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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

SOFIA FRANSOLIN PIRES DE ALMEIDA

ENQUANTO NINGUÉM VÊ:


Encarando a violência de gênero através do olhar de quatro dramaturgas.

CAMPINAS
2021
SOFIA FRANSOLIN PIRES DE ALMEIDA

ENQUANTO NINGUÉM VÊ:


Encarando a violência de gênero através do olhar de quatro dramaturgas.

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da


Universidade Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em
Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

ORIENTADORA: Larissa de Oliveira Neves Catalão

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO


DEFENDIDA PELA ALUNA SOFIA FRANSOLIN PIRES DE ALMEIDA, E
ORIENTADO PELA PROFA. DRA. LARISSA DE OLIVEIRA NEVES CATALÃO

CAMPINAS
2021
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Almeida, Sofia Fransolin Pires de, 1995-


AL64e AlmEnquanto ninguém vê : Encarando a violência de gênero através do olhar
de quatro dramaturgas / Sofia Fransolin Pires de Almeida. – Campinas, SP :
[s.n.], 2021.

AlmOrientador: Larissa de Oliveira Neves Catalão.


AlmDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Artes.

Alm1. Dramaturgia contemporânea. 2. Violência de gênero. 3. Feminismo. I.


Catalão, Larissa de Oliveira Neves, 1978-. II. Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: While it kept hidden : Facing gender violence through the eyes of
four female playwright
Palavras-chave em inglês:
Contemporary playwright
Gender violence
Feminism
Área de concentração: Teatro, Dança e Performance
Titulação: Mestra em Artes da Cena
Banca examinadora:
Larissa de Oliveira Neves Catalão [Orientador]
Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra
Lucienne Guedes Fahrer
Data de defesa: 19-07-2021
Programa de Pós-Graduação: Artes da Cena

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-6882-2815
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/5417566856074837

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


BANCA EXAMINADORA DE MESTRADO

SOFIA FRANSOLIN PIRES DE ALMEIDA

ORIENTADORA: Larissa de Oliveira Neves Catalão

MEMBRAS:
1. Prof.ª. Drª. Larissa de Oliveira Neves Catalão
2. Prof.ª. Drª. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra
3. Prof.ª. Drª. Lucienne Guedes Fahrer

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora


encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da
Unidade.

DATA DA DEFESA: 19.07.2021


Para meu avô que me acompanhou desde o início,
mas não pode assistir a este fim.
AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. E o processo de
concessão de bolsa foi registrado com o número: 88887.513879/2020-00. Agradeço à agência
pelo financiamento imprescindível ao longo do meu último ano de pesquisa, em plena
pandemia. Ter a segurança financeira necessária para seguir com meus estudos foi crucial para
continuar esta pesquisa.

Há muitas pessoas para agradecer após longos dois anos e meio de pesquisa.

À Larissa Neves, que me acompanha de perto desde a graduação, pela confiança,


atenção e sabedoria ao me orientar pelos caminhos da academia.

Ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas por ser minha segunda


casa, por muito do que construí e me tornei enquanto artista e pesquisadora. À convivência
universitária intensa, terrível e maravilhosa que vivo desde que pisei meus pés no Barracão das
Artes Cênicas em 2013.

Aos professores que passaram pela minha formação artística e acadêmica, em especial
à Larissa Neves, Verônica Fabrini e Mario Santana (in memoriam) que acompanharam de perto
meu desenvolvimento como dramaturga.

Aos funcionários e terceirizadas do Instituto de Artes e do Departamento de Artes


Cênicas por manterem aquele espaço burocrática e materialmente funcional e pela disposição
a ajudar sempre que preciso.

As minhas amigas e amigos por serem a segunda família que são, por confiarem tanto
em mim e pelos espaços de criação, amor, coletividade e troca sincera e intensa que
construímos juntas.

À minha família por ter me apoiado e incentivado desde que me entendo por gente a
ser a artista que sou. Por acompanhar de perto (mesmo que fisicamente longe, né, Débora?)
todos os passos que dei até aqui, vibrado cada uma das minhas conquistas.

À Michelle, Ave e Grace por serem inspirações artísticas e pessoas tão generosas.
Essa pesquisa é um ato de resistência.
E a sua dimensão e importância só aumentaram desde que a comecei.
Pelos tempos horrorosos que temos vivido,
Faço deste estudo um ato político e dedico ele à toda e qualquer mulher brasileira.

À luta diária pela sobrevivência


Que tem significado viver neste país.
RESUMO

Esta pesquisa parte da necessidade de elaboração poética e conceitual frente à uma realidade
violenta. No Brasil, periferia global, país construído em cima da exploração, escravização,
genocídio e violação de corpos, a violência de gênero atinge marcas exorbitantes; ocupamos
os pódios nos rankings mundiais de feminicídio, transfobia e exploração sexual de menores.
Números que representam vidas drasticamente transformadas, quando não ceifadas, pelo abuso
de poder dentro de uma dinâmica de dominação-exploração que sustenta o patriarcado
capitalista. Diante deste cenário, busco analisar, a partir de quatro perspectivas distintas, como
a violência de gênero está sendo abordada estética, poética e politicamente na dramaturgia
contemporânea, dentro de um recorte regional e afetivo, o Sudeste, região onde nasci, resido e
atuo profissionalmente. Através de marcadores, gatilhos temáticos, cada um dos quatro
capítulos busca traçar uma análise dramatúrgica a partir de vieses específicos em termos de
forma, conteúdo e tema. Com a peça 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma, de
Michelle Ferreira, discuto a relação da violência de gênero com a fundamentação do
patriarcado capitalista desde seus primórdios, em As 3 Uiaras de SP City, de Ave Terrena a
discussão gira em torno da violência contra corpos trans e o abuso de autoridade durante a
ditadura militar, e Vaga Carne de Grace Passô, abordo a violência contra o corpo da mulher
negra e o processo de subjetivação em um país colonial e racista. O último capítulo dedico à
elaboração artística de uma dramaturgia autoral como resultado prático e poético desta pesquisa
acadêmica, a peça Enquanto Ninguém Vê, traz o abuso de menores dentro do contexto
doméstico como tema.

Palavras-chave
Dramaturgia Contemporânea; Violência de Gênero; Feminismos.
ABSTRACT

The following research emerge from the necessity of creating a poetical and conceptual
elaboration towards such a violent reality. Brazil, a global periphery country built from
exploitation, slavery, genocide and body violations, occupies the top of global rankings when
it comes to gender violence: feminicide, transphobia and violence against children. Numbers
which represents lives drastically changed, or even wrecked, because of abuse of power in a
patriarchal and capitalistic society based on a domination-exploitation dynamic. Towards that
scenario, I intend to analyse how gender violence is being portrayed aesthetically, poetically
and politically in the contemporary playwright through four different theme triggers. The
analysis approaches the relation between structure and content on each one of the following
plays: In Michelle Ferreira’s 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma, we will discuss
about how gender violence has been used as a tool for the consolidation of Capitalist Patriarchy;
In As 3 Uiaras de SP City written by Ave Terrena, the violence against trans population and
authority abuse during Brazilian Military Dictatorship is the main theme; Violence and racism
is the focus of the third chapter which approaches Grace Passô’s play Vaga Carne. Finally, in
the fourth chapter the researcher presents an artistic result on the matter of child sexual abuse,
the play Enquanto Ninguém Vê.

Keywords

Contemporary Playwright; Gender Violence; Feminism


ÍNDICE DE IMAGENS

Foto 1: Michelle Ferreira, por Bob Souza ............................................................................... 30


Foto 2: Ave Terrena, por Luciana Bati .................................................................................... 60
Foto 3: Grace Passô, por Lucas Ávila ...................................................................................... 91
Foto 4: Autorretrato, Sofia Fransolin ..................................................................................... 114
Sumário

NOTA INTRODUTÓRIA ..................................................................................................... 13


INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14
De onde eu parto? ................................................................................................................. 14
Sobre a cena dramatúrgica contemporânea no Sudeste ....................................................... 15
Sobre a Violência de Gênero ................................................................................................ 18
Os caminhos da pesquisa...................................................................................................... 22
I. “O corpo é um burro de carga. O corpo é coisa nenhuma” - Violência de gênero,
ferramenta estruturante do patriarcado. ............................................................................ 30
I. I. O riso é corpo, a comédia é física .................................................................................. 30
I.II – Os pontos de partida .................................................................................................... 36
I.III – 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma ..................................................... 39
II. “Soul abusada” - A caça às travestis no Brasil ditatorial e a violência contra “corpos
abjetos” ................................................................................................................................... 60
II.I. “Tem que ser transpofágica” ......................................................................................... 60
II.II. Dramaturgia Muralista – A encruzilhada entre o passado e o presente ....................... 70
II.III. As 3 Uiaras de SP City .............................................................................................. 74
III. “Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras!” – sobre o racismo e o processo
de subjetivação da mulher negra. ......................................................................................... 91
III.I. Dos inícios, o Grupo Espanca! e a escrita como exercício de liberdade ..................... 91
III.II. Descolonizando a Cena .............................................................................................. 97
III.III Vaga Carne ............................................................................................................... 103
IV. “A gente precisa limpar isso” – Tradição, família, propriedade e o mito do abusador
num beco escuro. .................................................................................................................. 114
IV.I. Da alteridade à identidade ......................................................................................... 114
IV. II. Descortinando a escrita, descortinando a violência................................................. 116
IV.III. A violência invade a casa ........................................................................................ 121
IV. IV. Enquanto Ninguém Vê – Um exercício poético e político .................................... 131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 169
ANEXO I............................................................................................................................... 179
Michelle Ferreira ................................................................................................................ 179
Ave Terrena Alves ............................................................................................................. 199
Grace Passô ........................................................................................................................ 223
ANEXO II ............................................................................................................................. 241
I. Michelle Ferreira ............................................................................................................. 241
II. Ave Terrena ................................................................................................................... 244
III. Grace Passô .................................................................................................................. 247
13

NOTA INTRODUTÓRIA

Quando comecei a me aventurar no mundo da escrita profissionalmente, as primeiras


peças que escrevi já começaram assim: violentas. Algo mais forte do que minha consciência
me puxou para esse tema. Minha mãe nunca escondeu o espanto, vive falando, a cada novo
texto que eu escrevo: “Quem diria, um rostinho assim, tão gracinha, lançando tanta tijolada”.
“É, mãe...” Eu respondo dando risada.
Foi então que comecei a escrever também peças infantis, para o alívio dos meus pais.
Talvez seja o contraponto que encontrei para me manter sã.
Desde que comecei esse processo, em junho de 2018, o Brasil tornou-se outro. A
violência e a morte tomaram novas proporções. Proporções essas que eu acho que ainda não
consegui assimilar completamente. Foram várias as madrugadas, àquela hora que é puro
silêncio, que me sentei em frente ao meu computador para escrever um parágrafo que fosse, e
nada saía. Absolutamente nada. Depois de ter passado o dia recebendo notícia de morte, notícia
de despejo, notícia de abuso, notícia de piora, notícia de fome, notícia de pobreza, e mais abuso,
mais morte, mais revolta e mais tristeza, eu sentava-me na frente do computador e não
conseguia processar mais uma linha sobre violência. A violência de gênero é “só” mais uma
face das violências que permeiam a nossa existência.
Em tempos virtuais, onde o cotidiano corpo-a-corpo tornou-se perigoso, cito a
youtuber, ator e professor de literatura, Rita Von Hunty, em seu vídeo Defender as crianças:
“A pandemia de COVID-19, ela explicita o fato de que a língua mais falada no Brasil é a
violência”. Eu só consigo pensar: haja estômago para terminar isso aqui. Mas encontro energia
regando meus olhos de sangue e assimilando que essa pesquisa, fruto de dois anos e meio de
leituras, entrevistas, análises, revisitações, escrituras e reescrituras, é uma contribuição, minha
e particular, na busca por varrer esse assunto para fora do tapete.

Um dia você não vai poder tá do meu lado. Um dia eu vou tá no meu
quarto, ou no ponto de ônibus indo para o trabalho, um dia vai ser
onze da manhã e eu vou tá resolvendo coisas no banco, ou então
fazendo supermercado. E eu não posso te prometer isso. Eu não
posso te prometer viver acuada, viver em bando, viver somente à luz
do dia, porque nem assim, nem assim eu vou tá protegida. Porque
isso não existe. Por mais que eu fareje, tateie, pense sempre duas
vezes antes de fazer qualquer besteira, mesmo que eu tenha meus
olhos bem abertos...
/Dói em mim como se fosse meu corpo/
É preciso regá-los de sangue.

Sofia Fransolin, A Louva-a-Deus, 2019.


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INTRODUÇÃO

De onde eu parto?

Essa pesquisa nasce de muitos lugares, mas acima de tudo, a partir de um susto. Sempre
gostei da Academia, apesar de todas as suas contradições e tradicionalismos, sempre me vi
como uma pesquisadora em potencial, mas não imaginava que isso aconteceria tão rapidamente
em minha vida. Entrar no mestrado foi uma dessas decisões impulsivas, feitas de última hora
por conta de uma intuição assertiva do que deveria ser feito.

Na época, em 2018, o Núcleo Carochinha, coletiva1 de teatro da qual eu fazia parte,


finalizava o nosso primeiro ProAC, Barba Azul: O feminino em cena. Estávamos prestes a
entrar em temporada com a peça Damas – Quem tem medo do Barba Azul? escrita por mim
dentro de um processo colaborativo que foi gestado ao longo de quase dez meses, uma imersão
intensa que preencheu boa parte do meu primeiro ano de formada. No mesmo período, também
fui convidada pela professora Larissa Neves a trabalhar um Projeto Regular de Pesquisa Fapesp
dentro da Universidade Estadual de Campinas, Laboratório de Dramaturgia – preservação,
divulgação e pesquisa (nº processo: 2018/14211-7).

Recém-formada, e prestes a encerrar um projeto artístico, pensei que se fosse para voltar
para a Universidade por mais dois anos em um projeto em que eu desempenharia funções
bastante técnicas dentro de um laboratório2 inteiro dedicado à dramaturgia, que eu aproveitasse
meu retorno e esse espaço para pesquisar. Sempre fui dessas pessoas que mergulham nas coisas
de cabeça, se existe uma brecha para que eu faça algo novo, por que não entrar de corpo inteiro?

A escolha por estudar a presença de mulheres na dramaturgia contemporânea vem a


encontro deste momento específico que eu vivia. Eu estava me consolidando como dramaturga
profissionalmente, finalizando o primeiro projeto inteiramente realizado fora dos muros e do
apoio da Universidade e prestes a integrar um Projeto de Pesquisa inteiramente composto por

1 Com a finalização do ProAC no ano de 2018 o Núcleo Carochinha se desmontou, cada uma das oito pessoas
que compunham o grupo seguiu rumos de pesquisa e atuação profissional independentes. Em 2019 a diretora Julia
Prudêncio adentra o mestrado, onde continua pesquisando o conto do Barba Azul e suas reverberações poéticas e
pedagógicas na cena, e decide por retomar as atividades iniciadas com o grupo. Em 2020 o Núcleo Carochinha se
tornou Coletiva Carochinhas, um agrupamento de mulheres que propõe movimentações artístico-pedagógicas de
viés feminista, atualmente em ambiente virtual por conta da pandemia de COVID-19.
2
O Lab. Drama (Laboratório de Dramaturgia e Escritas Performativas) foi meu espaço de trabalho entre os anos
de 2018 e 2020, lá vivi um mergulho dramatúrgico e acadêmico intenso. Retornar à UNICAMP não mais tão
somente como aluna, mas desempenhando funções técnicas, burocráticas e acompanhando a graduação em
atividades extracurriculares, foi uma experiência extremamente importante em minha formação profissional.
Além do projeto em si ter redimensionado a importância da dramaturgia dentro do Departamento e o envolvimento
dos alunos na área.
15

mulheres pesquisadoras. Existe uma força simbólica nesses episódios que me guiou de início
na escrita do meu projeto de mestrado, ainda que ao longo dos últimos dois anos e meio, muitas
coisas tenham mudado.

Com o tempo, as leituras e as reconsiderações feitas sobre meu projeto inicial, passei a
compreender mais profundamente que não era tão somente sobre a presença de mulheres na
escrita teatral contemporânea e a construção de personagens femininas (tema inicial desta
pesquisa) que eu queria falar. Retornei para o princípio, o que me impulsionou a começar a
escrever para teatro, e compreendi que o que me movia artisticamente há quase três anos era a
violência de gênero em nosso país. O projeto inicial foi inteiramente reformulado. Eu, que antes
propunha estudar a atuação das personagens femininas em seis peças, passei a analisar a
construção e a presença da violência de gênero nas obras de três dramaturgas, um tema não só
mais específico e contundente, como um tanto quanto mais autoral dentro do meu percurso
enquanto artista-pesquisadora.

Parti então para a observação de dois fenômenos crescentes: a dramaturgia


contemporânea dentro da região sudeste, e a violência, especialmente a de gênero, como
fenômeno estruturante do nosso país.

Sobre a cena dramatúrgica contemporânea no Sudeste

Entre fins do século XX e início do século XXI, um boom dramatúrgico começa a


ocorrer na região sudeste do Brasil. E o surgimento de cursos livres e profissionalizantes de
dramaturgia pela região foram um fator essencial para o aumento, não somente quantitativo,
de dramaturgas e dramaturgos produzindo na contemporaneidade, como também qualitativo,
no sentido de possibilitar que uma multiplicidade de corpos e vivências se tornassem agentes
na produção de textos de teatro.

Faço um recorte específico dentro da região sudeste do país por compreender que o
Brasil, país de dimensões continentais e uma pluralidade cultural e artística colossal, resguarda
em si diversos modos de produção e de fazer teatral. Não somente há uma variedade de
referências como também o incentivo Estatal ou Institucional à cultura difere drasticamente de
região para região. Propor falar em nome do país inteiro seria falacioso e até mesmo
reducionista, por isso nesta pesquisa trabalho com a cena das cidades de São Paulo e Belo
Horizonte, tanto pela minha proximidade física e afetiva enquanto artista-pesquisadora
residente no interior paulista, como também por trazer nesta dissertação artistas que em sua
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formação passaram por alguns dos espaços de formação que pontuo nesta Introdução, pois
reitero como sendo de suma importância a existência destes espaços de troca e aprendizado
democráticos e acessíveis, para a ampliação do acesso à criação dramatúrgica.

A jornalista e dramaturga paulistana Marici Salomão, atual coordenadora do curso de


dramaturgia da SP Escola de Teatro e coordenadora do Núcleo de Dramaturgia SESI entre os
anos de 2008 e 2019, explana em seu livro Sala de Trabalho que ainda nos anos oitenta as
opções para aquelas/es que buscavam uma formação na área dramatúrgica eram escassas,
Salomão destaca dois nomes em sua formação enquanto escritora, o dramaturgo Luís Alberto
de Abreu e o diretor teatral Antunes Filho.
Ela explicita que em idos de 1988 Abreu ofereceu seu primeiro curso de curta duração
na Oficina Cultural Oswald de Andrade – que consistia em encontros semanais visando a
elaboração e desenvolvimento de um projeto de escrita dramática –, essa foi a sua primeira
experiência pedagógica de aprendizado da dramaturgia. Mais de uma década depois, a autora
destaca o convite feito pelo diretor teatral Antunes Filho para que ela coordenasse o Círculo de
Dramaturgia no Centro de Pesquisa Teatral do Sesc (CPT).
Como apontado pela pesquisadora Lucienne Guedes (2011), Abreu aliou o ofício
dramatúrgico ao pedagógico de tal forma que seu nome é referência para a formação
dramatúrgica contemporânea a partir de meados dos anos oitenta, tendo organizado não
somente o Núcleo de Dramaturgia do CPT, a convite de Antunes Filho, como também formado
o Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André/SP, além de coordenar o
início das Oficinas de Dramaturgia do Galpão Cine Horto em 1999. Abreu também tem uma
atuação artístico-pedagógica bastante forte dentro de grupos de teatro como é o caso da Cia.
dos Dramaturgos, a Cia. Livre e os Narradores de Passagem, atuação esta que Guedes esmiuça
em sua dissertação.
Retornando à história recente do teatro brasileiro, Salomão (2008) identifica a
importância da década de noventa na reafirmação da dramaturgia brasileira a partir de
estímulos a novos talentos; erupção de novas vozes e temas; concursos de dramaturgia e da
consolidação da dramaturgia colaborativa dentro do teatro de grupo. Ainda assim, dentro de
instituições formais e faculdades de artes a dramaturgia permanecia relegada a segundo plano,
operando como suporte complementar à formação de atores e diretores.
Esse cenário passa a mudar a partir dos anos 2000, quando o ensino da dramaturgia se
dissemina de vez pela cidade de São Paulo e outras capitais da macrorregião sudeste.
Instituições despontam e tornam-se referência na formação e profissionalização de
17

dramaturgues, tais quais: o Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council (presente nas cidades
de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba), Escola Livre de Teatro (Santo André – SP), SP Escola
de Teatro (São Paulo – SP) e o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia do Galpão Cine Horto
(Belo Horizonte – MG).
Destaco também algumas iniciativas mais recentes, já na segunda década deste século
idealizada por jovens dramaturgues e que também carregam em si este caráter formativo e
disseminador de novos nomes da dramaturgia sudestina, são eles a “Janela de Dramaturgia”,
em Belo Horizonte, ação idealizada por Sara Pinheiro e Vinícius Cruz, em 2012, e que promove
anualmente a publicação de coletâneas de dramaturgia de novos escritores mineiros, o projeto
também desenvolve oficinas, palestras, rodas de conversa e elaboração de textos críticos. Em
São Paulo, destaco Maria Giulia Pinheiro, dramaturga e escritora feminista e idealizadora do
Zona lê dramaturgia, evento anual que promove a leitura e o debate de peças escritas por
mulheres, Maria Giulia Pinheiro também desenvolve o Núcleo de Dramaturgia Feminista, uma
oficina de escrita de textos dramatúrgicos de viés feminista, a oficina é voltada para qualquer
pessoa que esteja interessado a entrar em contato com a escrita teatral a partir de uma
epistemologia feminista.
Ainda que bastante recente, este movimento de ascensão de pedagogias de escrita
teatral possibilitou que uma leva de novas dramaturgues se formasse. Considero o surgimento
e consolidação desses cursos, todos gratuitos e de amplo acesso, como de suma importância
para que um grupo cada vez mais plural de indivíduos adentrasse no ofício. É através do acesso
ao ensino que uma heterogeneidade de corpos, individualidades e vivências, aos poucos, passa
a romper o padrão historicamente construído em cima do ofício dramatúrgico: masculino,
branco e heterocentrado. Como resultado, podemos observar como os debates sobre
feminismo, gênero e sexualidades, negritude e decolonialidade têm cada vez mais invadido a
cena teatral de forma radical e inédita.
Historicamente, encontramos na década de sessenta um marco no teatro brasileiro com
o surgimento da chamada “nova dramaturgia”, a consolidação do “teatro-político” – que
buscava trazer à luz a realidade político-social nacional em um momento de repressão política
ditatorial –, e a emergência de uma presença feminina contundente e inédita dentro do cenário
dramatúrgico nacional. A pesquisadora Elza Cunha de Vincenzo propõe inclusive uma ligação
sutil entre o advento da segunda onda do movimento feminista dentro do país e o surgimento
de nomes femininos de peso dentro da dramaturgia brasileira, ainda que esta associação ocorra,
como a autora coloca, “de forma não-intencional, oblíqua, quase a contragosto” (VINCENZO,
18

1992, p.14), ela estava posta dentro da ficção através da explicitação das relações de poder e
opressão presentes nas relações homem-mulher em um recorte quase sempre
doméstico/amoroso (VINCENZO, 1992).
Há de se reconhecer, porém, que, apesar do avanço, ainda se mantinha um padrão no
universo retratado por essas autoras, com a predominância de peças que retratavam as relações
de poder e opressão dentro de um cenário de classe média, branca, em situações domésticas e
conjugais.
Esse padrão pequeno burguês encontrado nas obras escritas por mulheres entre os anos
sessenta e oitenta pode ser encarado como um reflexo da própria vivência das autoras, uma vez
que ainda naquela época, àquelas a quem era permitido escrever teatro, ou, em outros termos,
que tinham acesso à execução do ofício dramatúrgico, pertenciam majoritariamente à elite
intelectual brasileira, como era o caso das autoras Consuelo de Castro, Leilah Assumpção,
Maria Adelaide Amaral, Isabel Câmara e Renata Pallottini, para citar alguns dos importantes
nomes surgidos nesta época.
Enfatizo que considero a dramaturgia, como qualquer outra criação artística, um ofício
que deve ser livre em sua feitura, e aquele que a produz não deve se limitar tematicamente, tão
somente, ao seu contexto social e individual para escrever suas obras, afinal ferramentas como
imaginação, pesquisa, e o exercício da alteridade são essenciais dentro da produção. Ainda
assim, o silenciamento e invisibilização históricos de certos grupos sociais se reflete dentro da
produção artística e isso é inegável. Basta uma breve análise sobre o lugar da mulher e do negro
dentro de textos teatrais ao longo dos séculos, para constatarmos que a submissão, a violência,
o silenciamento e a falta de protagonismo, além da retratação estereotipada e caricatural são
reflexos simbólicos de uma sociedade que foi moldada dentro de uma estrutura misógina e
racista.
Neste sentido, reitero o ineditismo e importância do momento atual dentro da
dramaturgia brasileira por acreditar que a democratização do ensino dramatúrgico, tendo
trazido indivíduos e grupos sociais até então invisibilizados para o ofício, possibilitou que
histórias ainda não abordadas por determinados pontos de vista também se tornem teatro.

Sobre a Violência de Gênero

Estudar a violência dentro da dramaturgia contemporânea a partir de um recorte de


gênero, como já colocado anteriormente, partiu primeiramente de um ensejo pessoal, visto que
a minha trajetória enquanto dramaturga sempre esteve muito aproximada à abordagem desta
19

temática. Porém, é inegável que para além deste fator um tanto íntimo, existe um contexto
sociopolítico que torna este assunto necessário e urgente de ser estudado.

A violência é a ferramenta principal da constituição deste país. As veias abertas da


América Latina: o derramamento de sangue de povos originários, o tráfico e escravização de
povos africanos, o estupro massivo de senhores de engenho em “suas” escravizadas, os
processos ditatoriais, civis e militares, a política econômica terceiro mundista de exploração e
destruição de bens naturais para venda em capital estrangeiro, entre tantas outras ações que
perpassam toda a nossa História revelam quem detém o poder e quem a ele é submetido. O
gênero, dentro desta lógica, é mais um dos fatores que agregam à essa dinâmica de opressão e
exploração, e que escolho me aprofundar dentro desta pesquisa, a partir de uma perspectiva
interseccional, por entender ser impossível falar sobre a gravidade da questão da violência de
gênero em nosso país sem analisar como os componentes de raça, classe, sexualidade, idade e
identidade de gênero se somam à essa dinâmica.

Para se ter um parâmetro sobre a gravidade da questão, no último Atlas da Violência


realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2020, no ano de 2018 foram
registrados 4.519 casos de feminicídio, sendo que 68% dos casos a vítima era uma mulher
negra. E, uma vez que os dados da pesquisa são colhidos a partir das notificações realizadas
em delegacias e através do Disque 1003 a probabilidade que haja subnotificação é alta.
Podemos inferir, portanto, que este número seja maior.

É importante ressaltar que esses dados se referem à expressão máxima da violência, o


feminicídio, ao impor através da morte o poder de decisão sobre quais corpos têm o direito de
permanecer vivos em uma sociedade patriarcal e racista. Mas a violência de gênero se apresenta
em diversas outras formas, muitas vezes não fatais – agressão verbal, física, psicológica ou
sexual –, mas que ainda assim ditam sob quais condições estes corpos devem viver.

Outra problemática identificada na pesquisa é em relação à notificação de violência


perpetrada contra mulheres transexuais e travestis, uma vez que a Constituição Federal omite
esta comunidade da categoria “violência contra mulheres”, cabendo aos estados, através dos
ministérios públicos, notificar ou não os homicídios acometidos contra essa parcela da
população como feminicídio. É necessário, portanto, analisar a violência acometida contra a

3 Número de telefone gratuito e difundido nacionalmente, corresponde ao “pronto socorro” para situações de
violação dos direitos humanos (violência contra mulheres, pessoas idosas, crianças, moradores de rua, população
LGBT, discriminação étnico racial, tráfico humano, grupos minoritários) Informações recolhidas do site <
https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/disque-100-1>. Acesso em: 28 mar. 2020
20

população LGBTQIA+4 a fim de obtermos informações quanto a estas mulheres. Segundo a


Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2019 foram registrados 124
homicídios de pessoas transexuais e travestis, 82% foram vítimas negras e 97% se identificam
com o gênero feminino. Estes números, ainda que subnotificados, garantem ao Brasil os postos
de 5º país que mais mata mulheres no mundo, e país que mais mata transexuais no mundo.

Sobre este assunto é necessário ir mais a fundo na questão, para tanto é preciso que nos
debrucemos sobre o conceito de violência de gênero, suas implicações e contradições. Neste
sentido, o artigo das pesquisadoras Cecília Macdowell Santos (Universidade de São Francisco,
Califórnia) e Wânia Pasinato Izumino (Universidade de São Paulo) é bastante elucidador. A
partir de um breve panorama histórico a respeito do surgimento e uso do termo “violência de
gênero” no país, que remonta à década de oitenta, as pesquisadoras diferenciam três correntes
teóricas a respeito da abordagem do tema. Na primeira, a violência de gênero é encarada como
consequência da dominação masculina, como defende por exemplo a filósofa Marilena Chauí,
que coloca a mulher como cúmplice da violência vivida dentro de um sistema de dominação
do homem sob a mulher.

Segundamente, temos a corrente defendida pela socióloga Heleieth Saffioti que,


analisando a problemática sob uma perspectiva marxista, adiciona as relações sociais de classe
e raça ao debate e encara a violência como consequência não apenas da dominação, mas
também da exploração5 patriarcal do sistema em que vivemos; segundo ela as mulheres são
vítimas da violência sofrida.

Por último as pesquisadoras apontam a corrente que defende a violência como forma
de comunicação entre homem e mulher dentro de uma relação. Essa linha busca relativizar o
binômio dominação-exploração. As autoras destacam o trabalho de Maria Filomena Gregori
que trata a violência como jogo relacional, e desconsidera as relações de poder.

4
A sigla refere-se ao movimento político e social de inclusão de pessoas de diversas orientações sexuais e
identidades de gênero e se traduz como: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Intersexuais, Queer, Assexuais
e demais identidades. Disponível em: <https://orientando.org/o-que-significa-lgbtqiap/>Acesso em: 18 fev. 2020
5
Para Saffioti (2004), enquanto o termo dominação tem implicações ideológicas e políticas, o termo exploração
abarca também o campo econômico. Aqui podemos estabelecer um paralelo com as pesquisas realizadas pela
historiadora ítalo-americana Silvia Federici que defende a ideia da “reprodução social”. Ou seja, todo o trabalho
não remunerado realizado por mulheres dentro do âmbito doméstico, que garante a existência e manutenção da
força de trabalho masculina como também da reprodução, educação e criação de novos trabalhadores. Um
exemplo concreto da reprodução social do trabalho são as chamadas “jornadas triplas” que muitas mulheres
brasileiras vivenciam, e que inclui além do trabalho remunerado realizado fora de casa, todo o cuidado com o
ambiente doméstico, parceiro e filhos. (FEDERICI, 2019)
21

Ainda que a presente pesquisa tenda a se aproximar e dialogar mais diretamente com a
linha defendida por Saffioti, uma vez que a autora em suas discussões flerta mais diretamente
com uma abordagem interseccional (considerando as relações entre gênero, classe e raça dentro
de um sistema patriarcal e capitalista) sobre o tema, é necessário fazer uma ressalva quanto ao
próprio termo violência de gênero e como ele foi historicamente encarado.

Como Macdowell e Izumino nos mostram, o termo violência de gênero surge para
substituir o termo violência contra mulheres, uma vez que o termo gênero, como defendido
pela feminista Joan Scott (1990), estabelece uma relação que vai além da constituição
biológica, abarcando a construção social de papeis distintos para homens e mulheres e como
isso interfere na maneira como o poder é articulado. Ainda assim, o termo é comumente
utilizado como sinônimo para violências doméstica, conjugal e intrafamiliar, prova disso é a
quantidade de estudos que abordam a temática a partir dessas duas situações, como é o caso de
Chauí, Saffioti e Gregori.

Nesta perspectiva, alinho-me à Izumino e Macdowell ao defenderem uma abordagem


mais rígida e ampla do termo.

(...) consideramos importante uma ampliação do objeto das pesquisas para que a
perspectiva de gênero não exclua diferentes categorias sociais das análises sobre
violência contra as mulheres no Brasil. Por exemplo, precisamos compreender
melhor não apenas o papel das mulheres nas relações de violência, como também o
papel exercido pelos homens, já que ambos participam na produção dos papéis sociais
que legitimam a violência. Nesse sentido, é importante que se estude como a
construção social tanto da feminilidade quanto da masculinidade está conectada
relacionada com o fenômeno da violência. Além disso, seja em situações de violência
conjugal ou de outras formas de violência contra as mulheres – tais como violência
policial contra prostitutas, violência contra mulheres negras e violência contra
lésbicas –, as práticas de violência e as respostas dadas pelos agentes do Estado e por
diferentes grupos sociais podem estar relacionadas não apenas a questões de gênero,
como também de classe social, raça/etnia e orientação sexual, entre outras categorias
socialmente construídas. (MACDOWELL, IZUMINO, 2005, p.159)
Nessa esteira, a presente dissertação visa ampliar a abordagem sobre a temática da
violência de gênero ao optar por analisar peças teatrais que partem de diferentes contextos
sociais e históricos, na busca por dimensionar esta questão de forma mais crítica. Inclusive
abordando uma postura contrária àquela adotada pela vertente das feministas críticas de gênero,
que defendem que o foco de atenção sobre a problemática da violência acometida contra
mulheres deve resguardar apenas àquelas dentro do espectro da cisgeneridade, ou seja,
defendendo uma supremacia biológica frente à questão da violência, excluindo mulheres trans
do assunto.
22

Ainda que eu compreenda que a discriminação sexual existe e corresponde a uma


parcela consideravelmente alta dos casos de violência de gênero, não considero isso
justificativa forte o suficiente para negar a existência de mulheres transgênero e as violências
acometida contra seus corpos. Aqui o debate da violência de gênero supera questões de ordem
puramente fisiológica, mas visa justamente analisar a partir de uma abordagem da conjuntura
histórico-social dentro do patriarcado capitalista, que permite a perpetuação desse tipo de
discriminação, considerando gênero como uma ferramenta de análise para compreender essas
dinâmicas de opressão e exploração.

Os caminhos da pesquisa
A partir da constatação desses dois fenômenos, a pesquisa tem como objetos de análise
dramaturgias contemporâneas que carregam a violência de gênero como parte integrante de
seus enredos. Visa-se realizar análises dramatúrgicas de três peças teatrais contemporâneas,
escritas por dramaturgas atuantes na região Sudeste do país, abordando as relações formais,
conteudísticas e contextuais destes materiais frente à questão da violência, assim como propor
a criação poético-política de uma dramaturgia inédita, como resultado prático e artístico desta
pesquisa de mestrado.
Enfatiza-se que o foco da dissertação não está em realizar um recorte dentro dos estudos
da Dramaturgia Brasileira, subcategorizando a pesquisa como um estudo sobre a Dramaturgia
Feminina, pois acredito que esta postura tende a reiterar o fenômeno histórico social da
universalização do “homem” e da reafirmação da mulher como o “Outro”6, ignorando as
particularidades e pluralidades dessas duas categorias em um binarismo cego. Por conta disso,
inclusive, tomou-se como objetos de análise peças escritas por dramaturgas que expressam sua
mulheridade de formas tão diferentes umas das outras.
A análise da presença da violência de gênero nessas peças não ignora que a temática já
se fez presente em inúmeras outras obras ao longo da história da dramaturgia, inclusive em
textos escritos por homens. A pesquisadora Maria Marta Baião Seba nos relembra a posição de

6
Em O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir expressa a ideia da mulher como o “outro” do sujeito
masculino, esse sim universal. Essa ideia será depois questionada dentro do feminismo negro que considera a
categorização de “outro” ampla e universalizante ao desconsiderar que existem singularidades dentro do espectro
da mulheridade, assim como dentro da categoria homem. A escritora portuguesa Grada Kilomba expressa
‘Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são
brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem
possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras,
entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro” (KILOMBA apud.
RIBEIRO, 2016, p.102)
23

submissão e violência que personagens femininas foram retratadas em obras ao longo da


história da dramaturgia, e defende que a representação dada à mulher em obras escritas por
dramaturgos como Eurípedes, William Shakespeare, Henrik Ibsen e Nelson Rodrigues
perpetuam a ordem patriarcal vigente.
Sem negar a importância histórica e o valor artístico dessas obras, ainda assim,
compartilho da tese defendida por Seba. Nesse sentido ao propor uma pesquisa que coloca nós,
mulheres, como sujeitas e agentes criadoras dessas histórias de violência, me finco na hipótese
de que o sujeito do discurso artístico é peça fundamental para uma pluralização de pontos de
vista e emancipação de um imaginário, predominante masculino, frente à um tema. Se a história
humana foi narrada até então sob a perspectiva daqueles que detêm o poder, quais são as
implicações ficcionais e sociais ao se questionar este poder e buscar o protagonismo dentro da
criação artística, e a partir dela instaurar novos paradigmas?
Como expõe a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em seu texto O perigo
da história única
Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero
as estruturas de poder no mundo: nkali. É um substantivo que, em
tradução livre, quer dizer “ser maior do que outro”. Assim como o
mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo
princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são
contadas, quantas são contadas depende muito de poder. O poder é a
habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer
que ela seja sua história definitiva. (ADICHIE, 2019, p. 22-23)

Mais à frente, Adichie acrescenta “A história única cria estereótipos. E o problema com
estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma
história tornar-se a única história.” (Ibidem.)
O fato de a violência de gênero ser uma epidemia global7, da qual o Brasil detém lugar
de destaque, tem sido tema de pesquisas nos campos da saúde, psicologia, ciências sociais e
antropologia. As pesquisas quantitativas desenvolvidas por órgãos governamentais e não
governamentais, a vida cotidiana, e a mídia também não nos permitem esquecer dos números
alarmantes de mortes, agressões e abusos perpetrados nos mais diferentes formatos. Esta
realidade está instaurada e é reiterada a todo o momento.

7
Este termo, longe de ser uma invenção autoral já foi utilizado por algumas autoridades e pesquisadoras mundo
afora. Em 2018 o secretário-geral da ONU classificou a situação das mulheres ao redor do mundo como uma
‘pandemia global. (Ver: <https://nacoesunidas.org/violencia-contra-as-mulheres-e-pandemia-global-diz-chefe-
da-onu/>) O termo também é utilizado pela pesquisadora da saúde da mulher, Lori Heisen em seu artigo Gender-
based Abuse: The Global Epidemic. Disponível em: <
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1994000500009 >
24

Neste âmbito, parafraseando as ideias propostas pelo diretor, dramaturgo e pensador


teatral Augusto Boal em seu livro Teatro do Oprimido, a dramaturgia que reproduz
poeticamente a realidade sem buscar dar um passo além e propor uma transformação escolhe
pelo lado da manutenção do status quo vigente. Defendo aqui que as peças a serem analisadas,
além de olharem para essa realidade das mulheres dentro de uma estrutura patriarcal,
questionam a estrutura de poder e propõem através do desenrolar de seus enredos, e
especialmente de seus desfechos, alternativas de futuros que rompam com esse status quo.
Através da análise dramatúrgica das peças 4 da espécie – a história do corpo coisa
nenhuma, de Michelle Ferreira; As 3 Uiaras de SP City, de Ave Terrena; e Vaga Carne de
Grace Passô; e da escrita da peça Enquanto ninguém vê esta pesquisa visa identificar as
diferentes abordagens poéticas, estéticas, éticas e políticas frente ao aspecto da violência
presente nos textos. Busco investigar como cada peça conduz a leitora/espectadora através da
estrutura dramatúrgica ao tratar sobre temas espinhosos e dolorosos à maioria de nós, e, a partir
dos desfechos propostos em cada dramaturgia, identifico quais possíveis transformações
artísticas e sociais que esses materiais defendem. Ao questionarem a ordem social vigente,
quais as possibilidades de mudança essas dramaturgas apontam?
Neste sentido, essa dissertação entra em consonância com outros estudos e pesquisadas
acadêmicas contemporâneas no Brasil e América Latina. Atendo-me ao contexto latino-
americano, apoio-me nas pesquisadoras Ileana Diéguez Caballero em Cuerpos sin duelo, obra
em que a autora realiza uma análise de manifestações cênicas que abordam a questão da
violência dentro do contexto mexicano, e também em Sandra Camacho López que, em seu
livro Poéticas del desarraigo: La palavra y el cuerpo en las dramaturgias femeninas
contemporâneas, aborda as obras de três dramaturgas colombianas sob a perspectiva da
violência contida em suas peças.
No Brasil temos a pesquisadora e professora Silvia Fernandes (2010) que traça um
paralelo entre a dramaturgia paulista contemporânea e a violência, ainda que no caso de
Fernandes, não haja um recorte específico de gênero em sua análise. Por último, a pesquisadora
Stela Fischer traz em sua tese de doutoramento Mulheres, performance e ativismo: a
ressignificação dos discursos feministas na cena latino-americana, a presença da violência em
performances feitas por mulheres latino-americanas e brasileiras.
A partir de suas particularidades e limites, essas obras servem não apenas como apoio
teórico para a pesquisa, mas também dão respaldo à escolha por tratar a questão da violência
de gênero dentro do âmbito teatral a partir do viés da criação e produção de conteúdo ficcional
25

de mulheres dramaturgas. A abordagem acadêmica do assunto enfatiza o quanto ele tem sido
explorado dentro da cena teatral contemporânea.
Com exceção de 4 da espécie, que tinha estreia prevista para 20208, as outras duas peças
analisadas já foram encenadas, porém é importante reiterar que a análise dramatúrgica dentro
desta pesquisa não pretende abordar profundamente a relação texto, encenação e recepção,
ainda que no caso das peças As 3 Uiaras e Vaga Carne, eu estabeleça alguns diálogos entre o
processo de escrita e a tradução para a cena.
O que, para pesquisadores como Anne Ubersfeld (2005), implica numa incompletude
da análise do texto teatral, por não tomar em consideração a sua relação com a cena, na verdade
consiste numa opção. Atenho-me à ideia proposta por Jean Pierre Ryngaert (1995) que ao
abraçar o uso do termo “análise literária do texto” propõe não invocar as representações já
ocorridas para dentro de suas análises como uma ferramenta para justificar ou explicar o texto
escrito, mas tratar a dramaturgia na sua especificidade, “na tensão e no movimento que o
projetam sempre para um palco futuro” (RYNGAERT, 1995, p. X).
Em suma, a metodologia de análise proposta nesta pesquisa flerta muito mais com a
questão de produção de discurso dentro do campo dramatúrgico, e se ancora no fato de que a
dramaturgia per se é um objeto artístico finito e passível de ser analisado mesmo diante da
incompletude do fenômeno teatral como um todo.
Em se tratando da escolha por tais dramaturgas, ancoro-me nas ideias propostas pela
filósofa feminista Djamila Ribeiro e seu livro Lugar de Fala, em que ela estabelece diálogo
com o filósofo francês Michel Foucault e a noção por ele defendida do discurso como um
“sistema que estrutura determinado imaginário social” (RIBEIRO, 2019, p.55). O discurso,
sendo assim, uma ferramenta de poder e controle, que autoriza ou deixa de autorizar
determinados grupos à fala, a impor a sua versão da verdade, da história.
Ribeiro expõe que o conceito de feminist standpoint (COLLINS, 2000) — ao prever
que as desigualdades devem ser vistas e analisadas a partir de suas intersecções, ou seja, dos
pontos de convergência entre as dominações de gênero, raça, classe, orientação sexual —
permite que possamos compreender os lugares sociais que diferentes grupos ocupam. O
esquema de dominação/opressão estrutura a nossa sociedade e garante, através da legitimação
do poder, que certos grupos possuam o direito à fala, e consequentemente à construção de

8Essa informação foi coletada durante entrevista com a dramaturga no dia primeiro de fevereiro de 2020, na época
a estreia do espetáculo era prevista para o começo do segundo semestre. Porém, com a atual pandemia do
coronavírus em curso, os planos de montagem e estreia foram postergados por tempo indeterminado.
26

imaginário, de saberes, de conceitos, e por consequência de construção de humanidade.


Enquanto as demais parcelas da população, extirpadas do direito à fala, são desumanizadas.
Compreender a ideia de feminist standpoint nos permite discutir sobre lugar de fala e
consequentemente romper com a ideia de autorização discursiva, em que um discurso único se
apresenta como verdade universal.
As quatro dramaturgias abordadas na pesquisa partem de recortes bastante distintos,
tanto no que tange o contexto de produção das autoras, como também sobre o foco temático de
cada uma das peças e na própria estrutura dramatúrgica. Por consequência, o aspecto da
violência de gênero apresentado em cada obra é bastante particular e opera de formas
específicas, desde o âmbito doméstico, a violência sexual, passando pela violência
institucionalizada contra “corpos abjetos9”, a experiência de violência no corpo da mulher
negra, e da violência e abuso sexual contra crianças.
Desta forma, considero importante estabelecer uma relação entre cada artista e sua
dramaturgia, em uma tentativa de aliar as sujeitas aos discursos por elas produzidos como
representativos de lócus sociais distintos. Ainda que todas compartilhem da experiência de
mulheridade e que discutam a questão da violência em suas peças, a violência, ainda assim,
opera de formas diferentes dependendo do grupo social ao qual se refere. Como resultado
parcial deste recorte, e sincrônico com a proposta de abordagem dramatúrgica a partir de
diferentes lugares de fala, observamos que cada um dos textos carrega em si particularidades
em relação à forma e conteúdo.
É identificável o caráter feminista da pesquisa, visto que a dissertação está ancorada em
conceitos e debates propostos por pensadoras como Silvia Federici, bell hooks, Grada Kilomba,
Heleieth Saffioti, Chimamanda Adichie, María Galindo, Dodi Leal, entre outras. Porém, o
diálogo com essas pensadoras, pesquisadoras e militantes se dará no nível da análise das
dramaturgias, ou seja, intrínseco e em relação com o conteúdo das peças, e com os modos de
produção das dramaturgas. Sendo assim, não proponho realizar um levantamento teórico
feminista, um panorama histórico do movimento ou um debate sociológico de conceitos e suas
derivações. Mas, aliar as ideias teorizadas e organizadas por essas pensadoras, no que tange
temas que circundam a questão da violência de gênero nas obras analisadas.
Em se tratando da teoria que ancora o aspecto dramatúrgico da pesquisa, aproveito o
espaço e exponho uma ressalva, pois é sabido que a tradição dramatúrgica ainda é bastante

9
O termo “corpo abjeto” é usado a partir das ideias apresentadas pela filósofa Judith Butler (2002; 2008).
27

eurocentrada, branca, elitizada e masculina. Ao longo dos estudos para a feitura desta pesquisa,
buscou-se ao máximo expandir as referências bibliográficas, ampliando essa episteme
hegemônica, e agregando vozes latino americanas, negras e femininas para a dissertação,
porém não omito ou nego a importância e valor da produção de autores como Jean-Pierre
Sarrazac, Peter Szondi, Jean-Pierre Ryngaert e Bertold Brecht, que têm em suas obras uma
estrutura coesa e precisa de abordagem do estudo da análise crítica teatral e da poética moderna
e contemporânea, e são inclusive fontes diretas de aprendizagem das próprias escritoras
estudadas. Sendo assim, não se busca ignorar tais conhecimentos, mas agregá-los, dialogar com
eles, e transpô-los ao nosso contexto. Acredito que atualizar, questionar, conversar e traduzir
os conceitos por eles cunhados é uma maneira de referenciá-los de forma crítica e histórica.
Este diálogo se dará de forma bastante intensa com o material recolhido em entrevistas.
Aqui, enfatizo a importância que dou às conversas que tive com cada uma das dramaturgas
para a construção desta dissertação. Estabelecer um contato direto com as fontes primárias de
minha pesquisa e análise agregou um valor inestimável à esta dissertação ao trazer para a
pesquisa a perspectiva de quem faz. Neste sentido, este trabalho se dispõe a levar em
consideração o contexto de produção e o olhar de cada uma das dramaturgas frente às suas
obras, estabelecendo um diálogo entre a minha análise enquanto artista-pesquisadora, e o olhar
das artistas frentes as suas próprias obras. Não há um desprendimento entre autoria e objeto,
pois considero, justamente, que os olhares de cada uma das autoras frente às abordagens
temáticas que elas trazem, se relaciona diretamente com as suas vivências.
Em suma, a análise distanciada dá espaço para uma imersão e troca de saberes, as
dramaturgas não são colocadas como objetos de estudo, mas como sujeitas-artistas-atuantes e
produtoras de saberes, assim como eu.
Proponho ao longo da dissertação traduzir a importância desta troca inclusive
estruturalmente na forma como organizo as interferências e citações de cada dramaturga. Sendo
assim, uso uma fonte específica para referenciar as dramaturgas quando me refiro a falas
colhidas em nossas entrevistas. Busco com isso construir um campo dialógico entre mim,
artista-pesquisadora, e elas, artistas-pesquisadas, dentro da própria estrutura da dissertação. Ao
fim da dissertação, na parte de anexos, disponibilizo a transcrição das três entrevistas na
íntegra, busquei respeitar ao máximo a linguagem e expressões, assim como a organização de
pensamento e estruturação discursiva que cada uma das artistas utiliza em suas falas como
forma de traduzir para o material escrito as particularidades da oralidade de cada autora, assim
como tratei de ambientar as leitoras no contexto e cenário de cada um dos encontros.
28

Neste sentido, a estrutura das transcrições é bastante dramatúrgica, o que acaba por
dialogar com a própria organização das entrevistas, que em sua construção visou justamente o
estabelecimento de um diálogo entre pares. Inspirada no modelo apresentado por Kilomba em
Memórias da Plantação, propus a cada uma das artistas que fizéssemos uma entrevista não-
diretiva, ou seja, eu enquanto entrevistadora busquei conduzir a conversa com o mínimo de
questionamentos diretos e orientações. É evidente que, assim como Kilomba, eu possuía alguns
tópicos gerais os quais considerava necessário abordar, mas o caminho para tanto foi muito
mais guiado pela estrutura discursiva de cada artista.
Dentre estes tópicos gerais, me interessava: 1. Conhecer o impulso inicial para a escrita
teatral; 2. A trajetória de cada artista desde a infância; 3. A relação de cada artista com o ensino
(formal ou não) da dramaturgia; 4. O processo de escrita e o contexto de produção de cada
artista; 5. Um diálogo aberto sobre a obra analisada; 6. O olhar da artista em se tratando da
transposição da violência em suas obras.
Outro detalhe formal em se tratando da escritura desta dissertação reside na escolha
intencional por um uso fluído da língua portuguesa. Sendo assim, por horas eu subverto o
masculino genérico, utilizando as palavras no feminino, oras eu dialogo com o uso do pronome
neutro “e” (especialmente no capítulo de Ave Terrena no que tange a sua experiência como
educadora de jovens artistes), e oras eu escolho por trabalhar com o uso da ‘/’, usando as
palavras na ordem feminino/masculino.
A organização do texto se dá a partir da concepção de “marcadores de violência”, a
abertura de cada capítulo apresenta como título o gatilho temático sobre o qual eu analisarei a
obra de cada autora. Ou seja, o estudo da obra de cada uma das artistas será pautado a partir de
um marcador que especifique e aprofunde a abordagem da violência em cada uma das peças.
Os três primeiros capítulos são dedicados cada qual a uma das dramaturgas estudadas, e o
quarto e último capítulo apresenta o viés prático-artístico da dissertação, o meu
desenvolvimento enquanto dramaturga-pesquisadora frente ao tema, a partir do marcador por
mim escolhido: violência e infância.
Parto minha criação a partir de um expresso incômodo e revolta diante do governo atual
e suas medidas retrógradas anunciadas desde fins de 2018 a respeito do ensino da educação
sexual para crianças e jovens, assim como do drástico crescimento no número de menores de
idade abusadas e abusados no país. Aposto na crença da manifestação artística como ferramenta
não apenas de denúncia, mas também de transformação. A fase prática da pesquisa soma às
29

outras três dramaturgias analisadas, na busca por não só dar visibilidade para o assunto como
também propor novos futuros, ainda que por hora, estes nos pareçam bastante utópicos.

Em se tratando de seu desenvolvimento, a peça Enquanto ninguém vê alia elementos


identificados nas outras três produções analisadas, seja em relação à metodologia de criação
(pesquisa histórica, leituras teóricas, diálogo direto com a realidade e espelhamento em outras
obras artísticas), forma e conteúdo adotados, gênero explorado na estrutura da peça e, ponto de
partida para desenvolvimento da obra. Como é de se esperar, a peça aposta no uso de elementos
disseminados dentro da dramaturgia contemporânea e propõe uma abordagem performativa
para a posta do texto em cena.

Na abertura de cada capítulo apresento uma epígrafe com a frase pulsão de cada uma
das peças, como forma de situar a dramaturgia dentro desta pesquisa, e apresentar às leitoras
dessa dissertação o cerne temático de cada obra. Para além, as peças As 3 Uiaras de SP City e
Vaga Carne estão disponíveis em versões digitais (.pdf) de livre acesso, cujo links
disponibilizarei em nota de rodapé, a peça de Michelle Ferreira só está disponível em livro
físico para compra, colocarei portanto, o link da editora à disposição, para caso a leitora se
interesse em obter um exemplar da obra completa.

Em suma, a dissertação se apresenta da seguinte maneira:

1. “O corpo é um burro de carga. O corpo é coisa nenhuma”


- A violência de gênero como ferramenta estruturante do
patriarcado.

2. “Soul abusada” - A caça às travestis no Brasil ditatorial


e a violência contra corpos abjetos
3. “Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras!” –
Sobre o racismo e o processo de subjetivação da mulher
negra.
4. “A gente precisa limpar isso” – Tradição, família,
propriedade e o mito do abusador num beco escuro.
30

I. “O corpo é um burro de carga. O corpo é coisa nenhuma” - Violência de gênero,


ferramenta estruturante do patriarcado.

Foto 1: Michelle Ferreira

Já vi gente sorrir com medo, mas dançar? Não se dança. Gozar? Não se goza. É
terrível sentir esse medo que eu sinto. Terrível. Tira a roupa. Somos tão parecidas.
Michelle Ferreira, 4 da espécie - a história do corpo coisa nenhuma10.

I. I. O riso é corpo, a comédia é física

Conheci Michelle Ferreira em um workshop de escrita teatral no SESC Campinas, em


2017. A oficina, que durou um fim de semana, intitulava-se “Dramaturgias do Cotidiano”, me
inscrevi sem conhecer a autora. Havia começado a me aventurar no campo da dramaturgia no

10
A peça 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma, foi publicada pela Editora Patuá através do Edital
ProAC 34/2017 – Criação Literária – Texto de Dramaturgia. Você pode obter um exemplar através do site da
editora: https://www.editorapatua.com.br/produto/27431/4-da-especie-a-historia-do-corpo-coisa-nenhuma-de-
michelle-ferreira. Acesso: 20 ago. 2021.
31

ano anterior, escrevendo e participando de workshops e cursos. Essa, no entanto, seria minha
primeira vivência dramatúrgica com uma escritora. Uma mulher. Isso despertou meu interesse.
Nesta oficina, Michelle falou sobre a sua anarcodramaturgia, conceito que a dramaturga tem
adotado cada vez com mais frequência ao referir-se ao seu processo de escrita. Como uma
metodologia de criação, a palavra que incendeia, que instaura o caos, a dramaturgia que precisa
ser dita, “Criar uma forma para revelar o que apenas o teatro pode revelar” (FERREIRA, 2020,
p. 37).

Existe algo neste impulso caótico e anárquico de escrever, o qual Ferreira defende, que
é um jorro violento do que precisa ser dito. Este foi o gatilho, que no ano seguinte, me fez
escolher por estudá-la. Ouvindo a autora, tanto nesta primeira oficina, como em nossa conversa
em fevereiro de 2020, e ainda em outras tantas entrevistas que tive a oportunidade de ler e
assistir, percebi em Michelle uma relação visceral, corpórea, com a escrita. A dramaturga
encara seu ofício não como um espaço para expor ideias, defender conceitos, mas para trabalhar
perante as inconformidades da vida “Preciso irradiar minha paixão, vivendo-a no momento
presente. Escrever para o teatro deve nos preparar para a morte. Sou uma criança inconformada
com o fim”. (Ibidem)

Esse caráter da infante inconformada com o fim, da escrita como brincadeira, nos leva
aos primórdios da relação de Michelle Ferreira com seu ofício. Nascida em São Paulo, capital,
a dramaturga (atriz, roteirista, diretora e cofundadora do grupo teatral A Má Companhia
Provoca, grupo sediado na capital paulista) cresceu no interior do estado, na cidade de Atibaia.
Foi no sítio dos avós que realizou seus primeiros experimentos teatrais.

Eu sempre comecei a escrever diálogo. Desde criança. Comecei a fazer


teatro, comecei a escrever diálogo, comecei a escrever cinema. Comecei
na máquina de escrever, comecei a escrever meus filminhos da minha
cabeça, comecei a gravar uns filminhos. Comecei a fazer umas peças na
escola e pra mim tava tudo ligado. E eu mandava em todo mundo,
escravizava meus amigos. Eu morava em Atibaia, tinha uma casa com
piscina, com parquinho e chamava todo mundo no final de semana pra ir
lá, ninguém ia no parquinho ninguém ia na piscina, nós vamos fazer teatro
na garagem. Ficava o final de semana ensaiando, apresentava na segunda
feira. É a minha brincadeira. Então hoje eu faço, eu sou feliz em fazer
porque eu tô fazendo aquilo que eu sempre fiz. Porque pra mim era
sempre uma brincadeira, continua sendo. Só que é minha profissão e eu
sempre soube que seria. Nunca tive…. Sempre tive crises, óbvio, mas
assim, crises do que fazer eu nunca tive. Só tive de como fazer. Mas de que
seria isso, e eu ia fazer isso e de que não tinha a possibilidade de eu fazer
outra coisa (...) (FERREIRA, em entrevista concedida a pesquisadora no dia
01 fev. 2020)
32

O interesse precoce pela cena levou a autora a cursar a Escola de Arte Dramática na
Universidade de São Paulo em paralelo ao curso de Ciências Sociais dentro da mesma
instituição, que apesar de não ter concluído, identifica como de grande importância para sua
formação enquanto artista por ter apresentado uma base teórica fundamental para a abordagem
dos assuntos que busca estudar e se aprofundar em suas peças.

Fiz Ciências Sociais junto com a EAD. Eu passava o dia inteiro naquela USP,
lá, comendo no bandejão (sic), salitre, salada de repolho, tudo...Todo dia.
Mas depois eu tranquei as Ciências Sociais. Depois de quatro anos. Mas
assim, foi maravilhoso. Tive aula com Haddad, tive aula com Lilia Schwarz,
tive aula com Conti. Tive aula com um monte de gente foda. É um
conhecimento que me acompanha até hoje de coisas que eu gosto de
estudar e que reflete totalmente na minha visão de mundo, na forma como
eu escrevo.

A relação estreita entre produção artística e seus estudos dentro do campo sociológico
reflete-se em suas peças que, regadas de um humor ácido, trazem à tona questões bastante
pungentes na contemporaneidade. Para ela, o ser humano é um campo de batalha onde forças
diversas disputam um mesmo espaço, esse do nosso corpo. As instâncias: familiar, social,
histórica, moral são fronteiras borradas por onde nós estamos constantemente transitando.
A escrita dramatúrgica, para a autora, surge da observação profunda do ser humano,
tanto a nível de sua psique, quanto em âmbito relacional e social, um aprendizado que também
é creditado aos anos que passou dentro do Centro de Pesquisa Teatral do diretor Antunes Filho,
no SESC Consolação (São Paulo–SP). Apesar de não considerar uma experiência didática do
ensino da dramaturgia, a formação adquirida durante os oito anos em que passou dentro do
CPT, momento que a autora identifica como nevrálgico dentro da sua profissionalização,
permitiram o aprofundamento dentro do ofício e a descoberta de um “estilo” de escrita cuja
principal característica é o forte apelo dramático e a consolidação de alguns elementos
estruturais recorrentes em seus textos como a presença do humor e da ironia, o protagonismo
feminino e a exploração do ambiente urbano como plano de fundo para suas histórias.
Para Michelle, a importância de comunicar para um público abrangente, na busca por
fazer do teatro uma ferramenta de mudança social, traz a sua dramaturgia um forte apelo ao
popular, com situações cotidianas, ambientes comuns e referências à cultura de massa.
(...)eu acho que o teatro é um voto de esperança no futuro, é um
compromisso civilizatório. Mesmo, assim. Pra quem faz, pra quem assiste.
É uma coisa que...Ou mata ou cura. Pharmakon. A farmácia de Platão. Quer
dizer o remédio, pode ser veneno ou pode ser remédio. Pode te matar ou
pode te curar. Mas é importante dar esperança...E é assim, quando a gente
33

tá num momento, eu sinto isso inclusive escrevendo, quando a gente tá


num momento tchop tchura (sic) a gente pode bater diferente. Bater nos
nossos inimigos de uma maneira diferente. Eu já tô enxergando o teatro
agora: ou a gente faz um teatro popular e recupera a ligação com as
pessoas e faz as pessoas gostarem e tal, e não aborrece a plateia, ou
acabou.

E é na comédia que autora encontra espaço potente de identificação e comunhão entre


artistas e público, ainda que, segundo ela, o gênero seja comumente rejeitado dentro das formas
mais tradicionais do teatro.
A gente não consegue fazer daquele jeito que é de outro, a gente só
consegue fazer do jeito da gente. Então, a gente vai criando aqui. Mas eu
acredito na comédia. Acredito. Eu acredito muito na comédia. Eu acho a
comédia subvalorizada, óbvio. Em todas as áreas da dramaturgia é....ela
pode ser muito popular, as pessoas podem gostar muito. Mas
artisticamente, a crítica, academicamente ela é sempre, tipo “Ai…ok”. Ela
é sempre um “Ai, ok”.

Para Ferreira, apesar do menosprezo dado à comédia dentro da tradição teatral, o poder
contagioso do riso é uma ferramenta preciosa na abordagem de assuntos espinhosos presentes
na contemporaneidade, justamente pela experiência catártica que o riso pode gerar. Em
contraponto ao ideal aristotélico de que apenas a tragédia carregaria a catarse em sua estrutura,
a pesquisadora Adriane da Silva Duarte em a artigo ao periódico Letras Clássicas, busca
identificar a catarse dentro da comédia. Segundo Duarte o fenômeno catártico pode ocorrer
dentro deste gênero através da suscitação de duas emoções: a confiança e a indignação. Ainda
que este seja um assunto bastante controverso dentro das análises da teoria aristotélica,
encontro na hipótese da pesquisadora justificativa aliciante para fundamentar a importância
deste gênero dentro da obra de Michelle Ferreira.
Sofia: E às vezes na comédia você consegue atingir um outro lugar
também, né?
Michelle: Imediato. Imediato. Imediato. Imediato, assim. Imediato. E no
teatro então, é, que se contamina, né… têm três rindo, daqui a pouco têm
cinco, têm dez quando você vê tem uma sala inteira de duzentas pessoas
rindo e não tem barulho melhor. Pra mim uma risada, uma gargalhada de
um monte de gente junto é uma coisa que...impagável. E o corpo já relaxa.
Porque é uma coisa física o riso. É físico. Riu, não sei quê...frum (sic), já dá
uma endorfininha ali, já dá um negocinho, cê já tá diferente pra ver a peça
e depois, cê pega e... (Michelle bate uma palma contra a outra, simulando
um tapa).
Sofia: Você ri e depois você vai perceber que você tava rindo de uma coisa
que…
Michelle: Que você não devia. Olha como você é um ser humano ruim. Ó
como você é ruim. As pessoas se revelam muito, do que elas riem. É muito
revelador. É muito revelador. A capacidade de rir.
34

A dinâmica catártica relatada por Duarte, onde o público diante da cena desenvolve
sentimentos de confiança e indignação se amalgama com uma dinâmica público-público de
confiança e cumplicidade. O riso que começa com um indivíduo, aos poucos contamina o
restante da plateia até que haja “uma sala inteira de duzentas pessoas rindo” (Ibidem). Ou seja,
existe um movimento de comunhão entre os espectadores, que é gerado a partir da confiança
entre os pares, como se a risada de uma primeira pessoa diante do que ocorre em cena
incentivasse os demais a agir da mesma forma. Tal sentimento é seguido do revés causado pela
posterior reflexão acerca dos “motivos do riso”, processo que pode ser relacionado à
indignação de si para consigo, ao se rir de algo que não se deveria rir, “Olha como você é um
ser humano terrível” (Ibidem).
Apesar da compreensão minuciosa que Ferreira tem em relação aos seu processo de
produção, a presença de elementos ou até de um “estilo” recorrente em seus textos, o mesmo
não ocorre em se tratando da tomada de consciência sobre a abordagem de alguns temas
específicos (que apesar de presentes em diversas de suas peças, ocorriam muito mais por um
processo intuitivo do que por um pensamento político na abordagem destes conteúdos). O
caráter feminista é um bom exemplo desse processo de tomada de consciência gradual diante
da força de um tema que, apesar de presente em seus escritos, até então surgia “acidentalmente”
dentro da ficção. Em entrevista, a dramaturga assente que o vislumbre em relação à importância
da militância feminista foi um processo gradual em sua vida assim como em suas obras.
Ela identifica que ainda no início de sua juventude havia um certo desinteresse pelo
movimento feminista, um sentimento de que as pautas já estavam superadas, que não havia
mais pelo que lutar. Anos depois, o interesse pela literatura feminista fez com que Ferreira se
aproximasse do movimento e identificasse, segundo ela, este desprezo pelo assunto como “uma
ferramenta do patriarcado para achatarmo-nos” (FERREIRA, 2020), ou seja, uma forma do
patriarcado exercer poder e dominação de certas existências, corpos e experiências sobre
outras. Como exemplo de uma dramaturgia desenvolvida justamente neste período de transição
da autora temos Tem Alguém que nos odeia, escrita em 2011, encenada pela primeira vez em
2013 por José Roberto Jardim, e que em 2017 ganhou uma segunda encenação dirigida pela
própria dramaturga.
A peça conta a história de um casal de mulheres que acabam de se mudar para um
apartamento no centro de São Paulo e começam a receber ameaças de um de seus vizinhos. A
peça, que aborda a questão da violência contra a população LGBT dentro do universo íntimo
35

de um apartamento, conta apenas com as duas personagens, o casal, todas as outras personagens
são citadas e referidas pelas mulheres através dos diálogos, de telefonemas e de ameaças.
Em entrevista, a dramaturga explana sobre este processo de ressignificação gradual que
a peça foi sofrendo ao longo dos anos.
...foi uma peça que eu escrevi que eu...Totalmente ficção na minha cabeça.
Era totalmente ficcional. Ela foi ganhando contornos cada vez mais
realistas, no sentido de cada vez mais próximos da realidade para o meu
desespero. Porque na verdade o que eu gostaria é que essa peça um dia
fosse datada, falasse assim “Ah, lembra daquela peça que falava que
sofria...magina hoje ninguém sofre nada. Ataque.... Ninguém sofre ataque
hoje.” Não tá sendo o caso, o contrário.

Para a autora, o processo de escrita parte do efeito psíquico que ela busca causar no
espectador/leitor. Em entrevista concedida ao podcast “Spoilando a peça”, a dramaturga revela
que é através do título da obra que ela entende o efeito que busca causar no público
(FERREIRA, 2019), sendo assim, o título é o ponto de partida para o desenvolvimento da
maioria de seus trabalhos. Trabalhos esses que geralmente partem de uma história previamente
elaborada pela autora, de uma ficção.
Ao colocar a ficção em primeiro plano, inclusive durante o processo de criação,
encontramos um ponto de convergência com os elementos presentes no “drama” como
defendido por Peter Szondi em Teoria do Drama Moderno. Para o autor a dialética
intersubjetiva, que ocorre através da justaposição dialógica entre personagens, é um dos
elementos centrais do drama absoluto (SZONDI, 2001). Ferreira explora em suas peças a
potência dialógica através da concepção da fábula fechada no “inter” de si mesma,
“Normalmente, eu sei tudo da peça e depois eu começo a escrever, normalmente eu sento, eu
já sei, a peça está dentro de mim. Claro, falta escrever, mas a peça está dentro de mim e eu só
consigo escrever desse jeito.” (FERREIRA, 2020).
É importante diferenciar o conhecimento prévio que a autora tem sobre as histórias que
ela busca contar com suas peças (ou seja, esse roteiro da ficção que existe a priori), da
construção da dramaturgia em si, visto que, na busca por dar voz às suas personagens, Ferreira
compactua com a ideia de “autor invisível” proposta por Szondi, a omissão do autor dento da
dramaturgia, visando a eclosão das vozes plurais e divergentes das personagens.
Sendo assim, ainda que a história e/ou o efeito psíquico que a peça visa alcançar estejam
na alçada da própria dramaturga, é através das personagens e do contexto interno do drama que
os primeiros se afloram. As pontes que a obra faz com o momento histórico no qual ela foi
escrita, ou então encenada, são consequências da estruturação interna do drama. Isso pode
36

explicar o descompasso que a autora identifica entre a estruturação da história em sua cabeça
e as possíveis aproximações com temáticas mais diretamente políticas.
Essa aproximação estilística com o drama szondiano dialoga inclusive com uma
consciência de classe que a dramaturga identifica como relevante dentro de sua produção
artística. Em entrevista concedida ao SESC São Paulo em 2018, Michelle Ferreira disserta
A classe é a classe a que eu pertenço, só consigo falar da classe a que
eu pertenço. Essa classe média branca, que eu sou, com aspirações
burguesas, em que fui criada. É dessa classe de que não me orgulho,
eu gosto de bater nela, o meu assunto é com ela, e os fantasmas, as
coisas que ela faz conosco, comigo, essa dominação, esse pacto com a
mediocridade, tudo isso me atormenta. (FERREIRA. In. DIEGUIES
et.al., 2019, p.148)

Esta fala de Michelle Ferreira abre espaço para uma discussão interessante acerca de
forma e conteúdo, como propõe a dialética hegeliana, ou seja, a forma como extensão do
conteúdo e vice-versa, os dois em uma correlação mútua. Deste modo, ao propor uma relação
tão intrínseca entre seu lugar de fala enquanto sujeito sociopolítico e sua produção artística, a
escolha por explorar a estrutura dramática torna-se não só uma extensão deste discurso como
também a prática do mesmo, as aspirações burguesas da classe média branca, como ela mesma
coloca, se veem refletidas dentro do próprio formato dramático burguês. Talvez, neste sentido,
a exploração do drama não seja apenas uma questão de preferência pessoal, mas uma
adequação entre forma e conteúdo, visando atingir o público ao qual Ferreira acidamente
endereça suas peças.

I.II – Os pontos de partida


4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma foi escrita em 2018 com apoio do
ProAC 34/2017 – Criação Literária – Texto de Dramaturgia, edital público estadual que prevê
o desenvolvimento e publicação de dramaturgia inédita. A peça, diferentemente dos processos
anteriores, não partiu de uma história prévia que a dramaturga buscou contar, mas de uma ideia
surgida a partir de leituras que Ferreira realizou, dentre elas a autora destaca os livros Calibã e
a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017) de Silvia Federici, Sapiens – Uma
breve história da humanidade (2011) de Yuval Harari e Teoria King Kong (2006) de Virginie
Despentes. As três leituras carregam temas em comum tais como o patriarcado, o capitalismo
e sua relação de poder e dominação sobre corpos. A particularidade do edital ProAC é a
exigência de um projeto de escrita que já apresente a estrutura, referências e sinopse da peça
37

que você pretende escrever como argumentos e justificativas que fundamentem a importância
do projeto à nível social.
Você não escreve a peça, você diz sobre o que a sua peça vai ser, faz o projeto.
Você pode escrever um trecho do que será, mas é um projeto daquilo que você
vai desenvolver. Esquisito, porque, primeiro, é uma missão saber como você
vai fazer uma coisa que você não sabe como vai fazer. Você tem uma ideia,
tem um norte, vai tentar contar para as pessoas como vai ser. Queria causar
um determinado efeito. Então descrevi esse efeito. Certo. Ganhei. E para fazer
o efeito? E para fazer aquilo que eu disse que ia fazer? Eu prometi. Era
dinheiro público. Falei “Vou fazer esse efeito.” E agora? Comendo uma
grana, assim, nunca antes comida. Acho que é o trabalho mais difícil, porque
nunca tinha começado a escrever assim. Eu nunca escrevi: “Vou fazer desse
jeito, minha ideia é isso (...)”. Para mim, era diferente o processo.”
(FERREIRA. In. DIEGUES, 2019, p. 156-157)

No projeto de escrita a dramaturga previa contar a história de quatro homens, amigos,


que ao decidirem passar o feriado em um chalé nas montanhas acordam transformados em
mulheres. Ferreira defende em seu projeto a criação de uma peça que questione alguns dos
pilares que fundaram a sociedade patriarcal. A partir da dualidade entre o que é natural e o que
é construção social, a dramaturga se faz valer da premissa do historiador Yuval Harari de que
a história humana é uma ficção em contínua construção – vale ressaltar que majoritariamente
contada por aqueles que detém o poder – e que a partir dela nós nos constituímos enquanto
humanidade. A partir desta ideia a autora propõe um jogo de subversão dos postulados:
natureza “feminina” x natureza “masculina”, escancarando as relações de poder, opressão,
dominação e violência que visam sempre a manutenção do status quo.
Para além da proposta de desvelar os antagonismos nos quais nós enquanto sociedade
estamos sob domínio, a peça é a tentativa de criação de novos paradigmas, neste sentido
identifico o “efeito” da obra, do qual a dramaturga se refere em entrevista, como sendo a
tomada de conhecimento do leitor/espectador frente ao novelo de armadilhas histórico-
culturais nas quais nos emaranhamos.
Seguindo esta lógica, a escolha por abrir as análises dramatúrgicas desta pesquisa com
a peça 4 da espécie– a história do corpo coisa nenhuma, ocorre pois enxergo na peça de
Michelle Ferreira a possibilidade de dimensionar a questão da violência de gênero a partir da
perspectiva apresentada por pensadoras como Heleieth Saffioti e Silvia Federici que a encaram
como uma ferramenta fundamental na perpetuação da lógica de exploração-dominação do
patriarcado capitalista desde seus primórdios, ponto de vista defendido por essa dissertação. A
caça às bruxas, as invasões, a escravização e genocídio de corpos e identidades que são
desumanizados dentro desta estrutura foram e ainda são táticas de manutenção do poder de uns,
38

uma minoria, sobre outros. Compreender a macroestrutura na qual estamos inseridas nos
permite analisar com maior amplitude histórica essa forma de violência que, tão comumente,
ocorre às escondidas, em ambientes privados, como é no caso da peça, onde toda a estrutura
dramática é instaurada entre as quatro paredes de um chalé nas montanhas.
“A história do corpo coisa nenhuma” enfatiza a importância e primazia dos processos
históricos de acumulo, espólio e domínio para crescimento econômico e político especialmente
ocorridos no início da Era Moderna, ou seja, a partir do fim da Idade Média Europeia, e as
consequentes ações invasivas e violentas que começaram a ocorrer ao redor do mundo, em
contraponto com a ficção biologizante de que o corpo feminino é por natureza mais frágil,
vulnerável, “incompleto” e até mesmo perigoso, e por isso deve ser controlado, violado e
domado.
Ao longo da História, o corpo foi antes uma justificativa plausível e confortável para
apoiar os processos de violência e colonização e as ficções criadas em cima dele corroboram
para a perpetuação dessa estrutura. Assim, ao questionar e buscar transcendê-la, Michelle
Ferreira instaura uma lógica contra hegemônica do discurso. Sobre isso, a cientista social Jota
Mombaça explana em artigo intitulado “Rumo à uma redistribuição desobediente de gênero e
anticolonial da violência”
Assim, é absolutamente comum que sejamos bombardeadas com narrativas
de violência performada por homens cis, bem como muitos dos processos
sociais de elaboração da masculinidade passam por um aprendizado da
virilidade que tende a confundir-se com o monopólio da violência e torna não
só imaginável como plausível que a violência pensável seja sempre elaborada
desde essa posição.

Em função disso, a simples evocação imaginativa de outras formas de


violência tem já um efeito disruptivo sobre essa gramática que visa garantir a
estabilidade da representação da violência masculina a partir de um paralelo
negativo com as posições afeminadas – de mulheres cis, bichas, travestis e
outras corporalidades marcadas como femininas e representadas como
necessariamente frágeis e passivas frente a violência. (MOMBAÇA, 2016, p.
12)

Ao Michelle Ferreira expor em sua obra quatro personagens cujo sexo não é
especificado e o gênero é flutuante, ora as personagens referem-se a si e às outras no feminino,
ora no masculino, variando de acordo com a posição de poder que elas se encontram no
momento, o que alterna-se ao longo da peça – ainda que para alguns personagens essa flutuação
seja maior, enquanto para outras menor – a autora acaba por questionar justamente essa ficção
masculina do poder e da violência, a qual Mombaça se refere.
39

Ao longo do processo de escrita, entre o projeto inicial e o resultado publicado em 2018


pela Editora Patuá, algumas coisas se alteraram, os quatro amigos tornaram-se quatro pessoas
estranhas umas às outras, e o gênero, que antes era explicitamente masculino, deixa de ser
identificável. A transformação de “homens” em “mulheres”, como Michelle propunha em seu
projeto, dá lugar para esta indeterminação de gênero constante. Ao escamotear está informação
da estrutura dramática, Michelle enfatiza o título da sua peça e foca justamente no processo
histórico que está por trás.

I.III – 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma

Na comédia dramática de Michelle Ferreira, quatro seres humanos, Jaque Martini, Bibi
Bibete, Soni Kunder e Lee Quatropani, que até então não se conheciam, partem para uma
aventura sem roteiro prévio: um final de semana num chalé nas montanhas. A história se
desenvolve majoritariamente dentro do chalé rústico e bastante mal equipado, sem vaso
sanitário, energia elétrica ou sinal de celular. É nesse espaço que as personagens passam a se
conhecer. O intuito inicial da aventura dos quatro da espécie era realizar uma escalada na
montanha mais próxima, mas, no decorrer da peça, a partir dos acontecimentos e das relações
que se instauram entre as personagens, dinâmicas de poder, opressão e exploração são
apontadas e colocadas em prática entre as quatro pessoas. Michelle Ferreira desvela em seu
drama a estrutura patriarcal e capitalista que não apenas sustenta a violência de gênero, como
também se utiliza da mesma como ferramenta essencial para sua perpetuação.

Escalar a montanha ou permanecer no chalé preparando o jantar? Ser violento ou sofrer


violência? Engravidar, parir e cuidar de uma criança recém-nascida? Mijar em pé e beber
whisky ou sentir enjoos e comer tijolos? Essas são algumas das ações que ao longo da peça
surgem como balizas que guiam e contradizem o futuro de cada uma das personagens.
Diferentemente da proposta inicial do projeto de escrita de Michelle Ferreira, em que a história
se desenvolvia a partir da transformação de quatro homens em mulheres, na versão final da
peça não temos evidência alguma do gênero das personagens. É através dessas pistas, ou
melhor, armadilhas lançadas pela autora, que nossa compreensão da dramaturgia é guiada,
contradita e reformulada. Pois, as quatro personagens estão constantemente reafirmando ou
então negando o que são através de suas ações, atitudes e até mesmo pelo uso pronominal que
fazem ao referirem-se a si mesmas, como também umas às outras.
40

Em uma primeira leitura completa da dramaturgia é bastante possível que a leitora/leitor


se atenha a uma busca vazia por identificar, encaixotar e catalogar aqueles quatro indivíduos
dentro do binarismo de gênero — homem versus mulher — como se isso fosse capaz de
justificar as atitudes que as personagens tomam ao longo do drama. Mas, à medida que as
personagens começam a se contradizer dentro desta lógica binária, perambulando, através de
suas condutas, entre às normas e papéis sociais atribuídos a ela, logo se compreende que essa
busca é em vão. Somente quando nos desapegamos de parear as peças neste jogo da memória
coletivo e histórico que é o patriarcado, que o argumento principal de 4 da espécie se aflora: O
que garante ou autoriza dinâmicas de poder, exploração e violência quando o corpo não está
em jogo?

Esta pergunta é belamente expressa na voz de Jaque Martini, na cena 5 da peça, quando
esta profere a frase pulsão de toda a dramaturgia: “Nada mudou. O meu corpo me serve e não
ao contrário. Eu digo: “Corpo, eu quero subir a montanha.” Ele vai lá e sobe. O corpo é um
burro de carga. O corpo é coisa nenhuma.” (FERREIRA, 2018, p. 123). Ao tirar o corpo, a
fisiologia humana, a biologia do centro do discurso, Ferreira enfatiza a instância histórica que
permite que a estrutura patriarcal se mantenha e exerça seu poder com tamanha efetividade há
séculos.

A história é uma grande ficção. Tudo inventado. O gênero, inventou...O


homem inventa tudo. A gente inventou estado nação, fronteira, capital. A
gente é maluco, a gente inventa tudo. E justamente a gente inventa, porque...
E a biologia é altamente permissiva, a história é ficção. Não tem biologia nada
que impeça, por exemplo, uma mulher de transar com outra mulher, ou um
homem de transar com outro homem. Tem alguma coisa biológica que
impede? Não tem, porque a biologia é taxativa quando impede. Você faz
fotossíntese? Não faz. Porque nenhum ser humano faz fotossíntese, não faz
então não precisa de uma lei. (...). Agora, tem leis proibindo as pessoas de
serem o que elas são. (FERREIRA, em entrevista concedida ao podcast
Spoilando a peça, 2020, 35min02seg)

A peça ainda que possua uma estrutura à primeira vista bastante tradicional, tendo seu
conteúdo dramático dividido em oito cenas que se estruturam entre diálogo e rubricas, se faz
valer da presença de três elementos estruturais (prólogo, anti-prólogo e epílogo) epicizantes,
que transbordam a estrutura do drama burguês (SARRAZAC, 2012). A utilização desses três
elementos, que permitem a vazão do drama para o antes e o depois do acontecimento central,
se faz extremamente necessária uma vez que Michelle propõe tratar de um assunto tão extenso
e complexo em sua peça. Uma vez que o drama puro, com suas instâncias espaço-temporal
rígidas, seria incapaz de abarcar em si a história das relações de poder entre homens e mulheres
41

em toda sua extensão. Transbordar a história dos quatro da espécie para o antes e o depois de
suas vidas é uma forma de enfatizar a amplitude espaço-temporal do tema.

Nesse sentido, o prólogo age como elemento antecipador, mas também como crônica
onisciente e onipresente do próprio drama. Explico, o breve texto inicia-se como uma narrativa
de Criação. Um quase-homem entediado cria um Deus – “...que já nasce velho como o mundo
e branco como cera. (isso fará com que ele preste mais atenção a tudo o que é alvo, esquecendo
das variações de marrom, até chegar no preto)” (FERREIRA, 2018, p. 17) – este Deus, depois
de um bocejo, cria o Mundo, enquanto isso, a leitora/leitor é introduzida/o ao universo e
principais temas que Michelle Ferreira buscará abarcar em sua peça.

Em poucas linhas a dramaturga instaura questionamentos em relação à raça, gênero,


papeis sociais, e a lógica colonizadora à qual fomos submetidas. Assim como apresenta duas
personagens que, apesar de não serem os 4 da espécie, percorrerão o drama com eles: a
montanha, cenário da aventura, e um leão ou leoa11, jamais saberemos, animal subsaariano que
aparece em plena América do Sul como principal ameaça externa à vida dos quatro da espécie.
Uma ficção. Ferreira nos prepara para o drama apresentando-nos o universo temático sobre o
qual vai se debruçar, e ele é amplo. O prólogo se fecha com a imagem de uma mulher grávida
fumando e o som de um feto chupando o dedo, mais à frente na história poderemos supor que
essa imagem é Jaque Martini e sua/seu filha/filho.

Seguindo a lógica de antecipação dramática, o anti-prólogo também carrega um caráter


antecipatório, porém, desta vez, não do drama em si, mas da reação que ele pode gerar àqueles
que o leem. De função metadramática, as duas falas que compõe o anti-Prólogo “– Vai ser
difícil de acreditar nisso; – Eu sei.” (FERREIRA, 2018, p.21) fazem referência ao próprio
drama porvir e a ele propõe uma resposta, ou resposta nenhuma.

Segundo Sarrazac (2012), o drama contemporâneo se torna um “oxímoro de brevidades


estendidas e amplitudes breves”, neste sentido essas estruturas que precedem e procedem o

11 Considero importante ressaltar que sexo e gênero não devem ser entendidos como sinônimos. Gênero é uma
construção social baseada na diferenciação de papeis sócio sexuais do trabalho e na organização social do trabalho
de reprodução, ao passo que a diferenciação sexual é de ordem biológica, sendo historicamente binarizada, ainda
que haja uma gama de diferenciações sexuais que ultrapassa o macho x fêmea, como é o caso dos intersexuais.
Sendo assim, uma vez que o gênero é uma construção social estritamente humana, no reino animal a diferenciação
macho/fêmea é puramente sexual. Quando Michelle propõe “não é fácil para a leoa estar na selva” (FERREIRA,
p.18), existe um processo de humanização do animal que permite a criação de uma metáfora com as sociedades
humanas, e as diferenciações de ordem sociocultural entre os gêneros masculino e feminino.
42

drama, transbordando a sua forma e trazendo, ainda que de maneira sucinta, uma extensão
muito maior a narrativa central, não deixam de ser ferramentas para abordar o que o autor
francês intitula “drama da vida”. Pois, ainda que a história central, aquela apresentada nas oito
cenas, cumpra estruturalmente vários dos requisitos do drama tradicional, quando a autora
insere breves crônicas (no formato de prólogo, anti-prólogo e epílogo) abordando o pré-drama
e o pós-drama, ela expande o universo ficcional sobre o qual se debruça, abarcando não só a
vida das quatro pessoas quando em um chalé nas montanhas, mas, de forma mais ampla, a vida
da humanidade desde seu surgimento até o futuro. Futuro este que por sua vez se configura
como hipótese, desejo ou projeção da autora, visto que o drama se encerra em aberto e o público
não terá acesso ao porvir apontado no epílogo.

Na forma de uma crônica breve, o epílogo narra a história da criança Veruska (filha de
Jaque Martini), que ainda é apenas um bebê ao final da peça. Nele, a menina é levada para a
diretoria da escola após ter agredido um colega. Segundo o menino, Veruska agiu de má fé o
violentando sem motivo. A garota, por sua vez, afirma que foi assediada, mas ninguém crê em
suas palavras. Ainda que essa ideia de que a voz da vítima é tomada como mentira não nos seja
nova, há uma mudança de comportamento que não pode ser ignorada: Veruska reagiu. Ela é
tomada como mentirosa, mas pouco se importa pois sabe que sua reação marcou o menino para
sempre. Retomando a ideia de que o epílogo funciona como uma projeção do pós drama, a
ênfase dada à reação de Veruska sugere um futuro menos passivo ou, como Jota Mombaça
sugere, de “redistribuição da violência” (2016), uma vez que a menina Veruska se exime da
posição submissa de violada e reage contra seu violador.

Nós nascemos desapropriadas de nós. A ponto de crenças absolutamente


inventadas, crenças que são pura ficção serem consideradas biológicas.
Vamos ver uma crença totalmente retardada, a força (...) E essa coisa de “Não,
porque mulher não pode brigar”. Tem que aprender a brigar, tem que aprender
a fazer krav magá, pra matar, se já vir assim, já mata, fazer muay thai, fazer
judô, fazer qualquer coisa, matar. “Ah não, você é violenta”. Violenta.
Violência, sim. Agora que eu tô escrevendo minha nova peça eu tô com essa
coisa na cabeça. O personagem fala “Se tem uma coisa que pode mudar o
mundo é a violência”. Eu sei, vou ser execrada, o mundo quer paz. Eu não
quero paz, eu quero mais violência. Porque a violência tá concentrada em
grupos de poder, vamos distribuir essa violência aí, vamos ser violentos,
pegar essa merda de novo. Tô revoltada hoje. (FERREIRA em entrevista
concedida ao podcast Spoilando a peça, 22 mar. 2020, 59min28seg)

Ou seja, “Redistribuir a violência, nesse contexto, é um gesto de confronto, mas


também de autocuidado. Não tem nada a ver com declarar uma guerra. Trata-se de afiar a
43

lâmina para habitar uma guerra que foi declarada a nossa revelia, uma guerra estruturante da
paz deste mundo, e feita contra nós” (MOMBAÇA, 2016, p.10). Em coro com Mombaça, a
atriz e pesquisadora Verônica Fabrini (2017) defende a importância de nós, mulheres e artistas,
nos apropriarmos do tema da violência para abordá-lo sob diferentes perspectivas, retirando-a
do monopólio e poderio masculino.

Inverter a dinâmica do poder, ou melhor, embaçá-la por entre as ações de suas quatro
personagens sem gênero foi a maneira que Michelle Ferreira encontrou de apontar as
incoerências desta ficção histórica da qual fazemos parte, argumento que é coroado com a ação
de Veruska no epílogo. A menina que, diferentemente de seus próprios pais, tem seu gênero
categorizado desde o seu nascimento, gênero este que é rogado como praga por todas as quatro
personagens em algum momento da peça, “Soni – (...) Eu espero que seu filho nasça
deformado. Ou morto. Ou morto e deformado. Ou deformado e morto. Ou pior. Eu espero que
nasça uma menina.” (FERREIRA, 2018, p. 118), rompe com a lógica de submissão a ela
imposta, e torna-se uma menina violenta. Ainda que o menino com o rosto rasgado à lápis
adjetive-a como louca, ainda que a diretora da escola não acredite nos motivos de Veruska, sua
ação é transformadora e isso, por hora, parece ser uma mudança suficientemente substancial.

A peça se finda em aberto, transbordando tanto para o futuro como para o passado, o
“drama da vida” torna-se “drama da humanidade”. Ainda que a autora identifique a
romancização como ferramenta para atrair aqueles que à leem, tornando o acesso à dramaturgia
mais palatável –segundo ela, a aridez presente na estrutura dramatúrgica tradicional é a
principal razão para a dificuldade na disseminação deste tipo de leitura – esse extrapolar
dramático, para além das oito cenas propostas, também redimensiona e aprofunda temática e
estruturalmente a peça de Michelle.

Eu não sou uma romancista, tão pouco uma poeta, meu negócio é teatro
mesmo, meu negócio é cinema mesmo, meu negócio é botar pra jambrar a
ação, eu gosto disso, e também porque sei de alguma maneira fazer isso. Mas,
é um momento que eu me deixo ser o que não sou também, então todas as
minhas peças eu uso essa rubrica, esse espaço que eu posso revelar coisas que
não são da ação e nem das personagens eu uso pra brincar, e uso também
como uma arma de sedução, mas nunca foi consciente. (...). Não foi
necessariamente porque ia ser publicado, se não fosse publicado seria da
mesma forma. (...). É pra acompanhar o leitor, não deixar o leitor sozinho.
Ler teatro não é fácil, você tem que estar com uma certa disposição porque
existem coisas que você deve imaginar e uma pessoa que não está acostumada
a ler teatro, pra ela gostar de ler teatro é pouco... Eu tô querendo ajudar,
porque as vezes pode ser muito árido ler teatro. (...) E também pra ser amada,
44

eu quero ser amada, quero que as pessoas me amem, então é um jeito de


conquistar as pessoas. (FERREIRA em entrevista concedida ao podcast
Spoilando a peça, 22 mar. 2020, 10min10seg)

Michelle encara essas estruturas romancizadoras presentes em sua peça como


ferramentas de “sedução”, como forma de atrair aqueles que se propõem a ler 4 da espécie,
garantindo uma leitura menos “dura” e “técnica” da dramaturgia (gênero literário que, apesar
de bastante conhecido, ainda é muito pouco lido). Todavia, enxergo nesses transbordamentos
uma potência dramática que vai além dessa “sedução romanesca”. Pois, a criação de uma fabula
dramática mais ampla do que a própria história das quatro personagens, uma fábula de
dimensões cósmicas, que remontam ao início dessa “Criação” é uma forma poética de desvelar
a profundidade e complexidade do tema que a autora escolhe abordar com sua obra.

Além disso, a estrutura em prosa do seu Prólogo e de seu Epílogo, juntamente ao uso
específico e bastante característico que Michelle Ferreira faz das rubricas, expressando
comentários, observações e traços de opinião, permite que se estabeleça um diálogo direito e
afetivo entre autora e leitora. As rubricas, por exemplo, que interrompem o desenrolar do
drama, criam uma segunda camada de compreensão daquilo que está acontecendo, nos
colocando enquanto leitoras em um constante percurso intra/extra dramático.

Esta estrutura de aproximação se torna extremamente eficiente em se tratando de uma


peça que carrega consigo uma grande densidade conteudística. Neste sentido, a estrutura
rapsódica presente no texto de Ferreira, além de facilitar o acesso a um material cujo conteúdo
ainda é pouco difundido, permite a abrangência e complexidade na abordagem temática que a
autora se propôs realizar a partir da criação desta segunda camada dialógica: autora/público.

Apesar da grande força encontrada em suas rubricas, que são carregadas de


personalidade e beleza, ela reforça que seu maior foco e preocupação enquanto dramaturga está
na criação das personagens, no sentido szondiano do termo:
Michelle: Eu tento ser (uma autora invisível). Tento ser. Tento ser em que medida?
Eu tento fazer com que os personagens sejam muito mais visíveis do que eu. (...)
Você tem que entender da psique humana. Da psique humana. As pessoas não
falam o que elas pensam na maioria do tempo. As pessoas querem se agradar,
querem ser educadas. As pessoas não querem ser odiadas. Quando elas vão pro
pau é porque a coisa já tá aqui (faz gesto de limite com as mãos). Então cê tem
que...Entende? Eu gosto muito do que o Antunes Filho falava: “O personagem não
quer falar”. O personagem nunca quer falar. Porque ninguém quer se expor. Que
ser humano que você conhece que chega na rua e começa “Então, galera, eu sou
assim…” E você vai, às vezes, você lê peças que assim... esse ser... não... Isso tem
menos a ver com a forma e mais a ver com o ponto de partida de observação do
45

dramaturgo. Porque a forma pode ser... Existem mil formas. Não é isso que define,
o que define é: Mas você tá observando esse ser humano ou cê tá idealizando esse
ser humano? Cê realmente está olhando ele de frente e olhando pra você de frente
sem aplicar o bom mocismo, o caretismo, o moralismo ou você tá...Você é terrível
ou não? O dramaturgo tem que ser terrível. Tem que ser um ser humano terrível
quando ele tá escrevendo, senão não vai escrever.

O impasse entre o “autor invisível” szondiano, àquele que isenta sua voz do drama, e a
potência e importância das rubricas de Ferreira onde ela se coloca enquanto autora, opinando
diretamente no drama, cria uma estrutura dramática dividida em dois planos. No primeiro,
encontramos o drama em toda sua potência, com as personagens “muito mais visíveis”,
expressando em cena todas suas contradições e terribilidades, conduzindo através dos diálogos,
dos silêncios, das ações e dos acontecimentos a situação dramática. No segundo, temos os
elementos que fogem ao drama, sejam àqueles epicizantes apresentados anteriormente
(prólogo, anti-prólogo e epílogo), seja as rubricas que trazem o caráter romancizante à peça,
onde a autora tal como rapsoda se apresenta onisciente para pontuar e comentar o drama:

Jaque limpa o cuspe com uma mão e dá um soco em Bibi com a outra. Bibi
vai ao chão. Depois de alguns instantes, Bibi começa a ter um ataque
epilético. Lee dá um passo em direção de Bibi, talvez para ajudá-la, Jaque
pega o braço de Lee com força. Lee desiste. Os três assistem ao violento
ataque e não se mexem. O ataque cessa. Bibi esta desmaiada. Os três ficam
estáticos olhando para o corpo caído, assim como em outro momento
ficaram olhando para espingarda carregada. Não é fácil estar no lugar
de Bibi Bibete, assim como também não é fácil estar em nosso lugar,
vendo tudo isso acontecer sem poder fazer nada.12 (FERREIRA, 2018, p.
77.)

A rubrica, que começa como uma sequência objetiva de indicações de ação cênica
(cuspir socar, cair, esperar, aproximar, deter, desistir) cumprindo a função tradicional do
recurso dentro do drama, aos poucos passa a agregar características mais subjetivas (como pode
ser observado nos grifos), opiniões e comentários da autora sobre as ações (o uso do advérbio
“talvez”, ou da oração comparativa “assim como em outro momento...”), culminando na última
oração da rubrica, em que Ferreira nos traz para dentro da situação dramática como testemunha
ocular, ou talvez como cúmplice, do ocorrido.

Esta rubrica também é o primeiro momento na peça em que a violência ocorre como
divisor de águas entre as personagens e marca a mudança drástica na relação entre os quatro
da espécie. Ao comentar “Não é fácil estar no lugar de Bibi Bibete...”, Ferreira infere que
Bibete se encontra numa posição diferente, inferior, desvantajosa frente às outas três figuras.

12 Grifos feitos por mim.


46

A partir deste momento a personagem será tratada predominantemente no feminino, assim


como sofrerá, por conta desta nova posição em que a colocam, uma sequência de ações
violentas.

O soco seguido do ataque epilético que Bibi sofre são o estopim para a divisão dos
quatro da espécie. Está estabelecida uma hierarquia entre eles, uma hierarquia que as cinde em
dois grupos. Jaque Martini adota Soni Kunder como cúmplice, e, controlando toda a situação
dramática, impõe as regras do jogo: à essas duas figuras é permitida a aventura nas montanhas
(àquela pela qual todas estavam esperando) e é para lá que partem logo após o ataque de Bibi.
À Lee Quatropani e Bibi Bibete é relegado o ambiente doméstico, o cuidado e a espera. Lee
Quatropani é ordenada/o por Jaque e Soni a permanecer na casa e cuidar de Bibi enquanto
ambos partem para a escalada. A situação, aceita a contragosto por Quatropani, finda-se com a
sugestão de que o estado desacordado e vulnerável de Bibi pode ser uma vantagem para Lee:
“Lee – E o que eu vou fazer sozinha com uma mulher desacordada? Soni – Use a imaginação”
(FERREIRA, 2018, p. 82). Bibi, desacordada, é vista como corpo à disposição de Lee.

Desde o início da peça Ferreira molda a narrativa de modo a colocar Jaque Martini
como figura com mais poder entre os quatro, sua posição permite que ele guie as ações da peça
a maioria do tempo. É ele quem tem o carro que leva as quatro da espécie para o chalé. É ele
quem sugere a formação de alianças, criando cúmplices e rivais. É ele quem manipula boa parte
dos acontecimentos que dividem o grupo.

Ainda na cena dois, por exemplo, quando os quatro encontram uma espingarda no chalé
é Jaque quem sugere que em algum momento aquela arma será usada. Além de referenciar o
autor russo Anton Tchekhov13, a fala de Martini ainda cumpre duas funções. A primeira, interna
ao drama, visa a instauração de uma atmosfera de apreensão entre as quatro personagens. A
segunda é externa ao drama, pois a frase anuncia o futuro da peça para aquele que a lê ou à
assiste, em outras palavras, ainda que de dentro da situação ficcional, ou seja, sem fazer uma
quebra dramática, Martini comunica aos leitores e leitoras sobre o que está porvir.

13Em uma referência metadramática direta ao dramaturgo russo Anton Tchekhov (A Arma de Tchekhov) — que
em múltiplas declarações afirma que todo e qualquer elemento cênico que surge no drama deve ser utilizado
dentro do próprio drama, para exemplificar, Tchekhov recorreu ao exemplo da arma (pistola, espingarda, rifle)
em cena, que sempre que surge, ainda que em um primeiro momento pareça um elemento supérfluo, é porque será
usada por alguma das personagens. Jaque Martini faz uma citação livre deste princípio dramatúrgico,
“Normalmente quando existe uma espingarda em cima da mesa é porque ela vai ser disparada” (FERREIRA,
2018, p.39).
47

Como detentor do controle do drama, Jaque joga de formas distintas com cada uma das
outras figuras. Desde o início da peça, Martini estabelece um jogo sensual com Soni, mantendo-
a como cúmplice de todas suas jogadas através de uma dinâmica abusiva de sedução versus
ameaça. Com Lee, a relação, também abusiva, acontece a partir da ideia de pertencimento, ou
seja, Jaque coopta Quatropani usando da intimidação para que este aja a seu favor. Por fim,
temos Bibi, personagem constantemente questionada, excluída e enfraquecida pelas outras três
desde o início da peça. O que se inicia quase como uma brincadeira infantil, uma espécie de
bullying, com Jaque passando pasta de dente no rosto de Bibi enquanto ela dormia, ao longo
do texto vai tomando características mais sádicas, violentas e cruéis.
Jaque – Você não sabe fazer conta, professora?
Soni – Vamos ajudá-la. Um dois, três contra um.
Bibi – Contra? Achei que estivéssemos juntos.
Jaque – Sinto muito. Você é diferente.
Bibi – Desde quanto?
Lee – Você está vazando. É diferente.
Bibi – Vazando onde? Vocês não podem me obrigar a fazer uma coisa que eu
não quero.
Soni – A maioria decidiu que você vai cozinhar para nós.
Jaque – Você não gosta de voto? Isso é democracia.
Bibi – Isso é a ditadura da maioria. Não é assim que funciona.
Jaque – Exatamente, Bibi. Não funciona!
Lee – Aceita e começa. É melhor assim.
Soni – Estamos com fome.
Lee – Seja lá o que for, o meu é malpassado.
Bibi – Não, vamos tirar no palitinho.
Soni (pegando, sem força nenhuma o braço de Bibi) – Vai ser você. Não tem
mais discussão.
Bibi – Não encosta em mim. (FERREIRA, 2018, p. 74-75)

Neste trecho temos o início da discussão que culmina no desmaio de Bibi e a


consequente divisão do grupo. É interessante observar que apesar dos quatro da espécie não
terem seu gênero definido, as justificativas para a exclusão e o tratamento diferente dado à Bibi
são da ordem da construção social do gênero. Em outras palavras, o fato de Bibi vazar (seria
essa uma metáfora para a menstruação?), diferentemente das outras personagens (pelo menos
neste momento, já que a própria corporeidade das personagens está em constante mudança), é
usado como justificativa para afirmar a diferença entre Bibi e o resto. Vazar é a justificativa
para ele permanecer na casa, cuidado do almoço e esperando pelo retorno dos outros três.
Lógica semelhante de exclusão é aplicada à Lee Quatropani quando ele demonstra ter
medo de aranhas. Essa suposta “fraqueza feminina” é a justificativa para privar Lee da aventura
e relegar à personagem o espaço doméstico e ao cuidado.
Lee – Diga a eles que fui um herói.
48

Soni – Nunca vi herói mijar sentado


Lee – Quem mija sentado é você. Escuta, Jaque Martini, não se esqueça que
eu...
Jaque – Se olha no espelho, Lee. A coisa mais importante é se olhar no
espelho
Lee – Não tem espelho nesse chalé. Eu não sei o que está acontecendo, mas
vocês estão enganados ao meu respeito.
Soni – Não se mexe.
Lee – O que foi?
Soni – Não se mexe
Lee – O que foi? Me diga. O que foi?
Jaque – Tem uma aranha no seu cabelo.
(Lee dá um grito seguido de um ataque histérico. Chacoalha a cabeça.)
Lee – Ela saiu?! Ela saiu?! Ela saiu?! Ela saiu?! Meu deus, ela saiu?!
(Jaque pisa na aranha. Lee tenta se recompor, mas está muito abalado.)
Jaque – Tem muitas aranhas pelo caminho. Se eu fosse você, eu ficava.
Lee (frágil) – Mas eu não quero ficar sozinho. Não quero.
Soni – Mas você não está sozinha. Ela precisa de você.
Jaque – Ela gosta de você.
Soni – Ela estava dando mole pra você.
Lee – Eu sou casado.
Jaque – Mas não está morto. Ou está?
Lee – Não, eu não estou morto. Não estou.
Soni – Ou é viado.
Lee – Não sou viado. Não sou. Eu sou Lee Quatropani! (FERREIRA, 2018,
p. 79-81)

Este trecho é de especial relevância uma vez que a identidade de Lee Quatropani é
moldada de acordo com o interesse de cada uma das personagens. Explico, após o susto de
Lee com a aranha revelar sua “fragilidade”, Soni e Jaque passam a tratar a personagem pelo
pronome feminino, “Você está sozinha”. Enquanto Lee, ao começar uma luta incessante por
reforçar a sua virilidade, se auto identifica constantemente com pronomes masculinos,
“sozinho”, “casado”, “morto”. Soni e Jaque, que detêm total controle da ação, então subvertem
o jogo mais uma vez, e passam a se referir a Lee no masculino, em busca de garantir a ele um
tipo de micropoder sobre Bibi desacordada.
O corpo de Bibi já não é coisa nenhuma, torna-se moeda de troca, recompensa pela
permanência de Lee Quatropani na casa. E o ambiente doméstico torna-se o espaço das maiores
violências vivenciadas pelas personagens.
“Ata-me num precipício”, a terceira cena, é o cerne da peça no que tange a discussão
sobre violência de gênero. Protagonizada inteiramente por Lee e Bibi no chalé, porque Soni e
Jaque partiram para a aventura, Lee tricoteia um cachecol quando Bibi finalmente acorda de
seu desmaio convulsivo. Ela está nua e com dores pelo corpo. A cena é estruturada por diálogos
muito breves que expressam a desconexão entre as personagens, entrecortados por polílogos,
49

momentos em que a personagem Lee vive um diálogo interno, conversa consigo mesma. Nos
diálogos entre Bibi e Lee observamos o fenômeno que Sarrazac aponta como sendo uma nova
forma de diálogo, o “diálogo errante”
As réplicas jamais se encadeiam. Cada réplica se afasta da que a precede e da
que lhe dá sequência. Cava-se um abismo entre as réplicas, como entre as
personagens. (...) O “diálogo errante” é um diálogo completamente aberto e
descontínuo, que acolhe o silêncio e as diferentes formas narrativas que nele
vêm interpolar. (SARRAZAC, 2017, p. 198-199)

Essa estrutura dialógica baseada na não-escuta revela não só o descompasso entre as


personagens, mas também é a ferramenta pela qual Lee desvia o foco do assunto, detendo
controle sobre o curso da conversa e criando tensão sobre o principal acontecimento: o estupro
de Bibi.
Bibi – Estou com dor.
Lee –Natural
Bibi – Não é só no nariz
Lee – Natural
Bibi – Eu não consigo me sentar
Lee – Muito natural
Bibi – O que você fez?
Lee – Um cachecol
Bibi – Comigo! O que você fez comigo!? (FERREIRA, 2018, p. 88)

Por meio de um diálogo de passo veloz e frases curtas, enquanto Bibi guia o espectador
no curso de suas dores até que ambos — personagem e público/leitor — suspeitemos do
ocorrido (a queixa de dor se inicia de forma generalizada e vai se especificando “Não é só no
nariz”, “Eu não consigo me sentar”, “O que você fez?” até chegar ao “Comigo! O que você fez
comigo!?”), Lee por sua vez adota uma postura dissuasiva, desviando-se das perguntas de Bibi
com respostas evasivas que não só menosprezam as queixas de Bibi — “Natural”, “Natural”,
“Muito natural” —, como também ironizam suas perguntas com respostas literais: “Um
cachecol” (a ação física da personagem enquanto Bibi estava desacordada era tricotear um
cachecol amarelo, mas é evidente que Bibi não se refere à esta ação quando pergunta sobre o
que Lee fez enquanto ela esteve desacordada).
Vagarosamente, Ferreira embute em Lee frases que operam tal qual um fluxo de
consciência em que o personagem se mostra confuso e cooptado à lógica de construção de
gênero a partir das ações e atitudes que Jaque tomou para consigo, como também em relação
aos outros três da espécie. É nessa reação de Lee que tanto Bibi como nós, leitoras e leitores,
passamos a compreender com clareza o que ocorreu no entre cena.
Lee – Às vezes a gente só descobre o que é no meio do caminho.
50

Bibi – Eu sei o que eu sou.


Lee – Sabe? Sabe mesmo? Porque eu não sei. Eu só consegui vomitar o angu
quando vi meu reflexo no lago. Para o meu espanto eu não tinha nenhum pelo
na cara. Você me acha bonita?
Bibi – Bonito.
Lee – Não, bonita. Você e acha bonita?
Bibi – O que aconteceu?
Lee – Você apagou.
Bibi – Não, não... eu... até onde eu me lembro eu estava discutindo com Jaque
Martini e levei um soco.
Lee – Se eles batem, batem com razão.
Bibi – Mulherzinha intragável!
Lee – Não sei de quem você está falando. Jaque Martini é um homem.
Bibi – E eu sou um periquito.
Lee– Talvez você seja um periquito. Eles vão voltar pra mim. Eles gostam de
mim. Já você.... Você é safada. Tem uma boca safada e comunista. Uma boca
vermelha. Posso te ensinar um ponto novo? (FERREIRA, 2018, p. 90-91)

Também mas afrente em:


Bibi – Para de tricotar!
Lee – Só estou seguindo o curso natural das coisas.
Bibi – E quem disse que esse é o curso natural das coisas?
Lee – Eles disseram!
Bibi – E por que você obedeceu?
(Lee não sabe porque obedeceu.)
Bibi – Por que você acreditou?
Lee – Porque as aranhas são enormes e eu tenho medo. O que é que eu posso
fazer? Meu estômago está embrulhado de medo(...). (FERREIRA, 2018, p.
92-93)

Aqui está instaurado um impasse. De um lado temos Lee completamente amedrontado


e cooptado pela ficção patriarcal que binariza as vivências catalogando-as enquanto feminino
e masculino e assim ditando o curso da vida de cada indivíduo, porém que ainda assim, ou
justamente por isso, foi capaz de violentar Bibi (como descobriremos logo mais). Por outro
lado, temos Bibi Bibete, recém desperta de um desmaio, estuprada e fisicamente fragilizada,
porém questionando a ordem “natural” dos acontecimentos, opondo-se a Lee e aos outros dois
da espécie, sozinha.
O ritmo cortante do diálogo passa a ser interpelado por grandes monólogos, fluxos
violentos de pensamento de Lee que passa a vociferar toda a violência contida no discurso de
Jaque e Soni. Lee passa a tentar justificar a posição que se encontra com Bibi, em relação à
Jaque e Soni, inclusive omitindo as constantes indagações de Bibi sobre o que Quatropani fez
com seu corpo.
Esses fluxos de consciência se aproximam da ideia de polílogo, como propõe Sarrazac
(2017). Partindo da premissa de que cada ser humano na contemporaneidade é capaz de ser
51

muitos em um só, o polílogo é o diálogo de um ser só. Instaura-se a pluralidade de vozes dentro
de um único solilóquio. E são nos fios soltos que Lee Quatropani desvela a cada novo polílogo,
nas brechas de seus fluxos de consciência, que Bibi traça sua própria tragédia.
Desta forma, a ação principal da cena se conduz através dos silêncios, dos vazios entre
as personagens, das respostas não proferidas e das perguntas desviantes. É entre o não dito que
o estupro é revelado, e com ele a estrutura de poder que o sustenta.

Bibi – Você me...


Lee – O quê?
Bibi – Você me...
Lee – Fala. Não tem coragem? Você depila debaixo do braço? Você tem
muita raiva dentro de você? Meu pau tá ficando duro.
(FERREIRA, 2018, p. 94-95)

Está instaurado o clímax da cena, com o segredo desvelado, Lee Quatropani detém o
controle da a situação, e enquanto descreve em detalhes o que fez com Bibi enquanto ela/ele
esteve desacordada/o, investe numa segunda tentativa de violá-la.
Lee – Eu não consegui me segurar. Você sabe como é, não sabe? Se não sabe
precisa saber: eu tive que fazer o que a natureza mandava. A natureza, Bibi,
a natureza é quem manda, a gente não faz nada, a gente acha que pensa, mas
não pensa, acha que escolhe, as não escolhe, a gente acha que sabe o que é
foder, mas agora eu vou te mostrar como é que se fode de verdade! Eles
disseram para usar a imaginação. Foi o que eu fiz. Posso arrancar seu coração
dessa vez? Dessa vez eu vou conseguir. Eu estava quase lá. (FERREIRA,
2018, p. 96)

Segundo a escritora Virginie Despentes (2016), o estupro é próprio do homem, existe


uma construção simbólica de que masculino é constituído pela força, violência, perigo e
descontrole, seguindo esta narrativa o desejo passa a agregar essas mesmas características,
como se o impulso sexual masculino fosse uma forma incontrolável. Este argumento de que o
comportamento viril e violento é uma característica naturalmente intrínseca ao masculino é
mais uma ficção que justifica a dinâmica de poder patriarcal. Porém, na peça de Michelle
Ferreira não há homens, muito menos mulheres, e ainda que o estupro não dependa
exclusivamente da presença do falo e da penetração, Lee constantemente evoca ao discurso sua
genitália.
Lee – (...) Meu pau tá ficando duro.
Bibi – Você não tem um pau
Lee – Vem aqui que eu te mostro.
Bibi – Se você tivesse um pau faria jus.
Lee – Jus?
Bibi– jus. Faria jus.
52

Lee – Jus a quê? Cadê o seu pau? Me mostra. Vai. Me mostra esse seu
membro que cresce. Deixa eu ver se é maior do que o meu!
Bibi – Eu não estou achando.
Lee – É claro que não. Você perdeu. Eu perdi. Todo mundo perdeu. Somos
todos um bando de perdedores sul-americanos. Ajoelha que eu estou
mandado! (FERREIRA, 2018, p. 95)

Porém, Bibi age na direção contrária, colocando em xeque o corpo de Quatropani, ou


seja, enquanto Quatropani reitera a presença de seu falo, Bibi reafirma a ausência dele, assim
sendo, as personagens travam uma breve competição na busca por legitimar sua dominação
perante a outra. Todavia, torna-se evidente que essa luta pelo poder autorizado através da
genitália é em vão visto que o signo máximo da masculinidade cis-heterocentrada, o falo,
inexiste, tanto para Lee como para Bibi.
O corpo torna-se coisa nenhuma – um corpo sem órgãos14, ou melhor, um corpo cujos
órgãos estão à mercê das atitudes que cada personagem toma perante as outras, dos papéis
sociais que estão a desempenhar e, especialmente, das violências que sofrem:
Bibi – Eu sou um homem. Eu sei que eu sou um homem. Tudo o que eu fiz
até hoje foi como um homem. Eu acordei como um homem. Vim pra cá como
um homem. E não posso ter me tornado uma mulher de uma hora para outra
só porque vim passar o feriado num chalé nas montanhas! (FERREIRA, 2018,
p. 97)

O psicanalista francês Jacques Lacan propõe que “A diferença sexual não é um binário
simples que retém a metafísica da substância como sua fundação. O sujeito masculino é uma
construção fictícia (...) O feminino nunca é uma marca do sujeito.” (LACAN apud BUTLER,
2003, p. 52). Talvez, se adotarmos esta premissa de que o feminino não existe enquanto sujeito,
possamos compreender como as estruturas de poder entre as quatro personagens flutuam tão
facilmente. A condição de mulher na peça se dá pela violência e pelo achincalhamento de tudo
o que é socialmente lido como feminino. No último trecho da cena, enquanto Lee Quatropani
tenta estuprar Bibi Bibete pela segunda vez, é travado um diálogo de ofensas, reforçando todo
os estereótipos masculinos e femininos

Lee – Vadia, vagabunda, piranha, marafona, pelancuda, orgulhosa, bruxa!


Cigana dos infernos! Criou discórdia com a sua voz aguda no primeiro
momento que entrou nesse chalé. Tá na hora de você aprender uma lição!
Bibi: Você tá ficando louca, Lee Quatropani? O que eles fizeram com você?
Lee: Não, eu tô ficando louco. Porque se eu fosse louca e não louco você não
teria medo de mim como você tem agora.

14
Termo cunhado pelo filósofo Gilles Deleuze, usado pela primeira vez em seu livro Lógica do Sentido (1969).
O termo é referenciado no prefácio do livro de Michelle Ferreira, escrito pelo ator Renato Ferracini.
53

Bibi: Eu não tenho medo de bancárias de meia idade que são passadas pra
trás. Olha a grossura das suas varizes. Eu não tenho medo de quem segura
uma agulha de tricô. Olha o seu cabelo. Eu não tenho medo de quem tem esse
espírito serviçal. Olha o seu quadril. Eu não tenho medo nenhum de você e
das suas formas redondas.
Lee: Não? Não tem mesmo? Tem certeza? Você sabe que eu sou mais forte
que você. Você não pode comigo! (...). Você nasceu pra ficar de joelhos. Caia
de joelhos e me olhem bem no fundo dos olhos enquanto engasga com o meu
pau pra sempre. (...). Abre bem essa boa e esconda os dentes, porque eu vou
fuder a sua cabeça, do crânio até a traqueia, eu quero sentir você engasgando,
quero ver o meu medo em você, refletido em você, eu vou vencer, porque
você não é nada, sua puta epilética! Prepare um jantar bem delicioso para nós.
Nós vamos chegar famintos da montanha. Eu devia estar lá! Eu devia estar
lá! (FERREIRA, 2018, p. 98)

Destaco o uso do termo “louco/louca” entre as personagens, e a consequente variação


de significados dada a essa palavra ao longo do discurso, o que reafirma o processo de alteração
do significado da expressão de acordo com o gênero inserido: louco denotando um estado
alterado que prevê agressividade, enquanto a palavra no feminino, louca, é associada a um
estado de consciência fragilizado e pouco confiável. Quatropani, neste sentido, busca
incessantemente, através de seu discurso, reafirmar-se enquanto parte do grupo mais forte: ele
não é louca; ele é louco, perigoso, violento e não deveria ter ficado ali, o seu lugar era fora,
vivendo uma aventura. Por outro lado, temos Bibi se referindo à Lee, e ofendendo-a, através
da identificação de atributos social e corporalmente lidos como femininos, contradizendo tudo
aquilo que Lee busca afirmar em seu discurso.
Desta polaridade surge a tensão dramática, a potência da palavra proferida versus a
força física que uma personagem parece exercer sob a outra se equiparam, de modo que o
impasse instaurado só consegue ser interrompido por um elemento externo: a rubrica. É esta
voz externa ao drama que dá a última palavra da cena: narra a consolidação de uma batalha
violenta entre esses dois corpos até que haja o silêncio. A espingarda é finalmente usada em
cena.
Descobrimos na cena seguinte que Lee foi morto por Bibi. Soni e Jaque retornam da
aventura nas montanhas. O jantar foi preparado por Bibi que permanece em seu patamar de
submissão. A ele são deixados o resto do jantar e a responsabilidade por retirar a mesa. Aos
outros dois, o jogo de pôquer.
Porém, Bibi se convida a jogar com as outras duas personagens, e se monstra uma
excelente jogadora, mais uma vez a figura mais submissa toma as rédeas da cena, se aproxima
das outras duas personagens que automaticamente relegam a Lee o cuidado com a manutenção
54

da casa. Quanto mais Bibi ganha força entre os três da espécie, mais suspeita se torna a situação
para Jaque e Soni, até que Bibete revela:
Bibi – (...). Eu tenho nojo de sangue e a senhora está sangrando em cachoeiras.
Vocês sangram, sangram e não morrem e isso é inacreditável. Vamos jogar.
Soni – Algum animal entrou aqui?
Bibi – Eu disso que era perigoso uma espingarda dentro de casa, mas ninguém
ouviu. E por que ninguém ouviu?
Soni – Onde está Lee Quatropani?
Bibi – Não se preocupem, ela não vai voltar. Eu dou as cartas agora.
(FERREIRA, 2018, p. 109)

A personagem detém o controle da situação e usa dele para externar toda a sua dor.
Fazendo-se uso de dinâmica semelhante à anterior, Ferreira tenciona a cena através dos
diálogos brutos até que a personagem no ápice de sua tenção interna e externa, promovida pelas
outras duas figuras, transborda em um grande jorro toda a “condição humilhante” (2018) sob a
qual foi submetida.
Bibi – (...). Essa condição é muito humilhante. (...) porque eu posso falar o
que eu quiser, eu posso me revirar do avesso mostrando as marcas que ele me
deixou, mas se eu não estiver morta, vocês não vão acreditar. Mas eu estou
viva e isso ofende vocês. Minha presença ofende vocês. Minha existência
ofende vocês. Só se acredita numa mulher quando ela está morta. Só se
acredita numa mulher muda. (...) A culpa é minha. Me desculpem. Vocês têm
razão. Vou arruma essa bagunça. Que bom que vocês gostaram do peixe. Se
vocês só fingiram gostar, eu sinto muito. Eu sinto muito por ter sobrevivido.
Quer dizer, eu não sinto nada. Quer dizer, eu sinto tudo, menos remorso. Vou
ao toalete. Meus paninhos. Bem. Estou vazando. (FERREIRA,2018, p.113-
114)

Considero este fluxo de consciência de Bibi parte central da peça, é a primeira vez que
uma das personagens assume sua condição enquanto mulher, Bibete sabe que é diferente das
outras personagens, não à toa desde o início da peça ela é tratada assim, de forma que, agora,
nem mesmo a revelação da gravidez de Jaque faz com que Bibi volte atrás.

Jaque finalmente tira o casaco. Está grávida de vários meses. Soni e Bibi estão
visivelmente surpresos. Nós também.
(...)
Jaque – Não vê, Bibi? Somos iguais. Estamos no mesmo barco.
Bibi – Não, nós não estamos no mesmo barco, nada em comum nos une e se
esse barco um dia existiu foi só para que vocês me jogassem pra fora dele.
Bibi joga a espingarda no chão.
Bibi – Eu não nasci para ter o carro do ano. Ainda bem porque não seria de
bom tom chegar com um carro do ano no meu sindicato. Eu espero que seu
filho nasça deformado. Ou morto. Ou morto e deformado. Ou deformado e
morto. Ou pior. Eu espero que nasça uma menina. Eu espero que um dia vocês
acreditem em mim. Eu espero que esse dia seja hoje, porque hoje é domingo
e domingo é dia de fazer as coisas certas. (...) (FERREIRA, 2018, p. 117-118)
55

A tomada de consciência de Bibi Bibete frente à própria situação – “Minha existência


ofende vocês. Só se acredita numa mulher quando ela está morta. Só se acredita numa mulher
muda”15 – faz com que a personagem se mate. Antes de cumprir com seu destino trágico,
porém, Bibi roga a Jaque, quase como uma maldição, que a personagem tenha uma filha.
Eu espero que seu filho nasça deformado. Ou morto. Ou morto e deformado.
Ou deformado e morto. Ou pior. Eu espero que nasça uma menina. Eu espero
que um dia vocês acreditem em mim. Eu espero que esse dia seja hoje, porque
hoje é domingo e domingo é dia de fazer as coisas certas. 16

A saída que a personagem encontra para ter sua palavra legitimada é a morte, afinal só
assim acreditarão nela. Bibete se enforca com o cachecol tricotado por Lee, o cachecol que
assim como as quatro personagens “parece ser nada até que no instante seguinte tudo muda e
nos surpreende. O gato está vivo e morto dentro da caixa” (FERREIRA, 2018, P.110)17.
Dos quatro da espécie, restam apenas dois, ou duas. Soni e Jaque.
Por último, abordo a questão da gravidez de Jaque e a relação amorosa entre ele e Soni.
Isto porque é surpreendente para todos, como Ferreira inclusive coloca em rubrica – “Jaque
finalmente tira o casaco. Está grávida de vários meses. Soni e Bibi estão visivelmente
surpresos. Nós também”18 – que Jaque Martini estivesse grávida.
A este ponto da análise já é evidente que as relações de poder na peça de Michelle
existem independentemente os corpos dessas personagens. Neste sentido, apesar de existir uma
surpresa com a revelação da gravidez de Jaque, não podemos cair da armadilha de associar a
gravidez a estereótipos de delicadeza, vulnerabilidade, instinto materno, esquecendo-se de que
Jaque Martini foi, desde o início da peça, a personagem que mais exerceu controle e impôs
poder perante as outras personagens, e não será a gravidez, o parto e a maternagem que
mudarão a figura de Martini.

15
(FERREIRA, 2018, p. 114)
16
(FERREIRA, 2018, p. 118)
17
Ferreira faz aqui uma referência ao gato de Schrödinger, paradoxo físico que apresenta a ideia de que um gato
dentro de uma caixa pode estar vivo ou morto, sendo que a comprovação só virá ao abrirmos a caixa. A associação
com as personagens se dá no âmbito de que – assim como o gato que é, mas como também não é, está como pode
não mais estar –, as personagens têm sua identidade fluída. Podemos traçar um paralelo com este fenômeno
também em relação ao cachecol tricotado por Lee que, aos olhos do leitor/público (por meio do apontamento na
rubrica) é amarelo, mas as personagens ao longo da peça se referem a ele como sendo oras azul, oras vermelho.
Apesar da teoria científica ser mais complexa do que o que está aqui descrito, ela tem sido popularizada por
diversos produtos artísticos e de entretenimento, especialmente aqueles referentes à cultura nerd e ao universo de
ficção científica, como por exemplo as sérias de televisão: The Big Bang Theory, Rick and Morty, Dark. Pode-se
considerar que o paradoxo físico se tornou parte da cultura pop, e é provável que Michelle Ferreira tenha feito
essa referência levando isto em consideração.
18
(FERREIRA, 2018, p. 117)
56

Desde o início da peça, Michelle dá indícios de que Jaque está gravida. Em rubricas, a
autora coloca a personagem comendo tijolo, por exemplo, em outros momentos a personagem
sofre de enjoos súbitos (que são associados ao almoço que os quatro da espécie fazem em um
restaurante durante a viagem), mas a revelação só acontece quando Martini tira seu casaco e
vemos uma barriga de grávida em seu corpo. A partir deste momento, os quatro da espécie,
cujo gênero jamais foi especificado, e a genitália sofreu constantes alterações ao longo da peça,
passam a debater sobre quem será esse bebê. Bibi Bibete roga a Martini a praga de ter uma
filha, como quem sabe que, no mundo em que vivemos, ser mulher já é castigo o suficiente.
Depois, é a vez do casal, Jaque e Soni, debater sobre o futuro da criança Guilherme ou da
criança Veruska.
As últimas quatro cenas da peça são dedicadas à vida dessas duas personagens e da
criança que nasce. Aqui, mais uma vez, Ferreira faz-se do uso das rubricas para abarcar o tempo
dilatado do drama-da-vida: passam-se meses em cena sem que nada se altere. Nada além da
barriga de Jaque Martini que continua crescendo. As duas personagens vivem como um casal,
“ilhadas a semanas” no chalé, consolidando uma relação de um amor estranho, violento e
abusivo. Soni e Jaque dependem um do outro, Jaque, por estar grávida e com medo; Soni, por
ter construído ao longo da peça inteira uma relação de dependência para com Jaque. As duas
personagens da peça encontram-se fragilizadas e dependentes a ponto de passarem a projetar
no feto a força que gostariam de ter. É aqui que começam a tratar o bebê como Guilherme.
Guilherme, diferente do filho de Soni, Luís, que acusou o próprio pai/mãe de algo
horrível que, apesar da autora não se aprofundar, julgamos pela leitura se tratar de uma
violência sexual, não será fraco. Soni projeta em Guilherme toda a força que não enxerga em
si ou no próprio filho. Guilherme não pode ser Veruska, pois “quem ganha no jogo da vida não
pode ser Veruska”19
O tempo passa mais uma vez. Soni não está em casa. A criança dorme. “Jaque espreme
o peito até encher uma garrafa de leite. Depois, coloca um bilhete em cima do bebê” 20 e vai
embora para sempre. Jaque é um fotógrafo de aventura e não poderia seguir sendo um fotógrafo
de aventuras com uma criança no colo “Imagine eu com uma criança escalando o Everest. Eu
não posso simplesmente colocá-la na mochila. Eu fiz a minha parte. E foi uma parte difícil.
Cuide dela pra mim ou a deixe para ser criada pelos leões”21. Jaque abandona a criança, como

19
(FEREIRA, 2018, p. 142)
20 (FERREIRA, 2018, p.139)
21
(FERREIRA, 2018, p. 145)
57

acontece com muitos pais ao redor do Brasil, – segundo dados coletados no último IBGE, 5,5
milhões de crianças no Brasil não possuem o registro do pai na certidão de nascimento, e 12
milhões de famílias são formadas por mães solo22 – porém, Jaque, diferentemente desses pais,
pariu a criança, Jaque é socialmente lida como a mãe da criança, e à mãe não cabe este descuido
criminoso.
A professora de psicologia da Universidade de São Paulo, Belinda Mandelbaum explica
que o abandono parental decorre de um vínculo entre pai e criança que não é forte o suficiente
para superar os interesses ou necessidades individuais que esse indivíduo já possui23, no caso
de Jaque a aventura e a fotografia. Este ato de Martini é extremamente complexo pois, por mais
que seja inegável a irresponsabilidade de abandonar um bebê, ao mesmo tempo este ato
desconstrói essa mesma norma hipócrita que acusa o abandono quando este é realizado por
quem pariu, quando o mesmo ato é normalizado quando quem abandona é o pai. Jaque nunca
assumiu os papéis “femininos” ao longo da peça, com a maternidade não seria diferente.
Segundo a teórica teatral e professora Anne Ubersfeld (2005), para compreender a
relação entre uma personagem e seu discurso é preciso ir além de uma compreensão das
informações presentes em sua fala em uma abordagem sob a personagem a partir de uma
perspectiva psicologizante, dela sobre si, mas compreender como esse discurso se dá dentro de
um âmbito situacional e relacional, da personagem e toda a sua complexidade para com o
contexto em que ela está inserida. Sendo assim, para analisar essa ação de abandono realizada
por Jaque, é necessário colocá-la sob uma perspectiva mais ampla de análise da personagem
ao longo de toda a peça.
Soni fica encarregado de cuidar da criança. A criança não é Guilherme, é Veruska. E,
em um ato de subversão, Soni Kunder profere o seu último polílogo, onde promete criar a
criança de Jaque como Guilherme:
Você jamais vai precisar se explicar, ou se defender, nunca ninguém vai
duvidar de você e você terá tempo pra se dedicar as suas habilidades, porque
você é branco, seu avô tem dinheiro e a sua mãe, uma descabelada,
desmiolada, viciada, bem, dessa você não vai precisar ouvir falar, desde que
você tenha a mim para te dizer constantemente que você é o máximo e será
um vencedor, porque você se chama Guilherme e não Veruska, porque quem
ganha no jogo da vida não pode ser Veruska (...) Você não vai precisar ser
bonita. Você vai poder ser feio, porco, rude, intransigente, as professoras vão
dizer que você tem personalidade, que você é viril, rápido, inteligente, aos
sete anos você será escolhido representante de classe, aos dez (...) aos trinta e
cinco será o mais novo presidente que esse país já teve, e vai fazer um discurso

22
Dados coletados do site do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponível em:
<http://www.ip.usp.br/site/noticia/o-abandono-afetivo-paterno-alem-das-estatisticas/>. Acesso em: 30 abr. 2020
23
Ibidem.
58

histórico que começará com algo como “Ainda é possível acreditar” ou “É o


momento de se unir”. Veruska não é nome de presidente. Se você fosse, for,
fosse, for Veruska, eles não iam, não vão, não iam deixar você terminar. Obra
inacabada, tudo seria sempre uma obra inacabada, porque iriam interromper
Veruska. Iriam tirar a roupa de Veruska. Iriam apedrejá-la, queimá-la,
estuprá-la nessa ordem ou em outra. (...) (FERREIRA, 2018, p. 141-142)

A peça acabaria com o polílogo de Soni escancarando uma sociedade que já


conhecemos, ou pior, reafirmando os estereótipos de gênero que subjugam a mulher a condição
de violentada, oprimida, impotente. Tratar Veruska como Guilherme nos moldes que Soni
apresenta em seu polílogo pode parecer uma boa solução à primeira vista, afinal Kunder cede
todos os privilégios de um homem branco e de classe média àquele bebê, mas isso tampouco é
instaurar uma verdadeira mudança.
Pra mim finais são muito importantes. Finais são coisas muito importante. E... Você
faz uma peça inteira pra você afirmar o que tá todo mundo afirmando? O que o
jornal já falou, já tá todo mundo, as blogueiras, o Tiago Leifert, entendeu? A
Gretchen, todos os memes...Você vai pra reiterar? Não é a função da dramaturgia.
Tão pouco é apaziguar o que é inapaziguavel (sic) mas também é, eu acho que o
teatro é um voto de esperança no futuro é um compromisso civilizatório.

Para tanto, Ferreira cria uma última cena, o bilhete de Jaque Martini. A cena, que
consiste unicamente em um grande monólogo de Jaque, sugerindo ser a carta que Martini havia
escrito para Soni, de certo modo se assemelha ao polílogo proferido por Soni na cena anterior.
Jaque, porém, diferentemente de Kunder, que reafirma a norma vigente, instaura um novo
paradigma, ao sugerir uma superação das normas ditadas para os corpos nascidos e designados
femininos.
Jaque – (...) vou ter horror de ver como os homens olharão ara ela quando ela
crescer, porque eu sei o que eles vão estar pensando, porque sei que eles vão
estar olhando para os seios dela, e eu vou querer matá-los e não vou poder
matá-los, porque um dia eu matei um ladrão e não me arrependi, porque eu
faço o mesmo com as filhas deles (...). Uma última coisa: diga para Veruska
para nunca obedecer aos mais velhos. Eles não sabem de nada e são cheios de
pistas falsas. Se ela é uma menina, se ela for uma menina, se ela é Veruska,
precisa ser rebelde. É a única forma de sobrevivência digna. Diga pelo menos
isso, que ela pode ser o que ela quiser, desde que esteja disposta a sofrer. Diga
que ela vai sofrer, mas ensine ela a sofrer menos. Crie ela no mato subindo
em árvores. Mostre para Veruska como matar baratas, cobras, e potenciais
abusadores. Ensine ela a gritar e a não ter vergonha. Ensine ela a amar, eu não
te proíbo, mas não fala ela sentir culpa do ódio e da revolta que ela tem. Deixa
ela dançar nua quando quiser. Quem vê maldade numa menina dançando nua
é doente. Estrague-a em tudo, você tem a minha permissão (...). Pode dar
banho na Veruska o quanto quiser. Mostre para ela a xoxota. Depois mostre
para ela a buceta. Sim, buceta. Faça ela se divertir com a buceta, ou como que
mais ela quiser. Diga que o corpo é festa e que tudo é bom. Tudo. (...). Eu
acho que quero aquilo que ainda não existe, a gente pode inventar. Veruska
pode inventar. Fale isso para ela todo dia: “Você pode inventar.” Quem sabe?
59

Quem sabe? Ninguém sabe. Todo mundo sabe. É uma chance. A nossa
chance. Vamos começar do fim. A humanidade do começo. O mundo tudo de
novo. O corpo coisa nenhuma. Se ela não quebrar um osso até os doze anos,
faça a tropeçar. (FERREIRA, 2018, p.145-147)

O fim da peça é a instauração de um novo começo. A sugestão pela reescritura da


história humana. Michelle Ferreira finaliza o drama-da-vida propondo que ele se recomece.
Considero que deixar em aberto uma alternativa de futuro distinta para as mulheres no que
concerne os papeis sociais que são impostos a nós e a violência que nos é dirigida é a forma
que Ferreira encontrou de realizar a sua redistribuição da violência num plano ficcional na
busca por uma mudança efetiva e real. Se a História é uma ficção criada por aqueles que detém
o poder, visando a manutenção e perpetuação do mesmo, começar do zero, criar uma nova
ficção onde este poder esteja redistribuído parece ser a saída possível para as 4 da espécie.
60

II. “Soul abusada” - A caça às travestis no Brasil ditatorial e a violência contra “corpos
abjetos”

Foto 2: Ave Terrena

O mesmo cara que come é o cara q bate e mata na rua


Ave Terrena, As 3 uiaras de SP City24

II.I. “Tem que ser transpofágica”


Atriz, poeta, travaturga25, diretora e professora, Ave Terrena é nome expoente na cena
teatral contemporânea da capital. Antes que eu me desse conta da importância de trazer a obra
de Terrena para essa pesquisa, nossos caminhos já haviam se cruzado duas vezes.

24
A peça contemplada pelo IV Edital CCSP de Dramaturgia em Curtos Formatos pode ser encontrada para
leitura digital no site scribd: https://pt.scribd.com/document/394306066/CCSP-publicacoes-livreto-as-tres-
uiaras-pdf. Acesso 20 ago. 2021.
25
Terno retirado da live Transpofágica realizada em 19 de maio de 2020, no canal da atriz Renata Carvalho,
quando, no diálogo travado entre Carvalho e Ave Terrena, foi discutido o tema: Narrativas do corpo trans nas
artes. As artistas, ambas trans e atuantes na cena cultural paulistana, referem-se ao termo “travaturgia” como
sendo a dramaturgia feita por corpos trans, sobre corpos trans.
61

A primeira, quando a conheci em 2013, eu estava então no meu primeiro semestre da


graduação em Artes Cênicas, ela tinha acabado de trancar o curso, ainda assim nos esbarramos
em algumas festas e reuniões em Barão Geraldo. A segunda vez, seis anos depois, no começo
2019, meu primeiro ano de mestrado, conheci o texto As 3 Uiaras de SP City quando participei
do Núcleo de Dramaturgia do SESI-SP (Núcleo do qual ela também havia feito parte anos
antes). Naquela época, Ave Terrena não fazia parte da minha pesquisa, mas foi conversando
sobre a peça com um amigo que temos em comum que compreendi a importância de trazer este
texto para minhas análises.
Só então, quando passei a estudá-la, e ainda mais intensamente quando a entrevistei,
que tomei conta da potência artística múltipla que Terrena traz consigo: atriz, poeta, travaturga,
diretora e professora.
Para a artista, o desempenho de diversas funções dentro do campo artístico-pedagógico
extrapola o âmbito de interesse pessoal, é uma questão política. Terrena entende a importância
e potência de seu corpo se fazendo presente nos mais diversos espaços. Isso não deve ser
compreendido como uma limitação da experiência e fazer artístico à sua identidade de gênero,
“(...) eu sou uma artista, entre muitas coisas, travesti.”26, mas à uma posição política de se fazer
presente e ocupar posições historicamente negadas à corpos trans.
Afinal, a violência que a pessoa trans sofre no Brasil opera através de múltiplas facetas.
A negação do direito à existência destes corpos fica evidente ao encararmos os números de
assassinatos27 dessa população no país, mas esta política de extermínio se inicia em ações muito
anteriores, como por exemplo, a expulsão precoce da casa dos familiares, a alta evasão escolar,
a falta de oportunidade de emprego, e a consequente marginalização deste grupo, que
recorrentemente encontra na prostituição a fonte de sobrevivência. Não à toa, segundo pesquisa
realizada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2018, 90% da
população transgênero vivia da prostituição.

26
Terrena em entrevista concedida a pesquisadora no dia 21 de fevereiro de 2020.
27
Considero importante ampliar o conceito de assassinato. Segundo dados recolhidos pela ANTRA (Associação
Nacional de Travestis e Transsexuais) em dossiê sobre violência, para além do número exorbitante de crimes de
ódio contra a população trans no país, o Brasil é responsável por 41% da morte de transexuais no mundo, sendo
a grande maioria, transexuais do gênero feminino que trabalham com a prostituição. Existe também o assassinato
social, sendo o suicídio o maior exemplo deste tipo de prática, amplamente efetuada entre transexuais do gênero
masculino. A tentativa de suicídio está fortemente ligada à exclusão e violências que estes corpos sofrem
socialmente, não é em vão que a população T têm usado o termo “suicidado” para referir-se a causa mortis de
jovens como o artista paulistano Demetrio Campos, que tirou sua vida em 17 maio de 2020. O termo foi difundido
pelo poeta Antonin Artaud em seu livro Van Gogh: O suicidado pela sociedade, de 1947, em que reflete
justamente sobre a responsabilidade social no suicídio do artista.
62

A legitimidade da prostituição como profissão não está em discussão aqui, até porque
a criminalização do ofício é apenas mais uma forma de precarizar ainda mais a vida das
pessoas, sejam elas cis ou trans, que encontram na rua a única forma de sobrevivência. No
entanto, é necessário compreender que, para a maioria destas trabalhadoras, fazer programa
não é uma questão de escolha, mas sim o único ofício que lhes resta para sobreviver. Digo isso
com o intuito de evidenciar que, longe de ser uma questão de privilégio destes 10% da
população trans que consegue não ter a prostituição como fonte de sobrevivência, o direito
legal de serem aceites no mercado de trabalho, e ter condições de vida dignas é um dos tantos
direitos suprimidos a essa parcela da população brasileira. Afinal qual o tipo de política de
inclusão que existe para pessoas trans se a exclusão se inicia desde o espaço familiar? Como
adentrar ao mercado formal de trabalho sem o direito a educação básica garantido?28 Agregada
à discussão de gênero temos os conceitos de raça e classe que nos auxiliam a compreender
quais são os corpos mais marginalizados.
Esta breve digressão serve de pano de fundo para compreender os constantes
entroncamentos entre a trajetória pessoal e profissional de Ave Terrena e a dimensão política
e social de seu trabalho. A escrita, que surge ainda na infância como forma de expressão de
uma criança tímida e fechada, um escape do mundo real, se entrecruza em determinado
momento com o teatro — ainda que talvez de maneira forçosa, visto que é senso comum pais
colocarem suas filhas e filhos no teatro na busca por fazer com que eles percam a timidez.
Eu lembro de 15 anos (sic), escrevendo as coisas, e sempre parece um texto
literário, mesmo que seja pra ser um outro texto. E é um lugar que eu sempre
encontrei pra me conhecer, a escrita, também. Só que eu sempre fiquei muito
fechada em mim, tipo criança problemática. Aí, era muito fechada, ficava muito só
nos livros, sabe, assim…. Tipo, fugia do mundo. Eu usava a coisa da literatura como
uma fuga, eu acho. É a avaliação que eu faço do meu passado. Aí me botaram no
teatro...Aí, é uma loucura, porque no teatro demorou anos e anos e anos, mas
essa identidade que eu sempre vivi nos textos, nesse lugar que eu criava na escrita
passou a ser uma realidade, e passou a criar referências para que as outras pessoas
também possam se afirmar sem tanta… A gente é preconceituosa com a gente
mesma, né, muitas vezes... Toda essa transfobia ela tá internalizada porque ela
vem de uma estrutura. Então, você passar por esse processo de percepção de
gênero, você pratica violências contra você. Nos pensamentos, no que você acha,
no que você julga, do que você faz, e aí o teatro é o lugar, no coletivo, onde você
consegue perceber que não, que eu não tô maluca, sabe? Não tô maluca. Tem um
monte de gente aqui comigo. (TERRENA, em entrevista concedida à pesquisadora
21. fev. 2020)

28
A psicóloga e pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus usa “Apartheid de gênero”, numa tradução do termo
cunhado pela advogada Martine Rothblatt em seu livro “Apartheid of Sex” - a distinção falaciosa criada dentro
do binarismo sexual entre homens e mulheres, que garante não apenas uma “supremacia masculina” dentro da
sociedade como também a exclusão da possibilidade de existência de corpos trans. Disponível em: <
https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/2150>.
63

O processo de empatia e identificação que o teatro, como arte da presença e do coletivo,


gera entre seus praticantes, e também entre artistas e público é visto por Terrena como
fenômeno crucial para compreensão de sua identidade e não patologização de si. Ainda assim,
o teatro, seja enquanto fenômeno cênico-espetacular, seja dentro do contexto de ensino (através
de cursos livres, técnicos e universitários) — tal qual espelho da sociedade que vivemos — é
um espaço ocupado por determinados tipos de corpos e histórias: refiro-me ao corpo branco,
cisgênero e heterossexual. E, ainda que uma mudança de paradigma tenha se iniciado dentro
do campo teórico, especialmente a partir das discussões levantadas pela filósofa Judith Butler
quanto ao conceito de “corpo abjeto”29 como sendo “todo tipo de corpos cujas vidas não são
consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante.” (BUTLER. In.
PRINS, MEIJER, 2002, p. 161), na prática a representação artística ainda parte de padrões
hegemônicos.
É um lugar hegemônico, né (o teatro). E a gente é contra hegemônica,
necessariamente. Eu posso tá sem falar nada, eu posso tá até concordando com
o que tão dizendo, eu sou radical. Só porque eu sou quem eu sou. Eu posso estar
sendo muito diplomática, muito, e eu tento ser. Às vezes a pessoa pega alguma
coisa que eu falei, tira do contexto e se sente ofendida. E eu tô numa boa. Eu
sempre sou vista nesse lugar radical e aí, por isso, contra hegemônica. Só que aí a
gente assume isso como grupo de teatro, ideologicamente mesmo, a gente é
contra hegemônica. Além de eu ser travesti e de estar fora das pessoas
consideradas capacitadas a estar nesse mundo da arte, né. Além disso tem o fato
de eu assumir uma postura política mesmo, coletivista, do teatro, que vem do
teatro de grupo, vem do Oficina, vem do Arena, vem do Vianninha, é um monte
de homem, tudo mais, aí eu fui achando a Consuelo de Castro, fui achando autoras
também, mas tem esse lado que é muito machista, mas ao mesmo tempo eu
tento sempre ver de uma forma complexa. Porque eu também não quero ter que
me resumir na minha identidade, eu não quero ter que comercializar minha
identidade pra poder ser pautada em qualquer lugar. Porque eu sou uma artista,
entre muitas coisas, travesti. Isso quando eu dou aula, eu tento chamar atenção
mesmo. A gente tem que ver a diversidade de cada tradição artística, de cada
pessoa, de cada artista, né. Então eu vejo que tem um machismo muito grande da
dramaturgia da tradição chamada de esquerda, de teatro engajado, político no
Brasil. Mas eu vejo que tem muitos valores artísticos lá que eu não quero ter que
me desfazer deles. A gente quer, pelo contrário, aprofundar eles e tornar eles mais
potentes de uma forma que não seja preconceituosa como foi muitas vezes…
Porque eu acho o teatro uma coisa ótima. Maravilhosa. Eu amo, sou apaixonada
desde sempre por isso. Então eu quero que esse poder, essa potência esteja viva.

29
A universalidade do sujeito humano como o homem branco cisgênero, heterossexual, classe média tem sido
questionada por outras tantas correntes de pensamento. No campo do feminismo, poderia citar o feminismo negro
que questiona a universalidade da mulher branca de classe média como sujeita universal do feminismo. A fala
proferida por Soujourner Truth, mulher negra, estadunidense e ex-escravizada, “Ain’t I a Woman”, durante a
Convenção de Mulheres de 1851 no estado de Ohio é um marco precursor dessa discussão. Discurso disponível
em: < https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/>. Outras discussões envolvendo, por
exemplo, a questão da gordofobia e do capacitismo poderiam servir de exemplo à discussão do acesso e da
representação de corpos não hegemônicos, ou abjetos, pela arte e pela mídia. No entanto, escolheu-se por usar
Butler neste momento pelas grandes contribuições que a filosofa trouxe para a Teoria Queer.
64

Essa pluralização da experiência teatral — que como evidencia a dramaturga no excerto


acima, nada tem a ver com negar a tradição teatral construída até então, mas sim com o ato de
agregar diferentes vivências e corpos a um espaço que ainda é bastante excludente, num
processo, que discutiremos mais afrente, apelidado de transpofagia — é uma tarefa árdua e
deve ser realizada a partir de diferentes frentes. A luta pela representatividade é maior do que
o ato de colocar em cena diferentes corpos e/ou abordar narrativamente histórias que costumam
ser invisibilizadas, para além, tem a ver com o agenciamento dessas pessoas dentro da própria
produção. Como explica Ave Terrena em:

Além de ter a dimensão do que a gente narra. A dimensão de quem narra, tem
a dimensão do olhar que a encenação lança sobre esse texto. Porque o texto,
até certo ponto ele define coisas, e às vezes nem define, né? (...) Como
dramaturga, uma coisa que eu sinto também é a dificuldade... Às vezes, eu
sinto falta de diretores trans, por isso eu comecei a dirigir também. Porque a
gente narra de várias formas. O texto dá indicações. No texto eu posso exigir
coisas, como eu fiz nas Uiaras, “Essas duas personagens travestis têm que ser
interpretadas por atrizes trans, travestis até 2047, que é trinta anos do pacto
do grande acordão com a cisgeneridade. Porque se ficarmos trinta anos
representando nós mesmas, muda a situação da próxima geração. Isso é
verdade, porque o simbólico também é concreto, o simbólico tem reflexos
reais. (TERRENA, em entrevista concedida a atriz Renata Carvalho, 19 mai.
2020)

Terrena traz à discussão essa relação entre o plano simbólico e o plano material,
enfatizando a importância e repercussão da representatividade no primeiro como ferramenta
para mudanças concretas no segundo. Para que isso ocorra, é necessário que — além de trazer
à cena essas histórias que por tanto tempo foram invisibilizadas — esses indivíduos possam ser
agentes na produção e criação destes universos simbólicos. Em outros termos, não basta apenas
trazer para o campo ficcional narrativas que abordem a transgeneridade, mas compreender a
urgência e necessidade da presença desses indivíduos em todo o processo de concepção,
criação, execução e disseminação dessas obras.
A artista-pesquisadora-pedagoga Dodi Leal elabora sobre o impasse entre alteridade e
representatividade dentro das artes da cena e da pedagogia em artes. Em coro com Ave Terrena,
Leal questiona a máxima do teatro enquanto espaço último do exercício de alteridade, onde
“posso ser quem eu quiser”, “a experiência da alteridade como poética normativa da pesquisa
de criação teatral não apenas essencializa o que é possível no fazer teatral como acaba por não
reconhecer quando esta mesma alteridade promove uma reflexão sobre o eu, sobre o
representativo.” (LEAL, 2017, p.6). A representatividade surge como novo paradigma teatral
no século XXI, e apesar dos olhares e debates recaírem facilmente na atuação, visto que é o
65

corpo da atriz/ator que está em cena, e o transfake é rapidamente identificado, é urgente que se
amplie o olhar da representação para o processo de criação como um todo – a demanda por
representatividade é histórica e material, assim como o é o seu apagamento – e para o ensino,
As iniciativas formativas a respeito destes tópicos ganham nos valores
dialógicos e humanistas um potencial de base para agir na transformação.
Com isso, não se corrobora a condescendência com discursos desrespeitosos
com relação aos direitos humanos, mas se supõe que é possível agir diante de
atos e discursos preconceituosos a partir de ações consistentes e éticas quando
se tem estrutura e apoio institucional. (LEAL, 2017, p.9)

Seguindo esta lógica, podemos compreender a importância da docência para Ave


Terrena, pois, para que isso possa ocorrer, é necessário que haja também dentro do campo
educacional (me refiro aqui à pedagogia do teatro especificamente) espaço para que diferentes
vozes sejam ouvidas e tenham a possibilidade de aprender a criar. Sendo assim, a potência
simbólica da presença de Ave Terrena nesses espaços formais de ensino, ocupando o papel de
educadora, age de forma transformadora para alunos e alunas que, fugindo do padrão
hegemônico passam a ter alguém que as represente ocupando o lugar da docência e trazendo
suas vozes para dentro de espaços formais de criação, ensino e disseminação do pensamento e
criação teatral.
A gente aprende a ser transfóbico, todo mundo, né? A gente aprende como
excluir as pessoas. E um dos primeiros lugares que a gente aprende é na
própria família. A gente aprende sendo excluída ou aprende vendo outras
pessoas passarem por coisas parecidas. O segundo, tem a igreja no meio, mas
tem a escola. A escola. É na escola que um monte de opressões são
naturalizadas. É na escola que tudo quanto piada, que tudo quanto é visão
sobre o que é o corpo e a narrativa de uma pessoa trans é negada a ela de um
jeito muito covarde, quando a pessoa tá entendendo muita coisa, entendendo
o próprio corpo. (...), mas isso em teatro acaba acontecendo também. Porque
a escola é um lugar que concretiza a exclusão e a distribuição desigual do
prestígio, da legitimação dos saberes. Porque, não é porque não
estivemos em escolas, em lugares de formação regulares, que nós não
temos saberes, pelo contrário, temos e muitos!30 (...). Tantos exemplos que
a gente poderia dar, de agrupamento de pessoas trans, travestis, que se reúnem
pra ficar vivas e nessa vida surge uma cultura junto, e essa cultura que precisa
estar dentro dos espaços de formação também. Porque a gente estando lá, e é
isso que modifica o meu corpo ser um corpo docente, também. Além de um
corpo travesti, um corpo questionador, um corpo transgressor, ele também é
um corpo docente. Isso também parece uma contradição se você for pensar
(...) O que a gente tá fazendo é o que todo mundo queria fazer, do teatro, que
é um encontro vivo do presente que transforma as relações em volta. Só que
boa parte do teatro tá meio empoeirada. (TERRENA em entrevista concedida
a atriz Renata Carvalho, 19 mai. 2020)

30 Grifo meu.
66

Considero importante enfatizar nesta fala de Terrena a responsabilidade da escola como


espaço que “concretiza a exclusão e a distribuição desigual (...) da legitimação dos saberes”,
pois existe uma desigualdade abissal entre os saberes legitimados em espaços formais de ensino
e os saberes cuja entrada nesses mesmos espaços é negada. Contestando essa estrutura
hegemônica do que é digno ou não de adentrar o meio tradicional de ensino, a dramaturga
coloca em posição de equidade a importância e valor da cultura e das manifestações artísticas
nascidas e construídas na rua, na noite, em agrupamentos e festas, uma cultura que surge como
técnica de sobrevivência, e traz para a sala de aula essa pluralidade de saberes e manifestações
artísticas ainda muito pouco abordadas no ensino tradicional.
Ave Terrena tornou-se docente da Escola Livre de Teatro de Santo André em 2019,
coordenando o Núcleo de “Texto e Cena”, que em 2020 recebeu novo nome:
“Performatividades Transversais”, e ministrando a disciplina “Dramaturgias da Oralidade e da
Escrita”. Como os nomes sugerem, o trabalho que Terrena vem desenvolvendo dentro da ELT
gira em torno da relação de criação de texto e cena, e também da performance.
A artista propõe uma vivência de ensino bastante expandida e autoral, garantindo a
liberdade criativa de alunes, e identifica neste processo algumas particularidades dentro do
Núcleo que coordena, como por exemplo, o interesse pela exploração de espaços públicos, do
ambiente noturno e festivo e da performance, interesses estes diretamente ligados à proposta
da docente de expandir a concepção de quais são e onde estão os saberes e inspirações para a
criação artística. A dimensão do corpo enquanto campo de batalha antiCIStemica, a
performatividade no ensino, a arquitetura de narrativas que vão contra a ordem, o espaço e o
tempo hegemônicos são “marcos fundamentais no sentido de redimensionar estruturas sociais
que se sustem na desigualdade” (LEAL 2020, p.4). Se a estrutura pedagógica está
fundamentada numa disciplina de gênero que recusou historicamente a existência de
individualidades que dissidem da norma cisgênera, é necessária a criação de um novo
paradigma mais inclusivo, indisciplinar, contra hegemônico.
Como consequência de toda sua postura política frente ao ensino das artes — seja na
busca por representatividade simbólica, como também na ampliação das referências para
criação artística — a dramaturga reforça em entrevista uma característica bastante presente
dentro de seu núcleo: a diversidade de identidades presente no corpo discente.
E eu sinto necessidade. Necessidade mesmo, assim, de formar gente… Eu não tive
isso, todos os lugares de educação por onde eu passei, em algum momento foi
hostil pra mim, sabe? Então eu quero proporcionar pras pessoas que estão
chegando agora, que são mais novinhas, um lugar em que elas já se preparem pra
encarar esse mundo do teatro, esse circuito teatral que é muito hostil também,
67

pra que elas tenham esse acolhimento, pra que elas consigam estudar, gente. Tem
que estudar, né! Não adianta, as coisas levam tempo. Tem gente que, nossa, tem
aquele talento exuberante, mas aí tem a coisa da vocação, aprender a chegar no
horário, é difícil isso, e o teatro precisa, precisa estar junto para fazer teatro. E aí
como é muito precarizada a vida, isso é muito difícil. E, lógico que tem as questões
de fora pra dentro, que são sociais, impedimentos mesmo, restrições pela via
financeira, pela via da violência direta, física, psicológica, moral, a desestrutura que
tem muitas vezes do psicologismo, da nossa cabeça como pessoas trans é muito
difícil se entender nesse lugar. Que o tempo todo dizem que você não é o que
você é, e você sabe, mas aí você fica em dúvida. É todo o processo. Ainda mais
nesse momento, chegando nos vinte anos… Que é mais ou menos a faixa etária
lá que tem comigo, entre vinte e vinte e cinco. Nossa, são muitos desafios, e aí
você viver isso dentro do teatro onde seu corpo tá exposto é uma luta, então eu
acho que não tem como eu não tá lá, sabe? Seria muito egoísta da minha parte.
Tive esse acesso, vou ficar usufruindo dos meus privilégios e pronto, tchau, beijo.
Eu acho que eu teria até mais facilidade, no sentido de conseguir elaborar projetos
com calma, chamar pessoas que talvez dessem conta de (entre aspas)
“exigências”, responsabilidades do teatro, mas assim acho que talvez a gente
continue contando mais ou menos a mesma história e das mesmas formas, com a
mesma estética e que pra mim, pra que a estética seja transformada, estética não
é uma coisa pura, isolada da gente, ela é a gente, né? É o que a gente constrói.
Então, acho que a gente tem que trazer as pessoas, então tem esse processo
mesmo da pessoa ir se acostumando, conseguindo se organizar dentro de si,
diante de tantos atravessamentos, violências, impedimentos, questionamentos,
papapá (sic), estigmas. Se organizar dentro de si, e se organizar na vida, porque o
teatro é duro (...)

A fala acima sintetiza bastante a luta política que a dramaturga pratica dentro do campo
didático, marcada por uma generosidade e compreensão para com alunes tanto dentro do
processo de criação artística como também de afirmação e aceitação de si. Como resultado
deste trabalho meticuloso de formação artístico-social, no início de 2020, a artista trouxe para
cena, na estreia do experimento performático Segunda Queda, inspirado em seu livro de
poemas homônimo, alunes do seu curso da ELT. A performance, que contava com a
participação dos estudantes do Núcleo de Texto e Cena do ano de 2019 e estreou em fevereiro,
no Teatro Oficina, exemplifica a fala acima, no que tange a importância que a artista dá para o
ato de trazer para a experiência teatral essas pessoas em processo de formação.
Segunda Queda é o primeiro livro de poesias lançado pela autora, uma coletânea de
poemas e ilustrações escritos desde sua adolescência. O título da obra faz referência ao livro
Queda para o Alto do poeta Anderson Herzer, suicidado aos 20 anos de idade, em 198231. Na

31
Eu decaí, eu persisti
tentei por todos os meios ser forte.
Lutei contra o tempo,
chorei em silêncio
gritei seu nome ao vento.
Sou filho da gota
fui templo de miséria
68

poesia de Ave Terrena identificamos alguns elementos que também se fazem presentes em sua
dramaturgia, especialmente em se tratando do trabalho d’As 3 Uiaras, tais como: o jogo lírico
de palavras, o uso frequente da linguagem oral, termos do pajubá32 e a musicalização.
Analisando a sua trajetória fica evidente a relação próxima e repleta de
entrecruzamentos que a autora estabelece entre a escrita literária, de forte caráter poético, e o
teatro, especialmente o teatro de grupo, de viés bastante político33. Tendo cursado cinco
semestres da faculdade de Artes Cênicas na Universidade Estadual de Campinas, Terrena
voltou para São Paulo sem se formar e em 2014 adentrou o Núcleo de Dramaturgia SESI-

meu pai, um perdido


minha mãe, uma megera.
Cresci vendo prantos,
dormi em meio à mata
chorei gotas sanguíneas
sou o pecado, sou a traça.
Eu ouvi um grito de desespero,
vi a lenta corrupção,
vi o olhar do corruptor,
vi uma vida na destruição
eu vi o assassinato do amor.
Tentei, venci, a vitória conquistei
porém um dia faleci.
Hoje estou em sua lembrança
eu sou sua alma oculta
e serei sua esperança. (HERZER, 1987, p.19)
Anderson Herzer nasceu em 1962 no interior do Paraná, após o assassinato de seu pai e a morte de sua mãe ele se
muda com os tios para São Paulo. Tendo vivido um período de violências e abusos físicos e sexuais, por parte de
seu tio, Herzer é enviado para a Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (FEBEM) onde passa a escrever
poemas e sua autobiografia (A Queda para o Alto). Pouco antes de sua morte, Anderson foi apadrinhado pelo
político Eduardo Suplicy, que aceitou se responsabilizar pelo jovem como única forma de tirá-lo da instituição,
visto que Herzer nunca cometeu sequer um crime. No dia 10 de agosto de 1982, Anderson Herzer se lançou do
viaduto 23 de maio, foi encontrado e levado ao Hospital das Clínicas (SP) ainda com vida, mas não resistiu aos
ferimentos da queda. Disponível: < https://midianinja.org/juanmanuelpdominguez/eduardo-suplicy-apresenta-
anderson-herzer-ele-queria-que-as-pessoas-fossem-mais-humanas/> . Acessado em: 01 ago. 2020
32
Dialeto criado pela comunidade LGBT que consiste no sincretismo entre termos da língua portuguesa e do
iorubá. A linguagem possui forte caráter político, sendo usada muitas vezes como forma de proteção entre a
comunidade contra a polícia. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-
emprego/noticia/2018/11/enem-2018-conheca-a-origem-do-pajuba-dialeto-de-gays-e-travestis-citado-no-exame-
cjo4maix90ben01pih135nzhn.html>
33
Ave: (...) E eu acho que o teatro é o melhor lugar pra isso, porque é o lugar onde o texto é uma presença. Ele
não é uma coisa ali.... Eu gosto de ler livros e fruir esse lugar literário, mas eu acho que quando esse lugar literário
está presentificado, ele tem uma força que a gente não consegue quantificar. E aí, é engraçado isso, porque eu
sinto que a poesia que eu escrevo ganha força, e as pessoas conseguem se conectar com ela, mesmo ela sendo
difícil, sabe? Às vezes até hermética e com palavras difíceis, uma forma atravessada, assim. É... como chama,
cortada…
Sofia: Fragmentada?
Ave: Fragmentada. Quebrada.... Mas eu vejo essas poesias, nossa, em tantos lugares as pessoas falando elas e
acho que é porque tem esse lugar do teatro onde o texto vira uma ação, uma presença mesmo. É o limiar entre um
e outro, né, assim… E eu amo esse lugar. Eu amo mesmo. E essa percepção veio no teatro, pra mim, sabe? Dessa
musicalidade possível do texto presente, veio no teatro e a poesia, nossa. E na poesia junto, porque é como eu
falei, uma coisa tá sempre misturada com a outra. É bem poético mesmo, mas eu sempre escrevi poeticamente.
(TERRENA, em entrevista concedida à pesquisadora 21. Fev. 2020)
69

British Council, à época coordenado por Marici Salomão, onde desenvolveu a peça O amor
canibal. No mesmo ano ela criou o Laboratório de Técnica Dramática (LABTD) juntamente
com Diego Moschkovish, Sophia Castellano e Diego Chilio, no qual passou a atuar
principalmente enquanto dramaturga. O LABTD possui um forte caráter político, que visa
pensar o teatro enquanto práxis política e ferramenta de revolução do ser social. Dentre as ações
artísticas do grupo está o Mural da Memória, projeto do qual As 3 Uiaras faz parte, um conjunto
de peças e ações performativas que visa trazer à cena o período da Ditadura Militar Brasileira.
Esse entrecruzamento entre teatro, literatura e ensino é coroado com a conclusão da
graduação em Letras na Universidade de São Paulo no primeiro semestre de 2021. Na época
da entrevista que realizei com a artista, em fevereiro de 2020, Ave mencionou que estava em
vias de terminar o curso e, refletindo sobre a importância de ocupar este espaço de ensino
formal e tradicional que é a Universidade como aluna, a artista enfatiza esse processo histórico
de privação e negação de determinados corpos e identidades dentro do ensino superior
(processo esse que tem caminhado, ainda que a passos lentos, para uma mudança com a
implantação e ampliação do sistema de cotas, por exemplo)
Faço faculdade de Letras na USP. Outro desafio dessa vida. É muito difícil lá às
vezes. Mas eu gosto muito de estudar, eu sempre gostei. Então eu acho
interessante. Porque eu também vou pegando uma propriedade de como falar
sobre o meu trabalho. Porque além de fazer a gente tem que ser ótima falando do
que a gente faz. Se não, já não consideram a gente. Tem que ser sempre
excelente, no mínimo. O que eu acho ótimo, por um lado. Porque eu também já
preparo os aprendizes da ELT que eu dou aula, pra já assim “olha eu queria que
você tivesse o direito de ser relapsa, como qualquer estudante tem, né, na
verdade. Mas você não tem esse direito, infelizmente, sinto te dizer e é por causa
da transfobia. Se você não for excelente, vão te questionar. Vão te questionar
muito mais do que outras pessoas. Vão dizer qualquer coisa, que você quer se
aparecer, que você é preguiçosa, que você não sei o quê...que você é agressiva,
muitas coisas. Mas, se você souber como falar e como fazer... Você tem que ser
transpofágica34, né, que a gente chama”.

A fala de Ave Terrena reverbera um fato que também é referido por outras artistas e
pesquisadoras trans, como Renata Carvalho e Dodi Leal, a de que da travesti, da mulher
transsexual, não se espera intelectualidade. Existe uma superioridade intelectual cisgênera e
branca imposta socialmente que relega às demais ao plano de objeto de estudo, mas nunca de
sujeitas produtoras de pensamento crítico. A transpofagia torna-se um mecanismo de

34
O termo transpofagia foi cunhado pela atriz Renata Carvalho e faz referência ao movimento antropofágico,
criado por Oswald Andrade e Tarsila do Amaral durante o período modernista brasileiro, a palavra adere à ideia
de absorver da cultura tradicional ocidental, branca e cisnormativa tudo que nela há de potência para então
transformá-la.
70

legitimação, uma ferramenta de afirmação de existências silenciadas e, mais, um mecanismo


de disputa por espaço, seja na academia, na arte e na vida cotidiana.

II.II. Dramaturgia Muralista – A encruzilhada entre o passado e o presente

Para começar a escrever sobre As 3 Uiaras de SP City é preciso antes contextualizar


este texto dentro da produção dramatúrgica da autora. Isto porque a peça, ainda que possua sua
história fechada em si, faz parte de um projeto maior, que se iniciou há cerca de seis anos em
conjunto com o Laboratório de Técnica Dramática, o Mural da Memória.

O projeto consiste na criação de uma trilogia que aborde, a partir de diferentes


perspectivas e recortes temáticos, o período da Ditadura Militar Brasileira. Cada peça recebe,
para além do título, um subtítulo que consiste em um barbante de determinada cor, e um fio
narrativo próprio. Juntos, eles formam o emaranhado do Mural da Memória, uma maneira de
abarcar um período histórico amplo e repleto de obscurantismos de forma mais recortada e
aprofundada. Em As 3 Uiaras temos o “Barbante Roxo do Mural da Memória”.
Essa pesquisa dentro do Laboratório de Técnicas Dramáticas se iniciou em 2014 com
a leitura de textos dramáticos e não-dramáticos que abordavam o período fascista alemão. Na
época, a ideia do grupo era trabalhar com a temática da violência e abuso de poder a partir de
textos e do imaginário europeu, porém a dramaturga relata que desde o início do processo
sentiu dificuldade em traçar paralelos, aproximar a questão à realidade brasileira (irônico, para
não dizer assustador, pensar que quatro anos mais tarde o avanço de um conservadorismo com
requintes neofascistas no poder seria a realidade do Brasil).
Ave: (...) Eles estavam estudando o Terror e Miséria no III Reich, só que era tudo tão
distante pra gente na época, e hoje é tão próximo, foi uma loucura, né?
Sofia: É, bem assustador.
Ave: É, mas a gente lia coisa sobre SS, SA que a gente não entendia que era milícia,
polícia, enfim, era muito distante, fascismo… Não dava nem pra estudar, assim.
Que o Diego trabalha com análise ativa do Stanislaviski, ele estudou na Rússia, fala
russo, traduz, tá até traduzindo o Stanislaviski do russo pro português. Então, ele
tem toda essa pesquisa que ele faz. Então, e era muito difícil se colocar naquela
situação dos personagens, porque era muito longe, tanto pelas coisas climáticas,
casaco, frio, coisas mais banais, até as coisas mais profundas, políticas. E aí eu falei,
nossa tá muito difícil assim e eu queria trazer mais pra perto da gente, pra eu poder
escrever esse texto.

Foi então que Ave Terrena sugeriu ao grupo a leitura do clássico de Eduardo Galeano,
As veias abertas da América Latina, numa tentativa de aproximação da temática do
autoritarismo e da violência com o contexto latino-americano.
71

Foi uma escolha acertada. Primeiramente porque, por mais que o atual contexto político
de nosso país deixe escancarada as aproximações e identificações com a política implementada
em países como Alemanha e Itália no século XX, fazendo com que soe quase ingênua a
dificuldade de se estabelecer uma ligação entre os dois momentos históricos, é importante
relembrar que este avante totalitário no Brasil se tornou gritantemente evidente e legitimado
após o ano de 2016, com o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. Em idos de 2014, quando
o grupo começava a pesquisar, o Brasil começava um levante de indignação política, porém
ainda estava inserido numa realidade um tanto quando mais progressista e democrática.
Segundamente, pois não somente é legitimo, como providencial, estudar as
especificidades do processo colonizatório na América Latina para compreender as
particularidades dos períodos ditatoriais e/ou totalitários dentro deste continente. Sermos um
continente de ex-colônias europeias, cujos colonizadores exerceram seu poderio através de
processos violentos de escamoteação, exploração, escravidão e dizimação de povos originários
agrega complexidades quando, buscando analisar o nosso passado próximo, abordamos estes
períodos ditatoriais.
A obra de Galeano levou Terrena ao realismo fantástico, e a referências como os autores
Gabriel Garcia Márquez e Julio Cortázar. Foi nesta linguagem que a autora encontrou
arcabouço para começar a desenvolver a primeira peça da trilogia dos barbantes: O corpo que
o rio levou: dois barbantes trançados: primeira parte do Mural da Memória (2017).
E aí, quando eu sentei para escrever a minha primeira proposta de texto eu pensei,
tá próximo, já tá mais próximo, né? Mas o que será que disso tudo que a gente tá
vendo do realismo mágico tem hoje? Porque pra escrever eu tenho uma urgência
muito de escrever algo que esteja pulsante. E que a gente transforme os lugares
por onde a gente passa, as pessoas que assistem à peça, que não seja uma coisa
distante, sabe? De uma beleza que não existe nessa realidade, uma beleza
estética. E que pode passar até por temas duros, e eu acho que tem que passar,
porque nossa vida é muito dura, muitas vezes. E aí eu falei, eu nasci no mesmo dia
que a Dilma Rousseff, 14 de dezembro, e aí na época que lançou o Relatório da
Comissão Nacional da Verdade era perto de dezembro também, eu tava super
movida por isso, meio, sei lá, não tem nada a ver, mas essa coisa do mês de
dezembro, sabe? E dela ter nascido nesse dia, e ela ser mulher, ser presidenta e
tal. E lançou esse relatório e eu fui olhar, fui ler porque é um tema que eu sempre
me interessei, a ditadura militar. E aí eu falei, Gente tá aqui o realismo mágico. É,
porque o Garcia Márquez quando ganhou o Nobel tinha um texto que foi muito
base que ele falava assim: Vocês na Europa, aqui na Suécia dizem que nosso
realismo é mágico, né, que é fantástico, mas ele é a própria realidade né? Porque
tem a coisa lá do extermínio dos trabalhadores da empresa bananeira em
Macondo, dos 100 anos. Aquilo ali é a realidade, mas quando você bota em um
livro desse jeito parece que ela é fantástica, parece que ela é uma coisa que a
gente tá criando, um mundo distante, mas é o próprio mundo. Aí eu falei, nossa,
essas histórias da ditadura militar são tão absurdas, essa violência toda que é tão
sistemática. Ela é tão brutal e tão desproporcional, ela não faz sentido em nada,
72

em nada assim. E ela é, ela parece absurda, parece fantástica até mágica no
sentido que parece que não é a realidade.

O corpo que o rio levou, como explicitado pela dramaturga, teve como matéria-prima
o Relatório da Comissão da Verdade, fundada no ano de 2011, durante o primeiro mandato da
presidenta Dilma Rousseff. Na peça a dramaturga explora dois dos barbantes que formarão a
Dramaturgia Muralista, são eles os barbantes verde e amarelo.
A peça, escrita entre o golpe de 2016 e as eleições presidenciais de 2018, já aponta em
seu prefácio uma reflexão sobre as mudanças que começavam a ocorrer no país e,
curiosamente, propõe o entrelaçamento de dois tempos, duas “ditaduras”. O primeiro tempo, o
barbante verde, ocorre em 1971, durante a Ditadura Militar Brasileira, o segundo tempo,
denominado de barbante amarelo, se passa em um futuro próximo (a dramaturga explicita na
rubrica inicial “Tempo: daqui a quatro anos”, o que nos idos 2017, quando a peça foi encenada,
correspondia a 2021).
No tempo futuro, a peça narra a história de uma atriz que pretende fazer parte de uma
nova montagem do clássico shakespeariano, Hamlet, a partir da perspectiva de uma Ofélia
latino-americana. Então, para além das duas camadas temporais, também encontramos um
metateatro, referenciando a clássica peça do teatro ocidental que aborda a relação de poder e
vingança dentro do que foi, à sua maneira, um golpe de Estado também. Já em 1971, temos a
transmissão de um programa de rádio entre três personagens que narram, tal qual uma partida
de futebol, os acontecimentos e ações das forças armadas brasileiras e da polícia militar contra
a população.
O corpo que o rio levou inaugura a Dramaturgia Muralista de Ave Terrena e aborda a
temática da ditadura militar a partir de um referencial mais amplo e abrangente, talvez até
mesmo, mais comum: a questão da violência policial e das perseguições a uma esquerda, ou
oposição, generalizada. Acho interessante enfatizar a escolha pelas cores dos barbantes que,
como tudo dentro deste projeto emaranhado, é feita de forma sagaz. O verde e amarelo como
símbolo do patriotismo foi e é, vezes e vezes, reiterado pela direita brasileira. Torcer pelo
Brasil, seja nas partidas de futebol, seja na luta conservadora que alega que “A nossa Bandeira
jamais será vermelha”, usurpa o colorido da flâmula brasileira para um lado do debate político.
E isso não é de hoje. Ao colocar cada fio temporal da dramaturgia com uma cor, formando um
duo indissociável, Ave Terrena poeticamente reitera que temos vivido mais do mesmo, como
coloca em seu prefácio: “7. O terrorismo de Estado, os desaparecimentos forçados, as prisões
arbitrárias, a perseguição seletiva e a censura cultural eram encarados como histórias ouvidas
73

sobre tempos passados. 8. Nada mais errado. Vivemos e somos o que nossos antepassados nos
fizeram.” (TERRENA, 2017, p. 9).
Para além, a escrita de O Corpo que o Rio Levou revelou à Terrena a profundidade do
universo que ela e seu grupo embarcavam ao escolherem por abordar este assunto.
(...) a gente não consegue numa peça de teatro dar conta de uma totalidade, de
um período histórico. Seria muito pretensioso, nem acho que dê pra fazer isso...,
Mas aí a gente vai fazendo várias, como se estivesse lançando vários pontos de
vista, pegando várias perspectivas para olhar um período que foi muito nebuloso
e que a memória tá toda “truncada” (sic) e apagada. Até na própria comissão da
verdade, né, que os arquivos não foram abertos, os mais importantes. Então, é
como se fosse um detetive, né, caçando, assim. Então por isso que têm vários
barbantes. E As Uiaras é o barbante roxo. Porque eu comecei a olhar as referências
todas e fui vendo que tinha muito debate sobre a militância organizada, de
organizações políticas mesmo. Tinha uma lenda, que na época eu até acreditava,
que era que a maior parte era de classe média, e que a luta armada foi uma coisa
inconsequente da classe média, mas eu fui percebendo que não é isso na verdade.
Tem muita gente da classe média, lógico. Pode ter um certo valor diferente que se
dá à história de cada militante, isso eu acho que tem mesmo. Mas tinha muita
gente, assim, pobre, trabalhadora, gente camponesa que tava construindo
política sem nem ter condições para isso, e essas pessoas foram as mais atacadas,
inclusive. Mas a maioria homens, né. Assim, quase sempre. Aí fiquei incomodada,
comecei a ficar incomodada porque eu como autora, dramaturga, travesti no meio
do teatro...Agora eu acho que o debate já tá avançando um pouquinho, mas isso
faz três anos e eu tava debatendo muito isso nas assembleias do movimento de
teatro de grupo, tava muito obstinada, mesmo. Eu falei, nossa tenho que fazer
isso nos meus textos, também. Né, magina. E aí é isso, no meu grupo de teatro é
todo mundo cisgênero, menos eu. N’O corpo que o Rio levou, essa outra peça,
mesmo com convidados, é todo mundo cisgênero. E aí, eu acho que a gente tem
que mudar, mesmo, a tradição do teatro, da nossa dramaturgia, desse teatro de
grupo, eu, nossa, faço parte, faço sempre questão de falar que faço parte, sou
descendente direta disso, a gente constrói isso no presente.

Ainda em 2017, Ave Terrena foi premiada na quarta edição da Mostra de Dramaturgia
em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo. O edital, que surgiu em 2015,
contempla autoras e autores que residem na cidade de São Paulo, e premia três dramaturgias
por ano com um valor que é destinado à montagem do espetáculo. As peças são enviadas já
com sua primeira versão finalizada, podendo ao longo do processo de ensaios sofrer alterações,
fenômeno típico da dramaturgia que é construída em processo. Foi assim que, em 2018, a peça
As 3 Uiaras de SP City estreou no Centro Cultural São Paulo, inaugurando o Barbante Roxo
do Mural da Memória, peça que analisaremos mais profundamente a seguir.
Até antes da eclosão da pandemia de coronavírus no país, Ave Terrena, juntamente com
o Laboratório de Prática Dramática, busca incentivos para poder terminar de escrever e estrear
a terceira peça do Mural da Memória, Verdade atirada em seu rosto como um pano sujo, que
abordará a Ditadura Militar brasileira a partir da história dos homens trans que foram presos
74

durante a repressão e também sob a perspectiva das guerrilhas e da militância armada


organizada por mulheres durante este mesmo período. Até o momento em finalizo esta
dissertação, a peça não pode ser montada.
Neste mergulho sobre o tema da ditadura, Terrena enfatizou em entrevista a dificuldade
de encontrar registros escritos e documentados. Ainda que a Comissão da Verdade tenha
trazido à luz muitos dos crimes omitidos na época, ainda é muito pouco o que se sabe em termos
de número de pessoas mortas, torturadas ou desaparecidas. A tarefa de escavar por registros
documentados torna-se ainda mais complexa em se tratando de corpos que ainda hoje, quase
quarenta anos depois do início do processo de redemocratização, continuam em condições um
tanto quando análogas, marginalizadas, violentadas, assassinadas.
Terrena enfatiza, neste sentido, a importância do encontro com a história oral e com os
saberes e memórias de pessoas que sobreviveram a esse período. Resgatar essas histórias, que
só permaneceram vivas graças aos corpos sobreviventes que as resguardam, e transformá-las
em ficção é uma forma de não apenas honrar pela memória das inúmeras pessoas violentadas
durante este período, como também de, através da escrita, criar um registro que atravesse pelo
tempo, para que essas atrocidades jamais sejam esquecidas. Aqui resvala a importância e poder
da escrita, pois se por um lado a omissão, apagamento e destruição da memória serviu por
décadas à manutenção de um poder violento e repressor, uma vez que tomamos consciência e
ganhamos acesso à fatos e histórias ocultadas no período, é de nossa responsabilidade
reescrever a História, na tentativa de fazer com que o passado não se repita.

II.III. As 3 Uiaras de SP City


Seguindo a pesquisa iniciada com O corpo que o rio levou e o mergulho poético na
violência contida dentro do período ditatorial brasileiro, As 3 Uiaras de SP City é uma peça
histórica, com ela pretende-se reconstituir uma parte bastante invisibilizada de nosso passado
recente: a caça às travestis no centro de São Paulo durante o período ditatorial e abertura
democrática.
Para o processo de criação, uma figura essencial desponta, uma destas sobreviventes do
período ditatorial, cujos relatos orais e afetivos serviram de base para a elaboração da peça,
esta mulher é a publicitária e ativista Neon Cunha35, que na juventude viveu o período pós
ditatorial no centro da cidade de São Paulo.

35
Psicóloga, ativista independente, feminista interseccional, mulher negra, trans e latino-americana, é como Neon
Cunha se apresenta no texto de abertura de As 3 Uiaras. Desde o período pós ditatorial Cunha acompanhou de
perto os movimentos sociais organizados pelas prostitutas, travestis e transexuais na cidade de São Paulo, assim
75

Porque uma pessoa fundamental, sem a qual essa peça não existe se chama Neon
Cunha, ela é. Você tem que dá uma olhada nela, assim. Porque ela é a matriz dessa
peça. Eu já tava pesquisando, lendo, mas, quando eu conheci ela, ela tem
cinquenta anos e ela viveu novinha a Operação Tarântula, ela viveu no Arouche
exatamente esses fatos, esses acontecimentos que são a base d’AS Uiaras. E aí
quando eu comecei a tentar diversificar essa memória sobre o período traumático,
eu percebi que não tinha quase relatos sobre a história das travestis. Eu vi sobre
os povos indígenas um pouco, tem um capítulo na comissão da verdade, tem a
perseguição ao povo camponês, tem a violência de gênero para as mulheres
cisgênero. E tudo muito pouco, né. Mas não tinha sobre as travestis. E aí quando
eu fui buscar fontes escritas, o que tinha era muito estigmatizado ainda, então eu
olhei até nas próprias fontes LGBT, por exemplo o Lampião da Esquina, que era um
jornal organizado por gays e lésbicas principalmente, na época, fim da década de
70 e 80. E lá tem muitas denúncias contra a operação Tarântula, tem todos online
e muitas matérias de jornal, fontes, entrevistas, eu tirei de lá. Mas ainda era um
olhar cisgênero sobre a realidade travesti e ainda com um alto grau de estigma
que tinha na época, mesmo tentando se aproximar, ainda acabavam trazendo.

Entre as décadas de 1980 e 1990, após o fim da Ditadura Militar, a cidade de São Paulo
viveu um momento de caça intensa a travestis, transexuais e prostitutas (trans e cisgêneras).
Tendo como respaldo legal a lei anti-vadiagem36, abaixo-assinados realizados pela “população
de bem” que pediam pela “limpeza” do centro da cidade de São Paulo, e com a eclosão do vírus
HIV-AIDS — que na época era envolto pelas ideias de libertinagem e práticas homossexuais,
sendo inclusive apelidada de “peste gay” — as polícias civil e militar deram início a uma série
de operações violentas contra a população trans e contra prostitutas que trabalhavam na região
dos bairros da República, Arouche e Vila Buarque, no centro da cidade de São Paulo. As mais
famosas dessas operações, e sobre as quais Terrena se debruça na escrita d’As 3 Uiaras, foram
Operação Limpeza, Operação Rondão e Operação Tarântula, sendo a Operação Rondão
nominalmente citada no primeiro ato da peça.
A dramaturgia de Ave Terrena é um amalgama entre realidade e ficção. Pois, a partir
de um contexto histórico, de acontecimentos que são retratados em algumas das cenas da peça
e de personagens reais, Terrena cria a história de três mulheres, duas travestis que lutam para
serem artistas e uma militante feminista cis que resolve ajudá-las. Miella, Cínthia e Valéria são
as três uiaras, representações fictícias de mulheres que não só existiram, mas lutaram
ativamente contra a repressão policial da época; As três são as protagonistas da peça que possui

como a cena noturna e underground das boates e casas de show. Tendo conhecido pessoalmente figuras como
Andrea de Maio, fundadora da Associação das Transformistas e Travestis de São Paulo, e viver a na pele as
contradições de uma sociedade que violenta e fetichiza essa parcela da população, Neon Cunha é memória viva
do período que Terrena retrata, uma das tantas uiaras de SP City.
36
O artigo 59 da Lei de Contravenções Penais, decretada no ano de 1941, explicita: “Art. 59. Entregar-se alguém
habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de
subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena - prisão simples, de quinze dias a
três meses.” (LCP - Decreto Lei nº 3.688 de 03 de outubro de 1941).
76

mais outras três personagens, o Cabo Tulio, figura ficcional representante da baixa patente da
polícia paulistana e duas figuras históricas emblemáticas, o antagonista Delegado Rochetti
— responsável pela delegacia seccional do Centro de São Paulo e comandante das operações
— e a atriz, produtora, deputada estadual e militante dos direitos humanos, Ruth Escobar.
Em uma breve sinopse, As 3 Uiaras de SP City conta a história de Miella e Cínthia,
duas travestis que trabalham como cabelereiras e prostitutas e que têm como grande sonho se
tornarem cantoras. Valéria, uma militante feminista tenta auxiliá-las apresentando alguns
colegas músicos que aceitaram fazer parte do projeto de banda sem exigência de cachê. Porém,
Miella e Cínthia resolvem não aceitar o esquema de Valéria e combinam de fazer um programa
juntas com um cliente antigo de Miella para conseguirem dinheiro o suficiente para gravarem
as suas primeiras canções. Na noite do programa, a Operação Rondão prende Miella, que se
encontrava na frente do hotel a espera de sua colega. A partir daí Cínthia se une a Valéria para
tentar encontrar a sua amiga.
O texto, assinado por Ave Terrena, é fruto de um processo colaborativo em conjunto
com o LABTD e as artistas Danna Lisboa e Veronica Valentino, atrizes e cantoras trans que
foram convidadas para participar do projeto. Em nota na rubrica de personagens, a autora deixa
a exigência de que as duas personagens travestis devem ser interpretadas por mulheres
transexuais ou travestis até o ano de 2047, trinta anos após a escrita da peça, o que representa
simbolicamente o tempo necessário para que ocorra a instauração de um novo paradigma
dentro deste duplo representação versus representatividade. Lisboa e Valentino, além de
atuarem, exerceram forte influência na composição e musicalização das canções que compõem
a peça, como Ave Terrena expõe em entrevista,
Então, as músicas eu acho que é o mais processual desse projeto porque eu fiz
propostas, mas, aí, o que que acontece, eu trabalho com duas atrizes nessa peça,
a Verônica Valentina e a Danna Lisboa que além de atrizes são cantoras que tem
um trabalho já de anos, elas são referência para mim, sabe? De como eu me
posiciono na arte, em teatro e esteticamente também. Então, a Danna tem dois
discos já lançados, e assim ela tem uma linguagem muito da rima, do verso, do rap,
do trap, do hip hop, e aí a música da personagem Miella, que é a personagem que
ela fez, eu construí junto com ela, então caminha mais para uma linguagem. A
música da Verônica que é da personagem Cíntia a gente fez, não é só com elas, é
com elas e com os músicos, porque tem uma banda na peça. Não é que tem uma
banda, né, se formou. Dois músicos já trabalhavam com a gente, chamados Felipe
Pagliato e Gabriel Barbosa, e aí eu chamei mais uma musicista também que é a
Vitória dos Santos que é do bloco Agora Vai, que sai aqui na frente da rua. É a filha
da Carlota Joaquina também, nossa grande referência. E aí chamei ela e juntou
com eles que já tavam trabalhando com a gente e eles formaram...é isso, como se
fosse uma banda na peça. E eles até se autointitularam, que eu acho ótimo, Bad
Chucas. É uma brincadeira, né. E eu faço meio parte da banda também. Então a
77

gente compôs, na verdade, nós quatro, as músicas. Eles fizeram até o beat para a
Danna. Aí a Danna foi criando os versos em cima dos versos que eu propus.

As canções, que operam de forma semelhante às songs brechtianas, são uma das
características mais fortes da epicidade dentro da dramaturgia d’As Uiaras, interrompendo o
acontecimento dramático para inserir uma reflexão distanciada sobre o desenrolar da história.
Ao todo são cinco canções que entrecortam o drama, cada qual cantada por uma das três
personagens principais, por Rochetti e por Ruth Escobar.
Porém, são outros tantos os elementos que trazem ao texto caráter rapsódico. A costura
entre os gêneros épico, lírico e dramático faz com que momentos dramáticos, que expõem os
conflitos interpessoais, sejam alternados com momentos épicos, nos quais se estabelece uma
relação mais direta e objetiva com o mundo e o contexto social, e momentos líricos, em que a
relação estabelecida é intrapessoal.
Dodi Leal apresenta uma reflexão bastante interessante a respeito da “construção da
poética travesti” (2020) no teatro, a autora propõe um contraponto entre a estrutura dramática,
forma teatral mais pura e disciplinar, sustentada pela criação de uma ficção e guiada pela
cronologia do tempo e do espaço, e a estrutura épica, de “teatralidade negativa” que rompe com
a lógica temporal e onde o drama interpessoal dá lugar a narratividade, ao “tráfico de
informação” onde “os modos narrativos de vivências perturbadoras à ordem disciplinar do
mundo acadêmico CIStêmico são incapturáveis pelos modos dominantes de produzir corpo, de
produzir saber, de produzir corpo-gênero, de produzir saber-gênero. Neste sentido, o
expediente invasivo das transgeneridade no quadro das institucionalidades hegemônicas de
gênero se baseia não em suas ficções dramáticas, mas produz fricções épicas” (LEAL, 2020,
p. 13-14).
Na esteira do que é proposto por Leal, Ave Terrena subverte a “dramaturgia rapsódica”
de Sarrazac e inaugura a sua “Dramaturgia Transgênero”, um jogo interessante de palavras
criado a partir da relação entre a identidade de gênero da autora e a ideia de gêneros teatrais,
discursivos e literários pelos quais a dramaturgia perpassa. Além de alternar entre o épico, lírico
e dramático, a autora também incorpora diferentes gêneros discursivos e literários que fizeram
parte da elaboração da peça, tais como os documentos oficiais, as cartas, e as conversas com
Neon Cunha. Para além, as próprias linguagens cênicas que cada membro do elenco mais se
identifica foram sendo agregadas ao longo da costura da peça. É nessa transição entre gêneros,
poéticas, linguagens, estruturas como também, do diálogo direto corpo-a-corpo, da troca em
78

ensaio e da escuta das potências e particularidades das atuantes que a dramaturgia se constrói
e é capaz de dialogar com o conteúdo que aborda.
É engraçado, porque vem eu acho que muito do processo colaborativo um pouco
também. Que cada pessoa tem uma afinidade maior com uma linguagem. (...)
Então é como se fosse também uma colagem dentro de um arco pensado, dentro
de um quadro específico. Mas é como se fosse uma colagem, é isso, tem uma
música que tá mais numa linguagem do hip hop, uma música que tá muito pra
linguagem do Belchior dos cantores cearenses, que a Verônica é de Fortaleza,
então tem essa linguagem dos cantores que ela gosta e como a gente tem uma
proximidade muito grande e o músico, o Gabriel, caminha mais com essa
linguagem. Aí tem essa coisa da liturgia, que eu falei, aí tem a personagem da Ruth
Escobar, que é uma política, então já entra uma linguagem mais da política, do
pensamento feminista, da militância da época, e também da diplomacia, né, que
deputadas acabam tendo que fazer sempre por estarem no lugar onde estão. Fora
outras coisas, assim, os diálogos...Nos gêneros, vários gêneros literários e cênicos
que se atravessam...Não sei se gêneros cênicos porque eu como diretora tenho
puxado mais para um lado até de quebrar um pouco essa forma teatral, mas As
Uiaras está dentro da forma teatral épica, assim. Então, tem o teatro épico eu acho
como um contorno mais ou menos e vão entrando esses vários gêneros
discursivos, mesmo. Até o Bakhtin, outro dia eu li esse texto, Os gêneros do
discurso. Até levei pra ler no núcleo porque eu acho muito legal. Porque entra coisa
de bilhete, não sei se tem bilhete nas Uiaras, mas entende? Vários gêneros
discursivos que às vezes não são nem da literatura, isso eu acho superlegal. Os
documentos, o relatório da comissão da verdade tem muito a ver com isso, isso
eu acho que tá mais n’O corpo que o rio levou, mas tem n’As Uiaras também Qual
a característica desse texto que é um documento e aí tem uma coisa fundamental
que é tanto o documento escrito quanto o oral.

Mais uma vez se fazendo valer do jogo de palavras, Terrena também propõe que a peça
é “Transtemporal”, uma vez que, apesar da dramaturgia narrar uma história ocorrida nos anos
oitenta, ela não só faz algumas quebras épicas que trazem a espectadora/leitora para o momento
presente, como também cria referências diretas com a contemporaneidade, seja citando
Marielle Franco (que na época que o espetáculo estreou, havia há pouco tempo sido
assassinada), seja trazendo à tona a consciência de que, por mais violenta e absurda que seja a
situação regulamentada pelo Estado nos anos oitenta, nos dias de hoje essa parcela da
população continua vivendo sob condições muito semelhantes. A título de exemplificação, no
dia 5 de outubro de 2017, uma Operação Policial liderada pelo Sargento Ilto da Cruz Pires
prendeu nove travestis acusando-as de prostituição na região do Arouche37 sob as mesmas
justificativas de “limpeza da região” e “proteção da população contra marginais”. A violência
CIStêmica (LEAL, 2020) no Brasil, agenciada por uma política de extermínio, que designa as
vidas que devem ser vividas, e as mortes que devem ser morridas, é acima de tudo, machista,
o abuso de poder é fálico, aqui a necropolítica é também necapolítica (Ibidem).

37
Informações retiradas do vídeo “Travestis relatam perseguição de policiais no Centro de São Paulo”.
Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=1641748352513239>. Acesso em: 28 mai. 2020.
79

Ao trazer a história de resistência dessas mulheres usando-se de um plano de fundo


histórico, Terrena também se aproxima das ideias postuladas por Bertolt Brecht em seu Um
pequeno Organon para o teatro,
Se movimentarmos as personagens em cena por meio de forças motrizes de
caráter social, que variam conforme a época, dificultaremos ao nosso público
uma acomodação emocional. Não poderá sentir, pura e simplesmente, eu
agiria dessa ou daquela forma, dirá: “Eu também agiria assim”, ou quando
muito: “Se eu tivesse vivido em tais circunstâncias...”. E se representarmos
as peças da nossa época tal como se fossem históricas, é possível que ao
público pareçam, igualmente, singulares as circunstâncias em que ele age:
nasce assim, uma atitude crítica. (BRECHT, 1948, s/p)

Sendo assim, ao afastar temporalmente o público da história que é narrada, Ave Terrena
cria espaço para que haja uma reflexão deste em relação à situação encenada, ainda que essa
situação, como a própria ideia de transtemporalidade prega, não seja exclusiva de um período
histórico já passado, mas permaneça até os dias de hoje.
Existe ainda outra importância crucial ao se escolher por narrar um fragmento da
história dessas mulheres cuja existência é frequentemente invisibilizada e cuja representação
cênica é tantas vezes estereotipada, a humanização. Contrapor a ideia de abjeção, como coloca
Butler, é considerar a vida de pessoas — cuja existência é comumente objetificada e
consequentemente fetichizada — como humana.
Em entrevista, Ave Terrena reitera diversas vezes que a representação cênica das vidas
trans é comumente feita de maneira fetichizada seja através da hiper sexualização, da
ridicularização, ou até mesmo através da violência, o que acaba reafirmando estereótipos e
exotificando esses corpos. A perpetuação deste tipo de representação não deixa de corroborar
para a violência real que essas pessoas sofrem, visto que arte e vida estão em constante
espelhamento. Se nem mesmo simbolicamente mulheres trans são retratadas humanamente,
isso exerce reflexo imediato em nossa realidade.
Porém o oposto também legítimo, e é por conta disso que Terrena insiste na importância
por ampliar e aprofundar o modo como a população trans é retratada, trazendo para o teatro
representações mais humanas, complexas e tridimensionais dessas pessoas.
Quando um corpo é humanizado, quando um corpo tem sua humanidade
enaltecida em cena várias pessoas deixam de morrer, tem um efeito direto
(...). Tanto no sentido de que quem talvez pudesse atacar outra pessoa na rua,
talvez não ataque, porque vai reconhecer como um ser humano, e também no
sentido de que quem está lá e é trans não tenha esse ônus psicológico, isso
tudo é reflexo de uma realidade social. (TERRENA em entrevista concedida
a atriz Renata Carvalho, 19 mai. 2020)
80

A peça, dividida em quatro quadros narra a história das três uiaras cada qual a partir de
um ponto de vista. Os três primeiros quadros adotam, cada qual, uma das três protagonistas
como centro da ação, o primeiro conta o início da história sob a perspectiva de Miella, o
segundo dá continuidade à história a partir de um foco maior na personagem Cínthia e o terceiro
finaliza com Valéria. O último quadro, por sua vez, opera de maneira um pouco distinta, de
certo modo mais generalista, não centralizando em nenhuma figura específica para trabalhar a
narrativa, focando no embate derradeiro entre as três Uiaras e na disputa de ideias divergentes
entre elas, a ficção dramática dá espaço para a fricção épica (LEAL, 2020).
Em mais uma referência ao Pequeno Organon (1948), cada um dos quatro quadros
possui uma estrutura própria, e anunciam em seus títulos os principais objetivos e
acontecimentos a serem abordados. Segundo Brecht “Os títulos devem conter flechas certeiras,
dentro de uma perspectiva social, e explicar simultaneamente algo acerca da forma de
representação desejável(...)” (1948, s/p)
O primeiro quadro, intitulado I. Operação Rondão: A primeira Uiara si apresenta ao
público, se inicia com uma apresentação da situação da narrativa pela personagem Miella, de
forma bastante performática a sujeita anunciadora (SARRAZAC, 2012) trava um diálogo
direto com o público, mais especificamente um diálogo com a cisgeneridade, expondo o misto
de esperança e raiva que sente ao ver uma plateia cheia para ouvir a sua história, ao mesmo
tempo que lá fora, do outro lado da rua (TERRENA, 2020) essa mesma narrativa permanece
se repetindo, violenta e invisibilizada, com tantas outras travestis.
Já neste primeiro momento captamos algumas das características fundantes do texto
de Terrena, o uso da linguagem oral, repleta de cacoetes (tal como o título do ato que coloca
“si”, ao invés de “se”) e expressões do pajubá, que garantem à leitura uma fluidez bastante
grande, outro elemento já presente nesta fala é o constante jogo entre o presente e o passado
histórico38, de forma que sua intervenção rapsódica é
(...)marginal, em relação a intervenção massiva das personagens e, no entanto,
decisiva não apenas quanto à condução do relato, mas também, e sobretudo,
porque carrega um comentário sobre a ação, e assim convida o espectador a
se interrogar, conforme o desejo brechtiano, sobre os “porquês” da ação. Aqui
reencontramos a dimensão filosófica do drama-da-vida, que é,

38
Ainda em Um pequeno Organon para o Teatro, Brecht coloca que “Ao representar, o ator, deve fazer que fique
completamente evidente o fato de “já no princípio e no meio saber o fim” e deve “conservar, assim, uma tranquila
e absoluta liberdade”. Por meio de uma representação viva, narra a história da sua personagem mostrando saber
mais do que esta, e apresentando “o aqui’ e “agora”, não como uma ficção que é possível devido às regras de
representação, mas sim, tornando-os distintos do “em outro lugar” e do “ontem”, a associação dos acontecimentos
se tornará deste modo mais clara.” (1948, s/p)
81

essencialmente, a do ponto de vista, e que só consegue se exprimir uma


espécie de segundo grau da ação. (SARRAZAC, 2012, p. 262)

É interessante esta colocação proposta por Sarrazac quanto à ação estar sendo realizada
em segundo grau, ou seja, o drama está sendo reencenado, jogado novamente. Terrena opta por
utilizar deste artifício épico em outros momentos da peça, destaco especialmente os trechos em
que a narrativa surge para barrar ações de violência explícita. Como ocorre em dois trechos da
peça.
O primeiro refere-se à última cena do primeiro quadro, Operação Rondão no centro de
SP City. Nela existe a criação de dois planos simultâneos, o primeiro em vídeo contempla o
delegado Rochetti verbalizando sobre as operações policiais; no segundo plano (a cena) temos
Miella sozinha na rua proferindo o que parece ser um poema referindo-se a essa mesma
operação sob o seu ponto de vista, o da vítima. A cena é composta por paralelos, seja entre o
trecho em prosa de Rochetti se contrastando com os versos de Miella, seja na presença em
vídeo de Rochetti em contraponto à presença viva de Miella, e principalmente no conteúdo de
cada uma das falas. Enquanto o Rochetti se ancora em ideias conservadores, mencionando a
família, a moral, os “trabalhadores de bem” e a religião cristã, Miella refere-se à luta, à guerra,
à vida noturna, à violência e às religiões de matriz africana, terminando seu cântico com
“eparrei, oyá! ela é de iansã!” (TERRENA, 2017, p. 40). Finalmente as personagens se
encontram, um breve diálogo é trocado e quando a rubrica anuncia “(rochetti pega no punho
de miella, mede o pulso dela)” a ação dramática é interrompida e os sujeitos épicos retornam
para narrar o ocorrido
ROCHETTI [no vídeo] desenvolvi 1 método pra descobrir si a pessoa era
trabalhadora ou vagabunda: se à noite na rua o pulso estivesse disparado, era
trabalhador desavisado no lugar q não devia star; si estivesse acelerado, então
era vadio
MIELLA ele mi jogou na parede e gritou “mão na cabeça”, pegou minha
bolsa e jogou no chão, pegou meu dinheiro, perguntou: “só tem isso?”. eu
falei: “trago mais amanhã, olha minha carteira de trabalho, eu sou cantoura!”.
mas você acha q adiantou alguma coisa? ele mi agarrou pelo cabelo, jogou no
chão e começou a mi agredir. (TERRENA, 2017, p.41)

A cena segue com Rochetti se dando conta de que Miella é cantora, e exigindo então
que ela cante. Miella cantará a Canção da Dor Nº1 e logo em seguida será levada por Rochetti
para a delegacia. Após essa cena, Cínthia aparece na frente do hotel, onde havia combinado de
se encontrar com Miella, e fica à espera de sua amiga.
O segundo momento em que uma ação violenta é interrompida consiste também no
mais emblemático da peça. Ele ocorre no segundo ato, 2. Show + Ato: A Segunda Uiara si
82

apresenta e pede socorro, na cena Fantasia de Cínthia sobre o interrogatório da amiga. O


título da cena já sugere de imediato a violência: o interrogatório entre um delegado e uma
travesti, realizado pós período militar, será tratado a partir da perspectiva fantasiosa da melhor
amiga de Miella; em outras palavras, a realidade é encoberta por um plano onírico. A cena se
inicia com um diálogo dramático entre Miella e Rochetti:
ROCHETTI pod já começar falando q vc facilita pra mim e principalmente
pra vc msma.
MIELLA vai fazer cmg igual fez om as outras
ROCHETTI frente da mulher feminista? Uma oportunidade de unificar a
luta? As mulheres aceitam vcs lá?
MIELLA tb sou mulher, somos todas mulheres, mulheres de pau, mulheres
de todo jeito(...). (TERRENA, 2017, p.49)

O nível de opressão e violência verbal de Rochetti contra Miella se intensifica até o


ponto em que Miella interrompe o diálogo dramático e questiona a continuidade da cena:
personagens e atuantes têm suas presenças borradas.

MIELLA não precisa mostrar essa cena nos detalhes, já deu pra entender o
grau de opressão
ROCHETTI não quer mostrar violência em cena?
MIELLA como vc msmo falou, a violência stá gritando na nossa cara todo
dia.
ROCHETTI essa cena q vc tá fzendo é uma palhaçada
MIELLA vc sabia q palhaço é profissão?
ROCHETTI tá desistindo? Tá arregrando?
MIELLA não vou gastar meu paju com vc (TERRENA, 2017, p.50)

A cena toma outro rumo a partir de então, Rochetti ameaça Miella, provando que sabe
sobre os planos dela e Cínthia serem cantoras. Ao descrever a encenação deste trecho do
espetáculo, Ave Terrena explícita as soluções cênicas que ancoraram a escolha dramatúrgica
por não performar a violência.
(...), Mas aí eu falei, tem que criar um deslocamento para que dentro da peça a
gente consiga ter um certo distanciamento sobre isso, e aí é isso, é a imaginação
de uma personagem sobre o que estava acontecendo com a amiga dela. E ela até
fica meio distorcida no tempo e no espaço, ela tem umas falas que não fazem
tanto sentido. E nesse momento também tem essa coisa performativa, porque a
Miella interrompe a ação e fala “Olha, não dá pra fazer isso desse jeito”. Não dá
pra gente continuar só mostrando essa violência, a gente tem que inventar uma
outra forma. E aí, isso mudou no espetáculo, não é a mesma coisa que o texto. No
espetáculo teve o recurso da câmera. Então ficava só a cara bem grande da
Verônica, filmando a própria cara, a Cíntia, e aí tinha a cena. Aí o ator ia tirando
vários martelos, vários instrumentos de tortura. Quando chegava na hora que ele
pegava no braço dela, que seria quando começaria essa violência mais explícita,
ela para, acende a luz, vem luz de serviço, é uma quebra mesmo. Ela fala, “Olha,
não dá, tem que pensar um outro jeito”. E aí a Verônica vem com a câmera e filma
83

dois bonecos que eles tiram e eles fazem a cena com os bonecos. E aí os bonecos
se batem, não sei quê... Vai pra um lugar meio lúdico, mas para que a gente consiga
descolar e distanciar mesmo a nossa relação com essa cena, pra que ela não seja
uma violência de novo.

Retratar a violência de forma menos realista, fazendo-se uso de recursos tais quais os
apresentados na citação acima – o distanciamento entre atuantes e ação, a utilização de recursos
audiovisuais, e a atmosfera onírica ocasionada através do deslocamento da ação para o plano
fantasioso, visto que a cena toda é uma projeção de Cínthia sobre o que pode estar acontecendo
com Miella – é a forma que Terrena encontrou de evitar infortúnios tão comuns quando se trata
da representação artística de pessoas trans. O primeiro diz respeito à fetichização (que existe e
é bastante comum) destes corpos, seja através da ridicularização, da hiper sexualização ou da
violência.39
O segundo atua no campo da recepção do público, especialmente do público trans,
Terrena explana que as escolhas, tanto dramatúrgicas quanto cênicas, feitas visam a
aproximação do público,
Vai prum (sic) lugar meio lúdico, mas para que a gente consiga descolar e distanciar
mesmo a nossa relação com essa cena, pra que ela não seja uma violência de novo.
Porque eu também pensava, “Vou trazer um monte de travestis, um monte de
homens trans, pessoas não binárias, transgêneros, travestis, transvestigêneres
aqui pro púbico pra ficar esfregando na cara deles de novo tudo que a gente já
sofre?” Sabe? Aí, você tá sofrendo violência o tempo todo, em todos lugares, sua
família, na escola, no trabalho, em todos os lugares, na rua, e aí você vai no teatro,
que eu acho que tem que ser um lugar de diversão no bom sentido, de você criar
uma conexão de fato com aquilo.
E,
Então, como é que eu vou fazer isso esfregando a violência na cara de quem eu
quero trazer pro teatro, pro público, pra tá aqui com a gente construindo isso? É,
e eu acho que o fetiche da violência já teve em muitas peças, muitas não, mas
algumas que relatam, que tratam, que trabalham a vivência de pessoas trans,
travestis. Mas, muito nesse lugar do fetiche, da violência, porque o público
cisgênero que já está acostumado a ir no teatro vai no lugar do exótico. “Vou ver
aquilo que está fora do meu campo de visão”. E aí eu vou sofrer, vou me sentir
mal, sabe assim, mas é quase como se fosse querer purificar a própria culpa. Eu
acho que o teatro tem um lugar cristão, às vezes.

39
“Por quê que a gente vê tanta foto de travesti sangrando, travesti morta, travesti assassinada, os vídeos que
mostram as travestis sendo mortas, porque que eles circulam tanto por aí e na verdade não existe nenhuma
mobilização pra cobrar a morte dessas pessoas, ou para amparar quem não tem um lugar pra morar, quem fica na
rua? Por quê que esses vídeos de dor, de sofrimento, de sangue circulam tanto e na verdade não existe ação
concreta nenhuma? Porque existe um fetiche de ver esses corpos violentados, é, de ver o sofrimento dos nossos
corpos, assim.” (TERRENA em entrevista concedida à pesquisadora, 21 fev. 2020)
84

O segundo quadro se finaliza com o delegado Rochetti aparecendo na concentração do


ato político organizado por Valéria contra as Operações Policiais. Neste ato, Cínthia iria
performar sem a sua amiga como uma forma de protesto contra as prisões arbitrárias que a
polícia de São Paulo estava realizando naquele momento. Em uma fala emblemática antes de
deter Cínthia, Rochetti profere “eu sou o poder público, eu posso fazer oq eu quiser”
(TERRENA, 2017, p. 54).
A fala de Rochetti evidencia o autoritarismo que autoriza a polícia e o Estado a agir
conforme uma política de inimizades (MBEMBE, 2018), que autoriza os agentes do poder a
deterem o controle da morte. Mbembe parte do conceito de biopoder cunhado por Foucault
para compreender quais são os indivíduos que devem viver e quais devem morrer, ou seja, a
ideia de poder está estritamente ligada ao “controle estreito sobre os corpos” (2018, p. 59).
Dodi Leal amplia o conceito de necropolítica, cunhado por Mbembe e propõe a “necapolítica”,
a política fálica que subjuga e violenta aquelas dissidentes ao CIStema, isso é evidenciado na
fala que abre este capítulo: “O mesmo cara que come é o cara q bate e mata na rua”
(TERRENA, 2017, p.65)
Não à toa, no terceiro quadro da peça, 3. Fogo e Sangue: A terceira Uiara invoca Ruth
Escobar, a personagem Ruth Escobar surge à cena – procurada por Valéria para ajudar
politicamente na libertação das prostitutas presas, especialmente a soltura de Miella e Cínthia,
neste caso – como representante de um poder institucionalizado, político, e evoca em sua fala
outros políticos que se uniram e unirão à luta das minorias. Eduardo Suplicy40 é escalado como
uma das figuras que irão agir a favor das prostitutas e Marielle Franco é homenageada, de
forma bastante premonitória, como guerreira que lutará contra esta política de extermínio
institucionalizada, e que por essa luta será assassinada.41
RUTH ESCOBAR vou chamar o Suplicy, alguns outros deputados, vamos lá
hj msmo. 1 dia haverá uma guerreira chamada Marielle franco, e ela se ligará
mais profundamente com as travestis! Empatia e alteridade de uma guerreira
q levará 1 tiro por assumir o protagonismo de sua luta e por levantar a voz

40
Considero importante à essa altura da análise relembrar do episódio entre Suplicy e Anderson Herzer, citado
anteriormente neste capítulo que indica a luta política do deputado a favor das minorias. A presença das figuras
de Suplicy, Escobar e Franco na dramaturgia de Terrena reforça os fortes entroncamentos entre ficção e realidade
na dramaturgia d’As três Uiaras.
41 Em 2017, quando a peça foi escrita para o edital do CCSP, Marielle ainda era viva e atuava como vereadora no

Rio de Janeiro. Mulher negra, periférica, bissexual e mãe, Marielle era forte representante política das periferias
e minorias em uma cidade coordenada pela milícia. Porém, ainda antes da estreia do espetáculo, a vereadora foi
assassinada. As investigações do crime não foram concluídas até o momento que essa pesquisa é escrita. Como
Terrena reitera diversas vezes ao longo da entrevista que o processo de montagem do espetáculo foi bastante
colaborativo, o que levou à constantes alterações na dramaturgia desde a inscrição no edital até a estreia do
espetáculo, pode-se compreender que as citações à Marielle Franco podem ter sido adicionadas depois, como
forma de homenagem a socióloga e política.
85

contra a subalternidade q impõe aos pobres, aos pretos, aos homens trans,
mulheres, trans! (TERRENA, 2017, p. 57)

A cena seguinte, Deputada Estadual Ruth Escobar intercede na delegacia de Rochetti,


inicia-se com Valéria e Ruth apresentando um panorama histórico da situação das prostitutas
nas delegacias de SP City durante as operações policiais na década de oitenta. A
“transtemporalidade” se faz presente visto que as personagens se deslocam para o tempo
presente e se dirigem diretamente ao público, contextualizando-o sobre os acontecimentos e a
conduta policial no passado.
VALÉRIA as prostitutas no centro de sp city na década de 80, quando não
conseguiam mais fugir dos porões nas delegacias, sofrendo condições
inumanas de prisão, davam 1 jeito de serem mandadas pro hospital, onde era
mais fácil escapar e garantir a própria segurança, longe da polícia
RUTH ESCOBAR as denúncias são concretas, nós sabemos q elas estão aqui,
e vamos entrar na carceragem sim pra verificar si os abusos não estão sendo
cometidos, essas operações, rondão, tarântula, redenção, isso que a polícia,
tanto a militar como a civil, está fazendo aqui no centro da cidade são
CAÇADAS, os senhores estão capturando pessoas inocentes a rua, como si
fossem animais perigosos, espancam, humilham, roubam, sequestram, quem
é que é bandido aqui hein? quero saber cadê esse delegado? esse homem
covarde, deve estar com medo das minhas garras bem cuidadas. (TERRENA,
2017, p. 58)

E então, quando Rochetti entra em cena, o tempo volta a corresponder ao passado, a


quebra épica se encerra e a situação dramática é retomada entre Ruth e Rochetti, que travam
um diálogo belicoso. Ruth tenta liberar as prostitutas do encarceramento enquanto ele
permanece resistente, ancorando-se na moral e bons costumes para defender a prisão delas. É
interessante de se pontuar que ambas as personagens são figuras reais, e Terrena utiliza-se disso
para trazer para à cena diversos outros dados reais. A relação entre ficção e realidade se estreita
e podemos identificar forte caráter documental na cena. Rochetti ancora seus argumentos
citando o artigo 59 da lei de contravenções penais (Lei Anti-vadiagem), à moral e os bons
costumes e até a bíblia.
.... pois “desde o princípio o Criador fez o homem e a mulher” marcos 10:6,
MALDITO SEJA ROCHETTI, minha rocha, q ensina as minhas mãos para a
peleja e os meus dedos ara a guerra. Livra-me do terror da noite, da pesque q
anda na escuridão com suas doenças perniciosas, pois cntg nenhum mal mi
assolará nem praga alguma chegará à minha tensa. (TERRENA, 2017, p.62)

Neste trecho Ave Terrena alia com perspicácia o conteúdo à forma. A relação entre a
moral e a religião não se encontra apenas na citação direta do trecho bíblico “desde o princípio
o Criador fez o homem e a mulher”, mas na própria forma em que o discurso de Rochetti se
86

dá, que através de uma rítmica própria, da escolha e uso das palavras, expressões e vocativos,
das ênfases e adjetivações se assemelha à uma pregação cristã.
Aí, como se chama isso, é uma coisa da religião cristã que fica assim (imita a
entoação litúrgica). Não é salmo, não é ladainha, tem um nome que eu esqueci. Aí
ele fala assim, como é que era, “Bendito seja Rochetti, não sei o quê…” Vem desse
lugar da liturgia quase, sabe? Do texto mesmo, na forma do texto e aí eu achei isso
superlegal, e eu achei que tinha tudo a ver com o personagem e aí entrou.

Em contrapartida temos Ruth Escobar trazendo ao diálogo um discurso mais politizado


e debatedor, a deputada traz referências reais, como matérias da revista Isto É e do jornal
Lampião da Esquina, para denunciar a situação de violência que as prostitutas sofriam nas
delegacias de São Paulo. Novamente, Ave Terrena se faz valer da relação entre forma e
conteúdo, colocando nas falas de Escobar um tom digno de palanque político.
Vadio é quem não tem carteira assinada? Então são vadios todos os
trabalhadores desempregados desse país, então são vadias todas as donas de
cada, q não têm carteira assinada, mas têm jornadas de trabalho ininterruptas
para satisfazer as necessidades básicas de homens brancos q si acham
superiores a todo mundo (...) (TERRENA, 2017, p. 60)

E,
CHEGA DE CLANDESTINIDADE E INVISIBILIDADE, está na hora de
assumirmos o nosso poder. (...). Neste debate não servirei de exemplo aos
moralistas presentes. Nós mulheres não podemos ocupar mais os espaços
existentes, as palavras existentes, os conchavos existentes, a política
existente. Temos de inventar a nova palavra, a ação inusitada. (TERRENA,
2017, p. 61)

As falas de Escobar carregam forte discurso feminista, a deputada questiona a


moralidade de Rochetti, contrapondo-se ao conservadorismo com ideias fortemente
progressistas, traz à tona questões como a reprodução social de trabalho, o desemprego, a
invisibilidade e a clandestinidade.
Ao colocar a necessidade de “inventar a nova palavra, a ação inusitada”, Escobar expõe
a necessidade de romper com a ordem político-social vigente, neste sentido, “está na hora de
assumirmos o nosso poder” não é tão somente sobre empoderamento feminino, mas sobre o
que a artista e feminista boliviana, María Galindo cunhou como “despatriarcalização”.
“Despatriarcar es un verbo, es una acción política que destituye al patriarca de su poder y su
autoridad, en todos y cada uno de los ámbitos: desde la cama hasta la calle, desde lia historia
hasta lã ley...”.42

42
GALINDO, María. A despatriarcar. Página siete. Disponível em:
< https://www.paginasiete.bo/opinion/2014/5/21/despatriarcar-21992.html#!>. Acesso em 26 jul. 2020.
87

Para Galindo (2019), o ato de despatriarcalizar é tido como uma luta social anti
sistêmica, de desobediência civil e política protagonizada pelas mulheres (especialmente as
periféricas, as lésbicas, as prostitutas e as trans) que visa desestruturar o poder vigente
(contrariando a lógica de empoderamento que, em sua terminologia, denota a tomada de poder
para si). É uma utopia social através do rompimento radical com a estrutura patriarcal e que
“serve como um ponto de confluência entre os mais diversos e diferentes feminismos”
(GALINDO, 2019, s/p)
Este conceito é reafirmado na Canção de Guerra performada por Valéria, que encerra
o terceiro quatro.
VALÉRIA: eu sou maré q revolta / seu tiro não mi abateu / eu nadei contra a
corrente / para buscar o q é meu / o fluido escorre dos corpos / vai pra debaixo
do chão / eles nos tomam por mortas / morte é só uma estação / grito vc não
escuta / putas prontas pra luta / grito vc não escuta / putas prontas pra luta /
mesmo debaixo da terra / germina revolução / bruta é a flor das ideias / força
q está na união / somos mulheres de guerra / putas organizadas / contra a
ditadura / cis e trans aliadas / grito vc não escuta / putas prontas pra luta (3x)
(TERRENA, 2018, p. 63)

Por fim, temos o último quadro, 4. Partida: ressurge o batedor, que se presta a
apresentar a direção que cada uma das Uiaras tomará em seus futuros. Para tanto, a dramaturga
propõe um salto temporal, escolhe por não trazer à cena todo o momento de revolta das
prostitutas e a posterior soltura das duas Uiaras. Ou seja, o quadro constituído por duas cenas,
se inicia com todo o acontecimento dramático apontado na cena anterior já resolvido.
Na primeira cena, o cabo Tulio, informante de Rochetti, delator e amante de Miella,
busca obter informações sobre o paradeiro da uiara, com Valéria. Ao que a militante,
recusando-se a dizer onde as uiaras estão escondidas, responde “o mesmo cara que come é o
cara q bate e mata na rua” (TERRENA, 2017, p. 67). Reitero essa frase uma última vez por
considerá-la uma das mais preciosas da peça. Ela evidencia de forma sucinta a relação ambígua
que provêm da fetichização dos corpos transgênero, a violência e a hiper sexualização são
postas como duas faces de uma mesma moeda, o mesmo homem que, mesmo afirmando ser
“contra as operações”, não mediu esforços para delatar a amante ao delegado é quem a noite
procura estes corpos para relações “no sigilo”.43 Desejo e violência são aliados na dinâmica de

43
Uso de forma irônica o termo “no sigilo”, visto que ele é comumente utilizado pelos próprios homens em
aplicativos de relacionamento, bordeis e nas ruas para procurar relações, frequentemente extraconjugais, com
mulheres cis e trans. Quando utilizado em relação às mulheres trans o termo tem seu significado ampliado, pois
também parte de uma visão deturpada do que é ter relações com uma mulher transexual ou travesti, visto que a
presença do pênis em mulheres não operadas, denotaria, neste sentido, uma “tendência homossexual” por parte
desses homens.
88

abuso de poder. O cabo Tulio, oficial de baixa patente, dentro da estrutura institucional é um
mero “cumpridor de ordens”, mas até que ponto essa isenção de responsabilidade pode ser
usada como justificativa para a não arcar com as consequências dos próprias atos contra um
outro corpo que é violentado e desejado concomitantemente? Sendo assim, a hipocrisia de
Tulio é escancarada por Valéria.
Em seguida, a última cena da peça, Último encontro das 3 Uiaras em SP City, finaliza
o espetáculo assim como ele começou, com as três protagonistas reunidas e em um embate
prático. Se no início o embate era em relação à banda que as Uiaras queriam formar, agora ele
toma proporções mais sérias e inclusive escancara diferenças estruturais entre as lutas de Miella
e Cínthia e Valéria, assim como expõem as diferenças entre a realidade cisgênera e transgênera
dentro da luta feminista, questões que tornam-se explícitas na fala de Cínthia “a mana é cis, é
aliada, mas ainda é cis no privilegio” (TERRENA, 2017, p. 67) e no excerto “VALÉRIA é uma
questão de análise de conjuntura / MIELLA nossa análise é todo dia, o tempo todo, direto no
corpo” (TERRENA, 2017, p.68).
Todavia, é importante compreender que isso não impede a parceria e a ajuda entre as
três mulheres, apenas escancara que as diferentes vivências não podem ser mascaradas por um
discurso feminista universalizante, como se todas as mulheres vivessem a mesma realidade, as
mesmas lutas, as mesmas questões. Essa pequena crise instaurada na última cena só torna o
discurso de Terrena mais forte, pois desassocia a luta feminista de um imaginário ingênuo e
superficial que se escora puramente na ideia de sororidade.44 Ou seja, a solidariedade da
cisgeneridade em relação à transgeneridade deve ser a solidariedade de um impasse (LEAL;
MOSTAZO, 2017).
Aquilo que nos une, aquilo que nos é comum, não é um terreno neutro de identidade,
um campo aberto da utopia em que todos podem ser aquilo que imaginam que são –
mas o campo minado da fratura no simbólico, onde ninguém nunca é idêntico a si
mesmo, independente da sua performance particular de gênero; onde todos os sujeitos
reconhecem e carregam consigo a cicatriz que lhes foi marcada na carne, antes de
entrar em cena. (LEAL; MOSTAZO, 2017, p. 2017).

A dramaturgia se encerra com Cínthia e Valéria partindo para Santos onde deverão
permanecer escondidas por um tempo.

MIELLA vamos nos ausentar da guerra, temporariamente

44
Para mais informações sobre o debate e crítica ao termo sororidade dentro do movimento feminista:
<https://redeanticapitalista.net/sororidade-consciencia-feminina-irmandade-mulheres-proposta-politica/>;
LEAL, Tatiane. A invenção da sororidade: sentimentos morais, feminismo e mídia. Rio de Janeiro, 2019. Tese
(Doutorado em Comunicação e Cultura). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2019.;
89

VALÉRIA vcs ficam invisíveis, mas eles vão sentir


CÍNTHIA vamos nos refugiar pois
quem aponta uma arma na nossa cabeça
atira
si tornar oculta é a nossa estratégia
de sobrevivência
MIELLA a batalha não terminou,
por mtos séculos ainda teremus q lutar
CÍNTHIA memória não é segredo
Pra trancar ou esconder (TERRENA, 2017, p. 69-70)

E numa referência direta entre a história abordada e o contexto social, utilizando-se de


um recurso metadramático, as duas Uiaras proferem “CÍNTHIA história não é 1 livro /
MIELLA é aqui agora, ontem e amanhã / CÍNTHIA é prática pensamento em exercício”
(Ibidem, p. 70) e num tom ambíguo, no qual não fica evidente se a despedida é entre elas ou
entre atores e público, Miella finaliza “foi 1 prazer dividir a cena com vcs” (Ibidem, p. 71).
O final de As 3 Uiaras é agridoce. Pois, se por um lado vemos as duas protagonistas
escaparem do destino tão comumente traçado para as mulheres transexuais e travestis, a morte,
por outro temos uma solução que envolve a invisibilização e silenciamento, ainda que
temporários, dessas duas personagens. Apropriando-se da ideia de drama-da-vida, o desfecho
é aberto, a peça não dá conta de abarcar o futuro dessas personagens que partem sem muitas
respostas para a cidade de Santos, na busca pela sobrevivência.
Ave: Isso. É, essa coisa da tragédia, porque termina pesado, termina com dores,
com sofrimento, termina numa crise, as três uiaras estão numa crise, as duas
travestis estão questionando a mulher cisgênero. E ela também. E elas estão
argumentando e tentando encontrar um jeito ali, e, naquela época, o que
aconteceu de fato foi uma ruptura.

Neste sentido, compreendo que Terrena refira-se ao final da peça como “pesado”, ele
de fato o é, afinal, aponta a clandestinidade como única solução para as Uiaras. Ao encerrar a
peça apontando um futuro incerto para as protagonistas, Terrena não encerra o drama, deixando
o porvir como um questionamento àquelas que leem ou assistem à peça. São muitas as
possibilidades do que pode ter ocorrido com Cínthia e Miella, e é nisso que me atenho ao
afirmar o tom agridoce. Pois, sabemos qual é a realidade da maioria da população trans, a
marginalização, invisibilização e a morte precoce, ainda assim, Terrena encerra a peça sem
nenhuma resolução e isso, de certa forma, é uma brecha encontrada para mantê-las vivas.
Um fim corajoso que se pauta em reticências e deixa o público com indagações e poucas
respostas, mas vejo isso como uma estratégia para dilatar, para além da experiência de leitura
90

e/ou fruição do espetáculo, os questionamentos trazidos pela dramaturgia. Finalizo retornando


à duas falas de Terrena que bem traduzem essa ideia:
Ave: (...). Eu acho o teatro muito morto, às vezes. Você vai no público, tá todo
mundo deitado, dormindo, olhando. Como o Zé Celso diz, mais preocupado com
a pizza depois da peça do que com o teatro que tá acontecendo ali, né? E eu acho
que a gente vê muito isso nesses circuitos comerciais de São Paulo.
Sofia: Essa coisa contemplativa no mau sentido…
Ave: É, nem contemplativa, é anestesiado mesmo, morto. Cê olha pra pessoa e
fala “Eu acho que ela nem sabe porque que ela tá vendo essa peça.” Podia ser
essa, podia ser qualquer uma.

Em suma, “O que a gente tá fazendo é o que todo mundo queria fazer, do teatro, que é um
encontro vivo do presente que transforma as relações em volta. Só que boa parte do teatro tá
meio empoeirada.” (TERRENA em entrevista concedida a atriz Renata Carvalho, 19 mai.
2020)
91

III. “Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras!” – sobre o racismo e o processo
de subjetivação da mulher negra.

Foto 3: Grace Passô

E olha, esse silêncio que eu fiz agora foi para que sentisse falta de mim.
Grace Passô, Vaga Carne45

III.I. Dos inícios, o Grupo Espanca! e a escrita como exercício de liberdade


Cada início de capítulo é um parto, e isso não se torna mais fácil com o tempo. Este é o
último capítulo que escrevo, cronologicamente falando, apesar de estruturalmente ele ser o

45
A peça de Grace Passô foi publicada em 2018 pela Editora Javali, e é sob essa edição especifica que debruço a
minha análise. Você pode obter um exemplar através do site da editora: https://www.editorajavali.com/product-
page/vaga-carne-grace-pass%C3%B4. Acesso 20 ago. 2021. No mesmo ano, a peça compôs a coletânea de
Dramaturgia Negra, organizada por Eugênio Lima e Julio Ludemir, e disponibilizada em versão digital e gratuita
pela Funarte (https://www.funarte.gov.br/edicoes-online/dramaturgia-negra/). Porém, nesta segunda versão
algumas escolhas estilísticas (tais como o uso de páginas em branco, e posicionamento das frases na folha) foram
preteridas ou amenizadas na formatação da coletânea.
92

penúltimo. É claro que, depois de finalizá-lo eu voltarei para o início e revisarei tudo de novo,
adequarei a linguagem, que foi se alterando com o tempo, corrigirei possíveis erros, adicionarei
aprendizados. Ainda assim, o trabalho foi feito, quer dizer, está em vias de ser finalizado agora
na escrita deste capítulo. Achei que após dois anos e meio de pesquisa ficaria em algum
momento calejada; não fico, sempre acho penoso começar a escrever sobre uma nova artista.
Buscar inovar minha escrita, não me repetir nas estruturas pré-estabelecidas, apresentar uma
obra de forma a potencializar toda sua beleza e violência. Mostrar, empiricamente, porque a
escolhi estudar, dentro do mar de possibilidades que a dramaturgia contemporânea brasileira
nos apresenta.
Enquanto escrevo essas palavras me pergunto: Como falar sobre Grace Passô? A
primeira dramaturga brasileira que eu conheci, e talvez por isso, a qual possuo maior
admiração, encantamento e medo. Sim, medo, pois quando admiramos demasiadamente
alguém, o medo de pisar em falso é quase paralisante. Grace Passô foi a primeira dramaturga
com a qual tive contato em minha vida, e a última que consegui entrevistar dentro dessa
pesquisa. Entrevistei-a no dia 2 de dezembro de 2020 em meio a pandemia de COVID-19. Por
conta disso, minha entrevista com ela foi a única feita virtualmente (uma maluquice sem
tamanho, pois absolutamente todas entrevistas foram feitas no mesmo ano, com um
espaçamento de 10 meses, que se tornaram uma vida).
Em fevereiro de 2020 pude ir ao teatro entrevistar Michelle Ferreira antes que suas
atrizes entrassem em cena para uma sessão da temporada de Tem alguém que nos odeia, peça
que pude assistir ao vivo, talvez uma das últimas que vi no ano. Mais tarde, no mesmo mês,
um dia depois do meu aniversário, entrevistei Ave Terrena em sua própria casa, na cozinha,
enquanto ela preparava um almoço tardio. Nas duas entrevistas, sem máscaras, com
proximidade física, falamos sobre trabalho e planos para o ano. De repente, era dezembro e
nenhum desses planos que conversei com Michelle e Ave pode ocorrer, eu me via de frente
com Grace Passô intermediada por uma plataforma de conferências virtuais e com uma
instabilidade absurda na internet de casa, afinal era verão e chove muito, o que provocou uma
queda na conexão que me tirou do eixo. Quando me reconectei, estava Grace fumando em sua
sala com a tela ainda aberta, me esperando, e eu absolutamente nervosa com o ocorrido que
obviamente foge de nosso alcance. Que falta nos faz os encontros de verdade.
Conheci Grace Passô em 2015 no Festival Internacional de Teatro de Campinas
(FEVERESTIVAL), que acontece durante o mês de fevereiro na minha cidade natal. Naquele
ano eu adentrava o quinto período de graduação em artes cênicas, o semestre começaria em
93

março com a primeiro exercício de criação cênica previsto no currículo do curso, que
culminaria numa peça com temporada de apresentações, por isso, achei que seria importante
começar a me envolver com a produção cultural. Trabalhei como voluntária dentro do
Feverestival, cumprindo a função de acompanhar alguns dos grupos que estavam na
programação. Tive sorte. Dentre os diversos grupos que acompanhei durante quinze dias de
festival, conheci Silvero Pereira46 e o Grupo Espanca!, do qual Grace foi membro e fundadora.
O Espanca! trouxe ao Teatro Municipal José Castro Mendes num sábado à noite, sete
de fevereiro de 2015, a peça Por Elise, primeiro espetáculo do grupo, e também a primeira
peça escrita e dirigida por Grace Passô, que também atuava. Lembro-me do encantamento que
senti enquanto espectadora e estudante de teatro ao assistir à peça. O imaginário suburbano de
bairros brasileiros, a música de Beethoven incorporada ao carro do gás que passeia diariamente
pelas ruas, o lixeiro e o cachorro que o ataca, a vizinha que conta histórias, os abacates que
caem do pé, a vida e a morte.
Por Elise teve início, eu tava a fim de fazer alguma coisa porque eu queria ver em
cena elementos da vida, da minha vida. Não da MINHA vida, mas eu queria que os
meus, as minhas comunidades fossem ao teatro, e eu sempre rechacei a ideia do
teatro como alguma coisa pra poucos, como alguma coisa, sabe? O universo da
minha vida é muito poético, eu sou de Belo Horizonte, minha família é de Pirapora,
então ela se criou ao redor do rio, com muitas histórias, muita arte, né? A arte tá
na vida das pessoas, a arte é uma língua, e então eu nunca entendi não ter
elementos do nosso cotidiano brasileiro, o que vem a ser isso, na cena, então eu
fui muito movida por isso. (PASSÔ, em entrevista concedida à pesquisadora 02
dez. 2020)

Da necessidade de se trazer o cotidiano, o ordinário, o comum, o banal à cena,


quebrando o paradigma da arte como produto feito pela e para uma elite, essa minoria que tem
acesso à cultura, nascia uma peça repleta de poesia e identificação. O ímpeto da escrita nasce
em Passô da necessidade de se ver em cena, não a si enquanto indivíduo tão somente, mas o
seu entorno, seu universo. Em contraposição com essa arte elitizada, “para poucos”, Passô
desenvolve uma dramaturgia popular, urbana e contemporânea. Onde figuras de um imaginário
comum, que remonta da sua infância em Belo Horizonte, surgem à cena.
É importante constatar sobre a importância da cidade de Belo Horizonte na formação
da artista. Grace Passô acaba sendo a única autora entre as três que escolho estudar que não é

46
Naquele ano, Silvero Pereira apresentou a peça BR-TRANS, monólogo em que o ator narra sua experiência e
pesquisa artística desenvolvida pelo Brasil, de norte a sul, contando histórias de mulheres transsexuais e travestis.
A peça chegou a receber críticas quanto a utilização do trans fake, quando uma pessoa cisgênero interpreta uma
personagem trans, ainda assim e potência da obra foi uma das portas de entrada para a ampliação do debate
artístico sobre essa parcela da população. A visibilidade do ator nos anos seguintes decolou ao participar da novela
Força do Querer (2017). E do longa metragem Bacurau (2019).
94

de São Paulo, ainda que tenha se mudado para lá recentemente, boa parte da carreira de Grace
foi formada e consolidada em BH. Para além, a capital mineira é um polo teatral
importantíssimo dentro da cena nacional, sendo terra natal de alguns dos maiores e mais antigos
grupos de teatro ainda atuantes, o Grupo Galpão, cuja importância para o estado de Minas
Gerais, e especialmente para a cidade de Belo Horizonte, não se dá tão somente pela sua
produção teatral, mas também pelas suas ações formativas e educacionais.
Em 1998, o Grupo Galpão fundou no centro da cidade de Belo Horizonte o Galpão Cine
Horto, espaço que reúne sala de teatro, cinema e sala de ensaio, além de promover atividades
artísticos educacionais para a comunidade belo-horizontina. Uma dessas atividades é o Festival
de Cenas Curtas, que ocorre desde o ano de fundação do espaço e que permite com que novas
autoras, autores e diretores apresentem seus trabalhos. As cenas, que devem ter até quinze
minutos, são apresentadas num festival que dura cerca de quatro dias, recebendo notas do
público, as mais votadas se apresentam novamente no espaço.
Foi no Galpão Cine Horto que Grace pode apresentar seus primeiros escritos, assim
como tecer suas primeiras experiências como diretora. A artista participou sequencialmente
das primeiras edições do projeto. Foi lá que, em 2004, surgiu o primeiro esboço de Por Elise,
que já em 2005 estreava em Curitiba em sua versão estendida.
É inegável a importância de um espaço como este para o surgimento e consolidação de
novos artistas pois, além de garantir infraestrutura às produções desses primeiros espetáculos
inéditos, assegura a visibilidade de novos artistas da cidade. Para Passô, o formato curto
também permite uma radicalização maior das artistas na elaboração de suas peças, “(...) o que
acontece nesses formatos menores é que normalmente os artistas eles radicalizam mais, cê vai
fazer uma coisa de 15 minutos ali pra apresentar num festival, você acaba topando errar. Topar
errar é muito importante na arte. Desviar de caminhos mais certos. E no Brasil nós temos muito
poucas possibilidades assim, pra errar” (PASSÔ para Itaú Cultural, 2018, 25 min.)
Na mesma entrevista, a autora identifica que a participação contínua dentro do festival
de cenas curtas no início de sua carreira trouxe à sua produção uma característica bastante
particular de escrever esboços, ideias curtas, cenas, e imagens, para depois elaborá-las em uma
peça completa.
Eu sempre tive muita coisa rascunhada no computador. Desde muito cedo. Uns
poeminhas, umas frases. Eu sempre ouvi muito a minha intuição de escrita. Eu
tenho essa prática na minha vida, de ouvir as palavras, as frases, as vezes, no
momento, é uma intuição sonora. Mas eu acredito que a intuição é uma
inteligência mais veloz. Então, às vezes eu capturo, eu tenho a sensação, eu intuo
que aquilo é interessante, ou pelo que diz, ou pelo que pode vir a dizer, e eu
coleciono, às vezes, sabe?
95

Essa referência à infância, onde a artista guarda suas primeiras memórias artísticas
revela a importância do contexto familiar na sua consolidação enquanto artista; não à toa a
família é um motivo recorrente, especialmente em suas primeiras peças. Nascida em uma
família que migrou do interior de Minas Gerais, cidade de Pirapora, banhada pelo rio São
Francisco, para a capital, Belo Horizonte, em busca de melhores condições de vida, a autora
enfatiza como a arte sempre esteve presente em sua vida ao longo da infância, seja pela música,
como também pela literatura e a pintura. Apesar de ser a primeira artista profissional, Grace
Passô valoriza esse contexto familiar preocupado em apresentar o universo simbólico e
imaginativo de diferentes linguagens artísticas, como fator constituinte de sua formação
profissional.
A importância deste período de sua vida fica evidente em outra peça escrita por Passô
em conjunto com o Espanca!, a segunda peça do grupo, Amores Surdos. Nela a cena se
desenvolve inteira dentro da casa de uma família: a mãe, o pai ausente e seus cinco filhos. A
peça se inicia e se finda com um telefonema do filho que mora fora do país (tal como duas das
irmãs de Grace, que moram na França); no interim, o cotidiano surdo dos cinco membros
presentes em cena (a mãe e quatro filhos), e a relação que eles estabelecem entre si e também
com os dois membros que são apenas citados (o filho e o pai ausentes) revela este monstro
imaginário da relação familiar fragmentada, que, na peça, transforma-se em um gigante
hipopótamo no quarto do Pequeno, o filho mais novo. Uma família brasileira. Ao fim, ou
melhor, desde o início, já que a peça se abre com um dos filhos anunciando tudo que acontecerá
nos próximos 50 minutos de espetáculo, entendemos que o filho que está no estrangeiro
suicidou-se.
Lidar com a ausência, com a dor e com a morte torna-se uma obsessão artística para
Grace Passô. A linha tênue que separou o nascimento da artista da morte de seu pai, um espaço
de cinco dias, foi a primeira evidência material da efemeridade da vida. Grace relembra este
dado pessoal que reverbera em sua obra. Uma experiência, ainda que não vivida
conscientemente, devido à precocidade da perda paterna, ainda assim de força tamanha que
reverbera dentro da produção da artista.
No mais, a violência é parte constituinte do Brasil. São 521 anos de massacre de povos
originários, espólio de terra e de bens naturais, tráfico e escravidão de povos negros,
marginalização, estupro e genocídios em massa. Genocídio de povos indígenas, genocídio da
população negra e periférica, genocídio da população trans, genocídio pelo descaso com a
96

situação da saúde pública durante uma pandemia são marcas sociais que nos constituem
enquanto nação e se perpetuam até hoje.
A ideia da morte e da vida é como um, como um nascimento, sabe essas
passagens, a morte também como nascimento. Meu pai faleceu e eu também
nasci ao mesmo tempo. Isso acontece muito nas coisas que eu faço. Ao mesmo
tempo, e não só isso, a nossa vida é uma vida muito violenta, né? A nossa história
também é muito violenta.
Sofia: É, eu ia falar isso, tem esse lugar social, esse lugar do Brasil.
Grace: Exatamente, claro. Acho que a violência faz parte da minha vida como uma
cidadã, assim, o nosso cotidiano é muito violento aqui no Brasil, a política brasileira
é muito violenta e a própria formação do Brasil é de uma violência profunda. Então,
a dimensão disso pra mim é tão grande, mas tão grande que não sei, Isso é do
repertório do lugar onde eu vivo, da história da onde eu vivo, né? A violência é um
componente na vida assim. Então, é, eu também sou uma pessoa com muita raiva,
eu tenho muito amor, mas eu também tenho muita raiva, e de alguma forma a
violência ela também, às vezes opera como uma forma de catarse, também, pra
cena, acho que é um pouco isso.

As outras duas peças que Grace Passô desenvolveu dentro do Grupo Espanca!
Congresso Internacional do Medo, cujo título é uma homenagem direta ao poema do
modernista Carlos Drummond Andrade, e Marcha para Zenturo¸ encerram a produção escrita
da autora dentro do Grupo, uma produção que dialoga com a poética da violência, termo que
o Espanca! cunha para definir seus interesses e pesquisas artísticas. Violência essa que
permanecerá perseguindo a autora e atriz mesmo após seu desligamento do coletivo, tal como
uma obsessão, segundo ela.
Pensar a violência presente nos textos de Grace Passô como a expurgação de um
sintoma social e também pessoal torna este tema, de certo modo, um leitmotiv em suas obras.
O corte abrupto, a violência inesperada, a morte súbita são ações recorrentes e repetidas em
quase todas as suas peças. Em Por Elise, temos o ataque cardíaco, em Congresso Internacional
do Medo, temos um parto e uma morte acontecendo sequencialmente, em Amores Surdos a
sombra de um hipopótamo, fruto do amor familiar malcuidado e o suicídio do irmão que mora
além-mar.
Como bem observa o pesquisador Rafael Coutinho, a produção escrita de Passô dentro
do Espanca! direciona o olhar de quem lê para a dor do outro, para essas não-personagens,
figuras simbólicas de um imaginário bastante comum e nacional.
O que também nos desperta empatia, pois não há individualidades (raramente as
personagens têm nomes) há a figura, que preenchemos com a nossa experiência:
todos conhecemos uma Mãe que carrega a dor da família para si; uma Dona de Casa
que é a narradora das histórias de seja lá quem passar pela rua; Lixeiros; Intelectuais.
O sentido coletivo é reestabelecido. (COUTINHO, 2018, p.86)
97

O sentido coletivo pode ser reestabelecido na medida em que Grace explora a


construção de impersonagens, ou seja, de personagens que fogem da estrutura teatral do drama
burguês, completamente individualizadas, e retoma a dimensão narrativa trágica do teatro
(SARRAZAC, 2017). O drama burguês, personalizado, é preterido pela tragédia, coletivizada,
tanto na estrutura formal de suas obras e como também enquanto preferência poética. O
“espanto pelo acaso da tragédia” torna-a a obsessão particular da autora.

III.II. Descolonizando a Cena


Com a sua saída do Grupo Espanca! Grace Passô inaugura uma nova fase estética e
poética de seu trabalho, uma fase que em termos dramatúrgicos traz uma radicalidade muito
maior aos seus escritos, um momento também mais maduro de sua produção textual, como
Grace mesmo aponta em entrevista para o Itaú Cultural47. A autora identifica em seus primeiros
textos (estes produzidos dentro do Espanca!) forte ligação com a infância, tanto pelos motivos
já supracitados — a importância de sua história e memória pessoal e dos elementos cotidianos
e até mesmo biográficos dessa fase de sua vida na lida com sua escrita — mas também da
infância enquanto símbolo de seu desabrochar como dramaturga, “Por Elise, Amores Surdos
são de uma infância do teatro pra mim. Eles têm qualidade da infância. São textos lúdicos, têm
um frescor, uma falta de medo inclusive, uma certa coragem” (PASSÔ, Itaú, 2018, 35 min)
Desta segunda fase, mais madura, da sua escrita, citarei duas obras: Mata teu Pai e
Vaga Carne, cuja análise aprofundada realizarei em seguida. Em ambas as peças há uma
radicalização evidente da escrita tanto em termos estruturais como na própria abordagem do
conteúdo, que passa a ser tratado de forma mais ousada e até mesmo performática. As duas
dramaturgias são estruturadas como monólogos escritos para mulheres e que trazem em seu
escopo a questão do feminino dentro dessa sociedade patriarcal de forma bastante contundente.
Em Mata teu Pai, peça escrita para a atriz Débora Lamm e Cia OmondÉ, Passô revive
a tragédia grega Medéia dentro do contexto brasileiro. O corpo feminino desta mãe que mata
teus filhos como forma de libertação de si e deles mesmos em um sistema patriarcal, capitalista
e colonial. O corpo feminino como território de posse e exploração, assim como os outros
tantos territórios que a dramaturga alude ao longo da narrativa. Territórios invadidos,
explorados, violentados: Síria, Cuba, Haiti, Brasil. A peça parte da imagem da mulher

47
No vídeo realizado em 2018 para o Itaú Cultural na sessão “Caramim em cena”, Grace Passô é entrevistada por
Beth Néspoli. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Dx6VGcwgE8A&ab_channel=Ita%C3%BACultural>.
98

indomável que é Medéia, e cria situações cotidianas na narrativa desta protagonista com as suas
vizinhas, seus filhos e o pai das crianças, um pai que só existe enquanto discurso. Qual a prova
maior de insubmissão diante deste sistema que já impõe o sacrifício feminino diário, seja no
controle de nossos corpos, da nossa liberdade, de nossos instintos e sentimentos?
E de novo nos sacrificamos. E de novo nós damos e tiramos à luz, e de novo o trabalho
é nosso. Este é o ato mais maternal que posso dar a este mundo lamacento, vendido,
injusto, capitalista, militar, patriarca. Este é o ato mais maternal que posso dar a este
mundo, minhas filhas, ser.
Uma.
Indomável.
Mulher.
(PASSÔ, 2017, p. 44-45)

Encontrar na morte a libertação é ato maternal de Medeia e visceral de Passô, que


enquanto autora-rapsoda se faz presente na condução da fábula dramática. A estrutura do
monólogo está calcada na condução da narrativa, elemento que a autora considera fulcral
enquanto atriz e que acaba repercutindo na condução de suas escritas teatrais. Meu repertório
de cena, ele é muito de uma criação de uma narrativa, então eu, eu acho que tem muitos tipos de
atrizes, mas eu sou uma atriz que se liga muito a narrativa48. A atriz-dramaturga conduz a
dramaturga-rapsoda pela transmissão da história. Como abordar esta tragédia milenar dentro
de uma realidade brasileira e contemporânea? O que é possível de se reverberar?
A peça acaba apresentando um grito feminista e decolonial frente à assuntos tais como
direito ao corpo e ao aborto, migração e xenofobia, maternidade e sororidade. A ideia da mulher
indomável, em contraposição à feminilidade dócil e cordial, é representada também pela
animalização da personagem principal na figura da cadela. Trazer à cena a imagem animalesca
é um recurso o qual Grace Passô explora bastante, talvez pelo animal e a sua falta de razão
trazerem com força a dimensão física-corpórea e, acima de tudo, instintiva do ser humano,
afinal, somos nós também animais, ainda que muito bem domesticados pelo filtro social. Este
olhar atento ao corpo retoma a ideia, já antes elaborada, de trazer à cena a dimensão trágica da
narrativa, o que acaba por casar muito bem com a peça, que é uma releitura da tragédia de
Eurípedes.
Os diálogos entre a tragédia grega e o contexto contemporâneo e brasileiro são coroados
em um pequeno detalhe ao fim do texto, a assinatura de Grace Passô: “Brasil, 2016, ano
inesquecível”. Mata teu Pai peça escrita neste ano fatídico para a derrocada recente do país,

48
(PASSÔ, em entrevista concedida à pesquisadora 02 dez. 2020)
99

inaugura uma radicalização formal e política da dramaturga. Os diálogos entre ficção e


realidade a partir de então se tornaram cada vez mais explícitos.
Na versão cinematográfica de Vaga Carne (2019), o diálogo entre a obra ficcional e o
Brasil real também são explicitados. Ao fim do vídeo, já nos créditos, Passô rompe com a
ficção e coloca sua peça em diálogo direto com Marielle Franco, Dilma Rousseff, Lélia
Gonzales.
A inauguração deste novo momento na escrita de Grace, um momento mais diretamente
político-combativo, não significa, de modo algum, que esses assuntos não existissem
anteriormente no escopo da escritora, assim como não são resultado de um devir súbito de uma
assunção enquanto mulher negra e feminista. Talvez seja mais interessante observar este
movimento de radicalização da escrita da autora a partir de um paralelo direto da artista frente
seu tempo:
Beth Néspoli: (...) Tem um momento me parece que esses temas, (você) tem uma
tomada de consciência sobre eles, não que eles não estivessem antes, você localiza
isso?
Grace Passô: Eu acho que tem uma importância muito grande, assim, em dar nome
as coisas, mas também um perigo muito grande, eu tenho ouvido muito isso, e em
algum lugar isso me incomoda um pouco. Não essa pergunta, mas esse lugar de dizer
“A partir de agora, quer dizer que você se tornou feminista”, ou “Você tem falado
sobre negritude antes, cê não falava sobre isso...” Como se a linguagem não fosse
um resultado sempre assim, das suas questões existências em ação na sociedade,
sabe? Eu acho que isso sempre vai acontecer comigo, isso não quer dizer que eu
passei agora por um desejo de fazer uma escrita feminista. É bem provável que, bom,
eu sou uma mulher feminista, então como vou fazer uma escrita que não seja
feminista, né? E, eu sempre fui uma mulher feminista, só que o que existe, isso é
resultado de militâncias, isso é resultado de movimentos, isso é resultado enfim de
um pensamento que acontece nos locais por quais eu passo. Existe um pensamento
que vai ficando mais consciente. Se não fosse assim, eu não seria uma mulher na
sociedade, vivendo ativamente na sociedade e lucidamente e com certas intenções
nessa minha existência. Eu tenho a intenção de ser uma pessoa que trabalha com
arte e que está em contato radical com a realidade. Eu tenho a intenção de que
as coisas que eu faço na arte, de alguma forma, mostrem isso, representem com
nitidez o que é essa sujeita, que sou eu, em movimento na sociedade. Eu preciso
estar em movimento para estar viva. Nesses movimentos, é obvio que em alguns anos
eu me nomeie como feminista, é bem provável que antes não, porque eu talvez não
tivesse tanta consciência disso, porque talvez não tenha passado por determinados
lugares que hoje eu já passo. Então, não é que eu começo a dar características
especificas. É que a arte que a gente vai fazendo, ela vai sendo, vai tendo uma pegada
da nossa transformação enquanto cidadã, enquanto uma pessoa, um sujeito político,
uma pessoa que tá nesse mundo pensando. (PASSÔ, em entrevista concedida ao Itaú
Cultural, 2018)

Essa reflexão da linguagem enquanto ferramenta e resultado de uma dialética entre


sujeita e sociedade e a responsabilidade da arte enquanto manifestação da realidade e da artista
dentro da sociedade exemplificam bem essa suposta “radicalização” na obra de Passô. Afinal,
política e socialmente, as mudanças que ocorreram no Brasil de 2016 (ano inesquecível) e que
100

provocaram a guinada conservadora que temos vivido à toque de caixa exigem uma postura
mais contundente de nós, artistas, o que extrapola as ideias de produção de um teatro engajado
ou militante. É importante ter isso em mente para não cairmos em rotulações vazias ou
simplistas ao analisar a obra da artista, seja no campo da dramaturgia feminista, seja no da
dramaturgia negra.
Beth: Jé Oliveira, diretor do coletivo negro, faz perguntas muito interessantes. Um
corpo negro em cena é o suficiente para se ter um teatro negro? O que seria um teatro
negro? A cultura negra ficou apartada da cena. (...) De alguma forma você se sente
contribuindo com uma poética que venha nessa vertente? Que enriqueça isso?
Grace: A discussão sobre o que é teatro negro é muito profunda e tá num lugar muito
interessante. Eu vejo nos lugares por quais eu passo. Chegamos muito menos à uma
definição. Nós quem? As pessoas com as quais eu converso, nós negros, que eu não
seria louca. A gente chega muito menos a definições, mas mais a tentar expandir o
que seria isso. Também ouço modos muito diferentes de leitura do que significa um
teatro negro. E não tem uma definição particular do que é teatro negro, pra mim essa
não é a questão. Acho que o teatro negro tem trazido questões muito maiores do que
essa. É um pouco mais sórdido do que acontece com a expressão negra no teatro
brasileiro. Não se trata só de um apagamento, se trata de um insistente silenciamento
que vem de uma forma muito profunda das expressões negras. Quando se fala, ou
determinada parte da população se espanta com o modo de reação de negros e negras
artistas brasileiros a determinadas cosias. Essa parte da população não leva em
consideração que essa reação é uma reação ao que ela produziu. Entende? O que se
espera de um corpo negro na cena brasileira? Todo o racismo brasileiro reverbera na
arte brasileira, de uma forma muito direta. (Ibidem)

Neste sentido, a dimensão do corpo em cena e das narrativas que este corpo carrega,
herdada de seu trabalho como atriz, traz à Grace Passô uma perspectiva bastante peculiar ao
exercer os ofícios da escrita e da direção, funções essas que historicamente estão ligadas a um
espaço de poder, de imposição e de mando. Com Grace ocorre o oposto. Sua relação primordial
com o “ser atriz” permite que a artista encare as demais funções que exerce de uma forma
muito menos hierarquizante e colonizadora, sobre isso conversamos:
Grace: (...) eu tenho a impressão, isso eu ainda tenho que pensar com o tempo,
mas eu tenho a impressão de que o fato de atuar me coloca numa perspectiva um
pouco menos hierarquizada na direção. A medida em que mesmo quando eu
estou dirigindo, eu me vejo como a pessoa que tem que agir, mesmo se a minha
ação é provocação, eu não me distancio nunca de um lugar frio e calculista, sabe?
Eu tenho a dimensão do corpo, do que o corpo ode fazer em contato com uma
narrativa. Então, o meu exercício, eu sinto que a atuação trouxe pra mim um olhar
para a dramaturgia e para a direção, um olhar menos colonizado dessas práticas.
Um olhar menos colonizado mesmo, no sentido de...de...procurar menos
domínio, sabe? Eu num, a minha questão não está muito ligada ao domínio, sabe?
Da atriz que eu tô dirigindo, do texto. A minha questão está mais ligada com a
relação que eu crio, uma relação, mas não de dominá-lo, de um controle completo,
que é normalmente, que são coisas muito vizinhas da ideia de liderança, da ideia
da condução, todas essas características são importantes na direção, numa
escrita, da autoralidade (sic), mas elas são importantes, mas elas tem muitos
modos de fazer, e eu sinto que a atuação me trouxe essa relação. Uma relação
mais carne e osso com a escrita e com a direção.
101

Sofia: Sim, sim, interessante isso que você está falando. Menos de dominação,
mesmo, como você fala... De querer hierarquizar a importância, porque de fato
são exercícios de poder, historicamente...
Grace: Sim, é. E, exatamente. Até de entender essas funções em perspectiva
diferente. Isso tudo que eu tô falando é uma medida difícil, não é uma medida fácil
de ter. Não se trata simplesmente de eu não querer dominar alguém, ou uma cena,
controlar. Não. Às vezes é necessário. Todas essas coisas elas estão em
movimento o tempo inteiro. Mas, sem dúvida nenhuma eu tenho intenções
nítidas enquanto eu tô fazendo essas coisas, enquanto eu tô escrevendo um texto
de ser mais porosa, de criar relações, de pensar pra quem eu tô escrevendo, de
pensar quem eu tô dirigindo, de ouvir a potência do outro. Tem alguma coisa aí
que eu não pensei muito sobre isso, mas tem alguma coisa aí que me coloca com
essas dramaturgias, com essas direções, que me coloca num lugar mais ativo e
menos, é, um lugar ativo e afetado. E menos num lugar distanciado e frio ou sei lá.
Eu tenho um pouco essa sensação, sabe?

Escrever e dirigir a partir de uma perspectiva afetiva e afetada envolve primordialmente


um exercício de escuta. Escuta do que a narrativa pede, escuta do que o corpo em cena diz e é
capaz de dizer. Ao invés da imposição e do domínio, cria-se um espaço de diálogo entre as
diversas potências, e a posição de mando que a direção e a dramaturgia possuem
tradicionalmente dá espaço para uma perspectiva mais relacional entre as diferentes dimensões
de criação cênica. Se colocar em relação é, em última análise, romper com uma lógica
colonizadora do fazer artístico, na qual as funções são hierarquizadas, e permitir que a liderança
desempenhada pela figura da diretora e da dramaturga não seja castradora da experiência da
atriz.
A minha questão está mais ligada com a relação que eu crio, uma relação, mas não
de dominá-lo, de um controle completo, que é normalmente, que são coisas muito
vizinhas da ideia de liderança, da ideia da condução, todas essas características
são importantes na direção, numa escrita, da autoralidade (sic), mas elas são
importantes, mas elas tem muitos modos de fazer, e eu sinto que a atuação me
trouxe essa relação. Uma relação mais carne e osso com a escrita e com a direção.

Descolonizar é confrontar a ordem dominante contestando as estruturas de poder reais,


imaginárias e simbólicas que perpetuam esta ordem hegemônica. Dentro de uma microesfera
teatral descolonizar o processo criativo pode ser visto como um processo que tem ocorrido aos
poucos ao longo do tempo, a partir da não hierarquização das instâncias criadoras: direção,
dramaturgia, atuação. E que tem na estrutura do processo colaborativo, muito disseminado no
Brasil a partir dos anos noventa, exemplo de operação. Nele, a construção cênica se dá a partir
do diálogo, nem sempre amistoso, por vezes combativo, entre criadores. As fronteiras do
individualismo, “minha ideia”, “minha cena”, “minha visão”, são rompidas quando o processo
é compartilhado na arena de criação, o resultado deve ser o comum acordo dessas diversas
perspectivas de forma horizontalizada e coletiva (ABREU, 2004).
102

Mas, há também uma instância mais sensível que se refere ao trato dos indivíduos
dentro da criação. É nessa instância que identifico valia no trabalho de Passô; quando a artista
se refere a essa relação “mais carne e osso com a escrita e a com a direção”, Passô trata esses
ofícios a partir de uma perspectiva de libertação mútua, seja da instância que domina, em
relação à suas representações, instituições e percepções, como também da que é dominada, no
que tange a sua dependência. (hooks, 2019)
Liberdade esta que foi historicamente negada a determinados corpos. Afinal, em se
tratando deste nosso microuniverso teatral, ao longo da história a quais identidades foi
concedido o protagonismo e a autoralidade? Quem pode escrever, e quais as perspectivas que
foram retratadas dentro da dramaturgia? Quem assume os papeis de liderança em processos
artísticos? Onde encontramos as mulheres no “matriarcado do teatro brasileiro49”? E quem são
essas mulheres? Quais realidades são ou deixam de ser representadas tradicionalmente na cena?
Quem são os corpos comumente representados em cena? E o corpo negro, pode representar?
A quais imaginários este corpo está ligado? E quais imaginários são a ele negados?
Porque quando cê começa a estar em funções que são tradicionalmente mais
conceptivas da cena, você escolhe mais, o que você quer falar e como você quer
falar. E aí é isso, historicamente tem uma série de existências de vários lugares de
nossa sociedade que vivem muito perigo. As mulheres por exemplo. Um perigo de
cair nas armadilhas dos estereótipos e da repetição dos mesmos lugares, que são
lugares que estão mergulhados num imaginário muito restrito, do que uma mulher
pode ser, do que determinadas existências podem ser. Do que alguém pode
representar. Então, é, eu só entendi isso depois também, na minha vida. Que
escrever coisas para eu atuar não era só um desejo de fazer só o que eu quero,
porque prum senso comum, num primeiro momento pode ser, mas depois eu fui
entender que era pra eu poder fazer outras coisas. Pra eu poder exercer a
liberdade, inclusive comigo mesma, de pensar em fazer coisas que eu sei que
nunca me chamariam pra fazer. E que nem eu consigo me imaginar fazendo.
Então, é pra mim também a escrita, a dramaturgia, um lugar de experimentar a
liberdade, mesmo, da minha existência, das minhas práticas, dos meus exercícios
como atriz. Acho que vem muito disso.

A tomada de protagonismo e agenciamento do próprio corpo e da própria história é um


passo importante dentro da descolonização do imaginário. Vivemos em um país cujo ponto de
vista narrativo é historicamente masculino e branco, é este individuo quem teve o “direito” de
subjetivização. E foi sob o ponto de vista deste sujeito que outras identidades foram por muito
tempo representadas. A colonização do pensamento e do imaginário coletivo é um processo

49
Ironizo o senso comum instaurado na teoria teatral brasileira de que o nosso teatro seria um matriarcado devido
a grande presença massiva de figuras femininas, predominantemente desempenhando a função de atrizes, ao longo
de nossa história. Como Tânia Brandão propõe, o matriarcado brasileiro é uma ilusão confortável, uma estratégia
cruel para mascarar a triste realidade à qual a mulher brasileira é colocada dentro e fora do teatro neste país.
(BRANDÃO, 2020).
103

tão intenso e bem-sucedido que não somente instaurou um ponto de vista único sobre o qual a
história e arte são abordadas, como também tem o poder de fazer com que esses outros corpos
experienciem suas existências enquanto “outros”, objetos fragmentados que servem a uma
história. (HALL, apud. hooks). A narrativa fragmentada e estereotipada a qual o corpo negro
foi encaixado serve à manutenção do status quo e da ordem colonial na qual o Brasil ainda
opera, não apenas simbolicamente, como também politicamente. A linguagem, seja ela oral ou
escrita, por mais poética e metafórica que seja, tem o poder de criar, fixar e perpetuar lógicas
de poder e violência (KILOMBA, 2019).
Compreender que o processo de descolonização vai além da negação pura e simples da
ordem hegemônica é um passo importantíssimo a ser dado, especialmente pelas pessoas
brancas. Descolonizar tem muito mais a ver com um exercício de ampliação do espectro
narrativo e de subjetivação de identidades múltiplas que historicamente foram tidas como
objetos.

III.III Vaga Carne


Uma voz invade um corpo e dentro dele se reconhece enquanto sujeito. Em Vaga Carne
o corpo é o espaço, o “onde”. E a voz é a personagem, o “quem”. Dessa dissociação entre voz
e imagem nasce a figura da mulher em cena. A peça narra o processo de subjetivação dessa
sujeita, uma mulher negra, e quais as consequências que a identificação de seu corpo como
uma construção social acarretam para si.
Diferentemente das outras peças escritas por Passô (cujo vislumbre da encenação era
ponto de partida para o desenvolvimento da escrita, seja dentro dos processos colaborativos
com o Grupo Espanca! seja em suas parcerias com Cia. OmondÉ em Mata teu pai e com a
Companhia Brasileira em Preto), Vaga Carne foi escrita em 2016 para um edital de publicação
da editora belo-horizontina Javali em sua Coleção Teatro Contemporâneo e, a priori, não
visava montagem.
Eu sinto que o Vaga Carne foi uma nova etapa pra mim em termos de dramaturgia.
Quando eu li o texto pela primeira vez, não li pra fazer, li num evento de
dramaturgia, e as pessoas...tinha muita gente...Eu senti uma reação que eu achei
legal, as pessoas ficaram muito magnetizadas, mas um pouco sem entender como
aquilo poderia ser feito no teatro, eu gostei dessa reação que eu senti. Quando eu
terminei de ler, as três vezes que eu li, antes de eu saber que eu ia montar eu
terminei de ler e as três vezes eu senti aquela qualidade de silêncio e atenção e
uma certa hipnose do texto. Essas reações que me deram vontade de fazer o
texto, e também porque ele vem de encontro a muitas coisas que me interessam
falar agora. Me interessa falar muito sobre meu corpo, o que ele representa,
negritude, o corpo assim, no Vaga quando ele consegue se nomear de alguma
forma tem essa passagem dessa metáfora morte e vida, e, quando ele se nomeia,
104

essa é a contradição, é a contradição, não digo contradição é o paradigma que


tem a ver com o paradigma também que a gente que é preta vive.

Por meio dessa devolutiva instigada do público que ouviu as leituras de Vaga Carne,
que a autora compreendeu a potência do texto enquanto peça de teatro. Passô enfatiza em suas
falas sobre a importância que dá enquanto artista para a instauração desta qualidade de
experiência transformadora que a cena pode proporcionar ao público, o teatro enquanto
acontecimento transformador tanto para quem faz como para quem o assiste. Foi assim que a
peça ganhou encenação em 2016, com Grace Passô assumindo o protagonismo de cena, e
estreou no Sesc Curitiba. Desde então Vaga Carne tem sido encenada em diferentes cidades ao
redor do Brasil e participado de mostras e festivais de teatro, além de ter garantido alguns
prêmios de dramaturgia à autora como o Shell Rio de Janeiro, e Cesgranrio (2016), e o prêmio
Leda Maria Martins (2017). Em 2019 a peça ganhou uma versão cinematográfica, com direção
de Grace Passô e Ricardo Alves Jr. Desde então o média metragem tem participado de festivais
ao redor do mundo como o Festival internacional de Berlim (2019), e o Festival Internacional
de Mulheres no Cinema (2020).
De antemão, atento-me ao uso do termo vaga no título da peça que em si já resguarda
a ambivalência sobre a qual está estruturada a obra. Vaga pode ser lido como verbo de ação da
sujeita voz sobre o objeto carne, trazendo o sentido de “passear sem rumo”, ou seja, a voz que
vaga a carne. Nessa primeira leitura do título da peça temos o corpo negro como objeto da voz.
Mas o termo também pode ser lido como adjetivo para o substantivo carne, trazendo o sentido
de carne vazia, desocupada, não preenchida, e que em um nível mais sutil também reverbera o
sentido de indeterminação, uma carne qualquer, “sem dona”. Uma carne vaga.
É nesse duplo, uma voz que não possui corpo e por isso invade as mais diversas
matérias, e um corpo que não possui voz, que a peça se constrói.
Então, a primeira coisa que eu intuí era criar alguma estratégia dramatúrgica para
dar conta de um corpo que tivesse uma espécie de desarmonia entre o que ele
fala e o que ele age. Então, a partir daí eu fui atrás de pensar que corpo é esse e
que situação da peça, que situação essa história teria para criar esse jogo cênico
de alguém que fala algo mas o corpo age, digamos, em outra vibe. As ações não
estão concatenadas com a fala. E aí a voz...A ideia da voz como personagem
principal nasce de muitas coisas, assim, é... Nasce... A voz, a palavra voz tá muito
em voga no nosso tempo: escuta, voz...E aí a ideia da voz, eu acho que ela carrega
muito significado, inclusive o significado do discurso. Do discurso que a gente cria
para o mundo. Então eu intuí essas duas coisas: O desejo de fazer um jogo cênico
da voz dissociada da ação, caberia bem numa situação onde fosse um corpo em
busca de ser discurso, ou um discurso em busca de seu corpo. Um pouco essa
retroalimentação. Isso é na verdade uma grande metáfora para a construção de
uma pessoa como sujeito social, né? Porque várias questões, vários modos como
eu me enxergo na sociedade, isso é resultado de uma construção, né? E aí eu acho
105

que o Vaga é uma grande metáfora disso, desse corpo dessa mulher tentando criar
uma harmonia entre o que ela diz e o que ela age.

Grada Kilomba, psicóloga, pesquisadora e artista que menciono na entrevista, em seu


livro Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano analisa as representações e
atuações do racismo no corpo e psique negra em busca de uma descolonização do “eu”. O
processo de devir sujeito dentro de uma sociedade de supremacia racial branca e patriarcal é
também um projeto de recomposição de um “eu” fragmentado e objetificado historicamente,
processo esse que perpassa por uma série de embates internos e também sociais, onde sintomas
como a negação, a frustração, a ambivalência, e a identificação fluem.
O começo da peça é breu, a voz ocupa a escuridão, “Vozes existem. Vorazes. Pelas
matérias” (PASSÔ, 2016, p.15-16). A dramaturga abre a peça apresentando esta nova forma
de existir no mundo, o som. E propõe de antemão uma inversão lógica, não são as vozes
manifestações físicas das matérias, mas as matérias que são invadidas por essas vozes, que
existem, independentes da matéria. Um pouco mais à frente a voz questiona a capacidade da
plateia compreender a sua existência, “Sei também que vocês têm dificuldades de entender o
que não é vocês mesmos, mas vou tentar explicar: Sou uma voz, apenas isso. E, mesmo sabendo
que vocês não acreditam nesse tipo de existência, que não é humana, vim até aqui, proferir sons
de vossas línguas limitadas” (PASSÔ, 2016, p. 17). Logo em seguida o corpo da mulher será
iluminado pela primeira vez. Uma mulher negra surge em cena por pouco tempo e então, o
breu retorna.
Esta primeira sequência da dramaturgia de Vaga Carne revela em si toda a estrutura
argumentativa da peça ao colocar a voz, uma existência que por não ter corpo não é vista, como
metáfora para a invisibilização deste corpo negro, que ainda que esteja iluminado foi e é
historicamente silenciado. Ainda que a voz anuncie que por aleatoriedade escolheu falar no
feminino, sabemos que essa escolha está longe de ser impensada. A política de gênero atrelada
à política racial coloca o corpo da mulher negra em uma posição bastante peculiar em nossa
sociedade, as intersecções dentro da lógica de opressão: gênero, classe e raça, jogam a mulher
negra para a base da estrutura social.
Ainda que a voz seja a protagonista da peça e que por ela nós criemos um certo tipo de
empatia imediata, pois seu discurso flutuante nos captura pela sua impressibilidade, a voz pode
estar em cremes, patos, cães, cadeiras, caixas de som, mostardas, cafés, cavalos, estátuas,
estalactites, rãs, torneiras, você ou eu, também notamos na voz um tipo de sadismo colonizador:
“Posso penetrar, invadir, ocupar tudo (...) Eu penetro a matéria, saio dela, eu proclamo matéria,
106

eu sou livre, eu posso. Posso encerrar tudo isso aqui e partir”. A escolha das palavras usadas
por Passô neste trecho é bastante emblemática, “penetrar”, “invadir”, “ocupar”, “proclamar”,
“partir”. O processo de colonização é apresentado através desses verbos em sequência. É então
que a voz entra no corpo da mulher. Nós a vemos novamente.
A partir de agora a voz permanecerá dentro da mulher. E o processo de subjetivação se
inicia. O jogo que havia sido proposto até então se inverte. Num primeiro momento, assim que
a voz invade o corpo, ainda permanece o vagando quase numa lógica de reconhecimento
espacial: um lugar escuro, deslizante onde ela encontra o coração, pulmão, ossos, sangue,
olhos. O encontro da voz com os olhos é também o encontro dela com o público, o
reconhecimento do outro que a faz compreender como parte constituinte daquele corpo.
Acho que o primeiro momento no texto e na peça que, digamos que a primeira
dor que inaugura ali é o olhar do outro. É um...Tem esse percurso da narrativa,
como se essa voz num primeiro momento da peça lidasse apenas com questões
internas, quase como se fosse um nascimento dela, e com o embate orgânico,
físico, do sangue, dos órgãos, da respiração, e aí, a peça, tem a partir de um
segundo momento pra frente que é quando ela descobre os olhos. Quando ela
descobre os olhos ela descobre outras pessoas, descobre como as outras pessoas
veem aquele corpo que ela habita. Esse é o primeiro nascimento, digamos assim.

Grace Passô reconhece neste o momento o primeiro nascimento, a primeira dor, a partir
daqui a voz já não será mais tão livre, tão independente e dissociada do corpo, pelo contrário,
ela se verá presa dentro dele.
O reconhecimento puramente espacial dá espaço para um reconhecimento no campo
das sensações e desejos, ao reconhecer outros seres humanos, o público, a voz compreende que
sobre eles pode emitir opinião, por eles pode sentir coisas: “Você é muito. Você é pouco. Você
é quase nada”, “Eu não dormiria com você. Você, eu não te quero. Você, eu te amo. Você, eu
te quero agora” (PASSÔ, 2016, p.20-21). Mas, mais importante, é pelo olhar dos outros perante
ela, ou melhor, perante o corpo que ela habita, que a voz finalmente compreende que este é um
corpo silenciado:
Você quer fazer um discurso? Faça! Quer que eu fale por você? Eu falo! Referindo-
se ao público. Como você quer que esses bichos te respeitem se você não fala? (...)
Para o público. Ei, bichos ferozes! Vamos invadir o corpo desta mulher com
palavras! Vamos ocupar o corpo desta mulher com palavras! Esta mulher é só um
microfone, coitada, ela não tem nada a dizer! (PASSÔ, 2016, p.21-22)

A voz cria um certo tipo de cumplicidade com este outro que a observa, ambos fazem
um pacto pela objetificação deste corpo, inserem nele palavras, já que ele não tem nada a dizer.
Porém, o corpo cria gosto por ter uma voz. E é aqui que o jogo começa a se inverter.
107

O que ocorre neste trecho da peça é um improviso verbal entre a performer e o público.
A voz pede para que o público lance palavras a ela. Palavras essas que ela colocará dentro deste
corpo. É interessante observar que neste trecho, assim como em outros ao longo da peça, onde
a atriz-dramaturga dá espaço para o público intervir verbalmente no espetáculo, a escrita se
apresenta como um campo aberto. A dramaturgia de Vaga Carne está intrinsecamente ligada à
ideia de devir cênico.
Neste sentido, a própria estrutura da peça Vaga Carne entra em consonância com o
conteúdo temático da peça, numa proposição metalinguística. O devir cênico do drama que só
se completa no encontro com o público que o comenta, opina e direciona, dialoga com o devir
sujeita da própria impersonagem voz/corpo, que vive seu processo de subjetivação a partir
deste encontro do outro olhar. O drama assim como essa sujeita se constrói a partir do encontro
com o Outro, seja este Outro o Público perante o Drama. A Voz perante o Público. Ou o Corpo
perante a Voz.
A partir deste momento, já não é mais possível que a voz se descole do corpo. Por mais
que ela tente escapar, ambas passarão a serem lidas como uma, ainda que a voz permaneça
buscando sua independência. Essa luta pela dissociação entre a carne e som promove um
segundo estágio da violência. A voz estabelece então uma dinâmica de vítima versus algoz.
Idiota! Babaca! Otária! Egoísta! Gorda! Patética! Metida! Homofóbica! Pouco!
Racista! Mal-informada! Lésbica! Violenta! Insossa! Eu sei o que você quer, eu sei
bem o que você quer, você quer me aprisionar, você quer que eu seja uma mera
representação de você, carne, você é patética. (...) Quer que eu te ajude a ser a imagem
que o outro quer ver. Andando pelo público. Não! Eu não sou uma mulher andando
entre corpos humanos. Eu só estou presa aqui. Eu me recuso a entrar nesse sistema,
nessa ilusão. Há outras formas de vida e isto é necessário ser dito. (PASSÔ, 2018, p.
22)

A narrativa da ofensa, da hostilidade e da dor é lançada a este corpo. bell hooks em seu
livro Olhares Negros: raça e representação elabora uma ideia bastante complexa (talvez por
eu ser uma pesquisadora branca e não compreender na pele os efeitos da dicotomia que hooks
apresenta) que busco colocar em relação com este momento da peça. A autora fala sobre uma
narrativa social da mulher negra enquanto sujeita vitimada e infligida pela violência ao longo
da vida. A dor, a raiva e a hostilidade que esses corpos vivem em sociedade acaba reverberando
em uma mutilação psicológica do corpo negro para consigo, do ponto de vista social uma
experiência comum, recorrente e compartilhada.
Porém, quando assumimos que essa é a única narrativa possível para o corpo da mulher
negra, se exclui desse jogo a individualidade dessas sujeitas, que enquanto seres únicos e
diferentes entre si, também podem experenciar e elaborar sua vivência social de formas
108

distintas. Esse tipo de narrativa “constrói um sujeito homogêneo da mulher negra cuja
subjetividade é definida mais radicalmente pelas experiências que ela compartilha com outras
mulheres negras” (hooks, 2019, p.106). Grace Passô constrói Vaga Carne a partir deste conflito
entre o corpo negro feminino enquanto construção social versus a individualidade desta sujeita
que, para além do grupo ao qual socialmente é identificada, é um self específico,

acho que existe um movimento em busca de uma harmonia disso. Uma espécie
de harmonia de convivência entre o que, enxergar o nosso corpo como uma
construção social e ao mesmo tempo em comum acordo com as questões íntimas,
que cada um tem com o seu corpo. E aí eu acho que é um grande jogo o tempo
inteiro. É um movimento de muitos embates, o Vaga precisa ser lido numa chave
que não é uma chave da verdade, aquela situação é a situação de uma mulher
correndo atrás de si na sociedade, correndo atrás do que ela pode representar, do
que ela é...Ela entra em contradição, ela tem embates consigo mesmo, ela...É um
pouco pra dizer que a construção da gente como sujeito social, ela não é um
resultado só de certezas, é resultado de um movimento constante em busca de
afirmações, de negações, de escolhas, de opções, mas é uma construção sem
volta, É uma construção sem...é assim que a gente vai existindo.

Neste processo de humanização, a voz passa a experienciar sensações como prazer,


vingança, dor, esquecimento, falta, carência, choro. No ápice de seu ódio perante a carne, a voz
se esquece do que falava. Silencia-se pela primeira vez. E depois retorna dizendo: “E olha, esse
silêncio que eu fiz agora foi pra que sentisse falta de mim” (PASSÔ, 2016, p.45). A relação
dessas duas instâncias torna-se um jogo. Um jogo de equilíbrio de poder. É nesse jogo entre
prazer e dor que as duas instâncias se harmonizam. Entre o prazer e a dor. A vida e a morte.
A dramaturgia se encaminha para o fim quando a voz anuncia que o corpo está grávida
“Nós vamos ter um filho. Silêncio. Quer dizer, você vai ter um filho, me desculpe...” (p.47) é
a primeira vez que a voz se coloca no plural, eu e você, voz e corpo, ainda que logo em seguida
corrija seu ato falho. O processo de reconhecimento do feto no útero da mulher torna-se
também um processo de reconhecimento da voz enquanto parte deste sujeito. “Está decidido:
Eu vou ficar aqui dentro. Não vou deixar minha repolinha viver de qualquer jeito nesse mundo
do capeta, com esses bichos ferozes...afinal de contas eu tenho responsabilidades, afinal de
contas...Chora. A contragosto. Eu sou mulher”. (p.48)
Tomar para si a responsabilidade pelo desenvolvimento e educação deste ser novo que
se desenvolve no corpo e logo em seguida se entender finalmente como mulher inaugura um
terceiro estágio do processo de subjetivação e da violência que culminará na morte do corpo.
A existência do feto provoca na voz uma mudança completa de comportamento perante o
109

espaço que habita. Ela não só se compreende enquanto parte dele como passa a reivindicar por
um mundo mais justo para esse novo ser. E nessa busca por justiça se contradiz novamente.
Explode, deseja definir alguma verdade. Que se eu levanto a mão, eu sou responsável,
se eu balanço a mão, eu sou responsável, se nada falo, eu sou responsável, que nada
tem direito de invadir seu corpo e que se alguma coisa invadir seu corpo, que lhe peça
licença, que lhe peça licença, que lhe peça licença! Silêncio. (PASSÔ, 2018, p. 49)

Não teria a voz invadido aquele corpo sem pedir licença? Não teria a voz se vangloriado
logo no início da peça sobre a sua capacidade de invadir vorazmente toda e qualquer matéria?
O que significa essa contradição que é instaurada (talvez pelo apaixonamento da voz por esse
corpo que cresce, ou então pelo reconhecimento derradeiro que essa voz faz parte deste corpo
que por tanto tempo ela tentou lutar contra)?
Sofia: Interessante. É, uma coisa que eu sempre penso quando eu leio, é essa...
parece que quando a voz quando se entende no corpo, de fato, quando o
processo de compreensão do que é estar nesse corpo perante os outros que
olham e também como habitar esse corpo de dentro, e entendendo que você tem
um “fora” que age sobre esse corpo, meio que se encerra a jornada da voz. Ela se
compreende como um uno, e então.
Grace: É quase assim, essa morte da voz é o nascimento dela como humana.
Quando ela vê que não há como dissociar desse corpo, quando ela tem a
consciência que ela nasce. Através da morte ali.
Sofia: E daí o silêncio.
Grace: É...

O que significa esta morte que é ao mesmo tempo um suicídio, um aborto e um


assassinato? Para Grada Kilomba o suicídio é um marcador importante ainda que atroz da
vivência negra. “Dentro do racismo, o suicídio é quase a visualização, a performance da
condição de sujeito negro em uma sociedade branca: na qual o sujeito negro é invisível. Essa
invisibilidade é performada através da realização do suicídio. (...) Em outras palavras, o sujeito
negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da Outridade” (KILOMBA, 2020,
p.188). Ao longo de sua pesquisa acadêmica, Grada Kilomba revela que foi recorrente o relato
de casos de suicídio entre parentes ou pessoas próximas às mulheres entrevistadas. O suicídio,
assim como o infanticídio passam a ser vistos nestes casos como a forma última e radical de
proteger-se e proteger os seus da violência do sistema capitalista, escravagista e supremacista
branco que desumaniza a existência negra.
Neste sentido, para a autora, suicidar-se torna-se uma performance da própria
autonomia. Somente um sujeito pode tirar a própria vida, ou seja, o suicídio torna-se em última
instancia a afirmação cabal dessa existência enquanto identidade subjetiva e não como uma
“Outridade” objetificada.
110

Ainda que Vaga Carne esteja numa esfera representacional muito mais metafórica e
pouco realista, e neste sentido o punhal que a voz crava na pele do corpo pode adquirir
significados menos literais, ainda assim enquanto obra de arte serve como expurgo de dores
que na instância do real são muito mais profundas. Elaborar artisticamente essas dores que
advém de um processo histórico, sociológico e individual, por vezes muito anterior à nossa
própria existência, torna-se uma maneira, digamos, menos violenta de lidar com as próprias
violências, raivas, ódios e tragédias, sintomas esses advindos de nossa história pessoal e
coletiva. Representar a violência em cena torna-se um processo catártico tanto para a artista
como para o público.
Grace: Exatamente, claro. Acho que a violência faz parte da minha vida como uma
cidadã, assim, o nosso cotidiano é muito violento aqui no Brasil, a política brasileira
é muito violenta e a própria formação do Brasil é de uma violência profunda. Então,
a dimensão disso pra mim e é tão grande, mas tão grande que não sei, isso é do
repertório do lugar onde eu vivo, da história donde eu vivo, né? A violência é um
componente na vida assim. Então, é, eu também sou uma pessoa com muita raiva,
eu tenho muito amor, mas eu também tenho muita raiva, e de alguma forma a
violência ela também, às vezes opera como uma forma de catarse, também, pra
cena, acho que é um pouco isso. (...)Então, num certo senso de um país que é
racista como o Brasil e que tem um repertório de misoginia muito grande, pra um
certo senso todos esses discursos que as militâncias produzem eles são resposta
a uma violência na sociedade da política brasileira, é uma resposta, mas isso não
quer dizer que todas nós temos nossas certezas o tempo inteiro. Essas certezas
elas vem como um modo de resistência ao que nos viola, mas a gente tem as
nossas questões que são extremamente profundas e paradigmáticas e eu acho
que é por isso que essa saga dessa narrativa ela é meio assim, é a tentativa de um
equilíbrio entre ser... entre representação e existência.

Em um último ato maternal radical, a voz profere ao feto:


Minha querida, me dê a mão. A máquina desta mulher está desviando o percurso
correto do sangue. Sua consistência está invadindo tudo e eu ainda não consigo sair
daqui. Para o público. Agora vocês esquecerão essas minhas palavras?”. O processo
de subjetivação se dá por encerrado, “Eu já sei quem ela é! Eu já sei! Ela é uma
mulher, ela é negra...Breu. Espera! A mulher é vista. Eu já sei! Ela está aqui, hoje,
diante de vocês, e ela gostaria de dizer que...Breu. (PASSÔ, 2016, p.50)

A voz compreende-se como parte do corpo e então, o silêncio. É o fim de Vaga Carne.
Para além do suicídio, o silenciamento de vozes negras é um sintoma social. Assim que é
estabelecido o equilíbrio entre a voz e o corpo, assim que o processo de reconhecimento de si
enquanto sujeita é alcançado, assim que a harmonia entre a existência e a representação, como
define Passô, é atingida, essa individualidade é apagada.
Relembro-me mais uma vez do texto de Antonin Artaud sobre Van Gogh, o suicidado
pela sociedade. A morte que irrompe não como consequência de um ápice da loucura, de uma
dissociação individual, muito pelo contrário, ela é resultado deste encontro do indivíduo
consigo mesmo, da existência com a representação de si. Porém, Artaud, um homem moderno,
111

branco e europeu propõe o suicídio como punição da sociedade perante esse processo de
subjetivação, neste sentido o suicidado não age sua morte, mas sofre a morte premeditada por
essa sociedade. Em Vaga Carne, a morte não é punição, mas libertação.
Por fim, retorno uma última vez para a versão cinematográfica de Vaga Carne. Em uma
análise textual comparada entre a dramaturgia e o filme, encontrei pouquíssimas mudanças
textuais. Sendo a maioria delas detalhes, alteração de palavras sinônimas, ou escolhas estéticas
que potencializam a versão audiovisual da obra, por exemplo a escolha por gravar o filme
inteiro dentro de uma sala de teatro com uma plateia exclusivamente negra, escolha esta que
potencializa o discurso da peça (uma vez que como audiovisual nós espectadoras não temos a
experiência do encontro presencial do fenômeno teatral) ao colocar na plateia apenas pessoas
negras, que inclusive acabam não apenas cumprindo a função de espectadoras, mas que agem
ativamente no filme, enfatiza o discurso de Passô.
Fora estes detalhes o filme segue o exato mesmo roteiro da peça: a apresentação da voz,
a apresentação do corpo, a identificação entre voz e corpo, a negação dessa voz como parte
deste corpo, a descoberta da gravidez, o reconhecimento, a subjetivação e a morte.
Mas então chegamos aos créditos e neles trechos de discursos proferidos por mulheres
que, de alguma forma, lutaram contra o silenciamento sistemático de seus corpos e existências
são inseridos. Dentre esses discursos diversos, enfatizo três deles proferidos por mulheres
brasileiras: Lélia Gonzalez,
(...) Herói nacional foi liquidado pela traição das forças colonialistas, o grande líder
do primeiro Estado livre de todas as Américas, coisa que não se ensina às nossas
crianças nas escolas, as nossas crianças não sabem e quando eu falo de nossas
crianças tô falando de crianças negras, brancas, amarelas, não sabem que o primeiro
Estado livre de todo continente americano surgiu no Brasil e foi criado pelos negros,
pelos negros que resistiram, resistiram à escravidão e se dirigiram para o sul da
capitania de Pernambuco, atual Estado de Alagoas, a fim de criar uma sociedade livre,
igualitária, uma sociedade alternativa, onde negros, índios, brancos pobres viviam no
maior respeito proprietários da terra e senhores do produto do seu trabalho. Palmares
é um exemplo livre, típico de uma nacionalidade brasileira que ainda está por se
constituir, nacionalidade esta, onde negros, brancos lutam nesse momento, lutando
para que esse país se transforme efetivamente numa democracia”. (Lélia Gonzalez,
Marcha Negra, 1988) 50
Marielle Franco,
As mulheres quando saem às ruas na manifestação, o oito de março, na Candelária,
fazem porque entre 83 países o brasil é o sétimo mais violento e aí volto a repetir,
dados da organização mundial de saúde, esse quadro segue piorando, aumentando
6,5% no último ano, por dia são doze mulheres assassinadas no Brasil. O último dado
que a gente tem no estado do Rio de janeiro, figuram de 123 estupros por dia. Essa é
a relação com a violência contra as mulheres. A gente tem um senhor que tá
defendendo a ditadura falando alguma coisa contrária a isso. Eu peço que a
presidência da casa em caso de maiores manifestações que venham atrapalhar minha
fala assim proceda como a gente faz quando a tribuna interrompe qualquer vereador,

50
https://www.youtube.com/watch?v=HYLrL4Qx22Q&ab_channel=CultneAcervo
112

não serei interrompida. Não aturo interrompimento dos vereadores desta casa, não
aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita.
(discurso, Marielle Franco, 8 de março de 2018, 6 dias antes de sua morte) 51
E Dilma Rousseff,
(...) É o segundo golpe de estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar
apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando eu era
uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado hoje por meio de
uma farsa jurídica. (...) O projeto nacional progressista inclusivo e democrático que
represento está sendo interrompido por uma poderosa força conservadora e
reacionária. Com apoio de uma imprensa facciosa, vão capturar as instituições do
estado para colocá-las a serviço do mais radical liberalismo econômico e retrocesso
social. Acabam de derrubar a primeira mulher eleita presidenta do Brasil sem que aja
qualquer justificativa constitucional para este impeachment. (...) O golpe vai atingir
indistintamente qualquer organização política progressista e democrática. O golpe é
contra os movimentos sociais e sindicais e contra os que lutam por direitos em todas
as suas acepções. Direito ao trabalho e a proteção de leis trabalhistas, direito a
aposentadoria justa, direito à moradia e a terra, direito a educação, a saúde e a cultura,
direito ao jovem de protagonizarem a sua própria história, direito dos negros, dos
indígenas, da população LGBT, das mulheres, direito de manifestar sem ser
reprimido. (...) (Dilma Rousseff após o Impeachment, 31 de agosto de 2016)52

Esses discursos nos resgatam da ficção e nos lançam para a realidade novamente.
Retomo o “Brasil, 2016, um ano inesquecível”, e a radicalização do discurso poético de Grace
Passô. Se Vaga Carne acaba com a morte do corpo e da voz, com o silêncio da vida ceifada,
nestes discursos finais Passô e Ricardo Alves Junior não apenas homenageiam como também
devolvem simbolicamente o poder da palavra para aquelas que na vida real também foram
silenciadas, uma através de um Golpe Parlamentar institucional, a outra, através de um
assassinato que até hoje não teve suas investigações concluídas.
Sofia: E pra mim fica muito forte essa ideia do silenciamento, quando a voz
finalmente se entende naquele corpo negro, então vem o silêncio. Que é um
silenciamento histórico, que é, enfim, um silenciamento cotidiano, que é um
silenciamento dessas existências e desses corpos que não são ouvidos. Por isso
que eu falei que acho trágico, porque reafirma uma realidade cruel que é essa
mesma.
Grace: É... É. A gente tem vários exemplos na vida, talvez esse caso mais
emblemático da Marielle. Eu lembro o dia que a gente...Logo após o assassinato
dela que teve uma marcha na rua em vários lugares, nesse dia eu tava em Belo
Horizonte, porque eu moro hoje em São Paulo, e eu fiquei muito marcada por
aquilo. Eu já tinha feito Vaga Carne, mas eu fiquei muito marcada com aquilo
porque, o fato das pessoas, as pessoas se encontravam, e quando éramos
mulheres, a gente se via, mulheres negras, tinham uns abraços tão silenciosos, tão
silenciosos. Um abraço tão sem palavra. Porque é um pouco isso, sabe? É muito
essa repetição de alguém que rala pra caramba pra se construir e chegar em
determinados lugares de poder. E colecionar suas palavras e ter uma importância
de mobilização, isso é ceifado, assim... Numa peça que fala de voz, né? Eu acho
que faz sentido também essa questão. Ela começa num embate tão interno, tão
íntimo com o corpo e depois quem silencia é algo maior ali...Ela é cortada. Ela é
interrompida.

51
https://www.youtube.com/watch?v=G5sjJvK_Txs&ab_channel=Pl%C3%ADnioMelo
52
https://www.youtube.com/watch?v=r3YFBoLj0Ik&ab_channel=GleisiHoffmann
113

Dramaturgicamente temos o silêncio como única resposta possível diante de tanta


violência. E na falta de palavras, nos resta a ação política. Subvertamos Beckett e seu
Esperando Godot – o dramaturgo que abre sua peça declarando que “Não a nada a se fazer”
diante de todas as atrocidades vividas no mundo e, portanto, se coloca em diálogo constante, o
discurso substitui a ação prática no mundo – aqui, propõe-se o oposto, depois que tudo foi dito,
quando só nos resta o silêncio, Grace Passô nos lembra, com os ecos das vozes dessas mulheres,
sobre a importância de agir.
114

IV. “A gente precisa limpar isso” – Tradição, família, propriedade e o mito do abusador
num beco escuro.

Foto 4: Autorretrato, Sofia Fransolin

E então, ele fez o que os adultos fazem. Sabe? Ele ficou pelado. E me deixou
pelada. E tava escuro. E não dava pra ver muita coisa. Ele fez o que os adultos
fazem. Sabe?
Sofia Fransolin, Enquanto Ninguém Vê

IV.I. Da alteridade à identidade

Esse capítulo nasce após dois anos de pesquisa intensa – acadêmica, artística e pessoal
– e de apontamentos preciosos feitos pelas mulheres que ao longo deste processo cruzaram
meu caminho, caminharam comigo.

Não foi um processo simples compreender que eu, assim como elas – Michelle, Ave e
Grace –, sou uma dramaturga do nosso tempo. Sou a mais jovem de nós, sim, também sou a
que mais recentemente adentrou o universo da escrita teatral, ainda assim, tenho desde o ano
115

de 2016 produzido continua e intensamente dramaturgia dentro da temática da violência de


gênero, assim como proposto reflexões acerca deste ofício.

No livro Maratona de Dramaturgia — uma coletânea de entrevistas realizadas pelo


SESC no ano de 2018 com dramaturgas e dramaturgos exponentes na cena paulistana — cada
artista começava a entrevista respondendo uma das perguntas sugeridas previamente pelo
grupo de entrevistadores, ou seja, a entrevista era aberta com a resposta de uma pergunta
desconhecida pelo público/leitores. É assim que Silvia Gomez, dramaturga mineira, inicia a
sua fala: “Fiquei maravilhada pensando naquela frase de Georg Büchner, da peça Woyzeck:
Todo homem é um abismo, ficamos tontos se olhamos para baixo. Fiquei pensando que escrevo
um pouco por isso, porque queria estar por dentro de todos esses corpos” (GOMEZ, p.181).

Algumas páginas para frente, em uma outra entrevista, dessa vez é Grace Passô quem
diz: “O que é o caminho de uma pessoa que faz arte? É o caminho de reconhecimento da sua
identidade” (PASSÔ, p.107). Essas duas reflexões lidas quase que sequencialmente me
trouxeram uma sensação curiosa. Enquanto a fala de Silvia chegou até mim através de uma
completa identificação, o complemento que Grace me apresentou surgiu como uma revelação
incômoda.

Esta pesquisa partiu de uma necessidade minha de propor um exercício de reflexão e


análise a partir de alteridades. Compreender que o mundo é repleto de Outras, e desta
compreensão buscar por ouvir e conhecer essas tão distintas singularidades sempre foi meu
motor propulsor enquanto artista. Não à toa escolhi estudar três dramaturgas com vivências,
modos de fazer e obras bastante distintas, ainda que compartilhando um tema em comum.
Acredito que essa é uma forma de ampliar a nossa percepção sobre um assunto, e compreender
como ele pode atuar de diferentes formas a depender da mente/corpo criadora. Já trazia,
portanto, desde o início da minha pesquisa, bastante proximidade com o que Gomez propunha
em sua fala, este impulso de conhecer-me a partir de outras, de poder ser e estar nas mais
diversas situações e corpos, de tentar compreendê-los a partir de suas particularidades. Exercer
minha alteridade.
Contudo, o que o encontro com a frase de Grace Passô me mostrou é que todo esse
processo de alteridade deve rumar para uma construção da minha própria identidade artística,
afinal eu produzo para me constituir enquanto artista. Compreendi, então, que sem inserir uma
peça minha na dissertação a mesma não ficaria completa, afinal, se pesquisei por este tempo
todo a questão da violência de gênero dentro da dramaturgia contemporânea é porque eu
116

enquanto dramaturga contemporânea me mobilizo artística e cientificamente com o tema. O


que me colocou dentro desta pesquisa foi justamente a minha inquietação enquanto artista, ao
abordar a violência de gênero dentro dos meus trabalhos. Portanto, para finalizar esta
dissertação, restava eu responder algumas perguntas: “Como o trabalho e as reflexões
propostos por essas artistas reverberam em mim? Como eu me insiro neste cenário e acrescento
minha perspectiva? Como que pertenço a dramaturgia contemporânea?”
Se o olhar para o externo, para as outras, é importante para a nossa constituição
enquanto ser, indivíduo; o olhar para dentro, para si, é crucial para a nossa reafirmação. Estar
presente de forma mais certeira, crítica e analiticamente, é um exercício de reafirmação e de
reivindicação do meu espaço dentro dessa pesquisa que só surgiu com essa temática, a violência
de gênero, porque, enquanto artista, me vejo completamente inserida e mobilizada pelo tema.
Esse processo de encontro comigo reverberou também na escrita, que caminhou em busca de
uma autoralidade própria, da minha linguagem e estruturação de pensamento em diálogo direto
com a linguagem e obra de cada uma das demais autoras, desde o início do processo de
construção desta dissertação, nos primeiros capítulos, em uma constante desconstrução de
alguns paradigmas acadêmicos, mas também na afirmação da minha própria forma de expor
meus pensamentos.

IV. II. Descortinando a escrita, descortinando a violência.

Me pergunto por onde começar uma apresentação. Nunca fui muito boa nesta tarefa,
com facilidade me perco. Afinal, somos sempre muitas. Poderia dizer que sou Sofia, filha de
Paulo Eduardo e Liorne Cristina, que por não gostarem de seus nomes compostos, escolheram
nomear a primogênita com um nome simples, curto e significativo. Também poderia falar que
sou Sofia, atriz, dramaturga, pesquisadora e um pouco brega, é assim que me apresento nas
redes sociais, pelo menos por enquanto. Ou então, fazer uma autodescrição de quem sou
enquanto corpo social: Sofia, mulher branca, cisgênera, alta e magra, cabelos longos e
castanhos, olhos muito escuros (meu pai sempre falou que são “olhos de jabuticaba”),
heterossexual, nascida em família de classe média, de esquerda, feminista.

Ainda assim, não conseguiria ter respondido com plenitude a pergunta: quem sou? E, à
impossibilidade de seguir propondo apresentações diversas, é necessário fazer um recorte, e
este recorte refere-se a quem tenho sido enquanto artista. Para tanto, é necessário rememorar a
minha infância, e nela, duas cenas específicas:
117

Na primeira cena eu ainda sou muito pequena e estou fantasiada de Branca de Neve,
brincando de ser outra pessoa pela casa dos meus avós onde morei durante a minha primeira
infância (e onde agora, em 2021 retorno a morar, a boa filha à casa torna, e talvez eu sempre
tenha sido, de fato, boazinha demais). Minha avó, uma costureira exímia, fazia as fantasias na
máquina, em réplicas perfeitas dos vestidos das princesas. O meu preferido, o da Bela, bufante
e amarelo, tenho por mim que usei initerruptamente durante um bom tempo, tirando para lavar
e logo em seguida vestindo-o novamente. Dessa necessidade de, através da brincadeira, poder
ser muitas pessoas, viver muitas histórias, aventuras, questões, desejos, vidas, compreendi que
me constituía enquanto pessoa também. Tenho para mim que foi ali que comecei a ser atriz.
A segunda cena surge um pouco depois, no ano de 2003. Quando eu com recém feitos
oito anos e há pouco alfabetizada, escrevi o meu primeiro poema.
Intitulado “Com três fios de algodão53”, o poema era quase um pastiche da canção
“Aquarela” do Toquinho, nele eu elaborava possibilidades de invenções e utilizações para os
tais três fios de algodão. Da compreensão de que era possível criar com as palavras tantos
mundos quanto eu quisesse, e habitá-los, tal como eu fazia com as minhas fantasias de princesa,
do entendimento de que tudo o que é imaginável é passível de acontecer54, que entendi que
queria ser escritora.
Desde sempre minha relação com a arte foi muito estreita, nasci em uma família que
muito valorizava as expressões artísticas e individuais: desenhar, brincar, inventar histórias era
imperativo em casa. Lembro ainda muito nova de ser levada à diversas exposições na cidade
de São Paulo, em passeios que preenchiam o fim de semana. E desde o momento em que decidi
fazer teatro, aos dez anos, não houve uma peça em que meus pais não estivessem presentes em
ao menos uma das apresentações. Evidentemente, não desconsidero os fatores econômico e
sociais desta conjuntura individual tão vantajosa.
Nasci no início de mil novecentos e noventa e cinco, primeiro ano de governo do
psdbista Fernando Henrique Cardoso. Dois anos depois nascia minha irmã e fomos nós quatro
(meus pais e as duas pequenas) morar com meus avós, onde vivemos durante seis anos. É deste
período as memórias de fantasias e princesas, em que as grades das janelas daquela casa de

53
Consegui recuperar o texto, ao encontrar o meu primeiro caderno de poemas em uma gaveta de memórias na
casa de meus pais. Coloco-o aqui à título de curiosidade: “Com três fios de algodão / posso fazer um peão / mas
também uma mão / Com três fios de algodão / posso fazer um avião / mas também um gavião / com três fios de
algodão / posso fazer um limão / mas também o chão / Com três fios de algodão / posso fazer um mamão / Mas
também um melão / Com três fios de algodão / posso fazer o mundo / virar imaginação.”
54
Uma referência à bell hooks, que em seu livro “Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra”
coloca a noção de que “O que não conseguimos imaginar não pode acontecer”. (hooks, 2019)
118

esquina se tornavam torres de castelos. Foi só em 2004, no início do segundo mandato do


presidente Luís Inácio Lula da Silva, e com uma melhora substancial na situação financeira em
casa, que meus pais conseguiram sair das casas dos pais. Eu tinha quase nove anos, e escrevi
na nova casa, o meu primeiro poema.
Desde então minha vida não se diferenciou muito da maioria das meninas brancas de
classe média. Passei a estudar em escolas particulares, fiz inglês, ballet e teatro. E, com
dezessete anos, resolvi ser atriz.
Se na adolescência passei tardes lendo assiduamente e escrevendo poemas –
majoritariamente sobre amores não correspondidos – o que compensava a minha timidez e
pouco engajamento em participar das festas e eventos sociais da época, durante a faculdade
este meu impulso de escrever foi levemente apagado. O encantamento que vivia nos primeiros
anos de faculdade com a cena e todos os planos e sonhos de ser atriz de certa forma silenciaram
esse meu relacionamento antigo com o papel e a caneta.
Entrei na faculdade em 2013, na época existia ainda algum tipo de vislumbre em seguir
uma jornada teatral de grupo. Ainda que o investimento em cultura no país nunca tenha sido
prioridade governamental, a situação da época em nada se comparava com o desmonte total e
completo do aparelhamento cultural que passamos a viver a partir do ano de 2016, tornando
cada vez mais difícil se firmar financeiramente como artista. Lá, em meu primeiro ano de
faculdade, a situação era diferente, lembro-me do espelhamento em observar turmas mais
velhas conseguindo estabelecer seus grupos, a participação em festivais, a criação de sedes, o
trabalho colaborativo tão forte no cenário paulista.
A reaproximação com a escrita surgiu no meio do trajeto universitário, quando a
professora Larissa Neves me convidou para fazer uma Iniciação Científica sobre Dramaturgia
Brasileira. Na época tudo era muito intuitivo, e escolhi estudar uma peça que havia mexido
comigo em sala de aula, era Rastro Atrás, de Jorge Andrade. A melancolia presente nas
personagens e a relação familiar repleta de silêncios chamava a minha atenção de pesquisadora
recente. Meus escritos variavam entre os trabalhos e relatórios escolares e a cena curta que eu
aprendia a desenvolver na disciplina de dramaturgia.
Até que 2016 chegou. Um ano crucial. Um ano de mudanças. “Um ano inesquecível”.
Não apenas estava adentrando meus últimos períodos de faculdade, como a situação política
do país rumava para a concretização do golpe estatal que depôs a primeira presidenta eleita no
Brasil, Dilma Rousseff. Foi em meio à greve universitária que ocorreu naquele ano e às tardes
119

acaloradas discutindo com colegas sobre toda a situação política que tomava conta do país, que
o termo “feminismo” passou a fazer parte do nosso vocabulário a valer.
Até então, feminismo era uma nuvem cinzenta para mim e muitas das minhas colegas.
Entendíamos a importância da luta, mas se dizer feminista ainda soava radical demais para a
maioria de nós, ainda que, na prática, enquanto mulheres, tivéssemos vivido situações
escancaradas de machismo, violência e abusos dentro da própria universidade e também fora
dela, feminismo ainda não tinha se tornado uma luta política firmada para mim.
Em seu livro Sintomas Mórbidos, a pesquisadora Sabrina Fernandes disserta sobre o
fenômeno da despolitização e suas consequências em território nacional a partir das greves de
junho de 2013 até as eleições presidenciais de 2018. Se por um lado os quase quinze anos de
governo petista trouxeram crescimento e poder econômico às classes mais baixas, tirando boa
parte dos brasileiros da linha de miséria, e criando políticas de crédito para o acesso à moradia
e ao ensino superior, por outro, foram governos pautados na busca pela conciliação de classes
e em uma forte despolitização do povo brasileiro. A autora destaca os efeitos deste processo de
despolitização através da pós-política como “projeto consciente de comunicar que não há mais
nada o que se esperar do espaço político além da gestão da hegemonia” (FERNANDES, 2019,
p.219) e acrescenta
Neste caso, qualquer oposição às mais variadas expressões radicais de misoginia, por
exemplo, é colocada como radicalismo e “ditadura do politicamente correto”, mesmo
sendo essas expressões misóginas responsáveis por um ciclo de violência física e
psicológica na sociedade. Outro exemplo se dá no contexto do elogio pós-político da
tolerância como forma de mascarar, repreender e até mesmo censurar as expressões
de autodefesa e denúncia do oprimido diante do opressor, que estaria, ele sim, sendo
intolerante, odioso e violento (FERNANDES, 2019, p.219)

À nível pessoal, isso se reflete quando observo meu comportamento enquanto mulher
e estudante ao longo da minha graduação, como também nas mudanças radicais sofridas dentro
do campo das artes cênicas a partir do ano de 2015, quando a manutenção do status quo é posta
em xeque e a questão da representatividade toma frente das discussões teatrais. Ressalto a
importância do episódio ocorrido no Itaú Cultural quando a temporada da peça A mulher do
trem do grupo Fofos Encenam foi interrompida por apresentar em cena o blackface,
desencadeando um enorme debate sobre racismo, representação e representatividade na cena
paulistana. Enxergo este episódio como marco inicial no descortinamento das pautas
minoritárias dentro das artes e a proposição de um debate político das produções teatrais dentro
da cidade de São Paulo.
120

No meu microuniverso, 2015 foi o ano em que comecei a me aproximar dos debates
sobre gênero e sexualidade a partir da montagem da peça Agreste Adentro, com textos de
Newton Moreno e direção de Mario Alberto Santana. No mesmo ano, o debate sobre a
negritude e a apropriação cultural também estivera presente na montagem da peça Sobre
Mandingas e Marias, que trazia à tona a questão do sincretismo religioso e da relação entre
escravizados e branquitude dentro de um contexto latino-americano colonial. Lembro-me que
este período nos demandou um mergulho em estudos que nem de longe estavam presentes na
grade curricular de muitos dos cursos de artes do país.
Analisando em retrospecto, encaro as contradições destes dois processos. Se por um
lado os debates suscitados por essas peças dentro da minha turma de graduação foram um
aprendizado essencial em nosso percurso acadêmico, através de uma experiencia coletiva
acerca dos limites (e deslimites) da representação frente às questões de representatividade e
apropriação cultural. Por outro, não podemos negar que esses aprendizados foram fruto de
escolhas errôneas que revelam uma ingenuidade socio política reflexo de um lugar de
privilégio, no meu caso, especificamente, um privilégio branco e cisgênero.
Fato é, que de lá para cá, as reivindicações discentes advindas de turmas ulteriores para
uma maior pluralidade de discursos, identidades e saberes dentro do âmbito universitário se
acirrou e conquistas importantes têm sido feitas dentro do Departamento de Artes Cênicas da
UNICAMP55, ações que apontam para um caminho urgente (ainda que lento, e bastante pontual
dentro do Instituto).
Foi justamente em meio a essa turbulência que minhas amigas e amigos enxergaram
em mim a potência para escrever, penso que me fiz dramaturga a partir do olhar de terceiros.
Destas pessoas próximas, que antes mesmo de eu conseguir racionalizar meu desejo de escrita,
me abriram caminhos para a experimentação. Em 2016 escrevi minhas duas primeiras peças,
ambas em contexto universitário, ambas dentro de uma dinâmica de grupo. A primeira de
caráter bastante existencialista, foi a peça de estreia do grupo SUADOS Laboratório Teatral,
que na época rumava para tornar-se profissional (Sobre um Lugar Qualquer, 2016). A segunda,
e sobre a qual deterei mais a minha escrita, foi o trabalho de conclusão de curso daquelas que
viriam a se tornar Núcleo Carochinha, a peça Barba Azul (2016).

55
Destaco a implementação de cotas raciais na pós-graduação em artes da cena/IA-UNICAMP a partir do ano
de 2019. Disponível em: https://www.iar.unicamp.br/content/204/ . Acesso em 03 set. 2021. E a recente
aprovação de uma disciplina obrigatória sobre teatro negro no curso de graduação em Artes Cênicas, que entrará
em vigor no ano de 2022.Disponível em: https://correio.rac.com.br/2021/05/cultura/1091734-em-2022-ensino-
das-artes-negras-sera-obrigatorio-no-curso-de-artes-cenicas-da-unicamp.html . Acesso em 03 set. 2021.
121

Acredito que a necessidade de trabalhar a partir da pauta da violência de gênero em


nosso trabalho de conclusão de curso, se deu muito como resposta à essa movimentação política
que acontecia dentro e fora da academia. Enquanto estudante me via cada vez mais mobilizada
a entender e redimensionar as relações entre arte, política e sociedade. Havia a necessidade de
falar sobre o assunto, mas muito pouco estudo e propriedade para abordá-lo.

IV.III. A violência invade a casa

Barba Azul é um marco no início da minha pesquisa artística sobre dramaturgia e


violência. A peça começou a ser escrita em setembro de 2016, a partir de um desejo da artista
e colega de trabalho Julia Prudêncio de trabalhar com a violência contida nos Contos de Fadas.
Tendo como material primário a obra completa dos Irmãos Grimm, com mais de duzentos
contos, em edição da Cosac Naify. Passamos o início do semestre letivo lendo e catalogando
todos os contos do livro, estudando sobre a relação arquetípica dos contos de fadas e, acima de
tudo, tentando entender qual recorte iriamos fazer dentro da coletânea.

A violência de gênero, na época, ainda não era o nosso foco, e surgiu como um insight,
quando o grupo, que era majoritariamente composto por mulheres, percebeu que,
recorrentemente destacava o interesse em elaborar a partir das personagens femininas, de como
elas eram retratadas, e quais eram os caminhos por elas percorridos e os seus fins.

Personagens estas que remetiam ao imaginário da minha infância, às fantasias de


princesa. Foi a partir do trabalho com o Barba Azul que, aos poucos passei a viver um processo
longo e inconcluso de subversão deste imaginário. A dimensão simbólica e a carga arquetípica
encontrada nessas figuras femininas são a base para a estruturação da sociedade patriarcal e,
emancipar-se dessa estrutura que carregamos inclusive com o afeto de uma fase primordial de
nossas vidas é um caminho conflituoso, o qual enfrento buscando não entrar em completa
negação.

Foi neste embate entre o afeto e a violência, o pessoal e o político, que a carga
arquetípica dos contos de fadas foi dando espaço para uma dimensão mais sociopolítica na
abordagem das histórias. Foi nesse momento, e com orientação de nossa professora Verônica
Fabrini que decidimos nos debruçar na narrativa do conto Barba Azul, e destacar enquanto
símbolos: a virgem e a fera.
122

A peça foi escrita em menos de três meses e em dezembro de 2016 estreamos no CIS
Guanabara com a primeira versão do espetáculo. Era uma versão ainda muito dependente da
narrativa original, que se apoiava em demasia nos acontecimentos do conto e na temporalidade
mítica do “Era uma Vez...” para criar a estrutura dramática. A peça pouco dialogava com o
tema da violência de gênero a partir de uma perspectiva mais contemporânea. Pelo contrário,
a violência surgia tal como no conto de fadas, com o pano de fundo de uma narrativa ficcional
com finalidades moralizantes.

Em 2017 reapresentamos o espetáculo no mesmo espaço com algumas poucas


alterações dramatúrgicas, mas com mais propriedade do que buscávamos em termos de
linguagem cênica e espacial (desde o início, a peça tinha como proposta a criação cênica a
partir da relação entre atuantes e o espaço não convencional de uma Estação Ferroviária). No
mesmo ano fomos contempladas com o edital Proac Primeiras Obras 201756.

A premiação de um edital público nos permitiu o vislumbre do início de uma


consolidação profissional, isso nos trouxe mudanças, a primeira foi a escolha de um nome de
grupo: Núcleo Carochinha; a segunda, o desejo por aprofundar a pesquisa de criação cênica a
partir e em relação com o espaço público; a terceira, o aprofundamento os estudos sobre gênero
e o desejo por trazer para o espetáculo um olhar mais atual diante do tema, ainda que a partir
da narrativa clássica.

Os ensaios semanais passaram a acontecer na Estação Cultura de Campinas, antiga


Estação Ferroviária da cidade, desativada e transformada em espaço cultural público, na região
central da cidade. Uma grande mudança em relação ao espaço até então ocupado pelo coletivo,
o CIS Guanabara, ponto de cultura associado à Universidade Estadual de Campinas. Essa
mudança territorial trouxe novas perspectivas em se tratando do fluxo contínuo de pessoas, o
comércio vivo nos arredores da construção, e a nossa relação com aquele espaço muito maior
e estranho a nós, a materialidade da realidade invadia a ficção semanalmente o que exigiu
mudanças drásticas na dramaturgia. E, ao longo dos oito meses de ensaio, Barba Azul
transformou-se em DAMAS – Quem tem medo do Barba Azul?

A peça itinerante amalgamava o conto da menina que se casa com um estranho homem
de barba azul e em sua noite de núpcias descobre que o marido é um assassino de mulheres,

56
O Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo é uma legislação estadual de incentivo à cultura. No
edital nº03/2017 - Produção de Primeiras Obras de Teatro, o qual fomos contempladas, o programa premiava
projetos teatrais propostos por artistas jovens. O prêmio, entregue numa quantia de 35.ooo reais, era destinado
para a montagem e apresentação de curta temporada de um espetáculo teatral.
123

com cenas épico-performativas que lançavam para o público questões sobre a sociedade
patriarcal que naturaliza a violência a partir das relações de poder e opressão de gênero.

Neste sentido, DAMAS, diferentemente das versões anteriores da peça, coloca em xeque
alguns dos elementos naturalizados no conto original, tais como: a cultura da pedofilia e do
estupro, o machismo recreativo, a dependência financeira como fator para a perpetuação da
violência, o silenciamento e o feminicídio. A dramaturgia enfatiza a história das esposas
anteriores, mortas pelo ex-marido e guardadas em uma câmara secreta, e busca trilhar um final
onde – diferentemente do conto original, no qual a heroína é salva pelos irmãos – a tomada de
consciência de Cecília frente à realidade e a compreensão de que esse processo de violação do
corpo se dá a partir de um contexto que a antecede, ou seja, é estrutural e não individual, faz
com que a protagonista consiga enfrentar o homem-lobo.

Saliento que a ideia da dramaturgia e da encenação não é propor que o fim da violência
de gênero se dê a partir do enfrentamento da mulher frente ao seu agressor, mas sim a partir de
uma tomada de consciência da estrutura que nos oprime. Essa diferenciação entre individual,
ou seja, a violência acometida contra a protagonista, e social, a problemática da violência de
gênero como parte fundante da nossa sociedade, é crucial dentro da estrutura do texto.

Desde a primeira cena, a dramaturgia flutua entre a trajetória pessoal de Cecília – que
ainda virgem se casa com o Barba Azul – e a trajetória coletiva de nós, mulheres, perante a
violência – na peça representada pelas três ex-esposas mortas pelo Barba Azul. Já na primeira
cena, contrapondo-se a Cecília, que chega sozinha no palácio que será o se novo lar, as três ex-
esposas lançam um manifesto57, que recupera essa dimensão histórica e cíclica da violência. A
apresentação das figuras masculinas enquanto arquétipos deste homem-lobo bipartido, príncipe

57
Eu. Eu só estou aqui porque... – Eu estou aqui por quê? – Eu só estou aqui porque outras estiveram nesse lugar.
– Eu só consigo estar aqui porque tantas outras estiveram nesse mesmo lugar. – É. Eu estou aqui porque já não
posso estar em outro lugar. Porque esse se tornou o meu lugar. Porque fui obrigada a ficar. – Eu sou filha daquelas
outras que não puderam ficar. Aquelas outras expulsas do paraíso. – Eu sou filha de Eva sozinha, sou filha de
Lilith e filha de Maria, e são tantas as Marias. Sou filha de Pandora. – Curiosa – Sou filha de Ana - Catarina. -
Sou filha de Perséfone. – Que por sua vez é - Filha de Deméter. Eu tenho atrás de mim – Nas minhas costas – Eu
tenho atrás de mim um exército de mulheres – Curiosas-. Um exército de mulheres –Raivosas-. Um exército de
mulheres. Eu só estou aqui porque esse exército de mulheres me segura pelas mãos, finca os meus pés no chão.
São minhas raízes. Eu só estou aqui porque agora é minha vez de fazer história. – É minha vez de contar história
– Essa é a minha história. Eu estou aqui porque outras tantas. Outras três estiveram – E não puderam. – Contar
suas histórias – Eu estou aqui porque quero contar a nossa história. Eu estou aqui. Eu falo porque existo. Porque
resisto – Eu estou aqui porque vivi. Porque vivo.
Se a vida é um sopro. É fio tênue facilmente cortado – Tantas vezes cortado por ele. Por aquele que detém o poder.
– Se a vida é mesmo um sopro que dessa vez seja sopro meu. Que esse fio, pelo menos dessa vez, seja. Resistência.
(Manifesto, Estação I, cena I, DAMAS – Quem tem medo do Barba Azul?, 2018)
124

e vilão, parceiro e algoz, carrega em si o intuito de apresentar a personagem não como um


indivíduo, mas como uma representação arquetípica do patriarcado.

Essa diferenciação entre o ato violento individualizado e a estrutura de opressão e


violência que não apenas permite, como também legitima essa postura é de suma importância
e trouxe reflexões interessantes ao final da temporada.

Alguns espectadores, homens principalmente, me questionavam sobre o porquê da peça


se encerrar sem que houvesse uma cena de morte do agressor à luz do público. Por que o “fim”
do Barba Azul ficava em aberto? Por que Cecília (a protagonista que consegue escapar viva
das garras do marido) não revidava toda a violência sistemática que presenciou (o atacando ou
matando)? Eu lhes respondo com outras perguntas: Qual o sentido em individualizar essa
personagem? Qual o sentido de responder à violência sistêmica patriarcal, sobre a qual
estávamos abordando a partir de símbolos arquetípicos fantásticos, com um ato violento
pontual de uma protagonista frente ao seu agressor? Esse fim poderia garantir uma sensação
de “dever cumprido” para a protagonista e para o público, mas pouco dialogava com a realidade
e com os questionamentos que queríamos colocar com a peça. Matar todos os agressores do
mundo não é apenas impossível como de nada resolve a estrutura de opressão na qual estamos
inseridas. Por isso ocorre o enfrentamento. Cecília não mata o Barba Azul e a peça se encerra
deixando mais perguntas do que respostas aos espectadores. Afinal, como podemos sair deste
ciclo?

Outro questionamento interessante trazido por algumas espectadoras foi em relação a


cisnormatividade da peça e a pouca representatividade de corpos. Era evidente que o Núcleo
Carochinha se apresentava enquanto um coletivo teatral branco, cis e com corpos dentro de um
padrão de beleza da magreza. Era também evidente que a história do Barba Azul se passa dentro
de um contexto heterossexual e doméstico. Se por um lado considero que a dramaturgia é
sempre escrita a partir de um recorte, que nesse caso era o conto de fadas, por outro, a partir do
momento que ela entra em fricção com a cena, é preciso repensar os símbolos e signos que
estão postos em cena através do texto, mas também através dos demais elementos do fazer
teatral: cenografia, figurino, encenação, luz, sons, atrizes e atores.

DAMAS é uma peça com seus limites: parte de um conto de origem europeia e narra
uma história bastante enquadrada em diversos dos padrões sociais, padrões esses que buscamos
cada vez mais questionar e explodir. Ainda assim, enxergamos no conto potência para
trabalhar, esgarçando os limites simbólicos que ela impunha e buscando realocá-lo para um
125

outro tempo e um outro espaço (o tempo presente, em um país latino-americano). Como


qualquer obra, porém, ela tem suas limitações e foram justamente elas que me trouxeram até
aqui.

Esta pesquisa de mestrado surgiu da necessidade de compreender dentro do campo da


escrita dramatúrgica como outras mulheres com outras vivências propõem o debate artístico
ante à questão da violência de gênero. E, em meio a isso, passados três anos da escrita de
DAMAS – Quem tem medo do Barba Azul?, questiono também sobre o meu lugar enquanto
dramaturga dentro deste paradigma. Pois, desde o encerramento da temporada e da dissolução
do Núcleo Carochinha, a violência de gênero continuou me sendo um tema caro, um tema
persecutório. Não sei ao certo se é ele que me persegue, ou eu quem o procuro. Fato é, que o
encerramento deste longo processo de mais de dois anos não bastou para que eu me
desvencilhasse artisticamente do assunto, e muito encantada pelos rumos que começava a
tomar como dramaturga profissional, me inscrevi na 11ªTurma do Núcleo de Dramaturgia
SESI-SP.

Na época, enviei para a comissão de seleção três textos, sendo um deles a primeira
versão de Enquanto Ninguém Vê, peça que reelaboro agora, três anos após a sua primeira
escrita. Lembro-me que na entrevista para adentrar o núcleo me perguntaram: “Você quer falar
sobre amor?”. Eles se referiam a uma das três peças que eu havia inscrito (Dois, 2018), uma
peça sobre um casal se separando. Eu respondi, ainda um pouco insegura: “Não, eu quero falar
sobre violência”.

Ao longo de dez meses frequentei os encontros semanais que aconteciam na sede da


FIESP na Avenida Paulista, 1313. Sair de Campinas para começar a ocupar São Paulo, ainda
que dentro de um contexto pedagógico, foi um passo importante para compreender a cena da
produção dramatúrgica da capital e nela começar a me inserir, mesmo que timidamente. Os
encontros aconteciam às terças de noite e, em meio às leituras, discussões e exercícios,
devíamos, cada um de nós, doze recém dramaturgues, escrever uma peça.

Em novembro de 2019, estreou a leitura dramática da peça A Louva-a-Deus, com


direção de Naruna Costa e atuação do Grupo Clariô. A dramaturgia partia da relação biológica
de canibalismo sexual, na qual fêmeas de determinadas espécies comem os machos durante o
acasalamento, para traçar um paralelo com a história de violência recorrente sofrida por uma
mulher desde a sua infância até a idade adulta. Aqui, diferentemente do final aberto proposto
em DAMAS, sabe-se desde a primeira cena que a protagonista, Carina, devorou o seu parceiro.
126

Fica evidente que o canibalismo é usado como recurso metafórico para explicitar o ciclo de
violência vivido pela protagonista. Essa dimensão fantástica e animalesca é usada como
ferramenta para retratar o expurgo e libertação da protagonista, e não como solução do drama.
De longe, A Louva a Deus fora até então a minha dramaturgia mais ousada em termos de forma
e por isso agradeço ao Núcleo.

A oportunidade de debater continuamente um texto em processo de escrita e de


aprender, a partir da prática, as relações entre forma e conteúdo de modo a potencializar o meu
ponto de vista enquanto autora foram aprendizados preciosos que adquiri em 2019. Até então
o meu processo de escrita tinha sido basicamente empírico e instintivo. Com exceção de uma
disciplina de escrita que tive durante a graduação e algumas oficinas curtas das quais fiz parte,
nunca havia tido um mergulho profundo no estudo da escrita teatral. O Núcleo de Dramaturgia
me garantiu maior autonomia como escritora, aprendendo a ousar nas proposições, visando
entender o que o texto pedia, ou seja, a relação entre o conteúdo abordado e a forma na qual o
apresento.

Neste sentido, entro em coro com Michelle Ferreira quando a autora diz que a forma é
o limite do conteúdo e vice-versa. A estrutura na qual decidimos contar uma história influi
radicalmente na própria narrativa e nos rumos que ela toma. Essa compreensão radical da
dialética entre essas duas instâncias do texto causa um esgarçamento estrutural na dramaturgia
contemporânea. A estrutura clássica do drama, posta em xeque desde os fins do século XIX,
torna-se cada vez mais moldável a história que ela busca contar, ao passo que por vezes a
própria estrutura que dita a história.

Ao longo da pesquisa de mestrado constatei que cada uma das peças analisadas
apresenta características estruturais bastante específicas. Do drama mais formal de Michelle
Ferreira, à epicidade proposta por Ave Terrena, caminhamos para uma performatividade
presente na obra de Grace Passô, advinda da sua relação intima como atriz-escritora. Esse
percurso flerta com o trajeto da própria dramaturgia desde a crise do drama até a
contemporaneidade. São marcadores estruturais que dialogam com os marcadores conceituais,
os quais apresentei nos capítulos precedentes.

Essa trajetória ético-estética culmina na reelaboração e reconstrução da peça Enquanto


Ninguém Vê, cujo primeiro manuscrito rascunhado em 2018 seguia uma estrutura de moldes
bastante dramáticos. Na época a peça contava apenas com as três personagens membros da
127

família (pai, mãe e filha) para apresentar a história da garota que após sofrer uma sequência de
abusos perpetrados pelo pai, engravida.

A minha escolha por retrabalhar Enquanto Ninguém Vê surge de uma compreensão,


após estes dois anos de pesquisa, de que a estrutura do manuscrito não permitia o esgarçamento
e aprofundamento necessários para o debate sobre o tema. Neste sentido, a primeira mudança
foi agregar personagens não humanos à peça. As duas bonecas, que remetem ao universo
infantil, e a ideia estereotipada do que é feminino desde a infância são cumplices da ação
dramática. Em seus diálogos, reiterativos dos papéis sociais de gênero, as bonecas questionam
os padrões engendrados em nossa sociedade: o brinquedo da menina, a construção do conto de
fadas, as ideias de “felizes para a sempre” e o romantismo cego dos melodramas novelescos.

O segundo elemento não humano é a tevê que age como ferramenta épica, quebrando a
quarta parede do drama familiar e apresentando por meio do recurso audiovisual a realidade
brasileira frente ao tema. Neste sentido, a televisão consegue abraçar de forma mais abrangente
as raízes da violência de gênero, partindo da crítica à instituição conservadora que prega os
ideais “Tradição, família e propriedade”, “Deus, pátria e família”, como ferramentas de
controle. Essa não personagem flerta com o discurso patriarcal vigente e traz a voz dos meios
de comunicação hegemônicos que estruturam e reiteram a violência num discurso punitivista,
culpabilizador, individualizante e muito pouco aprofundado.

A tevê também ganha importância nesta nova versão da dramaturgia diante do cenário
sociopolítico que temos vivido desde a posse de Jair Messias Bolsonaro em primeiro de janeiro
de 2019, que usa e abusa desses meios de comunicação de massa para perpetrar ódio e violência
contra corpos dissidentes, e aplicar eficazmente a necropolítica/necapolítica de seu governo
neofascista. Este cenário tem sem agravado desde a chegada no coronavírus ao Brasil em
fevereiro de 2020, onde além de descreditar completamente a periculosidade da pandemia, o
presidente tem usado o momento de caos sanitário para aplicar algumas de suas mais severas
reformas.

No âmbito da violência de gênero, especialmente a violência doméstica, a pandemia


trouxe pioras drásticas para o Brasil. Isso porque, aquelas de nós que puderam fazer o
isolamento social, se viram em muitos casos presas com o próprio agressor. Os números de
denúncias de abuso físico e sexual aumentou durante este período, tanto no que tange esposas
delatando os companheiros, como também os abusos cometidos contra crianças.
128

Existe um senso comum, e bastante perigoso, perpetuado inclusive nas histórias infantis
e ditos populares, aquele mesmo do “homem do saco”, do “não aceite doces de estranhos”, que
foca toda a atenção e o cuidado com um suposto perigo externo, esse “estranho num beco
escuro”, o homem desconhecido com requintes sociopatas que captura, seduz e abusa das
crianças quando essas estão longe da família. Sem negar a existência de casos de violência
contra menores que acontecem nessas situações é importante, porém, desmistificar que o maior
perigo se encontra fora de casa. No Brasil, em mais de 70% dos casos de violência sexual
contra crianças o abusador é um membro da família, um parente ou amigo próximo. A malha
que sustenta e perpetua esta violência é tão entranhada, tão bem tecida, que muitas vezes se
torna difícil de identificar e até mesmo denunciar o agressor.

Primeiramente, pois a dinâmica de poder e silenciamento opera à favor do agressor, que


faz uso de chantagem e abuso psicológico para manter a vítima em silêncio, seja através da
criação de uma falsa cumplicidade: “isso é um segredo nosso”; da “bonificação”: “se você me
deixar fazer isso eu te dou aquilo”; até de ameaças e chantagens explicitamente violentas: “sua
mãe vai te odiar se você contar pra ela, sua mãe vai morrer, etc.”. Ressalto que estamos falando
de crianças, a compreensão de mundo, de linguagem, de moralidade ainda está em
desenvolvimento, assim como as noções de limite, de corporeidade, de sexualidade, de certo e
errado. Uma assimetria de poder grotesca.

Segundamente, é comum que o agressor seja o principal provedor da família, “o homem


da casa”, neste caso, ainda que a violência seja descoberta, existe um longo e complexo
caminho até a denúncia, também regado de ameaças. A pesquisadora Heleieth Saffioti em seu
livro Gênero Patriarcado e Violência faz um estudo minucioso sobre as dinâmicas de poder e
violência em torno da violência doméstica especificamente, ainda que seu estudo apresente
uma amostragem dos anos noventa, as estruturas de dominação-exploração que sustentam a
violência intrafamiliar permanecem ainda hoje.

Discutir sexualidade na infância ainda é um tabu, a falta de informação e, acima de


tudo, a privação de educação sexual, atrelada à um falso moralismo religioso no qual cada vez
mais o país se sustenta, apenas contribui para a continuidade do quatro violento e fortalece os
agressores que, direta e indiretamente ganham aval Estatal para agirem. Quando o ensino de
educação sexual nas escolas é barrado, o governo não está prevenindo crianças de terem acesso
à “kit gay”, “mamadeira de piroca”, “manual de masturbação”, mas sim que crianças aprendam
129

a distinguir “carinho” de abuso, que aprendam a identificar seus limites e comunicar sobre isso,
e acima de tudo, que tenham um lugar seguro, quando a casa delas torna-se uma ameaça.

Enquanto Ninguém Vê começou a ser escrita em 2018, antes das eleições presidenciais
que determinaram o cenário político atual. Após os dois anos de mandato de Michel Temer, a
ameaça de um segundo turno com a presença Bolsonaro se misturava com otimismo de um
futuro mais progressista com as campanhas massivas de “vira voto” para o candidato petista
Fernando Haddad, esperança solapada com a vitória do primeiro.

Agora, quase três anos após a primeira versão da peça, foi impossível desconsiderar
toda a tragédia do contexto político brasileiro ao voltar a trabalhar em sua escrita. A televisão
surgiu desta necessidade pulsante de enfatizar a estrutura, governamental e midiática, que
perpetua a violência de gênero e como ela está incrustrada dentro das mídias de massa, dos
jornais de grande veiculação, do sensacionalismo investigativo. Destacam-se especialmente
dois acontecimentos: o golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do poder
transmitido pela TV Câmara em 2016, repleto de um discurso pró família, moral e bons
costumes e a derrocada conservadora que o Brasil rumou desde então, e o caso ocorrido em
agosto de 2020, da menina capixaba que foi engravidada pelo tio, exposta nas redes sociais por
Sarah Winter (anti-feminista e líder pró-vida bolsonarista) e rechaçada por fundamentalistas
religiosos, até conseguir realizar o aborto legal em Pernambuco.

Na dramaturgia existe uma inversão simbólica entre os planos da televisão e o das


bonecas. Pois, enquanto a televisão é o meio pelo qual a realidade nacional invade a cena, as
bonecas são a expressão mais lúdica e fantasiosa da cabeça da menina mas, na medida em que
o discurso sensacionalista e violento da realidade se torna cada vez mais absurdo, as bonecas
tornam-se mais e mais reais, a ponto de serem elas as condutoras do fio dramático e do percurso
da menina em seu processo de compreensão e expurgo da violência vivida.

A aliança entre mãe e filha, ambas Marias, como desfecho dramático amalgama esses
dois planos, o noticiário uma última vez revela a realidade, uma reprodução da ação violenta
que ambas acabaram de tomar.

Em suma, reitero o recorte excessivamente atual desta pesquisa que – desde a escolha
das peças analisadas, até a elaboração deste breve histórico sobre minha inserção dentro da
dramaturgia – pretendeu abordar a questão da violência de gênero dentro de textos teatrais
escritos a partir de 2016. Se, por um lado, “estar na crista da onda” trouxe dificuldades para a
análise dentro de uma conjuntura mais ampla, visto que tudo “acontece ao mesmo tempo aqui
130

e agora”, por outro lado, a atualidade carregou a vantagem de poder coletar os saberes e analisar
as posições dessas mulheres, artistas e atuantes de forma direta a partir do diálogo presencial e
virtual por meio das entrevistas.

Abordar este tema dentro da contemporaneidade nunca deixou de ser um ato político,
que ocorre através do descortinamento desta questão e de sua elaboração poética; o que nós,
dramaturgas, mais desejamos é viver para nossas dramaturgias se tornem ultrapassadas, para
que esses assuntos caiam em desuso o mais rápido possível. Infelizmente, o curso da História
não tem nos possibilitado a obsolescência, e falar sobre violência de gênero permanece sendo
um ato necessário e urgente.
131

IV. IV. Enquanto Ninguém Vê – Um exercício poético e político

Enquanto Ninguém Vê
Figuras humanas:

A MÃE – Maria, uma mulher jovem


A FILHA – Maria, uma criança de 12 anos
O PAI – sem identidade, um homem mais velho

Figuras inumanas:

Bonecas 1 e 2
Televisão

O dispositivo cênico é um cubo vazado.


Cada face do cubo representa um dos espaços da casa: quarto, sala e
cozinha, a quarta face é um telão usado para reprodução da televisão.
As personagens femininas estão presas dentro deste cubo.
O pai, eventualmente sai de casa.
O foco da cena é alternado para cada uma das faces do cubo, a depender
do ambiente em que as personagens estão.
Eventualmente, tudo se torna breu e o que vemos é apenas a projeção de
uma enorme televisão (as sugestões de vídeos estão contidas nessa
dramaturgia).
Eventualmente tudo se torna breu e o que ouvimos são apenas as vozes
das bonecas.
As bonecas são duas cabeças de Barbie que a menina encaixa nos dedos,
uma coisa levemente assustadora.
132

PRÓLOGO. CONTINUUM

Sala.
A Mãe de joelhos em frente à uma cruz. Seus olhos sangram.

MÃE: Deus, Pai de amor e bondade, que em Sua infinita misericórdia acolhe todos os que
se aproximam de Vós com o coração arrependido, acolhei meu pedido de perdão por tantas
faltas cometidas contra Ti e meus irmãos.
Senhor Jesus Cristo, Mestre da ternura e do amor, que devolveu a vida em plenitude a
tantos homens e mulheres imersos no pecado e caminhantes das trevas, conduzi-me nos
caminhos do perdão e fortalecei minha alma para que eu tenha a humildade de pedir
perdão e a misericórdia de saber perdoar.
Espírito Santo, Consolador da alma, Advogado dos justos e Paráclito do amor, inspirai em
meu coração gestos de bondade e ternura, que devolvam aos corações angustiados a
beleza do perdão e as graças da reconciliação.
Amém.

Ela cobre os seus olhos com uma venda.


Breu.
133

1. FINAIS FELIZES

Na escuridão, ouvimos duas vozes bastante jovens.

1. E então você fez o quê?

2. Eu fiquei assim, bem pertinho dele, e ele me beijou.

1. E como é isso?

2. É estranho e meio molhado, molhado por todas as partes.

1. Eu quero um dia ganhar um beijo de amor verdadeiro, a coisa mais romântica que existe
no mundo inteiro.

2. Depois ele colocou as mãos dele no meu cabelo, fez um carinho com a ponta dos dedos,
um beijinho no canto da orelha...

Luz. Vemos duas cabeças de boneca.

2. O carinho foi descendo pelas bochechas, pelo pescoço...

Enquanto uma fala, a outra sente.

1. Que mais, que mais?

2. E então, fizemos o que adultos fazem, você sabe, não sabe, amiga? Quer dizer, ele ficou
pelado e eu fiquei pelada também, tava escuro, não deu pra ver muita coisa, mas você sabe,
não sabe? É o que os adultos fazem... Pelo menos é o que vi uma vez num filme.
134

1. Acho que sei...

2. Você acha que sabe?

1. É, eu acho que sei. Eu vi uma vez num filme.

2. Você viu uma vez num filme?

1. É, assim, isso que você diz...

2. Você não sabe.

1. Não sei, mas eu já vi.

2. Mas ver não é fazer.

1. Mas dá para ter uma ideia.

2. Não é a mesma coisa...

1. Mas é uma ideia.

2. Sua hora vai chegar...

1. Eu não tenho muita pressa.

2. Você não sabe o que tá perdendo.

1. Eu não tenho muita pressa.

2. É o ato de amor verdadeiro...


135

1. Acho que preciso esperar mais um pouco.

2. O maior ato de amor verdadeiro.

1. Realmente acho que preciso esperar mais um pouco.

2. Sim, claro... Sem pressa...

Silêncio. As cabeças se encaram.

2. Mas você não sabe o que está perdendo.

1. Tá. Mas e daí?

2. E daí o que?

1. O que que tem?

2. Não tem nada.

1. Impossível. Você começou com essa história por algum motivo...

Silêncio. As cabeças se encaram mais uma vez. A cabeça 2 se faz de desentendida.

1. Impossível. Você não contou tudo isso para nada. Anda vai, qual o motivo.

2. Ainda é segredo.

1. Qual é? Só temos nós duas aqui...


136

2. Não é pra sair espalhando por aí.

1. Anda logo!

2. Nós vamos ter um bebezinho!

1. Um bebezinho!

2. É! Um bebezinho! É o que acontece quando dois adultos se amam, eles ganham um


bebezinho. A sementinha do amor, plantada na minha barriga.

Ouve-se o som de alguém batendo na porta. As cabeças de boneca somem. Surge a cabeça da
menina, que esconde seus brinquedos embaixo de um travesseiro, às pressas.

PAI. Maria!

A menina permanece em silêncio. Em seu rosto uma feição assustada. Como se ela estivesse
até então falando sobre algo muito secreto. Algo que não pudesse ter sido ouvido de forma
alguma. Quando eu era criança, morria de vergonha quando meus pais me pegavam brincando
de alguma coisa que envolvesse beijos.

PAI. Maria!

A menina permanece em silêncio.

PAI. Eu vou contar até três.


137

INTERROMPEMOS A NOSSA PROGRAMAÇÃO FICCIONAL PARA APRESENTAR DADOS REAIS

A televisão ocupa a cena.


2016 – Distrito Federal58

A MINHA FAMÍLIA, AOS MEUS AMIGOS. MINHA FAMÍLIA, MINHA ESPOSA MEUS FILHOS.
PELO FUNDAMENTO DO CRISTIANISMO. PELA HONRA DA MINHA FAMILIA. POR MINHA
FAMÍLIA. PELOS PRINCÍPIOS QUE ENSINEI AS MINHAS FILHAS. PELA MINHA FAMÍLIA,
PELOS MEUS AMIGOS. PELOS MEUS FILHOS. EM NOME DO MEU FILHO EDERMAURO,
FILHO DE QUATRO ANOS E DO ROGÉRIO, QUE JUNTO COM MINHA ESPOSA FORMAMOS
A FAMILIA NO BRASIL, QUE TANTO ESSES BANDIDO QUEREM DESTRUIR COM PROPOSTA
DE QUE CRIANÇA TROQUE DE SEXO E APRENDA SEXO NAS ESCOLAS COM SEIS ANOS DE
IDADE. COM A PROTEÇÃO DE DEUS E RESPEITO A MINHA FAMIÍLIA. PELAS MINHAS DUAS
FILHAS. E FELIZ É A NAÇÃO CUJO DEUS É O SENHOR. EM RESPEITO A MINHA FAMÍLIA. EM
RESPEITO A MINHA MULHER, MEUS FILHOS E MEUS NETOS. PELA MINHA FAMÍLIA,
MINHA FILHA, MINHA ESPOSA. PELA MINHA FAMÍLIA. PELA MINHA FAMÍLIA. PELOS
PROGRESSISTAS DA MINHA FAMÍLIA. EM RESPEITO A MINHA FAMÍLIA. PELA MINHA
FAMÍLIA. EM NOME DA MINHA FAMÍLIA. PELA MINHA FAMÍLIA. PELA MINHA FAMÍLIA.
PELA MINHA FAMÍLIA E ACIMA DE TUDO, POR AMOR DE DEUS. PELA MINHA FAMÍLIA,
MINHA FAMÍLIA DE RONDÔNIA. PELA MINHA ESPOSA, MEU FILHO E MINHA FILHA. POR
DEUS, POR MINHA FAMÍLIA. PELA MINHA MÃE QUE ESTÁ EM CASA JÁ COM SEUS 93
ANOS. PELA NAÇÃO EVANGÉLICA E CRISTÃ E PELA PAZ DE JERUSALÉM. PELA MINHA
QUERIDA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. PELOS MILITARES DE MEIA
QUATRO. PELA PROTEÇÃO DO GRANDE ARQUITETO DO UNIVERSO.! PELOS EVANGÉLICOS
DA NAÇÃO TODA. PELO POVO DE DEUS. POR DEUS. E COMO MINHA FAMÍLIA ME
ORIENTOU A VOTAR. PELOS MILITARES DAS FORÇAS ARMADAS. NESSE DIA DE GLÓRIA
PARA O POVO BRASILEIRO, TEM UM NOME QUE ENTRARÁ PARA A HISTÓRIA NESSA
DATA, PELA FORMA COMO CONDUZIU A CASA, PARABÉNS PRESIDENTE EDUARDO
CUNHA, PERDERAM EM MEIA QUATRO, PERDERAM AGORA EM 2016, PELA FAMÍLIA E
PELA INOCÊNCIA DAS CRIANÇAS EM SALA DE AULA QUE O PT NUNCA TEVE, CONTRA O

58
Sugestão de vídeo: < https://youtu.be/Ht_bVyvjRuA >
138

COMUNISMO, PELA NOSSA LIBERDADE, CONTRA O FORO DE SÃO PAULO, PELA


MEMÓRIA DO CORONEL CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, O PAVOR DE DILMA
ROUSSEFF, PELO EXERCÍTO DE CAXIAS, PELAS NOSSAS FORÇAS ARMADAS, PRUM BRASIL
ACIMA DE TUDO, E POR DEUS ACIMA DE TODOS! E PARA NENHUM GOVERNO SE
LEVANTAR CONTRA A NAÇÃO DE ISRAEL. PELA MINHA FAMÍLIA. PELOS EVANGÉLICOS DO
MEU ESTADO. PELA MINHA FAMÍLIA. PELOS MEUS FAMILIARES, PELA MINHA MULHER,
PELOS MEUS FILHOS. POR MEUS FILHOS, POR MEUS NETOS. O MEU VOTO HOMENAGEIA
A MINHA FAMÍLIA. PELA MINHA ESPOSA E PELOS MEUS FILHOS. EM NOME DA FAMÍLIA.
QUE DEUS TENHA MISERICÓRDIA DESTA NAÇÃO.

VOZ DA MÃE. Café na mesa!

2. FAMÍLIA
Cozinha.
A mãe, ocupadíssima, monta toda a mesa do café da manhã. Pães fresquinhos, café com leite,
e bolo de fubá, manteiga, facas, copos, pratos e uma flor ao centro da mesa. Na parede,
sacralizada, a imagem de Jesus, ou seria de Maria? Um enorme quadro. De fora da cena,
ouvirmos a voz do marido.

PAI. Onde estão meus sapatos?

MÃE. Na sapateira?

Silêncio, a mãe continua montando a mesa.

PAI. Não acho minha carteira.

MÃE. Mesa da sala.


139

Mesma dinâmica.

PAI. Maria, você tirou as meias de dentro do sapato? Eu havia deixado as meias dentro dos
sapatos.

MÃE. Elas estavam imundas!

PAI. Elas estavam completamente utilizáveis, eu sei quando minhas coisas estão imundas.

O pai aparece na mesa da cozinha de chinelos. Os sapatos em mãos. Ele caça as meias usadas
dentro do cesto de roupas sujas.

MÃE. Bem, pega uma limpa.

PAI. Eu pego a que eu quiser, Maria.

MÃE. Mas tem nova na gaveta.

PAI. Na gaveta só tem meia esportiva. Eu não vou por meia esportiva com sapato social.
Você quer que eu me apresente como? Você quer que me vejam de que jeito? Três meses
caçando emprego. Os caras olham até os pêlo da orelha.

MÃE. Tá no fundo do cesto.

O pai revira o cesto no chão. Encontra um soutien pequeno.

PAI. Que isso?

MÃE. Da Maria.

PAI. Desde quando ela usa soutien?


140

MÃE. Desde que virou mocinha. Você não quer chamar ela?

PAI. Tá desde ontem trancada no quarto.

MÃE. Chama ela, por favor.

PAI. Ela não responde!

MÃE. Maria!

PAI. Não grita, pelo amor de Deus.

MÃE. Você não se mexe pra nada.

PAI. Eu o quê?

MÃE. Nada.

PAI. Até onde eu sei, eu sou o único nesta família tentando botar comida na mesa, o único
nesta família me expondo todo santo dia, me colocando em risco, o caos que tá essa cidade,
para trazer o precioso dinheiro que banca cês duas. Presentinho de menarca, Maria?

MÃE. Chamando a filha. Maria! Ao marido. Foi só uma lembrancinha, num gastei 30 reais.

PAI. 30 REAIS?

MÃE. Bem, 30 reais por um soutien num é nada. É simbólico.

PAI. Ela nem tem peito ainda, Maria.


141

MÃE. Mas é simbólico. É o tipo de coisa que acontece quando a gente vira mocinha.

PAI. Dai-me paciência.

MÃE. Vai chamar ela!

O pai sai de cena para chamar a filha, bate na porta do quarto, “Café!”. Nada de resposta. De
fora da cena ele grita.

PAI. Viu só? Não responde. Não responde. Essa fase. Eles acham que são alguma coisa.
Alguma coisa sem a gente. Você não pode dar liberdade. E de repente, um belo dia, estão
assim, não respondem nem ao chamado para o café da manhã. Você devia ser mais dura
com ela. Já te disse isso. Você precisa ser mais dura com ela, vocês são muito amiguinhas.
Você trata ela como a sua amiguinha, sua melhor amiguinha. Aí depois você exige respeito
porque você é a mãe... Você é tão carente, Maria. Tão carente. Como a menina vai ter
respeito. Mãe é mãe. Amiga é amiga.

O pai senta-se à mesa, coloca a carteira em cima da toalha e começa a calçar os sapatos.

MÃE. Bem, a carteira.

PAI. Quê?

MÃE. A carteira em cima da toalha limpa, bem.

PAI. Baixo Putaquepariu.

O pai guarda a carteira no bolso da calça e continua calçando os sapatos. A menina aparece na
cozinha. Os olhos inchados. E cada uma de suas bonecas encaixada nos dedos de suas mãos.

MÃE. Bom dia, filha. Leite?


142

FILHA. Hoje não.

MÃE. Dormiu bem?

PAI. Larga essas bonecas e senta pra comer. Tamô atrasado.

FILHA. Não tenho fome.

MÃE. Café?

PAI. Então se prepara pra escola.

MÃE. Chazinho?

FILHA. Acho que eu tô doente...

PAI. Bobagem. Deixa eu ver.

MÃE. O que você sente?

O pai coloca as mãos na testa da menina.

PAI. Tá normal. Zero febre.

FILHA. Sem fome.

PAI. Vamô, se prepara que eu dou carona.

FILHA. Deixa eu faltar hoje. Pai.


143

MÃE. Deixa ela faltar hoje, Bem.

PAI. E ficar vagabundeando o dia aqui?

MÃE. Um dia de sossego não tira pedaço.

FILHA. Eu tô muito cansada.

MÃE. Filha, vai descer?

PAI. Descer o quê?

FILHA. Num sei.

MÃE. Meu deus, hoje você acordou virado!

PAI. Trabalho.

FILHA. Só quero deitar, pai.

MÃE. Deixa ela ficar, Bem...

PAI. Enquanto eu não voltar, não quero saber de você fora do quarto.

MÃE. Vai filha, descansa que é assim mesmo.

PAI. Entrega as bonecas pra sua mãe.

A menina obedece ao pai.

PAI. Descanso é descanso, num é ficar cochichando com boneca.


144

A filha sai. A mãe coloca as cabeças de boneca em cima da mesa.

PAI. Eu não quero saber dessa menina fora do quarto!

Beijo automático entre pai e mãe. Ele sai.


Resta a mãe na cozinha, sozinha. A mesa do café desorganizada. Ela, finalmente, senta-se para
comer.

2. No fim, é sobre isso.

1. Isso o quê?

2. Ter uma casinha agradável e alguém que cuide de você. Ter uma companhia, alguém ao
seu lado, isso engana nossa solidão.

1. É por isso?

2. Isso o quê?

1. Que você vai ter um bebezinho?

2. Sua hora vai chegar também.

1. Não sei.

2. Eu sei. É como que.... É como que um percurso, entende? Algo que a gente deve trilhar.
Algo que nos dá sentido.

1. Não sei.
145

2. Um dia você vai saber. É tipo saber que vai ter alguém ali para você. Entende? Alguém
que te acompanhe. Para você não se sentir tão sozinha. Para a sua vida fazer sentido. Você
acorda cedo pela manhã, assim, junto com o sol, você vai para a cozinha e prepara o café
com todo o amor do mundo. Você espera. Eles acordam, tomam o café, eles agradecem,
você recebe um beijo. Eles estão atrasados e saem correndo, mas não sem antes dar um
beijo, um beijo rápido. É o que deu para dar. E aí eles se vão e você fica assim, sozinha, mas
preenchida.

1. Encantador.

A mãe termina de comer. Pega as duas cabeças e as leva para a porta do quarto da filha. Bate
na porta.
Breu.

INTERROMPEMOS A NOSSA PROGRAMAÇÃO FICCIONAL PARA APRESENTAR DADOS REAIS

2020 – Alerta Nacional59

OUÇAM COM ATENÇÃO. A IMAGEM É MUITO ESCURA. OUÇAM COM ATENÇÃO AS


ÚLTIMAS PALAVRAS DE UMA GAROTA DE QUATORZE ANOS QUE SE ENVOLVEU COM UM
VAGABUNDO QUE NÃO PRESTA. VOCÊS VÃO OUVIR UMA MENINA DE QUATORZE ANOS
QUE SE ENVOLVEU, E TEM MUITA MENINA AGORA ACHANDO QUE NADA VAI ACONTECER
COM ELA, QUE TA AGARRADA COM VAGABUNDO, COM MACONHEIRO, COM GENTE
SAFADA. E O FINAL É ESSE. NÃO É POSSÍVEL QUE ELAS ACREDITEM QUE SÓ NÃO
ACONTECE COM ELAS. VOCÊS VÃO OUVIR AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE UMA GAROTA DE
CATORZE ANOS QUE SE ENVOLVEU COM UM CABRA SAFADO, UM VAGABUNDO. É MUITO
FORTE. É MUITO FORTE, ELA PEDE PRA NÃO MORRER O TEMPO INTEIRO. ELA CHEGA A
DIZER, ME DÁ PELO MENOS UM TIRO NAS COSTAS COMO CASTIGO, ALGUMA COISA
ASSIM. MAS ATIRAM NA CABEÇA DELA. SEIS VEZES. SEIS VEZES. E AINDA GRAVARAM.
PASSARAM RECIBO. A FRIEZA É TANTA DESSES VAGABUNDOS. SABE O QUE É ISSO? MUITA

59 https://youtu.be/ZyyWNqhLLwg
146

MACONHA NO CÉREBRO. MUITA MACONHA. MUITA MACONHA. OUÇAM, É MUITO


FORTE. OUÇAM.

3. HORÁRIO NOBRE

Sala.
A mãe assiste à tevê enquanto passa uma pilha de roupas. O pai, com a braguilha aberta e uma
mão na cueca, sentado no sofá, fuma um cigarro. Um quadro de Jesus, desses que o coração
brilha no escuro e assusta as pessoas mais desavisadas, pendurado na parede.

MÃE. Credo, sai disso.

A mãe desliga a tevê.

PAI. Mas é notícia!

O pai ameaça ligar novamente.

MÃE. Se for ligar, muda o canal. Forte demais.

PAI. Você fica querendo viver na fantasia, isso aqui é vida real, Maria.

MÃE. Coloca no outro canal, não quero perder o último capítulo.

PAI. Depois fica achando que a vida são flores.

MÃE. Filha! Você não vem assistir?

PAI. Deixa ela.


147

TEVÊ. Ao fundo .... voltamos a qualquer momento com mais notícias. Fique agora com o
último episódio de mais uma novela com muita vingança, poder, família, amores, traições,
mortes, nascimentos, doenças raras, uma pitada de alguma questão social pungente, mas
nada demasiadamente evidente para não perder patrocínio, afinal, Money makes the world
goes round. Good night!

MÃE. Filha! Você vai começar!

PAI. Deixa ela.

MÃE. Mas é o último episódio…

PAI. Hoje em dia tudo se acha na internet.

MÃE. Filha!

PAI. Teimosia...

Quarto.
As bonecas conversam.

1. Será que hoje eles se casam?

2. Se casam e têm filhos?

1. A maior prova de amor que se pode ter.

2. Xiu!

1. O quê?
148

2. Já se esqueceu?

A boneca 2 aponta para a menina.

2. Você tem certeza quer não quer descer?

1. Assistir à um final feliz? Hoje terá casamento

2. O vilão com toda certeza será preso. É assim que é.

1. É assim que deve ser.

2. Ou você pode ficar com sua mãe. Você pode contar para sua mãe. Vocês costumavam
ser melhores amigas

1. Mãe é mãe, amiga é amiga...

2. Vocês costumavam ser tão próximas.

1. Eu me sentiria distante da minha mãe se eu tivesse a traído.

2. Xiiiiu!

1. O quê?

2. Ninguém traiu ninguém.

1. Bom, ontem na novela eu ouvi a palavra traição.

2. Mas novela é ficção.


149

1. Dá na mesma.

2. Eu se fosse você descia pra ficar com sua mãe.

1. E seu pai!

2. E seu pai...

A menina consente.

2. Acho que não tem muita saída.

Da sala, é possível ouvir “Que a luz dos olhos meus precisa se casar, precisa se casar, precisa se
casar, precisa se casar, precisa se casar, precisa se casar, precisa se casar, precisa se casar,
precisa se casar, precisa se casar, precisa se casar”. Tom Jobim e Miucha.
150

REPRODUÇÃO DO PRÓLOGO. CONTINUUM

A menina deixa a Boneca 1 de lado, e com os dedos faz o gesto de “furar” os olhos da boneca
2. Então com uma caneta vermelha ela desenha o sangue que escorre e depois amarra uma
faixa nos olhos da boneca.
Isso deve ser filmado e reproduzido na tela da televisão.

FILHA
Deus, Pai, amor e misericórdia. Acolhe meu coração arrependido. Acolhe meu pedido de
perdão.
Senhor Jesus Cristo, Mestre da ternura e do amor, me conduz aos caminhos do perdão.
Fortalece a minha alma.
Espírito Santo, Consolador da alma, Advogado dos justos, inspire no meu coração os
gestos de ternura, de bondade, de ternura. E me tira essa angústia.
Amém.

Breu.

REPRODUÇÃO. 2. FAMÍLIA

Cozinha.
A mãe, ocupadíssima, monta toda a mesa do café da manhã. Pães fresquinhos, café com leite,
e bolo de fubá, manteiga, facas, copos, pratos e uma flor ao centro da mesa. Na parede,
sacralizada, a imagem de Jesus, ou seria de Maria? Um enorme quadro. De fora da cena,
ouvirmos a voz do marido.

PAI. Onde estão meus.

MÃE. sapateira
151

Silêncio, a mãe continua montando a mesa.

PAI. Não acho minha

MÃE. mesa da sala.

Mesma dinâmica.

PAI. As meias

MÃE. Elas estavam imundas!

PAI. Completamente utilizáveis.

O pai aparece na mesa da cozinha de chinelos. Os sapatos em mãos. Ele caça as meias usadas
dentro do cesto de roupas sujas.

MÃE. Tá no fundo do cesto.

O pai revira o cesto no chão. Encontra um soutien pequeno.

PAI. Que isso?

MÃE. Da Maria.

PAI. Desde quando?

MÃE. Virou mocinha. Cadê ela?

PAI. Trancada no quarto.


152

MÃE. Chama ela.

PAI. Não responde!

MÃE. Maria!

PAI. Não grita!

MÃE. Você não faz nada.

PAI. O quê?

MÃE. Nada.

PAI. Até onde eu sei eu sou o único nesta família tentando botar comida na mesa, o único
nesta família me expondo todo santo dia, me colocando em risco, o caos que tá essa
cidade, para trazer o precioso dinheiro que banca cês duas. Presentinho de menarca,
Maria?

MÃE. Chamando a filha. Maria! Foi trinta reais!

PAI. 30 REAIS?

MÃE. 30 reais. Num foi nada.

PAI. Ela nem tem peito.

MÃE. É um símbolo.

PAI. Putaquepariu.
153

MÃE. Vai chamar ela!

O pai sai de cena para chamar a filha, bate na porta do quarto, “Café!”. Nada de resposta. De
fora da cena ele grita.

PAI. Viu só? Não responde. Não responde. Você devia ser mais dura com ela. Você precisa
ser mais dura com ela, vocês são muito amiguinhas. Mãe é mãe. Amiga é amiga.

A menina aparece na cozinha. Os olhos inchados. E cada uma de suas bonecas encaixada nos
dedos de suas mãos.

MÃE. Leite?

FILHA. Hoje não.

MÃE. Dormiu bem?

PAI. Larga essas bonecas e senta pra comer. Tamô atrasado.

FILHA. Não tenho fome.

MÃE. Café?

FILHA. Acho que eu tô doente...

MÃE. Chazinho?

PAI. Deixa eu ver.

MÃE. O que você sente?


154

O pai coloca as mãos na testa da menina.

PAI. Tá normal. Zero febre.

FILHA. Sem fome.

PAI. Se prepara que eu dou carona.

FILHA. Deixa eu faltar hoje.

MÃE. Deixa ela faltar hoje.

PAI. Nada de sair do quarto enquanto eu não voltar.

MÃE. Descansa.

A menina tira as bonecas dos dedos e vai para o quarto. O pai sai. Resta a mãe, sentada na
mesa da cozinha. Ela encara as bonecas, e as leva para a porta do quarto da menina. Bate na
porta, sem nada dizer e sai. A menina abre uma fresta da porta e pega as bonecas correndo. É
segredo.

INTERROMPEMOS A NOSSA PROGRAMAÇÃO FICCIONAL PARA APRESENTAR DADOS REAIS

Rio de Janeiro - 201660

UMA CENA ASSUSTADORA. “MAIS DE TRINTA ENGRAVIDOU”. UMA ADOLESCENTE DE


DEZECEIS ANOS E DOPADA, ESTUPRADA E EXPOSTA NAS REDES SOCIAIS POR VÁRIOS
HOMENS. A AGRESSÃO TERIA OCORRIDO NO MORRO DO BARÃO ZONA OESTE DO RIO DE

60 https://youtu.be/wtYgE_WXsHQ
155

JANEIRO. A MENINA VOLTA PARA CASA SÓ NO DIA SEGUINTE E DESABAFA ‘NÃO DOI O
ÚTERO E SIM A ALMA”. O DELEGADO RESPONSÁVEL PELO CASO NÃO SE CONVENCE DO
CRIME. AS INVESTIGAÇÕES TÊM QUE SER UM POUCO MAIS TÉCNICAS PRA REALMENTE
CATEGARIZAR SE HOUVE REALMENTE UM ESTUPRO E COMO FOI FEITO ESSE FATO.

REPRODUÇÃO. 1. FINAIS (in)FELIZES

1. E então, o que ele fez?

2. Ele ficou bem pertinho de mim, e me beijou.

1. E como é isso?

2. É estranho e meio molhado, molhado por todas as partes.

1. Eu quero um dia ganhar um beijo.

2. Depois ele colocou as mãos dele no meu cabelo, fez um carinho com a ponta dos
dedos, um beijinho no canto da orelha...

Luz nas cabeças de boneca.

2. O carinho foi descendo pelas bochechas, pelo pescoço...

Enquanto uma fala, a outra sente medo.

1. Que mais, que mais?

2. E então, ele fez o que os adultos fazem. Sabe? Ele ficou pelado. E me deixou pelada. E
tava escuro. E não dava pra ver muita coisa. Ele fez o que os adultos fazem. Sabe?
156

1. Acho que sei...

2. Você acha que sabe?

1. É, eu acho que sei. Eu vi uma vez num filme.

2. Você viu uma vez num filme?

1. É, assim, isso que você diz...

2. Você não sabe.

1. Não sei, mas eu já vi.

2. Mas ver não é sentir.

1. Mas dá para ter uma ideia.

2. Não é a mesma coisa...

1. Mas é uma ideia.

Silêncio. As cabeças se encaram num longo silêncio.

1. Tá. Mas e daí?

2. E daí o que?

1. O que que tem?

2. Não tem nada.


157

1. Impossível. Você começou com essa história por algum motivo...

Silêncio. As cabeças se encaram mais uma vez. A cabeça 2 se faz de desentendida.

1. Impossível. Você não contou tudo isso para nada. Anda vai, qual o motivo.

2. É segredo.

1. Qual é? Só temos nós duas aqui...

2. Não é pra sair espalhando por aí.

1. Anda logo!

2. E agora eu tenho um bebezinho.

1. Um bebezinho!

2. É! Um bebezinho! É o que acontece quando a gente sangra. E tudo fica molhado. Tudo
fica melado e sujo.

1. E agora?

2. Eu não sei.

Luz ilumina a menina com as duas bonecas nos dedos. Ela está sentada em sua cama. A
menina tira o lençol de cima do corpo e revela uma cama imunda de sangue e fluídos.

1. A gente precisa limpar isso.


158

4. CRIANÇA

Cozinha.
A mesa está posta. Mãe e menina se encaram. A menina tem as duas bonecas em suas mãos, a
boneca 2 a partir de agora estará sempre com os olhos enfaixados e sangrando tal como na
reprodução do prólogo. Mãe e filha rezam protocolarmente.

MÃE seguida da FILHA


Dignai-vos, Senhor, abençoar o alimento que vou tomar, para melhor vos servir e amar. Em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Silêncio. Elas começam a comer.

FILHA. O pai saiu?

MÃE. Disse que se atrasaria.

FILHA. Muito?

MÃE. Não sei.

FILHA. Mas, de noite, você acha que ele tá de volta?

MÃE. Acho que sim... não existe procura de emprego que se estenda até a madrugada, né,
Maria.

FILHA. Sim...

Silêncio. Elas voltam a comer.


159

FILHA. Mãe.

MÃE. Diga.

FILHA. Você ama o papai?

MÃE. Amo...?

FILHA. O que você faria se soubesse que ele te trai?

MÃE. Seu pai mal sai de casa.

FILHA. Mas, o que você faria?

MÃE. Não sei.

FILHA. Você continuaria com ele?

MÃE. Nunca pensei nisso.

FILHA. Mas, você ama o papai?

MÃE. Amo....!?

FILHA. E ele te ama?

MÃE. Sim. Sim. Quer dizer. Acho que sim. Quer dizer. Seu pai é meio sério. Seu pai é meio
bruto. Seu pai não é o tipo de pai que demonstra afeto. Algum pai demonstra afeto? Seu
pai nunca chora. Mas homem não chora. Quer dizer. Você já viu seu pai chorar? Você já viu
algum homem chorar? Acho que tá tudo bem. Tá tudo nos conformes. É assim que é. A
160

maioria das vezes é assim que é. Mas ele me ama. E eu amo ele. Eu acho. Quer dizer. Ele me
deu você. Isso é o suficiente. É o suficiente, porque eu te amo. Então acho que tá tudo bem.

FILHA. Mas e se ele te traísse. Você me amaria?

MÃE. Donde veio essa pergunta, Maria?

FILHA. Você amaria essa criança?

MÃE. Você não tem nada a ver com o assunto.

FILHA. Eu não falo de mim. Eu não sou mais criança

MÃE. Ah não?

FILHA. Não.

MÃE. É o que?

FILHA. Eu sou uma mulher que menstrua.

MÃE. A vida não é preto no branco.

FILHA. Mas você me disse que eu era mocinha.

MÃE. É um modo de dizer. É simbólico.

FILHA. Mas toda mocinha quando menstrua também tem neném?

MÃE. A vida não é preto no branco.


161

FILHA. Tem ou não tem?

MÃE. Para ter neném o casal tem que se casar, e se amar, e de noite se deitar e se encher
de beijinhos.

FILHA. Você ama o papai? O papai me ama.

MÃE. É claro que te ama.

FILHA. Mas eu não gosto.

MÃE. O que você aprontou, Maria?

FILHA. Por que você não me fala a verdade?

MÃE. Que verdade?

FILHA. Você amaria essa criança?

MÃE. Que criança?

FILHA. A minha filha.

MÃE. O que você aprontou, Maria!

Silêncio novamente. A menina se levanta para tirar o seu prato da mesa. A boneca 1 responde.

1. O papai, toda noite, quando se despede de mim, deita ao meu lado e se cobre, assim de
conchinha. É assim que se fala quando o corpo do homem encaixa por trás do da menina?
Mulher? Menina? Ele tira as bonecas dos meus dedos, me dá um abraço. Depois disso eu
não vejo mais nada. Eu não ouço mais nada. Eu não falo mais nada. Mas eu sinto muita dor.
162

Ele me machuca bem fundo por dentro, e ele não para até que esteja tudo molhado,
molhado por todos os lados. No começo nada acontecia, as vezes sangrava, sempre doía,
mas faz alguns meses que eu virei mocinha.

A mãe é pura fúria. A cozinha é destruída. O quadro de Jesus é destruído. A filha assiste à
destruição sem ação. Depois que nada resta, a mãe senta-se novamente à mesa. Respira fundo.

MÃE. Você tem certeza?

INTERROMPEMOS A NOSSA PROGRAMAÇÃO FICCIONAL PARA APRESENTAR DADOS REAIS

2003 – Distrito Federal61

o senhor é que promove a violência. EU PROMOVO? é o senhor promove, sim. GRAVA,


GRAVA, GRAVA AÍ QUE EU SOU O ESTUPRADOR AGORA. OLHA JAMAIS IA ESTUPRAR
VOCÊ PORQUE VOCÊ NÃO MERECE. olha, eu espero que não. DÁ QUE EU TE DOU OUTRA.
DÁ QUE EU TE DOU OUTRA. DÁ QUE EU TE DOU OUTRA. o senhor tá me empurrando? DÁ
QUE EU TE DOU OUTRA. DÁ QUE EU TE DOU OUTRA. olha isso. DA QUE EU TE DOU
OUTRA. que que é isso? que que é isso? VOCÊ ME CHAMOU DE ESTUPRADOR. VOCÊ ME
CHAMOU DE ESTUPRADOR. VAGABUNDA. o que é isso. o que é isso. o que é isso aqui?
Desequilibrado. AH VAI DIZER QUE VOCÊ É UMA COITADA AGORA. mas o que é isso? mas
o que é isso? mas o que é isso? AINDA BEM QUE ELA GRAVOU TUDO ALI. CHORA AGORA,
CHORA AGORA. CHORA.

Breu.

61
https://youtu.be/LD8-b4wvIjc
163

5. CONTINUUM

Só ouvimos as vozes. Aos poucos a luz toma conta do espaço, vemos a menina revirando o seu
quarto até encontrar um baú.

1. Você mentiu pra gente.

2. Eu menti pra gente?

1. Você falou que isso acontece quando dois adultos se amam.

2. Ele nos ama. Não ama?

1. Não desse jeito.

2. Não desse jeito?

1. Não desse jeito. Desse jeito mancha.

2. Desse jeito dói...

1. Desse jeito marca.

2. Desse jeito dói...

1. Eu me lembro de quando ele nos tirou a cabeça do corpo.

2. Eu me esqueço disso.

1. A gente é só resto.
164

2. Eu realmente me esqueço disso.

1. Ele arrancou nossa cabeça do corpo e nos deixou em pedaços. Fragmentos.

2. Eu realmente tento me esquecer disso.

1. Um objeto inútil. Abusado. E passam-se os anos e eu achando que nosso corpo seria
encontrado. Em algum fundo de gaveta. No canto fundo de um armário. Em alguma
prateleira alta. Bem alta. Daquelas que a gente nem vê o que tem em cima. O problema do
tempo é que ele passa e a gente fica, a gente fica e vai vendo que é só um continuum se
repetindo, repetindo, repetindo. Cada ano que passa, mais um corpo mutilado.

Luz. É o quarto da menina. Ela encontra um baú. O abre e vira-o de cabeça para baixo. Dele
caem um monte de bonecas trucidadas: pernas, corpos, cabeças, nenhuma delas está inteira.
A menina, engole seco e começa a organizar as bonecas no chão, como um quebra cabeças, ela
tenta encontrar os corpos completos. A cena é filmada de cima e reproduzida na televisão.

2. Sabe o que acontece com o vilão no fim de cada novela?

1. Isso não é uma novela. Disso eu me lembro

1. Disso você se lembra?

2. Disso eu me lembro.

1. Agora é tarde. A gente virou ficção. Ou melhor, a gente virou história, notícia, dados,
números jogados em uma planilha grotesca.

2. Sabe o que acontece com o vilão no fim de cada novela?

1. Eles morrem ou vão presos.


165

2. Repete.

1. Eles morrem ou vão presos. Mas isso não é uma novela.

2. Isso é uma ficção.

1. Você não teria coragem.

A menina termina de montar todas as bonecas no chão do quarto. São muitas. Breu.
Sala.
A Mãe de joelhos em frente à uma cruz. Seus olhos sangram.

MÃE. Deus, Pai de amor e bondade, que em Sua infinita misericórdia acolhe todos os que
se aproximam de Vós com o coração arrependido, acolhei meu pedido de perdão por tantas
faltas cometidas contra Ti e meus irmãos.
Senhor Jesus Cristo, Mestre da ternura e do amor, que devolveu a vida em plenitude a
tantos homens e mulheres imersos no pecado e caminhantes das trevas, conduzi-me nos
caminhos do perdão e fortalecei minha alma para que eu tenha a humildade de pedir
perdão e a misericórdia de saber perdoar.
Espírito Santo, Consolador da alma, Advogado dos justos e Paráclito do amor, inspirai em
meu coração gestos de bondade e ternura, que devolvam aos corações angustiados a
beleza do perdão e as graças da reconciliação.
Amém.

Ela cobre os seus olhos com uma venda.


Breu.

MÃE. grita MARIA!


166

6. UMA TÉCNICA MILENAR

Sala.
A mãe aparece pela primeira vez em cena com os olhos vendados. A partir de agora ela ficará
assim para sempre. A sua frente, tal como a imagem da menina com as bonecas montadas,
vemos os mais diversos remédios e objetos pontiagudos, remetem a utensílios usados como
abortivos

MÃE.
Cabide. Agulhas de tricô. Remédios. Chás. Baciadas. Lâminas. Mangueiras. Objetos
pontiagudos. Plantas. Tesouras. Alicates. Fórceps. Chapoeiradas. Quiboa. Em gotas.
Cabide. Agulhas de tricô. Remédios. Chás. Baciadas. Lâminas. Mangueiras. Objetos
pontiagudos. Plantas. Tesouras. Alicates. Fórceps. Chapoeiradas. Quiboa. Em gotas.
Cabide. Agulhas de tricô. Remédios. Chás. Baciadas. Lâminas. Mangueiras. Objetos
pontiagudos. Plantas. Tesouras. Alicates. Fórceps. Chapoeiradas. Quiboa. Em gotas.
Cabide. Agulhas de tricô. Remédios. Chás. Baciadas. Lâminas. Mangueiras. Objetos
pontiagudos. Plantas. Tesouras. Alicates. Fórceps. Chapoeiradas. Quiboa. Em gotas.

A televisão exibe a imagem desses objetos.

INTERROMPEMOS A NOSSA PROGRAMAÇÃO FICCIONAL PARA APRESENTAR DADOS REAIS

Espírito Santo – 202062

ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO!


ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO!
ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO! ASSASSINO!

62 https://youtu.be/Ao88n6d0QxE ; https://youtu.be/NdTVEjBxJt0 ; https://youtu.be/nKmoZJ9A6KY ;


167

Carolina Trevisan: Então ela foi exposta de uma maneira que não poderia, é uma violação
dos direitos da criança, prevista no ECA, foi feito pela ativista de extrema direita, Sara
Winter, e ela contou no Instagram dela, o local, o hospital que estava sendo feito o
procedimento de interrupção da gravidez. Que seria um direito dessa menina de
interromper a gravidez que é fruto de estupro. Não só por isso, mas também pela idade
dela, uma gestação de risco, ela correria risco de morte.

Band Jornalismo: Olha, depois de muita polêmica, a secretaria estadual de saúde de


Pernambuco confirmou que uma menina de dez anos vinda do espírito santo passou pelo
procedimento de interrupção de gravidez. Essa criança ficou gravida depois de ser abusada
pelo próprio tio.

Morning Show: A criança contou à polícia que sofria abusos de um tio desde os seis anos de
idade. O homem de trinta e três anos teve a prisão decretada.

Luz no quarto da menina. Díptico. A sala e os abortivos, o quarto e as bonecas. A menina sai de
seu quarto e caminha até a mãe. Elas se encaram em silêncio.
De fora da cena alguém bate na porta da casa.

PAI. Maria!

Silêncio. A filha observa todos os objetos colocados em cena pela mãe. A mãe observa a filha
completamente compenetrada pela cena, ela pega uma das lâminas e esconde atrás de si.

PAI. Maria, abre a porta. Maria. Abre essa porta. Abre essa porta agora, Maria! Maria eu vou
contar até três, e hoje, especialmente hoje, eu não tô com paciência pra você. 1, 2, 3.

Breu.
168

7. FINAIS.

Na escuridão, ouvimos apenas a tevê.63

MULHER MATA UM HOMEM NO MOMENTO QUE ELE TENTAVA ABUSAR SEXUALMENTE


DA FILHA DELA DE SEIS ANOS NA ILHA DO GOVERNADOR.

A INOCÊNCIA DE UMA CRIANÇA DE OITO ANOS ROUBADA POR UM ABUSADOR. PELO


MENOS ESSA MENINA QUE CARREGA HOJE OS TRAUMAS DO ABUSO SABE QUE A MÃE
FEZ DE TUDO PARA DEFENDÊ-LA.

EU NÃO VOU MENTIR, A MINHA INTENÇÃO ERA DE MATAR. PORQUE, PELA MINHA FILHA,
O QUE ELE FEZ COM MINHA FILHA, NÃO TEM PERDÃO.

EU PEGUEI ELE COM ELA NO COLO, COM AS MÃOS DENTRO DA CALCINHA E EU FIZ A
DENÚNCIA. ENTÃO O JUÍZ PEGOU E SOLTOU, NÉ. EU PEDI PRA MANTER ELE MAIS TEMPO
FECHADO, MAS NÃO ADIANTOU, E EU TAVA REOVLTADA, PERDI A CABEÇA. Foi vingança
mesmo? FOI VINGANÇA.

Aos poucos a sala é iluminada. Vemos mãe e filha sentadas no sofá de frente para a tevê. No
chão, coberto pelo tapete completamente ensanguentado, o pai.

MÃE. A gente precisa limpar isso.

Elas continuam assistindo à tevê.


A luz cai em resistência.

63
https://youtu.be/spf6aUyRua4 ; https://youtu.be/daWnDW1aeUs ; https://youtu.be/KHN28SOrihI
169

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“NÃO estupro porque você não merece”, diz Bolsonaro a Maria do Rosário, revistaISTOE,
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RELEMBRE os principais votos do impeachment de Dilma Rousseff na câmara dos


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14 mar. 2021.

SIKERA comenta: Caso Lenita | não se apaixone por bandido, TV A Crítica, 2020 (11 min).
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https://www.youtube.com/watch?v=ZyyWNqhLLwg&ab_channel=TVACr%C3%ADtica.
Acesso em: 14 mar. 2021.

TEMPORADA de caça. Rita Moreira. Produção: Rita Moreira, 1988, (24 min). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=rjan_Yd0C5g. Acesso em: 27 jul. 2020.

TRAVESTIS relatam perseguição de policiais no Centro de São Paulo. Carta Capital, 2017 (3
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Acesso em: 27 jul. 2020.

“VÃO pro inferno”: o aborto da menina de 10 anos estuprada e os protestos à porta do


hospital, Morning Show, 2020 (12 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Ao88n6d0QxE&ab_channel=MorningShow. Acesso em:
14 mar. 2021.

ENTREVISTAS

ALVES, Ave Terrena. [Entrevista concedida a] Sofia Fransolin Pires de Almeida. São Paulo,
21 fev. 2020.

FERREIRA, Michelle. [Entrevista concedida a] Sofia Fransolin Pires de Almeida. São Paulo,
01 fev. 2020.

FERREIRA, Michelle. [Entrevista concedida a] Belise Mofeoli. Spoilando a peça. São


Paulo, 22 mar. 2020. Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/6uJIHYWmo7Bl30LgbASBV4. Acesso em: 10 jun. 2020.

PASSÔ, Grace. [Entrevista concedida a] Sofia Fransolin Pires de Almeida. São Paulo, 02
dez. 2020.

MANUSCRITOS

FERREIRA, Michelle. Tem alguém que nos odeia. Manuscrito concedido pela autora para a
pesquisadora.

FRANSOLIN, Sofia. Damas – Quem tem medo do Barba Azul? Acervo pessoal.

FRANSOLIN, Sofia. A Louva-a-Deus. Acervo pessoal.


179

ANEXO I

ENTREVISTAS

Michelle Ferreira
Quando: 1º fevereiro de 2020, 19h30
Onde: Teatro Arthur Azevedo, São Paulo – SP, pouco antes da apresentação de Tem alguém
que nos odeia, escrita e dirigida também por Michelle.
Duração: 1h 02min 24 segs.

Pré-Pandemia. No saguão do Teatro, Michelle encontra Sofia. A conversa se inicia


informalmente, apresentações e amenidades. Michelle conta que começou recentemente os
ensaios da peça 4 da espécie, o desejo era estreá-la em 2020.

Michelle: Então é isso.... Então a gente vai montar e é um enrosco, o papel, o papel é
maravilhoso. O papel, ali, as palavras – uma seguida da outra – é maravilha. Agora,
materializa! E aí? Mas tem uns caminhos, se a gente seguir os caminhos...É que às vezes eu
sofro a mesma coisa que eu reclamo…. Reclamo, não, assim... Você escreve um texto, na
sua cabeça ele já existe. Quando uma outra pessoa vai dirigir, ela nunca vai alcançar suas
expectativas.

Sofia: É outra pessoa que vai dirigir?

Michelle: Não, sou eu. Essa sou eu. Essa eu fiz questão. Justamente porque eu falei assim,
tem uma maneira, uma forma, tem um jeito específico de montar isso aqui pra dar certo,
pra alcançar o que o texto quer dizer. E aí é isso, né! Porque quando você é o autor, você
tem essa proximidade, você sabe do que tá falando intrinsecamente. Quando você é o
diretor você pode pirar, você pode emprestar outras coisas do teu universo, então já é uma
outra interpretação. A minha ideia é deixar… É não atrapalhar o texto, entendeu? É não
atrapalhar. E ao mesmo tempo, claro, coisas que não são necessárias, né. Você que conhece
o texto sabe. Por exemplo, tem todo um prólogo, tem toda umas coisas, umas rubricas que
na verdade é muito pro leitor, pro leitor da peça e pro próprio diretor se inspirar, entender
onde a gente tá. Agora, isso não significa necessariamente que eu vou colocar essas
rubricas em cena porque isso não necessariamente é teatral.

Sofia: É, as suas rubricas são...não é nem literário também, é quase uma conversa, parece
que é mais um aparte mesmo.

Michelle: Eu fui aprimorando isso porque o que aconteceu é que quando eu comecei a
escrever eu queria que o leitor, que a pessoa que eu desse a peça, se apaixonasse pela peça
pra querer montar. Foi uma estratégia até de sobrevivência, entende? E isso acabou
180

refletindo no estilo, não gosto muito dessa palavra, mas… Estilo pra mim é moda. Então foi
mais uma estratégia eu acho, mas eu também não sabia que era uma estratégia, mas eu
achava legal, sei lá o que eu achava. Isso acabou ficando e muitas pessoas que montam os
meus textos, por se encantarem tanto com a rubrica colocam, ou tentam colocar.... Não
acho nada de ruim nisso, é a pira da pessoa. O diretor tem a pira dele. Isso é uma coisa que
eu entendi, o diretor tem a pira dele e eu tenho a minha pira, entendeu? E às vezes pode
casar, e às vezes pode não casar com a minha expectativa, não que o público não goste,
que os atores, que o processo não seja legal, nada disso. Então 4 da espécie é isso, eu quero,
eu quero fazer da maneira mais teatral possível porque eu acho que ele é muito teatral. Só
que não é tudo dele, algumas coisas são estratégias mesmo…

Sofia: De leitura?

Michelle: De leitura, para que o leitor fique inserido porque ele, o leitor não tem a
possibilidade de ver a peça naquele momento que ele está lendo. E a leitura é uma coisa da
interpretação. A interpretação, quando você lê o texto você tem a função de interpretar,
assim como quem vê a peça, quem interpreta é o espectador. Nós representamos. Eu sou
bem Renato Ferracini. Aprendi com ele: Quem interpreta é o público e o leitor. Nós, nossa
função é representar e abrir pra que eles, o outro intérprete.

Sofia: Mas você acha que o diretor não dá já uma primeira interpretação?

Michelle: Dá, dá sim.

Sofia: Eu fico pensando nisso que você falou, de querer ser a diretora do 4 da espécie porque
você como dramaturga também tem uma interpretação mais próxima, né?

Michelle: Sim.

Sofia: Porque geralmente uma peça de teatro a interpretação, o que o público tem é a
interpretação de uma interpretação.

Michelle: Exato. Agora, por isso que eu não gosto do verbo “interpretar”, entendeu? Por
isso que eu gosto do “representar” porque o “interpretar” ele de alguma maneira vai
fechar. Porque, se eu interpreto de uma forma é dessa forma que eu vou colocar, agora se
eu represento e deixo aerado, se eu consigo encontrar uma forma aerada de colocar aquilo
em cena, aí as interpretações vão explodir aqui. Se eu tiver uma interpretação muito
contundente: “Não, eu quero falar é isso, vou falar disso, o negócio...”, eu acho um
desperdício, mas isso eu acho num geral, essas coisas quanto mais... Eu acho que as coisas
mais belas são as mais abertas.
181

Sofia: E é uma peça muito aberta, você lendo... Eu já li algumas vezes já e cada hora eu acho
uma coisa...E aí, o Renato fala, ele escreveu o prefácio, né?

Michelle: Aham.

Sofia: Que ele fala dos corpos. Dos corpos sem órgãos. E aí eu fico pensando em como
resolver uma peça que fala tanto sobre essa questão do poder que em nossa sociedade
está em corpos, em um texto que apresenta quatro personagens que você nunca vai saber
o quê que esses corpos que normalmente dizem tanto... Eu não sei se estou me fazendo
ser entendida…

Michelle: Não, não. Eu entendo o que você quer dizer. Agora, veja bem, na leitura você tem
a ideia desses corpos, como vão ser esses corpos. Agora veja, se você imaginar a peça
concretamente eu vou ter quatro mulheres fazendo, eu não vou ter homens fazendo. Pra
mim é muito importante. Não são homens. Também não são homens trans, nem mulheres
trans, são corpos femininos vivendo aquelas situações. Que aí, pra mim, o choque vai ser, o
quão inaceitável é a gente ver esses corpos femininos se comportando dessa maneira.
Entende? Porque…. Outra pessoa poderia ter outra pira “Não, vou misturar, vou fazer meio
menina, meio menino, vou trocar na hora…” Pra mim não tem sentido algum fazer dessa
forma. Pra mim o sentido inevitável de fazer são corpos femininos. E é dos corpos femininos
que parte essa relação. Que você fala assim: “Mas pera aí, mas não são quatro mulheres?”
Porque são quatro mulheres. São. Mas, então não são? Mas porque que eu acho que elas
não são? Se elas são. Porque eu acho que elas não são se elas têm peito “Tô vendo que
tem peito aqui, tô vendo que tem cabelo aqui…Isso aqui é mulher!” Entende? E aí, fazer
essa viagem, mas na situação, na situação desses corpos femininos vivendo esses
enunciados. Do que misturar os corpos e falar então “Ah, tudo bem, então pode porque é
loucura total.” É loucura total, só que é loucura através desses corpos femininos, que são
esses corpos que são mortos. E não vão ser quatro da espécie porque eu vou colocar mais
duas pessoas em cena, vai ser seis da espécie, vai ter uma mulher negra em cena. E ela é o
mesmo personagem da mulher branca e depois vai entrar no lugar da mulher branca, mas
aí você fala assim, “Mas ela não era branca?” Não, agora é preta. E aí muda a relação.

Sofia: Complexo.

Michelle: Complexo é. Mas se você fizer de uma maneira simples. Se você obedecer a
teatralidade do texto que é muito simples. Uma situação, um conflito...Por isso que isso
tem que ser muito simples, porque o resto já é uma viagem. Então, se eu conseguir
estabelecer esse jogo, aí eu acho que alguma coisa vai acontecer.
182

Sofia: Mas é, faz todo sentido agora você falar que quer dirigir, porque realmente um diretor
pode colocar quem ele quiser e é uma peça que tem muitas… você pode ler muitas coisas
dela, então pra ler isso… que pra mim é uma leitura bastante potente, importante ser você.
Eu ia falar uma coisa, mas esqueci...

Michelle: Parece eu…

Sofia: Foi de um lugar, aí você perde o fio...Ah, que você falou dos corpos femininos que são
mortos, isso me interessa muito porque acho que em ambas as peças, tanto no 4 da espécie
como nessa (Tem alguém que nos odeia) você traz finais, desfechos que não são desfechos,
deixam uma abertura e que eles não reiteram a norma social de que esses corpos são
mortos então eles vão ser mortos mesmo, e a vida segue lá fora e aqui dentro igual. Como
se fosse trazendo uma nova perspectiva, não sei, é o que eu vejo, enfim acho isso
interessante. Tô falando bobagem?

Michelle: Não, não. Pra mim finais são muito importantes. Finais são uma coisa muito
importante. E... Você faz uma peça inteira pra você afirmar o que tá todo mundo afirmando?
O que o jornal já falou, já tá todo mundo: as blogueiras, o Tiago Leifert, entendeu? A
Gretchen, todos os memes...Você vai pra reiterar? Não é a função da dramaturgia. Tão
pouco é apaziguar o que é inapaziguavel (sic) mas também é, eu acho que o teatro é um
voto de esperança no futuro, é um compromisso civilizatório. Mesmo assim. Pra quem faz,
pra quem assiste. É uma coisa que.... Ou mata ou cura. pharmakon. A farmácia de Platão.
Quer dizer o remédio, pode ser veneno ou pode ser remédio. Pode te matar ou pode te
curar. Mas é importante dar esperança...E é assim, quando a gente tá um momento, eu
sinto isso inclusive escrevendo, quando a gente tá num momento tchoptchura (sic) a gente
pode bater diferente. Bater nos nossos inimigos de uma maneira diferente. Eu já tô
enxergando o teatro agora: ou a gente faz um teatro popular e recupera a ligação com as
pessoas e faz as pessoas gostarem e tal, e não aborrece a plateia, ou acabou. Ou acabou.
Porque se a gente for aborrecer a plateia, chamar a plateia de burra, chamar a plateia de
“Vocês não têm…” Porque muitas vezes você vai em peça, e às vezes o texto não é assim,
mas a montagem é assim. Ou às vezes a montagem não é, mas o texto é pedante, que é
uma coisa que parece que tem a verdade.

Sofia: De apontar o dedo?

Michelle: É, o apontar dedo e ter a verdade. O artista, o autor, o diretor tão se colocando
num patamar que não lhe pertence, entendeu? Usando o teatro dessa maneira, então, eu
acho isso ruim. E eu acho que o teatro perde muito com isso. Entendeu? Não dá.... Eu acho
que é o crime. Eu perdoo até peças tecnicamente falhas, o que não dá pra perdoar são
peças cujo discurso é “Vocês não sabem de nada e eu tô aqui pra trazer a resposta”. Isso aí
183

é inadmissível. Entendeu? Ou você cria uma relação horizontal tanto dentro do trabalho
quanto com a sua plateia, ou a gente vai ficar pregando pra convertido que é o que a gente
tem feito muito, então…Eu acredito que se você não der o entretenimento, se você não
fornecer o entretenimento, se você não oferecer o amor, o acolhimento e a
horizontalidade, não sei pra quê tá fazendo a peça. Isso independe do tema, isso independe
de tudo.

Sofia: E, então, não depende...Isso é muito interessante de você falar, que não depende de
tema, porque não é uma questão nem só da forma, nem só...Assim, às vezes parece que
“Quero falar sobre isso, quero falar sobre um tema relevante socialmente, então vou falar
sobre ele diretamente”, ao invés de colocar…

Michelle: É...., Mas isso é....Sabe o que é isso na minha opinião? Isso é uma pessoa que não
tem técnica. A dramaturgia é uma técnica. É uma arte. Toda arte tem técnica. Eu falo isso
pros meus alunos, eles olham pra mim assim “Nossa, mas você tá falando de técnica?”. Eu
falo “Tô, por quê? É palavrão?”. Técnica. Porque parece que é palavrão. Tem que ter uma
técnica. Agora, que técnica que é? A sua, né, bebê. Você como artista, o artista plástico, o
autor, o diretor, sei lá, o ator, ele vai o quê? Ele vai aprimorar a sua própria técnica. Que que
é a técnica? É o modo de você fazer. Agora você precisa ter. Se você quer falar sobre um
assunto relevante e não sabe falar, você não vai falar. Cê vai achar que tá alcançando um
negócio, mas cê vai jogar o contrário. É o que eu falei lá no Colóquio: uma peça indignada
não é uma peça que causa indignação.

Sofia: Ah, sim.

Michelle: Entende? Então, cê tem que ver como que você… Cê tá indignado, eu também
tô. Como é que você vai fazer isso, tal. E outra, o teatro não aceita menos que contradição.
Escreve sem contradição pra você ver. É uma merda. Então, tem essa técnica. Você nunca
olha pra luz do sol direto senão cê fica cego. Cê tem que olhar pra sombra, primeiro tem
que olhar pra sombra e você vai olhar pra outro lugar pra atingir ali. Mas isso é técnica, né?
E tem autores que não dominam tanto o teatro e aí isso fica muito evidente, fica muito
evidente.

Sofia: Uma pergunta técnica, falando em técnica: Você tem uma técnica ou você descobre
técnicas? A partir de materiais.

Michelle: Pra cada obra tem uma técnica diferente pra fazer. Tanto pra dirigir quanto pra
escrever. Cê pode, claro...Cê tem– A sua caixa de ferramentas vai ficando mais cheia, você
vai trampando, vai trampando, entendendo, vai trampando, vai vendo, vai lendo, vai
entendendo, vai entendendo, vai entendendo, aí sua malinha vai ficando pesada, mas, pra
184

cada… Aí, tudo bem, você tem aqueles instrumentos. Aí, você vai escrever uma nova peça,
o 4 da espécie, completamente diferente, processo completamente diferente de todas as
peças. Normalmente, eu sei tudo da peça e depois eu começo a escrever, normalmente eu
sento eu já sei, a peça está dentro de mim. Claro, falta escrever, mas, a peça está dentro de
mim e eu só consigo escrever desse jeito. O 4 da espécie não. O 4 da espécie era uma ideia
que eu falei “Bom, como é que eu vou fazer?”. Normalmente eu tenho uma história, eu já
tenho uma história pra minha ideia. Porque é foda esse negócio da forma e conteúdo, mas
é uma coisa que me fascina porque o que que é a forma? A forma é o limite do conteúdo.
Sou bem hegeliana nesse sentido. Então, é o limite do conteúdo. Então, tem um conteúdo,
o que que é a forma? É o limite dele. Como que eu vou articular. Só que você, às vezes, você
tá achando que é um círculo e não é um círculo é um losango. Entendeu? Você acha que é
um círculo, aí ele vai te falando “Não, não é.” Quem vai te dizendo o que é, é o próprio
trabalho. É a própria peça. Cê tá escutando. Então por isso que deu trabalho, eu tive que
escutar. Eu tive que escutar. E são quatro vozes falando e vivendo. Então, era gente... era
gente... E aí, depois quando eles começaram a falar sozinho eu falei “Ah, então tá bom”.
Sempre que eles começam já a falar sozinhos eu falo ‘Talvez eu esteja acertando alguma
coisa”. Porque quando tem muita dominância também é porque tem alguma coisa errada.
Tem alguma coisa errada. Mas deu trabalho, eu acho que foi a.... Normalmente quando a
peça cai pra mim eu sento e escrevo, essa...nossa! Essa foi...foi muito mais caudalosa.
Porque tinham coisas que eu não sabia como fazer pra chegar naquele ponto. E aí eu
abandonei algumas crenças e quando eu abandonei algumas crenças sobre mim, inclusive,
sobre o trabalho, sobre.... As coisas começaram a acontecer. Ou não, nunca se sabe.

Sofia: É, tem que ver em cena, porque teatro é cena.

Michelle: É cena.

Sofia: Mas…Como texto, funciona. Enquanto literatura.

Michelle: É, enquanto livrinho não aborrece.

Sofia: Eu li num site, num desses sites que você acha.... Que você se inspirou em alguns
livros pra escrever o 4 da espécie. Você leu alguns livros.

Michelle: Na verdade esses livros que me suscitaram a ideia de escrever 4 da espécie. Eles
não foram...É…Eu gosto muito de ler, eu leio muitas coisas, sou uma leitora sedenta e eu
comecei a ler coisas que começaram a me atormentar muito. E é uma década já que eu sou
mais feminista do que eu era. Quando eu tinha vinte anos eu não era feminista, não sabia
nem... Na verdade, eu, minha geração, quando tinha vinte anos a gente não achava que o
feminismo precisava mais, porque já tava tudo resolvido, tanto que quando eu tinha vinte
185

anos, “Magina, feminismo, já foi, agora já tá tudo...” Como se tivesse uma coisa superada,
como se já “tamô” igual! Pra quê? Porque não tinha noção. Porque na verdade essa é a
arma do patriarcado pra achatarmo-nos. Mas eu só fui perceber isso uma década depois,
fui perceber isso com trinta anos. Hoje uma menina de vinte anos é feminista. Nós estamos
vivendo uma outra parada. Mas eu não era. E aí eu comecei, e aí comecei a ler um monte
de coisa, um monte de coisa, um monte de coisa e aí começou a cair aquela ficha, aquela
hecatombe, aquele piano na cabeça. E eu falei “Bom, eu não tenho outra coisa pra escrever.
Eu não quero escrever sobre outra coisa. Não tenho o que dizer, tenho que dizer isso. Isso.

Sofia: Sim...E o Tem alguém que nos odeia, é de quando?

Michelle: 2011. Escrito em 2011.

Sofia: Porque ele também traz algumas, já tá embasado nessa––

Michelle: Tá..., Mas eu não sabia muito, eu não sabia muito. Tava.

Sofia: Era mais intuitivo?

Michelle: Era totalmente intuitivo. Totalmente assim, é… existia claro, mas 2011 eu já tô no
começo desse processo, é verdade. Já tô. Eu tenho vinte anos no começo dos anos 2000.
2011 eu já tenho trinta. Já tenho quase trinta. Então já foi de um outro processo, mas foi
uma peça que eu escrevi que eu...Totalmente ficção na minha cabeça. Era totalmente
ficcional. Ela foi ganhando contornos cada vez mais realistas, no sentido de cada vez mais
próximos da realidade, para o meu desespero. Porque na verdade o que eu gostaria é que
essa peça um dia fosse datada, falasse assim “Ah, lembra daquela peça que falava que
sofria...magina hoje ninguém sofre nada. Ataque... Ninguém sofre ataque hoje.”, não tá
sendo o caso. O contrário. Então, quando a gente estreia no Sesc em 201764, em pleno vira
voto. Eu lembro quando a gente saiu da Olido, nos nossos últimos ensaios, lembra Mariana?
(Mariana é uma das atrizes que irá apresentar em alguns minutos a peça. Ela está no palco,
ajeitando os últimos detalhes e se aquecendo). Saímos e fomos ainda tentar virar um votinho.
Virar um voto. E ainda na esperança de que se cada um virasse um, o Bolsonaro não ia ser
eleito.

Sofia: Eu lembro….

Michelle: Foi uma onda...Assim, de coisa. Eu falei assim, “Bom agora vai!” Pobres mortais.

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A autora, apesar de falar 2017, se refere ao ano de 2018, pré-segundo turno das eleições presidenciais em
que os candidatos eram Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Provavelmente o erro se deu por distração no
momento da conversa.
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Sofia: Mas a gente tenta…

Michelle: A gente tentou. Mas você imagina então essa peça, magina 2013, quando foi
montada primeiro, claro que tinha homofobia pra caralho, mas não tava autorizado. O Brasil
era diferente. Tinha um país, né. Existia um país em 2013. E a sensação que a gente tem
agora é que não existe. Ruiu. E é um grande aprendizado...porque as coisas não, nada está
resolvido. Nada está resolvido. Não está resolvido nada. É um certo desespero, mas é
importante sair da infância logo. Já perceber isso o quanto antes, porque senão...Até ficção,
até escrever ficção fica difícil. Porque senão fica aquela coisa do constatar. Vamos
constatar. Não tem… Peça que constata, pra mim, não precisa ser escrita. Não perca seu
tempo escrevendo uma peça que constate a realidade, nós não precisamos. O teatro é
lugar de outra coisa. É o lugar do sonho. É o lugar da esperança. Claro, a ingênua, não a
demagógica. Ninguém é bobo. Público não é bobo. O público é muito inteligente. O público
sabe das coisas.

Sofia: É um perigo na verdade achar que o público é idiota.

Michelle: Mas eu vou nas peças que o pessoal me chama de idiota o tempo inteiro. Aí não
dá, não é legal. E é isso, o diretor é esse público profissional que fica tentando fazer essa…

Sofia: Mediar?

Michelle: Fica tentando ser o público. Fica tentando se colocar no papel do público o tempo
inteiro.

Sofia: Sim...E essa peça você resolveu dirigir depois?

Michelle: Essa peça foi a mais montada do meu rolê. Já foi pra vários lugares, acabou de ir
pra Argentina, já foi pra Escócia, já teve aqui, já teve outra montagem, e a Mariana e a Maíra
da Companhia do Teatro Enlatado resolveram fazer…

Sofia: Ah, foi um convite.

Michelle: Foi um convite. E aí a gente conseguiu estrear em 2017. E eu montei diferente das
outras montagens que eu já vi.

Sofia: É, inevitável.

Michelle: Inevitável. Vou jogar no meu parquinho. Meu parquinho, minhas regras.
187

Sofia: Ah, mas fico feliz de saber que você vai estrear o 4 da espécie.

Michelle: Vou, menina. Nossa, ontem eu fiquei até às quatro da manhã, não saí com elas pra
ir na festinha porque eu tava cansada, cheguei em casa fiquei ouvindo...Fiquei, “Meu deus
do céu, como é que eu vou resolver esse pepino, como é que eu vou fazer essa cena, como
é que que eu vou começar essa peça…”

Sofia: E você tá montando com a sua companhia?

Michelle: Tô. Tô montando com A Má Companhia, com algumas atrizes convidadas, mas é o
nosso núcleo duro.

Sofia: É, eu imagino que dê outra. Que dê uma liberdade, não sei como vocês trabalham…

Michelle: Ah, o legal de ter a companhia é, você...Tem a companhia, você já conhece


aquelas pessoas, você já tem não sei quê, você tem o modus operandi, né? Porque às vezes
você pode entrar num outro lugar com pessoas que não se conhecem, mas aqui também
foi incrível porque elas também têm uma companhia, nós somos amigas. Adoro o termo
amiga pessoal. Eu odeio quando a pessoa fala “Não, porque é minha amiga pessoal”. Não.
Porque, é amigo o quê? Impessoal? Então não é tua amiga, então fala que é tua conhecida,
que é tua colega, não fala que é tua amiga pessoal. No caso as duas são minhas amigas
pessoais, então foi muito… Trabalhar muito em casa, entendeu? É legal, e a nossa
companhia é uma companhia, somos nós três, três minas e a gente tá com um sangue nos
olhos absurdo. Tomara que isso se reflita na cena, mas eu acho que vai sim. A gente tem
trabalhado muito, a gente já trabalhou muito.

Sofia: É, e eu acredito que o momento que a gente tá vivendo politicamente, socialmente,


não tem muito como o público não sentir o sangue nos olhos, sabe?

Michelle: É, porque ou é sangue nos olhos ou fica em casa. Vamos ficar em casa, gente. Não
precisa ter o teatro. O teatro é necessário nesses casos? Tem aquele livro, né? Já ouvi falar
nesse livro O teatro é necessário?

Sofia: Já...

Michelle: De vez em quando eu leio, esqueci o nome do autor.

Sofia: É da perspectiva, não é?


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Michelle: É, aqueles livros da Perspectiva, aqueles lá que a gente tem um monte. Um


seguidinho do outro, ele mesmo. Então é isso, sobre o 4 é isso, eu acho. Uma loucura. Que
é isso, eu tento escrever pra causar efeitos psíquicos na plateia, já percebi isso.

Sofia: Como é isso?

Michelle: Eu não sabia disso. Fiquei sabendo a posteriori. Quando tive que me debruçar
sobre o meu próprio processo pra poder explicar pras pessoas como que eu faço. É isso. Eu
quero criar efeitos psíquicos. Então, o que que eu quero causar? Então, tá! Então eu quero
causar isso. Então o que que eu tenho que fazer? Como que eu vou causar isso? Então, qual
a estratégia, entendeu? Qual a estratégia? Qual é a melhor estratégia para aquele trabalho?
E claro, eu tenho os meus gostos, eu tenho as minhas jocosidades, eu tenho as minhas
idiossincrasias, eu tenho meus rolês. Que as pessoas acham que é estilo e na verdade pode
ser uma grande limitação. Na verdade. Pode ser uma grande limitação! Ou é estilo. A gente
não sabe o que que é estilo e o que que é limitação porque a gente faz... A gente não
consegue fazer daquele jeito que é de outro, a gente só consegue fazer do jeito da gente.
Então, a gente vai criando aqui. Mas eu acredito na comédia. Acredito. Eu acredito muito
na comédia. Eu acho a comédia subvalorizada, óbvio. Em todas as áreas da dramaturgia
é....ela pode ser muito popular, as pessoas podem gostar muito, mas artisticamente, a
crítica, academicamente ela é sempre, tipo “Ai…ok”. Ela é sempre um “Ai, ok”. Eu sei
porque eu já sofri “Ai, ok” pra caralho, entendeu? Mas eu prefiro muito mais ser popular e
que essas pessoas achem “Ai, ok” do que o público. Então, eu acho a comédia divina…

Sofia: E às vezes na comédia você consegue atingir um outro lugar também, né?

Michelle: Imediato. Imediato. Imediato. Imediato, assim. Imediato. E no teatro então, é, que
se contamina, né… Têm três rindo, daqui a pouco têm cinco, têm dez, quando você vê, tem
uma sala inteira de duzentas pessoas rindo e não tem barulho melhor. Pra mim uma risada,
uma gargalhada de um monte de gente junto é uma coisa que...impagável. E o corpo já
relaxa. Porque é uma coisa física, o riso. É físico. Riu, não sei quê...frum (sic), já dá uma
endorfininha ali, já dá um negocinho, cê já tá diferente pra ver a peça. E, depois, cê pega e
(ela bate uma palma contra a outra, simulando um tapa).

Sofia: Você ri e depois você vai perceber que você tava rindo de uma coisa que…

Michelle: Que você não devia. Olha como você é um ser humano ruim. Ó, como você é ruim!
As pessoas se revelam muito, do que elas riem. É muito revelador. É muito revelador. A
capacidade de rir.
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Sofia: Eu admiro quem consegue fazer os outros rirem, assim, na escrita. Eu acho muito
difícil. Agora falando mais como recém dramaturga…

Michelle: Ah, mas a piada é uma coisa.... É uma coisa difícil a piada. Mas você entende,
também tem técnica, também tem mecanismo. Piada tem o tempo, piada tem o 1, 2, 3! A
piada levanta, tal, tchum (sic). Piada tem essa... tem inadequação, têm muitas nuances. Eu
adoro. Mas agora eu nem tô escrevendo comédia eu tô escrevendo uma série sobre
feminicídio, então meio que converge com tudo.

Sofia: Você escreve roteiro, coisa pra áudio visual, né?

Michelle: Aham.

Sofia: E é uma ficção?

Michelle: Uma ficção. Uma ficção baseada em alguns casos reais. Então, a gente mistura
alguns casos reais tal, alguns bem emblemáticos, e outros tantos..., Mas é assim, é que é
muito absurdo. Doze segundos. A cada doze segundos uma mulher é agredida. É doze
segundos, enquanto nós estamos falando...não, morreu meia dúzia já. Se feriram outras
quarenta. É inacreditável. É inacreditável. E eu tô lendo O Mito da Beleza, que eu recomendo
muito, sabe qual é o mito da beleza?

Sofia: Eu já ouvi falar.

Michelle: É uma talagada assim (demonstra com os dedos a espessura do livro). Que tá
demais. A Naomi Wolf fala, a gente já conseguiu ultrapassar um pouco o mito da virgindade,
a gente já conseguiu ultrapassar um pouco o mito da maternidade, o que a gente não
conseguiu e estamos aprisionadas para um caralho é o mito da beleza. Qualquer mulher,
por mais bem resolvida que seja, caí neste mito da beleza. Então eu tô cercada disso,
entendeu? Agora o meu universo tá agora com essa série do feminicídio, tá, tipo, sobre isso,
sobre isso…

Sofia: E, é uma pergunta mais pessoal agora, pra você. Você consegue criar um certo
distanciamento? Um distanciamento profissional do assunto?

Michelle: Sim e não. Sim, porque eu me divirto muito fazendo o que eu faço. Então, por mais
pesado que o assunto seja, estar numa sala de roteiro com minha companheira e a gente
ficar bolando cena e depois escrever um outline e depois escrever um roteiro é legal,
entendeu? É a vida que eu sempre quis, não posso... Agora, claro, que de vez em quando a
gente fica assim...Outro dia a gente viu uma reportagem de uma menina que a mãe morreu
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queimada e o pai tocou fogo nela também… E aí ela tava tirando a roupa pra fazer o ensaio
fotográfico, ela queimada do pé a cabeça. Ela parecia uma pele de cobra. Era até...Olha que
coisa incrível: Era até bonito, de tanto que era queimado, uma queimadura muito severa,
parecia que era uma pele de cobra. Ondulado, assim. Então chega uma hora que você fala
assim, “Cara, até bonito? Que louca”. E a menina era linda e tinha uma sobriedade falando
do assunto. O pai tacou fogo na mãe dela, ela foi tentar salvar a mãe dela, tacou fogo
também.

Sofia: Nossa...E é tanta informação que a gente não conhece tudo, né?

Michelle: Entende? Mas aí a gente vê memes, vê uns vídeos engraçados, a gente vê uns
vídeos de gatinho, a gente dá uma balanceada. Faz muita piada, não com a coisa, mas sobre
outras coisas pra poder fazer a coisa. Mas eu me sinto bem de fazer isso porque eu acho
um assunto tão… E vai ser uma série que vai pra toda… Cada país da América Latina tá
fazendo a sua, da Fox.

Sofia: Ah, é uma série latino-americana!

Michelle: Latino-americana. Então vai ter a versão brasileira, a versão...cada país bem
diferente, mas todas sobre feminicídio. E aí você vê que metade da humanidade mata a
outra metade há…

Sofia: Desde que a humanidade é…

Michelle: Desde que a humanidade mais ou menos, quanto. Tem uma localização precisa,
que é o início do capitalismo, que é quando a coisa fode mesmo. É onde que se degrada o
gênero da mulher. Que não era tão degradante na baixa idade média.

Sofia: Eu li fim de semana passado o Mulheres e a caça às bruxas da Federici.

Michelle: Ah, o Calibã e a bruxa?

Sofia: Não. É um novo.

Michelle: Outro? Mulheres...?

Sofia: Mulheres e a caça às bruxas.

Michelle: Ah, que legal!


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Sofia: É uma versão sintética do Calibã e a Bruxa. Mas aprofunda nessa questão das bruxas.
E ela fala justamente isso, que é: as bruxas. E, aí tem já um protocapitalismo ali…

Michelle: Total.

Sofia: Começam a querer…a fazer a propriedade privada...

Michelle: Só preciso de um instante, cê me dá uma pausa?

(Estamos neste momento dentro do teatro, os últimos ajustes para a apresentação da noite.
Depois, seguimos de volta para o Saguão onde terminamos a entrevista)

Sofia: É, fiquei pensando agora que você traz essa questão do feminicídio, sobre como esse
tema te ronda de diversas formas e aí...Às vezes eu acho que cai, não sei se é um lugar
comum, não sei se é um lugar que nos colocam da dramaturgia, das mulheres dramaturgas
que são feministas, então a dramaturgia se torna feminista e essas mulheres falam disso, e
é sobre isso, sabe? É um lugar meio contraditório porque sim, tem que ser falado, mas…

Michelle: É que eu acho. Entendo. Mas sabe do que isso é herança. Isso é herança de uma
coisa, de uma forma de falar que é assim: Dramaturgia feminina, produtos cor de rosa,
gillette rosa, sabonetinho rosa.

Sofia: A gente nomeia só a nossa parte.

Michelle: Eles nomeiam!

Sofia: Eles nomeiam a nossa parte…

Michelle: Eles nomeiam. Primeiro porque se eles tivessem que falar dramaturgia, enfim, eles
teriam que nos incluir e eles não querem nos incluir. Não é de interesse. Então é melhor que
“Não, dramaturgia feminina”. “Respeito você, você é uma dramaturga, feminina”. Mas
fique aí que você é dramaturgia feminina. Não... Eu sou dramaturgia brasileira
contemporânea. Sou uma mulher, verdade. O que te dizem é verdade, o que te falam é
verdade. Mas me recuso, acho uma babaquice. Porque é isso...odeio...universo feminino.
As pessoas falam “Não, porque você fala muito do universo feminino”. Mas, tem universo
feminino? Pra mim tem um universo. Eu não sei, gente. Se eu dizendo o nosso lugar. Cabe a
gente tirar isso. Não gosto de universo feminino. Não gosto de dramaturgia feminina. Acho
todos a mesma bosta. Acho ruim. Não gosto, não gosto. Porque aí parece que é, parece
que é cota. Cota pra vocês. Mas só um pouquinho, vocês não podem ser muitas. Vai sempre
caber umas duas ou três.
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Sofia: É então, isso é outra coisa, né? Porque ouço muito falarem desse boom de
dramaturgas, principalmente em São Paulo. E de fato, acho que tem mais dramaturgas, mas
acho que sempre teve na verdade, não é?

Michelle: E tem uma coisa histórica. Uma coisa decisiva. Que é: agora você tem escolas de
dramaturgia, cê tem cursos regulares de dramaturgia. Quando eu comecei não tinha. Então
é muito mais... É óbvio então que quando eu comecei tinha menos, porque tinha menos, as
pessoas não sabiam. É que nem roteiro. Quando eu comecei a fazer áudio, roteiro era uma
coisa assim “Quê? O quê?” E hoje roteirista é o novo chefe de cozinha. Era publicitário,
depois virou chefe de cozinha, agora virou roteirista. Profissões da moda. Agora é moda,
entende? Mas quando eu cheguei era tudo mato.

Sofia: Eu entendo muito, porque agora. Nessa última versão do meu projeto eu defendo
que é isso: houve um aumento nos cursos de formação. Existe agora a possibilidade de você
aprender a escrever.

Michelle: Exato. E aí se você tem mais curso, você tem mais visibilidade. Porque as pessoas
formam mais, trabalham mais. Aí você se vê mais representado e fala “Ai, então eu também
posso, também quero, também vou.” Natural. Super natural, que bom.

Sofia: Sim. Ação e reação.

Michelle: Agora, é um milagre porque não tem mercado, cê tem que criar, não existe
mercado. No Brasil? Mercado, quê? Mas você cria. A providência age. Se você ficar
obcecado, só querendo fazer isso, a providência age

Sofia: Você começou no CPT.

Michelle: Sim, eu e Silvinha.

Sofia: E era um curso de dramaturgia?

Michelle: Não era um curso, era um...era o CPT. Não era um curso, porque não tinha um
curso. Não era assim: o Antunes ensinava a gente a escrever. Não. Eram encontros
semanais que a gente era provocada por ele, que a gente via filmes, que a gente lia peças,
que a gente lia romances, que a gente lia filosofia, que a gente discutia...E tinha que escrever
nossas peças. E a gente escrevia nossas peças e ele lia e metia o pau, ou ele gostava. Ou ele
mandava rasgar. Ou ele te dava um beijo, enfim. E eram encontros..., Mas não era uma aula.
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Sofia: Não tinha a coisa da formação.

Michelle: Não tinha “Isso é um texto dramatúrgico”. Era uma formação, mas era uma
formação a la CPT. Então, não era uma formação “Gente, hoje nós vamos aprender sobre
teatro do absurdo”. Não tinha nada disso…

Sofia: Tá. E você dá aula aonde?

Michelle: Eu já dei… Dou muitos cursos, assim esporádicos...E na SP (Escola de Teatro). Vez
ou outra eu caio lá. Que eu gosto muito. Eu gosto muito porque eu dou uma parte que é da
criação dos textos dos caras. Porque se eu tenho um talento, é pra avaliar, não pra avaliar,
mas a sensibilidade de poder dar alguma palavra sobre o trabalho de alguém. Eu tenho.
Modéstia parte, eu tenho porque que já fiz muito isso. Eu já li muito texto de pessoas que
tão começando, então eu sei...Eu posso dizer alguma coisa que possa ser produtiva pra
aquela...pra aquele processo daquela pessoa. Porque cada pessoa é um processo, cada
viagem é uma coisa, entendeu? Cê tem que avaliar a obra dentro da obra, não adianta eu
avaliar a obra que eu quero que a obra seja. Não tem nada a ver comigo, tem a ver com a
pessoa e com o rolê dela, eu tenho que apenas tá muito atenta, é um pouco...Saio muito
exausta, mas eu saio muito feliz. Porque é uma atenção.... É quase um transe. Porque eu tô
lá realmente à serviço de uma outra parada.

Sofia: Esse último ano eu fiz o Núcleo de Dramaturgia do SESI.

Michelle: E aí, gostou?

Sofia: Gostei. A gente teve uma oficina com a Silvinha.

Michelle: Lá com César?

Sofia: Com o César, com a Marici e uma semana inteira com a Silvia.

Michelle: Ah, que legal, ela é ótima.

Sofia: Mas, é, eu acho que tem muito a ver esse negócio da formação mesmo, de você ter
a oportunidade de aprender um pouco. Mesmo que, bom, na experiência do SESI também
não foi super quadradinho, é bem pelo fazer, mas mesmo assim tem alguém ali, olhando…

Michelle: Sim, e é pelo fazer mesmo. Não adianta também só… Um curso de dramaturgia
só de teoria você fala assim…Bom, a não ser que você queira ser crítico ou outra coisa, mas
se você quer ser dramaturgo você tem que escrever. Se aprende escrevendo. Não tem
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nenhuma outra possibilidade. Tem que ler muito, tem que ler muito, mas tem que escrever.
Não adianta. Eu tenho vários alunos que falam assim “Não, mas cadê tua peça?”, “Não, tô
pesquisando.” Tá pesquisando o quê, rapaz? Para de pesquisar e vai escrever. Fica se
escondendo atrás da pesquisa. Começa a escrever, vai pesquisando e vai escrevendo. “Não
porque eu tava”. Não, escreve, velho! Escreve. “Não, porque eu tenho uma ideia”. Ideia
não faz dramaturgia. Ideia não faz nada, aliás. Porque todo mundo tem uma ideia. Ideia é
fácil de ter. Nossa, eu tenho tanta ideia. Entendeu? Mas dane-se ideia. Ideia.... Agora
transforma em peça a tua ideia. Vai lá. Bota aí o pessoal pra falar. Bota uma ação aí. Aí fica
complexo. É esse o desafio. Mas eu gosto. Eu gosto muito. Eu gosto de compartir, como
dizem os espanhóis. Gosto muito de compartir minhas coisas. Gosto muito de ler os textos
os outros. Entrar no universo de cada um. Eu piro, assim. É o que eu mais gosto de fazer.
Não daria aula de teoria de coisa, não. Mas oficina prática, da labuta mesmo, de exercícios
mesmo.

Sofia: É, eu lembro, que eu fiz uma oficina com você. Mas foi um dia, não, dois. No Sesc
Campinas.

Michelle: Ah, é! Pode crer. É muito relâmpago, né? Mas deu pra fazer alguma coisinha, né?

Sofia: Não, foi interessante. Ah, cenas curtas, mas já tá bom demais.

Michelle: É, sempre dá pra fazer uma coisinha. (Pausa). É o trampo. O que fica é o trampo,
você pode ser mulher, você pode ser homem, você pode ser T. O que fica é o trampo. O
trampo tem que refletir.

(Pausa)

Michelle: Eu sou dramática. Eu gosto do drama. I love drama. Acredito, louvo. É o que eu
gosto de fazer, é como eu acho, eu adoro as outras, vários estilos de peça que são
diferentes do meu, isso não faz eu gostar menos dos outros. Mas eu gosto do drama. Eu
acho o drama foda. Acho diálogo coisa foda. Eu gosto de diálogo. Gosto de personagem,
travessão.

Sofia: E é difícil fazer diálogo, né?

Michelle: O pessoal acha que…porque o drama, o que que acontece muitas vezes, até
nesses cursos de formação: você começa do fim, às vezes, você começa do fim. É possível?
E possível, tudo é possível. Mas eu falo isso quando eu faço esses encontros, eu falo
“Galera, tem uma técnica, tem que saber do riscado, às vezes...Tem que saber como tirar o
mato, fazer aquela pavimentação, construir um bagulho…” Aí depois você constrói as
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coisas loucas, o que você quiser, mas, tem que saber. Para você desconstruir, você tem que
saber construir. O Picasso pintava realisticamente bem pra caralho, ou ele não ia fazer o
cubinho, não ia fazer, não dava pra fazer. Você vê no museu de Barcelona, ele desde criança,
ele pintando. Cê vê a evolu– Você vê o trajeto. Cê não cai, não descobre...Não é assim. É por
isso que ele fez o que ele fez.

Sofia: Eu lembro, no Colóquio de novo, que você falou algo sobre isso. Você falou que você
é dramática e você falou do autor invisível, que o Szondi fala, né? Você acha que você é uma
autora invisível?

Michelle: Eu tento ser. Tento ser. Tento ser em que medida? Eu tento fazer com que os
personagens sejam muito mais visíveis do que eu. Claro que eu tô lá. É óbvio. Foi eu que
escrevi, é óbvio que eu tô lá. Não tem nem como não tá. Mas é assim, tô de uma maneira
não óbvia. Ai, eu quero muit–––Quantas vezes eu, “Ai eu quero muito que o personagem
fale isso, então eu vou falar isso e aí você fala diretamente com o personagem…” Eu
fico...Fica uma bosta. Cê fala assim, não… Cê tem que entender da psique humana. Da
psique humana. As pessoas não falam o que elas pensam na maioria do tempo. As pessoas
querem se agradar, querem ser educadas. As pessoas não querem ser odiadas. Quando elas
vão pro pau é porque a coisa já tá aqui (faz gesto de limite com as mãos). Então cê tem
que...Entende? Eu gosto muito do que o Antunes Filho falava: “O personagem não quer
falar”. O personagem nunca quer falar. Porque ninguém quer se expor. Que ser humano
que você conhece que chega na rua e começa “Então, galera, eu sou assim…” E você vai,
às vezes, você lê peças que assim... esse ser... não…”. Isso tem menos a ver com a forma
e mais a ver com o ponto de partida de observação do dramaturgo. Porque a forma pode
ser... Existem mil formas. Não é isso que define, o que define é: Mas você tá observando
esse ser humano ou cê tá idealizando esse ser humano? Cê realmente está olhando ele de
frente e olhando pra você de frente sem aplicar o bom mocismo, o caretismo, o moralismo
ou você tá...Você é terrível ou não? O dramaturgo tem que ser terrível. Tem que ser um ser
humano terrível quando ele tá escrevendo, senão, não vai escrever. Tem que enfrentar
muitas coisas…

Sofia: É, porque não dá pra escrever só sobre… É um medo de digitar alguma coisa que
você não queria.

Michelle: E você vai digitar coisas que você não concorda, inclusive. Cê vai escrever e, nossa,
isso é terrível. Quantas vezes? “Nossa, isso é horrível, cara”. Ué, mas tenho que escrever,
não vou escrever? Agora vou mentir aqui? Não vou.

(Pausa)
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Sofia: Você fez EAD?

Michelle: Teatro.

Sofia: Atriz de formação.

Michelle: Sim! Não só de formação, sou atriz. Só não trampo tanto porque as pessoas me
chamam mais pra escrever. Mas eu acho que é... Comecei a escrever, comecei a (faz sinal
de aspas) odeio essa palavra, mas às vezes: começou a “dar certo” escrever. As pessoas
começaram a fazer, eu comecei a viver disso. Então, natural, um pouco. Mas eu venho
fazendo alguns trabalhos, fiz a peça da Silvinha, o Marte, fiz o Marte, tô pleiteando um papel
na série do feminicídio, tô falando que vou fazer um teste lá, a produtora fala “Não, faz o
teste, Michelle, vai que você passa”. Vou fazer, então vou fazer. Mas, eu, pra mim tá tudo
muito ligado, magina. Se eu não fosse atriz eu jamais escreveria teatro. A escrita e o
teatro...Por isso que eu sou dramaturga, não sou poeta, não sou romancista, não sou... Eu
sempre comecei a escrever diálogo. Desde criança. Comecei a fazer teatro, comecei a
escrever diálogo, comecei a escrever cinema. Comecei na máquina de escrever, comecei a
escrever meus filminhos da minha cabeça, comecei a gravar uns filminhos. Comecei a fazer
umas peças na escola e pra mim tava tudo ligado. E eu mandava em todo mundo,
escravizava meus amigos. Eu morava em Atibaia, tinha uma casa com piscina, com
parquinho e chamava todo mundo no final de semana pra ir lá, ninguém ia no parquinho
ninguém ia na piscina, nós vamos fazer teatro na garagem. Ficava o final de semana
ensaiando, apresentava na segunda feira. É a minha brincadeira. Então hoje eu faço, eu sou
feliz em fazer porque eu tô fazendo aquilo que eu sempre fiz. Porque pra mim era sempre
uma brincadeira, continua sendo. Só que é minha profissão e eu sempre soube que seria.
Nunca tive…. Sempre tive crises, óbvio, mas assim, crises do que fazer, eu nunca tive. Só
tive de como fazer. Mas de que seria isso, e eu ia fazer isso e de que não tinha a possibilidade
de eu fazer outra coisa, mesmo fazendo ciências sociais e fazendo tudo, só pra
conhecimento.

Sofia: Você fez Ciências Sociais depois?

Michelle: Fiz Ciências Sociais junto com a EAD. Eu passava o dia inteiro naquela USP, lá,
comendo no bandejão (sic), salitre, salada de repolho, tudo...Todo dia. Mas depois eu
tranquei as ciências sociais. Depois de quatro anos. Mas assim, foi maravilhoso. Tive aula
com Haddad, tive aula com Lilia Schwarcz, tive aula com Conti. Tive aula com um monte de
gente foda. E um conhecimento que me acompanha até hoje de coisas que eu gosto de
estudar e que reflete totalmente na minha visão de mundo, na forma como eu escrevo.
197

Sofia: É, porque, querendo ou não a gente vive em sociedade, tem que estudar um
pouquinho disso…

Michelle: Ah, não. Tem que estudar. Dramaturgo que não lê não pode ser dramaturgo. Mas
eu conheço, tem gente que não lê. É por isso que o teatro tá fazendo essas coisas...Parou
no tempo? É que nem quando as pessoas falam assim “A música acabou”. Não, a música
não acabou, meu amor, você que parou de ouvir. Se você ouvir música você vai ver que tem
um monte de coisa. “Ah, não, as músicas boas são da minha época…” Não, tem razão. É
música boa também. Mas se você falar que a música morreu que porque você não tá
ouvindo... “Ah, não, porque o teatro morreu.” Você não tá indo ao teatro. Não é o teatro.
O problema não é da coisa. O problema é seu. Cê que tá viajando na maionese.

Sofia: Em uma época que tem tanto, mais tanto de tudo…

Michelle: Exato. Não vem me falar que não tem. Não vem me falar que não tem, você que
tá preguiçoso, amor. Tá meio preguiçosinho. Tem o... Eu ia te trazer, mas eu esqueci, eu
posso te mandar. Aquele livro do Sesc com todos os dramaturgos falando, que teve
entrevista, teve maratona… Vou te mandar.

Sofia: Você tem PDF?

Michelle: Não, eu tenho... Mas eu posso te mandar pelo correio. Pela editora Cobogó com
a editora Sesc, uma parceria, que foi na Dramaturgias I. Que eles fizeram uma batalhada de
entrevista. Eu, Silvinha, Dione, Grace, Roberto Alvim...Tá vendo, gente! Fica elogiando...
Fiquem elogiando os medíocres. Elogiem os medíocres. Deem todo o espaço para os
medíocres. Seja medíocre como os medíocres. Chamem de genial aquilo que é apenas
inteligível. E aí você cria um monstro e depois você fala “Oh, mas eu não sabia!”. Sabia, sim.
Sabia, sim. ‘Não, porque é muito inteligente…”. Muito inteligente, meu amor, inteligente é
o porco. O porco é muito inteligente. É o animal mais inteligente. É o porco. Inteligente é o
porco. É impressionante como a mediocridade… Só porque é inteligível e chato para um
caralho, é inteligente? Por isso que eu sofro preconceito... Eu sofro mesmo...

Sofia: Por quê?

Michelle: Porque eu sou. Aí eu sou: “Ai, a Michelle é muito engraçada. Ela escreve essas
coisas engraçadas dela aí...” Entendeu? Tá, aí...Magina...Não tem…

Sofia: Me mande!
198

Michelle: Vou te mandar. Nunca fiquei tão nervosa na minha vida (quanto) naquela
entrevista. Porque o Abreu, o Luis Fernando Ramos. lá...Não sei quê. Eu, assim, nervosa pra
caralho. E eu normalmente sou de boa, mas aquele dia eu fiquei tímida, constrangida. Com
uma síndrome de farsante.

Sofia: É uma síndrome muito comum….

Michelle: Nas mulheres principalmente. Mas é quase uma doença de gênero, mesmo.
Porque você só pode se sentir culpada. Uma farsa por qualquer coisa que você consiga
realizar. Você não pode tá plena. Não te deixam. Tem que ser plena em nada. Nada. Você
não pode ter tudo. Você não vai ter tudo. Se vai ficar bem quadradinha. Mas como a gente
não acredita nisso…, Mas é uma coisa inconsciente, isso pega a gente. Não, eu fui lá, nossa
que legal...Sentei. Nem eu me reconheci. Falei, Jesus, olha como eu tô! Que horror. Esqueci
todas as coisas geniais que eu tava programando. Só falei bosta. Depois eu aqueci, depois
de uns dez... Mas eu passei dez minutos falando merda. Que eu falei, meu pai, esse negócio
vai virar livro e eu to falando bosta. Mas entre nós, eu acho que eles não conheciam muito
meu trabalho, tenho quase certeza.

Sofia: Fizeram perguntas genéricas.

Michelle: Eu acho, pode ser que eu esteja noiada (sic). Posso ser noiada, sou noiada. Mas
eu acho. Tudo bem. Não tem problema. Não há problema.
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Ave Terrena Alves


Quando: 21 de fevereiro de 2020 – 15h30
Onde: Na cozinha do apartamento da dramaturga, Barra Funda, São Paulo – SP
Duração: 1h 17min 36 segs.

Pré-pandemia. A entrevista transcorre na cozinha da casa de Ave Terrena enquanto a


dramaturga prepara o seu almoço. Começamos com uma breve contextualização sobre
processo de montagem das peças, visto que o trabalho de Ave Terrena é muito ligado à
coletividade. Quando começo a gravar, Terrena está comparando o processo de montagem de
As 3 Uiaras de SP City com o de O Corpo que o Rio Levou.

Ave: Mas então, O Corpo que o Rio levou é muito mais colaborativo porque a gente.... Acho
que por vários motivos. Um porque a gente teve um edital, Zé Renato, que nossa, deu maior
estrutura, a gente ensaiou sete meses, sabe, pra montar a peça. Deu tempo de inventar
coisa, desistir, então tem muita coisa ali no meio que é proposta dos atores, das atrizes, do
diretor, de figurinista, e que eu vou incorporando no texto, assim. Porque eu sempre estou
na sala de ensaio. Sempre.

Sofia: Tá, você é uma dramaturga que está presente em processo...

Ave: Sempre. A não ser... Tipo, escrevi uma peça que foi montada em Macapá, no Amapá.
Aí não tinha como, e daí dá até uma frustração, porque o que eles vão mudando, eu não
consigo acompanhar, e aí também às vezes eu acho que o texto fica entre dois modos de
fazer teatro, quando é muito longe assim. Mas enfim, circunstâncias da vida. As Uiaras eu
peguei o edital da Mostra de Dramaturgia do Centro Cultural. Do CCSP. E aí é um outro
esquema porque tem muito menos dinheiro, primeiro não dá para ensaiar muito tempo e
você, tipo assim, faz pra Mostra, doze apresentações e monta a peça lá. É superlegal, mas
é um outro esquema. Então As Uiaras é mais autoral, meu, assim. Tem muito trabalho, a
gente ensaiou dois meses, então tem muito trabalho das atrizes, propostas que a gente foi
reformulando, o texto mudou durante o processo também, mas ele é mais autoral, acho
que é isso.

Sofia: Até porque, se eu entendi direito o edital, você tem que ter o texto já, né? Ele já tem
que existir.

Ave: Isso. Eles escolhem o texto. Cê não manda nenhum projeto. Agora eu acho que tem
que mandar quem vai dirigir, uma sugestão, mas na época não tinha. Era o texto. Aí eles
leem o texto, escolhem três e é isso.

Sofia: E foi em 2018?


200

Ave: Foi de 2017 para 2018. Aprovou em 2017 e estreou em 2018. Foi isso.

Sofia: E as músicas?

Ave: Então, as músicas eu acho que é o mais processual desse projeto porque eu fiz
propostas, mas aí, o que que acontece?! Eu trabalho com duas atrizes nessa peça, a
Verônica Valentina e a Danna Lisboa, que além de atrizes são cantoras que tem um trabalho
já de anos. Elas são referência para mim, sabe? De como eu me posiciono na arte, em teatro
e esteticamente também. Então, a Danna tem dois discos já lançados, e assim ela tem uma
linguagem muito da rima, do verso, do rap, do trap, do hip hop, e aí a música da personagem
Miella, que é a personagem que ela fez, eu construí junto com ela, então caminha mais para
uma linguagem. A música da Verônica (que é da personagem Cíntia) a gente fez, não é só
com elas, é com elas e com os músicos, porque tem uma banda na peça. Não é que tem
uma banda, né, se formou. Dois músicos já trabalhavam com a gente, chamados Felipe
Pagliato e Gabriel Barbosa, e aí eu chamei mais uma musicista também que é a Vitória dos
Santos que é do bloco Agora Vai, que sai aqui na frente da rua. É a filha da Carlota Joaquina
também, nossa grande referência. E aí chamei ela e juntou com eles que já tavam
trabalhando com a gente e eles formaram...é isso, como se fosse uma banda na peça. E eles
até se autointitularam, que eu acho ótimo, Bad Chucas. É uma brincadeira, né. E eu faço
meio parte (sic) da banda também. Então a gente compôs, na verdade, nós quatro, as
músicas. Eles fizeram até o beat para a Danna. Aí a Danna foi criando os versos em cima dos
versos que eu propus. Eu acho que não tem no texto que tá publicado e on-line, mas na
peça ela faz inserções de versos dela, no meio dos versos do texto da música, sabe? Tipo,
ela criou uma coisa híbrida, dela e do texto. A Verônica é exatamente aquele texto que tá
lá, mas na verdade a interpretação. A Verônica que faz o A Segunda Queda. Então, na
verdade, o modo como a gente compôs essas músicas para As Uiaras é muito parecido com
A Segunda Queda, que é assim: tem o Gabriel Barbosa, eu vou compondo meio que com ele
– ele a parte tipo melodia, arranjos, parte musical e eu como texto, com as ideias. A gente
vai debatendo e vai construindo junto. Ele vai tocando no piano, eu vou gravando, vou
provocando ele. Muitas vezes a Verônica tá junto também, e aí ela vai cantando e quando
a Verônica pega a música para ela, ela sempre acaba mudando um pouco também. Porque
ela é tão forte na interpretação dela que ela acaba transformando o sentido da música e do
texto, sabe? Então é uma composição conjunta, totalmente conjunta. E a terceira música,
que é da personagem Valéria, foi com outra atriz Sophia Castellano, que faz parte do grupo,
né. O grupo Laboratório de Técnicas Dramáticas sou eu, o diretor Diego Moschkovich, a atriz
Sophia Castellano, e um ator, chamado Diego Chilio, que é quem faz o personagem Rochetti
na peça. Então a gente sempre trabalha essa pesquisa sobre a ditadura militar, que é O
corpo que o rio levou, As Uiaras, e agora vai ter a terceira.
201

Sofia: Que você está escrevendo?

Ave: Que eu estou escrevendo. A gente tá tentando fazer, escrever o edital, mandou pro
Sesc, mandou para não sei quê, e ainda não deu certo, mas uma hora vai dar. Que é sobre
os homens trans que foram presos durante a ditadura militar, que não tem necessariamente
a ver com uma militância organizada, e sobre as mulheres cisgêneras que entraram pra luta
armada, para organizações clandestinas e também foram presas. Essa é a terceira que
mantém uma equipe, mantém esse núcleo, que são essas quatro pessoas que eu falei que
é o grupo de teatro, a gente é um grupo nos formatos até que tradicionais. Se encontra
sempre, briga, se reconcilia, decide tudo junto, todo mundo ganha igual, é uma política
nossa, mesmo. E a gente tem ligação bastante também com a movimentação do teatro de
grupo de São Paulo. Nas suas várias reuniões, desde fomento, até os editais, as políticas
públicas, e também pensando em formas de existir sem políticas públicas, porque grupo de
teatro é isso...

Sofia: Sim, tem que sobreviver enquanto estiver dando…

Ave: É, enquanto a gente quiser aguentar. Enquanto for possível financeiramente,


materialmente. Mas a gente vai durando, a gente teve alguns apoios que foram essas duas
peças que a gente fez, mas aí a gente circula em biblioteca quando aparece coisa de
biblioteca, a gente faz peça na Casa 1, fez As Uiaras na Casa 1, participa de uns eventos, sei
lá, a gente participou da Semana do Encontro Nacional LGBT lá na Florestan Fernandes, em
Guararema, grande São Paulo. Aí a gente foi lá apresentou um pedaço da peça, faz debates,
enfim, a gente é um grupo de teatro mesmo.

Sofia: Esse Laboratório não tem nada a ver com o Núcleo de Dramaturgia do SESI.

Ave: Não, nada a ver. O grupo eu conheci mais ou menos na mesma época que eu tava lá,
mas não tem nada a ver com o SESI. Eu conheci o Diego e ele tava organizando umas coisas
com algumas pessoas, me chamou para escrever um texto… Como é que era...Era baseado
no Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina. E na verdade, As Uiaras é uma
sequência desta mesma pesquisa.

Sofia: Nossa!

Ave: É, loucura! São cinco anos, cinco, seis anos que a gente começou lendo As veias
abertas. Na verdade, o primeiro de tudo, eles já tavam.... Tinha outras pessoas, não era esse
grupo, mas era o que tava se formando. Eles estavam estudando o Terror e Miséria no III
Reich, só que era tudo tão distante pra gente na época, e hoje é tão próximo, foi uma
loucura, né?
202

Sofia: É, bem assustador.

Ave: É, mas a gente lia coisa sobre SS, SA que a gente não entendia que era milícia, polícia,
enfim, era muito distante, fascismo… Não dava nem pra estudar. Assim... que o Diego
trabalha com análise ativa do Stanislaviski, ele estudou na Rússia, fala russo, traduz, tá até
traduzindo o Stanislaviski do russo pro português. Então, ele tem toda essa pesquisa que
ele faz. Então, e era muito difícil se colocar naquela situação dos personagens, porque era
muito longe, tanto pelas coisas climáticas, casaco, frio, coisas mais banais, até as coisas mais
profundas, políticas. E aí eu falei, nossa tá muito difícil assim, e eu queria trazer mais pra
perto da gente, pra eu poder escrever esse texto. E aí já tinha As veias abertas como um
apoio, assim ela começou a ganhar mais força, aí a gente começou a ler os livros de literatura
fantástica, surrealismo, realismo mágico…

Sofia: Realismo Fantástico!

Ave: Realismo fantástico latino-americano. Aí, lemos Gabriel Garcia Márquez, os 100 anos de
solidão, A Cândida Erêndira, o Cortázar...Tentando buscar autoras mulheres, só que eram
muitas referências de homens, né? E aí, quando eu sentei para escrever a minha primeira
proposta de texto eu pensei, “Tá próximo, já tá mais próximo, né?”. Mas o que será que
disso tudo (que a gente tá vendo do realismo mágico) tem hoje. Porque, pra escrever, eu
tenho uma urgência muito (grande) de escrever algo que esteja pulsante. E que a gente
transforme os lugares por onde a gente passa, as pessoas que assistem à peça, que não
seja uma coisa distante, sabe? De uma beleza que não existe nessa realidade, uma beleza
estética. E que pode passar até por temas duros, e eu acho que tem que passar, porque
nossa vida é muito dura, muitas vezes. E aí eu falei, eu nasci no mesmo dia que a Dilma
Rousseff, 14 de dezembro, e aí na época que lançou o Relatório da Comissão Nacional da
Verdade era perto de dezembro também, eu tava super movida por isso, meio, sei lá, não
tem nada a ver, mas essa coisa do mês de dezembro, sabe? E dela ter nascido nesse dia, e
ela ser mulher, ser presidenta e tal. E lançou esse relatório e eu fui olhar, fui ler porque é um
tema que eu sempre me interessei, a ditadura militar. E aí eu falei, “Gente tá aqui o realismo
mágico”. É, porque o Garcia Márquez quando ganhou o Nobel tinha um texto que foi muito
base que ele falava assim: “Vocês na Europa, aqui na Suécia dizem que nosso realismo é
mágico, né, que é fantástico, mas ele é a própria realidade”, né? Porque tem a coisa lá do
extermínio dos trabalhadores da empresa bananeira em Macondo, dos 100 anos. Aquilo ali
é a realidade, mas quando você bota em um livro desse jeito parece que ela é fantástica,
parece que ela é uma coisa que a gente tá criando, um mundo distante, mas é o próprio
mundo. Aí eu falei, “Nossa, essas histórias da ditadura militar são tão absurdas, essa
violência toda que é tão sistemática. Ela é tão brutal e tão desproporcional, ela não faz
203

sentido em nada, em nada assim.” E ela é, ela parece absurda, parece fantástica até mágica
no sentido que parece que não é a realidade.

Sofia: Que alguém criou essas histórias…

Ave: E aí eu falei, “Nossa isso aqui é o realismo mágico”. Aí saiu O Corpo que o Rio Levou. E
a gente divide por barbantes. Que são várias narrativas, nossa, tem muita (coisa).

Sofia: Não, é porque eu tentei ler um pouquinho disso em outras entrevistas suas que eu
achei na internet, e em um vídeo que eu vi de um diálogo que você teve no CCSP –

Ave: Com o Bruno.... Que uma pomba caga no meio da entrevista.

Sofia: Não reparei nesse detalhe!

Ave: É, é um momento.

Sofia: É o dono de uma editora

Ave: É, esse mesmo…

Sofia: E ali você fala da dramaturgia muralista, que seria isso… Os barbantes que são
narrativas...

Ave: Isso, independentes, mas se conectam. Porque aí a gente consegue. Porque acho que
a gente não consegue numa peça de teatro dar conta de uma totalidade, de um período
histórico. Seria muito pretensioso, nem acho que dê pra fazer isso.... Mas aí a gente vai
fazendo várias, como se estivesse lançando vários pontos de vista, pegando várias
perspectivas para olhar um período que foi muito nebuloso e que a memória tá toda
“truncada” (sic) e apagada. Até na própria comissão da verdade, né, que os arquivos não
foram abertos, os mais importantes. Então, é como se fosse um detetive, né, caçando,
assim. Então por isso que têm vários barbantes. E As Uiaras é o barbante roxo. Porque eu
comecei a olhar as referências todas e fui vendo que tinha muito debate sobre a militância
organizada, de organizações políticas mesmo. Tinha uma lenda, que na época eu até
acreditava, que era que a maior parte era de classe média, e que a luta armada foi uma coisa
inconsequente da classe média, mas eu fui percebendo que não é isso na verdade. Tem
muita gente da classe média, lógico. Pode ter um certo valor diferente que se dá a história
de cada militante, isso eu acho que tem mesmo. Mas tinha muita gente, assim, pobre,
trabalhadora, gente camponesa que tava construindo política sem nem ter condições para
isso, e essas pessoas foram as mais atacadas, inclusive. Mas a maioria homens, né. Assim,
204

quase sempre. Aí fiquei incomodada, comecei a ficar incomodada porque eu como autora,
dramaturga, travesti no meio do teatro.... Agora eu acho que o debate já tá avançando um
pouquinho, mas isso faz três anos e eu tava debatendo muito isso nas assembleias do
movimento de teatro de grupo, tava muito obstinada, mesmo. Eu falei, nossa tenho que
fazer isso nos meus textos, também. Né, magina. E aí é isso, no meu grupo de teatro é todo
mundo cisgênero, menos eu. N’O corpo que o Rio levou, essa outra peça, mesmo com
convidados, é todo mundo cisgênero. E aí, eu acho que a gente tem que mudar, mesmo, a
tradição do teatro, da nossa dramaturgia, desse teatro de grupo. Eu, nossa, faço parte, faço
sempre questão de falar que faço parte, sou descendente direta disso, a gente constrói isso
no presente (o teatro de grupo). Mas, pra que ela não morra, porque ela está sob sério risco
agora, porque a gente se acomodou com as políticas públicas, que são muito importantes,
mas elas acabaram fechando um pouco, eu acho, o teatro em si mesmo. O teatro
independente, o teatro de grupo. E o reflexo disso que eu vejo é o público que começou a
não vir tanto como veio em outros momentos. E aí eu acho que a gente cai num
experimentalismo estético que é radical, que é importante, que renova a arte, mas pela via
da forma só, sabe, muitas vezes.

Sofia: Ah, isso é muito interessante.

Ave: E aí isso… Por mais que eu considere importante, e eu mesma prezo pela
experimentação estética, acho que a gente tem que manter um contato com a maioria das
pessoas, com a população. Porque o teatro não existe sem público. E deu no que...no
Roberto Alvim. Eu faço essa crítica bem dura mesmo, e faço questão porque ele é resultado
do teatro de grupo também. Lógico que ele tem o lugar que ele sempre foi nojento, ele
sempre foi oportunista, sempre foi ressentido. Mas, querendo ou não, ele tava existindo
dentro desse circuito que a gente construiu, né. Ele tinha um grupo (tudo bem de um jeito
totalmente atravessado), tinha um espaço, fazia teatro com uma pesquisa continuada
dentro de um espaço, era reconhecido por várias pessoas que continuaram defendendo ele
até não dá mais… E ele foi cavando nesse experimentalismo até o ponto de ignorar a
humanidade e a realidade que existe no teatro, sem a qual ele não existe. Então é uma
crítica que eu faço, tanto política quanto na estética, porque eu acho que a estética dele já
apontava para essas atitudes. Então eu faço uma crítica mesmo dos caminhos que o teatro
de grupo veio tomando, mas faço para que ele continue existindo. E para que ele não fique
fechado dentro de um grupo muito específico, em um recorte de pessoas que têm toda a
sua dignidade e seu valor e eu aprendo, nossa, mesmo, faço meus tributos. Mas, não tenho
como deixar de apontar, porque quando eu era adolescente e eu assistia o teatro de grupo,
ia no Folias, coisas que me marcaram profundamente, a São Jorge que é até aqui na própria
Barra Funda… O que eu via era isso, uma pulsação, sabe, assim, uma transformação da
estética, da política, da relação com o espaço, com as pessoas que vivem nos bairros e tudo
mais que eu parei de ver com tanta força. E eu quero isso de novo, sabe? E hoje em dia, já
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voltando pr’As Uiaras eu sinto que a gente consegue um pouco isso, né, nas nossas
limitações muito grandes, com o público, de renovar o público. Trazer gente jovem pro
teatro, sabe? Pessoas trans, travestis.... Onde quê.... A gente olhava às vezes pro público
das Uiaras e falava, “Nossa, o nosso público...” A gente lota tudo quanto é apresentação,
na maior parte das vezes, pelo boca-a-boca, porque a gente não tem dinheiro para pagar
grandes assessorias, a gente não tem estrutura, mas as pessoas querem ver, sabe! E a gente
saía da peça e ia andando e todo mundo comenta por todos os lugares que a gente passa,
que a gente vai beber, que a gente vai conversar. Isso pra mim é o teatro. Essas relações. E
eu, nossa, amo e fico muito triste quando a gente não consegue fazer por qualquer motivo,
de veto, por transfobia, por posicionamento político, ideológico, etc.… Porque agora tá
todo mundo bem acuado e depois da eleição do Bolsonaro a gente quase não conseguiu
mais fazer as Uiaras...

Sofia: Ah, sim…

Ave: Porque a programação sempre cai, porque eles têm medo, vai o MBL fazer alarde na
porta que nem fizeram com a Renata Carvalho. Eles têm medo de fazerem fake news com
a gente e eles se prejudicarem, várias instituições, eu digo. E aí o que acaba acontecendo é
que a gente fica sendo deixada um pouco de lado, né. E aí sem a estrutura é isso, a gente
faz na Casa 1, a gente faz no MST, a gente faz em lugares sem ganhar nada, na guerrilha,
como a gente chama, pra peça ficar viva também e porque é sempre uma delícia fazer…,
Mas a gente tem, né, a materialidade da vida que fica difícil.

Sofia: Sim, uma importância ideológica, mas que não sustenta o seu viver...

Ave: É, porque a gente tem que fazer mil coisas, e são várias pessoas, e tem uma coisa nesse
elenco, nessa equipe e em todas as peças que eu tenho feito agora, como a gente tá como
se fosse quebrando um cerco pra determinadas corpas, narrativas de vida e jeitos de fazer
teatro. Porque o que que acontece, a gente não consegue fazer pesquisa continuada sem
o mínimo de estrutura financeira, porque a gente tem mil trabalhos etc., e tudo mais. E aí
são três travestis, eu como dramaturga e mais duas atuando, entendeu? A gente já tem uma
vida precarizada. Pessoas trabalhadoras que vivem de mil coisas, fazendo produção aqui,
oficina ali, correndo, então isso também é um impedimento para que a gente consiga estar
no teatro. O próprio rito do teatro que tem que estar lá, tem que ensaiar, não adianta. A
gente pode inventar outras formas que eu acho que hoje em dia tão até mais fortes, tão
conseguindo produzir mais, uma forma mais comercial, mas As Uiaras não tá dentro desse
modo de produção. Então isso cria uma dificuldade pra gente, de certa forma. Nossa, falei
um monte de coisa…
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Sofia: Não, mas é bom! Só fala! Uma outra coisa que eu achei interessante vendo essa
entrevista que você deu foi quando você fala sobre a dramaturgia das Três Uiaras ser uma
dramaturgia transgênero. Quando você falou isso, você materializou e explicou uma coisa
que eu sinto lendo a peça. Que ela atravessa e passeia por diversos gêneros literários. Eu
achei isso muito bonito, essa analogia que você faz com sua identidade e com seu ofício,
nesse sentido, se você puder falar sobre isso...

Ave: É, isso tem a ver. É engraçado, porque vem eu acho que muito do processo
colaborativo um pouco também. Que cada pessoa tem uma afinidade maior com uma
linguagem. Como eu falei, a questão das músicas tem muito a ver com isso, mas não é só
nas músicas. Tem um trecho, que até eu acho que não entrou no espetáculo, que eu criei
junto com o Diego Chilio, que é o ator que fez o delegado Rochetti, que é quase como se
fosse um… Aí, como se chama isso, é uma coisa da religião cristã que fica assim (imita a
entoação litúrgica). Não é salmo, não é ladainha, tem um nome que eu esqueci. Aí ele fala
assim, como é que era, “Bendito seja Rochetti, não sei o quê…” Vem desse lugar da liturgia
quase, sabe? Do texto mesmo, na forma do texto e aí eu achei isso superlegal, e eu achei
que tinha tudo a ver com o personagem e aí entrou. Então é como se fosse também uma
colagem dentro de um arco pensado, dentro de um quadro específico. Mas é como se fosse
uma colagem. É isso. Tem uma música que tá mais numa linguagem do hip hop, uma música
que tá muito pra linguagem o Belchior, dos cantores cearenses, que a Verônica é de
Fortaleza, então tem essa linguagem dos cantores que ela gosta e como a gente tem uma
proximidade muito grande e o músico, o Gabriel, caminha mais com essa linguagem. Aí tem
essa coisa da liturgia, que eu falei, aí tem a personagem da Ruth Escobar, que é uma política,
então já entra uma linguagem mais da política, do pensamento feminista, da militância da
época, e também da diplomacia, né, que deputadas acabam tendo que fazer sempre por
estarem no lugar onde estão. Fora outras coisas, assim, os diálogos.... Nos gêneros, vários
gêneros literários e cênicos que se atravessam.... Não sei se gêneros cênicos porque eu
como diretora tenho puxado mais para um lado até de quebrar um pouco essa forma
teatral, mas As Uiaras está dentro da forma teatral épica, assim. Então, tem o teatro épico,
eu acho, como um contorno mais ou menos e vão entrando esses vários gêneros
discursivos, mesmo. Até o Bakhtin, outro dia eu li esse texto, Os gêneros do discurso. Até
levei pra ler no núcleo porque eu acho muito legal. Porque entra coisa de bilhete, não sei se
tem bilhete nas Uiaras, mas entende? Vários gêneros discursivos que às vezes não são nem
da literatura, isso eu acho superlegal. Os documentos, o relatório da comissão da verdade
têm muito a ver com isso, isso eu acho que tá mais n’O corpo que o rio levou, mas tem n’As
Uiaras também. Qual a característica desse texto que é um documento? E aí tem uma coisa
fundamental que é tanto o documento escrito quanto o oral. Da oralidade. Porque uma
pessoa fundamental, sem a qual essa peça não existe, se chama Neon Cunha, ela é.... Você
tem que dá uma olhada nela, assim. Porque ela é a matriz dessa peça. Eu já tava
pesquisando, lendo, mas quando eu conheci ela, ela tem cinquenta anos e ela viveu novinha
207

a Operação Tarântula, ela viveu no Arouche exatamente esses fatos, esses acontecimentos
que são a base d’AS Uiaras. E aí quando eu comecei a tentar diversificar essa memória sobre
o período traumático, eu percebi que não tinha quase relatos sobre a história das travestis.
Eu vi sobre os povos indígenas um pouco, tem um capítulo na comissão da verdade, tem a
perseguição ao povo camponês, tem a violência de gênero para as mulheres cisgênero. E
tudo muito pouco, né. Mas não tinha sobre as travestis. E aí quando eu fui buscar fontes
escritas, o que tinha era muito estigmatizado ainda, então eu olhei até nas próprias fontes
LGBT, por exemplo o Lampião da Esquina, que era um jornal organizado por gays e lésbicas
principalmente, na época, fim da década de 70 e 80. E lá tem muitas denúncias contra a
operação Tarântula, tem todos online e muitas matérias de jornal, fontes, entrevistas, eu
tirei de lá. Mas ainda era um olhar cisgênero sobre a realidade travesti e ainda com um alto
grau de estigma que tinha na época, mesmo tentando se aproximar, ainda acabavam
trazendo. E aí eu falei, vou ter que buscar pela oralidade essa fonte e esses documentos,
que acho que acaba entrando pra uma coisa do gênero textual, discursivo, mas não escrito,
que aí entra o pajubá, todas as palavras do pajubá...E aí entra todo esse diálogo com a Neon,
porque eu conheci ela e ela fez uma grande caminhada que transformou eu acho, o teatro
de São Paulo. Sou pretensiosa nesse sentido, mas transformou minha vida e acho que
transformou as referências que a gente tem da memória trans e LGBT como um todo,
brasileira. Porque a gente tem a referência de Stonewall, referências de resistência do
exterior e teve um ato organizado pelo movimento negro unificado junto com as travestis
que se prostituíam, junto com todo mundo que tava sendo atacado, e a gente tem que
trazer isso, né. E isso quase não tá escrito, tem muito pouco. E a Neon lembra disso, me
contou cada história que ela viveu em cada esquina, boa parte do que está escrito n’As
Uiaras aconteceu de verdade, mas não daquele jeito, eu criei uma ficção a partir disso,
porque acho que pode até acionar gatilhos e disparar coisas que no teatro a gente pode
tratar de outra forma. Não é um teatro documentário, mas a fonte do documento oral e
escrito é muito forte.

Sofia: Isso que você falou… Para mim tem sido um desafio bem grande porque eu escolhi
fazer análises a partir dessa visão da violência de gênero e realmente é muito difícil achar
documentos acadêmicos, jornalísticos, qualquer coisa que considere a violência contra a
população trans como violência de gênero. E aí eu tô assim, “Gente, mas eu preciso
escrever e todo o material que eu li até agora não inclui essas pessoas”, como faz, né?

Ave: Aí, ótimo! Vou te indicar uma referência, então: Jaqueline Gomes de Jesus Ela é muito
boa, ela é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro, super acadêmica, ela é ótima,
muito boa mesmo. Uma referência bem legal.

Sofia: Ah, que bom, porque de fato, isso que você falou...É quase como se não se
considerasse como uma violência de gênero.
208

Ave: É quase como se não considerasse parte da história, isso que é o mais maluco. Porque
isso daí é recente, é década de oitenta e tá muito ligado com questões públicas. Por
exemplo, a epidemia do HIV-AIDS começou a virar esse estigma tão grande e esse
terrorismo começou a ser feito naquela época e todo, não todo, mas boa parte do
preconceito que tem com a gente até hoje – com todas as pessoas LGBT, na verdade, é
assim – mas com as travestis nossa, gritante! Porque tá no corpo, né, nossa identidade tá
no nosso corpo e a gente não tem como disfarçar, digamos assim. Essas somos nós. Então,
o extermínio era justificado em parte por causa da epidemia do HIV-AIDS. Isso é apagado,
apagado por quê? Para manter as coisas como elas são. Eu vejo isso também, que a escrita,
e aí eu acho que como dramaturga esse é o meu papel também, por isso que eu faço toda
essa crítica do teatro de grupo e da sociedade como um todo, a escrita ela é quase como
se fosse uma propriedade privada, assim, eu acho. São poucas as pessoas que têm acesso
a ser produtoras de conhecimento reconhecidas pela escrita. Só a questão da alfabetização
e letramento já é um…

Sofia: Já exclui boa parte…

Ave: E além disso, para você ser legitimada, entendeu, estar lá produzindo e dentro da arte
que é essa instituição super elitista, que é o teatro ainda, é muito difícil mesmo. Então é por
isso que sem a oralidade, não dá. Eu não conseguiria ter escrito a peça. É isso, assim. E a
partir disso eu tomei isso pra pesquisa desse grupo de teatro, sobre a ditadura militar. A
gente foi conversar com todas as guerrilheiras para escrever essa peça nova que vai estrear
não sei quando aí, chama Verdade atirada em seu rosto como um pano sujo. Fomos conversar
com os homens trans que também são muito poucos que viveram o final, a década de 80,
porque a década de 60 é muito difícil. E aí tem uma coisa que pela oralidade, e trazendo
essa oralidade como respaldo para essa fonte escrita – uma peça de teatro, um
pensamento acadêmico – é o jeito de preservar essa oralidade, sabe? Porque as pessoas
morrem.... E a gente continua contando a história, vamos continuar, mas aí esse
conhecimento que essa pessoa tem, que é valiosíssimo, que foi construído em cima da vida
e da morte de muitas pessoas, né? Assim, muitas pessoas morreram pra viver sua própria
identidade, pra lutar politicamente e isso pode ser esquecido e apagado e toda a
transformação que foi construída pode ficar de lado. Então, quem continua disseminando
esse conhecimento por aí tem que ser valorizada, tem que ser reconhecido e é isso aí. São
saberes não oficiais. É, babado.

Sofia: É muita loucura. Não, por isso que eu acho que é tão importante fazer as entrevistas,
porque realmente tem material que não existe na academia porque não existe esse
interesse de que esteja na academia, ou em qualquer fonte oficial.
209

Ave: É uma loucura. E aí tem a coisa do transgênero... que eu também acho que é uma peça
transtemporal, porque ela fala da década de oitenta para falar de hoje. E na verdade é muito
parecido. Não precisa nem fazer muita força, porque é só você contar a realidade que
acontecia. Hoje, por exemplo, eu sou dramaturga, né, diretora e isso era uma coisa que era
muito difícil, quase impensável há pouco tempo atrás. Atriz, sabe o lugar da atriz no mundo
de hoje só isso já é muito difícil, né, pra uma travesti.... Imagina escrever! Gente, e eu ouço
cada barbaridade por aí, que você vê o preconceito gritando nos curadores, nas pessoas,
no meio teatral, o entojo na cara das pessoas. E eu gosto até de jogar com isso, assim,
porque enfim, né.... Porque eu estudei na UNICAMP, eu estudei na UNICAMP, eu estive
dentro de um lugar de reconhecimento mesmo, é a academia. Tudo bem, eu não terminei
o curso, mas eu estive lá, eu tive acesso a muita coisa, eu tive muitos acessos que boa parte
das pessoas trans não tem. E aí, reconhecendo isso eu uso isso para trazer, pra furar esse
bloqueio, né? Trazer as narrativas, trazer as pessoas, reconhecer os talentos que são
totalmente oprimidos mesmo, sufocados. Mas mesmo que eu, e algumas outras pessoas,
estejam tendo esses acessos e contando a história de um jeito que não é estigmatizado,
que não é só pelo cômico, que não é só pelo sexual, que também não é só pela desgraça,
apesar de falar sobre isso tudo. É, o fato de a gente ter esses acessos não quer dizer que
toda essa realidade que a gente tá contando n’As Uiaras tenha deixado de existir. Pelo
contrário, ela tá aí e como tá todo mundo mais empobrecido e mais precarizado também
essa realidade está mais precarizada. Por incrível que pareça, mas é verdade. E todo esse
mundo ainda existe e nos mesmos lugares, algumas coisas mudaram, poucas, mas cê vai lá
no Arouche, cê dá a volta na República, na Luz boa parte da população travesti daqui do
Centro mora lá e tá nas mesmas condições, muitas vezes. A polícia às vezes é mais ou
menos violenta, mas a violência policial e sistemática continua existindo. Ela foi fundada na
época da Operação Tarântula, ela foi instituída como política de Estado naquela época, hoje
ela tá camuflada, ela não é assumida oficialmente, mas a prática é muito parecida. Então,
por isso que é transtemporal, porque quando a gente fala daquela época a gente tá falando
ao mesmo tempo de hoje. E tamo (sic) sendo ativista, sem nem dizer que tamo sendo,
sabe? Tamo transformando as relações sociais sem nem dizer que tamo fazendo isso
porque a própria ficção dá conta de contar a realidade. E aí é transtemporal, porque a gente
brinca com a palavra trans, porque daí tem uma coisa que é ao mesmo tempo documentária
e ficcional, ao mesmo tempo dramatúrgica e autobiográfica. Porque quando as atrizes
estão lá atuando, elas tão contando histórias pelas quais elas muitas vezes passaram, só
que são de personagens. Só que mistura um pouco o limite entre o que que é o personagem
e o que que é a persona daquela atriz dizendo para um público que, no caso do Centro
Cultural, onde a gente estreou, é um público (depois foi mudando) mas, no começo é
aquele público tradicional de teatro, né. Que não tá acostumado a ver esses corpos e essas
narrativas lá. Então, existiam certas provocações que a gente pensou não só no âmbito
teatral, mas no âmbito performativo até, sabe? Provocações reais. Principalmente o texto
inicial da peça.
210

Sofia: Sim, esse texto é bem interessante…

Ave: Que é diálogo direto com o lugar que a gente tava também.

Sofia: Quase não tem uma personagem.

Ave: É. Exatamente. E eu propus já um pouco assim, mas isso foi se radicalizando e


aprofundando durante o processo. É muito legal, a gente sente tanta falta de fazer essa
peça. A gente vai fazer no Teatro de Contêiner agora em maio.

Sofia: Ah vai!

Ave: Aham.

Sofia: Ai que bom!

Ave: Não lembro se é abril ou se é maio, eu te aviso.

Sofia: Avisa. Porque eu não assisti à peça, eu só li o texto.

Ave: Tem o vídeo, eu posso te mandar. Tem o vídeo inteiro, tá ruim, mas tem.

Sofia: Eu vou ver o vídeo, mas eu vou ver a peça.

Ave: É tem que conhecer as músicas…

Sofia: É, porque eu li as músicas.

Ave: É, você vai ver que vai para um outro lugar, assim.

Sofia: É, porque ler... É quase ler um poema, na verdade, é ler um poema.

Ave: Ah, e tem essa coisa do lirismo que mistura muito com esse gênero dramático da peça,
épico, épico-dramático. Porque eu sou poeta também, né...E aí é engraçado porque tem
poemas que eu escrevi que nem era pra peça.

Sofia: E entrou!?
211

Ave: E entrou! A cabe perfeitamente. Cê olha, cê fala... A própria música que a Verônica
canta “Imagina, imagina…”, aquilo é um poema que eu escrevi de mim, da minha vida, só
que daí quando eu olhei lá, eu falei, “Nossa, gente, cabe totalmente e tem cara de música,
pode render material pra cena.” Eu botei e pronto, virou uma música, virou da peça, só que
se você pega o meu livro de poesia Segunda Queda tá lá também. O mesmo poema. Só uma
coisa que muda que é: no livro de poesia o último verso é, que é “imagine, imagine” um
monte de coisa de sofrimento, chega no final “coberta de alergia”, terminava assim. Na
peça eles falaram, não, vamos falar “Coberta de alegria”. Sabe? Porque é isso, o poema tem
um lugar de você sozinha, então é uma época que tava muito difícil minha vida, mesmo.
Tinha muita coisa difícil acontecendo comigo e aí eu não conseguia sair dessa negatividade,
mas no coletivo, o que era alergia vira alegria, sabe?

Sofia: Isso é muito bonito!

Ave: Porque a gente tá ali, tamo fazendo, tamo sendo vista, tamo contando nossa história,
sendo reconhecidas como artistas, como pessoas que trabalham e tem essa dignidade de
poder propor esteticamente alguma coisa, elaborar essa realidade.

Sofia: Isso, você, isso tem a ver como jeito que você termina a peça também, não?

Ave: Como que termina no texto? Que elas vão pra Santos...

Sofia: É, elas somem pra Santos, ficam sumidas por um tempo, o que não é bom porque né,
a pessoa tem que viver na clandestinidade, mas não existe essa coisa do “morrer”, e da
tragédia que é a vida real.

Ave: Isso. É, essa coisa da tragédia, porque termina pesado, termina com dores, com
sofrimento. Termina numa crise, as três uiaras estão numa crise, as duas travestis estão
questionando a mulher cisgênero. E ela também. E elas estão argumentando e tentando
encontrar um jeito ali, e naquela época, o que aconteceu de fato foi uma ruptura. É até
engraçado porque uma vez lá no Centro Cultural a gente fez uma abertura da peça. Eu dei
um jeito de enfiar lá, os curadores devem ficar loucos comigo, né.... Mas eu enfiei, eu falei,
“Não, eu tô lançando meu livro”, que é o Segunda Queda, que desde a época a gente já tava
fazendo e a gente tinha uma coisa meio versão performance com meia hora, 40 minutos.
Eu falei “Quero fazer, quero fazer, quero fazer o lançamento do livro aqui”. Por mim, lógico,
mas porque tinha tanta gente enlouquecendo, no bom sentido, de ficando (sic) inspirada
com isso que eu falei “Vamos fazer”, os poemas têm a ver. Tanto que quando a gente fez
essa abertura, a gente fez essa música “Imagina, imagina” na performance Segunda Queda
e na peça, depois, duas versões totalmente diferentes. Porque que eu tô falando tudo isso?
Ah, porque era eu e a Verônica atuando, agora já tem muito mais gente, e a Verônica faz a
212

peça também com a Danna. E aí é eu com a Verônica, duas travestis, fazendo uma
performance, uma peça de teatro em cima dos poemas, é exatamente a história d’As Uiaras,
exatamente. Só que agora a gente tá conseguindo, com luta, com muita dificuldade, mas
tá. E aí chegou no final, uma pessoa veio falar comigo “Nossa, que engraçado porque As
Uiaras conta a história de duas travestis que têm uns poemas, fazem umas músicas, se
juntam para fazer um show e tentam viver essa vida na arte, né”. E aí, existe uma ruptura
histórica, uma perseguição muito maior do que qualquer individualidade, que é estrutural,
que vem de séculos e interrompe a vida, prende as pessoas, enfim, persegue, né? Impede
que o trabalho seja possível. O trabalho, qualquer trabalho que não seja se prostituir. Até a
prostituição eles impedem de acontecer, né?

Sofia: Sim, porque se estavam caçando…

Ave: Exatamente. E aí, interrompe, isso na década de oitenta. Só que na década de 2010,
2020, têm duas que se juntaram e a gente fez! E abriu a peça que falava sobre essa ruptura
e aí foi muito interessante esse dia, assim…, Mas tem essa coisa da dor do final d’As Uiaras,
do peso, mas eu me recuso a perpetuar a narrativa da desgraça, sabe? E do sofrimento que
se fecha em si mesmo, porque é isso que contaram da gente até hoje. História de travesti é
sempre ou piada, né, Zorra Total, aquela figura patética, né? Ridícula. Ou hipersexualizada,
fetiche, essas coisas. Ou a desgraça, a tragédia no sentido mais banal dela.

Sofia: Sim, notícia de jornal…

Ave: Exatamente. Notícia, você torce o jornal até sair sangue. Porque é só isso que vem, e
você apaga toda a subjetividade da pessoa. O próprio Luís Antônio Gabriela, aquela peça da
Cia. Mungunzá.

Sofia: Sei, eu não assisti.

Ave: É... Uma atriz, que é a companheira minha de trabalho, amiga minha (Fabia Mirassos)
faz agora, né?! Mas é uma peça que conta a história da irmã do Nelson Baskerville (que
dirigiu a peça) que é a Gabriela. E aí, só o nome já é: Luis Antônio Gabriela, por exemplo. Já
começa a pessoa, ela não vê a pessoa, ela vê o caminho que ela fez de um lugar para outro.
No mau sentido. Ela não enxerga quem ela é.

Sofia: Ela tem que ficar reiterando o passado.

Ave: Isso, tem que ver o homem que tem dentro daquela Gabriela. Tem que botar no título,
e tem muita, muita, muita violência. E não tem como não ter porque é a realidade, mas ela
fica fechada nela mesma. Parece que ela não caminha para nenhum lugar. E parece que se
213

fetichiza também essa violência, essa dor, esse sofrimento. Isso que é um risco. Por quê
que a gente vê tanta foto de travesti sangrando, travesti morta, travesti assassinada, os
vídeos que mostram as travestis sendo mortas, porque que eles circulam tanto por aí e na
verdade não existe nenhuma mobilização pra cobrar a morte dessas pessoas, ou para
amparar quem não tem um lugar pra morar, quem fica na rua? Por quê que esses vídeos de
dor, de sofrimento, de sangue circulam tanto e na verdade não existe ação concreta
nenhuma? Porque existe um fetiche de ver esses corpos violentados, é, de ver o sofrimento
dos nossos corpos, assim. Eu não sei o porquê, mas eu sei que tem. E aí, a minha grande
preocupação era não acionar gatilhos nas pessoas, tipo mostrar a violência realisticamente
em cena na atuação, sabe, não fazer a violência.

Sofia: Sim, porque não têm cena de violência, né?

Ave: A única que tem, que é a cena da tortura, que a gente chama A fantasia de Cíntia sobre
o interrogatório de sua amiga, é alguma coisa assim o título, que eu falei “Preciso deslocar
isso, porque não tem como eu não mostrar o que tava acontecendo dentro da cadeia”.
Porque quase não tem cena dentro da cadeia n’As Uiaras, dentro da delegacia. Essa é a
única. Porque também é isso, eu não tenho muito como saber como era lá dentro de fato,
então eu não me arrisquei tanto, pode ser.... Agora eu tô escrevendo uma peça que é toda
dentro da cadeia, mas enfim, lá eu não me sentia apta a isso ainda. Mas aí eu falei, tem que
criar um deslocamento para que dentro da peça a gente consiga ter um certo
distanciamento sobre isso. E, aí é isso, é a imaginação de uma personagem sobre o que
estava acontecendo com a amiga dela. E ela até fica meio distorcida no tempo e no espaço,
ela tem umas falas que não fazem tanto sentido. E nesse momento também tem essa coisa
performativa, porque a Miella interrompe a ação e fala “Olha, não dá pra fazer isso desse
jeito”. Não dá pra gente continuar só mostrando essa violência, a gente tem que inventar
uma outra forma. E aí, isso mudou no espetáculo, não é a mesma coisa que o texto. No
espetáculo teve o recurso da câmera. Então ficava só a cara bem grande da Verônica
filmando a própria cara, a Cíntia, e aí tinha a cena. Aí o ator ia tirando vários martelos, vários
instrumentos de tortura. Quando chegava na hora que ele pegava no braço dela, que seria
quando começaria essa violência mais explícita ela para, acende a luz, vem luz de serviço, é
uma quebra mesmo. Ela fala, “Olha, não dá, tem que pensar um outro jeito”. E aí a Verônica
vem com a câmera e filma dois bonecos que eles tiram, e eles fazem a cena com os
bonecos. E aí os bonecos se batem, não sei quê.... Vai prum (sic) lugar meio lúdico, mas para
que a gente consiga descolar e distanciar mesmo a nossa relação com essa cena, pra que
ela não seja uma violência de novo. Porque eu também pensava, “Vou trazer um monte de
travestis, um monte de homens trans, pessoas não binárias, transgêneros, travestis,
transvestigêneres aqui pro púbico pra ficar esfregando na cara deles de novo tudo que a
gente já sofre?” Sabe? Aí, você tá sofrendo violência o tempo todo, em todos lugares, sua
família, na escola, no trabalho, em todos os lugares, na rua, e aí você vai no teatro, que eu
214

acho que tem que ser um lugar de diversão no bom sentido, de você criar uma conexão de
fato com aquilo. Eu acho que pode ter, sim, peças mais provocativas, duras, ácidas, eu acho
que tem que ter também, elas têm o seu lugar, mas naquele caso não era. Porque a gente
tava trazendo uma memória apagada, a gente tava querendo renovar mesmo o teatro.
Revitalizar ele. Eu acho o teatro muito morto, às vezes. Você vai no público, tá todo mundo
deitado, dormindo, olhando. Como o Zé Celso diz, mais preocupado com a pizza depois da
peça do que com o teatro que tá acontecendo ali, né? E eu acho que a gente vê muito isso
nesses circuitos comerciais de São Paulo.

Sofia: Essa coisa contemplativa no mau sentido…

Ave: É, nem contemplativa, é anestesiado mesmo, morto. Cê olha pra pessoa e fala “Eu
acho que ela nem sabe porque que ela tá vendo essa peça.” Podia ser essa, podia ser
qualquer uma. Então, como é que eu vou fazer isso esfregando a violência na cara de quem
eu quero trazer pro teatro, pro público, pra tá aqui com a gente construindo isso? É, e eu
acho que o fetiche da violência já teve em muitas peças, muitas não, mas algumas que
relatam, que tratam, que trabalham a vivência de pessoas trans, travestis. Mas, muito nesse
lugar do fetiche, da violência, porque o público cisgênero que já está acostumado a ir no
teatro vai no lugar do exótico. “Vou ver aquilo que está fora do meu campo de visão”. E aí
eu vou sofrer, vou me sentir mal, sabe assim, mas é quase como se fosse querer purificar a
própria culpa. Eu acho que o teatro tem um lugar cristão, às vezes.

Sofia: Nossa, isso é muito interessante…

Ave: E não é o que a gente tá fazendo lá, é muito diferente. É outra coisa.

Sofia: É, não.... É muito interessante, que uma sensação de querer ver o sofrimento alheio
pra se sentir um bom cristão mesmo, assim, como eu me compadeço com essa existência
tão sofrida.

Ave: É. Mas eu saio daqui e tudo igual, comer minha pizza. E a Danna diz isso no começo. A
Miella diz “Cês tão aqui o teatro, né, sentadinhos, bonitinho, confortável, mas enquanto
vocês tão aqui... Atravessa a rua e tá tudo isso, toda essa peça que a gente vai contar agora
tá aqui ó! E você vai passar do lado delas”. E é lógico que você não vai salvar a vida da pessoa
e nem nada, mas você vai querer distância. Vai ter medo. Que que é esse medo do
desconhecido, sabe? Desse corpo abjeto que você quer tá longe dele. E aí você esfrega isso
na cara das pessoas, tem gente que fica super incomodada. Até por isso que eu acho que a
peça é vetada

Sofia: É muito vetada?


215

Ave: Ela já foi vetada em alguns lugares. Vetada, tipo assim, falta menos de um mês pra
gente apresentar e de repente, ninguém sabe por que e nem avisam a gente que não vai
rolar. Com data marcada, orçamento fechado, agenda de todo mundo reservada. E a gente
descobre, porque alguém fala por aí que não vai rolar. É.... É babado. É difícil dramaturga
travesti. Como diretora eu acho que eu até tenho mais entrada, às vezes. Mas dramaturga,
escritora…

Sofia: Mas é que a dramaturgia, a escrita é muito cis, muito hétero e muito masculina, não
é?

Ave: É um lugar hegemônico, né. E a gente é contra hegemônica, necessariamente. Eu


posso tá sem falar nada, eu posso tá até concordando com o que tão dizendo, eu sou
radical. Só porque eu sou quem eu sou. Eu posso estar sendo muito diplomática, muito, e
eu tento ser. Às vezes a pessoa pega alguma coisa que eu falei, tira do contexto e se sente
ofendida. E eu tô numa boa. Eu sempre sou vista nesse lugar radical e aí, por isso, contra
hegemônica. Só que aí a gente assume isso como grupo de teatro, ideologicamente
mesmo, a gente é contra hegemônica. Além de eu ser travesti e de estar fora das pessoas
consideradas capacitadas a estar nesse mundo da arte, né? Além disso tem o fato de eu
assumir uma postura política mesmo, coletivista, do teatro, que vem do teatro de grupo,
vem do Oficina, vem do Arena, vem do Vianninha, é um monte de homem, tudo mais, aí eu
fui achando a Consuelo de Castro, fui achando autoras também, mas tem esse lado que é
muito machista. Mas ao mesmo tempo eu tento sempre ver de uma forma complexa.
Porque eu também não quero ter que me resumir na minha identidade, eu não quero ter
que comercializar minha identidade pra poder ser pautada em qualquer lugar. Porque eu
sou uma artista, entre muitas coisas, travesti. Isso quando eu dou aula, eu tento chamar
atenção mesmo. A gente tem que ver a diversidade de cada tradição artística, de cada
pessoa, de cada artista, né? Então eu vejo que tem um machismo muito grande da
dramaturgia da tradição chamada de esquerda, de teatro engajado, político no Brasil. Mas
eu vejo que tem muitos valores artísticos lá que eu não quero ter que me desfazer deles. A
gente quer, pelo contrário, aprofundar eles e tornar eles mais potentes de uma forma que
não seja preconceituosa como foi muitas vezes… Porque eu acho o teatro uma coisa ótima.
Maravilhosa. Eu amo, sou apaixonada desde sempre por isso. Então eu quero que esse
poder, essa potência esteja viva. Já nem lembro como a gente chegou aqui…

Sofia: Que você estava falando que enquanto diretora você ainda acha que é mais
“tranquilo”.

Ave: Porque a dramaturgia deixa o registro pra história também.


216

Sofia: O teatro é efêmero, mas a dramaturgia tá ali…

Ave: É, eu sempre pensava nisso quando a peça estava estreando, eu pensava “Nossa, foi
muito difícil conseguir toda essa matéria prima pra fazer a peça, mas agora, daqui cinquenta
anos, se esquecerem de novo essa história…. Podem nem saber como foi o espetáculo,
pode nem saber quem era Danna, Verônica ou até eu mesma, mas vai ter uma peça lá.” A
pessoa pode ter uma referência. Esse negócio da gente escrever sobre narrativas que não
estão contempladas na nossa história e ser uma dessas pessoas que também não está
contemplada nessa história é muito difícil, porque parece que você tem que fazer o trabalho
técnico, artístico, de escrever, de pensar, de criar uma coisa interessante, sabe? De ser
provocativa, de experimentar e ao mesmo tempo se comunicar, tem tudo isso que qualquer
artista tem. Só que ao mesmo tempo você tem que buscar referências e bases de coisas
que você não tem muitas vezes. Porque a gente não tira nada do nada. A gente tem as
nossas referências, as coisas que nos formaram, assim, que a gente se identifica
artisticamente. E aí eu pensava, nossa agora vai ter pelo menos uma, e aí não é mais uma
porque tem várias surgindo, e isso é muito bom, eu fico muito feliz. Eu pensava, “Nossa que
bom que tá sendo publicado.” Porque o edital lá é a montagem e uma publicação em
brochura que é essa que tem online. Então isso eu acho maravilhoso.

Sofia: Porque existe um registro. Um primeiro registro.

Ave: É muita coisa junta, né?

Sofia: É muita coisa. Você tá fazendo letras?

Ave: Tô, há muito tempo…

Sofia: Mas você tá fazendo ainda?

Ave: Tô. Faço faculdade de letras na USP. Outro desafio dessa vida. É muito difícil lá, às
vezes. Mas eu gosto muito de estudar, eu sempre gostei. Então eu acho interessante.
Porque eu também vou pegando uma propriedade de como falar sobre o meu trabalho.
Porque além de fazer a gente tem que ser ótima falando do que a gente faz. Senão já não
consideram a gente. Tem que ser sempre excelente, no mínimo. O que eu acho ótimo, por
um lado. Porque eu também já preparo os aprendizes da ELT, que eu dou aula, pra já assim
“Olha, eu queria que você tivesse o direito de ser relapsa, como qualquer estudante tem,
né, na verdade. Mas você não tem esse direito, infelizmente, sinto te dizer e é por causa da
transfobia.” Se você não for excelente, vão te questionar. Vão te questionar muito mais do
que outras pessoas. Vão dizer qualquer coisa, que você quer se aparecer, que você é
preguiçosa, que você não sei o quê...que você é agressiva, muitas coisas. Mas, se você
217

souber como falar e como fazer.... Você tem que ser transpofágica, né, que a gente chama.
Tem até a peça da Renata.

Sofia: Ah, eu assisti.

Ave: Lá em Campinas, né?

Sofia: Sim

Ave: A transpofagia, eu compartilho com a Renata, ela é a, não sei se é a continuidade ou a


ruptura, mas ela vem dessa coisa da antropofagia mesmo, que é: a gente vai devorar aquilo
tudo que for bom pra gente. E a gente tem que fazer isso, pra se legitimar nesse meio que
nos exclui. Então, eu falo pra eles, “Vocês vão ter que saber mais do que os especialistas
nos assuntos, pra eles poderem olhar pra você e falar Ah, que que você tá falando?!” Até a
escuta se abrir, você vai ter que ser assim, melhor do que os melhores. E é muito triste isso,
por um lado, porque, aí, né, você vê as outras pessoas por aí…

Sofia: Tanta mediocridade…

Ave: Mediocridade. Essa é a palavra. A gente não tem o direito de ser medíocre. O que é
ótimo, porque a mediocridade é horrorosa. Mas é o que a gente vê por aí. Então a Faculdade
de Letras me ajuda nisso.

Sofia: E como é pra você essa coisa de - eu não sei há quanto tempo você tá na área da
pedagogia, do ensino, é recente?

Ave: É desde o ano passado. Eu sempre dei aulas, eu sempre fui muito boa (desde sempre
na minha vida) em gramática, aquelas coisas que todo mundo detesta, eu sempre fui muito
boa, e aí eu comecei a dar aula particular, até, disso, e tirar um dinheiro. Mas isso é muito
diferente, é outra relação, porque é aquele conhecimento bem bancário, como diz o Paulo
Freire, educação bancária, você tem que cumprir mecanicamente tais coisas, você faz tais
coisas... Agora é um outro lugar que é a pedagogia do teatro. E na ELT que é justamente
um lugar de formação do teatro de grupo, e do teatro engajado, do teatro politizado. Ela é
assumidamente uma, é, uma continuidade dessa tradição. Mesmo, assim…E faz dois anos,
eu dou aula desde o ano passado, esse é o segundo. Oficinas e tal eu sempre dei, né? Só
que daí, depois que eu entrei lá mesmo, aí que eu comecei a aprofundar mais e agora eu tô
amando, tô amando mesmo.

Sofia: Você gosta dessa parte do ensino...


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Ave: Eu gosto do teatro. E aí, consequentemente, de estar dentro do ambiente de


formação pras pessoas do teatro. Porque é muito difícil ser sozinha, sabe? Nesses meios.
Então eu gosto de trazer mais gente, eu adoro. E eu sinto necessidade. Necessidade
mesmo, assim, de formar gente… Eu não tive isso, todos os lugares de educação por onde
eu passei, em algum momento, foi (sic) hostil pra mim, sabe? Então eu quero proporcionar
pras pessoas que estão chegando agora, que são mais novinhas, um lugar em que elas já se
preparem pra encarar esse mundo do teatro, esse circuito teatral que é muito hostil
também, pra que elas tenham esse acolhimento, pra que elas consigam estudar, gente!
Tem que estudar, né! Não adianta, as coisas levam tempo. Tem gente que, nossa, tem
aquele talento exuberante, mas aí tem a coisa da vocação, aprender a chegar no horário, é
difícil isso.... E o teatro precisa, precisa estar junto para fazer teatro. E aí, como é muito
precarizada a vida, isso é muito difícil. E, lógico que tem as questões de fora pra dentro, que
são sociais, impedimentos mesmo, restrições pela via financeira, pela via da violência direta,
física, psicológica, moral, a desestrutura que tem muitas vezes do psicologismo, da nossa
cabeça como pessoas trans, é muito difícil se entender nesse lugar. Que o tempo todo
dizem que você não é o que você é. E você sabe, mas aí você fica em dúvida. É todo o
processo. Ainda mais nesse momento, chegando nos vinte anos… Que é mais ou menos a
faixa etária lá que tem comigo, entre vinte e vinte e cinco. Nossa, são muitos desafios, e aí
você viver isso dentro do teatro, onde seu corpo tá exposto, é uma luta, então eu acho que
não tem como eu não tá lá, sabe? Seria muito egoísta da minha parte. Tive esse acesso, vou
ficar usufruindo dos meus privilégios e pronto, tchau, beijo? Eu acho que eu teria até mais
facilidade, no sentido de conseguir elaborar projetos com calma, chamar pessoas que talvez
dessem conta de entre aspas “exigências”, responsabilidades do teatro, mas assim acho
que talvez a gente continue contando mais ou menos a mesma história e das mesmas
formas, com a mesma estética. E que pra mim, pra que a estética seja transformada...
estética não é uma coisa pura, isolada da gente, ela é a gente, né? É o que a gente constrói.
Então, acho que a gente tem que trazer as pessoas. Então tem esse processo mesmo da
pessoa ir se acostumando, conseguindo se organizar dentro de si, diante de tantos
atravessamentos, violências, impedimentos, questionamentos, papapá (sic), estigmas. Se
organizar dentro de si, e se organizar na vida, porque o teatro é duro, você ganha pouco.
Mesmo quando você tá arrasando, você tá ganhando pouco e todo mundo acha que você
tá rica. Aí vem o estereótipo da travesti rica arrogante. Esse é o clássico. “Aí, ela é rica, é
rica, tá ganhando muito dinheiro, é arrogante, não olha…” Nossa, aí vem tudo... só que na
verdade você mal tá pagando seu aluguel. Você só tá não lugar que todo mundo tinha que
ter o direito de estar. Mas é isso, pegando esse jeito do teatro.... Teatro você tem que estar
lá, ensaiar um milhão de vezes.

Sofia: Lá você ensina?


219

Ave: É assim, meu núcleo ano passado chamava texto e cena. É o estudo de como pegar
um texto e ativar ele em cena. Mas na verdade é de como escrever um texto e de como....
Algumas pessoas ficaram mais no texto outras mais na cena, só que muita gente traz a
performance. E aí a performance muda todo o pensamento de texto, que é diferente o
caminho do texto na performance. E aí eu comecei a reparar que as pessoas estavam muito
a fim disso e que era muito interessante. Aí eu mudei o nome do núcleo pra esse ano. Chama
Performatividades transversais. Aí a gente parte da performance e dos happenings em
espaço público, depois dentro da escola, depois individualmente, passa pelo documentário,
pelo depoimento, vai entrando dos textos de teatro que trabalham essas questões de
violência de gênero, a violência racista, todas as violências, todas não, algumas. Eu fui
chamando algumas pessoas pra gente debater. Tem muito monólogo hoje, né? Monólogo
de depoimento. Então a gente vai fazendo o caminho da performance, pra
performatividade dentro do teatro, e aí vai pegando outras peças com diálogo, peças mais
tradicionais de teatro e aí a gente vai fazer uma pesquisa sobre pessoas, figuras LGBT
apagadas da história, mas mais antigas, desde a inquisição, que tem informações, tem até
o texto da Jaqueline Gomes de Jesus sobre a Chica Manicon, que é a primeira travesti que
tem registrada na história do Brasil. Buscando essas fontes e até mais recente, na própria
década de oitenta. Tem um filme chamado Dores de amor que é referência d’As uiaras
também, super referência, que tem muito da época, da década de oitenta, é um
documentário muito lindo. Aí tem figuras como Andréia de Maio, Brenda Lee, que eram
figuras bem importantes entre as travestis da época. É…. Aí tem a Telma Lipp que era atriz
que terminou de um jeito muito trágico, né. Que a coisa da tragédia tá presente na vida das
pessoas, né? Que ela ia fazer o personagem do Rodrigo Santoro no Carandiru, que é uma
travesti.

Sofia: Ah, isso tem no Manifesto da Renata.

Ave: Tem. Exatamente. E aí tem a Telma Lipp nesse filme, Dores de amor, ela fala. Então a
gente vai fazer essa pesquisa. E aí, dentro da ELT, além disso, agora eu tô dentro da
formação. Não sei se você conhece lá?

Sofia: Muito pouco.

Ave: Lá tem os núcleos que são mais a tarde que são núcleos de pesquisa, uma vez por
semana, que tem uma outra dinâmica.

Sofia: Uma curta duração?

Ave: Não, é um ano. É… uma curta duração é assim, um ano, mas uma vez por semana só,
entendeu? E aí tem um recorte específico, tem o Núcleo de Sonoridades, meu núcleo é
220

Performatividade, tem Núcleo de Direção, Núcleo de Dramaturgia, que é a Dione Carlos que
orienta. E aí tem a formação, que é quase como se fosse a EAD, sabe? Não é um curso
técnico é um curso livre. Mas é um curso que você tem que estar lá de segunda à sexta
durante quatro anos, você passa por…

Sofia: É quase uma graduação…

Ave: É uma graduação, na verdade. Assim, se você for falar. É tão puxado quanto a
UNICAMP, pra mim, assim, é até mais, às vezes eu olho pra eles e falo, “Nossa gente, que
loucura”.

Sofia: Na UNICAMP você fez até o que, o terceiro?

Ave: Eu fiz a primeira montagem e parei. O não dramático. Aí eu parei, foi a melhor coisa
que eu fiz na minha vida pessoal. Mas eu adorava, eu achava que tinha muita coisa boa lá,
sabe. Muita coisa que, eu uso até pedagogicamente, eu trouxe de lá. Muita coisa. E é isso.
Eu na formação agora. E é uma matéria que chama, a gente que nomeia as matérias, ela
chama Dramaturgias da oralidade e da escrita.

Sofia: Que tem a ver com essa coisa de buscar informação através de pessoas…

Ave: E dos textos também, de enxergar os textos no contexto deles da época com toda
sua complexidade. É…. pensar onde que está presente essa tradição, essas linguagens
ainda hoje, né… E de botar esses textos em cena. Um caminho de transformar uma palavra
em uma ação. Verbal ou não. E é isso, tô nessas duas áreas, assim, agora na ELT.

Sofia: Uma outra coisa, nada a ver, assim, um pouquinho a ver por que a gente tá falando
de texto, você que é dramaturga, escritora, poeta e eu sinto, bom, a Segunda Queda era
uma peça, uma performance a partir de poemas, então, claro que o lirismo tava lá. Mas
mesmo n’As três Uiaras têm a parte que é bem lírica, a sua forma de escrever me parece
bastante lírica. Sonora. Assim, parece, não sei, você vê o desenho, assim. Que é uma coisa
que particularmente me encanta. Quando vejo um texto e ele desenha no ar. Você identifica
isso?

Ave: Super identifico. Rola sempre. Às vezes eu tento um pouco ir pra outro lado, mas eu
sou essa poeta… Eu sempre tenho esse lirismo, sempre teve em tudo que eu escrevi.
Sempre teve. É… dependendo se está mais perto do documento, como tem essa pesquisa
do documento às vezes fica um pouco menos, mas eu vejo poesia até nos documentos. Eu
vejo mesmo. Eu acho que as palavras, elas chamam a gente. E dependendo da forma como
você olha...Nossa, aquilo, o som daquilo pode ser encantatório. E isso pode ser muito bom
221

ou muito ruim, porque dependendo do que tá escrito lá, se você fica nessa coisa
encantatória você ignora a brutalidade que tem naquilo. Mas também pode ser um jeito de
você conseguir construir um caminho pra que essa brutalidade não fique fechada em si
mesma e a gente fique nesse ciclo de violência. Presa, achando que não têm nenhuma outra
perspectiva e saída. Então acho que tem essas duas, tudo pode ser usado para o bem ou
para o mal, ou para aquilo que está entre o bem e o mal. Mas sempre tem esse lirismo, sim,
eu acho. E a musicalidade eu acho que vai ganhando cada vez mais força no meu trabalho,
de uns tempos pra cá. Assim, tenho me envolvido muito com a coisa musical, sabe? Mesmo
que eu não seja compositora e nem musicista, eu nem entendo às vezes o que a gente tá
fazendo, mas eu tô lá no meio, sabe? E eu acho que o teatro é o melhor lugar pra isso,
porque é o lugar onde o texto é uma presença. Ele não é uma coisa ali...Eu gosto de ler livros
e fruir esse lugar literário, mas eu acho que quando esse lugar literário está presentificado,
ele tem uma força que a gente não consegue quantificar. E aí, é engraçado isso, porque eu
sinto que a poesia que eu escrevo ganha força, e as pessoas conseguem se conectar com
ela, mesmo ela sendo difícil, sabe? Às vezes até hermética e com palavras difíceis, uma
forma atravessada, assim. É.... como chama, cortada…

Sofia: Fragmentada?

Ave: Fragmentada. Quebrada.... Mas eu vejo essas poesias, nossa, em tantos lugares as
pessoas falando elas e acho que é porque tem esse lugar do teatro onde o texto vira uma
ação, uma presença mesmo. É o limiar entre um e outro, né, assim… E eu amo esse lugar.
Eu amo mesmo. E essa percepção veio no teatro, pra mim, sabe? Dessa musicalidade
possível do texto presente, veio no teatro e a poesia, nossa. E na poesia junto, porque é
como eu falei, uma coisa tá sempre misturada com a outra. É bem poético mesmo, mas eu
sempre escrevi poeticamente. Eu lembro de (com) 15 anos, escrevendo as coisas, e sempre
parece um texto literário, mesmo que seja pra ser um outro texto. E é um lugar que eu
sempre encontrei pra me conhecer, a escrita, também. Só que eu sempre fiquei muito
fechada em mim, tipo criança problemática. Aí, era muito fechada, ficava muito só nos
livros, sabe, assim…. Tipo, fugia do mundo. Eu usava a coisa da literatura como uma fuga,
eu acho. É a avaliação que eu faço do meu passado. Aí me botaram no teatro...Aí é uma
loucura, porque no teatro demorou anos e anos e anos, mas essa identidade que eu sempre
vivi nos textos, nesse lugar que eu criava na escrita, passou a ser uma realidade, e passou a
criar referências para que as outras pessoas também possam se afirmar sem tanta… A
gente é preconceituosa com a gente mesma, né, muitas vezes... Toda essa transfobia, ela
tá internalizada porque ela vem de uma estrutura. Então, você passar por esse processo de
percepção de gênero, você prática violências contra você. Nos pensamentos, no que você
acha, no que você julga, do que você faz, e aí o teatro é o lugar. No coletivo, onde você
consegue perceber que “Não, que eu não tô maluca, sabe?” Não tô maluca. Tem um monte
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de gente aqui comigo, e aí vai chegando, vai chegando, vai chegando e agora a gente já
está fazendo coros. Já chegamos nesse ponto. E é só o começo.

Sofia: E era um coro bem grande…

Ave: Eu amo.

Sofia: É, complexo, pensando também nesse momento político que a gente vive. Talvez,
coisas que...Bom, em 2018, que foi quando As uiaras estreou, foi o ano da eleição também,
mas ainda assim não tava onde estamos agora. Já tava ruim, mas parece que piorou.

Ave: É, ainda bem que a gente conseguiu fazer em 2018. Eu acho que se fosse depois a
gente não conseguiria.
223

Grace Passô
Quando: 02 de dezembro de 2020 - 16h
Onde: GoogleMeets
Duração: 1h26min59segs.

(Em plena Pandemia. Início da gravação da chamada. Falávamos sobre a presença da peça Por
Elise do grupo Espanca! No FEVERESTIVAL - Festival Internacional de Teatro de Campinas, em
2015)

Sofia: Eu trabalhei no Feverestival que vocês vieram com o Por Elise.

Grace: Nossa! Isso tem muito tempo, né?

Sofia: Foi em 2015.

Grace: Uau! Caramba. É, nem tanto tempo assim, tem 5 anos. Foi em 2015. Que massa.

Sofia: É, nossa, foi bem marcante para mim, eu ainda tava na graduação.

Grace: Então a gente já se conheceu?

Sofia: Sim. Só que outro contexto, para mim faz muito tempo, muitas coisas mudaram.

Grace: Massa!

Sofia: Grace, eu vou falar um pouquinho sobre o que eu tô pesquisando, só pra você
entender um pouco da onde é que eu tô vindo, mas a ideia da entrevista é ser uma conversa,
mesmo. Não é uma entrevista que eu tenho perguntas super capiciosas prontas, eu quero
mais ouvir você a partir dos estímulos da minha pesquisa, mesmo. Do ponto de vista, do
objeto que eu tô estudando. É, eu tô fazendo uma pesquisa sobre dramaturgia
contemporânea. Eu faço um recorte do sudeste do país, com três dramaturgas e peças que
abordem de alguma forma a questão da violência de gênero. Eu quis trazer peças que
trabalham sob perspectivas muito distintas, até tava assistindo uma entrevista sua, um
texto seu, você fala “Generalizar não é um verbo pertinente para o nosso tempo”, eu acho
que é bem isso, eu tentei trazer especificidades, pra também com a ideia da violência de
gênero que é a violência conjugal, que é só denunciar, esse senso comum.

Grace: Uhum...
224

Sofia: Então, eu escolhi trabalhar com você e com a peça Vaga Carne. É uma análise que eu
faço, uma análise dramatúrgica a partir de conceitos, da violência de gênero sob uma
perspectiva feminista. Então é mais ou menos daí que eu tô partindo, e eu também quero
com essa entrevista, entender um pouco sobre o seu processo enquanto dramaturga,
enquanto escritora. Porque tem um lugar que é mais geral da violência, que é esse lugar de
silenciamento, e de como nós mulheres, começamos a escrever, e como isso chega pra
gente, ao longo da sua história. Então, a gente podia começar daí, assim, como você
começou a se entender como escritora.

Grace: Independente do vaga Carne?

Sofia: É, é... Independente do Vaga Carne.

Grace: Tá. Então, eu sempre tive muita coisa rascunhada no computador. Desde muito
cedo. Uns poeminhas, umas frases. Eu sempre ouvi muito a minha intuição de escrita. Eu
tenho essa prática na minha vida, de ouvir as palavras, as frases, as vezes, no momento, é
uma intuição sonora. Mas eu acredito que a intuição é uma inteligência mais veloz. Então,
às vezes eu capturo, eu tenho a sensação, eu intuo que aquilo é interessante, ou pelo que
diz, ou pelo que pode vir a dizer, e eu coleciono, às vezes, sabe? Essa intuição, às vezes,
quando eu comecei a fazer teatro, aos 14, 13 anos, desde então eu penso muito na cena,
então eu fico também intuindo, pensando, imaginando situações que sejam potentes para
a cena. Situações que sejam potentes para acontecer. O que é uma situação potente? Isso
varia. E aí eu...Essas ideias teatrais eu também registro. Então vem tanto pela palavra,
quanto por imaginar situações.

Sofia: Certo.

Grace: OU formas. OU simplesmente formas, assim.

Sofia: Forma, você diz forma textual. Ou forma cênica?

Grace: É. Ou formas. Ou imagens. Às vezes é uma imagem. Então eu capturo isso porque
na minha vida eu optei por me conectar com essas criações. Então, eu, pra mim, eu estou
acionada. Eu estou sensível para criar o tempo inteiro. Isso não quer dizer que eu estou
tensa o tempo inteiro. Mas eu tenho essa relação de capturar, sei lá em que níveis, essas
imagens, essas imagens sonoras, essas palavras, estes textos, então, essa espécie de
arqueologia, sabe? Eu vou fazendo no dia a dia, eu vou colecionando mesmo. Aí, é, tá; E aí,
eu já tinha umas coisas assim, e aí eu comecei a fazer teatro e aí foi no Por Elise, que você
assistiu, que eu resolvi dirigir uma peça, aí eu achei que eu dirigiria melhor uma coisa que eu
escrevesse, eu achei que eu conseguiria radicalizar mais a experimentação, na época, com
225

isso. E aí eu comecei a escrever para fazer o Por Elise. Primeiro era uma cena curta, uma cena
de 15 minutos que a gente apresentou no festival de cenas curtas e depois eu transformei
isso, claro que num cotidiano criativo junto com a companhia que eu fazia parte, e aí a gente
transformou isso numa peça. Eu já cheguei com o texto longo pronto, e coloquei esse texto
longo em relação, em embate, em jogo com os atores. E como eu dirigia e também atuava,
então a gente ia improvisando esse texto pronto. Então claro, algumas coisas, a partir desse
texto que existia, algumas coisas eram recontextualizadas com aquelas pessoas, recriadas,
reinventadas. Tudo muito pra convergir numa peça de teatro, sabe?

Sofia: Sim, sim.

Grace: Então, minha primeira relação com a escrita tem a ver com o desejo de fazer uma
peça de teatro. Ela não nasceu com um desejo de escrever separadamente. Porque eu
sempre, eu desde cedo entendi que um repertório autoral poderia me levar para uns lugares
que eu gostava. Então por isso eu fui escrever.

Sofia: Certo. Porque você já tava dentro do teatro, não é um desejo de fora. É um desejo
que vem do próprio processo de se estar fazendo teatro.

Grace: Exatamente. Exatamente. Aí, Aí é isso. foi uma experiência muito legal, e aí eu já parti
para escrever o segundo, que era o Amores Surdos, que na verdade eu já tinha rascunhado
antes do Por Elise, na verdade o Amores foi a primeira peça que eu rascunhei. Tô lembrando
disso agora, inclusive. Eu tô fazendo o Amores agora em cinema.

Sofia: Ah! Eu amo Amores Surdos.

Grace: É. Vai demorar um pouco, uns anos porque o cinema tem um processo meio
alongado, essa relação da criação toda demora, mas eu tô lembrando disso agora. E aí eu
já tinha a história rascunhada, aí eu fui escrever o Amores Surdos, depois eu escrevi o
Congresso, e depois fui escrevendo umas coisas, eu não sou uma pessoa com muitos textos
de teatro. É, porque eu faço muitas coisas diferentes, então eu não tenho uma vida só de
escrever para o teatro, ou focar só nisso. Eu de alguma forma, optei por muitas coisas ao
mesmo tempo. E eu acho que um dos motivos por eu ter optado por fazer muitas coisas
diferentes é primeiro porque eu gosto de experimentar coisas diferentes, sabe? Tipo, sei lá,
tô fazendo uma peça radiofônica agora, eu gosto de passar por lugares diferentes. Mas
também porque eu gosto de colocar o meu corpo em ação. Eu gosto de atuar. Porque, é...
Porque me ajuda a viver, porque me ajuda a entender o meu corpo mesmo na minha vida,
né? Atuando. Então, é um processo que mistura muitas coisas, atuar, né? Mistura cura, com
autonomia, com liberdade, é. E... é, pensar a dramaturgia com o meu corpo também, sabe?
Em trabalhos por exemplo que eu vou atuar, para mim é muito saudável, é muito saudável.
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É muito saudável e também talvez toque em questões de gênero. Porque não tem como
não tocar, assim. É saudável por isso. Como um exercício de liberdade, né? Porque a
liberdade não é um lugar estável. É um lugar sempre em...a gente tá em busca dela o tempo
inteiro, internamente, externamente, politicamente, em todos os sentidos. Então, atuar
tem a ver com isso, com pensar o meu corpo num lugar de ação, sabe?

Sofia: É, você falando... Achei muito bonito isso que você falou agora e me provocou pensar
uma coisa que eu tinha já pensando, mas não tinha refletido, que é, eu estudo você, estudo
a Michelle Ferreira, estudo a Ave Terrena e eu também me coloco enquanto dramaturga
dentro da minha pesquisa, apesar de eu estar começando agora, e... todas são atrizes
também, e tem esse lugar de partir do lugar da atriz, que eu acho que tem muito a ver com
isso que você fala do exercício de liberdade, e a escrita chegar depois ou meio que junto,
mas como um potencializador, do que o meu corpo quer falar em cena.

Grace: Claro, claro. Porque quando cê começa a estar em funções que são tradicionalmente
mais conceptivas da cena, você escolhe mais, o que você quer falar e como você quer falar.
E aí é isso, historicamente tem uma série de existências de vários lugares de nossa
sociedade que vivem muito perigo. As mulheres por exemplo. Um perigo de cair nas
armadilhas dos estereótipos e da repetição dos mesmos lugares, que são lugares que estão
mergulhados num imaginário muito restrito, do que uma mulher pode ser, do que
determinadas existências podem ser. Do que alguém pode representar. Então, é, eu só
entendi isso depois também, na minha vida. Que escrever coisas para eu atuar não era só
um desejo de fazer só o que eu quero, porque prum senso comum, num primeiro momento
pode ser, mas depois eu fui entender que era pra eu poder fazer outras coisas. Pra eu poder
exercer a liberdade, inclusive comigo mesma, de pensar em fazer coisas que eu sei que
nunca me chamariam pra fazer. E que nem eu consigo me imaginar fazendo. Então, é pra
mim também a escrita, a dramaturgia, um lugar de experimentar a liberdade, mesmo, da
minha existência, das minhas práticas, dos meus exercícios como atriz. Acho que vem muito
disso. E também, historicamente, obviamente, isso que você falou é muito comum. Eu sou
de Belo Horizonte. Em BH tem muitas diretoras de teatro ou dramaturgas que tem como
princípio, que começaram uma relação com o teatro na atuação. Isso porque
historicamente as mulheres tão muito ligadas a ideia do trabalho de atriz. Agora, talvez,
isso... E aí, obviamente, tem um percurso de ir compreendendo como estar em outros
espaços e porque não estar em outros espaços, também, né? Então, como eu, o início de
tudo pra mim tem a ver com a atuação isso trouxe umas coisas interessantes pra mim.
Primeiro que, quando eu dirijo alguém eu tenho uma vida de entender o que que é um corpo
em contato com uma narrativa. Segundo que eu tenho a impressão, isso eu ainda tenho
que pensar com o tempo, mas eu tenho a impressão de que o fato de atuar me coloca numa
perspectiva um pouco menos hierarquizada na direção. A medida em que mesmo quando
eu estou dirigindo, eu me vejo como a pessoa que tem que agir, mesmo se a minha ação é
227

provocação, eu não me distancio nunca de um lugar frio e calculista, sabe? Eu tenho a


dimensão do corpo, do que o corpo ode fazer em contato com uma narrativa. Então, o meu
exercício, eu sinto que a atuação trouxe pra mim um olhar para a dramaturgia e para a
direção, um olhar menos colonizado dessas práticas. Um olhar menos colonizado mesmo,
no sentido de...de...procurar menos domínio, sabe? Eu num, a minha questão não está
muito ligada ao domínio, sabe? Da atriz que eu tô dirigindo, do texto. A minha questão está
mais ligada com a relação que eu crio, uma relação, mas não de dominá-lo, de um controle
completo, que é normalmente, que são coisas muito vizinhas da ideia de liderança, da ideia
da condução, todas essas características são importantes na direção, numa escrita, da
autoralidade, mas elas são importantes, mas elas tem muitos modos de fazer, e eu sinto
que a atuação me trouxe essa relação. Uma relação mais carne e osso com a escrita e com
a direção.

Sofia: Sim, sim, interessante isso que você está falando. Menos de dominação, mesmo,
como você falar. De querer hierarquizar a importância, porque de fato são exercícios de
poder, historicamente...

Grace: Sim, é. E, exatamente. Até de entender essas funções em perspectiva diferente. Isso
tudo que eu tô falando é uma medida difícil, não é uma medida fácil de ter. Não se trata
simplesmente de eu não querer dominar alguém, ou uma cena, controlar. Não. Às vezes é
necessário. Todas essas coisas elas estão em movimento o tempo inteiro. Mas, sem dúvida
nenhuma eu tenho intenções nítidas enquanto eu tô fazendo essas coisas, enquanto eu tô
escrevendo um texto de ser mais porosa, de criar relações, de pensar pra quem eu tô
escrevendo, de pensar quem eu tô dirigindo, de ouvir a potência do outro. Tem alguma
coisa aí que eu não pensei muito sobre isso, mas tem alguma coisa ai que me coloca com
essas dramaturgias, com essas direções, que me coloca num lugar mais ativo e menos, é,
um lugar ativo e afetado. E menos num lugar distanciado e frio ou sei lá. Eu tenho um pouco
essa sensação, sabe?

Sofia: Sim, é... É muito maluco porque acho que tudo isso que você tá falando é muito visível
no Vaga Carne, falando um pouquinho do Vaga Carne, né. Tanto essa relação que você falou
do corpo, do exercício de agir do corpo e essa relação da voz. Como também a relação de
poder e voz, né, porque... de ocupação também, da voz no corpo, enfim, tá tudo muito,
dialogando muito com o seu texto, esse em específico, né?

Grace: Sim.

Sofia: Que é...num sei, eu gostaria que você falasse um pouco mais porque eu, quando eu
comecei a pesquisa na verdade eu ia estudar o Amores Surdos, poque é uma peça que pra
mim bate muito, eu acho ela muito linda, mas em determinado momento eu reli o Vaga
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Carne assim, e deu essa coisa da intuição que você fala, me bateu, e eu achei que eu tinha
que trocar, que eu tinha que estudar o Vaga Carne. Talvez pela maior dificuldade que eu
tenha, por ser um texto mais fragmentado, mais “contemporâneo”, vamos colocar assim,
tô falando da estrutura dramática. E, essa questão da violência, menos explícita. Porque eu
queria muito falar, no Amores Surdos, da relação da mãe, né. Sobre a personagem da mãe
especificamente, e a potência, como ela age ali. E aí, enfim, eu voltei pro Vaga Carne, e eu
acho que é por isso, assim, por essa questão do simbólico que pra mim é muito presente na
peça. É uma peça que aborda tudo a partir de um plano muito simbólico, né? Enfim...

Grace: Sim, é. O Vaga foi um.... Ah, tiveram várias coisas que me impulsionaram a fazer o
Vaga Carne, muitas coisas ao mesmo tempo. Primeiro eu tenho uma obsessão por situações
em que...é... dramaturgicamente falando, onde a existência, não sei...Que eu crie situações
estranhas para coisas comuns, né, um estranhamento do que é comum. Nesse sentido o
corpo pra mim é quase um tema de vida, eu sinto que fazer teatro é, tem a ver com isso, o
teatro sempre precisa lembrar que nós estamos vivas. A cena, eu acho que, todas os
estudos sobre energia e presença, sobretudo sobre presença que o teatro tem, eu acho
que é uma grande metáfora para a vida, a ideia de presença. A ideia de algo que se cria e
que setenta condensar num determinado tempo e espaço. E tudo o que a gente estuda em
relação a presença, eu sinto que é talvez o grande tema do teatro. É a questão do teatro.
Não só pras atrizes, mas pra tudo, pra sociedade, pro público.

Sofia: Pra existir teatro, assim...

Grace: Oi?

Sofia: Pra existir o teatro.

Grace: É. Exato. E aí eu tive...Eu pensei nessa situação onde eu criasse alguma estratégia
dramatúrgica pra desmontar uma ideia de uma existência, né? E pra estranhar uma
existência. Então, daí que eu parti da situação... Então, a primeira coisa que eu intui era criar
alguma estratégia dramatúrgica para dar conta de um corpo que tivesse uma espécie de
desarmonia entre o que ele fala e o que ele age. Então, a partir daí eu fui atriz de pensar que
corpo é esse e que situação da peça, que situação essa história teria para criar esse jogo
cênico de alguém que fala algo mas o corpo age, digamos, em outra vibe. As ações não
estão concatenadas com a fala. E aí a voz...A ideia da voz como personagem principal nasce
de muitas coisas, assim, é... Nasce... A voz, a palavra voz tá muito em voga no nosso tempo:
escuta, voz...E aí a ideia da voz, eu acho que ela carrega muito significado, inclusive o
significado do discurso. Do discurso que a gente cria para o mundo. Então eu intuí essas
duas coisas: O desejo de fazer um jogo cênico da voz dissociada da ação, caberia bem numa
situação onde fosse um corpo em busca de ser discurso, ou um discurso em busca de seu
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corpo. Um pouco essa retroalimentação. Isso é na verdade uma grande metáfora para a
construção de uma pessoa como sujeito social, né? Porque várias questões, vários modos
como eu me enxergo na sociedade, isso é resultado de uma construção, né? E aí eu acho
que o Vaga é uma grande metáfora disso, desse corpo dessa mulher tentando criar uma
harmonia entre o que ela diz e o que ela age.

Sofia: Sim, essa construção de um eu fragmentado também. Eu tava lendo Memórias da


Plantação da Grada Kilomba e eu identifiquei muito do Vaga Carne nas propostas que ela
traz. Que é essa construção de um ser a partir do discurso, a construção de um eu a partir
da construção da subjetivização do eu, tornar sujeita esse corpo. E, esse fragmento entre a
voz e o corpo, não existe uma unidade.

Grace: É, acho que existe um movimento em busca de uma harmonia disso. Uma espécie
de harmonia de convivência entre o que, enxergar o nosso corpo como uma construção
social e ao mesmo tempo em comum acordo com as questões intimas, que cada um tem
com o seu corpo. E aí eu acho que é um grande jogo o tempo inteiro. É um movimento de
muitos embates, o Vaga precisa ser lido numa chave que não é uma chave da verdade,
aquela situação é a situação de uma mulher correndo atrás de si na sociedade, correndo
atras do que ela pode representar, do que ela é...Ela entra em contradição, ela tem embates
consigo mesmo, ela...É um pouco pra dizer que a construção da gente como sujeito social
ela não é um resultado só de certezas, é resultado de um movimento constante em busca
de afirmações, de negações, de escolhas, de opções, mas é uma construção sem volta, É
uma construção sem...é assim que a gente vai existindo.

Sofia: Sim, um abraço as contradições. Porque no meio dessa contradição.

Grace: Sim, é o direito de...Não tem como viver sem elas.

Sofia: Sim. É porque ao longo da peça também...É o que me faz querer falar sobre violência
nesse lugar mais simbólico, porque existem diversos momentos que essa construção se dá
pela dor, isso surge em vários momentos da peça, e eu também não consegui assistir à peça
mas eu vi o filme, e tem isso no filme também, até o fim onde você mesma se apunha-la, eu
não sei se era assim na peça...

Grace: É também. É o mesmo texto só tem algumas...algumas coisas, mas é praticamente


o mesmo texto. Sim, é interessante isso que você pergunta pela dor. Acho que o primeiro
momento no texto e na peça que, digamos que a primeira dor que inaugura ali é o olhar do
outro. É um...Tem esse percurso da narrativa, como se essa voz num primeiro momento da
peça lidasse apenas com questões internas, quase como se fosse um nascimento dela, e
com o embate orgânico, físico, do sangue, dos órgãos, da respiração, e aí, a peça, tem a
230

partir de um segundo momento pra frente que é quando ela descobre os olhos. Quando
ela descobre os olhos ela descobre outras pessoas, descobre como as outras pessoas veem
aquele corpo que ela habita. Esse é o primeiro nascimento, digamos assim. É, e essa história
desse, meio trágica, tem muitas formas de interpretar isso, tem muitas formas, mas, o que
pra mim sempre guiou, num exercício muito existencialista, era de, dessa ideia de um corpo
que não suporta, né? Ele chega um momento que ele não suporta, ele não suporta existir
nessa sociedade. Na verdade, é uma voz que não suporta, sabe? E por não se suportar ela
tem esse ato assim. Tem muitas formas de pensar ela, mas essa, pra mim, é uma delas.

Sofia: Interessante. É, uma coisa que eu sempre penso quando eu leio, é essa... parece que
quando a voz quando se entende no corpo, de fato, quando o processo de compreensão
do que é estar nesse corpo perante os outros que olham e também como habitar esse
corpo de dentro, e entendendo que você tem um “fora” que age sobre esse corpo, meio
que se encerra a jornada da voz. Ela se compreende como um uno, e então.

Grace: É quase assim, essa morte da voz é o nascimento dela como humana. Quando ela vê
que não há como dissociar desse corpo, quando ela tem a consciência que ela nasce.
Através da morte ali.

Sofia: E daí o silêncio.

Grace: É...

Sofia: É, eu as vezes, tenho leituras.... Eu acho um fim triste. Porque eu penso que quando
a voz se entende nesse corpo dessa mulher negra. Você escreveu pra você, né? Essa peça.

Grace: Eu não escrevi pra mim.

Sofia: Não?

Grace: Não. Inicialmente, não. Mas o que tem hoje de fato é um resultado de quando eu fui
atuar, com certeza, sim. Inicialmente, escrevendo, eu não escrevi pra mim. Eu escrevi para
a publicação, nem era para uma pessoa. Mas, sim, No meu ato de fazer a peça, eu
obviamente, fui lidar comigo mesma, com minhas questões, com o meu corpo, com o que
eu represento, com o que é esse ato de estar diante de pessoas numa arena de teatro,
sendo vista por muitas pessoas, né? E, existindo e tentando existir e tentando fazer meu
corpo ficar vivo e presente, e ao mesmo tempo provocando para que os outros corpos
também estejam, porque a peça, sei lá, a grande questão da peça é essa, são esses corpos,
que não é só dessa voz e dessa atriz. E atuando eu fico tentando uma série de
procedimentos para lidar com o público e lembrar o público de que eu tô falando do corpo
231

deles também. Que ao falar do corpo nós estamos, a gente tem, cada um tem o seu de
alguma forma. Mas pensando um pouco sobre isso que você falou de ideia da violência, é,
eu não sei, na vida você vai tendo umas obsessões no que você faz, e isso é muito presente,
assim, nas coisas que eu escrevo. Violências abruptas, as mortes, o falecimento de alguém,
o ataque no coração no Por Elise, o acaso violento da vida, né? Ou mesmo o Mata teu pai
que é uma escritura a partir de Medéia, né, assim, esse final que é, esse final da mulher que
metralha a plateia, que metralha os seus filhos. Talvez a tragédia seja um pouco uma
obsessão particular.

Sofia: Tá, interessante você falar isso.

Grace: Nesse sentido, eu não tenho uma explicação, é, eu não tenho uma explicação só
como uma opção racional, sabe? Pra mim, sei lá, isso tem a ver com, talvez um repertório
particular, é, dessa violência abrupta como algo ´provocativo pra essas narrativas, sabe? É,
não sei, de alguma forma, talvez tenha a ver com a minha vida particular. Assim, minha vida
não é trágica não! Eu sou bem leve! Mas, não sei, eu acho que tem coisas que não tem muita
explicação, num ponto de vista, eu nasci e cinco dias depois que eu nasci meu pai faleceu.
Então eu acho que isso de alguma forma isso marcou minha vida, numa época que minha
consciência não tava... Era uma consciência de uma pessoa de cinco dias, recém-nascida.
Então de alguma forma eu sou uma pessoa que se espanta com o acaso da tragédia. E isso
talvez tenha ligação com algumas opções dramatúrgicas em relação aos momentos em que
alguma coisa acontece, o fim das peças, o lugar de transformação, então a morte e a vida
pra mim, pra mim, elas são muito vizinhas, e eu acho que, é claro que isso não é o motivo,
mas eu acho que nós também somos seres marcados por uma série de repertórios
particulares que a dramaturgia também pode dar forma, ela acaba vazando também, o
modo como a vida se operou em nós, a forma como a vida se operou em nós. Então, essa
obsessão existe nas coisas que eu faço. A ideia da morte e da vida é como um, como um
nascimento, sabe essas passagens, a morte também como nascimento. Meu pai faleceu e
eu também nasci ao mesmo tempo. Isso acontece muito nas coisas que eu faço. Ao mesmo
tempo, e não só isso, a nossa vida é uma vida muito violenta, né? A nossa história também
é muito violenta.

Sofia: É, eu ia falar isso, tem esse lugar social, esse lugar do Brasil.

Grace: Exatamente, claro. Acho que a violência faz parte da minha vida como uma cidadã,
assim, o nosso cotidiano é muito violento aqui no Brasil, a política brasileira é muito violenta
e a própria formação do Brasil é de uma violência profunda. Então, a dimensão disso pra
mim e é tão grande, mas tão grande que não sei, Isso é do repertório do lugar onde eu vivo,
da história daonde eu vivo, né? A violência é um componente na vida assim. Então, é, eu
também sou uma pessoa com muita raiva, eu tenho muito amor, mas eu também tenho
232

muita raiva, e de alguma forma a violência ela também, as vezes opera como uma forma de
catarse, também, pra cena, acho que é um pouco isso.

Sofia: É muito interessante tudo isso que você tá falando porque dá pra ver, é isso, você
sempre traz no seu discurso o interno e o social e é realmente isso, né? A gente tá sempre
falando das duas coisas ao mesmo tempo.

Grace: É, é muito louco assim, porque a minha relação com a dramaturgia também, ela se
deu muito na prática e por opção, eu fiz letras ali, mas nem foi uma coisa que eu continuei
na minha vida, mas teve um momento na minha vida que eu optei por ser uma espécie de,
sei lá, artesã teatral, essas que aprende as coisas na prática. E interessante que eu optei por
isso, e foi uma opção muito difícil, porque obviamente, por todos os motivos que a gente
sabe, porque é difícil, dá um medo em que medida você vai conseguir viver assim, mas, é,
então eu não optei na minha vida por um estudo e a partir do estudo desenvolvi alguma
coisa, eu escolhi criar e ir entendendo os mecanismos pra fazer as minhas peças ficarem
cada vez mais potentes, correndo atras de estudar, mas é quase como que estudar depois
que eu já fiz. Eu não falo isso pra muitas pessoas porque existe um preconceito muito
grande em relação a isso, mas hoje eu acho isso muito bonito, assim, porque de alguma
forma, eu tenho uma sensação, isso é uma sensação, que no início as opções de criar coisas
pra mim, ela tem alguma dimensão espiritual, assim, eu gosto de ouvir, sabe? Tentar ouvir,
modos de ouvir o inconsciente, modos de ouvir os traumas, modos de ouvir os momentos
felizes, eu fico tentando intuir e colocar um...E depois ir entendendo isso racionalmente,
sabe? Então, nesse sentido, pra mim as coisas que eu faço tem muitos intuitos ao mesmo
tempo, mesmo. É... Então, eu não crio, eu nunc a criei uma cena que fosse suficiente no seu
tema, sabe? Pra mim convergem várias coisas, convivem várias coisas ao mesmo tempo e é
impossível criar alguma coisa sem claro, uma consciência de si como sujeito social, sem uma
consciência política como algumas pessoas falam. Pra mim nem interessa fazer alguma
coisa que não seja pensar nisso, sabe? O que significa numa dimensão mais política, social,
né? Não tem como, não há possibilidade, né? Porque na medida que a narrativa é colocada
na Arena, na arena do livro ou na (arena) da cena, né? Ela é outra coisa. Ela já não diz respeito
a você, não dá.

Sofia: Ah, sim, é sempre maior do que a gente. Ultrapassa.

Grace: Aí, ela começa a se relacionar com a sociedade.

Sofia: Isso que você fala de estudar depois que você cria. Você pode falar um pouco mais
sobre isso? Porque eu achei interessante, Você falou que tem essa formação nas Letras,
essa formação acadêmica nas letras, mas você sempre foi atriz desde criança. E eu acho
que na nossa área, não dá pra negar, é muito comum a gente começar muito novo numa
233

espécie de “não sei muito bem porque estou fazendo isso, mas para mim é importante
então eu continuo fazendo” e depois a gente compreende por que a gente tava ali, e passa
a estudar e querer se aprofundar. Enfim, achei bonito isso que você falou, queria que você
falasse mais, ou se você tem alguma relação com o ensino da dramaturgia também, depois
que você começou a escrever, de querer passar...

Grace: Quando eu comecei a escrever pra teatro ali, mais no Por Elise, antes do Por Elise eu
comecei a fazer uns experimentos, sabe? Eu entendi que o meu repertório de cena ele é
muito de uma criação de uma narrativa, então eu, eu acho que tem muitos tipos de atrizes,
mas eu sou uma atriz que se liga muito a narrativa, ao que aquilo significa ou pode significar,
sabe? Se eu vou fazer alguma coisa, cinema e tudo, eu não sou uma pessoa que
desenvolveu grandes habilidades técnicas, claro que com o tempo, você vai fazendo isso
vai rolando, mas a minha ligação está muito ligada ao que eu tô fazendo, ao que eu tô
contando, ao modo de contar a história, eu gosto de história, eu não tenho problema com
ela, eu gosto dessa ideia de contar algo, a como criar modos de ser ouvida, sabe? Então me
liga muito a dramaturgia mesmo. A minha atuação tá muito ligada a dramaturgia. Então, eu
sinto que eu sou uma atriz dramaturga, a atuação pra mim tem a ver com colocar a
dramaturgia em ação, eu opero muito mais feliz nessa chave, na chave de colocar uma
dramaturgia no lugar do acontecimento, de fazer ela acontecer como ação. Acho que você
travou pra mim----

(A internet cai por um tempo)

Sofia: Nossa, desculpa. Me perdi, fiquei tão nervosa agora.

Grace: Essas coisas acontecem, né? Aonde a gente tava?

Sofia: Pois é...Ah, a sua relação como atriz e dramaturga, e eu tinha te perguntado, enfim,
se depois que você começou esse processo de escrita você já buscou ou já tentou ou se
você tem esse processo também de ensinar, ou de compartilhar como você escreve com
outras pessoas.

Grace: Ah, sim. Então, depois que eu comecei a sacar isso, que eu curtia fazer coisas,
conceber coisas eu fui fazer cursos de dramaturgia eu fui tentar entender mais
tecnicamente as coisas, é... mas sempre me ligando muito a cena, muito a ideia de construir
coisa, não tenho uma relação dissociada de uma coisa com a outra. Pra mim esses
processos que são mais colaborativos, o texto ele, esse processo tem uma coisa legal que
o texto é colocado a prova o tempo inteiro, é muito legal você criar uma coisa em uma sala
de ensaio pensando naquela pessoa, e avaliando e vendo e ouvindo o corpo e aquela
pessoa, como o texto move aquela pessoa e como ela move o texto, então é um processo
234

de escuta muito aguçado e de entendimento sabe? De escuta, de reconhecer o texto como


algo em movimento, sabe? É, de produzir muitas respostas para improvisos.

Sofia: Você costuma trabalhar bastante com processo colaborativo, né?

Grace: Então, é... Sim. Porque eu sempre tive práticas de grupo de teatro e isso é muito
comum no Brasil, então sim. Mas depois de trabalhar um pouco com isso, eu comecei a
entender que eu me organizo melhor criando algo como foi o Por Elise, criando algo, criando
um texto e depois dispondo esse texto para um diálogo, tem que ter muito desapego e
apego ao mesmo tempo, né? Mas eu comecei a entender que pra mim esses processos
renderam mais, eles foram mais frutíferos. Que é dispondo, criando, algo que eu apresento
pra atrizes e aí elas conseguem enxergar uma saga já elaborada, mesmo que ela ainda tenha
pontos sem desenvolvimento, assim. Mas ela consegue enxergar lugares pra onde ir, e a
partir disso eu vou dispondo esse texto, desmontando esse texto pra que ele consigo. A
Kilomba fala muito dessa palavra, né? Desmontar. Pra que ele consiga entrar em contato
mais radical com quem vai fazer, sabe?

Sofia: Sei. Colocar pra jogo. Entregar um material e estar disponível pro jogo que ele propõe
pro grupo. Sim, eu me identifico bastante com esse processo particularmente também.

Grace: Sim, sim... No Mata teu pai, não. Por vários motivos eu fiz o texto e entreguei, mas
mesmo assim eu sabia que era a Débora que ia atuar, mesmo assim tem horas lá que eu
escrevo que ela canta uma música judaica, isso tem a ver com a vida dela.

Sofia: Tem espaços em aberto pra serem preenchidos

Grace: Sim. Mas eu descobri com o tempo que o meu tempo de escrita, o ritmo da escrita
é diferente do ritmo de ensaio, eu descobri isso depois de muita prática. Por isso eu prefiro
fazer assim, o tempo do ensaio pra mim tá ligado a uma coisa, o da escrita tá ligado a outra.
Pelo menos o tempo que eu gosto de fazer. Então eu fico criando estratégias pra poder
curtir essas etapas no ritmo que eu sinto mais legal, sabe?

Sofia: Sim, porque não necessariamente as duas coisas estão acontecendo ao mesmo
tempo e no mesmo tempo.

Grace: Isso, exatamente.

Sofia: Mas então o Vaga Carne é uma exceção porque você falou que você escreveu ele pra
um edital de escrita. Então ele é completamente uma exceção de como você opera
normalmente.
235

Grace: Eu acho que ele é uma passagem. Eu sinto que o Vaga Carne foi uma nova etapa pra
mi em termos de dramaturgia. Quando eu li o texto pela primeira vez, não li pra fazer, li num
evento de dramaturgia, e as pessoas...tinha muita gente...Eu senti uma reação que eu achei
legal, as pessoas ficaram muito magnetizadas, mas um pouco sem entender como aquilo
poderia ser feito no teatro, eu gostei dessa reação que eu senti. Quando eu terminei de ler,
as três vezes que eu li, antes de eu saber que eu ia montar eu terminei de ler e as três vezes
eu senti aquela qualidade de silencio e atenção e uma certa hipnose do texto. Essas reações
que me deram vontade de fazer o texto, e também porque ele vem de encontro a muitas
coisas que me interessam falar agora. Me interessa falar muito sobre meu corpo, o que ele
representa, negritude, o corpo assim, no Vaga quando ele consegue se nomear de alguma
forma tem essa passagem dessa metáfora morte e vida, e quando ele se nomeia, essa é a
contradição, é a contradição, não digo contradição é o paradigma que tem a ver com o
paradigma também que a gente que é preta vive. Ao mesmo tempo que é essencial a gente
se nomear como pessoas pretas, como mulheres pretas no mundo e nesse país, é essencial
por vários motivos, vários, até também pelo reconhecimento e pela construção social do
que é ser preto, ao mesmo tempo isso também é muito paradigmático porque isso também
é muito utilizado pra nos reter, pra nos limitar, pra nos ver como uma grande massa única e
não plural, isso é uma grande questão para as mulheres pretas no Brasil. A gente vive em
movimento o tempo inteiro, né? A gente vive se movimentando tanto se nomeando, se
colocando somo esse ser essa existência, mas ao mesmo tempo a gente quer a liberdade
de ser o que cada uma é, né? E se trata de uma massa. Então esse paradigma está nas
nossas existências e é um pouco a saga que acontece nesse texto o tempo inteiro, é a
consciência da necessidade de afirmação, do que se é e ao mesmo tempo a dúvida porque
a história desse país nos coloca na parede no sentido de...ela nos coloca na parede o tempo
todo. Então, num certo senso de um país que é racista como o Brasil e que tem um
repertório de misoginia muito grande, prum certo senso todos esses discursos que as
militâncias produzem eles são resposta a uma violência na sociedade da política brasileira,
é uma resposta, mas isso não quer dizer que todas nós temos nossas certezas o tempo
inteiro. Essas certezas elas vem como um modo de resistência ao que nos viola, mas a gente
tem as nossas questões que são extremamente profundas e paradigmáticas e eu acho que
é por isso que essa saga dessa narrativa ela é meio assim, é a tentativa de um equilíbrio
entre ser... entre representação e existência. Porque a ideia da representatividade
popularizada na mídia agora vem muito num discurso superficial, fácil, oco, de que as
pessoas todas, qualquer mulher negra representa qualquer outra mulher negra. E não se
trata disso a ideia de representatividade, inclusive agora tem que ser, é mais saudável que
ela seja entendida como luta por existência. Então esse texto fica o tempo inteiro nessa
tentativa de mover nessas relações de representar e de ser ao mesmo tempo, né? E de
existir, sabe?
236

Sofia: Sim...

Grace: Esse corpo ele representa, mas ele é, ele existe nas suas dimensões mais singulares.
Né? Então, essa, ele vaga entre essas duas coisas, ele está se movendo em relação a essas
duas coisas o tempo inteiro.

Sofia: Interessante o uso da palavra “Vaga”. No sentido de vagar e eu nunca tinha pensado
nesses dois sentidos que o título pode ter. O de vagar a carne, no sentido de vagar pelo
corpo, passear. E no sentido de vaga, uma carne vaga, qualquer. Esse outro sentido do
vago. Muito interessante, nunca tinha pensado sobre isso, sobre esses dois sentidos que
você trás do título. No começo da entrevista que eu falei que achava triste o fim, é meio
sobre isso que você trouxe agora, assim, porque uma coisa que me bate muito e claro que
sou uma mulher branca como uma espectadora que tem uma outra vivência, mas ainda
assim a gente tem empatia e consegue tentar buscar compreender...Enfim, entender um
pouco do outro mesmo não vivendo. Que é quando o ser, a voz se entende como corpo
vem o silêncio. E pra mim fica muito forte essa ideia do silenciamento, quando a voz
finalmente se entende naquele corpo negro, então vem o silêncio. Que é um silenciamento
histórico, que é, enfim, um silenciamento cotidiano, que é um silenciamento dessas
existências e desses corpos que não são ouvidos. Por isso que eu falei que acho trágico,
porque reafirma uma realidade cruel que é essa mesma.
Grace: É... É. A gente tem vários exemplos na vida, talvez esse caso mais emblemático da
Marielle. Eu lembro o dia que a gente...Logo após o assassinato dela que teve uma marcha
na rua em vários lugares, nesse dia eu tava em Belo Horizonte, porque eu moro hoje em São
Paulo, e eu fiquei muito marcada por aquilo. Eu já tinha feito Vaga Carne, mas eu fiquei muito
marcada com aquilo porque, o fato das pessoas, as pessoas se encontravam, e quando
éramos mulheres, a gente se via, mulheres negras, tinham uns abraços tão silenciosos, tão
silenciosos. Um abraço tão sem palavra. Porque é um pouco isso, sabe? É muito essa
repetição de alguém que rala pra caramba pra se construir e chegar em determinados
lugares de poder. E colecionar suas palavras e ter uma importância de mobilização, isso é
ceifado, assim... Numa peça que fala de voz, né? Eu acho que faz sentido também essa
questão. Ela começa num embate tão interno, tão íntimo com o corpo e depois quem
silencia é algo maior ali...Ela é cortada. Ela é interrompida.

Sofia: é... Mas, no filme, também, eu achei genial que vocês colocaram nos créditos
discursos de mulheres. E tem o discurso da Marielle, tem o discurso da Lélia Gonzales, da
Dilma.

Grace: Tem, tem, exatamente.


237

Sofia: E acaba contradizendo...Criando um contraponto com o próprio fim do filme. Mas,


pra mim é uma coisa que bate muito forte o fim da peça.

Grace: Sim...

Sofia: E é difícil falar sobre o assunto, acho que é por isso que eu estava sedenta por ter uma
entrevista com você. É difícil pra mim falar sobre o assunto apesar de ser algo que eu
entenda e sinta e queira falar sobre...Então é bom ouvir de você.

Grace: Que mais?

Sofia: Bom, acho que da peça você falou bastante, acho que consegui falar também coisas
que eu pensava e queria ouvir de você. Mas, essa questão da representação, né. Da
representatividade e da representação e isso talvez nem seja uma pergunta para o
mestrado, mas uma pergunta de dramaturga, mesmo. Porque você tornou-se um nome
para a dramaturgia brasileira contemporânea e de peso, e também pra atuação e para a
direção. Ao mesmo tempo você tava falando você estava falando agora da construção de
uma existência, sabe? Você é você e tem a sua história. Como é isso pra você, não sei se fui
clara?

Grace: Não sei, eu ouço muito...Eu presto muita atenção em coisas...Eu não levo muito a
sério, e levo. Mas eu fico muito atenta pra não levar a sério. Porque é isso, você começa a
escrever as pessoas começam a te nomear, isso é muito comum com as mulheres inclusive
que começam a escrever. Tem um fluxo de produção que você vai tendo que você tem que
tomar cuidado também com uma exploração que as pessoas vão querendo ter sobre você,
sobre o que você pode ser, né? As pessoas né, correm atrás de um novo Nelson Rodrigues
no Brasil há mil anos, né? Assim, o grande gênio da nova dramaturgia, as pessoas correm
atras dessas coisas há mil anos, isso faz parte de um universo que explora mesmo, que fica
tentando explorar o que a gente é. Então eu escolho sobre o que prestar atenção e sobre
o que não prestar. Eu sou muito chata pra me ligar ao que é necessário, ao que eu acho que
é necessário, eu raramente me ligo...Se eu fizer isso é porque eu quero um dinheiro, eu
quero aquelas coisas bobas da vida, de sobrevivência, mas normalmente eu me ligo as
coisas por uma necessidade, sabe? Então pra mim é isso, Por Elise teve início, eu tava a fim
de fazer alguma coisa porque eu queria ver em cena elementos da vida, da minha vida, não
da MINHA vida, mas eu queria que os meus, as minhas comunidades fossem ao teatro, e eu
sempre rechacei a ideia do teatro como alguma coisa pra poucos, como alguma coisa, sabe?
O universo da minha vida é muito poético, eu sou de Belo Horizonte, minha família é de
Pirapora, então ela se criou ao redor do rio, com muitas histórias, muita arte, né? A arte tá
na vida das pessoas, a arte é uma língua, e então eu nunca entendi não ter elementos do
nosso cotidiano brasileiro, o que vem a ser isso, na cena, então por exemplo, eu fui muito
238

movida por isso. O Amores Surdos eu fui movida por alguma intuição de questões familiares,
eu fui movida o Congresso na época, fui muito movida por outras questões, enfim, cada um
foi uma coisa, eu fico tentando não me dispersar, o nosso mundo ele cria um moente de
armadilhas pra dispersão, então facilmente a gente se desloca da necessidade mesmo, das
coisas. Tá tudo aí posto pra gente né, fugir de uma voz sincera, fugir da voz do nosso
coração, das reflexões profundas, da análise, de filosofar a vida, tudo é muito feito pra
gente facilmente, sei lá, começar a acreditar em umas certas ilusões aí...Então, eu fico
ouvindo muito isso, eu não levo muito a sério. Por exemplo, as vezes eu faço trabalhos que
eu não gosto e eu ouço de pessoas que gostam, mas eu não caio assim na ilusão, eu sei que
eu tenho propósitos, sabe? Meu propósito para além de ser uma grande dramaturga é um
propósito que é falar do que me parece necessário. Necessário pra mim, pros meus, pra
sociedade, eu tenho esse propósito, eu posso fazer um trabalho que não atinja essa utopia,
mas o meu movimento é sempre em relação a isso, sabe? E fazer teatro já é em si uma
resistência ao conformismo, então, eu não me desligo dessa ideia, sabe? De que a gente
cria, de que a gente, por exemplo, a gente vai viver até o fim das vidas a gente vai ter essas
questões, a gente tem marcadores, nós somos mulheres, assim, a gente sabe de
determinadas coisas que nos atravessam e que a gente sabe que é uma sociedade dotada
de muitas injustiças, sei lá, a gente sabe também que é preciso ser feliz, então, essas
pequenas coisas que eu vou juntando na vida eu tento não me distanciar delas, então eu
acho que a produção que eu faço é muito legal, eu sou muito feliz com ela. Mas eu sou feliz
sobretudo porque eu até hoje, eu tenho quarenta anos agora, até hoje eu criei um campo
de liberdade. Então, essa sensação de sentar e escrever algo, tipo na minha...ter uma ideia
escrever alguma coisa porque algo me afetou, essa sensação, essa sensação eu acho que é
algo que todo mundo devia ter na vida. Essa sensação da invenção, da criação, sabe? Então
eu não me dissocio disso nunca. Não me interessa ser uma grande dramaturga se não for
pra poder viver essa liberdade. É ouvir, ouvir alguém uma história me tocar, e eu correr atras
de entender o quê que é criar uma narrativa pra isso num contexto de agora, tão difícil. E
ouvir esse contexto de agora, né? Ouvir o coração do tempo. Não me dissocio disso, de
ouvir o coração do tempo. Ouvir o que que pulsa agora. Não no sentido do agora mercado,
mas no sentido do agora, dos sintomas do tempo, do que que pode fazer a gente refletir
cada vez mais profundo sobre porque a gente tá aqui, como a gente tá aqui, e como pode
ser melhor estar aqui com outras pessoas. Aí eu acho que é isso. Na vida eu acho que a
gente tem que ir colecionando umas coisas que são caras pra gente e não ir se esquecendo
delas, o resto é prática, talento, prática, desejo, né? Acho que o resto é meio isso.

Sofia: Muito bom ouvir isso. Achei até engraçado você falar que o Brasil tá procurando o
próximo Nelson Rodrigues porque, pra que a gente quer encontrar alguém pra colocar num
pedestal e falar que é o nome de uma geração.
239

Grace: É, eu me lembro quando comecei...logo em seguida eu fiz Amores, então foram dois
textos muito revigorantes para umas gerações, encenações, e uma prática de grupo que
certamente é mais profunda, cria repertório e tal, e em certo momento era angustiante em
certo sentido, toda entrevista que eu dava era uma tentativa de buscar uma genialidade a
fórceps que eu...eu sou extremamente satisfeita com o talento que eu tenho, sabe? Mas se
eu tivesse me detido nisso, na demanda que um certo teatro de grupo contemporâneo
tinha eu talvez teria virado uma pessoa que atua menos, e eu adoro atuar. E que passasse
por outras práticas e experiencias que eu passei já atuando, sabe? Não sie, foi uma forma
de criar um lugar de liberdade. Pra mim, quando eu atuo, eu também penso
dramaturgicamente, né? Quando eu dirijo eu penso dramaturgicamente. Dramaturgia pra
mim é o que faz mover uma peça teatral. Não são as falas, mas é a dramaturgia, é a
articulação do sentido das coisas. Como articula o sentido. Como abre sentido. Como move
sentidos. Pra mim tá ligado a isso.

Sofia: Sim, faz total sentido com tudo o que você falou até agora. De descolonizar-se. De
não hierarquizar. De ser mais sincera consigo também. Um ato de sinceridade consigo. Não
se deixar levar na onda do que querem que você seja, e ser realmente o que você realmente
deseja.

Grace: E eu acho que a gente, pensando. Como mulheres, a gente tem que ter espaço pra
criação. A gente tem que ter. Porque não tem como você desenvolver dramaturgicamente
se você não tem espaço. Se você não consegue experimentar esses trabalhos. Olha na
história, as pessoas que escreveram texto, que tem folego temporal. Cada um no seu
modo, mas tiveram modos de experimentar e reexperimentar seus textos, de reescrever,
sabe?

Sofia: Sim. Ai, Grace, eu acho que, bom, a gente ficou uma hora e meia quase. Eu não quero
te prender muito mais. Mas pra mim era mais te ouvir do que obter respostas pra perguntas
que eu tenho pra escrever. Então eu me sinto satisfeita, contemplada, e muito feliz de ter
te conhecido pessoalmente.

Grace: Ótimo, ótimo, maravilha. Digo o mesmo. Espero que a gente se encontre em breve.

Sofia: Tomara. Obriga, Grace, por ter disponibilizado seu tempo.

Grace: Que isso, obrigada, um beijo.

Sofia: Um beijo.

Grace: Tchau. Tchau.


240

Sofia: Tchau!

(Fim da videochamada)
241

ANEXO II

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO

I. Michelle Ferreira
Entrevista realizada no dia 01 de fevereiro de 2020
242
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II. Ave Terrena


Entrevista realizada no dia 21 de fevereiro de 2020
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247

III. Grace Passô


Entrevista realizada no dia 10 de dezembro de 2020
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