas eu vejo você morrer. — Um bolo de farpas raspa em minha
garganta quando tento engolir em seco. — Então, ela aponta a arma para
minha cabeça e...
Flashes da expressão de Rosa atingem minha mente, me impedindo
de falar. A magreza em seu corpo, a mão trêmula que segura a arma, os
ossos salientes da bochecha enquanto ela me acusa com os olhos mais frios
que já vi na vida.
“Você me abandonou.’’
— Amor, venha aqui. — Manon me tirou do transe, me abraçando
com força enquanto eu soluçava em seu pescoço.
— Sinto muito, sinto muito — pedi repetidamente enquanto chorava
sem parar.
Manon não me afastou. Ele apenas me embalou em seu calor e
continuou fazendo carinho em meu cabelo até eu me acalmar.
— Vai ficar tudo bem — ele prometeu depois de alguns instantes em
silêncio.
— Estou com medo, Manon. Com medo do que vai acontecer, com
medo do nosso plano, da vingança... E se algo acontecer com o bebê?
Os músculos do meu noivo ficaram ainda mais tensos, tão duros que
pareciam entalhados em pedra. E quando ele respondeu, foi em um tom tão
frio e mortal que as lágrimas se cessaram na mesma hora.
— O mundo irá queimar antes que eu deixe que algo aconteça com
você ou com nosso bebê — ele jurou.
E Deus, eu devia realmente estar condenada se aquela promessa foi
o suficiente para finalmente me acalmar.
Manon segurou meu queixo e me fez olhar para ele, sua imensidão
verde mergulhada pelas sombras que agora tomavam sua expressão.
— Vai ficar tudo bem.
E dessa vez, dessa vez, realmente acreditei.
Nunca fui supersticiosa, nem mesmo acreditei muito em Deus,
especialmente depois que tudo aconteceu, mas eu temia que, se eu
continuasse por esse caminho de morte e vingança... Se eu continuasse
tirando vidas, Deus, o universo – ou seja lá o que regesse o mundo – iria
tomar de volta. E algo me dizia que seria esse bebê. Eu não poderia deixar
isso acontecer. Havia descoberto apenas há alguns dias, mas a mera ideia de
não ter mais esse ser dentro de mim, de saber que não teria um bebê,
ameaçava me levar para aquele lugar escuro onde estive por tanto tempo.
— Você ainda quer essa vingança? — Manon questionou, como se
lesse exatamente meus pensamentos.
Uma pontada de decepção surgiu em meu peito quando demorei a
responder o imediato “não’’.
— Tenho medo do que irá me custar — foi tudo que consegui
responder, ao invés disso.
— Não precisa lhe custar nada, se não quiser.
— Não quero que faça tudo sozinho — rebati. — Não quero sujar
mais suas mãos. Não é justo.
— Amor, eu sou a porra de um assassino, sempre fui, muito antes de
sequer conhecê-la. Me sujar de sangue é a menor das minhas preocupações.
— Manon segurou minha bochecha, e eu suspirei fundo. Nossos olhos não
se deixaram. — Você passou por muito, você fez muito. E é extremamente
forte. Mas só porque aguentou ver sangue esse tempo todo, não significa
que tem que continuar se sujando. — Balancei a cabeça.
— Não sou feita de diamantes, Manon, eu não quebro fácil.
Manon abriu um sorriso torto.
— É aí que você se engana, ma puce. Diamantes são conhecidos por
surgirem de uma enorme pressão, uma pressão tão grande sobre algo bruto
e feio que se torna algo lindo e valorizado. Diamantes não podem se
arranhar com facilidade, e eles não quebram. Não tão fácil assim.
Algo em sua fala me fez sorrir um pouquinho, e eu me permiti
relaxar. Mas ainda não concordava em ser deixada de escanteio.
Ele pareceu sentir exatamente minha hesitação.
— Eu lhe prometi vingança, e a darei a você de bandeja para que
gaste apenas as balas necessárias, caso queira apertar o gatilho.
— Tudo bem — concordei. — Mas — falei, apontando um dedo
para ele, que arqueou a sobrancelha em resposta — só porque não estarei
diretamente em cada passo, não significa que não quero saber de tudo, nem
que não terei mais voz nisso.
— Eu prometo — ele concordou. — Agora venha, vamos dormir. —
Manon me puxou, e eu voltei a deitar embalada em seus braços.
— Não sei se vou conseguir voltar a dormir — sussurrei.
— Eu não vou deixar nada lhe acontecer, ma puce. Pode descansar.
— Promete me acordar caso eu tenha outro pesadelo?
Manon beijou rapidamente meus lábios, e eu relaxei sob seu toque.
— Prometo.
E logo o cansaço me fez fechar meus olhos, e de alguma forma, não
foi uma surpresa perceber que não tive pesadelos pelo resto da noite. Como
se aquela conversa fosse o que minha mente e meu coração em conflito
precisavam para finalmente ter um pouco de paz. Ainda que houvesse algo
me deixando agitada pelo resto do tempo em que passei acordada.
Eu finalmente consegui me abrir totalmente sobre meus receios com
Manon, sobre como tinha medo de desistir de Rosa, como tinha medo de
perder meu filho, de que esse bebê de alguma forma sentisse quão ruim a
mãe dele se tornou por causa do seu objetivo por estar dentro de mim.
Manon me ouviu e me acalmou todo o tempo, mas foi só depois que percebi
que ele não disse nada para mim sobre como se sentia. A lembrança do
olhar levemente decepcionado quando não disse nada sobre desistir de me
vingar me atingiu apenas depois que já tinha me acalmado. E isso, de
alguma forma, me fez começar a me perguntar se talvez ele tivesse mentido
sobre não ligar em derramar o sangue da sua família. Se talvez eu estivesse
pedindo demais dele, e ele apenas não quisesse admitir nem para mim nem
para si mesmo.
Diamante de sangue
“Fale mais alto, diga mais alto
Quem vai te amar como eu, como eu?
Diga mais alto, diga mais alto?
Quem vai te tocar como eu, como eu?’’
Shameless, Sofia Karlberg

ALGUMAS SEMANAS DEPOIS

Depois de dez garrafas inteiras de uísque, umas cinquenta


discussões com Luk, e outras mil com minha mulher, finalmente chegou o
grande dia.
O estresse de organizar cada detalhe do casamento enquanto
planejávamos a reunião dos aliados e um novo movimento na guerra em
que estávamos – e que em breve as outras famílias descobririam – tinha
deixado a todos nós no limite.
Mas havia uma coisa que sempre me acalmava no final desses dias,
quando eu me deitava na cama com Isabel e me afundava em seu corpo por
horas até o cansaço me fazer dormir com ela, ainda dentro dela.
Mesmo com tantas brigas e discussões, não poderia estar melhor
com ela, especialmente porque, nas últimas semanas, sentia que ela estava
ficando cada vez mais distante daquela versão de si mesma que viveu por
meses.
Agora, eu sabia exatamente o que se passava na linda cabecinha
dela quando conversávamos por horas sobre seus medos, receios, e até
sobre a saudade que sentia da sua família, da sua irmã.
Ela tinha guardado tanto para si mesma por tanto tempo, talvez por
medo de se sentir vulnerável, algo que eu e ela tínhamos muito em comum,
e que, pensava, parte da sua razão ter se afundado em depressão foi porque
ela não sentia que poderia confiar seus sentimentos para ninguém além de si
mesma.
Claro, conversar comigo não a curaria. Ela ainda tomava
medicações, dessa vez diferentes, já que carregava nosso filho, e eu estava à
procura de um terapeuta para ela, mas estávamos progredindo muito bem,
mesmo com o estresse do casamento.
E agora que finalmente chegou o grande dia, a porra do dia que
finalmente me faria poder chamá-la de minha esposa, marcá-la como uma
Martin, como minha porra de mulher para a porra do mundo.
Uma batida à porta do pequeno quarto onde eu me arrumava, já na
catedral, me fez abrir um pequeno sorriso por antecipação. Faltava pouco
tempo para começarmos.
— Pode entrar.
A cabeça de Luk apareceu pela fresta da porta antes de ele fazer
uma careta.
— O que foi? — perguntei, olhando para o meu reflexo.
Luk suspirou e ficou diante de mim.
— Vejo que os anos como chefe da máfia não lhe ensinaram nada
sobre dar um nó em uma gravata — ele caçoou, tirando a amarração que
passei mais de meia hora fazendo.
— Não preciso de uma gravata para ser chefe.
— Não é você quem diz que... como é mesmo? “A política não é
feita por homens de terno engravatados’’ ou alguma porra dessas? — Meu
amigo estava sorrindo amplamente agora que havia tido sucesso em tirar o
meu próprio sorriso e deixar no lugar uma carranca.
— Só está tentando me irritar porque nomeei você como padrinho, o
que significa que não poderá andar com Isabel até o altar — provoquei de
volta.
— A porra do Marcus vai levá-la. — Ele cerrou os dentes,
claramente chateado.
Soltei uma gargalhada.
— Troque com ele, se isso o chateia tanto.
— Porra, acha que não tentei? O desgraçado não quis deixar, e
quando tentei trancá-lo no quarto...
— Você tentou trancá-lo no quarto? — perguntei incrédulo.
Luk se afastou e encheu um copo de uísque.
— Não funcionou — comentou lacônico.
— Claro que não funcionou. — Se tivesse funcionado, eu teria que
rever quem deveria ser o guarda-costas de Isabel. — Sabe, me ofende ver
tantos esforços para fugir do papel de ser meu padrinho — caçoei com
ironia.
— Sabe que não quero deixar de ser seu padrinho — Luk rebateu,
engolindo todo o conteúdo e me entregando uma dose. — Mas eu também
não queria que ela tivesse que caminhar por aquele altar sem o pai.
Era exatamente por aquele motivo que eu não me chateei nem um
pouco com as tentativas idiotas de Luk para acompanhar Isabel ao altar. Ele
se importava tanto com ela quanto comigo, isso significava o mundo para
mim.
— Vamos — chamei meu amigo, pegando o paletó em cima da
cadeira e saindo da sala.
— Vamos casá-lo, cara — Luk disse com aquele sorriso brincalhão
de volta.
Esses últimos dias, Luk tem estado estranho. Era bom vê-lo em seu
humor original, ainda que só mostrasse quando estivesse a sós com a gente.
Com todos os preparativos pro casamento e os planos, interagi
pouco com os convidados indesejados em minha casa, e agora, além de
Alessia e Matias, Caterina Del Toro também estava hospedada com a gente
– sem seu marido. Algo me dizia que a presença dela era um indicador do
estranho comportamento de Luk. Mas eu não iria me meter nisso.
Contanto que ele mantivesse o pau longe da propriedade de Padilha,
a não ser que fosse um plano de avanço nessa guerra, pouco me interessava
nisso tudo. Até porque, ao me posicionar no meu lugar no altar, já vendo o
movimento dos convidados indo se sentar e o som de fundo de uma música
qualquer do coral da igreja, sabia que meu foco poderia ser apenas um:
Isabel.
Encarei aquela porta até a cerimônia começar, esperando para ver
minha mulher.
Anos atrás, casar-me era a menor das minhas prioridades. Sequer
consideraria uma, caso não soubesse que era necessário no mundo da máfia
se quisesse uma aliança. A vantagem de ser um Martin era que minha
família não se importava muito com os casamentos. Em sua maioria, as
mulheres serviam apenas para duas coisas: nos dar filhos e sexo. Poucos
casamentos eram feitos, apenas para os soldados de mais alta patente.
Portanto, sabia que eventualmente me casaria, ainda que não quisesse isso.
Preparei-me para encontrar uma boa moça de uma das famílias,
talvez de uma das famílias aliadas, como a que tinha me sido prometida,
mas não tinha interesse algum em conhecer até quando não pudesse mais
adiar, e ironicamente era a mesma mulher por quem mal esperava para me
casar agora.
Meu pai, Yohan, tinha prometido Isabel a mim antes mesmo de eu
saber sobre sua existência. E mesmo sendo um desgraçado do caralho, essa
era a única coisa que sentia gratidão em relação a ele.
Nossos caminhos teriam se cruzado, eventualmente. Poderia ter sido
uma história diferente, mas eu tive uma certeza. A certeza que fez minha
boca secar quando finalmente as portas da catedral se abriram e todos se
viraram para olhar o único ponto onde poderia olhar.
Puta que pariu!
Um sorriso tomou meu rosto, discreto, já que não gostava de
mostrar algo fora da máscara que sempre mostrei para as pessoas do meu
mundo quando nos reuníamos – o que não eram muitas vezes.
Era preto. O vestido dela era preto, e o caralho que a visão do
decote no meio, dando destaque à minha tatuagem colorida em seu peito,
não me deixou de pau duro bem no meio da porra da igreja.
Meu olhar trancou com o de Isabel, que abriu um sorriso safado,
como se soubesse exatamente o que a escolha de um vestido nada
tradicional, ainda mais um vestido tão lindo e sexy, estava fazendo comigo.
E quando ela começou a caminhar na minha direção, aquela certeza apertou
meu coração de formas que não sabia ser possível.
Eu me apaixonaria por Isabel todas as vezes. Nesta ou nas outras
histórias que poderíamos ter vivido.
Manon Martin estava tudo que sempre foi e mais um pouco. Sua
postura ereta, que sempre emanava aquele ar de poder que simplesmente
lhe pertencia, parecia um pouco mais rígida, e sabia que era por conta do
que estávamos fazendo. Ou melhor, na frente de quem estávamos fazendo.
Se nos casar não fosse também parte do plano, eu sabia que Manon iria
preferir que fizéssemos apenas entre nós, com no máximo Luk como
testemunha. Algo simples e pequeno. Eu partilhava da mesma opinião, mas
não podíamos nos dar ao luxo daquilo naquele momento.
Ele vestia um terno preto, combinando com o tom fosco do meu
vestido e sendo diferente de todos os outros homens no altar, que
despojavam da cor branca. A luz e as roupas contrastavam com seus fios
loiros recém-aparados nas laterais e seus lindos olhos verdes que me
fizeram cair por ele como da primeira vez, especialmente quando tinham
tanta ternura e amor, como sabia identificar agora em seus orbes, além do
evidente desejo – similar ao que crescia dentro do meu peito e no meio das
minhas pernas.
Ele parecia o pecado de terno em um altar, um pecado todo meu,
que não me importaria de cometer todos os dias.
De repente, não importavam mais os olhares de todos aqueles
mafiosos na plateia, não importava o fato de que meu pai morreu e minha
irmã estava desaparecida, ou o fato de que ainda lutava contra muitos dos
meus traumas, pois agora, enquanto olhava para a frente, eu sabia que
nunca mais o faria sozinha. Ele estaria lá para suportar o fardo.
— Como estou? — perguntei em um sussurro provocante quando
finalmente Marcus me passou para Manon.
— Se seu objetivo era tentar o noivo a fugir do altar com a noiva
antes de trocarem os votos apenas para fodê-la na parte de trás da catedral,
está sendo muito bem cumprido — ele respondeu no mesmo tom, enviando
vários arrepios deliciosos pelo meu corpo.
— Ninguém irá impedi-lo, se tentar. Você é o Don, afinal — foi o
que consegui responder.
Manon olhou para mim com uma expressão tão necessitada que
quase cogitei em aceitar sua oferta. Mas, quando estava prestes a falar algo,
a voz do padre me trouxe de volta à realidade.
— Estamos reunidos aqui hoje para a união sagrada entre Manon
Jean Martin e Isabela Armad. — Viramo-nos para o padre e começamos a
cerimônia.
Sua mão na minha era a única garantia de que precisava para me
manter firme sob os alvos que cresciam em nossas costas.
— Me casar com meu nome falso não anularia o casamento? —
perguntei em um sussurro quando trocamos as alianças.
— Como você disse, sou o Don — Manon respondeu com um
sorriso travesso. — Ninguém pode me impedir. E honestamente, acho que o
padre está mais preocupado com seu vestido preto do que com seu nome
verdadeiro.
Mordi meu sorriso.
— Além disso, você será uma Martin. O resto não importa.
Sua resposta me deixou desconcertada, mas dei graças a Deus pelo
padre ter ainda milhões de coisas para falar antes que finalmente eu tivesse
que fazer algo novamente.
Apenas quem deveria sabia que eu era uma Dourand, e não Armad,
mas como tínhamos todo tipo de gente na igreja me observando casar com
Manon, tínhamos que manter a farsa com meu nome inventado. Não que
achasse que fosse ser o empecilho de algo.
Tudo passou como um borrão até quando me virei para ele e
finalmente disse a palavra “sim”. Era como finalmente sair de um pesadelo
depois de sonhar acordada por muito tempo.
A sensação só durou alguns segundos, pois, quando nos afastamos,
gritos substituíram o som dos tiros de festim sendo desferidos para cima.
Viramo-nos rapidamente para a plateia.
— Manon? — chamei preocupada conforme assistíamos à cena.
Vários homens espalhados pelo salão simplesmente caíram no chão,
convulsionando enquanto um mar de gritos femininos assustados tomava o
salão em sintonia com os homens que sobraram pegando suas armas,
começando a atirar uns contra os outros, procurando pela ameaça invisível.
Manon se virou para Luk, que estava já ao meu lado.
— Leve-a daqui.
Franzi o cenho com a ordem.
— O quê? Não vou me separar de você.
— Não discuta comigo. — Seus olhos encontraram os meus, e
travamos uma batalha silenciosa.
— Não vou sem você — falei entredentes, emputecida com o tom
superior que ele usou.
Não cederia, não depois de tudo que passamos. Não queria me
machucar, nem ao bebê, mas não arriscaria perder Manon. Ele pareceu
perceber aquilo e assentiu contrariado, nos guiando para fora do altar. Mais
corpos caíam à nossa frente, tremendo em convulsões, misturando-se aos
que tinham tomado tiros. Todos corriam de um lado para o outro, deixando
a cena ser um caos.
Enquanto agarrava minha mão à de Manon, entendi algo que fez
meu coração acelerar. Saímos de um pesadelo apenas para entrar em outro.
A prova viva disso foi quando a imagem dela apareceu. A imagem
da jovem loira de olhos azuis, tão similar aos sonhos que tenho tido que
congelei. Rosa.
O retorno dos vivos
“Começa com dor
Seguida pelo ódio
Cheio de perguntas sem fim
Ninguém pode responder
Uma mancha cobre seu coração
E te deixa extremamente infeliz
Como um câncer adormecido
Não, eu não acredito que homens são gerados para ser assassinos’’
World So Cold, 12 Stone

Quando tudo que você passa a conhecer é o caos, uma tempestade é


uma mera garoa. O problema é que eu estava começando a ver a vida como
além dos rastros de destruição do que sobrou em mim, desde que a primeira
tempestade chegou.
Estava progredindo. Vendo o caminho se limpar enquanto me
afastava mais e mais daquele cemitério de dor. Voltei a me sentir viva, a
sentir o direito de me sentir viva.
Dizem que você não sente falta daquilo que não conhece, e por
muito tempo, acreditei conhecer apenas a dor e o dever. Então, o que
aconteceu não teria me atingido como atingiu, pois eu já esperava aquilo...
ou não?
Nunca teria como saber, porque a questão é que aquilo me abalou,
abalou muito. Porque eu sentiria falta do futuro que estava começando a
achar que poderia ter. O que apenas existiu o suficiente para ser destruído
diante dos meus olhos.
Agora, eu sabia a verdade que tentei negar a mim mesma, e odiava
me sentir culpada por quase ter aberto mão de tudo.
Ela estava viva. Esteve viva esse tempo todo, como sempre
suspeitei. E havia apenas uma coisa que ela tinha como objetivo: vingança.
Assim como eu deveria ter. Como eu tinha como a única luz no final do
túnel até pouco tempo atrás. Até descobrir que havia muito mais em risco
nesse jogo.
O problema era que a vingança da minha irmã era para todos os
culpados pela destruição em sua vida. E isso de alguma forma me incluía.
Se eu estivesse em casa naquele dia...
Minha mente repassou os acontecimentos das últimas horas. Como
tudo desmoronou. O olhar que Rosa deu naquela maldita transmissão de
vídeo... foi como se estivesse olhando diretamente para mim.
“Agora é a sua vez.’’
“Você me abandonou.’’
Frases cheias de ódio e rancor que ouvi dela tanto em sonho como
na realidade. Era como se parte de mim soubesse que aquilo aconteceria.
E mesmo assim... eu quase dei para trás com tudo.
— Isso não vai acontecer. — A voz firme de Manon me tirou do
transe em que estive desde que saímos da catedral e voltamos para casa.
Ele estava respondendo algo para um Matias muito alterado.
— Melhor repensar nisso, Manon, porque, depois do showzinho que
a irmã dela fez, é exatamente o que vai acontecer se não fizermos algo. —
Estive tão desligada com o meu redor que nem tinha raciocinado a
conversa, até ouvir esse comentário.
Estávamos todos reunidos na mesa da sala de reuniões. Alessia,
Matias, Caterina e Luk. Can e Astrid saíram para procurar Dick, que sumiu
pouco antes da confusão no casamento.
— Eu já disse, não vou deixar isso acontecer — Manon afirmou
entredentes.
Olhei de relance para meu agora marido, vendo suas feições tensas e
cheias de ódio. Depois da clara mensagem que Rosa nos deixou, eu temia
que parte desse ódio estava voltado para ela. E o que ele faria a seguir.
— Meu irmão está certo, Manon. Eles vão caçá-la — Alessia
interveio, ao lado de Matias.
Essas duas palavras foram o suficiente para me tirar do meu estupor.
— Então, temos que encontrá-la primeiro — falei pela primeira vez
desde que chegamos.
Todos os olhares na mesa se viraram para mim.
Havia hesitação, curiosidade e dúvida em cada um ali. Era
compreensível. Todos estavam arriscando sua pele para poder unir-se a nós
nessa guerra, e a atitude de Rosa apenas deixou nossas chances de algum
êxito ainda menores. Eles queriam sangue tanto quanto as famílias, disso eu
não tinha dúvida. E estavam curiosos com minha reação. Quais seriam
nossas prioridades. Parte de mim soube que, se fossem diferentes das deles,
essa parceria teria fim, e provavelmente eles se voltariam contra nós. Era
um risco que eu estava disposta a correr, no entanto.
Manon estendeu a mão para mim.
— Ma puce...
Levantei-me sem querer discutir o assunto, especialmente na frente
de todos.
— Temos que encontrá-la antes dos outros — enfatizei, olhando
diretamente para ele. — Senão, irão matá-la, Manon.
— E a todos nós depois — Caterina ecoou categórica, no canto, mas
não desgrudei o olhar do meu marido.
Ele ainda estava com o smoking do casamento, assim como eu ainda
usava o meu vestido de noiva. Estávamos uma bagunça arrumada.
Manon trincou os dentes, mas cedeu ao balançar a cabeça.
— Achem-na — ordenou, e todos se levantaram.
— Não acho que vai ser muito difícil — Luk comentou, e todos nós
viramos para ele, sem entender. Ele ergueu o celular, mostrando a tela para
nós. — Can mandou mensagem. Rosa está com eles. E eles estão com
problemas.
— Que tipo de problema? — perguntei tensa.
Astrid olhou para mim e hesitou.
— Os Caruso estão com eles.
Alessia e Caterina partiram ao resgate de Astrid, Can, Dick e Rosa.
Quis ir junto, mas Manon me convenceu a ficar, pelo bem do bebê. Essa
situação toda era tão angustiante. Esperar sem fazer nada nunca fez meu
estilo.
Então, nos minutos seguintes que eles foram, não consegui parar
quieta. Tomei um banho e troquei de roupa, arrumei nosso quarto duas
vezes, e quase cedi para pedir um cigarro a Luk. Quase.
Mas recebemos uma mensagem de Caterina, há poucos minutos,
avisando que deu tudo certo e estavam a caminho com eles. Parte de mim
exalou aliviada, pois a preocupação estava me matando lentamente, mas a
outra parte ficou ainda mais ansiosa com o iminente encontro com minha
irmã, que, até poucas horas, estava desaparecida/morta para o mundo e para
mim.
Manon quis ficar comigo, porém eu simplesmente não conseguiria
pensar sobre tudo que eu tinha que pensar se ele ficasse, então lhe pedi
espaço – que ele deu de mau grado. Ele e Luk deveriam estar agora
resolvendo temporariamente a tensão com as famílias.
Tínhamos pensado em cada passo que seria dado depois do nosso
casamento, mas a aparição de Rosa e tudo que veio depois jogou nossos
planos para o ar. Perdemos o principal: o elemento surpresa. Seria apenas
questão de tempo antes que todas as famílias declarassem guerra contra nós.
Rosa, o que você fez?
Não conseguia conter meus nervos, então caminhei pela casa, à
procura daquela sala que Manon me mostrou há tanto tempo. A sala onde
não voltei a pisar depois daquela primeira vez. Errei algumas portas, mas
não demorou muito para eu encontrá-la, usando a chave que ele me deu
quando me mostrou, dizendo que aquele lugar seria apenas meu, onde eu
poderia guardar meus pensamentos sombrios.
Não liguei para aquilo na época, porque tudo que eu sentia ser era
sombrio, mas agora não poderia sentir mais nada além de gratidão quando
entrei pela porta e abri as grandes cortinas pesadas, cheias de poeira,
deixando a luz natural do lado de fora iluminar o enorme objeto no centro
da sala.
Aproximei-me, rondando-o enquanto passava a mão delicadamente
pela madeira polida e limpa, diferentemente do resto da sala. Como se
alguém o estivesse mantendo limpo. Isso enviou uma onda de calor pelo
meu coração... Manon o manteve limpo para mim durante todo esse tempo.
Sentei-me na banqueta e abri a tampa, pousando suavemente meus
dedos sobre as teclas do piano. Levei apenas um milésimo de segundo para
escolher qual música tocaria, até que Prelúdio em E menor, Op.28 No.4[12]
ecoou pela sala.
As notas graves, baixas e perturbadoras expressavam tudo que
sentia dentro do meu peito. As lembranças tomando conta do meu corpo
enquanto a música crescia em uma pequena tempestade.
Voltar para casa naquele dia e não achar ninguém.
Deixar minha mãe na cama daquele hospital.
O olhar de traição de Manon quando o deixei.
Lydia morrendo em meus braços.
Os olhos do meu pai perdendo a vida.
O tiro de Rosa. Todos esses meses em dor...
Todo esse tempo, todos os sentimentos conflitantes, toda angústia,
cautela, preocupação, em um instante cantados pelas teclas do piano.
Quando a música morreu em meus dedos, permiti-me ficar parada,
ainda assimilando as notas em meus ouvidos. Um arrepio tomou meu corpo,
e senti como se formigas passeassem pelas minhas costas. Não precisei me
virar para a porta que deixei aberta ao entrar para saber que ele estava ali.
Manon sempre me encontrava.
Ele entrou no cômodo e pousou as mãos em meus ombros. Encostei-
me em seu tronco parado atrás de mim e permaneci de olhos fechados
quando ele depositou um beijo casto em minha cabeça.
— Tudo bem? — ele perguntou.
— Eu vou ficar — respondi. — E você?
— Preciso de algo de você.
Virei-me para ele, confusa.
Manon se ajoelhou diante de mim, olhando meu rosto como se
estivesse tentando encontrar alguma coisa.
— O que foi? — questionei preocupada.
— Preciso que me perdoe. — Demorou alguns instantes até
entender do que ele falava. — Eu não acreditei em você quando...
— ELES CHEGARAM! — Luk gritou no corredor, e eu levantei
em um solavanco.
Manon pareceu levemente decepcionado com o fato de eu não ter
ficado parada para ouvir o que ele diria, mas eu não precisava de suas
desculpas. Ele fez o que achou certo. Pensou e agiu com os fatos, e nunca
poderia culpá-lo por não acreditar no que eu sempre soube no fundo do meu
coração.
Ele segurou minha mão ao sairmos e trancarmos a sala do piano.
— Falaremos sobre isso depois.
Assenti e depositei um selinho breve em seus lábios, disparando
pelo corredor para a entrada, querendo encontrá-los logo.
Estava ansiosa e nervosa como nunca para aquele encontro, mas
ficar e enrolar não mudaria os últimos meses, apenas adiaria o inevitável.
Eu tinha que ver Rosa, ainda que não estivesse nem um pouco preparada
para isso.
Mas quando parei e observei sua figura sair da van, percebi que não
fazia ideia de como reagiria até estar bem diante dela e erguer minha mão,
que atingiu sua bochecha em um estalo alto com o tapa.
Tão forte como poderia
“Vindo como um furacão, eu levo isso bem devagar
O mundo está girando como um catavento
Frágil e composto
Estou quebrando de novo
Estou doendo agora para deixar você entrar’’
Hurricane, Tomme profit

O estalo alto do tapa reverberou por todo o maldito jardim. Por dois
ou três segundos, foi como se a cena congelasse. Ninguém se moveu.
Ninguém respirou. Bom, ninguém esperava por aquilo.
A cabeça de Rosa ficou virada para o lado naqueles três segundos,
como se absorvesse em cada centímetro o tapa dado pela irmã.
Todos os homens que estavam próximos estagnaram até mesmo os
menores dos movimentos. Luk engoliu seco ao meu lado, e por um
segundo, apenas um, hesitei.
Deveria me meter entre as duas? Isabel estava reagindo como
precisava reagir, ainda que fosse totalmente diferente do que todos –
inclusive eu – esperavam.
Mas quando ela começou a gritar e avançar na direção de Rosa, que
virou para minha mulher como se considerasse retribuir o tapa, avancei,
sendo rápido em segurá-la pelos ombros com o máximo de firmeza
possível, pois, porra, Isabel era forte e escorregadia quando estava brava. E
naquele momento, ela parecia em fúria total.
Porém, quando elas ficaram a uma distância mais ou menos segura,
senti seu corpo cambalear para meu aperto. Senti os pequenos tremores em
seu ombro, e mesmo sem conseguir olhar em seu rosto agora, trinquei com
força o maxilar por saber que ela deveria estar próxima de desabar em
lágrimas ali.
Lancei um olhar duro para a mulher responsável por tanta dor da
minha esposa, mas parei ao notar como ela também hesitou ao notar aquelas
lágrimas. Não pude deixar de olhar para a sua aparência.
Apesar de só ter visto pessoalmente a garota uma vez, eu me
lembrava perfeitamente de como ela era no dia em que descobri que era
minha filha.
Isabel tinha algumas poucas fotos das duas guardadas consigo, e
quando percebi que passava tempo demais olhando para elas ao invés de
comer ou dormir, pedi para que tirassem do quarto onde ela estava. Houve
um surto enorme nesse episódio, minha mulher estava inconsolável,
chorando tanto que mal conseguíamos entender o que dizia. Depois de
sedá-la, pois sua agitação poderia machucá-la, ela nunca mais tocou no
assunto.
Ver aquilo tudo foi pior do que ir fazer morada no inferno. Pior do
que qualquer dor física ou emocional que já senti, inclusive a dos dias que
ainda me assombravam em terrores noturnos esporadicamente, mas não
consegui me livrar das fotos.
Mantive-as comigo, observando-as de vez em quando. Olhava o
sorriso leve em uma versão mais jovem da minha mulher, notando como,
mesmo antes daquela noite fatídica com Popov, ela já estava mudada. Com
o tempo, passei a olhar a figura ao seu lado, na foto das duas em uma
lareira, onde imaginava ser na casa onde cresceram. Olhava para a menina
que carregava meu sangue e DNA, e não podia deixar de notar as
semelhanças.
Encarando a figura da mulher praticamente morta diante de nós
naquele momento, não sabia se ainda seria possível encontrar algum traço
daquela menina. Ela estava magra demais, pálida demais, com olheiras
escuras demais debaixo dos olhos azuis esverdeados. Cada parte do seu
corpo estava tenso, e dava para ver como ela estava exausta.
Demorou alguns segundos para que eu entendesse por que caralhos
senti uma pontada no peito com a visão dela. Tanto que mal notei que Isabel
tinha saído do meu aperto e ido até Rosa, abraçando-a. Foi a minha vez de
ficar tenso, ou melhor, ainda mais tenso do que já estava nessa situação.
Eu estava dividido para caralho. Bastava mirar em Rosa para saber
que ela não era a menina sorridente da foto que guardava no meu escritório,
nem mesmo a garota trêmula de um ano atrás. Ela era perigosa. E isso me
deixava em alerta total, me dando vontade de arrancar minha mulher e meu
filho de perto dela antes que tentasse algo. Mas a outra parte de mim
encarava a pessoa que sabia ser minha filha, olhava as marcas de
machucados em seu corpo, notava o tanto que talvez ela precisasse daquele
abraço, mesmo que ela não tenha abraçado Isabel de volta.
O momento, seja lá o que tenha significado, acabou rapidamente, no
entanto. Mas o que saiu da boca dela me fez desejar ter feito a primeira
coisa que pensei em fazer quando a vi.
— O que vem agora, outro tapa?
A reação de Isabel foi como levar outro tapa.
Virei-a para mim antes que ela perdesse a cabeça e fizesse alguma
merda. Apesar de ter dado espaço suficiente para as duas ali, essa cena não
era nada boa para nós. Havia pessoas demais observando.
— Acabamos?
Tive que me segurar com todas as forças para não avançar em Rosa
ao notar o sorriso venenoso que ela lançou para Isabel, que me encarava
com veemência enquanto tentava se acalmar. Ela retribuiu o olhar, e isso foi
apenas uma confirmação que nem a pau eu deixaria minha esposa e filho
perto dela novamente, caralho.
— Marcus — chamei em um tom duro. — Leve a senhorita
Dourand para o quarto dela, s’il vous plait[13].
— Não vou a lugar nenhum — a porra da garota respondeu
impassível ao cruzar os braços.
— Se preferir dormir com os cavalos. — Até que não seria má
ideia...
— Manon. — Voltei a olhar para Isabel, que me implorava com seus
olhos.
Suspirei fundo. Que porra de situação. Por que Rosa não podia
simplesmente estar mesmo morta?
Isabel se virou e respondeu algo a ela, e começaram a discutir. Eu
estava começando a ficar no limite.
— Você é minha irmã — ela falou.
— Eu não sou nada sua — Rosa respondeu entredentes.
— Não fale assim com ela — rosnei, me segurando para não a tirar
daqui à força. — Você lhe deve respeito.
— Não devo respeito a um bando de criminosos.
— Novidade, querida, você também é uma. Então, largue essa
postura hipócrita — Luk rebateu, e eu soltei o ar. Ele também não parecia
gostar nem um pouco daquela situação.
Os dois travaram uma guerra de olhares, e parecia que iríamos
continuar brigando na frente daquela casa para sempre, até que Isabel
gritou.
— CHEGA!
Todos paramos para encará-la.
— Vão. Todos vocês. Deixem-me a sós com ela. — Nem fodendo.
— Ma puce...
— Deixem-nos. A. Sós — Isabel falou entredentes pela primeira vez
para mim.
Eu conhecia aquele olhar, aquela postura. Ela não aceitaria um não.
Não faça isso. Era o que meu olhar dizia.
Não me faça pedir de novo. Era o que o olhar dela respondia.
Foda-se!
Ergui o queixo, indicando para que Luk e Marcus se afastassem, e
segui alguns passos para trás, mais próximo da porta de casa. Não iria me
afastar mais do que isso, porra, e era melhor elas acabarem logo com
aquilo.
As duas conversaram por alguns minutos, mas a julgar pelas
posturas rígidas e as expressões de Rosa, não parecia nada bem.
Eu só queria ir lá para impedir que Isabel ouvisse as palavras duras
que com certeza a mulher jogava nela.
— Ela deveria ter continuado morta — Luk soprou um rosnado ao
meu lado, ao ver como ela abria os braços exasperada e Isabel parecia
rígida como uma estátua.
Minha mulher era forte. Não faria uma cena, especialmente na
frente dos soldados, porém eu sabia que depois remoeria cada palavra que
saiu da boca da irmã. E era aquilo que me preocupava mais. Não podia
perdê-la novamente.
Mas, de alguma forma, a fala de Luk não vingou em minha boca
como se fosse tirada de mim, espelhada nos meus pensamentos, ainda que
tenha pensado nisso minutos atrás.
Não espelhava porque sabia que a confirmação da morte dela
acabaria com Isabel mais do que essa discussão delas.
Quando Rosa se aproximou de Isabel, fiz menção de me aproximar,
mas ela logo se afastou, apenas falando sobre o ombro antes de vir em
nossa direção.
Ela parou com a postura aprumada, e mesmo com lágrimas nos
olhos, sua voz não falou quando se dirigiu a Marcus.
— Me leve até meu quarto.
Acenei com a cabeça quando ele olhou para mim e eles entraram.
Depois, me virei para Isabel, fazendo menção de me aproximar dela,
mas ela se afastou.
— Preciso de um tempo sozinha — foi tudo que ela disse antes de
partir. E não pude deixar de me perguntar se, mesmo não querendo perdê-la
novamente, talvez fosse acontecer exatamente isso.
Nem tudo é o que parece
“Estou me vendo
Me afastando
Uma visão tão obscurecida
Eu não posso ficar
Eu estou fora dos limites
Tentando me agarrar antes que eu caia
Um pouco tarde demais
Você pode me salvar?’’
Dont let me go, RAIGN

Dizem que o segredo para um casamento duradouro é a


comunicação. Bom... não estrávamos casados nem há duas semanas, e não
trocamos mais nenhuma palavra desde a catedral e a breve troca de falas
quando Rosa chegou.
Ainda não tinha tido um tempo para conversar com Manon. Não foi
pela falta de tentativa da parte dele. Era que eu apenas...precisava de
espaço.
Precisava pensar como agir em seguida, porque, desde a discussão
com Rosa, suas palavras rondavam minha cabeça vez ou outra.
“Você não tem ideia do que passei.’’
A forma como ela disse isso... com tanta dor em sua expressão...
Quando era eu quem me sacrificava, torcendo para que Rosa
estivesse bem de alguma forma, quando nem sabia onde ela estava, era
muito mais suportável do que a mera possibilidade de ela ter vivido o que
eu vivi, ou algo até pior. Ainda que soubesse que existisse essa chance.
Mas aquele olhar, aquele que conhecia tão bem, pois era o mesmo
olhar de quando me olhava no espelho depois daqueles meses no escuro:
perdido, cansado, torturado... aquele olhar estava presente no rosto da
minha irmã.
Então, mesmo com a crueldade de suas palavras, nada me machucou
mais do que aquele flash de vulnerabilidade que vi em seu rosto. E o vi
novamente nos dias seguintes desde que ela chegou. Toda vez que nos
cruzávamos na casa, quando ela me via com Manon. Quando ela se unia a
nós na sala de reuniões para discutirmos o próximo passo...
Do lado de fora, agíamos como uma frente única. Manon e eu nos
defendíamos com unhas e dentes e nunca discutíamos na frente de ninguém.
Mas do lado de dentro? Não nos falávamos mais.
Manon não me tocava à noite, quando deitávamos em nossa cama, e
eu não o tocava. Mesmo que, com os malditos hormônios da gravidez, meu
desejo pelo meu marido tenha aumentado... parecia apenas errado estar com
ele e me sentir tão bem, quando, no outro quarto da casa, estava minha irmã
perdida, sofrendo.
Manon parecia sentir o mesmo. Ele não precisou falar, mas eu sabia
que parte dele foi afetada desde que descobriu que tinha uma filha, há um
ano. Talvez nem mesmo ele fosse capaz de entender, porém a prova disso
era que ele nunca parou de procurá-la, mesmo alegando que ela estava
morta durante todo esse tempo.
Ele dizia que era porque ele me amava e fazia por mim, mas eu
sentia que havia uma parte dele que fez por ele mesmo, e que era apenas
uma questão de tempo até ele perceber.
Desliguei o chuveiro, a água quente há muito já tinha esfriado.
Estava no banho há tanto tempo, tentando colocar meus pensamentos em
ordem, que minha pele estava enrugada.
Eu sabia que a relação de Manon e Rosa nunca poderia ser uma
relação normal de pai e filha, mas torcia para que ambos pudessem ter
algum tipo de relação, especialmente considerando que Mourand, nosso...
meu pai, estava morto, e eu tinha quase certeza de que Rosa nunca foi ver
mamãe, já que ela estava sob constante vigia dos homens de Manon, e teria
sido vista se o tivesse feito.
Peguei a toalha e fui para a frente do espelho, passando a mão para
tirar o resto do vapor que cobria a superfície, me deparando com meu
reflexo.
Um reflexo cansado.
Bolsas roxas se formavam embaixo dos meus olhos, devido à falta
de sono. Meu rosto estava mais magro, já que tinha perdido peso nesse
começo da gravidez. Os fios pretos do meu cabelo estavam molhados,
moldando meu corpo pálido. Eu parecia... perdida. Tão perdida como me
sentia com relação ao que faria a seguir.
Meu olhar seguiu para minha clavícula, e observei o começo da
tatuagem que descia por entre meus seios. A rosa vermelha como sangue
fincada por uma espada, que se tornava seu próprio caule, já estava
totalmente cicatrizada agora. Toquei o símbolo com a ponta dos meus
dedos, e não pude deixar de abrir um pequeno sorriso.
Minha vida poderia estar uma confusão. Minha mãe não sabia que
estava viva. Minha irmã me odiava. Eu estava grávida e não fazia ideia se
seria uma boa mãe, ou se sequer viveria para saber, já que não sabíamos o
que aconteceria com as famílias. E a cereja do bolo era o fato de que Manon
e eu estávamos distantes. Mas olhar para aquele símbolo colorido em minha
pele me dava esperança. Talvez, por sentir o amor do meu marido marcado
em minha pele. A promessa que ele me fez.
Soltei um suspiro e me permiti mais alguns segundos admirando a
tatuagem antes de começar a me arrumar.
Hoje, treinaríamos na academia da propriedade. A guerra era
iminente, e tínhamos que nos preparar para um possível conflito enquanto
corríamos contra o relógio para fazer o plano que Rosa trouxe para nós há
alguns dias. Não estava ansiosa para ver Rosa novamente, considerando a
hostilidade que tem ficado toda vez que ficávamos no mesmo ambiente,
mas não tinha escolha.
Resolvi lhe dar espaço, para que assimilasse as coisas ao seu redor e
viesse falar comigo no seu tempo. Porém, minha paciência estava se
esgotando, e em breve, eu iria querer me resolver logo com minha irmã.
Se há uma coisa comum em praticamente todos os irmãos, é que um
quer matar o outro pelo menos uma vez. Pode ser uma vez por dia, por
semana, ou a cada minuto, dependendo da frequência de brigas idiotas que
um arruma com o outro simplesmente para perturbá-lo.
É algo natural detestar tanto quanto ama seu próprio sangue. Claro
que nem todas as relações são iguais, e nem todos os irmãos se dão bem, ou
se amam, mas a questão não é essa.
Rosa e eu nunca nos encaixamos nessa categoria.
Claro, nos provocávamos, ela mais do que a mim quando crianças,
mas nunca quis matá-la, e acho que ela também nunca quis me matar. Até
agora.
Talvez tenha sido a forma como fomos criadas, como foi tão
diferente entre nós duas, e como, em parte, fez com que eu tivesse que ser a
adulta da relação. Não que nossos pais, ou melhor, meus pais, não amassem
nós duas. Mas era clara a diferença de tratativa que tivemos ao crescer.
Eu podia ir ao colégio. Rosa estudava em casa.
Eu podia ter amigos, mas não os trazer até a mansão. Rosa só tinha
a mim.
Eu podia sair de casa para fazer faculdade e viver um pouco. Rosa
ficaria presa.
Eu cuidaria dos negócios da família, e ela seria nossa princesinha
para sempre.
É até engraçado pensar sobre como vivemos todos esses anos sem
questionar papai e mamãe sobre essas escolhas de vida feitas para nós duas.
É claro que não tínhamos muitas referências, mas eu sabia que aquilo não
era muito normal, e Rosa também sabia. Então, como pudemos ser tão
cegas esse tempo todo e não termos desconfiado de nada? Havia tantas
pontas soltas nas mentiras que ouvimos ao crescer que começava a me
perguntar o que foi verdade.
Então, mesmo sendo apenas quatro anos mais velha, eu criei minha
irmã pro mundo, da forma que podia, pelo menos. Ensinei tudo que me era
ensinado e tentei formá-la ao formato em que me tornei. É óbvio que não
deu certo e ela não se tornou eu, mas eu sabia que se tornou alguém muito
mais forte.
Estava na porta da academia, na propriedade, mas sem coragem de
entrar. Rosa estava ali dentro, sozinha, e me contentei em observar por um
tempo.
A resiliência com a qual ela treinava naquele saco de areia, antes de
todos chegarem à academia, a precisão dos movimentos, que provavelmente
evoluiu durante esses dois anos... Rosa não era mais a garotinha que deixei
no meu quarto antes de eu ir à cidade fazer compras antes de partir. Não era
mais a menininha quebrada que ainda precisava de mim antes de levar
aquele tiro, há um ano. Ela era uma mulher forte com sede de vingança. E
conforme ela alternava os golpes ali, soube que queria muito ser a fonte de
que ela precisava.
Uma presença apareceu do meu lado, mas eu não parei de observar
enquanto minha irmã se movia naquela enorme sala.
— Ela é boa — a mulher do meu lado comentou em forma de
cumprimento.
— Sim, ela é. — Isso apenas me faz questionar o que fez com que
ela precisasse ser tão boa assim. Se ela aprendeu em uma sala dessas ou
apanhando nos últimos meses.
— Você deveria falar com ela — Alessia disse, e dessa vez, sabia
que me observava. — Para preservar os equipamentos para nós também,
quero dizer.
Um sorriso se formou em meus lábios, e eu assenti.
— Vou me lembrar disso. — Era capaz de ela querer me usar ao
invés do equipamento, mas... pequenos passos, não?
Ficamos em um silêncio confortável enquanto nós duas olhávamos
para os movimentos dela.
— Nunca pude lhe agradecer propriamente por nos receber — ela
disse depois de alguns minutos.
Virei-me para ela, vendo as sombras tomarem seus olhos tão negros
como a noite.
Quando a conheci, pensei que Alessia era a mulher mais bonita da
festa, e nunca poderia estar mais errada. Ela era a mulher mais bonita que já
vi. Era algo sobre esses olhos dela, que pareciam engolir nossa atenção de
forma que não conseguíamos olhar para outro lugar. Tão diferentes e
singulares que nem seu gêmeo, Matias, os tinha. Não que os orbes azuis
dele não fossem bonitos, apenas não únicos como ela.
— Não procuro sua gratidão, mas se a tenho, fico feliz.
Alessia abriu um sorriso de lado, provocativo, como ela toda.
— Pagarei de volta a você, eventualmente.
— Estou contando com isso nessa guerra.
Ela se virou e abriu a porta que levava para dentro da academia,
olhando por cima do ombro.
— Você não vem?
— Em um minuto.
Voltei a ficar atrás da porta, vendo Alessia interagir com minha
irmã. Quando Rosa sorriu, mesmo que não chegasse aos seus olhos, um
aperto tomou meu coração.
— Bon jour[14], Isabel — Matias comentou passando por mim, com a
piscadela provocativa de sempre. — Está reunindo coragem para nos
enfrentar no ringue?
Revirei os olhos.
— Terá sorte se sair vivo se ela pegar você — Astrid comentou
colocando o braço em meus ombros ao chegar. — Até porque, se relar um
fio de cabelo nela, é capaz de Manon dessecá-lo por inteiro.
Matias simulou um arrepio forçado e entrou, deixando nós duas
rindo dele. Ele era um cara lega, apesar de saber muito bem que seu sorriso
felino era apenas uma máscara para o assassino perigoso que era. Não que
qualquer um de nós fosse diferente.
Astrid olhou pela porta de vidro o lado de dentro e suspirou.
— Talvez eu treine mais tarde.
— Ainda não a perdoou? — perguntei, sem precisar especificar de
quem estávamos falando.
Astrid se encostou do outro lado do batente, cruzando os braços.
— Você também não a perdoou.
Dei de ombros.
— Tá mais para ela não querer me perdoar.
Minha amiga soltou uma bufada, mas sem humor.
— Acho que esse jogo de um perdoar o outro nunca vai acabar. —
Ela estava certa. Eram mágoas demais.
— Vai ver, temos apenas que começar de novo, sem tentar ficar
quites.
— Talvez — concordou, sombriamente.
Eu sabia que parte da razão de ela não ter falado com Rosa ainda era
por mim, mas a maior parte era pela traição de não ter confiado nela e se
escondido por um ano. Especialmente porque Dick a ajudou. Não entendia
muito bem a dinâmica desses dois, nunca quis me meter e perguntar
diretamente à Astrid, mas sabia que eles tinham alguma coisa. E talvez ela
apenas estivesse com ciúmes.
A questão era: de quem?
Can apareceu pelo corredor, todo elétrico como sempre.
— Bom dia, meninas.
— Bom dia — cumprimentamos de volta.
Ele parou ao lado da irmã e encarou um ponto específico do outro
lado da porta. Um sorriso cresceu em meus lábios ao ver que ele olhava
para Matias, que, no momento, lutava para fugir de Rosa e Alessia.
— Melhor entrar lá antes que arruínem o rosto bonitinho dele —
Astrid provocou.
— Seria realmente uma pena para o mundo perder esse rostinho —
Can comentou com um sorriso antes de entrar com ela.
Astrid seguiu o irmão, mas se virou para mim.
— Vejo você lá dentro.
Assenti, voltando a ficar sozinha, observando o grupo. Mesmo
disfuncional, éramos uma boa equipe. Ainda não confiava plenamente em
ninguém além de Manon, assim como imaginava que ninguém confiava em
nós também, apenas em seus similares, mas aquilo era o mais próximo de
uma família que eu tinha.
Toquei minha barriga por instinto. Bom... eles eram pelo menos
parte dessa família, que logo, logo iria crescer.
— Está tudo bem? — Manon perguntou parando ao meu lado, me
sobressaltando um pouco, pois não havia notado sua presença.
Trocamos um olhar desconfortável, como se não soubéssemos se
nos beijávamos ou nos abraçávamos, ou sequer se deveríamos nos
cumprimentar.
Dormi antes de ele deitar noite passada e, quando acordei, ele já
tinha saído. Não havíamos nos visto ainda, então cumprimentar seria o
correto, né?
Odiava ter essa dúvida. Odiava me sentir assim perto dele. Como se
estivesse pisando em um campo minado. Odiava essa distância que estava
entre nós dois, mas ela existia por minha culpa, não dele, tinha que me
lembrar.
Isso me impulsionou a finalmente abrir um sorriso e me aproximar,
beijando de leve seus lábios. Manon pareceu relaxar com meu avanço, e
enlaçou o braço em minha cintura. O pequeno toque, somado à falta que
sentia dele, fez pequenos arrepios surgirem em minha pele.
— Melhor agora — sussurrei.
Ele sorriu, e eu me derreti sobre ele quando ele beijou novamente
meus lábios, de forma mais prolongada dessa vez. Não consegui deixar de
me perguntar por que eu dificultava tanto? Estar em seus braços naquele
momento me fez perceber que não eu tinha motivos.
— Senti saudades.
Manon ajeitou uma mecha que escapou do meu cabelo, deixando-a
atrás da orelha.
— Eu também, ma puce.
— Sabe, vocês têm um quarto para isso. Não precisam vir malhar, se
estão tão em forma um com o outro — Luk comentou ao passar por nós
quando chegou.
Revirei os olhos e sorri, me afastando do abraço do meu marido,
finalmente entrando na sala do treino com eles.
Pude sentir os olhos de Rosa em mim, mas não a olhei de volta.
Mantive meu percurso e me juntei aos outros, deixando Manon me ajudar a
alongar meus músculos.
— Vou ter que sair em breve, Luk e eu temos que ir conversar com
alguns dos fornecedores para mudar as rotas dos caminhões de armas que
vão pros ingleses.
— De novo? — resmunguei. — Não trocaram essas rotas há duas
semanas?
Ele me deu um olhar sério.
— Está comprometida, já que passa pela Itália.
Merde[15], os Caruso. Certo. Tinha me esquecido disso.
Depois do show do nosso casamento, as famílias não anunciaram
nada. Mas todos os fornecedores dos territórios delas de repente sumiram, e
as entregas das armas que levávamos aos aliados, para disputarmos a
guerra, sumiam no caminho.
— Vai demorar para voltar?
— Não muito — ele respondeu, me dando outro beijo rápido nos
lábios antes de virar para chamar Luk.
— Luk — chamei com urgência antes de se afastar com Manon.
Ele me olhou por cima do ombro.
— Cuide bem dele — pedi.
Luk abriu um sorriso travesso.
— Eu sempre cuido.
Suspirei fundo ao vê-los partir. Manon não saía de casa com muita
frequência, pelo menos não sem mim, e não desde que formamos esse plano
contra as famílias. Então, toda vez que ele parte a negócios, é como se um
buraco se formasse em meu peito e só voltasse a ser inteiro novamente
quando ele voltava para casa. Considerando minha situação de corda bamba
atual com ele, toda vez que ele tinha que sair, era como um adicional na
fórmula de esposa preocupada.
E se ele se machucasse? E se alguém o encurralasse e tentasse
matá-lo? E se ele não voltasse para mim?
Um mar de “E se’s” tomava minha mente, e eu não ficava bem até
que ele retornasse. Mas não poderia ficar assim novamente hoje. Não. Hoje,
eu me concentraria em outras coisas que tinha que fazer. Como tentar me
aproximar da minha irmã.
Fiquei tão imersa em pensamentos que apenas notei que ela se
aproximava de mim quando estava a poucos metros de distância. O choque
de ela ter feito o primeiro passo não anulou o que veio a seguir, quando ela
apontou para o ringue.
— Me acompanha?
Encarei as luvas em sua mão. Ela queria lutar. Porque isso seria com
certeza uma ótima ideia.
Mas era melhor do que nada, certo?
Um sorriso tomou meus lábios, e finalmente respondi.
— Achei que nunca pediria.
Rede de mentiras
“Estamos enterrados em sonhos quebrados
Estamos atolados sem um fundamento
Eu não quero saber
Como é viver sem você
Não quero conhecer
O outro lado do mundo sem você
Isso é justo, ou é o destino?
Ninguém sabe
As estrelas escolhem seus amantes
Salve a minha alma
Isso machuca do mesmo jeito
E eu não consigo me afastar’’
The Other Side, Ruelle

A mentira não é única. Quando se conta uma mentira, é necessário


preparar o terreno, como se plantasse sementes de onde nascerão mais
mentiras dali para frente, para acobertar aquela que você conta no começo.
É uma complexa teia de aranha, que a emaranha em mentiras inacabáveis
até que você se esquece da verdade, ou se esquece da mentira que originou
a armadilha ao qual agora está presa.
Lorenzo criou uma rede de mentiras ao resolver trair Manon. Popov,
Mágida, sua mãe, e todos os outros eram como insetos presos ali, tanto
quanto nós. A única diferença era que seríamos os primeiros a serem
devorados se não fizéssemos algo a respeito.
Depois da discussão e revelações que tive com Rosa no nosso
treino, liguei imediatamente para Manon, pedindo para que voltasse para
casa e contando por cima nossas descobertas.
— Ma puce? — ele atendeu preocupado. — O que foi? Aconteceu
alguma coisa? É o bebê?
— Estamos bem — respondi acariciando a saliência pequena em
minha barriga, deixando que a voz do meu marido fosse um bálsamo para a
agitação em meu interior, desde que saí da academia.
— Preciso que volte para casa.
— O que aconteceu? — ele questionou mais calmo, mas ainda podia
ouvir o tom mortal em sua voz, como se ele pudesse atravessar o telefone e
matar seja lá a ameaça que estivesse diante de mim.
Nesse caso, a ameaça era real, mas não estava aqui. E muito
provavelmente afetaria muito mais ele do que a mim.
— É sobre seu irmão.

Ouvir o nome da porra do pedaço de esperma que dividia o mesmo


DNA que o meu me deixou nos nervos. Mais do que já estava por deixar
minha mulher sozinha com Rosa. E mais ainda, especialmente por aquele
nome ter vindo da boca de Isabel.
Pelo visto, não era apenas eu quem guardava mágoas, como Rosa.
Acho que aquela história de tal pai, tal filha é verídica.
Tudo que sabia era que, durante esse um ano, tirei poucos momentos
da minha vida para pensar em meu irmão. Crescemos em uma realidade
fodida, com um pai narcisista fodido, que nos tornou máquinas para matar.
E apesar de saber que Lorenzo queria ser Don, ele nunca se opôs
verdadeiramente quando fui nomeado em seu lugar. Sua traição queimava
em meu peito, pois ele era o único além de Luk em quem eu confiava
naquela vida fodida dos Martin.
Não apenas isso, mas olhar para minha mulher, a forma como ela
ficou durante um ano, com tantos traumas por conta desse plano
desgraçado, e agora saber que Rosa foi jogada nessa merda... Isso apenas
me deixava mais puto ainda.
Voltei correndo para casa com Luk assim que minha esposa nos
atualizou. O próximo passo era essencial antes de seguirmos com nosso
plano: tínhamos que encontrar meu irmão e acabar logo com isso, de uma
vez por todas.
E não havia um caminho mais fácil de encontrá-lo com a única
pessoa com quem ele parecia se importar minimamente mais do que a si
mesmo. Uma pessoa de quem por acaso nunca gostei, mas deixei que
respirasse por ser mãe dele, quando eu o considerava. E agora queria poder
tê-la matado eras atrás.
Ironicamente foi algo parecido com o que a desgraçada falou.
— Lorenzo tinha que tê-lo matado quando eram crianças, como
mandei!
Escárnio escorreu pela minha pele. É óbvio que ela teria mandado
meu irmão fazer algo assim. Agora, ficava apenas chocado em saber que ele
não o fez antes.
— Bem, uma oportunidade perdida, infelizmente — lamentei com
ironia antes de voltar a ficar sério. — Agora, nos diga onde ele está antes
que você tenha que conhecer um lado do meu trabalho que meu pai sempre
fez questão de esconder de você. — O que nunca fez muito sentido para
mim, na verdade.
Mesmo velha, Mágida ainda tinha uma aparência decente. Loira,
olhos claros, parecia a porra de uma mulher italiana ideal, um maldito anjo
aos olhos do demônio que era Yohan Martin. Só que, por trás dessa camada
superficial que nunca me enganou, sempre soube sua verdadeira essência.
Ela tentou roubar meu pai da minha mãe, queria que ele se divorciasse dela
e a matasse, mas quando não fez isso, se tornou sua amante, dando seu filho
bastardo antes mesmo de eu nascer, o que fez minha mãe se ressentir, até
que minha mãe morreu de desgosto anos depois, quando eu ainda era
criança. E quando ter o filho mais velho não era o suficiente – já que era eu
quem teoricamente herdaria o lugar do meu pai –, ela fez a cabeça do meu
pai sobre como Lorenzo, por ser mais velho, se encaixaria melhor.
Por anos, a tratativa que ele dava entre mim e Lorenzo eram claras.
Ele era o preferido, pois ele seria o Don. Era irônico como eu sempre fui
tratado como bastardo, mas nunca culpei meu irmão por isso. Mas anos
depois, isso mudou quando ele se mostrou instável demais para um papel
que desempenhei muito bem nos últimos anos.
Olhando para essa mulher se debatendo naquele momento, se
recusando a nos contar o que precisávamos, parte de mim não deixou de se
perguntar se talvez Lorenzo não se ressentia, até que ela fez a cabeça dele.
Até que ela implementou as ideias de me trair, até que as sementes se
desenvolveram, e a culpa dessa merda toda seria indiretamente dela.
Só por isso, as sombras dentro de mim se coçavam para querer
torturá-la. Pedia para que ela relutasse, para que eu tivesse que arrancar a
verdade dela.
Apesar de não gostar muito de torturar mulheres, já o fiz, pois,
afinal, como Don, não deveria ser misericordioso com ninguém. O sangue
podre em minhas mãos já estava dentro da minha pele há muito tempo. E
não me importaria de trazer mais à coleção.
Indiquei com a cabeça para que os outros saíssem, sobrando apenas
eu, Luk, Marcus, e as duas figuras femininas, além da terceira amarrada à
cadeira.
Isabel viu e fez coisas demais no submundo, e mesmo sabendo que
ela também queria fazer parte disso, ainda me lembrava da nossa última
conversa, sobre como ela se sentia insegura sobre como nosso filho poderia
sentir a podridão do nosso mundo. Ela não poderia fazer parte disso hoje.
— Ma puce, é melhor você não ver isso. Nem você, Rosa.
Rosa engoliu em seco, como se só agora percebesse o que estava
prestes a acontecer, mas não olhava para ela. Eu olhava para minha esposa,
que não se mexeu nem um centímetro. Ela e Rosa trocaram um olhar longo
antes de ela se virar para mim.
— Preciso conversar com você rapidinho lá fora.
Franzi o cenho, tentando entender que caralhos estava acontecendo,
mas deixei que Isabel saísse comigo para o corredor.
Arqueei a sobrancelha.
— Pensei que tinha dito que não queria mais ver isso.
— Não quero — ela afirmou, cruzando os braços.
— Então, qual o problema?
Isabel suspirou, um suspiro quebrado que me deixou em alerta.
— Pode não a torturar?
— Ma puce...
— Por favor — ela insistiu. — É só que... mesmo ela sendo um ser
humano horrível, eu...
— O quê? — perguntei, me aproximando.
Isabel ergueu o olhar para o meu, determinada.
— Ninguém merece isso. E não quero que suje suas mãos com ela.
Balancei a cabeça.
— De onde está vindo isso?
Ela enrijeceu.
— Eu acho que Rosa...acho que Popov... fez com ela o que fez
comigo, ou até pior.
Puta que pariu!
Se aquele desgraçado não estivesse morto e enterrado, eu o
ressuscitaria apenas para torturá-lo lentamente até matá-lo.
Soltei um longo suspiro, puxando-a para um abraço. Isabel estava
tensa, mas cedeu.
— O que você sugere?
Ela me encarou e sorriu.
— Deixe com a gente.

Existem diversas formas de tortura. A física é a mais conhecida e


mais temida pelas pessoas, mas a psicológica é quem dá mais resultados.
Ela demora, pode ser engenhosa e trabalhosa, mas quando feita com êxito, é
praticamente infalível.
Mágida poderia não ter sofrido fisicamente hoje, como eu planejava
que fizesse, mas ela sofreu. E nos deu exatamente o que queríamos.
No entanto, percebi como, mesmo não sendo nada efetivamente
sangrento, Isabel se afetou. Quando terminamos, ela subiu para o quarto, e
deixei que tivesse seu tempo sozinha antes de me juntar à minha esposa.
Essa tem sido nossa rotina, afinal. Quanto mais nos afundamos nessa
vingança, mais mostro um lado meu que a afasta. E não sabia o que fazer
para parar.
Tirei meu tempo cuidando para exilar a desgraçada da minha
madrasta e bebendo um bom copo de uísque em meu escritório antes de
subir. Foi quando trombei com um ser que estava me surpreendendo cada
vez mais.
— Como sabia que iria funcionar? — perguntei para Rosa, e ela
parou na escada.
Ela deu de ombros.
— Não sabia.
Encarei a irmã da minha esposa, a... minha filha, e não pude deixar
de notar nossas semelhanças.
Soltei um longo suspiro, similar ao dela.
— Eu lhe devo um pedido de desculpas — ela falou, me
surpreendendo, já que era o que eu estava me preparando para fazer.
— Acho que nós dois nos devemos — comentei. — Deveria ter
acreditado em Isabel quando ela disse que você ainda estava viva, deveria
ter ido atrás de você. Deveria...— Interrompi-me, não estranhando tanto a
onda de culpa que me tomou.
Eu já sabia disso há um ano, e mesmo sabendo que nunca
poderíamos realmente ser... não deixava de pensar como deveria ter tentado
ser o seu pai.
— Acho que é tarde demais para esse último — Rosa comentou
dando de ombros.
Abaixei a cabeça e exalei.
— Não quero você como inimiga. Isabel a ama e...
— Não sou sua inimiga.
Olhei-a com um olhar desafiador, e ela sorriu.
— Pelo menos, não mais.
Aquele sorriso deu uma outra pontada no meu peito. Agora, ela não
parecia comigo. Parecia com uma outra pessoa, uma que amei imensamente
e também me traiu. Uma que odiei por anos sem saber seus motivos, e que
apenas perdoei recentemente, mas que nunca poderia pedir o perdão de
volta.
— Você se parece muito com ela. Na verdade, é uma mistura. —
Deixei escapar em voz alta e vi a confusão no seu rosto. Assim como vi
quando ela percebeu de quem eu falava e uma sombra tomou sua expressão.
— Se quiser, posso lhe contar algumas coisas sobre ela. — Depois
de tantos anos odiando-a, agora que a verdade estava finalmente exposta, as
lembranças dos bons momentos que passei com Jessabelle voltavam de vez
em quando. Eram essas lembranças que compartilharia com minha filha. Se
ela quisesse.
Rosa hesitou, e quase cogitei retirar a oferta, mas então respondeu.
— Ofereça-me isso depois que tudo acabar.
Eu sabia o que ela estava fazendo, pois era o que eu estava
pensando. Pode não haver um depois. Não com essa guerra.
— Boa noite, Manon — ela se despediu, virando-se para subir o
resto dos degraus.
Eu deveria deixá-la ir, deveria deixar para lá. Mas não falei tudo
quando disse que não a queria como inimiga. Nunca poderíamos ser pai e
filha, mas eu queria ser algo para ela também. Algo para essa mulher
quebrada pelo submundo, que foi arrastada para ele, e que ainda tinha
esperança de ter aquela menininha da foto que guardava no escritório. E foi
por isso que comentei antes que ela saísse.
— O que você fez por Mágida... foi... Um ato de se admirar. —
Rosa me encarou, mas não disse nada. — Ela não merecia isso.
— Muitas pessoas não merecem muitas coisas nesse mundo, Manon
— ela finalmente respondeu quando se virou, falando sobre o ombro. —
Mas acho que não é o nosso papel escolher por elas.
E com isso, ela partiu.
Mal notei que estava sorrindo até depois que desapareceu pelo
corredor. Ela poderia ser parecida comigo e com Jessabelle, mas esses
princípios? A cara da minha mulher. Uma com quem eu precisava
desesperadamente conversar.
Voltei para o quarto procurando por Isabel, mas ela não estava lá.
Odiei sentir uma pontada de desespero em mim ao não a ver ali.
Odiava não saber onde ela estava e odiava saber que não deveria ir atrás
dela, pois ela precisava desse espaço.
A cada dia que passava, eu a perdia mais e mais, e agora que ela e
Rosa estavam bem, não conseguia entender o que nos impedia e nos
afastava tanto.
Deitei na cama, mas não consegui dormir até que ela voltasse. O que
demorou muito.
Eram três da manhã quando um corpo quente se uniu ao meu na
cama, mas eu não me virei.
— Onde estava? — questionei com a voz rouca.
— Pensei que estava dormindo — Isabel sussurrou baixinho, me
abraçando por trás.
Não respondi. Não queria ter que perguntar novamente sobre onde
estava porque estava com medo da resposta.
— Estava com Rosa. Deitei-me com ela e perdi a noção do tempo,
desculpe.
Quando continuei em silêncio, senti seu pequeno corpo se mover.
— Manon? — Isabel chamou, me encarando.
— Eu não ia parar — é tudo que eu digo. Não preciso elaborar, ela
sabia que estava falando da tortura de hoje.
— Eu sei — é o que me responde.
— Não sei se um dia vou parar. — Parar de torturar, de querer
torturar, matar...
Isabel apoiou o queixo em meu ombro e suspirou fundo.
— Eu sei.
— Eu queria torturá-la hoje.
— Ela foi horrível com você sua vida toda, e está ajudando Lorenzo.
Não julgo você.
Será?
Virei-me para minha esposa, brincando com os fios do seu cabelo.
— O que fizeram hoje foi um ato misericordioso. Não sei se seria
capaz de fazer algo assim — finalmente admito o que tem me consumido
por dentro.
Isabel montou em meu corpo, obrigando-me a ficar cara a cara com
seus olhos de fogo.
— Mas você já fez. Por mim. Por Rosa.
— É diferente.
Sua mão toca minha bochecha, fazendo uma carícia leve em minha
pele.
— Está apenas tentando procurar um motivo para se condenar.
Um sorriso gelado tomou meus lábios.
— Não preciso de motivos, ma puce. Tenho mais pecados nas costas
do que alguém normal é capaz de carregar.
Ela franziu o cenho.
— O que quer dizer com isso?
Não respondo. Não conseguia.
— Vou sair.
— O quê? — ela pergunta quando a tiro de cima de mim e me visto,
saindo da cama.
— Descanse um pouco, tenho que resolver umas coisas.
— Manon! — ela me chama, mas eu parto mesmo assim.
Fui direto para a academia. Deixei o suor e cansaço físico me
exaurirem naquela sala para não pensar em nossa conversa.
“O que quer dizer?’’ ela me perguntou, mas eu não respondi. Não
consegui falar. Não poderia falar para ela que, mesmo que nosso plano
funcionasse e acabássemos com a máfia, eu não saberia se conseguiria viver
outra vida. Luk estava certo. Estávamos amaldiçoados demais com nossos
pecados, marcados pelo submundo. Não saberia se conseguiria ser normal.
Porque se eu dissesse isso, apenas assinaria a sentença de que eu a perdi.
Para sempre, dessa vez.
Por trás do seu olhar
“Onde eu posso ir?
Quando as sombras estão me chamando
As sombras estão chamando por mim
O que eu posso fazer?
Quando ela está me puxando para baixo
Me puxando para baixo
Está chegando perto
Eu perco o controle
Está me dominando
Estou deslizando até o fundo do poço
Eu estou fora de mim
Eu não consigo recuperar o fôlego’’
Deep End, Ruelle

Minha mãe costumava dizer para não comemorar a maçã que caía
dentro do nosso muro, pois, na maioria das vezes, elas despencavam do seu
pé por estarem podres por dentro. Depois de finalmente me resolver com
minha irmã, um enorme peso pareceu sair das minhas costas. O ar era mais
fácil de respirar. Andar, abrir os olhos, e fazer coisas mundanas, como sorrir
e viver, eram tarefas que me senti almejando, não condenando. Mas logo
quando voltei para o quarto, para encontrar meu marido claramente
chateado com algo que não queria compartilhar comigo, percebi que talvez
tenha mordido a maçã cedo demais.
Odiava me sentir tão distante dele e de seus pensamentos. Manon
nunca se deixou abrir demais em minha presença, mesmo antes. Porém,
desde que entramos nessa juntos, ele estava começando a me deixar entrar,
assim como eu o deixava. Talvez não fosse na mesma medida, mas
estávamos chegando lá. Agora, no entanto, era como ser esposa de um
estranho. Um estranho que eu amava mais do que poderia começar a
explicar, que me cativava, provocava e me fazia sentir segura e amada, mas
que não conseguia fazer ideia do que se passava por trás dos seus olhos.
Ainda que soubesse que eles sempre estavam mirados em mim. Como neste
exato momento.
Estávamos indo em direção à sala de jantar, que virou nosso cômodo
de reuniões, e trocávamos olhares desconfortáveis sobre como abordar essa
nova situação.
— Rosa não vai gostar nem um pouco disso — comentei baixinho.
Luk se virou para mim, e eu suspirei.
Era melhor deixá-los conversarem. Afinal, parte do que faríamos a
partir dali dependia do que decidíssemos. E mesmo sabendo como eu me
sentia sobre isso, pois sabia como ela iria se sentir, não poderíamos nos
antecipar.
— Vou entrar. Estou morrendo de fome — falei antes de me juntar
aos outros na sala. Graças a Deus, Rosa ainda não tinha chegado.
Mas não demorou muito até que ela, Can e Astrid entrassem no
cômodo com os pratos e talheres para comermos. Bem na hora em que Luk
chegou resmungando atrás de Manon.
— Porra, quantos casamentos serão destruídos este mês?
— Luk — Manon tentou repreender. Mas já era tarde demais.
Todos congelamos.
Alessia e Matias já sabiam do assunto que discutíamos, e trocaram
olhares cautelosos com Rosa, Astrid e Can.
— Que casamento? — ela perguntou confusa.
Luk apenas olhou-a ironicamente. Aquilo não sairia nada bem. Ele
estava puto.
— Além do que você arruinou?
— Luk — tentei chamar.
Ele estava estranho ultimamente. Mais nervoso e pavio curto que o
normal. Caterina partira há alguns dias, de volta para os Del Toro e seu
marido psicótico. Nenhum de nós queria deixá-la ir, mas não precisávamos
irritar Padilha antes da hora certa. E mesmo sabendo que ela podia se
cuidar, estava preocupada. Não tínhamos notícias dela desde que se foi, e
algo me dizia que isso poderia ter a ver com o comportamento do nosso
consigliere[16].
— Do que está falando? Que outro casamento iremos destruir? —
Rosa ignorou a alfinetada de Luk, e me encarou nervosa quando ninguém
respondeu.
Como quebrar um coração que já viu partido vezes demais? Que
mal tinha começado a catar os caquinhos? Não havia um jeito suave de
fazer isso.
— Rosa. — Estendi a mão e toquei seu ombro, tentando preparar
para o baque. A mim ou a ela, não sabia.
Mas não precisei fazer, pois foi meu marido quem se aproximou e
disse.
— É na Arábia Saudita. Chaol vai se casar.
O que veio depois disso foi como um grande borrão caótico.
No começo, Rosa apenas saiu para a varanda e ficou lá até me
preocupar que seus dedos congelariam. Pedi para que Luk fosse verificar, e
quando ela voltou, ela não parava de pedir para que fôssemos impedir esse
casamento e sequestrar Chaol. Só que não era simples. Não era um
casamento qualquer, nem um cara qualquer. E não tínhamos números nem
condições para fazer aquele plano suicida.
— É arriscado demais — meu marido disse para ela, enquanto todos
discutíamos sobre como tínhamos que ser cuidadosos.
Luk balançou a cabeça.
— É uma armadilha. E iremos cair direto nela se formos.
— Então, é bom estarmos prontos — Rosa rebateu, inabalada.
Ela não mudaria de ideia. Eu sabia que essa seria sua reação assim
que soube da notícia, mas isso não mudava a forma como deveríamos fazer.
O que queremos nem sempre é o que precisamos. Nesse caso, nessa
guerra, o que queríamos nos mataria, e não poderíamos nos dar ao luxo
disso.
E foi exatamente por isso que me mantive firme mesmo quando ela
se virou para mim com um olhar suplicante.
— Por favor — praticamente sussurrou.
— Não podemos nos arriscar tanto. — Me desculpe, maninha.
Rosa obviamente não gostou da resposta.
— E o papo de “vamos morrer tentando’’? — ela jogou de volta as
palavras que disse a ela quando fui em seu quarto ontem à noite.
Quando não respondi, ela se virou.
— Vocês são um bando de hipócritas! — cuspiu, nos olhando com
menosprezo. — Ficam aí, brincando de Deus, falando que querem acabar
com tudo, mas quando têm a oportunidade...
— Não é assim — tentei me intrometer.
— ENTÃO, O QUE É? — ela gritou, me sobressaltando quando se
virou novamente para mim, mirando-me com raiva. — PORQUE, ATÉ
ONTEM, VOCÊ ESTAVA DO MEU LADO!
— Eu estou do seu lado — afirmei. — Só quero pensar da forma
mais racional, e...
— POR QUÊ?
Porque eu tenho algo a perder agora, maninha. Porque não é mais
só sobre vingança. Porque eu já a perdi uma vez, e mesmo não querendo
perdê-la de novo, não sobreviveria se perdesse isso.
Rosa respirou fundo, abaixando a cabeça, derrotada.
— Ontem, você me disse que faríamos de tudo, que morreríamos
tentando.
Eu disse, e eu faria.
Mas não ainda, não antes de fazer o que tinha que ser feito.
— Por que mudar agora? — perguntou-me.
Virei-me para Manon, e trocamos um breve olhar. Ele sabia que
tinha que ser feito. Não contamos a ninguém além de Luk sobre o assunto.
Eu não queria arriscar falar, porque, se não desse certo... E Manon
concordava que ser sua esposa grávida era de muito mais valia e aumentava
demais o alvo em minhas costas para isso. Mas agora não tínhamos mais
escolha.
Quando me virei para ela novamente, Rosa se afastou.
Tentei não enxergar o nojo em sua expressão, muito menos antes de
eu falar.
— Não — ela praticamente cuspiu.
Um sorriso surgiu em meus lábios, mas era triste. Eu queria tanto
poder compartilhar isso com ela de uma forma positiva...
— Porque estou grávida.
E então, tudo desandou novamente.
A maçã? Definitivamente estava podre. O problema era que já tinha
comido mais do que a metade dela.

Senti o peso de todos os olhares em cima de mim depois que Rosa


finalmente saiu. Não deixei transparecer nada. Fiz questão de travar com
força meu maxilar para impedir que as lágrimas se formassem em meus
olhos.
Tudo que eu fiz foi apenas me levantar.
— A reunião acabou. — Dispensei todos, que pareciam mais do que
contentes em sair dali desde que a tensão no ar estava tão palpável que
estava se tornando difícil respirar.
Apenas Manon ficou na sala.
Ele se aproximou de mim, suas mãos firmes e quentes tocando meus
ombros e massageando-os levemente. Baixei a cabeça, me permitindo
aquele momento com ele, mas assim que fechei os olhos, as palavras duras
de Rosa voltaram com tudo.
“Eu passei por tudo sozinha, e você teve ajuda, teve apoio.
Caramba, você tem TUDO!’’
Ela passou. Ela foi sequestrada e ficou sozinha até Chaol encontrá-
la. Ela perdeu seus amigos e foi levada por Popov, foi torturada por
semanas a fio, e esteve sozinha. E então, ela levou aquele tiro, e eu a deixei
ali. Mesmo que Chaol estivesse com ela, depois ele a deixou. E ela ficou
sozinha por todo esse tempo, se recompondo no escuro enquanto eu nunca
estive realmente só.
Mesmo sendo enganada no começo, eu tive Ricardo, tive nossa mãe,
e quando me infiltrei aqui... tive Manon. Quando me fechei em minhas
sombras e desisti de viver, Manon estava lá. Luk estava lá.
E agora, quando meu coração foi partido pela minha irmã, que
enxergava esse pequeno milagre dentro da minha barriga como a ruína dos
seus planos... eu não estava só. Tinha meu marido ao meu lado, me
abraçando por trás.
Era simplesmente demais.
— Não — falei quando Manon tirou meus fios de cabelo do meu
pescoço e beijou minha pele sensível, que se arrepiou ao toque.
Não poderia fazer aquilo. Não poderia me consolar com ele.
Manon soltou um longo suspiro, e eu estremeci quando ele me
soltou, indo em direção à porta.
— Vou deixar você sozinha. Se precisar conversar, estarei no
escritório — ele disse ao sair, sem nem se dar ao trabalho de me olhar.
Quando a porta se fechou, a primeira lágrima escapou dos meus
olhos, e eu solucei, tocando minha barriga enquanto me curvava para a
frente.
E então, eu chorei.
Permiti-me chorar até que não sobrassem mais lágrimas.
Chorei por tudo.
Chorei por Rosa. Por tudo que sofreu. Chorei por minha mãe e a
saudade imensa que eu sentia dela e de seus conselhos, do seu abraço.
Chorei pelo caos que nossa vida se transformou. Chorei por Manon. Chorei
por mim. Chorei por esse bebê, que nasceria em um mundo destruído.
Nem mesmo tinha percebido que saí de casa e que caminhava pelo
gramado. Os soldados não estavam em suas posições, e agradeci
internamente por isso, pois não precisava que me vissem daquele jeito e
sozinha nessa parte da propriedade.
Mas mesmo do lado de fora, me sentia... sufocada.
Encarei os portões, ponderando se o que sentia que queria fazer
poderia ser mesmo feito.
Eu deveria voltar para dentro.
Deveria falar com Marcus ou pedir para que Manon me tirasse
daqui. Eu não saía de casa há semanas, e isso estava me enlouquecendo.
Mas eu sabia que, se voltasse para lá, minha coragem de sair iria embora
novamente. Tudo que eu sabia era que não conseguia ficar ali nem mais um
segundo.
Então, quando vi que não havia soldados nos portões, bem à frente
da propriedade, agi sem pensar. Eu corri. Corri pela rua com desespero,
como se, de alguma forma, alguém estivesse me perseguindo.
Então, continuei correndo pela estrada, até que um táxi passou, e eu
ergui a mão.
— Está tudo bem, senhorita? — o senhor perguntou atrás do
volante.
Dei graças a Deus por estar vazio e ali, bem no meio do nada.
Entrei.
— Está, sim, obrigada por parar.
— É uma estrada meio deserta, moça. Tem certeza de que não
precisa de ajuda?
— Preciso que me leve a um lugar.
O senhor sorriu e voltou a dar partida no motor.
— Isso eu posso fazer.
Então, eu dei o endereço do único lugar onde sentia que precisava
estar, ignorando o olhar curioso que o taxista me deu pelo retrovisor.
Eu não tinha um casaco muito grosso, considerando o frio que
estava lá fora, tinha apenas alguns poucos trocados que, por algum milagre,
estavam no bolso, e provavelmente me meteria em encrenca por sair sem
avisar, mas aquilo era a coisa mais espontânea que fiz em meses, e não
conseguia parar de sorrir conforme a paisagem mudava pela janela do carro.
Então, eu percebi. Não era alguém que me perseguia enquanto eu
fugia. Era o medo. A dor. E mesmo sabendo que não duraria, eu aceitaria
fugir dela temporariamente. Esquecer a discussão com Rosa, a mágoa no
rosto de Manon toda vez que eu o afastava. Esquecer quem eu era e tinha
que ser. Apenas seguir pelo caminho.

Ela sumiu. Isabel foi embora. Ela sumiu, porra!


Depois da confusão de ontem, deixei Isabel sozinha. Dessa vez, não
era apenas ela quem queria espaço, eu também queria. Estava cansado de
ser recusado pela minha mulher, caralho. E como não queria brigar com ela,
nem mesmo dormi em nosso quarto na noite passada.
Pensei que ela estaria lá, dormindo até tarde, já que não se juntou a
nós no café. Mas não dei importância. Em parte, porque estava contente que
ela não estava lá. Não queria ver a mágoa em seu rosto e não trazer
nenhuma solução, então, apenas depois que decidíssemos o que fazer, eu a
chamaria.
Deixei que Alessia falasse. Ela, Dick e Matias estavam tentando me
convencer a fazer essa porra de plano suicida do caralho, mas eu estava
deixando que falassem.
Pois, mesmo sendo loucura, aquela poderia ser uma ótima chance,
se, com essas novas informações, funcionasse.
A porta se abriu, e todos nos viramos para a figura que entrou na
sala. Rosa estava ouvindo a conversa do lado de fora, eu sabia que estava
porque sua expressão determinada mostrava exatamente isso. Assim como a
expectativa em seu olhar quando nos encaramos.
— Pode dar certo — finalmente falei, mas a encarava com frieza.
Afinal, ainda não tinha esquecido das palavras duras que ela jogou em cima
de Isabel. — Mas se não der, a morte deles estará na sua conta.
E assim, a sentença já estava dada.
Quando todos saíram, a confrontei.
— O que lhe falei sobre desrespeitar sua irmã? — Honestamente,
desrespeitar era um eufemismo, comparado às coisas que ela gritou em
cima dela.
Rosa suspirou fundo, parecendo chateada consigo mesma.
— Não vai mais acontecer.
É bom mesmo, porra. Odiei ver Isa se retrair enquanto Rosa a
atacava com palavras. Odiei não poder ter feito porra nenhuma a respeito.
Estava cansado de não me meter entre essas duas. Se houvesse uma
próxima vez...
— Ela está muito chateada — pontuei, gostando de ver o
arrependimento na expressão dela, pois ela tinha que estar arrependida para
caralho. — Você sabe que ela sofreu muito quando pensou que você... —
Morreu.
E sofreu mesmo.
Eu estava lá a cada segundo dos malditos dias em que ela estava
como a porra de um fantasma.
Poderia até estar perdendo-a, mas o caralho que permitiria que ela
voltasse a ser daquele jeito.
— Eu sei — rosa sussurrou, desviando o olhar. — Onde ela está?
— No quarto — respondi, me perguntando se era uma boa ideia
deixar que ela a visse agora.
— Posso falar com ela?
Encarei-a por alguns segundos. Foda-se. Essas duas tinham que se
resolver de vez, se não ficariam se lamentando pelo resto do dia.
— Venha comigo.
Seguimos pelo corredor em um silêncio constrangedor.
— Eu serei tia ou irmã novamente? — Rosa questionou depois de
me parabenizar pelo bebê. Se ela dissesse isso antes, mandaria ela se foder,
mas eu sabia que estava sendo sincera daquela vez.
Ela se arrependeu, e estava tentando. Não poderia condená-la por
isso. Rosa esteve sozinha por muito tempo. Estava chateada e puta com o
mundo. Descontar nas pessoas era o menor dos pecados que já cometi.
E mesmo nossa situação sendo totalmente disfuncional, não deixava
de ser um pouco cômica.
— O que você decidir — respondi quando viramos no corredor do
nosso quarto.
Mas quando abri a porta e vi que Isabel não estava lá, todo e
qualquer clima leve que pareceu se construir na breve caminhada até aqui
evaporou como a porra de uma nuvem.
Porque ninguém sabia onde estava minha esposa.
Apenas mais uma vez
“No fundo da escuridão
Todos nós nos perdemos
Apanhados na tempestade
Balas caindo rapidamente
Chamando a vida após a morte
Vocês podem nos ouvir quando choramos?
Clame a vida após a morte
Podem nos mostrar como voar?’’
When Its all Over, REIGN

Existem níveis de ódio. Níveis que o consomem como doses de


veneno, muitas vezes funcionando como mero combustível para você se
mover. Uma dose muito grande pode ser letal, como qualquer remédio, mas
nunca me preocupei com isso. Em toda a minha vida, experimentei
diferentes níveis de ódio.
Eu odiava meu pai com pequenos miligramas, diariamente, ao
crescer. Eu odiei o homem que me torturou por uma semana quando tinha
dezessete anos, quando troquei de lugar com Jessabelle. Odiei a mulher
responsável por tanto sofrimento em meu corpo e mente por anos, mas em
doses cada vez menores ao longo do tempo. Odiei a pessoa que me tornei e
a vida que tinha, mas nunca reclamei sobre isso. Aceitei meu lugar no
mundo, e tirei proveito disso. Odiei Isabel, por um curto período de tempo,
quando ela me traiu. Mas a verdade era que eu a tinha odiado porque não
conseguia odiá-la. A desgraçada sempre esteve em minha mente e coração,
e isso me tirava do sério. Hoje em dia, não mais.
E então, havia esse ódio. O tipo de ódio que nunca pensei ser
possível sentir. Não era medido por uma contagem numérica. Não. O que
infectava minhas veias me banhava, quase que me afogando. Mas eu não
me permitiria afundar, pois eu precisava encontrá-la. Precisava encontrar
minha mulher.
E se algum desgraçado tocou em um fio de cabelo sequer dela...
Porra, esqueça a guerra, esqueça destruir a máfia. Eu destruiria a porra do
mundo. Reviraria Paris, a porra da Europa, até ir ao encontro de minha
esposa e meu filho.
Mas, para isso, tinha que deixar meus homens trabalharem.
Algo que não estava conseguindo fazer muito bem, porque cada
minuto que perdia naquele escritório com os outros era um minuto em que
poderia estar indo até ela.
Bebi quase que a garrafa inteira de uísque, e ainda não conseguia
relaxar.
Podia sentir o olhar de Rosa em mim, que parecia tão assustada
quanto eu me sentia por dentro.
Não posso perdê-la, não assim. Não com nosso bebê também...
— Chefe! — A voz de um dos soldados me tirou do meu estupor.
Apertei meus punhos com força e quase corri disparado, antes
mesmo de deixá-lo concluir.
— Encontraram-na.

O vento uivava e espiralava como uma velha canção em torno das


lápides do cemitério. Resolvi ficar no canto, próximo de uma área coberta
enquanto assistia às duas figuras ajoelhadas diante das duas lápides. Uma
para Lydia, a menina que Isabel conheceu no centro de proteção à
testemunha e morreu em seus braços, e a outra para Rosa, que ironicamente
estava parada bem diante dela.
Quando entrei no quarto mais cedo e não encontrei Isabel, me
preparei para todos os tipos de cenários.
Alguém invadiu? Ela foi levada contra sua vontade? Quem poderia
estar envolvido? Alguém de dentro, certamente...
Mas quando a encontraram sã e salva na porra de um cemitério, há
alguns minutos, todas as teorias foram para o ar.
Eu sabia exatamente como ela chegou ali. Não houve sequestro ou
violência.
Ela me deixou.
Veio até o alto desse cemitério por vontade própria, sem avisar
ninguém, e passou a noite fora, sabe-se lá onde. Talvez tenha até passado a
noite aqui, no frio, arriscando pegar um resfriado. Arriscando sua saúde.
Mas não apenas a sua.
A do nosso bebê também.
Eu deixei que Rosa fosse até ela, e não me aproximei para conversar
porque, honestamente, estava a ponto de gritar com ela. E não queria outra
briga com minha mulher. Não queria arriscar que ela fugisse novamente,
para mais longe dessa vez, talvez para um lugar onde eu não pudesse
encontrá-la.
O simples pensamento deixava um gosto amargo na minha boca.
Mas não era pior que a ardência em meu peito, que surgiu desde que notei
que ela tinha sumido.
Percebia agora que, no fundo, parte de mim já imaginava que ela
tinha partido. Deixado-me.
Por que não o faria? Ela já estava fazendo isso em todos os outros
aspectos.
E por mais que me doesse, talvez eu devesse parar de tentar impedi-
la.
Porra... deveria. Mas eu o faria? Nem fodendo.
Eu nunca fui correto. Nunca fui o príncipe ou herói. Eu era a porra
de um assassino frio e egoísta do caralho, e apesar da ideia de a minha
esposa não querer ser mais minha me destruir por dentro, não a deixaria
partir. Especialmente com meu filho em seu ventre.
Talvez isso fosse doentio, errado, imoral, mas nunca disse que eu era
qualquer coisa diferente disso.
Todo esse tempo, de alguma forma, me tornei uma versão mais
branda de quem eu era.
Quando eu via algo que gostava, eu pegava. Sem perguntas,
questionamentos ou medindo esforços.
Apenas fazia o que caralhos eu queria, e o mundo se curvava
perante a mim.
Mas desde que conheci Isabel, mesmo antes de saber toda a verdade
e topar destruir o único mundo ao qual eu já pertenci, nunca peguei pesado
com ela.
Nunca mostrei o lado verdadeiramente ruim que eu poderia ter.
O egoísta. O sombrio. O podre.
O lado que me fez chegar aonde cheguei. Que fez o mundo me
temer.
E quando estava começando a mostrar, ela se afastou. Agora, eu
sabia que nunca seria capaz de lhe dar o que ela queria. Porque, para isso,
tinha que abrir mão dela. O que, decididamente, não faria.
Então, me mantive calmo como um bloco de gelo enquanto as duas
caminharam em minha direção.
Mantive-me impassível enquanto seguíamos para o carro, levando
Isabel e Rosa para onde me pediram para levar.
Deixei o ardor se espalhar dentro de mim durante o trajeto. Não
olhei para Isabel. Não toquei em Isabel mais do que o necessário, porque eu
queria garantir que ela ainda estava lá, como se minha mente estivesse me
enganando, e eu não era de ferro, porra!
Só interferi quando a porra da mãe dela apareceu com uma
espingarda e quase arrancou os dedos de Rosa. Depois disso, voltei para o
carro, deixando que as três tivessem seu momento a sós.
Fui o marido domado e fiel, o bonzinho e quieto que tenho sido esse
tempo todo, mas, daquela vez, era apenas uma fachada. Estava apenas me
preparando para dar o verdadeiro bote quando chegasse a hora.
Tinha ido até o cemitério. Pelo menos, o mais próximo que o
dinheiro que eu tinha pôde pagar o táxi até ele. Depois disso, segui a pé.
Apenas quando cheguei que percebi que já era tarde.
Em breve, anoiteceria, e eu não tinha como voltar para casa. A sorte
era que o lugar estava completamente deserto, livre de guardas. Acho que
não haveria problema passar a noite ali... Ou eu poderia tentar encontrar
um telefone e ligar para meu marido, o meu lado racional disse.
Deveria ter seguido esse lado, percebi, depois de horas sentada em
um mausoléu, observando o céu se preparar para o amanhecer. Mas estava
cansada demais e, honestamente, arrependida de ter vindo até aqui. Sabia da
bronca que receberia ao voltar para casa, e uma parte covarde minha quis
apenas prolongar aquele momento.
O dia passou voando depois do amanhecer. Estava com fome e
cansada, mas ainda não queria voltar.
Algumas pessoas cruzaram meu caminho conforme visitavam as
lápides do cemitério. Voltei para as duas lápides que sempre visitava, um
dos únicos lugares aos quais costumava ir, mesmo durante meu ano-
fantasma, como chamava. Sentei-me na grama coberta de gelo diante delas.
As flores do túmulo de Lydia murcharam. O inverno rigoroso havia
tirado a cor e beleza delas, e em breve, teria que as repor. Se ao menos
tivesse mais um pouco de dinheiro em um dos meus bolsos, poderia
comprar um buquê, pensei.
— Me desculpe por aparecer sem avisar — falei, tirando algumas
folhas secas das árvores que se preparavam para a estação.
Contei tudo à minha amiga naquela tarde. Costumava conversar
com sua lápide, ainda que não houvesse nenhum corpo embaixo da terra.
Algo em mim sentia que ela estava lá, e Lydia foi a mais próxima de uma
amiga que eu tive até chegar Astrid. Só que Astrid era a melhor amiga de
Rosa, e eu não queria pegar um par de ouvidos que talvez minha irmã
precisasse. Quanto a Luk, apesar de ser um bom amigo, ele era tendencioso
para o lado do meu marido, obviamente. E Alessia... apesar de gostar dela,
não poderia confiar completamente. Assim como sabia que ela não poderia
confiar em mim. Então, só o que me restava era isso.
Contei sobre os acontecimentos das últimas semanas, desde o dia
que a visitei pela última vez. E apesar de ser algo unilateral, era terapêutico
poder colocar para fora todos os meus receios e pensamentos.
Não muito tempo depois que tinha terminado, uma presença surgiu
ao meu lado. Não precisei olhar para saber quem era. Mesmo sabendo que
estava ali para me buscar, ainda estava chateada com Rosa. E honestamente,
tinha medo das coisas que ela me falaria.
Custou-me muito sair do fundo do poço em que estive, e ouvir as
crueldades da minha irmã ontem me fez perceber que poderia cair de volta
no buraco.
Mas então, ela pediu desculpas. Depois, fui eu quem pediu
desculpas. E conversamos. Abraçamo-nos. E mesmo sem ter olhado para
trás naquele tempo todo, sabia que Manon estava logo ali, observando tudo
como um falcão. Minha pele formigava com seu olhar.
Hoje não seria fácil. Poderia apenas imaginar no quão puto ele
deveria estar – com razão. Porém, ali, naquele momento, com minha irmã e
meu marido ao meu lado, havia mais uma coisa que eu precisava fazer antes
de voltar para casa e fazer o que precisávamos fazer. E foi o que eu pedi.

Havia uma coisa que poderia dizer sobre Lenna Dourand com a qual
todos que a conheciam concordariam: ela era uma figura.
Mesmo depois de todo esse tempo, ela ainda tinha o mesmo cheiro
do perfume, ainda usava aqueles bobs no cabelo, e era tão superprotetora
quanto sempre. Mesmo em um roupão grosso.
Depois de quase nos matar na entrada de casa, Rosa e eu nos unimos
a ela do lado de dentro.
Conversamos, choramos, e conversamos mais um pouco.
Havia tanto que ela tinha para nos falar e explicar quanto nós a ela.
E o fizemos pelo resto do dia.
Meu peito doía a cada vez que algo saía por sua boca, que uma
risada rouca deixava sua garganta, que um olhar se virava para mim e que o
ar entrava pelos seus pulmões. Estar ali doía. Olhar e falar com minha mãe
doía. Doía porque me perguntava o motivo de ter esperado tanto tempo para
isso. Para vê-la. Olhando para minha irmã, eu sabia o motivo.
Eu havia prometido voltar para casa com ela, e não poderia ter feito
de nenhum outro jeito que não esse. Mas isso não significava que não sofria
ao saber que minha mãe estava sofrendo enquanto não obtinha informações
sobre nosso paradeiro.
Engoli a bola de culpa em minha garganta, sem sucesso. Eu a deixei.
Deixei-a ali para apodrecer enquanto ia atrás da minha vingança. Ela tinha
perdido o suficiente, e eu ainda assim fui embora. Prometi que iria voltar, e
mesmo que sempre tenha sido o plano, admitia agora que houve momentos
em que pensei que não o faria. E como nunca tinha feito até esse momento,
minha mãe pensou que eu estava morta. Assim como Rosa, e assim como
meu pai. Infelizmente esse último realmente estava.
Flashes de lembranças de seu rosto quando o vi pela última vez,
quando morria em meus braços, tomaram minha mente. Encarei mamãe,
que estava dando uma bronca em nós duas por sumir.
Será que ela sabia? Não demoraria muito, caso já não tivesse
pensado nisso ela mesma.
Manon entrou na casa, para se certificar que estávamos seguras, e
contou para ela. Fazia sentido, já que, teoricamente, meu pai era um
soldado seu.
A resiliência com a qual ela tomou a notícia me dizia tudo: ela
sempre soube.
Mamãe poderia não saber como papai morreu, mas eu via agora que
ela sentia sua morte. Ela carregava a morte de todos nós em seus olhos,
embaixo deles, para ser específica. Carregava-nos em suas costas curvadas,
em suas rugas de estresse que surgiram no rosto. Na dor ainda presente em
seu olhar, como se ela estivesse com medo de piscar os olhos e nos perder
de vista.
E isso era tudo culpa minha.
— O papá me salvou — admiti com a voz rouca e agradeci aos céus
quando Manon segurou minha mão sobre a mesa.
Lenna, como sempre muito perspicaz, logo olhou para o grande rubi
em meu dedo e me perguntou sobre nosso casamento.
Não fui a única a levar esporro, e mesmo precisando do apoio do
meu marido, precisava daquele momento a sós com ela. Manon saiu não
muito tempo depois disso, esperando no carro.
Rosa saiu para passear pela casa, e eu fiquei sozinha com minha
mãe, que apenas aguardou que eu falasse o que eu tinha para falar.
Soltei um suspiro quebrado.
— Sei que falou que não quer nossas desculpas, mas eu as devo a
você. Devo tantas.
— Oh, Isabel... — Mamãe segurou minha mão, balançando a
cabeça. — Minha doce Isabel. Por favor, não o faça.
Foi a minha vez de negar com a cabeça.
— Eu deveria ter ficado.
— Você fez o que pensou ser necessário. Nunca a culpei por isso.
Olhei para ela, com mais lágrimas nos olhos. Estava chorando há
tanto tempo que tinha certeza de que meu rosto se dissolveria com minhas
lágrimas.
— Você precisava de mim.
— Sua irmã precisava mais — ela rebateu.
— Olhe para você, mãe — pedi. — Olhe para esta casa. — Apontei
ao nosso redor. — O que aconteceu aqui...
— Não foi sua culpa — ela me interrompeu, em um tom sério.
Encaramo-nos por alguns segundos, e então ela me sondou. — Você sabe
disso, não sabe? — Quando não respondi mais nada e apenas chorei, ela
segurou meu rosto com firmeza. — Isabel, minha querida, você carrega o
mundo em suas costas. — O tom de sua voz me fez me partir em mil
pedaços.
— Eu não sei como fazer de outra forma.
Mamãe limpou meu rosto, tirando lágrima por lágrima das minhas
bochechas pacientemente.
— Meu amor, pensei que, a essa altura, já tivesse aprendido.
— O quê?
— Que você não pode salvar a todos se isso significa se deixar
afundar. Você carrega a culpa e a dor de todos em seus ombros, como se, de
alguma forma, fossem sua.
— Não consigo parar de pensar que foi.
— Isabel Dourand! Tenha santa paciência! — mamãe exclamou, me
fazendo rir. — Minha filha, você atravessou o país para ir atrás da sua irmã.
Infiltrou-se em um grupo criminoso e arriscou sua segurança por ela. Tudo
que você fez nos trouxe a este exato momento. E é por isso que não posso
culpá-la por ter ido embora. Muito provavelmente, se não tivesse ido, a
teríamos perdido para sempre. — Deixei que suas palavras afundassem em
meu ser. Era como se um peso que nem sabia que sentia fosse tirado de
mim. — Você não pode querer carregar a cruz de todos, amor — mamãe
continuou falando sabiamente, então ela colocou a mão em minha barriga,
me sobressaltando. — Você já tem uma grande demais para carregar.
Claro que ela também sabia que eu estava grávida.
— Não sei como vou conseguir fazer isso, mamãe.
— Você fará como fez qualquer outra coisa em sua vida. — Encarei-
a, doida para saber o que ela diria. — Com amor.
— Estou com medo — admiti.
Ela sorriu.
— Maternidade é assim mesmo. Vá por mim, eu sei.
Só de pensar em viver um terço do que minha mãe viveu, tendo esse
bebê dentro de mim agora, já me sentia destroçada.
— Como vou conseguir?
— Isso, não tenho como responder propriamente, mas de uma coisa
eu sei. — Os olhos de Lenna se voltaram para a janela, e eu me virei, vendo
o carro onde Manon estava, esperando que voltássemos. — Você não estará
sozinha. Apenas precisa deixá-lo entrar.
Pique-esconde do coração
Tire os seus olhos de mim para que eu possa partir
Tenho vergonha de fazer isso com você me olhando
Isso nunca tem fim, nós já passamos por isso antes
Mas eu não posso ficar dessa vez, porque eu não te amo mais
Por favor, fique onde você está
Não chegue mais perto
Não tente me fazer mudar de ideia
Eu estou sendo insensível para ser boa
Não posso te amar no escuro
Parece que estamos tão distantes
Love in the dark, Adelle

Deixei que Manon me carregasse de volta para dentro. Apesar de ter


dormido um pouco no trajeto de volta, já que não dormia há vinte e quatro
horas, estava muito acordada quando chegamos. Escutei a conversa que
Manon e Rosa tiveram e tive que me segurar para não sorrir. Pelo visto, eles
se resolveriam, eventualmente.
Pela primeira vez em muito tempo, eu me sentia verdadeiramente
feliz. Depois de conversar com Rosa e da conversa com a minha mãe, me
sentia bem comigo mesma. Com a vida. Preparada para o que viria a seguir.
Depois da tarde de hoje, faltava apenas me resolver com uma pessoa. E essa
pessoa estava me levando no colo até nosso quarto.
Quando Manon me deitou na cama, estava mais do que preparada
para abrir os olhos e pedir desculpas por hoje. Soube da besteira que fiz
assim que entrei naquele táxi e percebi que não tinha como voltar para casa.
Foi um ato estúpido, que colocou em risco a minha segurança e a do bebê.
Com a guerra que estava prestes a explodir, poderia apenas imaginar como
Manon deve ter ficado em minha ausência.
Evitei seu olhar frio o dia todo, pois não queria mais brigar. Mas
depois da conversa que tive com minha mãe, sabia que eu e ele tínhamos
chegado a um ponto em que tínhamos duas opções: ignorar o que estava
acontecendo ou enfrentar isso juntos. E apenas uma delas era aceitável, já
que a outra causaria o nosso fim.
Mas quando abri os olhos, pensando estar pronta para o sermão que
meu marido me daria, percebi que não estava nem um pouco preparada para
qualquer outra reação parecida com a de agora. Para o rumo ao qual
chegamos.
Pois ele não estava parado esperando que eu “acordasse’’, como
imaginei que faria, já que eu sabia que ele sabia que estava acordada. Na
verdade, o que ele estava fazendo fez lágrimas surgirem em meus olhos.
Manon estava fazendo as malas.
— O que está fazendo? — questionei com a voz trêmula, me
levantando da cama em um pulo.
Manon abriu um sorriso irônico, mas não se virou para mim. Apenas
continuou tirando suas roupas do closet, enchendo uma bolsa.
— Vou dormir no quarto da ala leste, próximo ao meu escritório. É
mais prático assim, já que tenho passado o dia todo por lá.
A mágoa se espiralou com uma raiva incandescente com a desculpa
esfarrapada dele.
— Não é por isso que está fazendo as malas.
Finalmente, ele se ergueu e me encarou.
Quando seus olhos verdes tombaram nos meus, quase desejei para
que não o tivesse feito. Nunca, em todo esse tempo desde que o conheci, vi
uma máscara tão fria nele. Considerando que já vi alguns atos do seu modus
operandi mafioso, isso dizia muito.
— Você saberia bem, não é?
— Manon...
— Por que não volta pra cama, Isabel? Volte e finja que está
dormindo. Finja que não sabe porra nenhuma, como tem feito esse tempo
todo.
Foi como levar um tapa. Mas não deixei que aquilo me fizesse
recuar. Eu sabia que o que fiz foi um vacilo grande, e que ele ficaria puto.
Sabia porque, se fosse ao contrário, eu estaria pirada.
Não poderia deixar que fosse agora, não desse jeito.
— Por favor, não faça isso.
— O quê? — ele exclamou, enfiando as roupas com tanta força na
mala que a maioria caiu em pilhas no chão.
— Não me deixe — falei em desespero.
Manon riu, e foi uma risada tão cruel e gelada que o som arranhou
meus ouvidos.
Eu senti a umidade em meu rosto. O choro corria livre por mim, mas
tudo que ele fez foi trincar os dentes e voltar a fazer as malas.
— Está me pedindo para não fazer exatamente o que você fez?
— Eu não o deixei — esclareci.
— O CARALHO! — ele gritou, jogando a bolsa para o outro lado
do quarto.
O baque dela batendo na parede me assustou, mas não me afastei
dele, nem mesmo parei de encará-lo.
— Você fugiu — acusou.
— Eu não fugi — falei com firmeza, torcendo para que ele visse a
honestidade em meu olhar. — Sei que foi o que pensou que fiz, e que,
parando para analisar, parece que foi o que eu fiz, mas eu não o deixei —
continuei quando ele permaneceu quieto, me observando.
Encostei meu corpo no seu, e quase gritei de alívio quando não se
afastou, mas não comemorei nada cedo demais. Permaneci calma, tocando-
o pelos ombros tensos como pedra enquanto aproximava meu rosto do seu.
— Eu nunca o deixaria. Eu sou sua esposa.
Manon abaixou a cabeça e colou nossas bocas de um jeito tão
inesperado que arfei, em choque. Sua língua usou isso como passagem para
entrar em contato com a minha. Sua mão serpenteou minha cintura em um
aperto firme, e pressionei meus mamilos em seu peito duro, fazendo-me
gemer com o contato. Então, ele segurou meu cabelo com força, guiando
minha cabeça para o ângulo que ele queria enquanto explorava o beijo.
Sua língua lutava, explorava e conquistava, e dessa vez, eu o
deixava fazer tudo que quisesse, apenas acompanhando o ritmo e me
entregando a ele, me derretendo sobre ele.
Um grito saiu da minha garganta quando uma superfície dura se
chocou em minhas costas, e percebi que Manon havia me girado, seu peito
pressionado contra meu corpo, mas ainda sem descolar nossas bocas.
A mão que estava em meu cabelo me inclinou para a frente, a outra
me firmando ainda em pé enquanto eu me apoiava na parede que nem sabia
como foi parar diante de mim.
Gemi quando ele tentou arrancar a parte de baixo das minhas roupas
em um puxão duro, rasgando o tecido da minha calça.
Manon rosnou quando teve que parar de me devorar com a boca
para que pudesse focar em tirar propriamente meu jeans, e eu deixei que o
fizesse, pois sentia meu corpo se contrair em desejo, precisando dele dentro
de mim. Precisando a confirmação de que ficaríamos bem.
Depois de finalmente ficar livre das roupas, seus dentes se cravaram
em meu ombro, e outro grito rouco saiu pela minha garganta quando ele
bateu em mim com um impulso duro, seu pau preenchendo meu corpo, que
se contraiu da melhor forma possível.
— PORRA!
— PUTAIN!
Gritamos ao mesmo tempo.
Manon congelou, esperando-me acostumar ao seu tamanho. Fazia
muito tempo desde que eu não o tinha, estava apertada demais, e apesar de
a invasão repentina ter doído, mexi o quadril, precisando de mais dele. De
mais disso.
Suor escorria pela minha coluna. O som do baque da sua virilha
contra minha bunda ocupava o quarto na sincronia dos nossos gemidos.
Não falamos nenhuma palavra. Apenas nos movemos em busca do
nosso prazer.
Quando arrepios tomaram meu corpo, finquei as unhas na parede,
sentindo a tinta se acumular embaixo delas conforme eu raspava.
Minha boceta se contraiu, e eu comecei a gozar, Manon vindo logo
atrás de mim.
Depois de respirar com dificuldade por muitos minutos, ele saiu de
dentro de mim, e a falta do seu calor e do seu pau me fez estremecer.
Estava tão perdida no que tínhamos acabado de fazer que o som de
um zíper fechando me assustou. As lágrimas que secaram enquanto
fodíamos voltaram a toda força.
— Manon... — Solucei.
Ele parou diante da porta do quarto com a mochila, e eu o encarei
furiosa. Estava furiosa porque ele estava partindo meu coração.
— Você arriscou meu filho hoje — foi tudo que ele disse.
A forma como ele disse “meu’’, e não “nosso’’, me fez chorar mais.
— Eu sinto muito. Não deveria ter feito aquilo. Por favor, converse
comigo.
Por um instante, pensei que ele se viraria e me escutaria. Eu poderia
dizer como me sentia sozinha por nunca saber o que se passava em sua
cabeça. Explicaria como o fato de Rosa estar ou não aqui não tinha a ver
com o porquê de eu o afastar, mas sim o meu medo de perdê-lo, a culpa por
estar sendo feliz quando Rosa sofria. Ele poderia me contar, finalmente,
como se sentia, e nos resolveríamos. Então, ele me abraçaria e tudo ficaria
bem, depois faríamos amor pelo resto da noite.
Mas ele não se virou.
Ele apenas falou uma frase que me chocou tanto que mal raciocinei
como responder:
— Vou lhe dar o que prometi. Quando invadirmos aquele casamento
e completarmos esse plano, você terá sua vingança. Depois disso, você vai
ficar escondida, em um lugar seguro, até ter esse bebê e cuidar dele nas
primeiras semanas. Então... estará livre para ir.
— Você... Mas...— Ele estava falando sério? — Eu sou a mãe dessa
criança também — rebati, fechando as mãos em punhos. — E eu sou sua
esposa.
Manon me encarou por cima do ombro.
— Não parece que está agindo como se quisesse ser nenhuma dessas
coisas.
E então saiu, deixando-me furiosa e destroçada.
Fiz o que precisava ser feito. Cortar o mal pela raiz. Não poderia
mais me humilhar correndo atrás de Isabel, não quando ela agia
imprudentemente e arriscava a segurança do nosso filho. Fui muito
paciente, esperando chegar a casa para fazer o que era preciso. Apesar do
que disse antes, de não estar disposto a deixá-la ir, caso fosse necessário, eu
o faria, pelo bebê. Eu vivi a vida inteira sem Isabel, e parte de mim não
gostava muito do homem fraco que me tornava perto dela, então sabia que
ficaria bem depois que ela fosse embora.
Fiz o que tinha que fazer. Mas isso não significava que não destruí o
que sobrou do meu coração no processo.
Mesmo sabendo de tudo, eu ainda a amava. Eu a amava para
caralho, porra. E infelizmente não era algo que poderia simplesmente
desligar, de uma hora para outra.
Fui direto para o quarto, acima do meu escritório, do outro lado da
casa. Mal deu tempo de tirar as roupas amassadas e aleatórias que peguei
momentos atrás, sem prestar atenção porque estava concentrado demais em
me segurar para não abraçar minha esposa chorosa, porque logo ela abriu a
porta em um estalo.
Pelo visto, agora ela queria lutar, pensei ironicamente.
— Saia daqui — falei em um tom seco.
— Não vou permitir que fale algo como o que falou e simplesmente
saia. Você não tem a palavra final nessa discussão — Isabel disse em um
tom recomposto.
— EU TENHO A PORRA QUE QUISER NISSO! — explodi, me
virando para ela.
Isabel estava parada no meio do cômodo, com os braços cruzados,
preparada para atacar.
Exalei audivelmente.
— Não fui eu quem saiu de casa sozinho no meio de uma porra de
guerra e passei a noite fora, sabe-se lá onde, no frio, arriscando uma
pneumonia e a saúde do meu filho!
Isso fez com que ela recuasse.
Isabel descruzou os braços, saindo da sua postura defensiva.
— Eu sei que errei, sei que foi estúpido. Amor, eu sinto muito
mesmo. Eu não pensei direito. Apenas entrei em pânico e saí. Quando
percebi, já era tarde demais — ela falou, me olhando com súplica. — Isso
não vai se repetir.
— O caralho! — Não a deixaria sair dessa tão fácil.
— Não vai — ela repetiu.
— Eu não confio mais em você.
Isabel deu passo em minha direção, a expressão em seu rosto
devastada.
— Não diga isso.
Balancei a cabeça.
— Tudo que você tem feito esse tempo todo é agir por conta
própria. Você ignora toda tentativa minha de mostrar que não está sozinha.
— MAS EU ESTOU SOZINHA! — Ela se sobressaltou.
Inacreditável.
Trinquei os dentes, me controlando.
Isabel continuou.
— Eu só... caramba, estou cansada de ser a única vulnerável nessa
relação. Cansada de me sentir fraca. Você sabe como é difícil, para mim,
desabafar, e tenho feito isso, mas você não fala nada de como você se sente.
— Isabel se aproximou mais, e eu deixei que o fizesse. — Eu estou no
escuro, Manon. Não sei o que fazer, porque você é a luz que me guia, mas
estou começando a pensar que talvez também esteja perdido.
— Vulnerável? — questionei, segurando seu maxilar com firmeza.
— Porra, tudo que fiz com você desde que coloquei meus olhos em você
pela primeira vez foi ser vulnerável! — Exasperei, me afastando e passando
as mãos no meu cabelo.
— Eu preciso saber, Manon — ela falou após alguns instantes. —
Preciso saber o que se passa em sua cabeça. O que está sentindo. Porque
minha irmã está de volta, e como se isso não fosse o suficiente, ela me
odeia. Quando parece que não vai mais me odiar, ela vem e fala coisas
cruéis que mexem tanto comigo que morro de medo de me afundar nelas
por tempo demais e voltar a ser aquela fração de pessoa que me tornei
muito tempo atrás. Então, há o fato de que ela é sua filha, e não sei como
você está lidando com isso, nem com o nosso plano de vingança E agora,
no caminho de casa, vocês me contam que vamos invadir um casamento e
que provavelmente será uma missão suicida... EU NÃO SEI O QUE
PENSAR! — ela explodiu. Sua admissão me fez encará-la com firmeza. —
Tudo que eu sei é que me sinto sozinha, e o fato de você não falar como se
sente só me deixa ainda mais sozinha.
— Você quer honestidade? — perguntei, me aproximando tanto dela
que mal pude ver o breve aceno que ela fez. — Vou lhe dar honestidade: eu
não sei se vou conseguir.
— Do que está falando?
— Você sabe do que estou falando — respondi com os dentes
trincados.
Isabel apenas me encara. Olhando meu rosto por tanto tempo que
me perguntei se ela teria escutado, mas então ela finalmente fala.
— Por quê?
Soltei um longo suspiro, abaixando a cabeça. Estava na hora de ter
essa conversa.
— Não sei fazer isso direito... porra. Eu não sei me abrir. Não sei ser
vulnerável como você diz, o que é irônico, porque TUDO que eu tenho sido
desde que você entrou na minha vida foi ser vulnerável com você. Mostrei e
contei coisas que nunca fiz com ninguém. Mas, sendo honesto, não tenho
sido vulnerável nesses últimos meses porque eu não podia — expliquei.
Isabel apenas escutou. Sentei-me na cama do quarto de hóspedes e
continuo.
— Você precisava de mim. Precisava que eu permanecesse forte,
porque você estava desmoronando, ma puce.
Ela se aproximou, ficando entre as minhas pernas. Encarei-a
debaixo, vendo seus olhos cheios de lágrimas. Os meus também não
estavam secos.
— Eu me condicionei a reprimir qualquer coisa que não fosse ajudá-
la. Aqueles meses em que você estava mal... porra, eu pensei que iria perdê-
la. — Cravei meus dedos em sua cintura, usando-a como apoio para falar.
— E então, quando lhe prometi vingança, quando vi um vislumbre
da mulher por quem me apaixonei, não pensei em qualquer outra coisa que
não formas de dar a você o que lhe prometi. — Isabel começou a tocar meu
rosto, em uma carícia leve. — Eu sacrificaria tudo por você e pelo nosso
filho.
— Eu sei — ela sussurrou. — Mas isso não significa que tenha que
fazê-lo.
Confortei-me com suas palavras por alguns segundos, mas ainda
tinha algo a dizer. Algo que esteve entalado em mim há tanto tempo que
tinha medo de não conseguir falar nunca mais se não agora.
— Se esse plano der certo... eu sou o que sou minha vida inteira, e
não sei se conseguirei ser outra coisa. Não sei ser normal, mundano, fraco.
E no momento em que fizermos o que temos que fazer, é exatamente o que
me tornarei.
Isabel balançou a cabeça.
— Não há como você ser fraco. Nunca. Manon, você é a minha
força. Você me manteve mesmo quando não consegui me manter. Você
também viveu um inferno, nunca quis o que recebeu, mas aceitou seu
destino sem reclamar. E agora, está abandonando tudo. Isso não pode ser
nada além de força. — Puxei-a para meu colo, fazendo com que suas pernas
circundassem meu quadril. Analisei seu rosto, procurando confirmações de
que o que ela disse era verdade. — Eu apenas... é bom saber que você tem
dúvidas e inseguranças — ela admitiu.
Encostei minha testa na sua.
— Tenho medo de não lhe dar o que prometi. De amanhã não dar
certo. Tenho medo de, um dia, quando isso acabar, você perceber que não
posso ser o que você precisa e me deixar.
— Isso nunca vai acontecer — ela garantiu em um tom firme.
— Eu pensei que tinha feito isso hoje.
Isabel aproximou nossas bocas, fazendo-me respirar o mesmo ar que
ela.
— Eu sou sua. Nunca vou deixá-lo.
Segurei com força sua nuca.
— Que bom, porque não sei se estaria disposto a deixá-la partir,
mesmo que tenha dito isso.
Ela sorriu com minha fala. Ela sorriu, porra!
— Tudo bem por você?
Isabel inclinou a cabeça.
— Trocamos votos, não trocamos? Isso... — Ela apontou entre nós
dois — É para sempre.
Um sorriso surgiu em meus lábios.
— Porra, sim.
Então, puxei-a para um beijo, dessa vez realmente saboreando cada
centímetro em sua boca.
Quando a fodi mais cedo, era a pura fúria que sentia sendo
descontada. Não fui justo ou generoso com ela. Apenas queria puni-la.
Agora, seria diferente.
— Eu vou errar muito.
Isabel segurou meus ombros, movendo seus quadris para que o
atrito entre sua boceta quente e meu pau nos despertasse.
— Eu também.
— Estamos nessa juntos, não é?
— No submundo e fora dele — garantiu.
— No céu e no inferno — prometi antes de virá-la para que se
deitasse na cama.
Isabel arfou, mas permaneceu na posição em que a deixei, submissa
à minha vontade.
— Agora, vou fazer amor com você, ma puce.
— Por favor, faça — ela gemeu quando pairei acima de sua boceta.
Minha esposa tinha trocado de roupa antes de vir para cá, usando
uma camisola tão fina que podia enxergar tudo por trás dela perfeitamente.
— Alguém viu você enquanto vinha para cá? — perguntei enquanto
subia vagarosamente o tecido macio pelas suas coxas, até deixar que ele se
acumulasse em torno do seu quadril, sentindo o cheiro de sua excitação.
— Manon... — ela gemeu, arqueando o quadril em minha direção.
— Alguém a viu? — questionei novamente, em um tom sério.
Isabel abriu um sorriso malandro.
— Sempre ciumento — resmungou, puxando com força minha
cabeça, fazendo com que meu nariz encostasse em sua boceta. — Por favor,
chega de brigas hoje.
— Porra, tá bom. — Aceitei apenas porque ter aquela porra na
minha cara sem comê-la como um maluco naquele momento era
humanamente impossível.
E foi o que eu fiz.
Caí de boca na minha mulher, que gritou e agarrou meus cabelos
enquanto rebolava na minha cara, montando minha língua que a fodia
alternadamente enquanto lambia seu clítoris.
Não desgrudei o meu olhar do dela. A visão do seu corpo entregue a
mim, seus seios saltando para fora da porra da camisola enquanto ela erguia
o quadril para encontrar minha boca e eu a comesse.
Isabel permaneceu firme, me deixando levá-la ao limite apenas para
desacelerar o ritmo várias e várias vezes.
Quando nenhum de nós aguentava mais, subi e me livrei das minhas
calças, colocando meu pau pulsante em sua entrada.
— Eu amo você — ela soprou momentos antes de eu entrar até o
talo nela.
— Eu amo vocês — respondi enquanto arrematava em sua boceta.
Ficamos em silêncio depois disso. Apenas gemendo enquanto nos
movíamos e fazíamos amor. Olhei dentro dos seus olhos o tempo inteiro, e
não podia deixar de perceber que o peso que assombrava meu peito tinha
ido embora. Porque eu estava em casa. Com ela. E sabia que daríamos um
jeito em tudo.
O sol é diferente nas Maldivas
“Seria um pecado
Se eu não consigo evitar
Me apaixonar por você?’’
Can Help Falling in love – DARK, Tomme Profit, brooke

DOIS ANOS DEPOIS

Não havia nada cobrindo o céu, sem nenhuma iminência de


tempestade – uma que parecia ter partido há muito tempo. Sorri com o
barulho do mar ao longe e das gaivotas voando, afinal estavam certos
quando diziam que o sol é diferente nas Maldivas.
Eu estava tomada por uma calmaria que estava passando a conhecer,
ultimamente. Minhas unhas estavam grandes e pintadas de um branco
suave, e mesmo já não estando em um período perigoso, não fumava mais.
— Você está linda — Astrid elogiou ao meu lado, enquanto ambas
encarávamos meu reflexo no espelho.
Hoje eu usava um vestido rosa claro, soltinho, mas que se delineava
em meu corpo em todos os lugares certos.
O lindo decote no centro deixava à mostra a tatuagem da rosa com a
espada encravada. A cor rosa meio salmão se destacava em minha pele
bronzeada pelo sol. Meu cabelo estava solto em mechas, e eu usava uma
coroa de flores que combinavam com a maquiagem leve em meu rosto.
— Está como uma...
— Mãe bronzeada gostosa — Rosa completou, do meu outro lado.
Um enorme sorriso em seu rosto.
As duas estavam com variações de como eu estava, porém na cor
azul.
Soltei uma risada com o comentário da minha irmã.
— Não por muito tempo — falei tocando minha barriga, que
carregava meu segundo milagre.
— Gostosa — A voz de um garotinho do outro lado do quarto fez
com que Astrid e Rosa o encarassem em choque.
Virei-me para o pequeno ser humaninho com grandes olhos
multicoloridos – de um lado, um azul esverdeado, e do outro, a cor mel
mais linda que já vi na vida. Com se esse par já não fosse de matar, Axel
ainda tinha lindos fios loiros para ostentar em seu pequeno corpo de um ano
e meio.
Quando me aproximei dele, que estava sentado em seu berço, ele
estendeu os braços em minha direção, e eu o peguei no colo.
— Claro que essa é uma das primeiras palavras que tem que sair da
boca do meu filho — resmunguei, mas, na verdade, não me importava.
Cada vez que saía algo da boca do nosso filho, Manon e eu
ficávamos encantados. Ele nem tinha completado dois anos, mas já falava
diversas coisas e fazia sons tão bonitinhos que meu coração se derretia toda
vez.
— Aposto que Luk já deve ter tentado ensinar algo pior — Rosa
pontuou com um sorriso, se aproximando do sobrinho. — Temos sorte de
ele não estar aqui o tempo inteiro, senão o pequeno Axel aqui seria um
boca-suja — ela comentou em uma voz fina, fazendo meu filho rir.
— Você vai ver o sujo — uma voz masculina chamou da porta,
fazendo com que todas nos virássemos de supetão para um Luk muito
arrumado em um terno.
— Luk! — repreendi. — Não pode aparecer aqui assim.
— Poderíamos estar peladas — Astrid exclamou.
Tudo que ele fez foi revirar os olhos.
— As senhoritas não têm nada que eu queira ver. Até porque não
quero um certo trio de homens querendo minha cabeça. Sou lindo demais
para morrer.
— Talvez devesse pensar melhor nisso na próxima vez, então —
Astrid provocou.
— Vim buscar a noiva — Luk comentou inabalado. — Ela está
atrasada.
Soltei um suspiro, contendo a pequena ansiedade que surgiu dentro
do meu peito.
— Vamos, Axel, vamos deixar a mamãe terminar de se aprontar
para que possamos brincar com os poissons[17] — Rosa chamou, tirando meu
filho do colo, que facilmente se deixou ser lavado, gritando e rindo.
— POISSONS!
Todos sorrimos com sua alegria. Axel era um menino muito esperto.
— Vou indo também, Dick deve estar me procurando — Astrid
disse antes de partir.
Ela e Dick se resolveram poucos antes de virmos para cá, e estavam
oficialmente juntos há quase dois anos. O que era ótimo, já que todos
vivíamos na mesma ilha, na costa das Maldivas. Seria estranho ter aquele
clima de gato e rato dos dois o tempo todo.
— Está pronta? — Luk perguntou, estendendo o braço.
Encarei meu padrinho e abri um sorriso.
— Você está adorando isso.
Ele deu de ombros.
— Sempre soubemos que era eu quem deveria acompanhá-la.
Ri com seu comentário.
— Nunca vai perdoar Marcus por isso, não é?
— Ele está na praia com os filhos e a mulher, sentado na primeira
fileira. Acredite, está bem.
Balancei a cabeça, sem acreditar no meu amigo.
— Como pode ser um líder mafioso e, ao mesmo tempo, esse cara?
— Anos e anos de prática — ele respondeu brincalhão, mas não
pude deixar de ver as sombras em seus olhos.
Depois de que tudo aconteceu e resgatamos Chaol na Arábia
Saudita, a notícia da morte de Caterina pegou Luk de jeito. Mas com tudo
que restou a ser resolvido depois que tivemos que fugir, já que éramos
procurados internacionalmente, Manon deu seu cargo a Luk, para que
pudesse unir aqueles que sobraram e governar a máfia, só que buscando
destruir as outras. Governando do nosso jeito. Ele se encaixou mais do que
perfeitamente no papel, e mesmo ficando muito tempo longe de nós, sabia
que estava contente por ser assim.
Ver Manon e eu, Rosa e Chaol, Astrid e Dick como grandes casais
felizes não deveria ser fácil. Ainda que Can continuasse solteirão e
parecesse contente com isso, via seu olhar de vez em quando: perdido,
saudoso. Ele e Matias nunca se envolveram realmente, então só poderia
imaginar como Luk estava. Não que ele e Caterina tenham se tornado
qualquer coisa no passado, até onde sabia, mas eu conhecia Luk, e
conhecendo-o, sabia que, de alguma forma, Caterina conseguiu marcá-lo.
Seria apenas uma questão de tempo ver se seria algo bom ou ruim.
Deixei que ele me guiasse para fora da casa da praia, a areia
entrando por entre meus dedos e a brisa do mar batendo em meu rosto.
Hoje era um dia lindo. Um dia perfeito. E se tornaria ainda mais
perfeito em breve.
Quando derrubamos a máfia e desistimos de tudo, Manon e eu
passamos por diversos testes. Tivemos brigas, discussões enquanto
tentávamos nos adaptar à nossa nova realidade, mas nos mantivemos firmes
e fortes. Axel apenas nos trouxe alegria, e nunca estivemos tão bem quanto
agora. Ainda tínhamos momentos difíceis, eu ainda tinha pesadelos e
precisava de alguns remédios para ansiedade, mas a sensação era de que o
pior já tinha passado.
Resolvemos nos casar novamente, dessa vez como nós mesmos,
verdadeiramente. Sem ser por conta de um plano de vingança e sem
mafiosos (além dos nossos amigos) ao redor. Era uma forma de marcar essa
nova fase da nossa vida, e mal podia esperar para ela começar.
— Tem certeza de que Rosa está bem? — Luk perguntou quando já
estávamos perto de onde seria a cerimônia. — Só checando para o caso de...
você sabe, ela não querer tentar arruinar isso de novo.
Soltei uma gargalhada e bati de leve em seu ombro.
— Ela vai se casar semana que vem, não vai querer arriscar ter uma
revanche — comentei entrando na brincadeira.
Eu e minha irmã tínhamos feito as pazes há anos. Tínhamos nossas
discordâncias, mas voltamos ao nosso patamar de melhores amigas. Ela
estava bem e feliz, noiva de Chaol, e em breve se casaria. E eu estava
formando minha própria família.
Manon e ela tinham uma relação única. Ambos agiam como pai e
filha e, ao mesmo tempo, cunhados, e apenas eles entendiam essa dinâmica.
Mas se havia algo que entendi sobre essa família, era que os rótulos
não se aplicavam a nós. Éramos quem éramos. Quebrados, exilados, mas
nos amávamos. Isso era o que importava.
Quando finalmente cheguei ao começo do caminho de areia,
rodeado por lindas velas e flores que faziam a trilha até o homem que me
esperava do outro lado, todo o resto se apagou. Manon estava lindo, com
seu terno branco que delineava seus músculos totalmente à vontade,
combinando com a expressão relaxada no seu rosto mais bronzeado, o que
deixava seus lindos olhos verdes mais destacados. Ele estava apenas
aguardando que eu chegasse até ele.
Era claro que ter minha família ali era importante, mesmo que não
estivessem todos aqui. Depois que partimos, sabíamos que trazer minha
mãe e minha tia seria complicado, afinal, sempre seríamos fugitivos.
Estávamos em constante perigo. A qualquer momento poderiam nos
encontrar. Poderíamos ser mortos ou levados, e tínhamos que manter a
guarda alta o tempo todo, especialmente agora porque nosso filho, tão
parecido com o pai, estava em seu colo, e eu carregava outro em meu
ventre. Ainda mantinha um contato com minha mãe, fora uma de suas
condições para deixar que eu Rosa e deixássemos novamente, porém
éramos cautelosas com nossas breves e distantes conversas. Doía não tê-la
ali em um momento importante, mas nada daquilo importou quando ambos
amores da minha vida me olharam com amor e reverência, mesmo com os
metros de distância que em breve desapareceriam.
No momento em que Luk começou a me guiar e meu olhar se
prendeu no do meu futuro marido-marido, tudo que realmente importava
estava diante de mim. A minha família. O meu futuro.
E eu finalmente me senti verdadeiramente feliz. O arco-íris no final
da tempestade apareceu.
Lágrimas brotaram em meus olhos, e não me liguei que se
derramassem e desfizessem minha maquiagem. Manon também não parecia
se importar em mostrar as que se formavam em seus olhos.
Finalmente, Luk me entregou nas mãos do meu marido, que em
breve seria marido novamente, e o resto do mundo deixou de existir.
Meu coração estava acelerado no peito, e eu não conseguia parar de
sorrir. Manon tocou meu rosto, e eu relaxei sobre seu toque.
— Pronta para isso? — ele perguntou. — Pronta para ser minha?
— Sempre fui sua. — Ele sorriu, satisfeito com a resposta, e nos
viramos para o padre, que começou a cerimônia.
Repetimos as palavras que tínhamos que repetir, trocamos os votos e
as alianças. Então finalmente, o padre falou.
— E agora, vos declaro marido e mulher.
Não ouvi os gritos dos nossos amigos nem seus aplausos. Não
percebi quando Rosa tirou Axel dos braços do meu marido para que ele
pudesse enlaçar minha cintura e aproximar o corpo do meu. O barulho das
ondas e o sol que estava se pondo no horizonte não eram mais lindos do que
o homem para quem eu olhava naquele momento.
Um dia, eu escolhi a vingança ao invés do meu coração, mas agora
eu faria a mesma escolha todos os dias: Ele. Sempre ele, para sempre com
ele.
— Pode beijar a noiva.
Manon não esperou que o pobre padre terminasse de falar quando
segurou minha nuca e colou nossos lábios. Aquele beijo contava a
verdade. O que sentíamos um pelo outro. A promessa de que ficaríamos
bem até o fim, porque, se tudo desse errado e acabássemos no inferno
novamente, mataríamos o diabo juntos.
— Minha — ele sussurrou em meus lábios.
Um calafrio gostoso e familiar tomou meu corpo quando encarei
seus olhos tomados com a mesma necessidade que eu.
— Meu.
E ali começaria de verdade a nossa história.
Espere aí. Ainda não acabou.
Um dia de matança só começa depois das nove horas da manhã e
uma boa dose de café. Sendo quem eu era, fazendo o que fazia, adquiri o
privilégio de poder ter pelo menos isso antes de me enfiar nas merdas que
tinha que resolver o dia inteiro todos os dias.
Ser Don não era fácil. Nunca pensei que fosse, afinal, como
consigliere de Manon no passado, também não trabalhava pouco, portanto
sabia que seria desafiador. Mas, depois de toda a merda que fizemos com as
outras famílias, o trabalho se multiplicou.
O mundo colapsou. É, isso mesmo.
Depois que a Rosinha resolveu gravar aquele vídeo e mostrar pro
mundo a verdade, o caos se instalou. Governos caíram, revoltas surgiram.
Uma verdadeira crise mundial se instalou. As pessoas destruíram cidades,
iniciaram guerras, e logo a escassez de alimentos e águas começou a
aparecer em alguns países.
Percebemos que, mesmo problemático, o nosso sistema mantinha o
mundo girando. Estava tão emaranhado em nossa sociedade que, quando
ele caiu, foi como se ninguém soubesse o que fazer.
E foi exatamente por isso que tomei esse cargo. Precisávamos
colocar as coisas de volta aos trilhos. Pelo menos, a maioria delas. Só que,
enquanto alguns poucos como eu se colocaram no poder buscando criar
uma ordem e ainda dar um jeito de acabar com o lado podre do mundo,
outras famílias ascenderam.
Em um número muito maior do que apenas as cinco que
monopolizavam a Europa antes. E aquilo deixou tudo ainda mais difícil.
Novas máfias tomando espaço, mais crimes soltos por aí, além de
que, agora, as pessoas fechavam os olhos para isso. Todos queriam voltar
para o que era antes, não importava o preço. Então, mesmo tendo arrancado
a porra da venda em seus olhos, as pessoas só queriam colocá-la de volta e
ser felizes.
É... a ignorância é uma benção.
Mas eu não permitiria que fosse tão fácil assim.
Mesmo tendo desistido do cargo de Don e agora sendo pai, Manon e
eu estávamos trabalhando juntos para encontrar formas de fazer nosso
esquema funcionar. E OK, isso era trabalhoso para caralho, mas não podia
deixar de admitir que adorava essa porra. Matar nunca foi tão fácil e
delicioso quanto agora que meus alvos eram pessoas que realmente
mereciam sofrer.
Sempre fui uma máquina de guerra. Seja obedecendo Yohan Martin,
Manon ou agora, sendo o líder. Porém, o objetivo que tinha agora me dava
muito mais vontade de acordar pela manhã, ainda que me sentisse solitário
ao me deitar à noite.
Estava tão concentrado em trabalho que mal tinha tempo para
respirar, quanto mais trepar, então fazia algum tempo que era apenas eu,
minha mão e um livro erótico ou um pornô na televisão. Vez ou outra, eu
me dava ao luxo de ter uma ou duas companhias noturnas. Na maioria das
vezes, não deixava isso interferir no meu sono, mas na noite passada...
admito que exagerei um pouco.
Senti o peso dos três corpos das prostitutas ao meu lado e grunhi. O
quarto estava claro demais, e xinguei baixinho ao perceber a ressaca do
caralho em que eu estava.
É... não tinha mais meus vinte e poucos anos. Uma farra me
derrubava como ninguém. E as garrafas que matei com elas antes de fodê-
las até os miolos estavam cobrando o preço.
A vantagem de ser um Don era óbvia, considerando noite passada –
não que eu precisasse ser um para transar gostoso com três prostitutas, mas
era muito mais fácil. A desvantagem do cargo era que era eu quem dava as
ordens, o que significava que tinha que sair da cama e comandar o mundo,
ou pelo menos a França.
Depois de certa relutância, mandei as putas de volta para a boate
onde trabalhavam, em um dos meus territórios, e segui para o trabalho. Não
consegui fazer muita coisa. Não era nem meio-dia, e minha cabeça parecia
que ia explodir, então os números e documentos que passei a manhã lendo
teriam que ser relidos mais tarde, já que não assimilei porra nenhuma.
Pelo menos, o dia não estava tão caótico quanto alguns outros
tinham que ser. Havia vezes em que viajava em até três lugares
completamente diferentes no mapa no mesmo dia. Visitava fornecedores de
armas, líderes dos outros grupos, ex-policiais e presidiários, e os trazia para
minha lista de pagamento. Isso quando não ia cobrar pessoalmente alguns
desgraçados que achavam que podiam fazer o que quisessem na minha
cidade apenas porque a polícia estava com medo demais de agir contra eles.
Meus dias se resumiam a sangue e números, o que não era tão
diferente ao qual estava habituado.
Hoje, no entanto, estava tranquilo no meu escritório, apenas vivendo
minha ressaca de merda e grato por poder deixar o mundo explodir
novamente, apenas por um dia.
Porém, percebi que estava com a guarda baixa demais e tinha falado
que o dia seria tranquilo cedo demais quando meu telefone tocou.
— Alô?
A chamada ficou muda por alguns momentos, mas, de alguma
forma, entrei em alerta.
Sentei-me na cadeira ereto e segurei a respiração.
Meu coração acelerou tanto que, com o silêncio do outro lado da
linha, podia escutá-lo.
Que porra?
— Alô? — repeti, mais firme dessa vez.
Meus dedos estavam com os nós brancos, de tanto que eu apertava o
telefone no ouvido. Meu corpo inteiro estava tenso, e nem sabia do que se
tratava.
Até que uma voz surgiu do outro lado.
E o meu mundo ruiu.
A voz feminina cantarolou quando não respondi.
Ela sabia que a tinha reconhecido.
Soltei um suspiro frustrado, sem entender porra nenhuma. E então,
pronunciei em voz alta um nome que não escutava há dois anos, para uma
voz que não escutava há dois anos. Alguém que, até vinte segundos atrás,
estava morta.
— Caterina. — Amaldiçoei o nome assim que saiu pelos meus
lábios.
— Sentiu minha falta, cariño[18]?

Vejo vocês em breve


E chegamos a mais um final, que é apenas mais um começo.
Quando comecei a escrever a história de Manon e Isabel, não fazia
ideia da proporção que ela teria em minha vida, nem da de vocês, leitoras.
Depois de publicar “Feita de Prada’’, recebi diversos pedidos de mais um
livro desse casal cheio de química, que vocês tanto amaram. Afinal, eles
não tiveram realmente tempo de viverem como um casal propriamente
nesse primeiro livro, uma vez que estavam imersos na destruição.
Foi apenas quando estava escrevendo “Feita pelo Caos’’ que percebi
que seria possível fazer um compilado de cenas entre os dois, que
aconteceram depois do final do primeiro livro e que não se encaixariam no
livro da Rosa. E assim surgiu a ideia de fazer este conto.
Portanto, quero agradecer a vocês, minhas leitoras lindas, que leram
a duologia e se apaixonaram por esse casal. Sem vocês, muito
provavelmente não teria dado a continuidade e o fechamento que esses dois
mereciam.
Também devo essa nota especial para minhas betas maravilhosas:
Bia, do @letteraturas, que era uma leitora da duologia e topou participar da
betagem desse conto; Isa e Joy, minhas fiéis escudeiras ao longo desse
longo percurso que tivemos até agora. Obrigada por estarem comigo
durante os surtos da madrugada, me aconselhando da melhor forma possível
para que eu pudesse entregar a versão mais fiel desse casal explosivo.
Também quero agradecer à Karen, essa revisora maravilhosa que
caiu de paraquedas para me ajudar na preparação da publicação deste conto.
Obrigada por tudo.
Agora basta apenas esperar os próximos “vem aí’’, que explorarão
os outros personagens desse universo.
Vejo vocês em breve.

- Loira
[1]
BDSM: sigla que denomina um conjunto de práticas consensuais e que significa “Bondage,
Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo”.
[2]
Meu amor, em francês
[3]
Porra, em francês.
[4]
Uma mulher que exerce o papel dominante em práticas de BDSM.
[5]
Obrigado(a), em francês.
[6]
Puta, em francês.
[7]
Uma expressão da língua francesa que significa: "Já visto”.
[8]
Lua cheia, em francês.
[9]
Amor, em francês.
[10]
Desculpe, em francês.
[11]
Pequena morte, em francês, usado para descrever orgasmos.
[12]
Um dos 24 prelúdios de Chopin.
[13]
Por favor, em francês.
[14]
Bom dia, em francês.
[15]
Merda, em francês.
[16]
Conselheiro, em italiano. Posição dentro da estrutura de liderança da máfia, cuja expressão foi
popularizada pelo romance The Godfather.
[17]
Peixes, em francês.
[18]
Querido(a), em espanhol.
Table of Contents
Sumário
Nota da autora
Playlist
Prólogo
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Epílogo
Agradecimentos

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