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ARDENNE, Paul.

Um art contextuel Création artistique en milieu


urbain, en situation, d'intervention, de participation. Paris: Flammarion.
2004, p. 87-115.

A CIDADE COMO ESPAÇO DE PRÁTICA

A arte em contexto real se define como uma arte de ação, de


presença e de afirmação imediatas, que se relacionam à uma realidade
concreta, na qual o artista se envolve à sua medida e ao seu gosto. Entre
todos os espaços da realidade aos quais ela tem o desejo de se envolver
“estabelecer”, a cidade é um dos quais ela gosta mais particularmente.
Celebrada pelos impressionistas (Monet, La rue Montorgueil
pavoisée), reverenciada pelos futuristas (Boccioni, La ville qui monte), a
cidade nascida da revolução industrial com uma forte potência de atração
estética. Para isso, existem diversas razões. A cidade é o lugar de uma
atividade continua, rotineira ou impulsiva, que ritma a extrema
concentração dos atos humanos, atividade sempre intensa, frenética, que
encontra sua correspondência na excitação tão cara aos modernos. Ela é
também o espaço público por excelência, lugar de trocas, do encontro: da
arte com um público, em contato direto; do artista com outrem, nos termos
de uma proximidade que pode tomar diversas formas, afetiva, ou polêmica,
dependendo da ocasião. É enfim, por todas essas razões, um cronotopo
mitológico da arte moderna. Elemento motor do imaginário modernista,
palimpsesto mental conjugando ordem e caos, organização e entropia,
enfim, propriedade natural da cultura ocidental, o meio urbano parece na
verdade mais do que tudo destinado à arte. Que elas emanem da literatura
(Manhattan Transfer, de John Dos Passos), do cinema (Metropolis, de Fritz
Lang, L’Inhumaine, de Marcel L’Herbier...), do teatro (La Ville, de Paul
Claudel), da música, (Luigi Russolo, Steve Reich), ou da poesia (Les Villes
tentaculaires, de Émile Verhaeren, Les Pâques à New York, de Blaise
Cendrars), para citar somente algumas, as diferentes formas de expressão
artística que fizeram a modernidade não pararam de se referir à ela, de fazer
dela um assunto privilegiado de inspiração. A essas representações
renovadas da cidade, a arte contextual acrescenta um além material e toma
corpo, literalmente, inscrevendo-se numa relação encarnada. O assunto está
entendido, a cidade não se ilustra, mas se vive.

O deambulatório urbano
A cidade, nos termos que nos interessam? Um receptáculo
alimentado de atos de presença artística. O primeiro desses atos? A
caminhada, vetor da visita. O artista contextual é um andante e um
passeador incessante. Ele adota o ritmo do “flâneur”, no qual Baudelaire
faz o elogio no livro Le Peintre de la vie moderne, que força ao contrário o
caminho, sem ordenamento, rasgando o tecido urbano mais do que abrindo-
o, sua atitude denota a mesma obsessão: percorrer o espaço de maneira
físico-mental, com fins de exploração.
1ª Visita , dia 14 de abril de 1921, 15 horas: é nesse momento
preciso, na frente da igreja Saint-Julien-le-Pauvre de Paris, que André
Breton e alguns companheiros dadaístas marcam um encontro. O motivo da
vinda de todos até esse lugar de culto? A banalidade do lugar, a escolha do
lugar que, no topos urbano, “não tem absolutamente nenhuma razão de
existir”, diz Breton. Outros passeios do grupo, previstos nas Buttes-
Chaumont, na estação Saint-Lazare ou no canal de L’Ourcq, finalmente
não tinham acontecido e foram substituídos em maio de 1924 para um
deslocamento do Blois à Romorantin, pela iniciativa de Breton. O motivo?
Longe de um desejo de celebração do banal, trata-se dessa vez, de sentir a
errância de maneira experimental. O dadaísmo, nós sabemos, prova a
provocação, e o surrealismo, que o segue, prova o fortuito, o irracional e as
coincidências significantes. O investimento físico num espaço concreto
vem servir de suporte à essas diversas experiências não informa sobre uma
evidência: o “lugar” da arte se moveu e, com ele, o corpo do artista,
projetando-se agora com boa vontade na malha do mundo. O corpo do
artista se tornou um corpo que mede o espaço.
Essa forma caminhada da arte, não foi totalmente inventada pela
modernidade, mesmo se ela tenha renovado o princípio. A origem, que se
perde no tempo, deveria ser pesquisada nas procissões religiosas e em
eventos tais quais os mistérios cristãos, senão, mais antigamente ainda, nas
procissões acompanhando, na Grécia antiga, o nascimento da tragédia:
todos são caracterizados por um mesmo princípio: fazer se mover o corpo
de oficiantes no âmbito de uma ação de caráter simbólico1. Encontramos a
referência explícita à este substrato antigo na procissão Dada que
acompanha a apresentação ao público da revista Jedermann sein eigner
Fussball (“Cada um seu futebol”). O dadaísta alemão Walter Mehring
declara ter tido a iniciativa dessa forma de criação ambulatória, que foi

1. De maneira mais detalhada, nós pensamos nas procissões medievais tais qual os Lord Mayor’s
Pageants londrinenses, nas celebrações do Corpus Christi na Espanha, no carnaval nas suas diferentes
expressões, e em tudo o que o mundo moderno traz de desfiles: aqueles do 1º de Maio na Europa, Union
Square em Nova York ou na U.R.S.S dos anos 1920, sem esquecer as manifestações que possuem fins
comerciais: Tournament of Roses Parade em Pasadena por exemplo. Enfim, todo o movimento de teatro
de rua, e seus derivados espetaculares, do Bread and Puppet Theatre as Gay Prides e outras Love
Parades.
entre as primeiras procissões de artistas na cidade. A ação ocorre no início
dos anos 1920, em Berlin. Mehring conta:

“Se me lembro bem, foram os dois irmãos e editores dadaístas (Herzfelde) que
financiaram a empresa graças a uma pequena herança que eles tinham recebido. Mas a
maneira como nos a vendemos na rua foi minha idéia. Nós alugamos uma carroça do
tipo que serve aos passeios da Pentecôte, e também uma pequena fanfarra, que tocava
de ordinário nos enterros dos antigos combatentes. Nós, os responsáveis da redação,
caminhávamos seguindo-a dum passo lento, carregando pacotes de Jedermann sein
eigner Fussball no lugar de coroas mortuárias (...). Depois da dança guerreira canibal
dos Kapp-Putsch, mais grotesco de que as marionetes de Sophie Taeuber, depois da
dança macabra do movimento militarista Stahlhelm (“Capacete de aço”), com suas
ornamentações de swastikas que pareciam diretamente tiradas do “heráldico” de Hans
Arp, nossa procissão dadaísta foi acolhida com uma alegria tão espontânea quanto o
“On y danse” da multidão parisiense na Bastille2.

Esse exemplo de ambulatória urbana evoca a antiga prática do desfile


iconoclasta: carnavais do Antigo Regime, dos Raivosos partidários de
Hébert durante a Revolução francesa, ou do espírito agit-prop da Rússia
soviética, na seqüência da revolução de Outubro, notadamente aquelas
encenações do palhaço Durov. Como esses últimos, o desfile berlinense
reveste-se de um caráter programado. De maneira ostensiva, a procissão,
como nos informa Mehring, se dirige dos bairros burgueses da cidade,
situados no oeste de Berlin, para os bairros populares do leste onde ela se
encontra em território amigo, em companhia das populações que partilham
os ideais comunistas ou subversivos que são aqueles dos dadaístas alemães.
Esse dado programático, contudo o que a arte ambulatória espera logo não
ter mais a compor, ou então o menos possível. Atrás do programa, existe
um poder que age sorrateiramente, um poder de coordenação que pode
denotar uma manipulação. A propósito do decreto dos comissários do povo
soviético Sur les mouvements de la République, datado do 12 de abril de
1918, e no qual uma parte é consagrada às celebrações revolucionárias,
Lenin não declarara que a arte, longe de se distribuir de maneira anárquica,
deve ao contrario abraçar temas “significativos e importantes para a massa
laboriosa”, sabendo que o povo “deve ser aproximado de uma maneira que
desperte seu interesse3”? Essa tentativa de controle, esse recurso a uma
expressão relevante da arte pública, mas anti-espontânea e dotada de
objetivos específicos, esse trabalho de consolidação dos rituais
comunitários podem, em alguns casos trazer a adesão dos artistas
(notadamente aqueles que atuam dentro do quadro dos Ateliês livres de arte
educativa praticada em Petrograd, em outubro de 1918, pelo

2. Para o detalhe dessa manifestação, ver o Marc Dachy, Journal du mouvement Dada, 1915-
1923, Genève, Skira, 1989.
3. Citado para Vladimir Tolstoy, “Street Art and the Revolution”, in Jan Cohen-Cruz dir.,
Radical Street Performance-An International Anthology, Londres-New York, Routledge, 1998, p.18.
Lunacharscky). Mas tais posicionamentos são percebidos na maioria das
vezes como doutrinamento. Eles também têm o defeito de reduzir a quase
nada a plasticidade da intervenção em meio urbano, de deixar somente uma
parte mínima à improvisação. Razão pela qual o artista contextual,
marcando sua diferença com as fórmulas dirigentes, tende a privilegiar os
percursos mais aleatórios, contornando o imperativo do itinerário imposto.
Para o artista, uma vez na cidade, ele se perde nela, ele pratica a deriva,
como logo dirão os situacionistas. Essa vontade de não dominar, de não
controlar a caminhada e o deslocamento que ela permite no espaço, implica
um princípio de aventura. Ela também é o indicador significante de que o
meio físico no qual se move o artista, a cidade, parou de ser natural para ele
em todos os pontos. Esse meio não é mais aquele do residente integrado,
familiar aos lugares aonde vive, mas um espaço a descobrir, que admitimos
não conhecer bem, um lugar que ainda não desbravamos, e que não
sabemos como investir. E o que fazer ali exatamente?

Levante-se e ande!

Essa dupla disposição à aventura e à indecisão anima diversas


deambulações de artistas através da cidade, ou proposições a deambular.
Concebidas no inicio dos anos 1960, as City Pieces de Yoko Ono
produzem o efeito de gestos banais: andar com um carrinho de bebê, passar
por cima de poças de água... A artista os realiza por acaso nas ruas, sem
destinação geográfica precisa. Em 1964 Yoko Ono radicaliza essa
celebração da caminhada aleatória com Map Piece, convidando o eventual
executor a “desenhar um mapa para se perder”. Em 1962, o artista holandês
Stanley Brouwn realiza em Amsterdam, com o concurso de transeuntes,
sua série This Way Brouwn. Ele pede para que os transeuntes indiquem ao
acaso sobre uma folha de papel o itinerário que ele deve seguir para chegar
a um lugar qualquer da cidade, itinerário que o passante escolhe ao acaso.
Depois disso, sob a orientação do esquema, o artista vai ao lugar em
questão. Como o escreve Christel Hollevoet, “This Way Brouwn"
representa a idéia da cidade labirinto, a necessidade de se situar, suscitando
instantaneamente a imagem mental de uma cidade versátil, polimorfa onde
o espírito pode perambular com liberdade4”. André Cadere, seu “Bâton” no
ombro, pratica também, com muito gosto a cidade de maneira aleatória. Em
1976, por ocasião de uma exposição em Roma, na galeria D’Alessandro-
Ferranti, ele pede para os visitantes em quais lugares eles gostariam de ver
exposta uma das suas barras de madeira colorida, e depois os coloca nesses

4
Christel Hollevoet, “Deslocamentos na cidade. Da flânerie e a deriva à apreensão do espaço
urbano em Fluxus e na arte conceitual”, Parachute, n°68, outubro 1992, p.24. Numerosas menções que
faço devem algo a esse estudo notável, ao qual remeteremos o leitor desejando saber mais a respeito.
locais. Logo estava ele no Colisée, depois na Piazza Barberini, depois no
posto telegráfico da cidade, e finalmente no posto do correio. As Following
Pieces (1969) de Vito Acconci traduzem uma proximidade de espírito com
os deslocamentos aleatórios de Brouwn e Cadere, mas de um modo mais
discreto dessa vez.
Durante suas performances em Nova York, Acconci segue diversas
pessoas na rua, observa os mínimos fatos e gestos, fazendo um percurso de
fotografia que ele revela sobre um suporte de papel pronto para ser exposto.
Esse princípio de seguir alguém de perto rege também O Detetive (1981)
de Sophie Calle segundo um funcionamento inverso. Dessa vez, é Calle
que pede para sua mãe contratar um detetive para segui-la de perto.
Fingindo ignorar a sua presença, a artista faz o investigador passear durante
dias em lugares de Paris que evocam diferentes momentos de sua existência
íntima. Com Rape, em 1969, em Londres, Yoko Ono faz propõe à uma
equipe de televisão que vigie uma mulher escolhida por acaso, que seria
filmada durante dois dias, até sua casa. Essa obra, em especial, trata dos
riscos de confiscação da vida privada pelas mídias que se tornaram
invasivas e ávidas da intimidade alheia. Sua forma não é menos do que um
deslocamento concreto no espaço urbano.
Mover-se na cidade, é uma das novas apostas do artista moderno.
Trata-se tanto de dar-se conta de uma possibilidade de desvio geográfico,
como do anonimato do cidadão e como da cidade como matéria psíquica e
depósito de traços da vida social e individual. Duas grandes tendências,
sem surpresa, calibram e determinam essa estética do deslocamento físico
com finalidade artística. A primeira, a peregrinação por acaso, sustenta-se
pela idéia da descoberta e do mecanismo da expedição. É o espírito que
preside para os artistas do movimento Fluxus (a partir de 1961), cuja
ambição estética é de juntar arte e vida: Free Flux Tours (1976), de George
Maciunas e de seus acólitos, por exemplo, consistindo simplesmente a
deambular em Nova York, sem fazer nada mais que “flâner”. Segunda
tendência, o deslocamento motivado, que entrelaça a caminhada em meio
urbano à uma necessidade. Realizada em 1962, e apresentada no mesmo
ano, sob forma de documentário, na galeria Girardou em Paris, Fluxus
Sneak Preview, de Benjamin Patterson e Robert Filliou, adota o princípio
do encontro físico e da troca oral. Depois de ter indicado, sobre o cartão de
anúncio de sua ação, os diferentes lugares onde eles ficariam em Paris, e a
hora da intervenção, Patterson e Filliou se contentam de conversar com os
transeuntes que eles encontram, que ignoram na maioria do tempo o
sentido da intenção deles. O Formulaire pour un urbanisme nouveau
(1953) do pré-situacionista Ivan Chtcheglov, promotor da “deriva”5,

5
A definição situacionista da “deriva”: “modo de comportamento experimental ligado às
condições da sociedade urbana: técnica da passagem precipitada através de ambientes variados. Também
conclama uma relação ativa, inventiva e exploratória da cidade. Emanaram
disso os conceitos de “situação construída” e de “psicogeografia”6
desenvolvidas no âmbito da Internacional Situacionista (1957-1972), na
esteira da Internacional letrista) para Guy Debord e seus amigos, convite
para uma apropriação do espaço urbano tomando a “prática” ou, como
diremos mais tarde, da “manobra”, mas também respostas à crítica que eles
formulam da vida cotidiana. Desafiando-se do tédio ou a repetição, a
abordagem situacionista da cidade tem uma predileção para a conquista
onde entram em jogo a arte da geografia no terreno assim como a arte da
guerra: “ Terça feira 6 de março de 1956 às 10 horas G.E. Debord e Gil
J.Wolman encontram-se na rua dos Jardins-Paul e se dirigem em direção ao
norte tendo em vista de explorar as possibilidades de atravessar Paris nessa
latitude. Apesar de sua intenções, logo em seguida eles se desviam em
direção ao leste e atravessam a seção superior do 11º arrondissement7”,
como podemos ler no relatório de uma “deriva”. Sempre no registro do
deslocamento motivado, as caminhadas radicais, de preferência nas zonas
periféricas ou nos terrenos baldios, que o coletivo italiano Stalker organiza
durante os anos 1990, possui essa característica principal: uma
reivindicação de ocupação física. Para o Stalker, cuja ação decorre também,
nesse caso, da conquista, da reapropriação de zonas urbanas, fora do usual,
nós avançamos não importa o que aconteça, forçamos barreiras ou gradis
que impedem a livre circulação (serie dos Franchissements, 1996-1998,
Roma, Miami, Paris...). A ação visa menos o deslocamento puro ou por
acaso no espaço urbano do que uma retomada política do meio.
Que o deslocamento do artista na cidade aconteça por acaso ou, ao
contrario, de maneira programada, o fato de caminhar cria, num caso como
no outro, as bases de uma nova estética. Aquela, diz Thierry Davila, é de
natura “cineplástica”8. Esse “devir caminhada” da arte, exprimindo-se à
maneira de Gilles Deleuze, reflete de forma mais geral a tendência, própria
a arte de natura contextual, a valorizar o processo. Além dessa qualidade,
também tem com característica aumentar a noção de espaço urbano num
sentido excedendo os critérios de representação geográfica ou psicológica
que nos formamos na maioria do tempo em contrato da cidade. Com a arte
caminhada, assim como a fórmula de Davila, “aparece um universo no qual
o deslocamento se afirma não somente como um meio de translação social,

se diz, mais particularmente, para designar a duração de um exercício continuo dessa experiência”
(“Definições”, Internationale situationniste, nº1, junho de 1958, p.12.)
6
As definições de “situação construída” e de “ psicogeografia” estão colocadas na capitulo VI: A
obra de arte móvel (L’oeuvre d’art mobile).
7
Citado para Christel Hollevoet, idem, p.23. Citação in extenso em On the Passage of a Few
People Through a Rather Brief Moment in Time: The Situationnist Internationale 1957-1972, Boston,
Institute of Comtemporary Art, 1989, p.139.
8
Thierry Davila, Marcher, Créer, op.cit.
mas também como um fato psíquico, como instrumento de ficção ou ainda
como o outro nome da produção9”.

A decoração polêmica

Em seu estudo A Invenção do cotidiano, Michel de Certeau evoca a


caminhada como uma “prática de espaço”10. Na falta de permitir a
confrontação com a cidade como entidade, cidade que de todas as maneiras
não é accessível em bloco, caminhar equivale a experimentar “praticando
de maneira comum” as oportunidades que oferece o território urbano em
matéria de descoberta sensorial do lócus. O que remete, sugere Certeau, em
escrever o “texto” da cidade de uma maneira autenticamente vivida, como
quando traçamos um desenho sobre uma folha, gozando de tal tomada de
posição de um espaço virgem. Toda exploração, toda conquista, neste caso,
se traduzem por um sentimento de possessão concreta, na escala física do
corpo, desafio à abstração que representa o mapa. Sentimento possessivo,
pressentimos, que tem sua conseqüência. O artista que recorre à cidade
como médium (como um pintor usa um quadro) pode acabar usando-a
como um médium para o seu bem estético próprio. Ele impõe-lhe sua
marca, sua assinatura, ordena ali a matéria que ele traz. Disso, em toda sua
lógica, como o principio de decoração emblemática da arte urbana.
Decorar. Um termo tal, tratando-se de práticas urbanas de arte, tem
que ser esvaziado de sua dimensão ornamental, ou de sua facticidade. Nós
o compreenderemos mais como uma contribuição, uma transfusão de
matéria sensível. A cidade, como “sendo uma coisa dada”, e a arte “de”
cidade sendo um prolongamento desta coisa dada. Prolongamento tomando
a forma, a mais fina, de um suplemento de expressão. Tal como a considera
o artista contextual, a cidade é uma realidade dada, mas maleável, um
canteiro de obra onde o artista instala uma obra que toma a posição de
“instrumento visual” (a fórmula é de Daniel Buren) ou de instrumento
simplesmente. As colocações de cartazes (as colagens) não autorizadas que
realiza Buren em Paris, em 1968, – de simples tiras pretas e brancas -
fornecem uma ilustração eloqüente, em particular do potencial em render o
contexto modelável. A época na qual Buren vai também “colar”, toda
colocação de cartaz não autorizada é um pretexto à slogans, reivindicações,
críticas se exercendo contra a ordem "gaulista", burguesa e capitalista. Se a
revolta de Maio dá para Paris um novo rosto fazendo de seus muros um
gigantesco dazibao, os cartazes de Buren ali aparecem, em compensação,
como um enigma, como uma afirmação que não afirme nada – tiras pretas e

9
Thierry Davila, Marcher, Créer . Le déplacement dans l’art, conferência, espaço Croix-
Baragnon, Toulouse, 28 de março de 2002.
10
Michel de Certeau, L’Invention du quotidien, Arts de faire, Paris, Gallimard, 1990,
particularmente o capitulo “Marches dans la ville” (Caminhadas na cidade.)
brancas, valendo dizer o que? O consenso era das proclamações militantes,
enquando essa visualização “selvagem” parecia chamar a outra coisa: á
valorização de um fora-de-quadro, um fora-do-tempo, uma retórica
divergente da sinalética) pública ordinária. Sua mais evidente razão de
existir? Uma parada colocada na colonização do espaço urbano para os
signos escritos. A chamada, uma manobra sub-entendida a uma redefinição
da visão. Resultado: a visão do público, essa vez, acha menos matéria para
estancar sua sede de reivindicação pois ela não se confronta a um signo
mudo jogando como um oximoro (contradição), um signo aparentemente
silencioso mas de silencio eloqüente. Decoração do espaço urbano, pois,
mais além da sedução constitutiva de toda decoração, sedução que não
ocorre evidentemente no caso dos cartazes de Buren.
Tal como o considera esse último, (ou na mesma via, Joseph
Kosuth com Texto/Contexto, enunciando sobre um outdoor publicitário que
explica ao transeunte como a propaganda usa de signos no objetivo de
condicionar-lo11), a visualização intempestiva joga como um curto-circuito.
Por causa dele, o espaço público se descobre infestado. Aqui esta
recolocada em questão para uma sinalética menos inocente do que parece
em primeira abordagem, cuja a aparente vacuidade plástica vai constituir
toda a carga que o convida a rebelar-se (não é sem razão que a visualização
intempestiva ou ilegal esta qualificada de “selvagem” na linguagem
comum). Essa carga que o convida a se rebelar, embora o vetor seja dos
mais inofensivos, não deve ser sobrestimada. Durante a exposição Quand
les attitudes deviennent forme, 1969, na Kunsthalle de Berne, Daniel
Buren, que não foi para expor, afixa seus cartazes a volta do prédio.
Cartazes, novamente sem conteúdo contextual aceito, unicamente com
referências de alternância de tiras em cores. Elas o lavaram a ser
denunciadoà polícia local, intrigada por essa colagem de cartazes que não
reivindicavam nada. Para além da anedota (algumas horas de prisão para o
artista, assim mesmo...), essa ação reflete o que constitui a seiva da arte in
situ cara para Buren, quando ele ocupa a rua de maneira ilícita, sem um
pedido de autorização previa: a possibilidade de uma subversão. Se a arte
in situ, quer dizer concebida em função de seu lugar de recepção, se dá nos
casos autorizados ares de conversação refinada entre o sitio e a obra (a obra
muda o lugar assim como o lugar muda a obra, segundo a formula do
Buren, seu principal iniciador e divulgador), acontece que seu propósito

11
Joseph Kosuth, Texto/Contexto, cartaz Praça de Saint-Michel, Paris, 1979. Podemos ler nesse
cartaz o texto seguinte:
“Essa vez de novo, a gente se perguntara, o que é isso? (...) O espaço que esse texto ocupa, tal
como o espaço que vocês ocupam, parece fazer parte do mundo real. No entanto, o que é dito aqui sugere
uma ausência; esse branco ou esse vazio que esse texto deve tornar-se objetivo de falar do que só um
borrão poderia aqui exprimir. Esse texto renderia visíveis essas convenções que ligam vocês a ele, mas
olhar para elas tornaria vocês cegos a “o que é”. O que olham em torno de vocês, e o que trazem com
vocês, faz de este texto um toco.”
seja essencialmente discordante, em ruptura, e remete, por uma sinalética
interposta, ao atentado12.

A cidade reconfigurada

Simplesmente, a razão de ser das realizações deste tipo de


colagem, de visualização intempestiva, é de se colocar em forma um
acidente. A arte, que a gente não espera, surge. Como garantia de uma
transformação da plástica urbana, esse surgimento tem como cerne uma
evolução do ponto de vista do artista sobre a cidade. Ponto de vista que dá
credito à idéia que a cidade ganha o que a arte se apodera dela, na condição
de que essa última seja renovada. As metamorfoses que inflige a arte
publica selvagem, não sendo de natureza a se inscrever na duração, mas a
passar, é a de uma arte sempre renovada e efêmera que se adere ao espaço
da cidade, em evidencia mais conforme ao espírito dela do que as fórmulas
de arte urbana suntuosas ou comemorativas. Porque em trânsito, a criação
selvagem implica naturalmente uma retomada da matéria como dos
médiuns do artista. A esse último de por em produção e dar condições
materiais de trabalho ao “diapasão” da matéria urbana uma vez que aquela
seja solicitada por essa nova modelagem.
O artista "trabalhando" a cidade terá um pouco de dificuldades para
obter um resultado satisfatório se ele usa velhos métodos ou as maneiras
clássicas de fazer a arte, tais como o quadro ou a escultura. Reconfigurar a
cidade, nesse olhar, pressupõe que os instrumentos sejam redefinidos, do
mesmo modo que o método. Daniel Buren relembra como a perda de seu
ateliê levou a trabalhar in situ e a recorrer a um médium perceptível no
instante13. Não mais ter ateliê, é ser obrigado a produzir obras simples
sobre um plano material, realizadas rapidamente, sem recursos a um
ambiente técnico pesado, de uma natureza tal que não precise mais
armazenar-las: obras enfim, que tenham um grau de impacto elevado. Pois
é também encontrar-se pela rua, na rua, e se impor uma reflexão sobre o
tipo de obra o mais adaptável ao meio urbano, plástica contra plástica. A
utilização repetitiva para Buren da tira de 8,7 cm de largura, preta ou
branca, atinge perfeitamente seu objetivo: fácil de reproduzir, de dimensões
variáveis, é apta a ser industrializada e produzida em grande quantidade;
além disso, ela engendra uma vez afixada, efeitos de diferença visual. Se
eles parecem em primeira vista coerentes (a eficácia tem preço), esse
critério de adaptação da obra ao meio não ocorre sem colocar problemas.
Ele postula que a arte, sobre suas formas clássicas, para começar com a arte
urbana tradicional, é ao contrario radicalmente estrangeira à cidade, mesmo

12
Sobre o nascimento da arte in situ e a maneira cuja Daniel Buren a receia, ver nomeadamente
Daniel Buren e Jerome Sans, Au sujet de ... (entrevistas), Paris, Flammarion, 1998.
13
Em o catalogo da exposição Micropolitiques, op.cit., C.N.A.C. “Magasin”, Grenoble, 2000.
quando ela veste formas tornadas canônicas, assimiladas à substância do
mundo urbano, consideradas como orgânicas. A cidade moderna é o espaço
por excelência do transitório, lugar baudeliriano cuja forma, diz o poeta do
Cygne, “muda mais rapidamente, infelizmente!, que o coração de um
mortal”. A arte deve então se fazer transitória, e também, acompanhar
passagens e derivas dos cidadãos, moldar-se na dinâmica de espaços que
modificam sem parar a cidade viva, se submeter a uma transformação
perpétua. Partidário da “anarquitetura”, Gordon Matta-Clark aproveita
assim a desocupação de casas ou de prédios destinados á demolição (Nova
York, Paris, anos 1970): com a ajuda de material de obra, ele corta-o para
expor o interior deles depois de ter destruído uma fachada, abre percursos
inusitados para o olho ou para a passagem de eventuais visitantes. Porque a
cidade moderna concentra o universo de espezinhamento e dos percursos
consumistas fica também à arte de investir lugares de troca e de comércio,
numa relação direta com a geografia concreta do mundo material. Levado
para Hervé Fischer e Alain Snyers, o grupo dos Cidadãos-escultores abre
um ateliê de criação coletiva no meio de supermercado de Chicoutimi, no
Canadá (1980). Dan Graham instala sistemas vídeos nos pátios de grandes
shopping norte-americanos ou nas vitrinas de uma rua na Alemanha (anos
1980): câmera e monitores devolvem aos consumidores sua própria
imagem de indivíduos condenados ao percurso cumprido, de loja em loja,
forma daqui em diante banalizada de errância existencial e variante
desacralizada da peregrinação. Kristof Kintera concebe “objetos sem uso”
que a aparência assimila à um material eletrodoméstico e que ele põe
diretamente em venda nas lojas reservadas aos objetos eletrodomésticos
(anos 1990), etc. Nos entendemos: o que queria temperar a arte contextual
urbana são as tendências ostentatórias, manipuladoras e decorativas da arte
da cidade tradicional. E diminuir ao mesmo tempo uma tentação comum
nos urbanistas: uma visão estética muito frequentemente abstrata da cidade
e da paisagem urbana.
Acrescentar à plástica urbana pode se revestir de formas diversas.
Algumas, carregadas por uma dinâmica participativa, são de natureza
lúdica, à semelhança das experiências em meio urbano dirigidas pelo
Grupo de Pesquisa em Arte Visual. Os membros do GRAV (Garcia Rossi,
LeParc, Morellet, Sobrino, Stein, Yvaral) apresentam e justificam assim a
Journée dans la rue (Dia na rua), que se desenrolou em Paris o dia 6 de
abril de 1966.

“A cidade, a rua tem por trama uma rede de costumes e de atos cada dia
reencontrados. Pensamos que a soma destes gestos rotineiros pode levar a uma
passividade total ou criar uma necessidade geral de reação. Na rede dos fatos repetidos e
reencontrados de um dia de Paris, nos queremos colocar uma serie de pontuações
deliberamente orquestradas. A vida das grandes cidades poderia estar bombardeada de
maneira massiva não com bombas, mas com situações novas solicitando uma
participação e uma resposta dos seus habitantes14.”

A Journée dans la rue, “bombardeamento” de situações novas,


vai tomar a forma de um percurso cronometrado, na capital francesa, de
uma duração de oito horas, entre 8 e 16 horas. Esse percurso se abre do
Châtelet ao Odéon passando pela Opéra, do Quartier Latin até Tuileries, e
Montparnasse, Cada etapa constitui uma ocasião de confrontar o publico à
criações pouco familiares: um “objeto cinético habitável” em forma de
cilindro penetrável situado na entrada da estação do metro Opéra; um
circuito no qual a passagem dos “promeneurs” aciona flashes eletrônicos
em Saint-Michel; apitos ofertados como presente para os espectadores dos
cinemas d’art e d’essai, um concurso de equilíbrio no passeio de uma rua
na frente do restaurante La Coupole; diversos elementos a “acionar,
manipular, experimentar”, como numa feira popular no Odéon15.

Uma outra maneira de reconfigurar a cidade consiste em recorrer a


emblemas vistosos. Os cartazes são os mais frequentemente usados.
Recorrer ao cartaz, para o artista, faz parte do ativismo. Através dele, ele
entende suscitar uma tomada de consciência e dar gosto da ação quando
não conseguem mais os vetores tradicionais da expressão política,
peticionaria ou contestatória. A utilização artística do cartaz se propaga da
Europa (desde a revolução russa de outubro 1917) para os Estados Unidos,
onde ele se banaliza no período de Reagan (anos 1980), “enquanto a
escultura pública é criticada para sua incapacidade em refletir as
preocupações publicas, a arte política neutralizada por sua recuperação do
museu e dos projetos comunitários interativos muitas vezes
desconfigurados, como trabalho social”, precisa Harriet Senie16. O sucesso
de gênero se explica pela familiaridade do suporte cartaz e o poder natural
de seu impacto. Que se trate de lançar slogans revolucionários ou apelos
pelo apoio de um regime político (os artistas atuando no âmbito do agit-
prop soviético), de chamar a ajuda social (Sandy Strauss, How Do You
HELP the Homeless, 1988, em favor das pessoas sem domicilio fixo), de
militar para a luta contra AIDS ou dos preconceitos que traz essa doença
(Gran Fury, Kissing Doesn’t Kill, 1988) ou contra o esquecimento da
história imediata a mais trágica (Alfredo Jaar, Rwanda, 1994), o recurso da
colagem publica de cartazes se revela de uma inegável eficácia. Esta se
14
Extrato do panfleto distribuído aos transeuntes durante a Journée dans la rue.
15
Para mais detalhes, ver GRAV. Stratégies de participation – Groupe de Recherche d’Art Visuel
1960-1968, (catálogo da exposição, dir, Y. Aupetitallot), C.N.A.C. “Magasin”, Grenoble, 1998, p.172-
179.
16
Harriet Senie,“Disturbances in the Fields of Mammon Towards a History of Artists’
Billboards”, in Billboards- Art on the Road, A Retrospective Exhibition Of Artists’ Billboards od The Last
30 Years, catálogo da exposição (curadoria: Laura Steward Heon, Peggy Diggs, Joseph Thompson),
MASS MoCA, North Adams, Massachusetts, maio-setembro 1999, p.20.
explica em primeiro tempo por sua proximidade com temas de predileção
retomados da vida comum, que ajudam o espectador a se identificar com o
que ele esta olhando. Como diz Les Levine, um dos mais ferventes
praticantes, “um bom cartaz artístico é aquele que faz sentir para vocês que
a informação estava destinada para vocês17”.
Outra maneira ainda de reconfigurar não com menos eficácia o
espaço urbano: a utilização de bandeiras e banners. E é sem se reter que os
partidários de que se tornara nos anos 1970, com o artista John Dugger, a
Banner Art, em busca de uma visibilidade máxima, confessam o gosto pela
declamação. Colocadas de uma maneira que não deve nada ao acaso (e que,
no caso deles, não seria resultado de uma ausência de objetivo), as
proposições plásticas de tipo bandeira são em prioridade concebidas para
ser vistas e avaliadas, sobre o plano estético e político. Próximo de
Medalla, fundador do primeiro Art Festival for Democracy no Royal
College of Art de Londres (outubro de 1974), John Dugger abre o céu do
povo chileno contra Pinochet (Chile Vencera, Trafalgar Square, 1974).
Rose Finn-Kelcey realiza também, entre 1968 e 1973, vários objetos de
plástico ditos Windblown ou Win-inde-pendent. Carregadores de
mensagens ora explícitos (Power for the People, em 1972, sobre Battersea
Power Station em Londres), ora ambíguos (Fog, sobre o Castelo de
Nottigham), esses exploram uma veia que será retomada um pouco mais
tarde por Les Levine, e que caracteriza a exposição deslocada, pois
intrigante, de palavras de dicionário ou de fórmulas consagradas. Como o
escreve Guy Brett, apontando seu laço freqüente com a arte da escrita, os
objetos Wind-blown podem estar ligados tanto “às pesquisas em arte
cinética dos anos 60(...) como à poesia concreta18”, as palavras vindo nesse
caso exporem-se no seio do espaço livre da atmosfera.

Do aparecimento produtivo á dissimulação

A reconfiguração tal como a modula a arte urbana se faz mais


comum a partir dos anos 1970 e adota uma multiplicidade de aspectos.
Tadashi Kawamata fica famoso por seus abrigos para os sem domicílios
fixo ou por amontoar madeira e cacos de construção que ele distribui por
acaso de baldios urbanos de varias periferias européias ou norte americanas
(Field Works). Misturando a estética da recolha (retirada) 19 (na seqüência

17
Citado por Harriet Senie, “Disturbances in the Fields of Mammon: Towards o History of
Artists’ Billboards”, op.cit., p.26.
18
Guy Brett, Rose Finn-Kelcey (1991-1992), citado in Live in Your Head…, op.cit, p.81.
19
Deve-se ao grupo UNTEL uma das formas as mais sistemáticas de levantamento. Os
levantamentos urbanos realizados por esse coletivo em Mâcon, em 1976, são a oportunidade de um
percurso preciso em algumas zonas da cidade, delimitadas por os artistas como perímetros de prospecção
(um passeio de uma rua, um cruzamento...). Os artistas recolhem todo o que eles acham (rua da Barre, 7
de fevereiro de 1976: um pedaço de cartão, um cordel, um lençol amarrotado), põem o sob (blister) e
de Schwitters, e de Rauschenberg) e aquela da “verruga”, essas realizações
são o prelúdio das mais vastas instalações que logo receberam o acordo dos
poderes públicos: igreja abandonada cercada de velha madeira de
vigamento em Kassel (1987); passeio elevado juntando os diversos
monumentos públicos da praça central de Evreux espalhados pelos
bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial (2000). Dennis Adams,
Bárbara Kruger, por sua vez, desviam outdoors para fazer valer uma
iconografia terceiro-mundista, espalhando slogans reivindicativos e
preconizando a melhora da vida urbana ou desnudando condicionamentos
no qual o cidadão é a vitima freqüentemente inconsciente (anos 1990, Nova
York.). Krzysztof Wodiczko realiza a partir de 1981 projeções ao ar livre
sobre fachadas que ele considera como “prédios-telas”, aqueles, em
particular, abrigando órgãos de poder, palácio e outros edifícios
administrativos. Para ele, “a iluminação de um edifício público, em
particular de uma instituição situada no centro, no coração da cidade é um
ato de fala que deve encorajar e ajudar os cidadãos a falar entre eles e a
ficar sensíveis ás vibrações da cidade20”. Em Montreal, em 1976, Melvin
Charney reconstitui na avenida Sherbrook, como num cenário de cinema,
as fachadas das casas desaparecidas ou entregadas aos projetos de
reorganização dos promotores, trabalho de reativação da memória do lugar
tanto quanto de sua proteção... Não tem limites para o modelo decorativo
urbano próprio ao artista ativo em contexto real. Nos anos 1990, Antonio
Gallego oferece esse tipo de proposições, muito desconcertante tendo em
vista seu espaço de expansão, que é a cidade moderna ocidental. No acaso
das paredes, esse artista especializado na distribuição de obras-panfletos
procede numa afixação inesperada: fotografias de arquiteturas tais como a
cabana, a “borie” e a “yourte” (serie de Architectures premières). Seu
gesto, já; vale por causa de sua carga insólita. Para sua inegável eficácia,
também devida a seu caráter atrativo, uma eficácia que, volens nolens
(querendo, não querendo), se revela de um alcance múltiplo: fazer refletir o
cidadão em seu próprio âmbito de vida, tirar seu imaginário em direção aos
arquétipos da moradia urbana, incentivar-lo a comparar os diversos modos
de existência que adotam as civilizações. Subsidiariamente, mostrar
quantos dos temas em voga como a mundialização ou a globalização dizem
respeito a sociedade inteira dos homens. O todo é proposto sem
autoritarismo, e sem horizonte diretivo ou didático. No fim das contas,
nada obriga o transeunte a olhar os cartazes afixados por Gallego, e ele
pode também olhar-los sem prestar atenção. E mesmo, confundir essas
imagens sem qualificação precisa com as que usa a propaganda durante
suas campanhas de afixação promocional em diversos episódios.

expõem-no com uma fotografia do lugar e um mapa onde esta mencionado o lugar exato onde o
levantamento foi feito.
20
Citado por Christophe Domino, À ciel ouvert, op.cit. , p.96.
O signo artístico urbano, com mais freqüência, busca uma
visibilidade tonitruante, na ocasião militante, preocupada nesse caso em
captar não importa o que custe o olhar em geral apressado e “super
solicitado” do cidadão. Tensão lógica onde se encontram ligados um ato de
tomada de controle do visível e apontado á eficácia. Todavia, essa postura
“midiática” não é necessariamente procurada. Em números casos será
preferida á exposição pública de uma realização artística visível, mas
carregando pouco a conseqüência, de primeira abordagem pelo menos. As
City Performances de Tania Mouraud são dessa borda, que ve o artista usar
armários públicos para petrificar ora imagens sem legendas, ora locuções
que deixam o espectador perplexo. (“Ni ni”, em Paris, em 1978: “Ni dieu ni
maître”? “Ni droite ni gauche”?), ( “Nem deus nem mestre”? “Nem direita
nem esquerda”?). Nessa linha, Les Levine, Gilbert Boyer, Felix Gonzalez-
Torres, Erik Steinbrecher, Pierre Huyghe, Claire Dehore, Franck Scurti,
Patrick Mimran, Miriam Bäckström... recorreram a esse mesmo processo
lacônico para algumas de suas colagens (cartazes) públicos, promissores de
um verdadeiro Billboard Art, com suas regras implícitas: campanhas
focalizadas, acordos com os autorizadores de colagens no espaço público,
escolha dos melhores lugares onde “accrocher”, mas então subvertidos 21.
Les Levine, em 1984, ao longo do Los Angeles Highway expõe as palavras
Take, Aim ou Race acrescentados de desenhos (respectivamente um cavalo,
um cervo, uma retroescavadeira sem explicação. Em Dunkerque e nos
arredores de essa cidade do norte da França, Bäckström apresenta sobre
painéis reservados à cartazes publicitários fotografias de interiores de
apartamentos tiradas em Stockholm, longe da cidade onde a artista as
expõe. A concepção ordinária do espaço público em relação ao espaço
íntimo é empurrada: o íntimo se torna o público, e vem nele impor-se sem
que nos saibamos bem os fins disso, seguindo uma espantosa lógica de
“inversão”, escreve Christophe Le Gac22. Para uma das suas ações públicas
(Cleunay: ses gens, 1998), Robert Milin faz especialmente edificar para um
município da periferia “rennaise” painéis sobre os quais ele afixa a
fotografia de habitantes do lugar que ele freqüentou durante as semanas
precedentes, tais novos “quadros”, mais na escala do olhar urbano. Jenny
Holzer, no que lhe concerne, usa o sistema dos painéis luminosos das
grandes cidades ocidentais para incrustar seus Truisms (a partir de 1977),
mensagens com destino de “clichê”: “Mourir d’amour, c’est beau mais
stupide”, “ Ne faites pas trop confiance aux experts”, “La strucutre de
classe est aussi artificielle que le plastique”, “L’humanisme, c’est

21
O ponto de vista dos artistas “afficheurs” em Tom Finkelpearl, Dialogues in Public Art
(coletânea de entrevistas), Cambridge, Massachussetts-London, England, The MIT Press, 2000.
22
Sobre essa serie de afixações realizada por Miriam Bäckström na região francesa Nord-Pas-de-
Calais na iniciativa do Fond Regional d’art contemporain (em Boulogne, Outreau, La Grande-Synthe...),
ver Christophe Le Gac, “Urbanités et renversements”, in Parpaings, nº29, janv.2002, p.18-19.
dépassé”...( “Morrer de amor, é lindo mas estúpido”, “Não confia muito
nos experts”, “A estrutura de classe é tão artificial quanto o plástico”, “O
humanismo, é ultrapassado”...) Em outros casos, será privilegiada a
expressão furtiva ou fugitiva. Nos perímetros as mais modernos das
cidades, Dan Graham instala dispositivos de vidro refletindo, os quais vêm
contaminar a estética do reflexo próprio de nossas cidades de vidro:
espelhos acrescentados aos espelhos pré-existentes, enquanto o jogo das
aparências, para o usuário, pode estar multiplicado até a vertigem e o mal-
estar. David Hammons, um dia de inverno, molda com neve pequenos
objetos e expõe-los sobre passeios de rua em Nova York, como os fazem os
camelos. Os famosos Bâtons, que asseguram a reputação de André Cadere,
oferecem um outro exemplo de “decoração” mínima, pelo menos fugitiva,
artefatos singulares da qual nos lembramos para memória e história, muito
instrutiva. Primeira etapa: varas ornadas de argolas coloridas plantadas na
vertical em pedestais; segunda etapa: essas mesmas varas colocadas ao
longo de uma parede, sem pedestal; terceira etapa: as mesmas, sempre, mas
dessa vez vinculadas para o artista, sobre seu ombro, em todos os lugares
onde ele gosta de ir.
O limite com o qual o artista flerta, no termo desse processo que
coloca em jogo furtivo, é aquele do invisível. Algumas obras, tornadas
mudas, vão investir a cidade em segredo – espectros artísticos paradoxais:
tantas realizações presentes mas ausentes ao mesmo tempo, com vontade
de ser ilegíveis e mal destacadas do suporte, que se derretem na matéria
urbana, mas que elas a enfrentam de maneira aberta. Patrice Loubier chama
“signos selvagens” essas formas de uma intervenção leve tendo com
objetivo dissimular-se e recusar qualquer efeito – assim a fio vermelho que
o mesmo Loubier vai desenrolar no outono 2000, com a ajuda de Michel
Saint-Onge, na cidade da alta cidade de Québec. Como define esse autor e
crítico de arte que passou a atuar artisticamente, “o traço característico do
“signo selvagem”, é o de fazer essa intrusão, sem cartaz nem letreiro, sem
“modo de usar”: sua única aparição perturba localmente e temporariamente
a economia funcional dos signos e objetos do espaço urbano23”. Uma
perturbação local e temporária na qual temos que nos perguntar se o seu
23
“Du signe sauvage, notes sur l’intervention urbaine”, Inter art actuel, nº59, 1994, p.32.
Exemplo concreto com Sans titre (le fil rouge) , 4 de outubro de 2000, citado aqui, como descritivo
seguinte: uma bobina de fio para costurar vermelho de um comprimento de 5000 metros foi desenrolada,
a noite, de maneira a atravessar em largura toda a cidade de Québec, desde a escada em frente ao antigo
edifício do cotidiano Le Soleil (O Sol) na cidade baixa até o rio Saint-Laurent, do outro lado das planícies
de Abraham (subindo a escada, ele passa por as ruas Sainte-Claire, Saint-Jean e Claire-Fontaine, atravessa
as planícies, descendo por a escada do Cap-Blanc e corta o boulevard Camplain para se desaguar
finalmente no rio). O fio descreve assim uma linha continua, embora pouco discernível e particularmente
precário, que se esgueira através de um patchwork de contextos e de ambientes urbanos diversos: o
Faubourg René-Lévesque, e os grande prédios da função publica, a Grande-Allée costurada, as planícies
de Abraham, e o bairro do Cap-Blanc encostado na falésia. O fio sublinha a geomorfologia particular de
Québec, cuja cidade alta nada é mais do que uma ascensão do Escudo Canadense beirando o rio Saint-
Laurent.
objetivo, ao contrario de uma pesquisa de efeito, não reside no gesto
mesmo da presença ou do deslocamentos evocado precedentemente, gesto
colocando a nu o desejo de transformar simplesmente a cidade em objeto
de experiência. “Gesto simples de marcar um território de uma presença
efêmera e quase imperceptível”, cuja “a finalidade se encontra no processo
mesmo24”, precisa Sylvette Babin.

Da arte como variação da temporalidade urbana

Gigantesco quadro onde as ruas, para retomar a expressão de


Maïakovski, se fazem os “pincéis” dos artistas, escultura de tamanho
natural que modelamos seguindo a vontade, a cidade oferece tudo o que o
artista ardente do contexto real pode desejar: temas e lugares,
possibilidades de deslocamento, de estação, de encontro, de confrontação
ou de evasão, sem esquecer os habitantes, inumeráveis. Combinação
virtualmente infinita cujo resultado, a cidade como forma prática da arte,
não saberia achar de estabilidade, visto que seus constituintes se revelam
em evolução continua. A obra realizada em meio urbano, como sublinha
Catherine Grout, “não se apresenta necessariamente como um objeto
reconhecível, estável, eterno”. Ao contrário, “intervenção efêmera, work in
progress, ela é submetida ao tempo25”, tempo da cidade que nos sabemos
mais que tudo, flutuante e pulsante.
Se a arte urbana se apresenta como um fator acrescendo à cidade
uma forma, sem duvida que acrescenta também o tempo, ou antes as
temporalidades adequadas em modificar o tempo médio tal como o sente o
cidadão. Amante das imagens, a cultura urbana está tanto amante dos fatos,
do movimento das coisas e das situações, da erupção inopinada deste real
bruto que faz sua vibração e atesta de sua vida abundante. Como escreve
Pierre Restany, “o estatuto platônico da imagem só foi realmente
contestado que a partir da expansão da cultura urbana que nos fez passar de
uma arte da representação a uma arte da apropriação do real, quer dizer da
apresentação26”. É em virtude de esse deslizamento em direção à

24
“Praticar a cidade”, Esse, nº42, primavera-verão 2000, p.17. Além de sua natureza processual,
nos acrescentamos que o signo selvagem não é necessariamente sem laço tático com outras formas de
expressões “discretas”, em outros domínios de criação, em particular o Teatro invisível de Augusto Boal,
ativo na Argentina, nos anos 1970, pelo criador do famoso Teatro dos oprimidos. A. Boal define assim o
Teatro invisível: “Ele consiste na apresentação de um ato cênico num ambiente outro que o teatro, na
frente das pessoas que não são espectadores. O local pode ser um restaurante, um passeio de rua, uma
feira, um trem, uma fila, etc. Aqueles que assistem á manifestação estão aqui por acaso. Durante o
espetáculo, as pessoas não devem ter a impressão de que se trata de um espetáculo”, (Augusto Boal, “Le
Théâtre invisible” in Jan Cohen-Cruz dit., Radical Street Performance..., op.cit., p.129-124).
25
Catherine Grout, “Art en milieu urbain”, in Groupes, mouvements, tendances de l’art
contemporain depuis 1945, op.cit., p.245.
26
Catálogo da exposição Cette culture qui vient de la rue, Vitry-sur-Seine, 2000.
apresentação que a arte urbana se constitui como acontecimento e como
figura, Erlebnis em virtude do qual as temporalidades da cidade se vejam
por ele enriquecidas. Se ele leva a cidade a conhecer uma mutação plástica,
o ato da intervenção artística em meio urbano modifica também as
temporalidades internas dessa cidade. Raramente qualquer um, ele ativa a
contemplação do transeunte, ou desacelera seu olhar, insufla na rítmica
urbana um acréscimo de velocidade ou lentidão: trabalhando juntos o
espaço e o tempo da cidade. Maneira ostensiva de acrescentar do transitório
ao transitório, de fazer variar a qualidade do efêmero, de introduzir uma
escultura no instante que também é escultura do instante.
Decorar a cidade tendo com preocupação seu contexto – quer dizer
reconfigurá-la, espaço e tempo confundidos, mudando aparência e devir,
redesenhando o “corpo simbólico”27, seguindo a expressão de Anne
Cauquelin, mas também a pessoa, toda cidade sendo vivida por seu cidadão
como individualidade singular. O artista, nesse caso, trabalha menos sobre
o motivo, o tema urbano. Ele trabalha o motivo mesmo, a cidade como
material e como energia, que ele resingulariza.

Tradução: Pauline Gaudin Indicatti


Revisão: Maria Ivone dos Santos

27
Anne Cauquelin, Essai de la philosophie urbaine, Paris, Presses universitaires de France,
1982. Nomeadamente “Le corps symbolique de la ville”, p.182 e seguintes.

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