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18 de Março de 2024

Análise jurídica da ficção


científica Minority Report.
Publicado por Cláudia Cristiane Victor de Lima há 5 anos

(Imagem retirada do site Free Images)

O presente artigo tem como escopo principal a análise jurídica


do filme Minority Report.

O conceito da cláusula do devido processo legal tem origem no


due process of law, na Inglaterra e nos Estados Unidos cons-
truído com base em entendimentos jurisprudenciais. Essa cons-
trução teve seu início na Inglaterra e depois nas colônias norte-
americanas com a edição do bill of rights e suas emendas em
que passou a ter previsão expressa. Sua origem mais remota
está na Magna Carta assinada por João Sem Terra em 15 de ju-
lho de 1215.

Entretanto, mesmo após a elaboração da Magna Carta os direi-


tos por ela assegurados continuaram sendo ignorados por vários
reis. Essas violações foram duramente enfrentadas pelo Parla-
mento, e por isso, a Magna carta teve de ser ratificada pelos reis.
Dado o descumprimento por parte destes, foi necessário, por su-
cessivas gerações, a realização de petições aos reis para que es-
tes reconfirmassem a Carta Magna, na esperança que essa fosse
cumprida.

Entre os séculos 13 e 15 a Carta Magna teve um histórico de 45


possíveis reconfirmações reais segundo Sr.Edward Coke. Em
uma dessas ratificações, durante o reinado de Eduardo III, fo-
ram aprovadas seis medidas que mais tarde ficariam conhecidas
como Six Statutes, os quais procuravam esclarecer certas partes
da Magna Carta e suas ratificações. Uma dessas medidas redefi-
niu a cláusula 29 da Carta, inserindo pela primeira vez a expres-
são “devido processo legal”.

Até a segunda metade do século XX, a ideia de acesso à justiça,


limitava-se ao acesso à tribunais. Após esse período essa ideia
foi ampliada, graças ao relatório Acesso à Justiça de Bryan
Garth e Mauro Cappelletti, relatório este que se revelou como
um verdadeiro marco teórico referencial no estudo do acesso à
justiça. Nessa obra os autores consideram o acesso à justiça
como o mais básico dos direitos humanos, mostrando-se como
um verdadeiro direito-garantia, o qual deve servir como instru-
mento para realização de outros direitos, ou seja, o acesso à jus-
tiça é direito imprescindível para o exercício da cidadania. No
referido relatório, os autores apontam três barreiras ao acesso à
justiça. São elas: barreira financeira, barreira cultural e barreira
psicológica. No intuito de superar essas barreiras foram criadas
três “ondas” de soluções práticas para os problemas de acesso à
justiça. A primeira onda é a da assistência jurídica para os po-
bres, a segunda trata-se de representação dos interesses difusos
e a terceira onda refere-se ao acesso à representação em juízo
como uma concepção mais ampla de acesso à justiça.

E é exatamente em relação a essa terceira onda, também cha-


mada de “novo enfoque de acesso à justiça”, que faremos a cor-
relação com o filme de ficção científica Minority Report.

O enredo do filme se passa em Washingthon DC, no ano de


2054, onde é criado o "Departamento de Pré-Crime", que con-
sistia na utilização dos chamados "Precogs", humanos com po-
der de visão, na qual anteviam os crimes antes mesmo que acon-
tecessem. Automaticamente era gerada uma espécie de esfera
com o nome do futuro assassino e outra com o nome da respec-
tiva vítima. Essa visão era projetada em uma tela aos agentes
policiais do Departamento de Pré-Crime para que estes intervis-
sem na cena do futuro crime antes da consumação da prática
crimosa. Ao chegarem na cena do "crime futuro", prendiam o
póstero criminoso.

Mesmo tratando-se de uma ficção científica, talvez de ínício, a


ideia de prender um criminoso antes da consumação de um
crime pareça excelente, pois afinal de contas, o número de ho-
micídios cairia para zero. E foi exatamente essa a informação
transmitida em um noticiário televisivo durante o filme: "Há
cinco anos, o Pré-Crime erradicou o assassinato na capital do
país. A ideia é inserir esse mecanismo em âmbito nacional".

Ora, imaginemos que possuíssemos os Precogs no Brasil e que


realmente pudéssemos impedir o cometimento de um assassi-
nato e prender o "futuro assassino". Genial, não é mesmo?! Nem
tanto... Caso algo assim fosse possível o mais básico dos direitos
humanos estaria sendo restringido: o direito de acesso à justiça.
Nossa Carta Magna disciplina em seu art. 5º, que "ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença pe-
nal condenatória". Ademais, no mesmo art. 5º, inciso XXXV, di-
põe que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário le-
são ou ameaça a direito". Por fim, ainda no art. 5º da Constitui-
ção Federal está previsto que "ninguém será privado da liber-
dade ou de seus bens sem o devido processo legal". Portanto,
caso realmente tívéssemos um sistema como este no Brasil, di-
reitos e garantias fundamentais individuais seriam gravemente
ignorados para garantir "o bem de todos".

No início do filme Minority Report, durante a visita do servidor


do Poder Judiciário ao Departamento de Pré Crime, inicia-se o
seguinte diálogo com Jhon, o capitão do Pre Crime:

Servidor do Judiciário: -Você sabe porque existe objeção legal


ao método do Pre- Crime.Vocês prendem quem não infringiu a
lei.

Nessa hora, Jhon arremessa um objeto e ao perceber que o ob-


jeto cairá, o servidor do Judiciário pega o objeto.

Jhon: -Por que você pegou?

Servidor: -Porque iria cair se eu não pegasse.

Jhon:- Viu? O mesmo acontece com os pre- crimes. Os pre- cogs


veem o futuro e nunca se enganam.

Servidor: - Você já lidou com falsos positivos? Alguém que teve


a intenção de matar e não o fez? Como os pre- cogs distinguem?

Jhon: - Eles não veem a intenção, só o que a pessoa irá


fazer.
Sabemos que no Brasil adotamos a teoria finalista do crime, na
qual o curso causal é dirigido pela vontade do agente, onde a
ação final é produto da vontade. Assim, para se configurar fato
típico, ilícito e culpável necessário se faz levar em conta a von-
tade do agente e sua intenção ao praticar o delito.

No filme pessoas eram presas "em flagrante" por um crime fu-


turo. Ademais, eram privadas de sua liberdade sem o devido
processo legal. Caso isso fosse feito, não só nosso Código Penal
seria desrespeitado, como também a Constituição Federal em
seus artigos mais sensíveis: os direitos e garantias
fundamentais.

Mesmo após todas essas considerações acerca da Constituição


Federal e do Código Penal, a ideia de prender pessoas antes de
cometerem crimes continua nos parecendo muito boa, pois, afi-
nal de contas, a erradicação de assassinatos resultaria em um
ganho coletivo. Entretanto, ao decorrer do filme, começamos a
perceber que mesmo com toda a tecnologia empregada no me-
canismo, esse sistema era comandado por pessoas. E como bem
frisou o servidor do poder judiciário: caso houvesse alguma fa-
lha, a falha seria humana.

Ao final do filme descobrimos que sim, havia falha humana, a


corrupção dentro do sistema para forjar uma ideologia utópica
de um sistema perfeito de um mundo sem assassinatos.

Jhon, o chefe do departamento de Pre Crime ingressou no sis-


tema acreditando que tudo ali era legítimo e perfeito. Viu no Pre
Crime a possibilidade de encontrar o assassino de seu filho. Mas
mais tarde percebeu que as coisas não eram bem como ele
imaginava...
Foi armado um "futuro assassinato" para que Jhon fosse preso.
Alguém foi pago para fingir ser o assassino do filho de Jhon. Ao
chegar no lugar previsto para o assassinato, viu várias provas
(falsas) para que Jhon acreditasse que a pessoa que ele assassi-
naria era de fato, o sequestrador de seu filho. Mesmo após luta
corporal com o suposto sequestrador de seu fillho, Jhon resolve
não matar. Para sua surpresa, a "futura vítima" implora para
que ele o mate, pois caso ele não o faça, a família da "futura ví-
tima" não receberá nada. Mesmo assustado com tudo aquilo,
Jhon diz os direitos que a "futura vítima" tem e se despede. A
"vítima" não aceita a decisão de Jhon e dispara a arma que está
em sua mão, e Jhon é preso. Ou seja, a previsão do crime real-
mente se concretizou, mas em um contexto em que Jhon não ti-
nha a mínima vontade de matar e que muito menos foi autor do
disparo. Mas como seu direito ao acesso à justiça lhe foi reti-
rado, foi preso por assassinato e sem direito à defesa. Naquele
momento, Jhon percebeu que tudo em que acreditou ser real,
não passava de uma ideologia utópica e cruel na qual pessoas
inocentes eram presas sem seu direito de acesso à justiça respei-
tados para que o sistema "funcionasse" beneficiando não a po-
pulação em geral, mas apenas àqueles que estavam no comando
do sistema.

Outro ponto a ser destacado é em relação aos chamados Pre


Cogs. Os três jovens eram tratados de forma sub-humana, reti-
rando-se deles o direito de locomoção. Eram expostos a pesade-
los em todas as horas do dia. Por fim, até a mãe deles foi morta
para que esta não atrapalhasse a continuação do sistema.
Agatha, a mais sensível dos três previu o assassinato de sua
mãe, mas ficou impossibilitada de impedir o acontecimento. E
quem poderia fazer algo para impedir o assassinato, não fez,
pois era justamente o criador do programa.

Marilena Chauí em seu livro "O que é Ideologia" nos diz:


O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabeleci-
mento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos
dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou
seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito ou das leis é o
de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência,
mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A
lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se
o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real,
isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violên-
cia, evidentemente ambos não seriam respeitados e os domina-
dos se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir
essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens
como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia
substitui a realidade do Estado pela ideia do Estado –ou seja, a
dominação de uma classe é substituída pela ideia de interesse
geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito
pela ideia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por
meio das leis é substituída pela representação ou ideias dessas
leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos.[1]

Esse trecho da Grande Marilena Chauí traduz muito bem a ideia


passada em Minority Report. No início do filme é mostrado um
noticiário que dizia que em ano o Pre Crime teria erradicado o
assassinato na capital do país e que a ideia seria inserir esse me-
canismo em âmbito nacional. E é claro, todos aplaudiram acre-
ditando que aquilo era legítimo, justo e bom para todos, mesmo
sabendo que direitos fundamentais individuais eram retirados
dos futuros assassinos. Mal sabiam elas que pessoas morreram
para que o sistema continuasse "funcionando". Traduzindo-se
em uma verdadeira ideologia.

Finalmente fica revelado a impossibilidade de se metrificar o


comportamento humano naturalmente eivado dos vícios mile-
narmente conhecidos.
Considerando todas estas observações, conclui-se que a pro-
posta dos idealizadores daquele sistema apresentado em
Minority Report, constituía-se em uma falácia que embora apre-
sentasse um verniz supostamente promotor da segurança pú-
blica, em si mesmo subtraía o direito fundamental do acesso à
justiça.

1. CHAUÍ, Marilena. “ O que é Ideologia”. 2º ed. São Paulo:


Brasiliense 2008. (Coleção primeiros passos). ↑

Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/analise-juridica-da-ficcao-cientifica-


minority-report/725777786

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