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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

SOCIOLOGIA DO DIREITO
PROF. ARTUR STAMFORD

CAIO GOMES FIGUEIREDO

ANÁLISE DO FILME “A 13a EMENDA”

RECIFE
2021.1
1. ANÁLISE DO FILME “A 13a EMENDA” A PARTIR DO TEMA DECISÃO
JURÍDICA E SOCIEDADE.

O sistema jurídico aprende. Tal assertiva extraída do título do artigo de Stamford da


Silva1 consegue resumir bem a história da política criminal estadunidense, afinal, a trajetória
desse instituto penal foi por avanços e retrocessos nos EUA. Essa breve introdução se serve a
resumir o objeto central do filme2 em discussão: a perspectiva trazida pela 13a Emenda à
Constituição dos Estados Unidos, que, apesar de abolir a escravidão e os trabalhos forçados,
fez a ressalva quanto às hipóteses de punição de um crime pelo qual o réu tenha sido
condenado.

Dito isso, logo nos minutos iniciais do filme, um dos entrevistados comenta que tal
ressalva contida ao final da redação da emenda abre uma espécie de vácuo normativo que
pode ser “usado como ferramenta para os propósitos que quiserem”. Essa afirmação dialoga
com os pressupostos da Teoria Sociocognitiva da Compreensão, apresentados por Stamford da
Silva. De acordo com o mencionado autor, nunca exercemos total controle sobre os possíveis
entendimentos que o nosso enunciado possa vir a ter, visto que compreender é um exercício
de convivência sociocultural.3 Contextualizando: embora tal emenda tenha sido criada em um
suposto contexto de liberdade, a vagueza indissociável da linguagem abre margem para
múltiplas compreensões a serem encampadas em diferentes momentos políticos, inclusive
mais repressivos, como de fato aconteceu. Isso porque, em última análise, a decisão jurídica
não se limita à aplicação literal da lei, visto que a linguagem comporta em si uma série de
significados a serem interpretados.

A possibilidade de manipulação do texto da emenda é inclusive prevista na sua


‘Seção 2’, que assegura ao Congresso a competência para fazer executar tal emenda por meio
das leis necessárias. Assim, em síntese, por influência da maioria política e dos anseios da
sociedade, a 13a Emenda pode ser usada de forma mais ou menos repressiva. O próprio filme
traz um exemplo dessas situações ao mencionar que após a Guerra Civil, ao mesmo tempo em
que os escravos libertos não tinham para onde ir ou com o que trabalhar, estavam em vigor

1 STAMFORD DA SILVA, Artur. O sistema jurídico aprende. A comunicativação aplicada ao princípio da


insignificância no direito. Revista direito Mackenzie, v. 14, n. 3, 2020, p. 1-32.
2 A 13a EMENDA. Direção: Ava DuVernay. Produção: Howard Barish; Ava DuVernay; Spencer Averick.
Estados Unidos: Netflix, 2016.
3 STAMFORD DA SILVA, Artur. Literalidade como trabalho social: a decisão judicial como constructo do
direito e da sociedade. In: FREITAS, Lorena et al (Org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos –
volume 2. Recife: EdUFPE, 2012.
leis que reprimiam crimes de nítida insignificância, notadamente o delito de vadiagem, e as
leis Jim Crow, que impuseram a segregação racial.

Ademais, o encarceramento em massa a partir da década de 70, decorrente da


marginalização dos negros da sociedade norte-americana remete-se, sobretudo a uma quebra
da autopoiese no processo de comunicativação4 do direito. Explico: é que o código binário
“lícito/ilícito”, que torna o sistema jurídico autopoiético, é corrompido na medida em que o
sistema econômico e étnico-racial interfere no direito, encarcerando apenas os negros e
pobres. Tal realidade é explícita na frase trazida no filme, da filósofa Angela Davis, de que
“na era Nixon e no período de lei e ordem, o crime passa a ser definido pela raça”. Trata-se,
aqui, de uma clara configuração da dita alopoiese Luhmanniana.

Também, no período da “Lei e Ordem”, a guerra às raças se travestia de guerra ao


crime e as drogas, de forma a dar uma aparência de legalidade a um sistema punitivo
essencialmente discriminatório. Ou seja, sob o manto de uma preocupação com a saúde, o
governo projeta uma guerra retórica e de fato contra negros e latinos, condenando-os por
crimes insignificantes e com penas que desarrazoam princípios tão caros ao direito penal
como a proporcionalidade e a culpabilidade. Por conseguinte, tais fatos levaram a prisão de
vários inocentes, haja vista a criação de um tipo ideal de criminoso. Percebe-se, então, mais
uma ocorrência de alopoiese do sistema, na medida em que o crime se confunde com o
criminoso, isto é, a ilicitude do fato se transporta para a ilicitude da pessoa: os negros e
latinos.

Como se isso não bastasse, as próprias mudanças legislativas se encaminharam no


sentido de agravar a execução penal, trazendo a possibilidade de prisão perpétua pela
reincidência (teoria do “three strikes and you are out” da Escola de Chicago), a retirada de
poderes dos juízes para transferi-los aos promotores, etc. Analisando tais reformas sob o ponto
de vista da decisão judicial, nota-se que elas se deram no sentido de diminuir a
discricionariedade da decisão ou, em outras palavras, diminuir a margem de atuação do poder
judiciário, principalmente no momento de aplicação da lei.

Melhor explicando, as decisões antes baseadas em uma série de fatores do caso


concreto, como a culpabilidade do criminoso, as circunstâncias do crime, a gravidade do
delito, etc., para que enfim a pena fosse aplicada adequadamente ao delito praticado, são
mitigadas na medida em que a prisão perpétua torna-se obrigatória no momento do terceiro
crime (strike) praticado. Também, ao retirar poder decisório dos juízes, percebe-se uma
4 STAMFORD, op. cit., 2020, p. 5.
redução do que Cardoso e Fanti5 chamam de legal opportunity, afinal, tal noção de
oportunidade legal surge em um contexto em que o judiciário participa ativamente do
processo político do Estado, o que, naquela época, não acontecia.

Ato contínuo, ainda analisando o filme com base nas ideias trazidas pelas
mencionadas autoras, percebe-se que não havia que se falar, também no momento da “Lei e
Ordem”, em legal mobilization.6 Isso porque tal conceito se traduz no poder de mobilização
dos movimentos sociais que, naquele período, esbarravam no aparato repressivo do estado.
Assim, sequer havia como as demandas coletivas chegarem ao judiciário, já que movimentos
negros, como os Panteras Negras, foram criminalizados e declarados como inimigos internos
da nação, na tentativa de enfraquecê-los e destruí-los. Ou seja, a única forma de tal
movimento chegar ao judiciário era como sujeito passivo de um processo penal, já que a
muitos dos seus membros foram processados e julgados criminalmente, além dos que foram
brutalmente assassinados pelos agentes do governo. Em suma, a mobilização encampada por
esses grupos se davam nas ruas e não em sede do Poder Judiciário.

Em síntese, ante o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito, as decisões


ditas jurídicas assumem cada vez mais vestes políticas. Uma série de fatores influenciam
nesse processo: a retirada de poderes dos juízes, leis discriminatórias e a legitimação da
violência policial (que, em se tratando dos EUA, ainda é um problema, culminando no atual
movimento do Black Lives Matter). Em outros termos, o que deveria ser regido por regras
estritamente jurídicas passa a ser progressivamente substituída por uma política repressora
que torna o Estado cada vez mais violento.

Adentrando ainda mais na temática da decisão jurídica, já que esta não se resume às
decisões emanadas do poder judiciário, o filme menciona a influência da ALEC (American
Legislative Exchange Council) no processo de proposição de leis no Congresso
Estadunidense. Tal organização, que traz como lema a limitação ao governo e o livre mercado,
teve uma efetiva parcela de contribuição nas leis que promoviam o encarceramento em massa
nos EUA. Isso porque tal organização contava com o patrocínio de empresas privadas que
atuavam no sistema prisional americano, seja na área de cadeias privadas ou na área de
contratos de alimentação e saúde dos presos. Assim, a ALEC terminava por intermediar
práticas lobistas entre outras empresas privadas e os Congressistas. Trazendo tal perspectiva

5 CARDOSO, Evorah Lusci; FANTI, Fabiola. Movimentos sociais e direito: o poder judiciário em disputa. In:
SILVA, Felipe Gonçalves; RODRIGUEZ, José Rodrigues (Coord.). Manual de Sociologia Jurídica. São
Paulo: Saraiva, 2013, p. 243.
6 Ibid., p. 247.
para o processo Luhmanniano de comunicação, nota-se mais uma forma de alopoiese do
direito, na medida em que o direito e a economia se confundem na formulação das leis, já que
a criminalização de determinadas condutas não é norteada pelo código binário “lícito/ilícito”7,
mas sim pelo código “lucrativo/não lucrativo”.

Outro ponto que merece destaque é a informação trazida pelo filme de que em
determinados Estados norte-americanos, como o Alabama, o direito de voto é usurpado pela
existência de condenação criminal. Tal questão dialoga com o fato de que a decisão jurídica,
ocorre em três momentos comunicativos distintos: no âmbito político (entre a sociedade e a
legislação, já que o voto decide os responsáveis pela formulação das leis na sociedade), no
momento político-jurídico (quando a norma jurídica editada pelo Legislativo é utilizada como
parâmetro para a tomada de decisões judiciais) e no momento jurídico (quando o órgão
julgador profere sua decisão que deve ser observada por seus destinatários,
independentemente de discussões sobre a justiça da decisão)8. Dessa sorte, percebe-se que os
cidadãos dos Estados que impedem o direito ao voto no caso de condenação criminal, os
negros se vêm marginalizados do processo de formulação de leis na sociedade, pois são
afastados da escolha de seus representantes.

Por último, na tentativa de relacionar o filme em comento com o


transconstitucionalismo proposto por Marcelo Neves9, nota-se que os dois nascem de um
contexto comum: a violação dos direitos humanos e a eficácia simbólica de direitos
constitucionalmente assegurados.

2. CONCLUSÃO.

Em suma, embora as leis discriminatórias estadunidenses e a política da “Lei e


Ordem” tenham sido revogadas, o encarceramento nos Estados Unidos ainda é elevado, sendo
moldado por avanços e retrocessos. Nesse contexto, pode-se afirmar que o sistema jurídico
aprende na medida em que se constrói, destrói, reconstrói, se forma, se deforma e se reforma.
Entretanto, tal aprendizado não o torna mais justo ou mais sábio, uma vez que o código de
aprendizado do direito é o “lícito/ilícito” e não o “justo/injusto”. Sendo assim, o

7 STAMFORD, op. cit., 2020, p. 14.


8 STAMFORD, op. cit., 2012.
9 NEVES, Marcelo. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao
transconstitucionalismo na América Latina. Revista de informação legislativa, v. 51, n. 201, jan./mar. 2014,
p. 193-214.
encarceramento ainda é uma realidade que perdura entre os negros socialmente
marginalizados, demonstrando que tais sujeitos só conhecem o Estado na sua face mais
violenta e revelando uma nítida autopoiese entre o sistema jurídico e o sistema econômico no
âmbito do cárcere.

Sendo assim, as regras do jogo das decisões jurídicas tendem a se mostrar


inacessíveis a esses sujeitos marginalizados, experiência que culmina na eclosão de
insatisfações e protestos como o encampado pelo movimento Black Lives Matter. Deve-se
lembrar, em última análise, que independentemente dos movimentos sociais ocuparem uma
posição à margem do direito ou de se utilizarem do direito para defender suas demandas na
sociedade, tais movimentos estão inseridos na seguinte lógica da comunicação:

i) O direito é uma luta incessante dentro de uma sociedade com interesses diversos;

ii) A evolução do direito, através de construções, destruições e reformas, não se dá de


forma aleatória. Isso porque, o direito, enquanto sistema autorreferente, tem por referencial as
suas próprias regras jurídicas ao se abrir para o seu ambiente, só se comunicando com o que
considera lícito. De outro modo, aquilo que o direito considera lícito é abraçado pelo sistema,
já o ilícito se mantém fora dele;
iii) Uma vez reconhecida a mutabilidade do direito, as decisões jurídicas também
serão mutáveis;

iv) Esse processo de mudança, seja fática ou interpretativa, só é possível pelo fato de
que a norma não carrega um princípio predeterminado pela literalidade ou pela vontade do
legislador. Ou seja, tal sentido vai sendo criado a partir de condicionantes da realidade social e
dos atores que participam do processo interpretativo: autor, texto e leitor.
BIBLIOGRAFIA:

A 13a EMENDA. Direção: Ava DuVernay. Produção: Howard Barish; Ava DuVernay;
Spencer Averick. Estados Unidos: Netflix, 2016.

CARDOSO, Evorah Lusci; FANTI, Fabiola. Movimentos sociais e direito: o poder judiciário
em disputa. In: SILVA, Felipe Gonçalves; RODRIGUEZ, José Rodrigues (Coord.). Manual
de Sociologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.

NEVES, Marcelo. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos


Humanos ao transconstitucionalismo na América Latina. Revista de informação legislativa,
v. 51, n. 201, jan./mar. 2014, p. 193-214.

STAMFORD DA SILVA, Artur. Literalidade como trabalho social: a decisão judicial como
constructo do direito e da sociedade. In: FREITAS, Lorena et al (Org.). O judiciário e o
discurso dos direitos humanos – volume 2. Recife: EdUFPE, 2012.

STAMFORD DA SILVA, Artur. O sistema jurídico aprende. A comunicativação aplicada ao


princípio da insignificância no direito. Revista direito Mackenzie, v. 14, n. 3, 2020, p. 1-32.

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