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A CENSURA REINVENTADA

Se a lei valesse alguma coisa para o STF, ninguém poderia ser polícia, promotor e juiz
ao mesmo tempo, como Alexandre de Moraes está sendo no seu inquérito das fake news

J. R. Guzzo

Através do Tribunal Superior Eleitoral, o seu braço operacional


nas eleições, o Supremo Tribunal Federal resolveu participar da
campanha eleitoral para a escolha do presidente da República em
outubro próximo. Já é muito ruim que o TSE, normalmente, se
comporte como um “tribunal”, dando ordens num processo que
nada tem a ver com as funções da Justiça; deveria ser um simples
serviço administrativo para cuidar da operação eleitoral — urnas,
mesários, computação eletrônica dos votos. Mas tudo fica duas
vezes pior quando o juiz apita para um dos times que estão
jogando. É algo bem simples de se entender vendo o que é, na
vida real, esse TSE que está aí, e que vai mandar nas eleições. Seu
presidente até agosto é o ministro Edson Fachin, o criador
declarado da candidatura de Lula — foi ele quem tomou a
extraordinária decisão de anular, por “erro de CEP”, as quatro
ações penais contra o ex-presidente, incluindo sua condenação
pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, em três
instâncias e por nove juízes diferentes. A partir de agosto, dois
meses antes da eleição, Fachin será substituído no cargo pelo
ministro Alexandre de Moraes, que de uns tempos para cá
nomeou a si mesmo comandante da oposição política no Brasil e
utiliza sua posição no STF para hostilizar sistematicamente o
presidente da República e seus aliados. Ambos têm o apoio de
uma Corte Suprema na qual sete dos 11 ministros foram
nomeados por Dilma Rousseff e pelo próprio Lula — sendo que
um dos que não foram é o próprio Moraes. Pense durante 30
segundos nisso, faça suas contas e veja onde foram amarrar o
burro deste país.

Seria difícil, em condições normais de temperatura e pressão,


acreditar que um grupo desses iria se comportar de forma
imparcial numa eleição-chave como será a de outubro. Nas
condições reais de hoje, e apenas observando as decisões públicas
que os ministros têm tomado, o difícil passa à categoria de quase-
milagre. Ninguém, entre todos eles, assumiu o destaque de
Alexandre de Moraes — hoje o mestre-sala, a porta-bandeira e a
bateria, juntos, da Escola Unidos do Ele Não. O ministro, a cada
despacho, mostra que está fazendo tudo para Bolsonaro não se
reeleger; daqui para diante, a menos que vire de rumo com algum
cavalo de pau, vai fazer mais. Em sua última explosão de
hiperatividade, ele proibiu a plataforma de comunicação social
Telegram de operar no Brasil — mais um dos assassinatos em
série da lei que vêm sendo produzidos por seu inquérito perpétuo
“contra as fake news”. Logo em seguida permitiu de novo, como
um paxá que manda e desmanda, mas pode proibir outra vez.
Entre uma decisão e outra, dentro da inevitável situação de
ilegalidade permanente que é criada por um inquérito ilegal,
surgiu mais um episódio escuro — o uso da Polícia Federal por
parte de um magistrado, coisa que não pode acontecer pelo que
está escrito na lei, mas que acontece há três anos seguidos na
investigação de Moraes. E daí? Se a lei valesse alguma coisa para
o STF, não haveria inquérito nenhum, porque ninguém pode ser
polícia, promotor e juiz ao mesmo tempo, como Moraes está
sendo no seu inquérito. Vida que segue — até a próxima agressão
à lei por quem deveria ser o seu principal cumpridor.

Não é preciso dizer, claro, que o Telegram, uma plataforma


alternativa, é utilizado pelo presidente da República para a sua
comunicação direta com o público — uma saída para ele, que é
figura malvista pelo consórcio Facebook, Instagram, Google,
Twitter, YouTube, WhatsApp, TikTok e Kwai. Muito a propósito,
essas empresas se prontificaram a “colaborar” com o TSE durante
as eleições, para impedir, segundo elas, a divulgação de “notícias
falsas”. O Telegram não se prontificou, pelo menos até agora —
eis aí o problema. Não basta a soma de todas as outras
plataformas; o TSE quer 100% de silêncio. É uma aberração de
circo. A autoridade eleitoral brasileira não tem nada de se meter
em acordos com empresas estrangeiras, como é o caso de todas
elas, para agirem em conjunto numa eleição no Brasil. Não tem
nada de se meter, na verdade, com meio de comunicação nenhum,
veículo ou não, para regular a circulação de notícias; isso, muito
simplesmente, desrespeita o que está escrito na Constituição, que
garante a liberdade plena de expressão. De novo: e daí? Quem é
que está ligando para a Constituição? Ao contrário — o que estão
fazendo é dobrar a aposta. Logo depois das ordens e contraordens
de Moraes, Fachin expediu um ofício no qual diz “insistir” na
“adoção de estratégias de cooperação” entre o Telegram e o
TSE”. O mesmo Fachin, ainda há pouco, havia dado mais força a
uma “Comissão de Segurança Cibernética” do tribunal, que é
presidida justamente por Moraes: a seu pedido, o atual presidente
do TSE aumentou o número dos integrantes de 6 para 11, e deu-
lhes a atribuição de “monitorar” e reprimir a publicação de fake
news e “ataques a ministros e à Justiça Eleitoral” nas redes
sociais.

As palavras mágicas em toda essa história são “fake” e “news”,


assim mesmo em inglês — o supremo órgão do Estado brasileiro
nas eleições até agora não se deu ao trabalho de traduzir isso para
o português. É aí, na verdade, que está o pé de cabra com o qual o
TSE vai participar na campanha eleitoral para a Presidência da
República. “Monitorar” e agir no “combate à disseminação de
informações falsas em redes sociais”, como o TSE se propõe
oficialmente a fazer, é praticar censura. É a ferramenta que eles
estão dando a si próprios para controlar o que pode ou não pode
ser publicado durante a campanha eleitoral. Se não é censura e
controle, então o que é? Já existem na lei brasileira defesas
suficientes para proteger a sociedade dos delitos que se podem
praticar através da palavra — a calúnia, a injúria e a difamação.
Os autores desses crimes têm de responder por seus atos perante o
Código Penal; isso é tarefa da Justiça, e não tem nada a ver com a
autoridade eleitoral. Quem é a “Comissão de Segurança
Cibernética” para julgar, por exemplo, casos de denunciação
caluniosa? Que lei lhe deu esses poderes?

O STF, com o seu braço eleitoral, as empresas que controlam as


redes sociais e a militância política corromperam a ideia de “fake
news”. Uma notícia falsa não é assunto de interesse da Justiça ou
da autoridade do Estado; é questão que existe entre os meios de
comunicação e o público, e estritamente entre eles. A lei diz que a
expressão é livre, sendo vedado o anonimato; a partir daí, quem
decide o que é certo ou errado é quem ouve, vê ou lê a notícia, na
mídia ou nas redes sociais, e quem pratica crimes ao se expressar
tem de responder na Justiça por eles. Ponto final. Qualquer coisa
diferente disso é interferência ilegal na liberdade de palavra — é
quererem pensar por você. Onde está escrito, na lei brasileira, que
é proibido mentir? Mais: onde está escrito que o TSE, ou seja lá
quem for, tem o poder de decidir o que é mentira e o que é
verdade? De onde foram tirar a noção de que uma Comissão
nomeada pelo ministro Fachin define o que é notícia falsa e o que
é notícia verdadeira neste país? Quem nomeou o Facebook, o
Instagram ou o Twitter árbitros da verdade? Consta que Pôncio
Pilatos perguntou a Jesus Cristo, no seu julgamento: “Quid est
veritas?”, ou “O que é a verdade?” Consta que Cristo não
respondeu. Se nem ele sabia, e ninguém encontrou uma resposta
nos últimos 2.000 anos, por que o ministro Moraes acha que sabe?
É uma trapaça. Fake news, hoje, é a censura reinventada. Sua
utilização é interferência direta na campanha e, possivelmente, no
resultado da eleição. (28.03.2022)

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