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Análise do Filme Cisne Negro

Contatar é o crescimento do organismo, é o que nos faz


expressarmos o que sentimos e suprirmos nossas necessidades
que acontecem na fronteira, separando o eu e o não-eu. Ao
longo do filme, percebemos diversos mecanismos de evitação
de contato presentes na protagonista. Apesar de desejar
esse papel e ser uma excelente bailarina, Nina encontra-se
encurralada pelos seus bloqueios. Por diversas vezes ao longo
do filme, Nina depara-se com seu “lado negro” em ilusões,
delírios de perseguição e até mesmo alucinações. Mesmo antes
de conseguir o papel principal e lidar com a pressão de ser
o centro das atenções de seu local de trabalho e meio
artístico, ela parece já apresentar alguns problemas de
percepção da realidade, dos reflexos no espelho até a
coordenação dos maneirismos semelhantes com outras pessoas
de seu cotidiano.

Há nela uma fixação com sua posição infantilizada (garota


virginal, vulnerável, pura e doce). Ao ter a atitude de falar
com Thomas, a bailarina age em mobilização mostrando seu
desejo de mudar e mostrar-se capaz de interpretar os dois
personagens, mas continua sendo introjetora, que é uma forma
de mecanismo de contato no qual a pessoa “engole” o que vem
de fora, deixando que os outros façam escolhas por ela e
tendo dificuldade em assumir o que quer, até que por meio de
um beijo, Nina demonstra que há nela um lado visceral e
sensual, chegando a morder seu mentor, o que funciona para
conseguir o papel. Parafraseando o personagem
Thomas: “perfeição não é apenas sobre controle”. Após
conseguir o papel principal de Rainha dos Cisnes, Nina
depara-se com o desafio de entrar em contato consigo de forma
integrada. Ao ser escolhida para representar também o Cisne
Negro, a expressão de Nina inicialmente encontra-se inibida,
ou seja, ela sabe o que deseja expressar a partir de seus
papéis, mas encontra dificuldade em fazê-lo. Apesar de
desejar muito a personagem, o processo de desprender-se de
sua cômoda realidade é doloroso. Automutilando-se, Nina
direciona suas apreensões ao seu corpo como uma forma de ter
controle sobre elas.

Indo mais à fundo na personalidade introjetora de Nina,


podemos ver que apesar de querer mudar, ela hesita em
encarar seu “outro lado” e muitas vezes prefere que sua mãe
decida o que é melhor para ela. A presença da mãe se torna
um dos alicerces da narrativa quando claramente podemos
observar como a personalidade quase virginal de Nina é refém
às reações de Erica, dando a ideia de que a personagem e sua
visão sobre a vida foram influenciadas por sua mãe, inclusive
no que é focado em sua carreira e sua visão de perfeição, a
qual traz mais conflito para a protagonista por abrir uma
Gestalt com questionamentos acerca de tudo o que ela aprendeu
com a mãe para poder obter o que tanto deseja, evidenciado
pela diferença da definição de perfeição dela e a do próprio
diretor.

A mãe, Erica, é extremamente controladora e usa de chantagem


emocional para fazer com que sua filha faça o que quer ou
desejando para ela o que desejaria para si, literalmente
existindo a partir da vivência de Nina, ansiando que sua
filha seja como ela e que consiga tudo o que ela quis durante
sua juventude, sempre na espera de receber algo em troca
pelos seus atos. Seu bloqueio de contato altamente
proflexivo, que consiste em desejar que os outros sejam como
nós desejamos que sejam, beira a obsessão pela própria filha.
Ambas vivem em uma relação de confluência à medida que a
fronteira de contato delas está fundida, não existindo
diferenciação entre o “eu” e o “outro”. Para exemplificar
essa descrição, podemos observar a cena em que Erica compra
um bolo para comemorar a conquista do papel principal e
quando sua filha recusa um pedaço, ela ameaça jogá-lo inteiro
no lixo e Nina se vê encurralada, mais uma vez obrigada a
ceder aos caprichos de sua mãe. É perceptível o desejo de
Nina de escapar das garras de Erica diversas vezes no filme,
tendo seus quereres ignorados pela mãe repetidas vezes. Sua
voz simplesmente não é ouvida. Nessa cena é possível
identificar dois aspectos de uma relação confluente:
primeiro, sempre uma das pessoas envolvidas nesse tipo de
relação sentirá, com frequência, culpa e ressentimento.
Sente-se como se tivesse violado a confluência e vê-se na
obrigação de se desculpar. Mesmo que não tenha total
compreensão do seu “erro” entende que a punição e a
compensação são necessárias. Segundo, a outra pessoa sente
ter sofrido uma transgressão (vivencia uma experiência de
ofensa e indignação), exige que o agressor sinta-se culpado
e que procure desculpar-se de diversas maneiras. Coloca-se
numa posição de miserável merecedor de compaixão, a fim de
tornar sua posição mais suportável. Nina sempre introjetou
tudo o que sua mãe lhe “empurrava”. Ou seja, internalizou os
desejos e anseios de sua mãe (que teve sua carreira frustrada
pela gravidez e desejando para Nina o sucesso que não
alcançou) sem nunca se perguntar se também eram seus. Isso
fica claro na forma como a mãe sempre se dirigia a filha:
“minha doce garota”, “você é uma menina doce e meiga”, “você
é a culpada pelo meu fracasso, pois abandonei minha carreira
para me dedicar a você”.

A internalização de valores que Nina fez a impede de entrar


em contato consigo, de se reconhecer como pessoa completa e
integrada, diferenciando-se do outro. Logo, esse bloqueio de
si tem forte impacto na interpretação do Cisne Negro, visto
que ele é a representação do lado mais agressivo do Ser, o
qual Nina sempre evitou. A cobrança feita por seu professor
de que ao interpretar o personagem ela precisaria ser
sedutora e mais espontânea a traz para a awareness. Sendo
assim, ela toma consciência desse conflito interno entre o
demoníaco e o angelical, agora amplificado nos interesses de
sua mãe e de seu professor.

“Uma força do mal está te puxando e você não pode escapar.


Está fora de seu controle. Você sente, toma ciência dela”.
Na fala da coreógrafa, vale ressaltar e inserir no contexto
o conceito de “awareness”. Nina precisa tomar consciência de
seu funcionamento, aceitar-se tal como é e não mudar para se
adaptar a qualquer modelo de ideal e só assim conseguirá
atingir a perfeição como Cisne Negro.

A fluidez de Lily – de personalidade solta, criativa e


espontânea – e o brilho que Beth outrora teve desperta grande
admiração em Nina, sendo essas personagens essenciais para
o processo “metamorfósico” para fechar a Gestalt de
representar a Rainha dos Cisnes. Há em Beth o bloqueio de
contato de projeção, processo pelo qual tem dificuldade em
identificar o que é seu e atribui aos outros a culpa pela
sua aposentadoria como dançarina, o que é característico da
projeção. Há um deslocamento de responsabilidade do
indivíduo para com o meio.

Durante os ensaios, a dificuldade que Nina tem de soltar-se


e sua expressão facial rígida apesar dos movimentos
impecáveis mostram dessensibilização. Thomas descreve a
dança dela como fria e pede repetidas vezes que ela
simplesmente permita-se sentir. Podemos atribuir a frigidez
de Nina também à um bloqueio de contato deflexivo, procurando
evitar o contato direto, desviando a energia de seu objetivo
e pode ser caracterizado pela forma em que ela parece ausente
e fala de forma monossilábica. Quanto mais a pressão aumenta
e mais Nina recusa-se a tomar consciência de que ela não se
reduz apenas a um estereotipo de boa moça, mais
desequilibrada ela fica e atribui ao seu “lado ruim” a culpa
pela automutilação, que aumenta de frequência e intensidade.
Para a moça, esse lado não faz parte dela, ou seja, não
admite responsabilidade pelos seus atos (introjeção).

Ao sair com Lily, Nina deixa o cenário ao qual está


habituada, confrontando sua mãe e passando pelo contato final
(sente-se como própria fonte de prazer, nutre-se do que quer
e consegue aproveitar aquele momento), mas ainda com
relutância. A partir disso, ela passa a alucinar com a
transformação em um cisne. De acordo com a teoria de
ajustamento criativo, a alucinação pode ter sido uma maneira
que seu organismo criou para sobreviver a esse conflito.
Após essa experiência, Nina enfrenta sua mãe e faz-se ouvir.
Expressa o que sente, deixando de lado a personalidade
frígida e passiva em relação à Erica. Coloca-se a frente e
não deixa que a mãe decida o rumo de seus atos, havendo um
processo de mobilização, que é um fator de cura no qual o
sujeito sente-se disposto a mudar, exigir seus direitos e
separar-se do outro. Ao encontrar Lily no dia seguinte, Nina
descobre que a relação depois da festa não passou de
imaginação, o que pode ser interpretado como tendo sido parte
do processo de encontro da bailarina com sua outra face. Há
um desejo de mudança que pode ser denominado como fluidez,
processo pelo qual o sujeito movimenta-se e localiza-se no
espaço, deixando posições antigas e renovando-se.
Entretanto, ainda assim não há um equilíbrio.

“Você não sente medo, apenas transborda de aceitação”,


descreve Thomas durante o ensaio do ato final em que o Cisne
Branco suicida-se após descobrir que seu amado se apaixonou
pela sua “gêmea do mal”. Assim como em O Lago dos Cisnes,
Nina projeta em Lily a imagem de Cisne Negro e Leroy como o
príncipe, imaginando que há uma relação entre eles. A
projeção pode ser caracterizada pela atribuição ao meio de
elementos fantasiados pelo indivíduo. Não sabemos mais o que
é realidade e o que não é. Neste ponto, a projeção (imagina
todos contra ela e sente-se ameaçada) em Nina chega ao
extremo.

Quando Nina defronta-se com seu “lado negro” e não sabe como
lidar com isso, vemos que este acaba por tomar conta dela.
“O que aconteceu com a minha doce garotinha?” pergunta Erica
na cena em que tenta prender sua filha para impedi-la de
apresentar-se no estado em que se encontrava e a bailarina
afirma “ela se foi!”. “A única pessoa no seu caminho é você.
É hora de se libertar. Solte-se!” pede Thomas uma última vez
antes do espetáculo. Durante o início da performance de Nina
como princesa Odette, ela dessensibiliza-se e seu corpo fica
tenso e pesado, levando-a à uma queda. Ela culpa seu parceiro
de dança e mais uma vez não assume responsabilidade por seu
erro. Após o segundo ato, Nina finalmente integra os dois
cisnes, os lados deixam de ser conflituosos e trabalham a
favor dela. Ela aceita-se como é, por mais que ainda seja
prejudicial para ela em determinados pontos. Ao ver que não
tinha matado Lily de fato, há a tomada de consciência.
Afinal, a única pessoa no caminho dela era ela mesma. Depois
da apresentação, Nina fecha uma Gestalt. Finalmente consegue
sentir harmonia entre suas polaridades e percebe que
conseguiu alcançar o que queria. Suicida-se, levando o
personagem à mais literal perfeição. “Eu senti… Me senti
perfeita! Eu fui perfeita!”

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