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DOI: 10.1590/1413-81232015209.

03312015 2649

Autoria, subjetividade e poder: devolução de dados

ARTIGO ARTICLE
em um centro de saúde na Guariroba (Ceilândia/DF)

Authority, subjectivity and power: data devolution at a primary


care unit in Guariroba (Ceilândia/Federal District/Brazil)

Soraya Fleischer 1

Abstract Devolution, restitution or sharing can Resumo A devolução, restituição ou comparti-


mean, within other possibilities, to offer products lhamento pode significar, dentre outras possibili-
to participants of a research or an extension proj- dades, entregar produtos aos partícipes de um em-
ect. Far from a new practice in Anthropology, re- preendimento de pesquisa/extensão. A entrega de
turning results is still unusual, little organized and resultados não é uma prática nova na antropolo-
valued. This paper presents and discusses a devo- gia, embora ainda seja pouco usual, sistematizada
lution experience by an extension project in An- e valorizada. Neste artigo, relato e discuto uma ex-
thropology that was developed in a primary care periência de devolução de materiais de um projeto
unit in the outskirts of Distrito Federal (Brazil). de extensão da antropologia, que foi desenvolvido
Local reactions were very different from what was dentro de um centro de saúde, na região periférica
expected by the project’s staff, but still permitted do Distrito Federal. As reações aos materiais fo-
dialogue with the health professionals and, more ram muito diferentes do esperado pela equipe do
important, deepened our knowledge about work projeto, mas ainda assim permitiu fazer avançar
relations in this health institution. Even though o diálogo entre os envolvidos e, mais do que isso,
IRB approval has been granted, negotiations permitiu que o conhecimento sobre as relações de
about starting and continuing academic projects trabalho dentro dessa instituição de saúde fosse
have to be negotiated continuously. Subjectivity, aprofundado. Não é somente porque foi logrado
power and authority permeate any anthropologi- o aval de comitês de ética que as negociações sobre
cal initiative from its beginning and much after it a entrada e permanência em projetos acadêmicos
supposedly has been concluded. estão garantidas continuamente. As relações de
Key words Anthropology, Devolution, Extension, subjetividade, poder e autoria permeiam qual-
Authority, Ceilândia quer iniciativa antropológica, antes de começá-la
e muito depois de, supostamente, terminá-la.
Palavras-chave Antropologia, Devolução, Exten-
são, Autoria, Ceilândia
1
Departamento de
Antropologia, Instituto
de Ciências Sociais,
Universidade de Brasília.
Campus Universitário Darcy
Ribeiro, Asa Norte. 70910-
900 Brasília DF Brasil.
fleischer.soraya@gmail.com
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Fleischer S

Introdução para refletir sobre as práticas de devolução dos


resultados da pesquisa.
Desde 2008, temos realizado pesquisas na área da Na primeira etapa do projeto, foram realiza-
antropologia da saúde na Guariroba, um bair- das 29 entrevistas com as funcionárias do centro
ro histórico e popular na Ceilândia, a maior e de saúde. Um roteiro de perguntas foi elaborado
mais populosa cidade do Distrito Federal. Ora e as conversas foram gravadas em áudio, degra-
estamos nas casas, ruas e estabelecimentos co- vadas e lidas pela equipe de pesquisadoras. Essa
merciais do bairro, ora estamos nas instituições leitura implicou em sublinhar trechos especial-
de ensino e saúde que ali foram alocadas desde mente significativos e organizá-los em “núcleos
o início dos anos 1980. Quando digo “nós”, refi- de sentidos”2, que foram discutidos pouco a pou-
ro-me às diferentes e sucessivas equipes de gra- co em reuniões semanais com as pesquisadoras,
duandas que tenho coordenado em projetos de para avançar no entendimento sobre o adoeci-
pesquisa e de extensão na região. Essas iniciativas mento laboral. Ao final, cada uma das entrevistas
têm se convertido em experiências de formação foi impressa, recebeu uma folha de rosto com as
profissional, em monografias de conclusão de informações gerais do projeto e foi devolvida às
curso, bem como em artigos sobre doenças de participantes. A ideia era poder retribuir com um
longa duração e envelhecimento. No início de material gerado pelo projeto. Além disso, como
2011, a diretora de um dos 12 centros de saúde da o projeto tratava de registrar a memória indivi-
Ceilândia, observando nossa presença no local, dual e institucional, a entrevista impressa seria
convidou-nos a conversar. Ela nos apresentou o uma forma de estas 29 pessoas terem, por um
pleito de “conhecer e ajudar a reverter” o quadro lado, um registro de sua participação no projeto,
de adoecimento laboral. Frequentando o local e, por outro, um material reflexivo sobre seu local
desde 2008, ouvimos vários relatos de que, entre de trabalho. À época, eu cogitava que a oralidade,
as cerca de 70 funcionárias da instituição, era alta tão passível de dispersão e esquecimento, pode-
a incidência de licenças e abonos por “questões ria ser perenizada de alguma forma na linguagem
de saúde”, consumo de calmantes, alcoolismo e escrita e impressa. Ademais, pelo fato de se tratar
tentativas de suicídio. A rotina intensa e precá- de atividade de extensão, cada etapa deveria ser
ria de trabalho (falta de material, baixos salários, discutida com as funcionárias do centro de saúde,
infraestrutura deficitária e desatualizada), o con- a fim de gerar diálogo e acúmulo que poderia se
tato com sofrimentos das pacientes e conflitos reverter em novos dados e avanços para o projeto.
interpessoais com outras colegas, e também com Não imaginava que essa devolução de entrevistas
pacientes, estavam entre as principais explicações individuais abriria uma possibilidade de inter-
para o que denominavam de adoecimento labo- locução tão intensa. De fato, estas repercussões
ral (Opto pelo plural feminino em virtude de a inesperadas foram uma oportunidade para pen-
grande maioria, tanto das estudantes quanto das sar a antropologia, as antropólogas e os serviços
funcionárias do centro de saúde, ser composta de atenção básica. A seguir, apresento as princi-
por mulheres). pais reações à devolução da entrevista para, ao fi-
Elaboramos, a partir desse pleito, um proje- nal, discutir os potenciais aprendizados dessa ex-
to de extensão e envolvemos estudantes de An- periência à prática antropológica. Não é somente
tropologia e funcionárias do local. Desenhamos porque já logramos o aval de comitês de ética e
o projeto, a partir de conversas e reuniões com das autoridades institucionais para fazer pesquisa
essas funcionárias, de modo que, na primeira que as negociações sobre nossa entrada e perma-
parte, entrevistas individuais seriam realizadas nência como pesquisadoras estão garantidas con-
com essas pessoas e, numa segunda e última par- tinuamente3. As relações de poder e autoria per-
te, sugestões a partir da análise do material pode- meiam qualquer pesquisa antropológica, antes de
riam se transformar em atividades a serem tes- começar e muito depois de, supostamente, termi-
tadas e, se exitosas, incorporadas pela equipe do nar. Aqui há, portanto, uma discussão de fundo
centro de saúde em questão. Infelizmente, após bastante corriqueira na Antropologia e que pode
a apresentação do relatório referente à primeira ser útil a outras áreas também, como as da saúde,
parte, em que as sugestões de atividades foram conhecidamente permeada por projetos de exten-
esboçadas, a equipe se retraiu e não levou adiante são, rituais de compartilhamento de resultados e,
a subsequente etapa do projeto. Contudo, como também, de relações hierárquicas. Em geral, sigo
as limitações desse projeto de extensão foram pela orientação geral de que “a pesquisa antropo-
discutidas alhures1, neste artigo, o propósito será lógica ou qualitativa valoriza a compreensão dos
tomar uma curta e inesperada etapa do projeto processos e não apenas dos resultados”3.
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O ritual de devolução das entrevistas de saúde estava localizado. Vale ressaltar que es-
sas reações vieram de pessoas das áreas mais pe-
A devolução, restituição ou compartilha- riféricas do centro de saúde (considerando que
mento, como nos lembra Rial4, pode significar as chefias e as médicas, seguido das odontólogas,
entregar produtos e materiais às partícipes do farmacêuticas e demais portadoras de diplomas
empreendimento de pesquisa/extensão e/ou di- universitários, detinham posições mais prestigia-
vulgar os resultados do mesmo para públicos das ali dentro). Por exemplo, uma era do quadro
mais amplos ainda. No caso aqui relatado, deter- de profissionais de nível superior, mas não privi-
me-ei no primeiro formato. A entrega de resul- legiada como a clínica médica. Outra era do Pro-
tados não é uma prática nova na antropologia, grama Agentes Comunitários da Saúde (PACS),
embora ainda seja pouco usual, sistematizada e notadamente desvalorizado nos últimos anos no
valorizada4. Ainda assim, noto diferentes estraté- Distrito Federal. Várias delas eram funcionárias
gias para fazer chegar aos interlocutores o que os de longa data na SES/GDF, mas só com escolari-
antropólogos pensaram e escreveram a respeito dade técnica. A maioria tinha crescido ali mesmo
da convivência que com aqueles mantiveram. no bairro da Guariroba, sido atendida na infância
Experiências de antropologia visual4, de pesquisa e juventude naquele centro de saúde onde agora
compartilhada5, de troca de textos6 ou o tradicio- trabalhavam. (Para efeitos de contraste e contex-
nal oferecimento dos produtos publicados7 são to da relação empreendida em campo, a equipe
exemplos nesse sentido. O debate sobre a devolu- de pesquisadoras foi composta por cinco gradu-
ção de dados é motivado por diferentes aspectos, andas do curso de Antropologia bastante jovens
como a crítica aos moldes colonialistas e objetifi- e mais escolarizadas em relação à maior parte
cadores do início da disciplina, o compromisso e das funcionárias; mas semelhantes em termos de
acordos estabelecidos entre partícipes da pesqui- cor de pele – parda –, local de moradia – regiões
sa, a revisão continuada de nossa prática profis- administrativas não centrais no DF –, e origem
sional, as possibilidades de tradução aplicada do familiar – pais e mães migrantes nordestinos).
conhecimento por nós facilitado etc. Sugiro que Ao que parece, quanto mais rebaixada na hierar-
prever, executar e refletir sobre as fases posterio- quia institucional, mais essas mulheres temiam
res de um projeto são ações que devem ser inte- a exposição e a represália, mais atentavam para
gradas à reflexão antropológica e, no cenário que a exatidão do que era dito, escrito e circulado.
aqui discuto, fica-me ainda mais claro que “pos- Assim, não me parece uma surpresa que pessoas
terior” é um qualificativo relativo e questionável. do quadro da direção do centro de saúde nada
Para nós, talvez seja “devolução”, para as pessoas, tenham dito sobre as entrevistas impressas que
que nem sempre imaginam quando começam e lhes devolvemos.
terminam nossos propósitos etnográficos, talvez Desde o início, estas pessoas sabiam que fala-
seja apenas mais uma etapa de diálogo. vam em um contexto de um projeto de pesquisa
Durante o projeto de extensão na Guariro- e extensão, que haviam assinado um contrato
ba, as 29 pessoas receberam suas entrevistas em (TCLE), que existiam um gravador e um roteiro
envelopes individuais das mãos da pesquisadora de perguntas e que não éramos pessoas daque-
que conduziu a entrevista, evitando deixar a en- le centro de saúde – aspectos que poderiam lhes
trevista com colegas de trabalho, para não violar lembrar da situação atípica e artificial da entre-
a privacidade. Explicamos que, resguardado o vista. Essas funcionárias já haviam observado a
sigilo (com o uso de pseudônimos e descontex- presença de muitas outras pesquisadoras no lo-
tualização), as partes sublinhadas das entrevistas cal, já que a Universidade de Brasília e Universi-
eram centrais a nosso ver e, por isso, tendiam a dade Católica de Brasília têm a Ceilândia como
subsidiar nossas análises. Várias pessoas apenas “território” de pesquisas em saúde. Ainda assim,
agradeceram pela entrevista. Outras pessoas, ao questionaram os dados que lhes apresentamos.
esbarrarem conosco pelos corredores, disseram Estavam acostumadas a ser entrevistadas por
ter apreciado a leitura. Algumas pessoas critica- pesquisadoras, mas muito raramente haviam
ram trechos específicos. Por fim, algumas pessoas tido acesso aos subsequentes relatórios finais, ar-
pediram expressamente que sua entrevista não tigos ou livros publicados ou às aplicações diretas
fosse divulgada, pois acreditavam que mesmo sobre o oferecimento dos serviços naquele centro
de forma velada, pudessem sofrer consequências de saúde. Viam os banners com “resultados” das
naquele ambiente de trabalho, na Secretaria de pesquisas, que esporadicamente eram afixados
Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal às paredes do local. Nunca mais reencontravam
(SES/GDF), ou mesmo no bairro onde o centro a pesquisadora ou sequer sabiam no que aquela
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pesquisa tinha se tornado. Avento que elas espe- de suspeita, já que ressaltou justamente frases
ravam que, findo o projeto, desapareceríamos que centralizavam opiniões e, sobretudo, dile-
como em projetos anteriores e por isso se surpre- mas sobre trabalhar naquele centro de saúde. Ao
enderam quando retornamos com as entrevistas. sublinharmos, ficou evidente para essas entre-
Foi, portanto, uma oportunidade de entender as vistadas o que nós – a partir de parâmetros das
imagens de “pesquisa”, “extensão” e “projeto” em Ciências Sociais – elegemos como importante em
um serviço de atenção básica. seu discurso o que talvez não correspondesse ao
Pedir para não citar certos trechos, sugerir a que elas julgavam como prioritário – a partir de
correção dos “erros” e discordar do texto degra- sua prática de trabalho com profissionais de saú-
vado foram as reações mais comuns encontradas de. O texto devolvido e devidamente sublinhado
nessa etapa da devolução das entrevistas, rela- comunicou a sensação de estranhamento sobre
tadas ao longo das reuniões semanais de nossa nossa presença e constante observação ali den-
equipe. Inspirada por Franchetto8, aqui também tro. Elas pareciam nos sugerir que a situação de
estou a falar de “concomitantes e contraditórias entrevista poderia acontecer em uma atmosfera
representações da escrita”. Na seção seguinte, íntima e até catártica que tendia a se esvair num
discuto os três tipos de reação com mais vagar. documento escrito.
O que poderia ter ficado como uma etapa espi- A reação delas me faz pensar que nossa prá-
nhosa do projeto, simplesmente guardada na tica estabelece um jogo ambíguo. Se tivéssemos
memória ou no diário de campo, passou a dado entregado as entrevistas sem marcas, uma troca
de pesquisa e oportunidade epistemológica. O de impressões livre da contrição inicial feita pelas
potencial metodológico e ético que guardam pesquisadoras poderia ter acontecido. Por outro
parece produtivo para pensar nossas práticas de lado, eu tive a intenção de explicitar cada etapa
pesquisa e interações em campo. As demandas do projeto para apresentar às participantes o nos-
dessas funcionárias se mostraram inteiramente so modus operandi e assim aproximar as duas prá-
legítimas e apontam para problemas intrínsecos ticas de trabalho que estavam a dialogar – uma
e persistentes de nossas pesquisas. produzida num centro de saúde e outra, numa
universidade. Só depois, finda a pesquisa e escre-
Problematizando as reações vendo esse artigo, eu fui entender que devolver as
diante das entrevistas devolvidas entrevistas impressas e marcadas poderia inter-
ferir no modus operandi delas. Ao retirar o con-
a) “Não citem esse trecho sublinhado” sentimento e rever os termos da relação conos-
Algumas funcionárias nos procuraram e co, elas estavam nos mostrando outros aspectos
apontaram trechos sublinhados que não deve- importantes, não percebidos por nós. Aqui, aos
riam ser divulgados em nossos relatórios. Desau- poucos vou tentando chegar a esse ponto.
torizar o uso desses trechos reforça a dimensão
de autoria, mas pode também indicar que, após b) “Eu não falei com esses erros
o dito, talvez não concordassem tanto com a pró- de português assim!”
pria ideia, agora na forma do escrito. Aqui, fica Numa entrevista, navega-se pela oralidade,
clara a relação de poder estabelecida pelas antro- com toda a riqueza da espontaneidade. O pensa-
pólogas com gravador e impressora em punho: mento começa a se linearizar na fala, mas ainda
a partir da materialidade de uma entrevista de- guarda imprecisões, reviravoltas, recolocações.
gravada, fica muito mais difícil para as interlo- Falar é, sobretudo, ensaiar, de forma tentativa e
cutoras voltarem atrás, se desdizerem, mudarem cambiante. E, claro, quando falamos não estamos
suas opiniões. Imprimir um texto é fazer as ideias totalmente preocupadas com a precisão da “nor-
passarem a existir de modo mais perene. Assim, ma padrão”9. Contudo, uma degravação literal
acreditando na fidedignidade da degravação, a irá incluir tanto essa despreocupação quanto essa
entrevistada se sentia impedida de voltar atrás no imprecisão. E algumas interlocutoras não se reco-
que dissera durante a entrevista e acreditava que nheceram na degravação literal de sua entrevista.
só podia negociar a etapa de divulgação dessas Esse grupo não tinha por costume ter sua voz
ideias. Ao pedir a não divulgação, elas estavam transformada em texto e, mesmo que tenhamos
retirando o consentimento e, em nossos relató- deixado claro no início que as entrevistas iriam
rios, esses trechos desautorizados não foram in- ser degravadas, agora entendo que essa explica-
cluídos. ção não fez total sentido, não era prática comum
Fui entendendo também que a opção por su- naquele local. Esse grupo reagiu a dois aspectos.
blinhar alguns trechos pode ter gerado um clima Primeiro, elas disseram não se reconhecer como
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“autoras” do texto escrito, embora se identificas- “prontuários”, “dossiês” etc. Dentro da hierarquia
sem como autoras das ideias trocadas durante a estatal, a opinião individual pode criar ou acir-
entrevista – propondo que ampliemos a ideia de rar conflitos interpessoais e gerar, assim, novo
autoria quando se trata de materiais de natureza processo de adoecimento laboral. Além disso, ao
distinta. Segundo, insinuavam que esse cenário pedir que o escrito se padronizasse, essas funcio-
da devolução tinha um quê de traição, afinal, “a nárias nos alertavam para a possível estigmatiza-
transcrição do enunciado, tornado texto, perde ção que poderiam sofrer ao ficarem patentes, no
parte de seu sentido”10. As pesquisadoras haviam texto impresso, as diferenças com que usavam a
“alterado” o meio da conversa sem que esse pro- língua portuguesa em sua expressão oral9. Como
cedimento tivesse sido totalmente comunicado bem lembra o autor, enquanto a fala é polissêmi-
por nós ou compreendido por elas. ca, a escrita é uma caricatura com potencial de
Há aqui um dilema entre a oralidade e a es- classificar entre “quem sabe” e “quem não sabe”.
crita. A oralidade acontece a todo momento, de Deixar essas diferenças aparentes ajudaria a re-
improviso, de supetão. Mas quando se grava em forçar o prestígio social das chefias daquele lugar
áudio e depois se degrava esse conteúdo, a ora- que, em geral, se afirmavam pelo uso “correto” da
lidade é registrada, vira um texto por um ato de língua em seus documentos (ibid). Aos poucos,
poder da pesquisa. Há aqui uma inquietação éti- orientada pelas reações dessas mulheres, fui en-
ca e metodológica sobre a técnica da entrevista, tendendo que não foram medidos os riscos que a
afinal ela simula uma conversa, mas a degravação devolução desse material poderia gerar.
comprova que não8. Ela traz de volta a sujeição Foi aventada uma solução: inserir colche-
das participantes ao poder das pesquisadoras. tes por parte da equipe para deixar o texto mais
Gravar capta e cristaliza o oral, com todas as mar- fluido e sem “erros” gramaticais. Mas uma das
cas características dessa forma de comunicação. pesquisadoras ponderou que os colchetes seriam
Argumentamos com essas pessoas que a oralida- uma marca visível de nossa correção do texto na-
de tem uma especificidade em relação ao escrito tivo. Nossa voz de pesquisadoras pairaria como
e, que, a nosso ver, não é algo menor11. Esse estra- superior, ao sobrevalorizar a “norma padrão” e
nhamento apresentado em campo me faz lembrar ao operar tal correção. Se, por um lado, os col-
o quanto a antropologia se apega à forma nativa chetes deixam clara a autoria da fala, evitando
de dizer as coisas, como se, ao optar pela litera- intromissões das antropólogas na voz alheia, por
lidade, estivesse mais próxima de um mitificado outro lado, explicita quem, onde e porque se alte-
ideal de verdade, autenticidade, originalidade12. ra o texto. Para a Antropologia, tradicionalmen-
Mas essas interlocutoras não aceitaram as expli- te, respeitar é garantir a fidedignidade da voz dos
cações da antropologia. Elas explicaram que o que outros, durante a entrevista ou depois. De forma
está escrito é documento, é oficial, é perenizável. diferente, essas pessoas mostraram que corrigir
Um “erro” de concordância verbal, por exemplo, o texto da entrevista não era mero preciosismo e
que pouco denigre se dito numa reunião, muito apreço pela língua portuguesa. Mas se tratava de
atestará contra a competência desta funcionária uma adequação às estruturas institucionais, re-
se aparecer impresso num ofício. Essas pessoas velando claramente que a preocupação da antro-
pediram que o texto da entrevista fosse padroni- pologia com o fidedigno nem sempre contempla
zado conforme a norma gramatical do português um cuidado ético, mas é simplesmente uma prá-
e assim foi feito com todos os trechos citados no tica científica e, desse modo, pode se tornar exter-
relatório final. na ao encontro entre duas mulheres e, também,
Essas interlocutoras lembraram que, confor- ao se alinhar ao prestígio advindo da “norma
me a lógica daquele mundo, a entrevista ao vi- padrão”, pode simplesmente reforçar hierarquias.
rar papel se transformava em documento. Esse Respeito, nesse contexto, elas nos explicaram, se-
grupo explicava que essas entrevistas haviam ria não evidenciar ou exponenciar a desigualdade
surgido e continuariam a existir dentro daquele entre o formal e o informal, entre o acadêmico e
centro de saúde mesmo após a nossa saída. Um o não acadêmico, entre “nós” e “elas”. Assim, es-
conflito, que aparentemente se refere à forma tavam a nos falar de seu mundo e das habilidades
do texto, revelava sentidos invisíveis sobre as re- que precisavam desenvolver para sobreviver em
gras e hierarquias da saúde pública. Ideias, opi- um ambiente eivado de poder. Hoje percebo que
niões e análises feitas individualmente em uma tanto a literalização do oral quanto o artifício dos
entrevista, por exemplo, seriam muito frágeis se colchetes poderiam ser novas modalidades de
não estivessem investidas como “memorandos”, violência naquele campo.
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c) “O que eu disse não foi isso que está aqui. de forma errada. Estou me corrigindo e gostaria
Eu disse de outro jeito. Está errado do jeito que vocês corrigissem também”. No verso de uma
que está aqui. Quem transcreveu, folha de receituário, anotou tudo que julgou pre-
transcreveu errado” cisar de retoques. Mas aqui não foi atribuída res-
Até aqui a entrevista transcrita foi tida como ponsabilidade externa: “Se está gravado, é porque
legítima, tanto como metodologia quanto como fui eu que falei. Eu falei desse jeito que está aí”,
resultado impresso, já que, no primeiro caso, foi ela reforçou na ocasião. Também é interessan-
pedido para que trechos não fossem citados e, no te notar o que foi anotado no receituário. Por
segundo, para que outros tivessem a língua por- exemplo, os nomes de duas ex-diretoras do cen-
tuguesa “corrigida”. No terceiro pleito que nos foi tro de saúde tinham sido confundidos durante a
dirigido a partir do ritual de devolução, houve entrevista. Essa senhora, já na casa dos quase 60
uma clara contestação da veracidade original da anos e perto da aposentadoria, nos mostra como
gravação e/ou da competência do trabalho da de- acreditou nos aparelhos, fenômeno notado em
gravação. Esse pleito descortina nossa crença nos relação a outros equipamentos que perscrutam o
aparelhos de gravação de áudio e vídeo e também humano13. Ou, ao menos, ela não desejou con-
na própria capacidade de ouvir e compreender o frontar diretamente o trabalho de degravação da
discurso oral e depois passá-lo ao discurso escri- equipe, afinal este não é um erro que poderia ter
to. Também exige que se leve a sério os trechos sido feito pelas pesquisadoras, pouco familiariza-
tidos como “inaudíveis”. Em todas as entrevistas, das com as sucessivas gestões do centro de saúde.
houve trechos que não ficaram claros o suficiente Aqui, a interlocutora percebeu que, diante da
para serem transcritos, por problemas do apare- sua entrevista degravada, por um lado, estava de
lho, do timbre de voz e tipo de dicção da par- posse de algo que ela também ajudara produzir e,
ticipante, da acústica ambiente, da capacidade por outro lado, que havia a chance de rever esse
auditiva das pesquisadoras. Por vezes, outra pes- texto. Assim, percebeu também que havia aber-
quisadora da equipe fez uma segunda audição. tura para o diálogo com a equipe, que havia uma
Se ainda restassem dúvidas, a praxe foi simples- percepção comum sobre a transitoriedade desse
mente sinalizar [trecho inaudível] e seguir com a material e que compartilhávamos do pressupos-
degravação. Nossas entrevistadas nos instigaram to da construção coletiva da interpretação. Dessa
a desnaturalizar nossas técnicas de pesquisa. Pes- forma, diante do pleito dessa senhora, penso as
quisadoras e seus aparelhos são falíveis, por con- negociações em campo em termos de sucessivas
seguinte os textos resultantes são parciais e tudo aproximações, mas também de possíveis descon-
isso pode ter repercussão para as pessoas com fortos que podem ser gerados pelo encontro et-
quem convivemos em campo. nográfico14. Atentar para ambas facetas se torna
Os trechos tidos como “errados” foram assi- requisito ético fundamental em nossa prática
nalados por essas entrevistadas e, nesse momen- como pesquisadoras.
to, foram elas a nos devolverem as entrevistas
para que fossem retificadas. Assim o fizemos e a Aprendizados ao fazer antropológico
próxima versão impressa da entrevista que lhes
entregamos seguiu sem “erros”, nos moldes em Após esse conjunto de reações, meu primeiro
que haviam nos requisitado. Um vai e vem de di- impulso à época foi questionar a estratégia de rea-
tos e escritos, à primeira vista, pode revelar certo lizar, sublinhar e devolver entrevistas. Se tivessem
litígio e desconfiança, mas pode também reforçar recebido somente o relatório, essas pessoas talvez
o diálogo dentro do projeto. Percebo que essas identificassem os trechos de suas entrevistas, mas
reações todas nos apresentaram chances de aden- estariam dentro da análise contextual elaborada
samento dos laços em campo e da possibilidade por nós, em vez de perceberem trechos eviden-
de aproveitar aportes etnográficos inesperados, ciados e potencialmente comprometedores nas
sobretudo sobre os trechos discordantes e a even- desgravações individuais. Mas, por outro lado,
tual intenção de silenciá-los, de nossa parte (com elas teriam acesso somente a um tipo de contex-
os colchetes de justificação como “inaudível”) ou to, aquele criado para fins do relatório, e não de
da parte delas. outro contexto, aquele em que sua ideia surgiu
Houve um pleito semelhante que não se re- na entrevista. Também cogitei posteriormente se
feriu à língua portuguesa, mas ao conteúdo da entrevistas foram, de fato, a melhor abordagem
entrevista transcrita. Uma enfermeira convidou metodológica ao tema da encomenda. Talvez
um dos pesquisadores à sua sala e disse, “Em al- consultar as fichas funcionais, encontrar e con-
guns trechos aqui, eu me expressei mal. Está dito versar com as funcionárias fora do ambiente de
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trabalho, realizar observação das práticas de tra- e dos documentos em seu espaço de trabalho.
balho, por exemplo, ajudassem a chegar ao adoe- Mais do que isso, elas me provocavam a perceber
cimento laboral de forma menos ruidosa. o quanto o nosso ethos – ao embalar histórias em
Mesmo com repercussões inesperadas, perce- roupagens antropológicas e, nesse caso, escritas
bo que devolver as entrevistas nos fez pensar em – poderia classificar narrativas em versões mais
vários aspectos pouco visíveis e dizíveis sobre o ou menos sofisticadas, contribuindo para man-
fazer antropológico. Houve aqui uma boa opor- ter um abismo entre o falado e o escrito, entre
tunidade epistemológica ao se revelarem tão pro- quem conta e quem publica8. Ao colocar em prá-
blemáticas as práticas que por nós são tidas como tica uma “ditadura grafocêntrica”8 no ritual de
tão banais. No caso do ritual que ensejamos, uma devolução de entrevistas degravadas e impressas,
nova rodada de negociações tomou corpo e nos estávamos por contribuir com a alteridade subal-
provocou com inesperadas questões éticas, po- terna já existente dentro daquele centro de saúde.
líticas e metodológicas. A seguir, discuto alguns Segundo, todas as demandas ouvidas nesse
dos principais aprendizados que essa experiência centro de saúde foram úteis para revermos nossa
deixou, na certeza de que ainda há outros por participação e também os dados que ajudamos a
elaborar. construir. Estamos acostumadas a pensar como
Primeiro, essas pessoas refletiram sobre sua “nossos” os materiais de pesquisa, sobretudo os
própria palavra e, sobretudo, sua posição den- diários de campo. Por isso a cautela em lidar com
tro do centro de saúde. Assim, esse diálogo sobre os mesmos. Creio que, de um lado, as funcioná-
as entrevistas pode ser considerado um mútuo rias desse centro de saúde nos mostraram como
processo pedagógico e político de como é tra- não devemos ter plena decisão sobre os materiais
balhar em um centro de saúde e de como é fa- gerados, sobretudo porque perceberam que so-
zer antropologia. Parece que elas perceberam mos ativas demais ao ler, selecionar, sublinhar,
que ler e retificar as entrevistas constituía um analisar, escrever e divulgar sobre o que elas nos
momento de posição e de decisão. Diferente do contaram; mas que devemos assumir mais res-
que essas personagens subalternas enfrentavam ponsabilidade sobre os resultados gerados, de-
diariamente nesse local de trabalho, na relação volvidos e divulgados. Sugiro, portanto, que os
conosco, tiveram a chance de comunicar como materiais etnográficos possam ser de construção
queriam ser tratadas e retratadas nos textos, ou, e também de propriedade coletiva, considerando
numa perspectiva mais pessimista, simplesmente inclusive as leitoras que iniciarão uma nova roda-
reproduziram o tipo de veto que naquele espaço da de diálogos com o texto apresentado.
era corriqueiro. Notei várias ocasiões em que es- Terceiro, esse ritual de devolução instaurou
sas pessoas sentiram o veto em direção contrária, um debate sobre autoria, intersubjetividade e,
frequentemente tendo os papeis como foco das finalmente, poder. Elas nos informavam se pode-
cizânias. Era inadmissível, por exemplo, que pa- ríamos ou não usar as entrevistas como material
péis figurassem nos murais das salas e corredores de reflexão. Isso quer dizer que uma interlocuto-
com rasuras. Era frequente como funcionários ra pode dizer que não posso escrever e divulgar a
do corpo administrativo reclamavam das antigas etnografia sobre ela? Que mesmo dando acesso
máquinas de escrever que ainda persistiam no inicial à sua vida e ideias, a análise e a divulga-
local, numa clara alusão à dificuldade de corri- ção posteriores também precisarão ser negocia-
gir erros nos documentos produzidos, exigindo, das? Que o costume na antropologia tem sido o
muitas vezes, que fossem totalmente redatilogra- de não trazer à baila as negativas recebidas em
fados. Dentre uma miríade de papéis, era notório campo? (A colega antropóloga Gretel Echazú me
como só algumas pessoas poderiam acessar, assi- lembrou que Miriam Grossi comentou sobre “o
nar e despachar certos tipos, como os receituários curriculum vitae oculto”15, no qual todos nossos
de medicamentos (médicos), as requisições de projetos rejeitados, os fracassos, as negativas, os
medicamentos (farmacêutico), as autorizações des-andamentos de nosso trabalho ficassem re-
de férias e abonos (diretora) etc. Prontuários, gistrados. Tudo aquilo que não se conta. Echazú
ainda quando em sua versão impressa, eram for- pergunta, será que a antropologia é realmente
mados por acréscimos paulatinos de papéis escri- “viciada em sucesso”?). Por fim, a quem pertence
tos, assinados e carimbados por várias pessoas e uma entrevista? Claro, há a pessoa que viveu a
sempre passíveis de leitura e – pior – de correção história narrada e se disponibilizou a contá-la.
retrospectiva por parte das chefias. Assim, para As ideias, opiniões e vivências são dela. Mas e a
além do projeto de extensão, nossas interlocuto- narração sobre as mesmas, já que esse corpo de
ras nos contavam sobre a centralidade do poder experiências foi repensado, organizado, articula-
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do mediante as perguntas da pesquisadora? Cla- zações que foram estabelecidas conosco, na etapa
ro que esse processo comunicativo poderia ter em que análise e veiculação dos resultados come-
acontecido sem a presença da pesquisadora, da çavam a acontecer. Esta experiência na Guariroba
pesquisa, do roteiro de perguntas, do gravador, reforça as sérias limitações do TCLE que outras
do setting de entrevista etc. Mas, de alguma for- pesquisadoras têm apontado17-19, e, se for mesmo
ma, a presença da pesquisadora ajudou para que necessária sua utilização, deve permanecer em
essa experiência fosse contada mais uma vez e, constante avaliação e aperfeiçoamento, inclusive
assim, linearizada. (Essa suposta linearização de levando a sério que outros Termos precisarão ser
uma experiência pode ganhar ares terapêuticos assinados nas demais etapas de um projeto, como
intensos para a entrevistada, como nos lembra parece ter sido a sugestão de nossas interlocuto-
Maluf16, também no contexto de uma pesquisa ras nesse centro de saúde. Em última instância,
antropológica). Ao final, a entrevista não seria de inclusive, talvez devamos optar por descontinuar
propriedade das duas partícipes, entrevistadora e o uso do TCLE em muitas situações20.
entrevistada? Esse produto foi construído a mui-
tas mãos e só existe porque as duas partes se en-
contraram e se dispuseram a permanecer juntas Considerações finais
por algum tempo (e depois uma terceira parte se
dispôs a transcrever e uma quarta parte se inte- Marcel Mauss21 foi um importante antropólogo
ressou em ler o resultado etc.). Essa ponderação que nos ensinou como a força mágica repousa
tem lugar porque ao editar ou proibir a veicula- no princípio básico do contágio: uma vez ligado
ção de trechos da entrevista, as entrevistadas es- a alguém, aquele objeto (ou ideia) para sempre
tavam reivindicando a autoria exclusiva daquele estará em contato com esse alguém. Essas funcio-
texto que foi oral e depois também escrito. Nesse nárias na Guariroba nos interpelaram, ao tratar
movimento, estavam equivalendo uma entrevista de forma ciosa as entrevistas e os trechos subli-
– que implica em um diálogo – a um monólogo. nhados, e ao nos provocar a pensar que o “ma-
O fato de estas interlocutoras nos dizerem o que terial de campo” não é inteiramente “nosso”, mas
desejavam ver publicado ou não era uma inver- tampouco inteiramente “delas”. Esse encontro e
são do jogo, já que demandavam para si o papel diálogo – sempre uma negociação e renegociação
que os pesquisadores têm assumido sozinhos a – é o que permite a construção do dito “dado an-
partir do material que angariam em campo. tropológico”.
Quarto, muito usado nas pesquisas das áre- A confiança estabelecida entre entrevistadora
as da saúde, o TCLE geralmente é condicionante e entrevistada fica mais clara e viva no momento
na aprovação dos projetos de pesquisa que são do enlace da conversa. É a relação que embalou e
submetidos aos CEPs. Em geral, é apresentado à construiu a possibilidade de esse diálogo acon-
interlocutora no início da convivência e pretende tecer e a entrevistada poder contar histórias, in-
esclarecer como a pesquisa será conduzida. Mas, timidades, fofocas, desabafos e sofrimentos. São
nesse projeto ficou claro que, usado dessa for- segredos que nos foram revelados sob regime de
ma, o TCLE se transformaria em uma espécie de confiança. Depois disso, ao se deparar, por exem-
“cheque em branco”, assinado pela interlocutora plo, com aquela mesma conversa em papel, a in-
antes mesmo de saber o que por ela seria dito na terlocutora vacila: a relação de confiança inicial
situação de entrevista. Assim, uma medida to- está mais difusa e distante. Essas interlocutoras,
mada foi falar do Termo antes, mas só oferecê-lo ao guardar na memória o encontro e ao não nos
para assinatura depois da conclusão da entrevis- encontrar tão constantemente no futuro, não
ta. Assim, no início, a pessoa saberia de um docu- têm garantia de que a relação social que conferiu
mento a mediar aquela relação e que, depois de sentido àquele diálogo vai ser respeitada. E talvez
ter clareza sobre o que fora dito, poderia avaliar aí resida o medo de que a confiança inicial não
se autorizaria ou não o uso de sua prosa. Assim, o acompanhe os produtos posteriormente gera-
Termo não é a primeira nem a última instância de dos. Devolver esse material me comunicou não
negociação de acesso ao campo. Foi parcimonio- só sobre as opiniões e táticas realizadas por es-
sa nossa aceitação pelas anfitriãs, à medida que sas mulheres, mas, de forma mais ampla, sobre
elas foram entendendo o que por nós estava sen- aquele local de trabalho em específico e sobre que
do proposto. Negar o uso de certo trecho, exigir tipo de papéis podem virar documentos numa
correções linguísticas ou questionar a qualidade instituição de saúde. Os pleitos de edição, cor-
dos equipamentos e daquelas que os utilizaram reção e supressão por parte dessas funcionárias
são exemplos de sucessivas negociações e autori- revelaram como a relação de confiança era ainda
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inicial, instável e brotante, carecendo de novas cionárias do centro de saúde nos contaram sobre
e reiteradas manifestações para ser consolida- esse espaço onde passavam grande parte de seus
da. No estranhamento que revelaram diante de dias: elas nos revelaram os riscos que corriam
nossa forma de trabalhar e ao indicarem como diante de uma ação que eu chamaria de “bruxa-
as relações de pesquisa também precisavam se- ria institucional”. Evidenciaram, portanto, os in-
guir as relações daquele espaço, conhecemos tensos regimes de poder e subordinação com que
não só como definiam “pesquisa”, mas os valores precisavam lidar cotidianamente dentro de uma
que norteavam os contatos cotidianos dentro do instituição de saúde, mas também que poderiam
centro de saúde como, por exemplo, confiança facilmente ser instaurados por nós, pesquisado-
e desconfiança; tempo e convivência; transpa- ras, em pleno trabalho de campo, mas nem sem-
rência e fofoca. Essa etapa do projeto, portanto, pre com plena percepção dos desdobramentos
contribuiu para aprofundar nosso entendimento desses regimes e de seus riscos. Rial4, por exem-
sobre essa instituição, em termos de funciona- plo, defendeu a impossibilidade da restituição
mento, atores, hierarquias e conflitos, somando “porque o artigo ou o filme serão percebidos de
às demais pesquisas antropológicas sobre centros um modo que não dominamos e que podem ter
de atenção básica22. pouca relação com o que foi antropologicamente
O medo de um trecho sublinhado ser citado realizado”. Mas nunca temos controle completo
fora de contexto e fora da relação de confiança da realização nem tampouco dos desdobramen-
foi o que instaurou a sensação de insegurança e tos de um projeto de pesquisa/extensão, e seria
vulnerabilidade que essas pessoas nos apresenta- uma presunção ignorar o diálogo que muitas ve-
ram ao receberem suas entrevistas de volta. Re- zes continua a acontecer no encontro com o ou-
conhecemos que transformamos o oral em escri- tro. Os dados antropológicos serão sempre rein-
to, literalizando o que geralmente é formulado e terpretados, inclusive por nós com o passar dos
amadurecido somente na linguagem oral. Exata- anos. Por fim, sugiro que a imprevisibilidade da
mente como Mauss21 nos ensinou, um pedaço do situação de devolução não deve nos acanhar de
outro em mãos erradas pode ser a oportunidade continuar experimentando fazê-la. Embora no
de produção de uma magia perigosa. Um peda- caso aqui relatado um ruído tenha se configura-
ço da funcionária segue conosco depois de sua do, fortemente problematizando nossas escolhas
entrevista e o que for feito desse pedaço será de metodológicas, acredito que se intensificou o co-
suma importância porque potencialmente am- nhecimento mútuo entre nós e as entrevistadas,
bivalente. Parece que selecionado, sublinhado, abrindo a possibilidade de revisar a antropologia
fracionado e descontextualizado, aquele trecho e de aprimorar o entendimento sobre a realidade
guarda ainda maior poder de destruição. As fun- laboral no SUS.

Agradecimentos

Um primeiro rascunho deste texto foi apresenta-


do no GT “Hospitais e instituições de saúde: Um
espaço inspirador para as pesquisas em Ciências
Sociais”, XV CISO – Encontro Norte e Nordeste
de Ciências Sociais, Teresina. Agradeço aos partí-
cipes do GT; a Monique Batista, Marcos Alvaren-
ga, Luiza Rabello, Polliana Machado e Natharry
Almeida que integraram a equipe do projeto de
extensão e às funcionárias do centro de saúde que
participaram do mesmo; à Debora Diniz, Gretel
Echazú e Christine Alencar, Antonádia Borges e
Cristina Patriota (minhas colegas da “Cozinha”,
um precioso espaço de crítica afetiva aos textos
em construção) que generosamente leram e co-
mentaram diferentes versões desse texto.
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Fleischer S

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