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Rafael Mafei
18 out 2023_13h49
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Ao lado das conclusões da CPI da Covid, o relatório da CPI do 8 de janeiro ajuda a compor um
juízo bíblico do governo Bolsonaro. Ambos funcionam como autos dos anos de um país que não
esteve à deriva, mas sim preso a uma barca precária, arrastada por uma corredeira de golpismo
da qual só se escapa com alguma sorte.
Há, porém, uma importante diferença entre os produtos das duas comissões: o relatório de agora
não cairá nas mãos de um inerte Augusto Aras – e, portanto, Bolsonaro não pode contar com um
pronto arquivamento que o proteja do relatório desta comissão, diferentemente do que aconteceu
em 2021.
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U
ma CPI não tem poder, ela própria, de indiciar alguém. Ela apenas indica à autoridade
competente – no caso, o Ministério Público – as pessoas que, a seu juízo, devem ser
responsabilizadas. O indiciamento é um ato formal no qual se enuncia que um certo crime
aconteceu, e que há indícios suficientes de quem são os autores desse crime. Ao propor o
indiciamento de Bolsonaro e outras sessenta pessoas – ex-ministros de seu governo, militares,
assessores –, o relatório da CPI sugere dois caminhos: ou denunciam-se essas pessoas, caso o MP
entenda que as investigações estão maduras para respaldar uma ação penal; ou aprofundam-se
as investigações, para que fiquem claras as responsabilidades individuais de cada um deles. Caso
o segundo cenário venha a se concretizar, o relatório da CPI, bem como as provas por ela
coletadas, devem ser anexadas a outras investigações já em curso.
Bolsonaro, segundo a comissão, deve ser indiciado por quatro crimes: associação criminosa (art. 288
do Código Penal) pelo conluio entre ele, sua ajudância de ordens, militares (como o Exército) e
civis (como a Polícia Rodoviária Federal) com o fim de cometer crimes contra o estado de direito;
violência política (art. 359-P do Código Penal), porque a comissão entendeu que as blitze da PRF,
no dia do segundo turno das eleições, equivalem a violência psicológica por razões políticas; e,
por fim, a dobradinha golpe de Estado e abolição violenta do estado democrático de direito (359-M e 359-
L do Código Penal), tipificações que se mostraram operantes nos primeiros julgamentos dos
golpistas pelo STF.
Há algumas considerações a serem feitas. Primeiro, a caracterização do crime de violência
política soa forçada. É difícil sustentar que as operações policiais no segundo turno das eleições
configurem “violência psicológica”. O termo, em sua definição legal, diz respeito a atos que
geram dano emocional, atacam a autoestima e visam controlar ações e decisões por meio da
deterioração psicológica de alguém. Tipicamente, esse conceito é aplicado em casos de violência
contra mulheres presas em relacionamentos abusivos. É preciso muita elasticidade metafórica –
que não cabe na interpretação de tipos penais – para equiparar a conduta de Bolsonaro contra os
eleitores nordestinos à de um marido tóxico. Faz mais sentido compreendê-la como parte de
outras condutas, que configuram outros crimes já suficientemente graves, como os de golpe de
Estado ou de abolição do estado de direito. Ou seja, são atitudes que continuam merecendo
tratamento de crime, mas não como um delito à parte.
Se esses últimos dois crimes resultarem em denúncia, resta saber como a nova PGR se
posicionará em relação ao argumento de que o crime de tentativa de golpe de Estado absorve o
outro, de obstrução violenta ao funcionamento dos poderes constitucionais. Isso porque um
golpe é, necessariamente, o impedimento violento ao funcionamento de ao menos um dos
poderes constitucionais. Daí resultaria, portanto, a prática de um só crime. Nos primeiros
julgamentos do 8 de janeiro, vimos que o STF, vencidos os ministros André Mendonça e Luís
Roberto Barroso, acatou a tese da dupla incriminação, o que ajudou a elevar as penas dos
condenados. Mas isso só foi possível porque a denúncia contra os primeiros réus, apresentada
pelo subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, pediu condenações por ambos
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os crimes. A depender de quem vier a apresentar uma denúncia contra Bolsonaro, esse
entendimento poderá mudar.
Uma futura acusação contra Bolsonaro, caso se confirme, vai renovar os debates sobre a punição
de delitos nos quais autores poderosos, que pairam no topo de estruturas complexas de poder,
valem-se de executores anônimos e fungíveis para praticar crimes em seu benefício. É uma
discussão fundamental no caso do 8 de janeiro, em que uma tentativa de golpe foi executada por
pessoas com quem Bolsonaro nunca teve contato direto, mas que seguiam sua agenda.
A senadora Eliziane Gama fez o possível para mostrar que os invasores eram engrenagens
anônimas de uma máquina golpista, que servia inequivocamente aos interesses do ex-presidente.
Essa engenhoca antidemocrática, argumenta o relatório, constituiu-se a partir de cargos
governamentais, mas funcionava à margem deles, escapando, assim, de mecanismos de controle.
Seu amálgama e sua estrutura não provinham de posições burocráticas, mas da omertá golpista-
militar. Tratava-se, enfim, de uma organização criminosa, com diferenciação entre comandantes e
executores, que operava como estrutura eficaz de poder, à margem do direito. Novamente,
entrará em discussão a “teoria do domínio do fato”, que, de tão falada na época do julgamento do
mensalão, por pouco não virou fantasia de Carnaval.
O
s próximos capítulos estão na mão da PGR, que vive um momento de indefinição. Desde o
final de setembro, quando Augusto Aras despediu-se do cargo, a procuradoria-geral está
nas mãos de Elizeta Ramos. Ela é uma procuradora interina, e ficará na função até que
uma indicação seja feita por Lula e aprovada pelo Senado.
A PGR não foi pensada para ser exercida a título precário. Sua independência só pode existir
quando o procurador ou procuradora-geral está protegido por mandato estável. Do contrário,
essa pessoa poderá se sentir estimulada a exercer a função de modo dócil e favorável ao governo,
buscando permanecer no cargo. Bolsonaro foi ardiloso ao insinuar para Aras, desde o primeiro
momento, que o procurador poderia ser indicado ao STF. Queria, com isso, obter sua
complacência, e conseguiu. A condição interina de Elizeta Ramos pode criar uma situação
similar, supondo que ela queira ser efetivada no cargo. O Planalto já deixou claro que essa é uma
possibilidade.
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