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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS
PROFESSOR: LEONARDO LENNERTZ MARCOTULIO

LUCIANO CORREA DE MORAES JUNIOR

(DRE: 115089298)

UM ESTUDO PALEOGRÁFICO DE TRÊS FAC-SIMILES DIFERENTES


DA CANTIGA “A DONA QUE HOME”

Rio de Janeiro

29 DE NOVEMBRO DE 2017
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LUCIANO CORREA DE MORAES JUNIOR

(DRE: 115089298)

UM ESTUDO PALEOGRÁFICO DE TRÊS FAC-SIMILES


DIFERENTES DE UMA MESMA CANTIGA

Trabalho apresentado ao professor Leonardo


Lennertz Marcotulio como parte das
exigências para a conclusão do curso de
História da Língua.

Rio de Janeiro

29 DE NOVEMBRO DE 2017
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01) INTRODUÇÃO

No estudo sobre a história de uma língua, ter contato com textos produzidos em
outras épocas é essencial, pois isso permite que se tenha acesso ao estágio de uma
determinada língua em um período em questão. No caso do português, para que se tenha
acesso ao seu estágio de desenvolvimento durante o período medieval, é fundamental que se
tenha contato com as cantigas galego-portuguesas, textos de origem oral e que eram
marcantes na sociedade da região da Península Ibérica em que o português se desenvolveu
inicialmente como língua. Compiladas em diferentes cancioneiros e em diferentes momentos,
estas cantigas chegaram até os dias de hoje por meio de três fontes principais: o Cancioneiro
da Ajuda (compilado no final do século XIII), o Cancioneiro da Biblioteca Nacional
(compilado no início do século XVI) e o Cancioneiro da Vaticana (compilado entre o final do
século XV e o início do XVI). No trabalho abaixo, com o objetivo de se comparar a forma de
fixação da língua nestes diferentes cancioneiros, serão apresentados aspectos que se
contrastam entre os três através da cantiga “A dona que home” de Paio Gomes Charinho.
Objetiva-se, com esta comparação, a formação de uma boa base sobre o estudo do português
medieval. Para isto, em um primeiro momento, serão realizadas edições diplomáticas e
semidiplomáticas de cada um dos testemunhos analisados para, em um segundo momento, se
analisarem as questões paleográficas e em um terceiro momento as questões fonético-
fonológicas.

02) EDIÇÕES DIPLOMÁTICAS E SEMIDIPLOMÁTICAS DOS CANCIONEIROS

Para iniciar os estudos sobre os diferentes testemunhos do cancioneiro, serão


produzidas duas edições de cada testemunho: uma diplomática, que terá como objetivo ser o
mais fiel possível ao original; e uma edição semidiplomática, que será destinada a alunos que
estudem a lírica medieval galego-portuguesa. Com estas edições, têm-se a pretensão de expor
de maneira mais clara a diferença existente entre os três testemunhos. Com o objetivo de
aclarar a leitura de cada uma das edições, as mesmas serão introduzidas por uma norma de
edição que organizará os procedimentos realizados em cada uma.
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02.1) EDIÇÕES DIPLOMÁTICAS


02.1.1) NORMAS DE EDIÇÃO : CANCIONEIRO DA AJUDA

Tipo de texto: cantiga de amor


Autor: Paio Gomes Charinho
Procedência: Códice do Cancioneiro da Ajuda, A 246 (século XIII)
Fac-símile disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&pv=sim >
Tipo de edição: diplomática
Edição realizada por: Luciano Correa de Moraes Junior
01) A edição diplomática apresentada é de natureza conservadora e teve como objetivo ser o
mais fiel possível ao fac-símile presente no cancioneiro mencionado;
02) Respeitou-se a disposição de todos os elementos textuais presentes no manuscrito, como
a quebra de linhas e o espaçamento entre as linhas — este último procedimento é a
explicação para um maior espaçamento entre as linhas dos versos iniciais;
03) Foram mantidas: a) as abreviaturas; b) as segmentações e as junções de palavras; c) as
maiúsculas e minúsculas; d) a pontuação inicial; e e) a alografia;
04) Preservaram-se os recursos de elisão presentes no fac-símile;
05) As letras capitulares que estão omitidas no fac-símile e que se apresentam apenas por
meio de letras sobrescritas foram transcritas de maneira mais fiel possível, mas, por
estarem presentes no testemunho por meio de um rascunho, não são consideradas partes
integrantes dos textos. Para indicar esta omissão, estas letras foram transcritas entre
colchetes;
06) Como já mencionado, não se realizou nenhum tipo de atualização de grafia, e, devido à
precariedade de fontes disponíveis no editor de texto utilizado neste trabalho (Microsoft
Word), procurou-se, ao máximo, o uso de fontes que mais se assemelhassem aos
alógrafos que mais geraram dificuldade na transcrição. São eles:

a) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ծ e que é alógrafo de <d>


b) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ꝛ e que é alógrafo de <r>
c) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ſ e que é alógrafo de <s>

07) A nasalidade de natureza vocálica presente na palavra foi transcrita como um til
<uã>;
08) Os recursos abreviativos foram adaptados da seguinte maneira:
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09) o traço abreviativo presente em palavras como , indicando nasalidade, foi


transcrito como um traço sobrescrito à vogal: <ſēnor>;

10) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como: <ϼ>

11) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como: <q’ria>
12) o recurso abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “9”:
<u9>;

02.1.1.1) CANCIONEIRO DA AJUDA

Edição diplomática do manuscrito procedente do Códice do Cancioneiro da Ajuda:

{a}
Dona que

ome ſennoꝛ

ծeuia con ծereito chamar per


boa fe. meus amigos direi u9
eu qual e. uã ծona que eu ui
noutro dia. e non llou ſeẏ
mais ծaqueſto dizer. mais que
na uiſſe poծeſſen tenծer. toծo ſeu
ben ſennoꝛ la chamaria
{c}
a ſēnoꝛ e ծe muito ben e uia
eu poꝛ meu mal ſeẏo ϼ boa fe.
e ծe moꝛrer poꝛē gran ծereit e.
ca ben ſoubeu quāto menծ auerria
moꝛrer aſſi comeu moẏꝛe perder
meus amigos ocorp e nō poder.
ueer ela quanծo ueer querria.
{e}
toծaqueſto manteu entendia
que a uiſſe mas tant oy falar
no ſeu ben que me non ſoube guaծar
nen cuiծaua que tan ben pareçia
que log eu foſſe poꝛ ela moꝛrer
mais u eu ui o ſeu bon pareçer
ui amigos que mia moꝛte ſeria
{e}
poꝛeſto que ben conſellaria
quantos oẏꝛen no ſeu bē falar
nona ueian epoծen ſe guarծar.
melloꝛ ca menծeu guardei q’ moꝛria
{e}
dixe mal mais fez me d’s auer
tal uentura quanծoa fuẏ ueer
que nunca dixo que dizer q’ria.
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02.1.2) NORMAS DE EDIÇÃO : CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA


NACIONAL

Tipo de texto: cantiga de amor


Autor: Paio Gomes Charinho
Procedência: Códice do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, B 811 (século XVI)
Fac-símile disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&pv=sim >
Tipo de edição: diplomática
Edição realizada por: Luciano Correa de Moraes Junior
01) A edição diplomática apresentada é de natureza conservadora e teve como objetivo ser o
mais fiel possível ao fac-símile presente no cancioneiro mencionado;
02) Respeitou-se a disposição de todos os elementos textuais presentes no manuscrito, como
a quebra de linhas e o espaçamento entre as linhas — bem como a separação dos versos
em estrofes;
03) As rasuras foram mantidas da forma mais fiel possível, mas deu-se preferência por um
duplo tachado, em vez de um único, para reforçar a ideia de que se trata de rasuras.
04) Foram mantidas: a) as abreviaturas; b) as segmentações e junções de palavras; c) as
maiúsculas e minúsculas; d) a pontuação inicial; e e) a alografia;
05) Preservaram-se os recursos de elisão presentes no fac-símile;
06) Como já mencionado, não se realizou nenhum tipo de atualização de grafia, e, devido à
precariedade de fontes disponíveis no editor de texto utilizado neste trabalho (Microsoft
Word) procurou-se, ao máximo, o uso de fontes que mais se assemelhassem aos
alógrafos que mais geraram dificuldade na transcrição. São eles:

a) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ծ e que é alógrafo de <d>


b) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ꝛ e que é alógrafo de <r>

c) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ſ e que é alógrafo de <s>

07) Os recursos abreviativos foram adaptados da seguinte maneira:

a) o traço abreviativo presente em palavras como , indicando nasalidade, foi


transcrito como um traço sobrescrito: <bē>;

b) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como ϼ: <ϼծeꝛ>;


c) o traço abreviativo presente na preposição “per” ( ) foi transcrito como <pr>;
d) o recurso abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “9”:
<me9>;
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e) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “q’”:


<q’uria>;

f) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “d'”:


< d'eite >;

02.1.2.1) CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL

Edição diplomática do manuscrito procedente do Códice do Cancioneiro da Biblioteca


Nacional:

ծona que home ſenhoꝛ ծeuia


A con ծereẏta chamar peꝛ boa fe
me9 amig9 ծireiu9 eu quen e
hunha ծona q’ eu ui noutro ծia
en on lhouſei mays ծatanto ծizeꝛ
mais quena uiſſe poծeſſentenծeꝛ
toծo ſeu ben ſenhor a chamaria

Ca ſenhor e ծe muyto bē e uya


polo meu mal ſſeyo ϼo boa fe

eծe moireꝛ pr ela d'eite


ca bē ſoubeu quātomendaueiria
moireꝛ aſſy comeu moẏre ϼծeꝛ
poծeꝛ
me9 amig9 o coꝛpe nō ϼodծeꝛϼծeꝛ
ueeꝛ ela q’ eu ueer q’ꝛria

E toծaq’ſto māteu entenծia


q’ a uiſſe maẏs tāto oẏ falar
ծeſſeu ben q’ me nō ſoubi guaꝛdar
nē eꝛ cuyծey q’ tā bē pareçia
q’ logueu foſſe pr ela moireꝛ
mays quādeu ui o ſeu bō pareceꝛ
ui amig9 q’ mha moꝛte ſeria
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02.1.3) NORMAS DE EDIÇÃO: CANCIONEIRO DA VATICANA

Tipo de texto: cantiga de amor


Autor: Paio Gomes Charinho
Procedência: Códice do Cancioneiro da Vaticana, V 395 (século XV-XVI)
Fac-símile disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&pv=sim >
Tipo de edição: diplomática
Edição realizada por: Luciano Correa de Moraes Junior
1) A edição diplomática apresentada é de natureza conservadora e teve como objetivo ser o
mais fiel possível ao fac-símile presente no cancioneiro mencionado;
2) Respeitou-se a disposição de todos os elementos textuais presentes no manuscrito, como a
quebra de linhas e o espaçamento entre as linhas — bem como a separação dos versos em
estrofes;
3) As rasuras foram mantidas da forma mais fiel possível, mas deu-se preferência por um
duplo tachado, em vez de um único, para reforçar a ideia de que se tratam de rasuras.
4) Foram mantidas: a) as abreviaturas; b) as segmentações e junções de palavras; c) as
maiúsculas e minúsculas; d) a pontuação inicial; e e) a alografia;
5) Preservaram-se os recursos de elisão presentes no fac-símile;
6) Como já mencionado, não se realizou nenhum tipo de atualização de grafia, e, devido à
precariedade de fontes disponíveis no editor de texto utilizado neste trabalho (Microsoft
Word), procurou-se, ao máximo, o uso de fontes que mais se assemelhassem aos alógrafos
que mais geraram dificuldade na transcrição:

a) o alógrafo , representado nesta edição diplomática como ß e que é alógrafo de


<ss>;
b) Os recursos abreviativos foram adaptados da seguinte maneira:

g) o traço abreviativo presente em palavras como , indicando nasalidade, foi


transcrito como um traço diagonal sobre a palavra: <bé>;

h) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como ϼ: <ϼծeꝛ>;

i) o traço abreviativo presente na preposição “per” ( ) foi transcrito como <pr>;

j) o recurso abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “9”:


<me9>;
9

k) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “q’’:


“q’rria”;

l) o traço abreviativo presente em palavras como foi transcrito como “de'”: <
d'eite >;

02.1.3.1) CANCIONEIRO DA VATICANA

Edição diplomática do manuscrito procedente do Códice do Cancioneiro da Vaticana:

A ho
dona que mi senhor deuia
con dereyta chamar per boa fe
me9 amig9 direi u9 eu quen e
hunha dona q’ eu ui noutro dia
enon lhousey mays datanto dizer
mays quena uiße podeßentender
todo seu ben senhora chamaria

C a senhor e de muyto bé e uya


polo meu mal ßeyoϼ boa fé
ede morrer pr ela de'ite
ca ben soubén quantomendauerria
morrer aßy comeu moyre ϼder
me9 amig9 ocorpe nó poder
ueer ela q’ eu ueer q’rria

E todaq’sto máteu entendia


q’ a uiße mays táto oy falar
de ßeu ben q’rria nó soubi guardar
nen eu cuydey que tá ben pareçia
parecia
que logueu foße pr ela morrer
mays quádeu ui oseu bó parecer
ui amig9 q’ mha morte seria
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02.2) EDIÇÕES SEMIDIPLOMÁTICAS

02.2.1) NORMAS DE EDIÇÃO : CANCIONEIRO DA AJUDA

Tipo de texto: cantiga de amor


Autor: Paio Gomes Charinho
Procedência: Códice do Cancioneiro da Ajuda, A 246 (século XIII)
Fac-símile disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&pv=sim >
Tipo de edição: semidiplomática
Edição realizada por: Luciano Correa de Moraes Junior
01) Esta edição semidiplomática se destina a leitores que pesquisem, trabalhem ou estudem
com a lírica medieval através das classes de Poesia Portuguesa oferecidas pelo curso de
graduação da UFRJ;
02) No que se refere à transcrição, com relação à edição diplomática que também foi
realizada para este trabalho realizou-se:
a) A unificação dos alógrafos de <d>, <r> e <s>;
b) A substituição do grafema <u> por <v> quando representava a fricativa labiodental
sonora /v/;
c) A substituição do grafema <i> por <j> quando representava a africada/fricativa palatal
sonora /(d)ʒ/;
d) A eliminação do grafema <y> e de sua variante “ẏ” e transcrição como <i> na
representação de vogais e semivogais;
e) A eliminação do grafema <h> na representação do fonema /i/ e consequente
substituição por <i>
f) Atualização na representação da nasal palatal, a grafia <nn> foi substituída por <nh>;
g) Atualização na representação da lateral palatal, a grafia <ll> foi substituída por <lh>;
03) As abreviaturas no texto foram desenvolvidas e optou-se por sinalizar as sequências
desenvolvidas por meio do uso do itálico; as abreviaturas nasais, no entanto, não foram
desenvolvidas;
04) Inseriu-se um apóstrofe (’) nos casos de elisão vocálica;
05) Inseriu-se um hífen (-) em contextos nos quais o pronome se encontrava em posição
enclítica;
06) Normatizou-se, de acordo com o padrão ortográfico do português moderno: a) a
segmentação e a junção de palavras; b) a acentuação; c) o uso de maiúsculas e minúsculas
e d) a pontuação;
07) O grafema <h>foi inserido em palavras cujo étimo latino o apresentava. Para mostrar que
este grafema não fazia parte do original, optou-se pelo representá-lo sublinhado;
08) As letras omitidas foram restituídas e destacadas entre colchetes. Uma observação a se
fazer é que se deu preferência por tratar as letras sobrescritas presentes no fac-símile, e que
apareciam no lugar das letras capitulares, como um caso de omissão;
09) Reorganizou-se a primeira estrofe com base na estruturação formal dos fac-símiles da
mesma cantiga presentes nos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana;
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10) Inseriu-se quebra de linha entre as estrofes, que foram delimitadas através da presença
das letras capitulares omitidas no testemunho original.

02.2.2.1) CANCIONEIRO DA AJUDA

Edição semidiplomática do manuscrito procedente do Códice do Cancioneiro da


Ajuda:

[A] dona que home senhor devia


con dereito chamar, per boa fé,
meus amigos, direi-vos eu qual é:
uã dona que eu vi noutro di,a
e non lh’ ousei mais daquesto dizer;
mais que na viss’ e podess’ entender
todo seu ben, senhor la chamaria

[C]a sēnor é de muito ben e vi-a


eu por meu mal sei-o por boa fé;
e de morrer por ē gran dereit’ é,
ca ben soub’ eu quāto m’ end’ haverria:
morrer assi com’ eu moir’ e perder,
meus amigos, o corp’ e nō poder
veer ela quando veer queria.

[E] tod’ aquesto m’ ant’ eu entendia


que a visse; mas tant’ oí falar
no seu ben, que me non soube gua[r]dar;
nen cuidava que tan ben pareçia
que log’ eu fosse por ela morrer;
mais, u eu ui o ſeu bon parecer,
vi, amigos, que mia morte seria

[É] por esto que ben conselharia


quantos oíren no seu bē falar:
non a vejan e poden se guardar
melhor ca m’ end’ eu guardei; que morria

[E] dixe mal: mais fez-me Deus haver


tal ventura quando a fui ver
que nunca dix’ o que dizer querria.
12

02.2.2) NORMAS DE EDIÇÃO : CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA


NACIONAL

Tipo de texto: cantiga de amor


Autor: Paio Gomes Charinho
Procedência: Códice do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, B 811 (século XVI)
Fac-símile disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&pv=sim >
Tipo de edição: semidiplomática
Edição realizada por: Luciano Correa de Moraes Junior

01) Esta edição semidiplomática se destina a leitores que pesquisem, trabalhem ou estudem
com a lírica medieval através das classes de Poesia Portuguesa oferecidas pelo curso de
graduação da UFRJ;
02) No que se refere à transcrição, com relação à edição diplomática que também foi
realizada para este trabalho realizou-se:
a) A unificação dos alógrafos de <r> e <s>;
b) A substituição do alógrafo “ծ” pelo alógrafo “d”, por se assemelhar mais ao grafema
<d>;
c) A substituição do grafema <u> por <v> quando representava a fricativa labiodental
sonora /v/;
d) A eliminação do grafema <y> e de sua variante “ẏ” e transcrição como <i> na
representação de vogais e semivogais;
e) A eliminação do grafema <h> na representação do fonema /i/ e consequente
substituição por <i>;
f) A eliminação do grafema <u> das elisões em que figurava como um apoio à junção de
uma consoante oclusiva velar com uma vogal palatal, como em “logueu”;
03) As abreviaturas no texto foram desenvolvidas e optou-se por sinalizar as sequências
desenvolvidas por meio do uso do itálico; as únicas abreviaturas não desenvolvidas são as
que indicam nasalidade;
04) Inseriu-se um apóstrofe (’) nos casos de elisão vocálica;
05) Inseriu-se um hífen (-) em contextos nos quais o pronome se encontrava em posição
enclítica;
06) Normatizou-se, de acordo com o padrão ortográfico do português moderno: a) a
segmentação e a junção de palavras; b) a acentuação; c) o uso de maiúsculas e
minúsculas, e d) a pontuação;
13

07) Eliminaram-se os casos de rasura;


08) O grafema <h>foi inserido em palavras cujo étimo latino o apresentava. Para mostrar que
este grafema não fazia parte do original, optou-se pelo representá-lo sublinhado;
09) Deu-se preferência por mudar a grafia de “hunha” por “uã” com base na forma com que
esta palavra se apresenta no Cancioneiro da Ajuda;
10) Optou-se pelo não uso das letras capitulares;

02.2.2.1) CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA NACIONAL

Edição semidiplomática do manuscrito procedente do Códice do Cancioneiro da


Biblioteca Nacional:

A dona que home senhor devia


con dereita chamar per boa fé,
meus amigos, direi-vos eu quen é:
uã dona que eu vi noutro dia,
e non lh’ ousei mais da tanto dizer;
mais que na viss’ e podess’ entender
todo seu ben, senhor a chamaria.

Ca senhor é de muito; ben e vi-a


polo meu mal, sei-o per boa fé;
e de moirer por ela dereit’ é,
ca bē soub’ eu quāto m’end’ haverria:
moirer assi com’ eu moir’ e perder,
meus amigos, o corp’, e nō poder
veer ela que eu ver querria.

E tod’ aquesto m’ āt’ eu entendia


que a visse; mais tāto oí falar
de seu ben que me nō soubi guardar;
nē er cuidei que tā bē pareçia;
que log’ eu fosse por ela moirer
mais, quād’ eu vi o seu bō pareçer,
vi, amigos, que mia morte seria.
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02.2.3) NORMAS DE EDIÇÃO : CANCIONEIRO DA VATICANA

Tipo de texto: cantiga de amor


Autor: Paio Gomes Charinho
Procedência: Códice do Cancioneiro da Vaticana, V 395 (século XV-XVI)
Fac-símile disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&pv=sim >
Tipo de edição: semidiplomática
Edição realizada por: Luciano Correa de Moraes Junior
01) Esta edição semidiplomática se destina a leitores que pesquisem, trabalhem ou estudem
com a lírica medieval através das classes de Poesia Portuguesa oferecidas pelo curso de
graduação da UFRJ;
02) No que se refere à transcrição, com relação à edição diplomática que também foi
realizada para este trabalho realizou-se:
a) A substituição do alógrafo “ß” por <ss>;
b) A substituição do grafema <u> por <v> quando representava a fricativa labiodental
sonora /v/;
c) A eliminação do grafema <y> e substituição pelo grafema <i> na representação de
vogais e semivogais;
d) A eliminação do grafema <u> das elisões em que figurava como um apoio à junção de
uma consoante oclusiva velar com uma vogal palatal, como em “logueu”;
03) As abreviaturas no texto foram desenvolvidas e optou-se por sinalizar as sequências
desenvolvidas por meio do uso do itálico; as únicas abreviaturas não desenvolvidas são as
que indicam nasalidade;
04) A abreviatura de nasalidade foi trocada de (ʹ) para (-) devido a uma opção por unificar
este traço com o dos outros cancioneiros;
05) Inseriu-se um apóstrofe (’) nos casos de elisão vocálica;
06) Inseriu-se um hífen (-) em contextos nos quais o pronome se encontrava em posição
enclítica;
07) Normatizou-se, de acordo com o padrão ortográfico do português moderno: a) a
segmentação e a junção de palavras; b) a acentuação; c) o uso de maiúsculas e minúsculas
e d) pontuação;
08) Eliminaram-se os casos de rasura;
09) O grafema <h>foi inserido em palavras cujo étimo latino o apresentava. Para mostrar que
este grafema não fazia parte do original, optou-se pelo representá-lo sublinhado;
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10) Deu-se preferência por mudar a grafia de “hunha” por “uã” devido à forma com que esta
palavra se apresenta no Cancioneiro da Ajuda;
11) Optou-se pelo não uso das letras capitulares;

02.2.3.1) CANCIONEIRO DA VATICANA

Edição diplomática do manuscrito procedente do Códice do Cancioneiro da Vaticana:

A dona que homi senhor devia


con dereita chamar, per boa fé,
meus amigos, direi-vos eu quen é:
uã dona que eu vi noutro dia,
e non lh’ ousei mais da tanto dizer;
mais que na viss’ e podess’ entender
todo seu ben, senhor a chamaria

Ca senhor e de muito bē; e uya


polo meu mal, sei-o, per boa fé;
e de morrer por ela dereit’ e,
ca ben soub’ en quanto m’end’ haverria:
morrer assi com’ eu moire perder,
meus amigos, o corp’, e nō poder
veer ela que eu ver querria.

E tod’ aquesto māteu entendia


que a visse; mais tāto oí falar
de seu ben, querria nō soubi guardar;
nen eu cuidei que tā ben pareçia
que log’ eu fosse por ela morrer;
mais quādeu vi o seu bō parecer,
vi, amigos, que mha morte seria.

3) COMENTÁRIO FILOLÓGICO-PALEOGRÁFICO CONTRASTIVO DOS TRÊS


TESTEMUNHOS

No procedimento de leitura dos três fac-símiles apresentados, bem como no


procedimento de leitura das respectivas edições diplomáticas, foi possível perceber que os
16

testemunhos apresentam diferentes procedimentos paleográficos em sua escritura. Abaixo,


serão apresentados exemplos destes procedimentos.

3.1) ESTRUTURAÇÃO DO TEXTO

O primeiro fator que chama a atenção de um leitor, até mesmo de um leitor leigo e
que não tenha conhecimentos sobre a área da filologia e da crítica textual, é que os três fac-
símiles apresentam estruturações textuais bem distintas, com o testemunho do Cancioneiro da
Ajuda sendo o que mais se diferencia dos demais. Primeiramente, é possível notar que este
testemunho apresenta sete versos a mais que os presentes no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional e da Vaticana.
No testemunho da cantiga de Paio Gomes Charinho presente no Cancioneiro da
Ajuda, também é possível notar uma segmentação bastante incomum dos versos que se
apresentam como sendo da primeira estrofe nos outros testemunhos. Há um espaçamento
maior entre os primeiros versos deste cancioneiro se comparado aos demais versos e isso se
deve a uma possível não finalização deste testemunho por parte do copista. Como se sabe, as
cantigas presentes neste e nos outros cancioneiros são de tradição oral e eram um fator
bastante marcante da cultura galego-portuguesa no período medieval. Como indicado pelo
próprio nome, as cantigas eram compostas para serem cantadas e, por isso, pode-se especular
que os espaços existentes entre os versos da primeira estrofe deste fac-símile seriam
preenchidos com as partituras desta cantiga como forma de se fixar para os futuros leitores
daquele cancioneiro não só o conteúdo textual daquela cantiga, como também sua
organização melódica.
Ainda com relação a este fac-símile, duas outras características o diferenciam dos
demais: a presença da pontuação e a ausência de letras capitulares no início de uma nova
estrofe. Com relação à pontuação, se pode perceber, na primeira estrofe, que sua função é
delimitar os versos presentes na cantiga, dado que, diferente dos demais testemunhos, ao
menos na primeira estrofe, este não apresenta o recurso de apresentar os versos ordenados um
abaixo do outro e sempre em linhas diferentes, ou seja, não apresenta a divisão padrão na
separação entre versos de cantigas e poemas dos dias de hoje. Entretanto, embora seja
possível perceber que a pontuação possui esta função na primeira estrofe, também se pode
perceber que os dois primeiros versos deste testemunho se apresentam sem esta pontuação ou
sem quaisquer outros recursos de separação, o que indica que se apresentam unidos. No
entanto, não se pode atestar o real motivo para isto ocorrer, dado que a ausência de separação
17

pode ser por erro do copista ou não. Na ausência de uma explicação segura sobre o motivo
desta ausência de pontuação, se dá preferência, neste trabalho, apenas por citar esta
característica do testemunho do Cancioneiro da Ajuda. Da pontuação presente nas outras
estrofes, comentar-se-á em um momento posterior.
Já com relação à ausência de letras capitulares, a explicação é mais simples. Em uma
análise mais detalhada do fac-símile em questão, bem como em uma análise mais detalhada
da edição diplomática para este testemunho realizada neste trabalho, se pode notar a presença
de letras sobrescritas no início do primeiro verso de cada estrofe. Um leitor mais atento
consegue perceber que estas letras são, respectivamente, “a”, “c”, “e”, “e” e “e”. A presença
de tais letras sobrescritas se deve ao fato de que, no ato de fixação de um texto em um suporte
gráfico, no período histórico em questão, havia a presença de mais de um escriba/copista na
realização de uma determinada cópia. Isso porque os escribas realizavam funções diferentes
na fixação de um texto e possuíam habilidades diferentes. Havia o escriba que transcrevia o
texto, assim como o escriba responsável por fazer as letras capitulares. Em uma busca por
textos medievais realizadas na internet, se pode perceber que estas letras capitulares eram
bem ornamentadas e desenhadas no período referente à Cancioneiro da Ajuda. Estas letras
eram um recurso artístico presente nos textos e, por isso, precisavam ser feitas com cuidado.
Não era qualquer escriba que sabia fazê-las e por isso havia essa divisão. No entanto, como já
mencionado com relação às partituras, tal testemunho não está finalizado e se pode formular
uma hipótese de que o copista responsável pela transcrição do texto, em seu ato de fixação,
transcreveu as letras inicias de cada estrofe sobrescritas como uma maneira de deixar
marcado, para o segundo copista, quais letras capitulares deveriam ser desenhadas ao início de
cada estrofe.
Com relação à estrutura textual dos testemunhos do Cancioneiro da Biblioteca
Nacional e do Cancioneiro da Vaticana, se pode dizer que são bastante semelhantes. Os dois
apresentam uma divisão dos versos em estrofes, com estrofes que se se organizam da mesma
maneira se comparados os testemunhos. Entretanto, para mostrar que os dois fac-símiles
apresentam diferenças, se pode dizer que as letras capitulares presentes no Cancioneiro da
Vaticana apresentam o mesmo tamanho ao longo da cantiga, enquanto que no testemunho da
Biblioteca Nacional, a letra capitular que inicia a cantiga é maior que as demais.
Ainda que a letras capitulares estejam ausentes no Cancioneiro da Ajuda, se pode
dizer que o espaço destinado a elas apresenta diferença de tamanho, o que indica que este
testemunho apresenta recurso semelhante ao do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de
apresentar a primeira letra capitular como a maior.
18

3.2) ALOGRAFIA

Terminada a explicação sobre a estruturação do texto, se pode destinar o


procedimento de análise das cantigas para uma outra questão presente nos testemunhos: a
alografia. Antes, no entanto, uma explicação sobre o significado do termo e do significado de
grafema se faz necessária.
Primeiramente, grafemas são os sinais que, de uma maneira geral, costumam ser
chamados de letras e que correspondem a menor unidade do sistema grafemático. Isso quer
dizer que os grafemas são importantes por serem a menor unidade distintiva e/ou significativa
da cadeia escrita (Rodríguez Guerra e Varela Barreiro, 2007, p. 475). Outra informação a se
considerar é que um grafema pode ser composto por uma letra ou por um grupo de letras (no
caso de dígrafos e geminadas), por uma letra acentuada ou por uma letra acompanhada por
um sinal auxiliar, como apontam os mesmos autores. No entanto, um grafema pode ser
realizado de mais de uma forma, e nos casos em que isso ocorre, têm-se um caso de alografia.
Na cantiga “A dona que home”, é possível perceber a presença da alografia em todos
os testemunhos. Um grafema que pode ser realizado de mais de uma maneira é o <s>, que nos
três testemunhos possui alógrafos, que, se comparados, se materializam de forma não
sistemática, isto é, sem um padrão que defina o uso de um ou de outro e isso pode ser notado
com a observação da escrita de uma mesma palavra nos três cancioneiros. No primeiro verso
do testemunho do Cancioneiro da Ajuda, é possível ver a palavra “senhor” sendo grafada

como “ſennoꝛ” ( ). No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, a mesma palavra surge

como “ſenhor” ( ), mantendo o “ſ”, mas sendo escrita com “nh” (mas disso, falar-se-á
depois). Enquanto que no Cancioneiro da Vaticana, a mesma palavra é escrita como “senhor”

( ). Nestes exemplos, nota-se que “s” (mais conhecido como “s” de dupla curva, “s”
redondo” ou “s” sigmático) e “ſ” (mais conhecido como “s longo”) são alógrafos de <s>.
Ainda com relação ao grafema <s>, em palavras que apresentam o duplo “s” (“ss”) é possível
perceber, no Cancioneiro da Vaticana, que este se materializa como “ß” (alógrafo que se
assemelha bastante a um dos grafemas do alfabeto alemão atual), em palavras como o verbo

“uiße” ( ) e em “poծeßentender” ( ). Em síntese, pode-se definir os


alógrafos de <s> da seguinte maneira: o Cancioneiro da Ajuda, apresenta “ſ” e “s”, assim
como o da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana apresenta “s” e “ß”.
19

Outro caso de alografia diz respeito ao grafema <d>, que nos testemunhos pode
variar entre um “d” reto e um “ծ” uncial. No Cancioneiro da Ajuda, se pode notar que o

alógrafo “ծ” uncial ocorre em palavras como “ծaquesto” ( ), “guarծar” ( ),

“ծereito” ( ), “poծeſſen” ( ), “ծona” ( ) e “toծo” ( ). Quanto ao

alógrafo “d”, pode-se notar que este aparece em palavras como “perder” ( ), “guardei”

( ), “dizer” ( ) e “dia” ( ). Ainda sobre a questão da alografia referente


ao grafema <d>, se pode observar que no Cancioneiro da Vaticana apenas a forma “ծ” ocorre

(“dia” ( ), “dia” ( )), enquanto que no testemunho da Biblioteca Nacional só é

possível ver a presença do alógrafo “d” (“dia” ( ), “entendia” ( )).


A alografia também se mostra presente com relação ao grafema <r>, que pode ser
materializado por meio do alógrafo “r”, de traço reto (também chamado de “r” martelo) e
como “ꝛ” (também chamado de “r” redondo). No Cancioneiro da Ajuda e no Cancioneiro da
Biblioteca Nacional, é possível ver a ocorrência dos dois alógrafos, enquanto que no
Cancioneiro da Vaticana apenas a forma “r” (de traço reto) ocorre. Para exemplificar, no

Cancioneiro da Ajuda, têm-se: “chamar” ( ) e “ſennoꝛ” ( ). No

Cancioneiro da Biblioteca Nacional, têm-se: “chamaria” ( ) e “ſenhoꝛ” ( ).

Por fim, no Cancioneiro da Vaticana , têm-se: “chamar” ( ) e “senhor” ( ).


O traço abreviativo de nasalidade também apresenta distinções se comparados os três
testemunhos. No Cancioneiro da Ajuda, este traço é representado por um traço horizontal
posicionado acima da palavra. É possível encontrar este traço abreviativo em palavras como

“quāto” ( ) e “ſēnor” ( ) e na junção de palavras formada pelas preposições “por”

e “em”: “poꝛē” ( ). No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, este traço abreviativo


também se materializa sempre como um traço horizontal. São exemplos: “quātomendaueiria”,

( ), “tāto” ( ) e “nō” ( ). Contudo, no Cancioneiro da

Vaticana, o traço abreviativo se assemelha bastante a um acento agudo: “nó” ( ) e

“máteu” ( ). Uma boa leitura da cantiga se faz necessária justamente para que não se
cometa o erro de se fazer uma má leitura destes traços abreviativos, porque, principalmente no
20

caso do último cancioneiro mencionado, as palavras “nó” e “tá”, poderiam ser interpretadas,
por um leitor do século XXI, como significando “enlaçamento de cordas”, devido a existência
da palavra “nó” e como “conjugação do verbo estar”, devido a forma atual “tá” proveniente
de “está”.
O grafema <i> também apresenta mais de uma forma de materialização quando os
três testemunhos são comparados. Sua forma pode variar entre um “i”, um “y” e um “ẏ”.
Antes de seguir com a exemplificação, é necessário dizer que há um pingo acima do alógrafo
“ẏ” devido à “assimilação" de traços do “i”, que apresenta um pingo e também representa um
som vocálico. No Cancioneiro da Ajuda, é possível encontrar três alógrafos de <i>, têm-se “i”

em palavras como: “direi” ( ), “ui” ( ), “aſſi” ( ), “mais” ( ) e “amigos”

( ). A forma “y” aparece em “oy” ( ) e a forma “ẏ” aparece em palavras como:

“llouſeẏ” ( ), “ſeẏo” ( ), “moẏre” ( ), “oẏꝛen” ( ). No Cancioneiro


da Biblioteca Nacional, algumas palavras que aparecem grafadas no Cancioneiro da Ajuda

com “i”, aparecem com “y”. É o caso de “aſſy” ( ) e “mays” ( ). Já o alógrafo “i”,

neste testemunho, pode ser visto em: “direiu9” ( ), “queria” ( ) e “ſoubi”

( ); o alógrafo “y” também pode ser visto em: “ſſeyo” ( ) (que aparece com pingo

no Cancioneiro da Ajuda), “muyto” ( ) e “cuydey” ( ). O alógrafo “ẏ” é

usado em palavras como: “maẏs” ( ) (que por se apresentar de duas formas no mesmo

cancioneiro representa um caso de polimorfismo gráfico (“mays” e “maẏs”)), “oẏ” ( )e

“dereẏta” ( ). No Cancioneiro da Vaticana, apenas as formas “i” e “y” são

produzidas. Têm-se exemplos de “i” em “direi” ( ), “entendia” ( ) e “soubi”

( ) e exemplos de “y” em “moyre” ( ,), “llousey” ( ) e “mays” ( ).


Outro exemplo de alografia se dá com o dígrafo que no português moderno é grafado
como <nh> e que representa o som do fonema |ɲ|. No Cancioneiro da Ajuda, tal grafema é
escrito por meio da utilização de dois enes (“nn”) como se percebe em “ſennoꝛ”, embora,
neste mesmo cancioneiro, tal forma também se encontre abreviada por meio de um traço
horizontal presente acima do grafema <e>: “ſēnor”. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional,
apenas a forma “nh” ocorre: “ſenhoꝛ” e o mesmo padrão é o que se apresenta no Cancioneiro
21

da Vaticana: “senhor”. Como gravuras representando estas palavras já foram reproduzidas no


texto acima, optou-se, neste trabalho, por não inseri-las novamente.
Por fim, o grafema que representava o fonema /ts/ também constitui um caso de
alografia, podendo ser representado por “c” ou por “ç”. No Cancioneiro da Ajuda, têm-se “ç”:

“pareçer” ( ) e “pareçia” ( ). Já no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, têm-

se “ç” e “c”: “pareçia” ( ) e “parecer” ( ) e o mesmo ocorre no

Cancioneiro da Vaticana: “pareçia” ( ) e “parecer” ( ).

3.2) RELAÇÃO GRAFEMA-FONEMA

Em uma língua ideal, um grafema só corresponderia a um som e não haveria


problemas de ortografia, mas o português, como muitas outras línguas, não é assim. Devido à
influência de diversos fatores externos em sua formação, o português possui uma relação
grafema-fonema que não é unívoca. A tabela abaixo apresenta o som que cada letra poderia
representar no português medieval, no entanto, antes de prosseguir com a leitura desta tabela,
é necessário refletir um pouco sobre os casos mais notórios.
O grafema <e> podia representar dois fonemas: /e/ e /ɛ/, por razões que serão mais
bem explicadas em um momento posterior. O mesmo ocorre com o <o>, que representa os
fonemas /o/ e /ɔ/.
O grafema <i> podia representar três fonemas: /i/ quando vogal, /(d)ʒ/ quando
consoante (sempre em posição intervocálica) e /j/ quando semivogal. Algo semelhante ao que
ocorre com <u>: /u/ quando vogal, /v/ quando semivogal e /w/ quando semivogal. Quanto a
estes grafemas, por hora, vale mencionar que os grafemas <j> e <v> não estavam presentes no
sistema latino e ainda não existiam no português medieval, sendo uma criação da renascença.
Também vale mencionar que no português medieval, com relação aos casos presentes
na cantiga, que, devido à origem etimológica, <c> poderia representar uma consoante africada
palatal surda (quando diante dos fonemas /i/ e /e/) ou uma consoante oclusiva velar surda (nos
demais contextos).
Com a cantiga, também é possível ver uma representação do <h> como /j/ (semivogal
anterior) devido à dificuldade sofrida pelo escriba dos Cancioneiros da Biblioteca Nacional e
da Vaticana de representar este som, uma semivogal palatal.
22

É importante destacar também o caso do grafema <s>, que poderia representar um som
surdo em contextos mais gerais e um som sonoro em um contexto intervocálico como ainda
ocorre no português moderno. Também é possível, em comparação com o português
brasileiro moderno, perceber que o grafema <l> sempre representava uma consoante lateral
alveolar e nunca uma semivogal posterior /w/.
O som representado pelo grafema <z>, bem como o representado pelo grafema <ch>
merecem ser mais bem analisados na tabela. Antes de prosseguir com a leitura, por fim, é
fundamental ressaltar a presença do grafema <y> no português medieval e sua dupla
representação fonológica: vogal /i/ e semivogal /j/.

GRAFEMA FONEMA EXEMPLO PRESENTE NOS TESTEMUNHOS


<a> /a/ No Cancioneiro da Ajuda: “Dona”, “chamar”, “qual”,
vogal central baixa “mais” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
“ծona”, “ծeuia”, “chamar” etc.. No Cancioneiro da
Vaticana: “dona”, “deuia”, “uya” etc.;
<e> /e/ No Cancioneiro da Ajuda: “ſennoꝛ”, “ſeu”, “ծeuia”,
vogal anterior “tenծer”, “ծereito” etc.. No Cancioneiro da
média-alta Biblioteca Nacional: “home”, “ſenhoꝛ”, “ծeuia”,
“coꝛpe”, “comeu” etc.. No Cancioneiro da Vaticana:
“senhor”, “deuia”, “enon”, “lhousey” etc..
/ɛ/ Não é possível afirmar com total segurança que este
vogal anterior fonema ocorra na cantiga.
média-baixa
<i> /i/ No Cancioneiro da Ajuda: “ui”, “amigos”, “aſſi”,
vogal anterior alta “uiſſe” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
“amig9”, “uiſſe” etc.. No Cancioneiro da Vaticana:
“amig9”, “ui” etc..
(d)ʒ No Cancioneiro da Ajuda: “ueian”. No Cancioneiro da
consoante africada Biblioteca Nacional e no Cancioneiro da Vaticana: não
palatal sonora ou há exemplos.
consoante fricativa
palatal sonora
23

/j/ No Cancioneiro da Ajuda: “ծereito”, “mais”, etc..


semivogal anterior No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “direiu9”,
“moireꝛ” etc.. No Cancioneiro da Vaticana: “direiu9”.
<o> /o/ No Cancioneiro da Ajuda: “ſennoꝛ”, “ome”, “toծo”
vogal posterior etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “ſenhoꝛ”,
média-alta “boa”, “coꝛpe”, “comeu” etc.. No Cancioneiro da
Vaticana: “senhor”, boa”, “morrer” etc..
/ɔ/ No Cancioneiro da Ajuda: “moꝛte”. No Cancioneiro da
vogal posterior Biblioteca Nacional: “moꝛte” e no Cancioneiro da
média-baixa Vaticana: “morte”.
<u> /u/ No Cancioneiro da Ajuda: “cuiծaua”, “u” “uentura”. No
vogal posterior alta Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “cuydey” e no
Cancioneiro da Vaticana: “cuydey”.
/v/ No Cancioneiro da Ajuda: “cuiծaua”, “uentura”, “ui”,
consoante fricativa “uiſſe”, “ueer” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca
labiodental sonora Nacional: “ծeuia”, “uiſſe”, “ծireiu9” etc.. No
Cancioneiro da Vaticana: “u9”, “uiße”, “ueer” etc..
/w/ No Cancioneiro da Ajuda: “comeu”, “manteu”,
Semivogal posterior “menծeu” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
“noutro”, “comeu”, “lhouſei” etc.. No Cancioneiro da
Vaticana: “noutro”, “seu”, “máteu”.
<b> /b/ No Cancioneiro da Ajuda: “boa”, “ſoubeu”, “bon”,
Consoante oclusiva “bē”. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “ben”,
bilabial sonora “bē”, “bō”. No Cancioneiro da Vaticana: “soubi”, “bó”.
<c> /k/ No Cancioneiro da Ajuda: “con’, “comeu”, “ocorp”,
Consoante oclusiva “cuiծaua”, “ca” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca
velar surda Nacional: “con”, “comeu”, “coꝛpe” etc.. No
Cancioneiro da Vaticana: “comeu”, “ocorpe”, “cuydey”
etc..
/ʦ/ No Cancioneiro da Ajuda, não há exemplo. No
Consoante africada Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “parecer” e no
palatal surda Cancioneiro da Vaticana “parecer”.
<ç> /ʦ/ No Cancioneiro da Ajuda: “pareçer” e “pareçia”. No
24

Consoante africada Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “pareçia” e no


palatal surda Cancioneiro da Vaticana: “pareçia”.
<d> /d/ No Cancioneiro da Ajuda: “menծeu”, “dixe”, “Dona”,
consoante oclusiva “ծeuia”, “ծereito” etc.. No Cancioneiro da
dental sonora Biblioteca Nacional: “ծona”, “ծatanto”, “ծireiu9” etc..
No Cancioneiro da Vaticana: “deuia”, “entendia” etc..
<f> /f/ No Cancioneiro da Ajuda: “fuẏ”, “foſſe”, “fez”, “falar”
consoante fricativa etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “foſſe”,
labiodental surda “falar”, “fe” etc.. No Cancioneiro da Vaticana: “fe”,
“falar”, foße etc..
<g> /g/ No Cancioneiro da Ajuda: “amigos”, “gran”. No
consoante oclusiva Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “amig9”. No
velar sonora Cancioneiro da Vaticana: “amig9”.
(d)ʒ Não há casos de aparição deste fonema em nenhum dos
consoante africada três testemunhos.
palatal sonora ou
consoante fricativa
palatal sonora
<h> Sem som No Cancioneiro da Ajuda: não ocorre. No Cancioneiro
da Biblioteca Nacional: “home”. No Cancioneiro da
Vaticana: “homi”.
/j/ No Cancioneiro da Ajuda: não ocorre. No Cancioneiro
Semivogal anterior da Biblioteca Nacional: “mha”. No Cancioneiro da
Vaticana: “mha”.
<l> /l/ No Cancioneiro da Ajuda: “qual”, “mal”, “la”, “ela”,
consoante lateral “log” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
alveolar “falar”, “logueu”, “polo”, “mal” etc.. No Cancioneiro
da Vaticana: “falar”, “logueu”, “ela”, “mal” etc..
<lh> /ʎ/ No Cancioneiro da Ajuda: “conſellaria”, “llouſeẏ”.
consoante lateral No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “lhouſei”. No
palatal Cancioneiro da Vaticana: “lhouſei”.
<m> /m/ No Cancioneiro da Ajuda: “ome”, “chamar”,
consoante nasal “amigos”, “muito”, “menծeu” etc. No Cancioneiro da
25

bilabial Biblioteca Nacional: “home”, “chamar”, “mays”,


“moꝛte” etc.. No Cancioneiro da Vaticana: “mays”,
“morrer”, “quantomendauerria” etc.
<n> /n/ No Cancioneiro da Ajuda: “Dona”, “non”, “ben”,
consoante nasal “entendia”, “tan”, “epoծen” etc.. No Cancioneiro da
alveolar Biblioteca Nacional: “noutro”, “nē”, “nō”, “quen” etc..
No Cancioneiro da Vaticana: “noutro”, “nó”, “be” etc..
<nh> /ɲ/ No Cancioneiro da Ajuda: ſennoꝛ. No Cancioneiro da
consoante nasal Biblioteca Nacional: ſenhoꝛ. No Cancioneiro da
palatal Vaticana: senhor.
<p> /p/ No Cancioneiro da Ajuda: “poծeſſen”, “poꝛē”, “ocorp”,
consoante oclusiva “pareçer” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
bilabial surda “poծeſſentenծeꝛ”, “peꝛ”, “pareçia” etc. No Cancioneiro
da Vaticana: “podeßentender”, “poder”, “parecer”.
<qu> /k/ No Cancioneiro da Ajuda: “que”, “ծaqueſto”, “quāto”
consoante oclusiva etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “quen”,
velar surda “quādeu” etc.. No Cancioneiro da Vaticana: “quena”,
“quantomendauerria” etc..
<r> /r/ No Cancioneiro da Ajuda: “pareçia”, “ſennoꝛ”,
consoante vibrante “noutro”, “tenծer” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca
alveolar surda Nacional: “ſenhoꝛ”, “chamaria”, “noutro” etc.. No
Cancioneiro da Vaticana: “senhor”, “chamaria”,
“noutro” etc..
<rr> /R/ No Cancioneiro da Ajuda: “moꝛrer”, “auerria” etc.. No
consoante vibrante Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “q’ꝛria”. No
alveolar sonora Cancioneiro da Vaticana: “morrer”, “q’rria”.
<s> /ʂ/ No Cancioneiro da Ajuda: “mais”, “amigos”, “ſoube”,
consoante fricativa “ſeria” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
alveolar surda “ſſeyo”, “ſenhor”, “mays” etc.. No Cancioneiro da
Vaticana: “ßeyoϼ”, “mays”, “soubi” etc..
/ɀ/ No Cancioneiro da Ajuda: llouſeẏ. No Cancioneiro da
consoante fricativa Biblioteca Nacional: lhousey. No Cancioneiro da
alveolar sonora Vaticana: lhousey.
26

<ss> /ʂ/ No Cancioneiro da Ajuda: “poծeſſen”, “uiſſe” etc.. No


Consoante fricativa Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “poծeſſentenծeꝛ”,
alveolar surda “uiſſe” etc.. No Cancioneiro da Vaticana: “foße”,
“podeßentender” etc..
<t> /t/ No Cancioneiro da Ajuda: “ծereito”, “toծaqueſto”,
Consoante oclusiva “tant” etc.. No Cancioneiro da Biblioteca Nacional:
dental surda “ծatanto”, “toծo” etc.. No Cancioneiro da Vaticana:
“todo”, “táto” etc..
<x> /ʃ/ No Cancioneiro da Ajuda: “dixe”, “dixo”. No
Consoante fricativa Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no Cancioneiro
palatal surda da Vaticana, não há ocorrência deste grafema.
<y> /i/ No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “aſſy”. No
vogal anterior alta Cancioneiro da Vaticana: “aßy”.
/j/ No Cancioneiro da Ajuda: “llouſeẏ”, “moẏꝛe” etc..
Semivogal No Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “ծereẏta”,
“moẏre” etc.. No Cancioneiro da Vaticana: “mays”,
“moẏre”, “cuyծey” etc..
<z> /dz/ No Cancioneiro da Ajuda: “fez”, “dizer”. No
consoante africada Cancioneiro da Biblioteca Nacional: “ծizeꝛ”. No
dental sonara Cancioneiro da Vaticana: “dizer”.
<ch> /ʧ/ Em todos os testemunhos: “chamar” e “chamaria”.
Consoante africada
palatal surda

3.4) SEGMENTAÇÃO E JUNÇÃO DE PALAVRAS

Nos três fac-símiles analisados neste trabalho, outro fator referente ao modo de
fixação dos três cancioneiros chama bastante à atenção: a segmentação e a junção de algumas
palavras. Tal característica destes textos dificulta ainda mais sua leitura por parte de um leitor
moderno, dado que prejudica o entendimento sobre a real fronteira entre as palavras e gera,
como consequência, um obstáculo para o entendimento da mensagem da cantiga.
27

Em um dos casos apresentados nos testemunhos, esta segmentação se dá porque a


palavra ocupa a última posição da linha da qual faz parte, o que a faz ser concluída na linha de
baixo, mas sem que haja qualquer sinal gráfico que indique isso. O traço feito pelas pessoas
que escrevem em português atualmente para demarcar esta separação (grafado como “-”) não
era um padrão do português durante o período de fixação destes testemunhos. Este caso
isolado é encontrado no Cancioneiro Ajuda, através da forma “quena”, que gera ainda mais
dificuldade ao ser interpretada por também ser uma junção dos pronomes “quen” e “na”. A
forma “que” aparece em uma linha, enquanto a forma “na” só aparece na linha seguinte. Vale
ressaltar que só é possível considerar este caso como de segmentação de palavras em
comparação aos demais testemunhos, que apresentam a forma “quena” unida.
Apresentada esta exceção ao padrão encontrado no texto, se pode dizer, de uma
maneira geral, que a junção e a segmentação de palavras (somadas à elisão vocálica, que será
posteriormente apresentada) têm, como intuito, nas cantigas, manter a métrica que o texto
necessita. Sobre isso, como já mencionado, falar-se-á mais tarde, agora, serão apresentados os
exemplos a que se dedica este capítulo.
De forma geral, os exemplos de segmentação e junção encontrados em um
cancioneiro também são encontrados em outro, com pequenas exceções. Assim, os exemplos
encontrados em mais de uma cantiga e que serão mencionados abaixo só serão explicados
uma única vez. Uma observação a se fazer é que no desfazimento da junção de palavras, no
momento de explicar que palavras estão unidas, serão empregados os grafemas utilizados no
português moderno. No Cancioneiro da Ajuda, é possível encontrar junção de palavras em:
“noutro” (contração de “em” + “outro” e que é usada no português até os dias de hoje),
“llouſeẏ” (junção de “lhe” + verbo ousar (na forma “ousei”)), “poծeſſen tenծer” (formada
pelo verbo poder (na forma “pudesse’) + verbo entender no infinitivo, com palavras que
aparecem separadas, mas que apresentam um caso de elisão vocálica e uma representação
incomum do verbo entender, dado que sua primeira sílaba se une ao verbo poder), “ſeẏo”
(junção do verbo saber (na forma “sei”) + pronome “o”), poꝛē (preposição “por” + preposição
“em”), “ծereite” (junção da palavra direito + verbo estar (na forma “é’)), “soubeu” (verbo
saber (na forma “soube”) + pronome “eu”), “menծauerria” (junção do pronome “me” +
pronome adverbial anafórico “ende” + verbo haver (na forma “haveria”)), “comeu” (junção da
conjunção “como” + pronome “eu”), “todaqueſto” (junção do pronome “todo” + pronome
“aquesto”), “manteu” (junção do pronome “me”, do pronome “ante” e do pronome “eu”), “log
eu” (conjunção “logo” + pronome “eu”), “poꝛeſto” (preposição “por” + pronome “esto”),
“nona” (advérbio “non” + pronome “a”), quanծoa (pronome “quando” + pronome “a”).
28

Já no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, é possível encontrar as seguintes junções


de palavras: “direiu9” (junção do verbo dizer (na forma “direi”) + pronome “vos”), “noutro”,
en on (“e” + “non”, segmentação da palavra “non” e junção de parte da mesma com a
conjunção “e”), “llouſei”, “ծatanto” (junção da contração da preposição “de” + artigo “a”
formando “da” + advérbio “tanto”), “quena”, “poծeſſentenծer”, “polo” (junção da preposição
“por” + pronome “lo”), “ſſeyo”, “ede” (conjunção “e” + preposição “de”), “ſoubeu”,
“quātomenծaueiria” (junção do pronome “quanto” + pronome “me” + pronome “ende” +
verbo haver (na forma haverria), “comeu”, “coꝛpe” (junção do substantivo “corpo” +
conjunção “e”), “toծaqſto”, “māteu”, “deſſeu” (preposição “de” + pronome “seu”), “logueu”,
“quāծeu” (pronome “quando” + pronome “eu”).
Quanto ao Cancioneiro da Vaticana, é possível encontrar exemplos referentes a esta
questão em: “noutro”, “enon” (conjunção “e” + advérbio de negação “non”), “lhousey”,
“datanto”, “podeßesentender”, “polo”, “ßeyoϼ” (verbo ser (na forma sei) + pronome “o” + ϼ
(forma abreviada da preposição por)), “quantomendauerria”, “deíte” (junção da palavra
direito + verbo estar (na forma “é’)), “soubeu”, “comeu”, “ocorpe” (junção do artigo “o” +
substantivo “corpo” + conjunção “e”), “todaqſto”, “logueu”, “quádeu” e “oseu” (artigo “o” +
pronome “seu”).

3.5) ELISÃO VOCÁLICA

Terminada a explicação acerca da junção e segmentação de palavras, parte-se, agora,


para a explicação de um tema que apresenta bastante relação com o anterior. Como já
mencionado, em muitos exemplos que representam a junção de palavras, havia a elisão da
vogal da última sílaba da primeira palavra do grupo de palavras que aparecia unido. Isso se
deve ao fato de que, nas cantigas, era necessário que um determinado verso possuísse um
número exato de sílabas, que coincidissem com os demais, para que a cantiga apresentasse
métrica e pudesse ser cantada. Assim, uma determinada palavra, no mesmo testemunho,
poderia aparecer sem elisão em um verso e com elisão em outro como forma de garantir a
métrica. Em outras palavras, o que determinava a elisão ou não da vogal de uma palavra era a
quantidade de sílabas do verso em que se encontrava. Tal questão poderia fazer com que um
leitor moderno pensasse que a elisão não era sistematizada ou que não possuía uma regra
própria de uso nos cancioneiros analisados e por isso teve que ser explicada.
Os únicos casos de elisão que ocorrem somente em um dos cancioneiros é “tant”, que
apresenta a elisão da vogal “o” e está presente no Cancioneiro da Ajuda e “quandeu”, que
29

apresenta a elisão da vogal “o” do pronome “quando” e que está presente nos Cancioneiros da
Biblioteca Nacional e Vaticana.
Partindo de exemplos presentes no Cancioneiro da Ajuda e com os alógrafos
presentes neste testemunho, têm-se: “llouſeẏ” (junção do pronome “lhe” + verbo ousar (na
forma ousei) com elisão da vogal “e” do pronome “lhe”), poծeſſen tender” (junção do verbo
poder (na forma pudesse) + “entender” com elisão da vogal “e” da última sílaba de
“pudesse”), “ծereit e” (elisão da vogal “o” da palavra “dereito”), “ſoubeu” (junção do verbo
saber (na forma soube) + pronome “eu” com elisão da vogal “e” da última sílaba de “soube”),
“mendauerria” (junção do pronome “me” + pronome adverbial anafórico “ende” (com elisão
da última vogal “e” + verbo haver (na forma “haveria”)), “comeu” (junção da conjunção
“como” e do pronome “eu” com elisão da vogal “o” da última sílaba de “como”), “coꝛp e”
(elisão da vogal “o” da última sílaba da palavra “corpo”), “manteu” (junção do pronome “me”
(com elisão da vogal “e”, do pronome “ante” (com a vogal “e” também elidida) e do pronome
“eu”), “toծaqueſto”, “log eu” (elisão da vogal “o” da última sílaba da conjunção “logo”) e
“menծeu” (junção do pronome “me” (com a vogal “e” elidida), + pronome “ende” (com a
última vogal “e” elidida) + pronome “eu”).
No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, têm-se: “lhouſei”, “poծeſſentenծer”, “ծeite”,
“ſoubeu”, “quātomenծaueiria”, “comeu”, “coꝛpe”, “toծaqſto”, “māteu”, “logueu”.
No Cancioneiro da Vaticana, têm-se: “lhousey”, “podeßentender”, “deíte”, “soubeu”,
“quantomendauerria”, “comeu”, “ocorpe”, “todaqſto”, “máteu”, “logueu”.

3.6) OMISSÃO DE GRAFEMAS

A omissão de grafemas, problema que também é comum quando se trata da análise


de textos medievais, ocorre de forma bastante reduzida nos testemunhos da cantiga “A dona
que home”. Em termos gerais, se pode dizer que esta questão só é presente no testemunho do
Cancioneiro da Ajuda.
Como já mencionado no capítulo deste trabalho referente à estruturação do texto, as
letras capitulares não estão presentes no Cancioneiro da Ajuda e só é possível ver a presença
de letras sobrescritas no espaço referente a estas letras capitulares. A explicação para tal
procedimento já foi dada, mas, agora, acrescenta-se que tal questão é um caso de omissão de
grafemas. No mesmo testemunho, também é possível ver uma dupla grafia do verbo
“guardar”, que surge como “guardar” e “guadar”. Isso poderia ser considerado um mero
exemplo de polimorfismo gráfico e, embora também o seja, precisa ser mencionado como um
30

caso de omissão de grafemas. Para aclarar a explicação, é necessário reafirmar que tais textos
eram fixados nos cancioneiros por meio do trabalho de copistas. Trabalho este que era manual
e que, como qualquer outro trabalho que dependa da atividade humana, é passível de erro. O
copista pode, por distração, por exemplo, ter se esquecido de transcrever o grafema <r>
presente na primeira sílaba do verbo “guardar”, o que gerou essa dupla grafia.

3.7) POLIMORFISMO GRÁFICO

Outro fator que chama bastante atenção quando se trabalha com textos medievais é o
polimorfismo gráfico, isto é, a presença de mais de uma maneira de escrever uma determinada
palavra. No entanto, antes de prosseguir com a exemplificação de polimorfismo gráfico nos
testemunhos referente à cantiga de Paio Gomes Charinho, é necessário fazer algumas
pequenas observações sobre o porquê da grafia das palavras dos textos medievais serem tão
variáveis.
Primeiro, é necessário mencionar que o número de pessoas que liam e escreviam no
início da Idade Média era bastante limitado e que a maior parte dos textos escritos nesta época
e que se conservaram até os dias de hoje, eram escritos por pessoas que, de alguma forma,
trabalhavam na atividade de escrever textos, no caso das cantigas, os copistas/escribas.
Estes copistas, monges beneditinos com bom conhecimento em latim, possuíam a
tarefa de fixar textos em um período de início de consolidação das línguas romance, ou seja,
das línguas modernas que provieram do latim, mas sem quem tivessem muitos exemplares
escritos desta nova modalidade de língua escrita no qual pudessem se basear. Por isso,
precisavam buscar, no ato de fixar textos, meios de escrever que se adaptassem as novas
realidades linguísticas e que não estavam presentes no latim. A criatividade fazia parte do
trabalho desempenhado por estes profissionais. Isto gerava uma multiplicidade de formas de
representação de um mesmo fenômeno linguístico não só ao se comparar a escrita de copistas
diferentes, como também ao se comparar a escrita de um mesmo copista e por isso surgem os
casos de polimorfismo gráfico mencionados. Há ainda que se citar os casos de erro ou
distração dos copistas e que já foram mencionados no capítulo sobre omissão de grafemas.
Por fim, vale mencionar que tal polimorfismo podia ocorrer em diferentes níveis,
seja pela existência de alografia, seja pela junção ou segmentação de palavras, seja pelo uso
de abreviaturas. Se comparados os exemplos presentes no Cancioneiro da Ajuda, têm-se
polimorfismo em: “ſennoꝛ” / “ſēnoꝛ”, “peꝛ” / “ϼ”, “non” / “nȯ”, “guardar”/ “guadar”, “ben” /
“bē”, “mais” / “mas” . No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, têm-se polimorfismo em:
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“mays” / “mais” / “maẏs”, “ben” / “bē”. Já no Cancioneiro da Vaticana, têm-se polimorfismo


em: “ben” / “bé”, “por” / “pr”, “ϼder”/ “poder”.
Entretanto, se comparados os fac-símiles, a quantidade de polimorfismo gráfico é
ainda maior. Para citar alguns exemplos, no Cancioneiro da Ajuda, a forma presente é
“pareçer”, enquanto nos outros dois cancioneiros é “parecer”. O Cancioneiro da Ajuda
apresenta a forma “llouſeẏ”, enquanto o Cancioneiro da Biblioteca Nacional apresenta
“lhouſei” e o da Vaticana apresenta “lhousey”. Mantendo sempre a ordem Cancioneiro da
Ajuda, da Biblioteca Nacional e da Vaticana, têm-se: “aſſi” / “aſſy” e “aßy”; “poծeſſen tenծer”
/ “poծeſſentenծer” e “podeßentender”; “toծaqueſto” / “toծaqſto” e “todaqſto”.

3.8) PONTUAÇÃO

Como já comentado no capítulo referente a estruturação do texto, a pontuação só está


presente no Cancioneiro da Ajuda e se encontra totalmente ausente nos demais cancioneiros.
Também foi explicado que, na primeira estrofe da cantiga, a pontuação possui a função de
demarcar os versos que forma a primeira estrofe em si.
Porém, com relação à pontuação presente nas demais estrofes, a tarefa de explicar
como se dá a sistematização do uso da pontuação é mais difícil. O que se nota é que a
pontuação nos textos medievais segue critérios bastante distintos do português moderno.
Atualmente, por exemplo, a frase iniciada após um ponto final sempre surge com a primeira
letra em maiúscula, o que não ocorre na cantiga. Outro fator que chama a atenção é que o
ponto final é a única forma de pontuação presente em toda a cantiga.
Feitas estas observações, se pode dizer, com relação à pontuação presente nas demais
estrofes que, embora em um primeiro olhar esta pareça sem critérios e sem objetivo definido,
que a mesma segue uma série de padrões. A pontuação só é usada ao final de uma linha, por
exemplo, bem como só é usada ao final de uma ideia transmitida pelas sentenças, o que
mostra que a pontuação tem sim importância na organização estrutural da cantiga. Isto mostra
que a dificuldade dos leitores modernos de entendê-la se deve ao fato de ser natural que se
tenha um olhar sobre uma determinada língua baseado na forma com que a sua língua se
organiza, ou seja, é normal que um leitor moderno transfira a organização de sua língua ao
tentar ler um padrão diferente do que está acostumado. Todavia, no procedimento de leitura
de textos medievais, esta questão precisa ser suplantada.
32

3.9) USO DE MAIÚSCULAS E MINÚSCULAS

O uso de maiúsculas e minúsculas nos três cancioneiros não segue o padrão


moderno. A regra do português atual de iniciar frases com letra maiúscula não se aplica em
nenhum dos testemunhos. As únicas palavras que se iniciam por letra maiúscula são as que
iniciam uma nova estrofe. A exceção fica pela palavra “Dona” do Cancioneiro da Ajuda, que
não inicia uma estrofe, mas está em maiúscula.
Uma observação a se fazer é que no Cancioneiro da Ajuda, por mais que haja a
omissão dos grafemas que iniciam cada estrofe, ao se observar que estes provavelmente
seriam realizados por meio de letras capitulares (observação feita no capítulo referente à
estruturação do texto), se pode afirmar que este fac-símile também apresenta estas palavras
iniciais de casa estrofe com letras maiúsculas.
Assim, são exemplos de palavras escritas com letras maiúsculas, nos três
testemunhos: o artigo “A”, a conjunção “Ca” e a conjunção “E”. Como o Cancioneiro da
Ajuda possui sete versos a mais, apresenta a conjunção “E” em maiúscula em mais duas
ocorrências.

3.10) ABREVIATURAS

As abreviaturas são um recurso bastante usado nos textos medievais e geram uma
grande dificuldade de leitura no leitor moderno, o que torna a compreensão dos textos
bastante trabalhosa. Tais recursos abreviativos são diversos e podem dar-se por meio de
diferentes recursos gráficos. Nos três testemunhos analisados neste trabalho é possível
encontrar três tipos de recursos abreviativos: o traço geral abreviativo, o uso de signos
particulares e o de letras sobrepostas.
Como já indicado pelo próprio nome, o traço geral abreviativo se dá através da
realização de pequenos traços ou pontos ao redor de uma dada palavra, seja este traço
realizado na parte inferior, superior, esquerda ou direita da palavra em questão. O uso de
signos particulares diz respeito a signos específicos utilizados na abreviatura de palavras.
Signos estes que geralmente são tradicionais no sistema escrito de uma dada cultura e que são
facilmente entendidos por seus leitores, mas que geram dificuldade de compreensão se
analisados fora de seu contexto original de produção. Um exemplo de signo particular
encontrado nos três cancioneiros é <9>, que representava a terminação –us no sistema de
escrita latino, mas que, neste trabalho foi desenvolvido ora como –os e ora como -us: “u9”
33

(vos), “me9” (meus), por exemplo. Já o recurso de letras sobrepostas é uma forma de
abreviatura em que uma determinada letra é posta de forma sobreposta em um dada palavra
com o objetivo de abreviar uma determinada sequência de grafemas, como em “pr” (por).
Explicados os tipos de abreviatura, se pode expor os exemplos encontrados em cada
um dos fac-símiles. No Cancioneiro da Ajuda, têm-se: “u9”, “ſēnoꝛ” (senhor), “ϼ” (per),
“poꝛē” (por en), “quāto” (quanto), “nō” (non), “bē” (bem), “q” (que), “d’s” (Deus),
“qria”(queria). No Cancioneiro da Biblioteca Nacional, têm-se: “me9” (meus), “amig9”
(amigos), “ծireiu9” (direi-vos), “q’” (que), “bē” (bem), “ϼ” (per), “pr” (por), “d'eite” (direito
é), “quātomenծaueiria” (quantomendaueiria), “nō” (non), “q’ria” (queria), “toծaqſto”
(todaquesto), “māteu” (manteu), “tāto” (tanto), “nē” (nem), “tā” (tão), “quādeu” (quandeu).
Já no Cancioneiro da Vaticana, têm-se: “me9” (meus), “amig9” (amigos), “u9” (vos), “q’”
(que), “bé” (bem), “ϼ” (por), “pe” (per), “deíte”, “nó” (non), “q” (que), “qrria” (queria),
“todaqſto” (todaquesto), “máteu” (manteu), “táto” (tanto), “tá” (tão), “quádeu’ (quandeu),
“bó” (bom).

4) COMENTÁRIO LINGUÍSTICO SOBRE ASPECTOS FONÉTICOS


FONOLÓGICOS DO PORTUGUÊS DO PERÍODO MEDIEVAL

Terminada a exposição sobre os aspectos contrastivos no que diz respeito às questões


filológico-paleográficas dos três testemunhos, pode-se partir para a exposição de um
comentário linguístico sobre a cantiga. Neste trabalho em questão, apenas os aspectos
fonético-fonológicos serão analisados e, para uma melhor organização, serão expostos, em um
primeiro momento, os fenômenos que envolvem as vogais, para, em um segundo momento,
serem expostos os fenômenos referentes às consoantes. Embora o português apresente um
número maior de fenômenos na sua evolução do latim para o sistema atual, apenas os casos
presentes na cantiga serão analisados.

4.1) VOCALISMO

No processo de evolução da língua latina que gerou a formação das línguas romances,
dentre elas o português, uma série de mudanças referentes ao quadro fonético e fonológico do
latim foram realizadas. Dentre estas mudanças, algumas envolveram a transformação do
quadro vocálico latino. Abaixo, serão expostos alguns dos processos sofridos pelas vogais
latinas e que gerou o quadro vocálico do português.
34

4.1.1) REORGANIZAÇÃO DO SISTEMA VOCÁLICO (PERDA DO


TRAÇO DE DURAÇÃO)

O quadro vocálico em posição tônica do português moderno apresenta, como se sabe,


sete vogais, que se diferenciam de acordo com o timbre e com as diferenças de graus de
abertura. No entanto, o latim, língua que gerou o português, apresentava um quadro vocálico
mais complexo e que apresentava um total de dez vogais. Mas o que gerou esta simplificação?
Bem, antes de explicar como se deu este processo, é necessário descrever como se
dava a diferenciação entre as vogais latinas. As mesmas se organizavam em dois grupos
quanto à posição vertical da língua: anteriores e posteriores (assim como o português
moderno). Já quanto à posição horizontal, as mesmas se dividiam em altas, médias e baixas,
não havendo a posição média-alta do português atual. Um outro fator de diferenciação entre
estas vogais, mas que não está presente no português, era o fator duração. Assim, as vogais
poderiam ser longas ou breves e isto era um traço que diferenciava as palavras e que gerava a
existência de pares mínimos. Em síntese, na representação atual, as vogais latinas anteriores
eram: <ī> (vogal anterior alta longa), <ĭ> (vogal anterior alta breve), <ē> (vogal anterior
média longa), e <ĕ> (vogal anterior média breve). As vogais centrais eram: <ā> (vogal central
baixa longa), <ă> (vogal central baixa breve) e as vogais posteriores eram: <ū (vogal posterior
alta longa), <ŭ> (vogal posterior alta breve), <ō> (vogal posterior média longa) e <ŏ> (vogal
posterior média breve).
No entanto, este fator duração, no latim, possuía ainda, um outro traço que se juntava a
ele em sua realização fonológica: o timbre. Havendo, segundo Teyssier, uma vogal breve e
uma longa para cada timbre vocálico, com as breves sendo mais abertas e as longas mais
fechadas. Tal oposição de duração, entretanto, durante o processo de evolução do latim que
gerou as línguas romances, foi desfeita e conservou-se apenas a diferenciação de timbre entre
as vogais. Com este processo, a vogal posterior alta longa gerou a vogal /u/ do português
moderno e o mesmo aconteceu com a vogal anterior alta longa, que gerou o /i/. Quanto as
médias baixas, as mesmas se unificaram em /a/.
Tal processo, contudo, ocorreu de maneira distinta com as outras vogais. A vogal
anterior alta breve (ĭ) e a vogal anterior média longa (ē), devido à semelhança de timbre, se
unificaram e geraram a forma /e/. Já a vogal posterior alta breve (ŭ) e a vogal posterior média
longa (ō) se fundiram em /o/. Quanto as vogais ĕ (vogal anterior média breve) e ŏ (vogal
35

posterior média breve), devido a seu timbre aberto, as mesmas se transformaram em /ɛ/ e /ɔ/
no português moderno.
Explicado este processo de evolução do quadro vocálico do latim para o português, se
pode exemplificar a questão por meio de exemplos retirados da cantiga. Para isto, por meio da
consulta a um dicionário latino, serão apresentados exemplos de como determinadas palavras
se apresentavam no latim e como se apresentam no português medieval. Como se objetiva,
nesta parte do trabalho, apenas explicar a reorganização do sistema vocálico, outros
fenômenos presentes nas palavras usadas como exemplo não serão explicados.
O verbo “ueer”, presente nos três fac-símiles, é uma evolução do verbo latino
“uĭdere”, que, quanto a vogal anterior alta breve, representa um caso de simplificação
vocálica devido à fusão entre ĭ e ē: UĬDERE > ver (/ĭ > e/). O verbo “conselhar”, também
presente nos três fac-símiles, é outro exemplo para este padrão: CONSĬLĬĀRE > conselhar (/ĭ
> e/). A palavra “ela” também: ĬLLA > ela (/ĭ > e/). O verbo “poder”, também presente nos
três testemunhos, é outro exemplo, agora com relação ao ē: PŎTĒRE > poder (/ē > e/).
Já o substantivo “amigos”, presente nos três fac-símiles, é uma evolução de “amicŭm”,
que, quanto a vogal posterior alta breve, representa um caso de simplificação vocálica devido
à fusão entre ŭ e ō: AMICŬM > amigo (/ŭ > ō /).

4.1.2) SÍNCOPE DAS BREVES POSTÔNICAS

Outro fenômeno ocorrido na transição do latim para o português foi a síncope das
breves postônicas. Este fenômeno teria ocorrido porque, em palavras proparoxítonas, a sílaba
átona imediatamente posterior a tônica tinha a tendência de ser facilmente suprimida na fala,
devido a uma tendência comum a todas as línguas romance geradas através do latim. Na
cantiga em questão, é possível perceber este fenômeno em palavras como: “dona”,
proveniente do latim “domĭna”. Em um processo que ocorreu da seguinte maneira: DOMĬNA
> dona (ĭ > síncope).

4.1.3) MONOTONGAÇÃO DOS DITONGOS LATINOS

A monotongação é outro processo que gerou as vogais médias anteriores do português.


Os ditongos do latim geraram vogais simples ao longo de sua evolução. Na cantiga, é possível
encontrar exemplo de monotongação com o verbo “querer”, presente através da forma
36

“queria”. Neste trabalho, porém, para facilitar a explicação, será usada a forma no infinitivo
para explicar este processo: QUAERĔRE > querer (/ae > ɛ/).

4.2) CONSONANTISMO

Explicados os fenômenos vocálicos produzidos na evolução do latim para o português,


pode-se proceder na análise dos fenômenos referentes a evolução das consoantes. Por hora, é
importante mencionar que, diferente das vogais, a evolução das consoantes gerou, no
português, um aumento do quadro consonantal se comparado ao latim. Tal processo, no
entanto, foi gerado por uma série de diferentes fatores, dente eles a palatalização e a queda
das geminadas. Outro fator a se considerar ao se analisar os fenômenos consonânticos é a
lenição, que será explicada agora.

4.2.1) LENIÇÃO

A lenição, de modo breve, pode ser definida como um processo de abrandamento


sofrido pelas consoantes oclusivas em contexto intervocálico. Tal processo teria ocorrido nas
consoantes oclusivas surdas, nas sonoras e nas geminadas, com diferentes consequências que
serão descritas com mais detalhe nos tópicos abaixo.

4.2.1.1) SÍNCOPE DAS OCLUSIVAS SONORAS

Como o próprio nome do processo já indica, a lenição que envolve as oclusivas


sonoras gerou a sua síncope, ou seja, a sua queda. Tal processo, exclusivo das línguas
romance geradas pela evolução do latim na România Ocidental, pode ser explicado por um
fator extralinguístico, a influência do substrato celta nesta região. Quanto ao fator
intralinguístico, este tipo de lenição teria ocorrido porque as consoantes oclusivas sonoras
teriam assimilado o traço de continuidade das vogais presentes no contexto no qual se
inseriam. Como esta queda das oclusivas sonoras não modificou a quantidade de fonemas
consonantais presentes no português, dado que estas consoantes continuaram a ocorrer em
outros contextos, tal fenômeno trata-se de uma mudança fonética e não fonológica. Na
Cantiga, é possível encontrar exemplos deste processo de síncope em palavras como “ueer”,
provenientes da palavra latina “uĭdere”. O processo pode ser explicado com base no seguinte
esquema: UĬDERE > ueer (d > síncope). Este processo também ocorre com a palavra “eu”,
37

proveniente de “ego”: EGO > eu (g > síncope) e em “fe”, que vem de “fĭdem”: FĬDEM > fe
(d > síncope).
Este processo teria sido o primeiro a ocorrer dentre os processos de lenição e isso
pode ser explicado através de exemplos que indicam que as consoantes oclusivas sonoras
ainda ocorrem no português. Na cantiga, consoantes oclusivas sonoras podem ser encontradas
em palavras como: “amigos”, mas o processo que explica a existência de oclusivas sonoras
em contexto intervocálico será mostrado no tópico seguinte.

4.2.1.2) SONORIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS SURDAS

Em um processo imediatamente posterior ao anterior e ocasionado pelos mesmos


fatores extralinguísticos, a lenição também teria ocasionado a sonorização das oclusivas
surdas em contexto intervocálico. Isso pode ser notado em palavras como “amigos”:
AMICŬM > amigo (/c > g/). Na palavra “todo”, isso também ocorre: TŌTUS > todo (/t > d/)
em “poder”: POTERE > poder (/t > d/) e em “saber”: SAPERE > saber (/p > b/).

4.2.1.3) SIMPLIFICAÇÃO DAS GEMINADAS

Por fim, a lenição também teria ocasionado a simplificação das geminadas oclusivas
em contexto intervocálico. No entanto, esta simplificação também teria ocorrido com as
outras consonantes oclusivas provenientes do latim. Para explicar melhor este processo, é
importante mencionar que todas as consoantes latinas possuíam uma contraparte geminada e
que este era um recurso de diferenciação de palavras no idioma latino. Na evolução do idioma
que gerou o português, contudo, estas geminadas foram simplificadas em todos os contextos.
Na cantiga, embora não haja exemplos de simplificação de geminadas oclusivas, têm-se
exemplos deste processo em: “ella”, proveniente do latim “ĭlla”: ĬLLA > ela (/ll > l).

4.2.2) CONSONANTIZAÇÃO /v/

Os fonemas representados pelos grafemas <i> e <u> quando em contexto


intervocálico e em posição de consoante no ataque silábico, evoluíram e se transformaram nas
consoantes /ʤ/ e /v/. Na cantiga, podem-se ver exemplos deste fenômeno com relação a
consoante /v/ em palavras como “ueer”, proveniente do latim “uĭdere”. É necessário ressaltar
que, embora graficamente os testemunhos apresentem apenas o grafema <u> e não o grafema
38

<v>, fonologicamente, já se tratava da consoante fricativa labiondetal surda. O esquema a


seguir representa esta evolução UĬDERE > ueer (/u > v/). Com o pronome “uos”, têm-se o
mesmo caso: UOS > uos (/u > v/).

4.2.3) PALATALIZAÇÃO /ʤ/, /ʎ/, /ɲ/, /ʃ/, /ʦ/, /ʣ/

Algumas consoantes latinas, na evolução que gerou o português, foram palatizadas


pela presença de vogais ou semivogais palatais presentes na mesma sílaba. Para explicar o
processo, é fundamental mencionar que este processo ocorreu em sílabas que apresentavam
um hiato. Nestas sílabas, o hiato, em um processo de seu desfazimento, transformou-se em
um ditongo e a semivogal palatal por ele gerada passou a ser absorvida pela consoante em
posição de ataque na sílaba em questão. Dentre estas semivogais, a mais comum era /j/,
resultado da semivocalização das vogais /i/ e /e/. Assim, as consoantes /l/, /n/, nestes
contextos, geraram as consoantes /ʎ/, /ɲ/.
O caso de /ʎ/ pode ser explicado através da palavra “conselhar”, proveniente do latim
“consĭlĭāre”, a vogal palatal presente após a consoante /l/ se incorpora a consoante e muda
seus traços: CONSĬLĬĀRE > conselhar (/li > lj > ʎ/). O mesmo ocorre com /ɲ/. A palavra
“senhor”, proveniente da forma latina “seniorem” é um exemplo da palatanização da nasal:
SENIOREM > senhor (/ni > nj > ɲ/). Com relação à forma grafemática de representar estes
dois últimos fonemas, pode-se perceber que os fac-símiles variam entre um “ll” e um “lh”, no
caso de /ʎ/ e entre “nn” e “nh” no caso de /ɲ/.
As outras consoantes geradas pelo processo de palatazição (/ʃ/, /ʦ/, /ʧ/, /ʣ/),
sofreram este processo em uma palatalização tardia e são explicados de outra maneira. Em um
primeiro momento, as consoantes /t/ e /k/ diante da semivogal /j/ sofrem um processo de
assibilação que resulta na africada /ʧ/, que, posteriormente sofre um processo de
despalatalização e se transforma em /ts/. Este exemplo pode ser visto no verbo “parecer”,
grafado nos três testemunhos como “pareçer” e que provém do latim: PARESCERE > kj /tj/ >
tsj> ʧ > ts. Com o verbo fazer, a explicação é semelhante, porém terminado este processo de
palatalização, a africada ainda se sonoriza, gerando uma africada dental sonora /dz/:
FACERE> kj /tj/ > tsj> ʧ > ts> dz.
Por último, em uma forma de palatalização mais difícil de se explicar, e na qual este
trabalho tentará explicar por meio de uma hipótese, pode-se citar o surgimento da consoante
/ʃ/. Na cantiga, é possível ver esta forma através de uma conjugação do verbo “dizer” que está
39

materializada como “dixe”. De acordo com este trabalho, esta forma pode ser explicada como
sofrendo o seguinte processo: DICERE > dixe > ks> js> ʃ*. Hipótese.
Com relação a consoante /dʒ/, pode-se explicar sua formação da seguinte maneira. A
oclusiva sonora /d/, de articulação relaxada, não se assibila ou palataliza em contato com o /j/,
mas se funde a ele. No caso do verbo “ueian”, proveniente do latim “uideant”, têm-se:
UIDEANT > u[jd]eant > u[dj]eant > ui[dʒ]eant.

4.2.4) ASSIMILAÇÃO CONSONÂNTICA

A assimilação consonântica é outro processo presente na evolução do latim para o


português. Neste processo, umas das consoantes que aparecia unida a outra, assimila os traços
de sua vizinha, em uma forma de “fusão” consonantal. Na cantiga, se pode ver este fenômeno
em palavras como: “dona”, proveniente do latim “domĭnan”, na qual, após a síncope da vogal
pós-tônica breve, as nasais se assimilam: DOMĬNAN > mĭn > mn > n.

4.2.5) EVOLUÇÃO DO GRUPO MEDIAL –CT-

O grupo medial consonantal latino <ct>, teria evoluído, na Península Ibérica, de uma
forma com que a consoante oclusiva velar surda teria se vocalizado, passando a uma
semivogal /j/. O fator extralinguístico que teria provocado este fenômeno teria sido a
ocupação germânica na Península. Na Cantiga, é possível ver este processo por meio da
palavra “dereito”, presente nos três fac-símiles (“ծereito” no Cancioneiro da Ajuda,
“ծereẏta” no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, e “dereyta” no Cancioneiro
da Vaticana) e que provém do étimo vulgar latino “derectus”. Este processo pode ser
explicado seguinte esquema: DERECTUS > ct > jt.

4.2.7) PALATALIZAÇÃO DOS GRUPOS INICIAIS CL-, FL-, PL-

Num momento posterior ao da palatalização citada anteriormente, devido a ocupação


árabe na Península Ibérica, os grupos inciais cl-, fl-, pl- também sofreram uma palatalização.
Na Cantiga, é possível encontrar exemplos como este em CLAMARE > kl/ > ʧ.
40

4.2.8) SÍNCOPE DO –L

Assim como as oclusivas sonoras, a consoante lateral também sofreu um processo de


síncope em contexto intervocálico, em um processo exclusivo ao galego-português dentre as
línguas romance, o que gerou a formação de um hiato. Na cantiga, este processo pode ser
visto por meio do pronome clítico “la”/ “a”, que aparece com a consonante líquida somente
no Cancioneiro da Ajuda, o mais antigo dos três. É possível explicar a queda desta consoante
por meio de uma explicação que envolva fatores linguísticos que não estão presentes na
cantiga. Como a síncope do “l” ocorria somente em contexto intervocálico, é possível dizer
que quando o pronome clítico se apresentava diante de um contexto que o inseria entre
palavras terminadas e iniciadas em vogais, que o mesmo recriava este contexto intervocálico e
que a consoante sofria um processo de síncope. Com este processo ocorrendo, pode-se intuir
que o pronome clítico também sofreu síncope em contextos não intervocálicos por
“assimilação”. Tal exemplo pode ser visto no trecho formado pelas palavras “ſenhor” e
“chamaria”: “senhor a chamaria” (exemplo extraído do Cancioneiro da Biblioteca Nacional),
que, se comparado ao Cancioneiro da Ajuda, apresenta síncope do “l”. O esquema que
representa o fenômeno neste pronome pode ser visto em: ĬLLA > la > a.

4.2.9) SÍNCOPE DO –N-

Assim como as oclusivas sonoras e a consoante lateral, a consoante nasal em


contexto intervocálico também sofreu um processo de apócope que também é exclusivo ao
galego-português e que, na cantiga, pode ser visto na palavra “boa”, proveniente do latim
“bona”: BONA > (n > síncope).

5) CONCLUSÃO

Assim, por meio de uma análise contrastiva dos três testemunhos da cantiga “A dona
que home”, produzidas em momentos diferentes e por escribas diferentes, se pode comparar
as soluções adotadas pelos diferentes cancioneiros para representar o português medieval,
bem como se pode fazer um estudo sobre o estágio da língua no período em questão e
entender como foi à evolução da língua latina que gerou o português. Por ser de tradição oral
possui uma linguagem que se assemelha a fala e permite com que leitores curiosos consigam
entender um pouco sobre como era o português em seu desenvolvimento inicial como língua.
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6) BIBLIOGRAFIA

Cantigas Medievais Galego-Portuguesas, Paio Gomes Charinho. Disponível em


<http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=812&tr=4&pv=sim>. Acesso em 18 de
outubro de 2017.

LOPES, C.; MARCOTULIO, L.; BASTOS, M.; OLIVEIRA, T. Olhares sobre o português
medieval: Filologia, História e Língua. Rio de Janeiro: Editora Vermelho Marinho, 2017.
336p.

Numen, The latin léxicon. Disponível em <http://latinlexicon.org/>. Acesso em 12 de


novembro de 2017.

TARALLO, F. Tempos Linguísticos: itinerário histórico da língua portuguesa. São Paulo:


Ática S. A, 1990. 208 p.

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