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CONTROLANDO O TEMPO DO

IMPEACHMENT
Presidente da Câmara pensa que pode, mas não tem
poder de ignorar acusações contra o presidente da
República por prazo a perder de vista

N
Rafael Mafei e Virgílio Afonso da Silva|20 jul 2021_16h38

o ensaio 70 de O Federalista, escrito na época da elaboração da Constituição


dos Estados Unidos, Alexander Hamilton expõe diversos argumentos para
defender que a presidência da República ficasse a cargo de uma única
pessoa (e não de um órgão colegiado, como um conselho ou um gabinete).
Além de favorecer a tomada de decisões rápidas e enérgicas, dizia ele, a
centralização do poder executivo em uma única pessoa facilitaria a
responsabilização da autoridade tanto por seus erros, por meio de uma
derrota eleitoral, quanto por seus altos crimes e delitos, por meio do
impeachment.

Se pudessem contemplar o que vivenciamos hoje no Brasil, Hamilton e seus


colegas redatores da primeira constituição presidencialista da história
provavelmente observariam com espanto o cenário que construímos para
nós. Por aqui, o mais vistoso e simbólico procedimento para a
responsabilização jurídico-política contra o arbítrio de uma alta autoridade
nacional, o impeachment presidencial, foi entregue ao arbítrio caprichoso de
uma outra autoridade – o presidente da Câmara dos Deputados. De onde
vem, afinal, o desenho desse contrassenso institucional? Qual é o
fundamento legal para esse poder absoluto que Arthur Lira (PP-AL) julga ter,
para decidir sozinho se e quando as acusações pendentes contra Jair
Bolsonaro poderão ser apreciadas pelas instituições competentes para
avaliá-las?

Esse poder que Lira julga ter não está nem na Constituição nem na Lei do
Impeachment (lei 1.079/1950). O art. 19 da lei, que sequer menciona a figura
do presidente da Câmara dos Deputados, é claro ao dizer que a denúncia
recebida será lida e despachada à comissão especial de impeachment. A
Constituição atribui o controle político sobre os processos contra o presidente
da República, tanto por crimes comuns quanto por crimes de
responsabilidade, ao plenário da Câmara dos Deputados – e não à pessoa
que ocupa a Presidência da Casa.

Mas isso quer dizer que o presidente da Câmara deve ser um mero
despachante de papéis, que se limita a juntar denúncias recebidas na seção
de protocolo e encaminhá-las à comissão especial de impeachment?
Certamente que não. Não faz sentido supor que essa comissão tenha que ser
constituída sempre que um pedido, por mais estapafúrdio que seja, for
protocolado na Câmara dos Deputados.

Justamente por isso, o regimento interno da Câmara dos Deputados dá ao


presidente da Câmara poderes para rejeitar denúncias manifestamente
improcedentes (art. 218, §§ 2º e 3º). É o caso daquelas em que a conduta
descrita claramente não caracteriza crime de responsabilidade sequer em
tese, como na acusação contra Itamar Franco por haver dançado ao lado da
modelo Lilian Ramos em um camarote no carnaval de 1994. Ou das peças
que deixam de cumprir com requisitos formais exigidos pela lei, como a prova
de quitação eleitoral dos denunciantes.

O poder de indeferir o pedido e mandá-lo ao arquivo, porém, é diferente do


poder de ignorá-lo – esse que Arthur Lira julga ter. Não apenas porque do
arquivamento cabe recurso, permitindo ao plenário da Câmara reformar o ato
do presidente, mas principalmente porque a rejeição sumária é ao menos
uma resposta oficial à denúncia do cidadão que julga que o presidente da
República cometeu crimes que merecem a atenção do Congresso Nacional.
E não é demais ressaltar que a decisão de arquivar uma denúncia é o
exercício de um poder do presidente da Câmara, não a sua eliminação.

Em sentido oposto, o (suposto) poder de ignorar denúncias esvazia os


pedidos de qualquer efeito jurídico possível, pois do nada não decorre
consequência alguma, como a instalação da comissão especial de
impeachment, e contra o nada não é possível reagir, por meio de um recurso
ao plenário.
Para todos os fins, esse poder autoconcedido de ignorar denúncias contra o
presidente da República torna vazio o direito legal e constitucionalmente
garantido de cidadãos denunciarem crimes do presidente da República.

Se nem a Constituição nem a Lei do Impeachment nem o regimento interno


da Câmara dos Deputados dão a seu presidente o poder de se tornar senhor
absoluto e incontrastável dos destinos do impeachment, de onde, afinal,
Arthur Lira tira esse poder? A resposta está nos costumes e práticas da
Presidência da Câmara em relação a denúncias de crimes de
responsabilidade, sobretudo nas gestões de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e
Rodrigo Maia (ex-DEM, atualmente sem partido).

Em casos anteriores à Constituição de 1988, o trabalho de sepultamento


político de denúncias costumava ser feito pela comissão especial de
impeachment da Câmara. O primeiro presidente a sofrer acusação de crimes
de responsabilidade, Floriano Peixoto, foi poupado justamente na fase da
comissão. O mesmo valeu para Getúlio Vargas, que conseguiu escapar de
um impeachment poucos meses antes de seu suicídio, em 1954.

E qual a prática após 1988? Segundo dados compilados pela plataforma


Fiquem Sabendo, até a gestão Cunha, os presidentes da Câmara tinham o
hábito de despachar rapidamente as denúncias que recebiam, salvo uma ou
outra exceção. Mandavam-nas quase sempre ao arquivo, é verdade, mas ao
fazê-lo, sujeitavam-se à possibilidade de recurso ao plenário. Nos governos
de FHC, por três vezes, e Lula, por seis vezes, o plenário da Câmara
deliberou sobre recursos apresentados por deputados contra decisões da
Presidência da Casa que haviam negado seguimento a denúncias.

Após a bombástica entrevista de Pedro Collor à revista Veja em maio de


1992, Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), então presidente da Câmara dos
Deputados, recebeu 23 denúncias contra o presidente Fernando Collor de
Mello. Apenas uma delas demorou mais de duas semanas para merecer um
despacho que lhe desse destino. Com exceção da acusação apresentada por
Barbosa Lima Sobrinho e Marcello Lavenère Machado, que acabaria com a
condenação do então presidente, todas as demais tiveram seguimento
negado em poucos dias.
Quando a denúncia de Roberto Jefferson (PTB-RJ) detonou o escândalo do
mensalão, em meados de 2005, a Câmara dos Deputados era presidida por
Severino Cavalcanti (PP-PE). Cavalcanti recebeu oito acusações contra o
então presidente Lula e jamais demorou mais de noventa dias para apreciar
qualquer delas. Antes dele, Michel Temer (PMDB-SP) e Aécio Neves
(PSDB-MG), que presidiram a Câmara dos Deputados no tumultuoso
segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, foram igualmente
expeditos em lidar com acusações que lhes eram apresentadas. Segundo os
dados disponíveis, apenas em duas oportunidades Temer demorou mais de
noventa dias para dar destino às denúncias apresentadas em sua gestão. O
recorde de demora de Aécio, fiel correligionário de FHC tanto quanto Lira diz
ser de Bolsonaro, foi de apenas 57 dias.

E
duardo Cunha foi o personagem que nos fez acreditar que o presidente da
Câmara é um senhor absoluto do impeachment, um oráculo inquestionável
que decide os destinos desse importante mecanismo constitucional segundo
seus caprichos e sua conveniência – uma crença evidentemente
desconectada do espírito republicano que fundamenta o impeachment.

Cunha recebeu 57 pedidos de impeachment e lidou com cada um deles de


acordo com benefícios pessoais e vantagens políticas que imaginava poder
ter no momento. Durante sua gestão, foram apresentadas 54 denúncias
contra Dilma Rousseff; Cunha ignorou 26 delas a perder de vista.
Curiosamente, ele só foi consistentemente célere na apreciação das
acusações contra a presidente da República no segundo semestre de 2015,
quando a base do governo estava acuada pelos avanços da Lava Jato e o
próprio Cunha penava para conseguir apoio no processo que respondia no
Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara. A denúncia que
culminou na condenação e remoção de Dilma Rousseff foi despachada por
ele em razoáveis 42 dias.
Contudo, ninguém cultivou tanto a arte de sentar em cima de denúncias como
Rodrigo Maia. Maia semeou esse poder arbitrário no governo de Michel
Temer, quando os olhos da opinião pública estavam voltados à denúncia por
crime comum apresentada pelo então procurador-geral da República, Rodrigo
Janot, contra o presidente. Entre 2016 e 2017, Maia recebeu 31 denúncias
por crimes de responsabilidade presidenciais. Com exceção de uma, as
demais foram todas arquivadas apenas em 2019, já no governo Bolsonaro,
quando evidentemente já não faziam mais sentido, porque Temer não era
mais presidente.

Com o estoque que deixou em sua gaveta para Arthur Lira, Maia é tão
recordista do impeachment quanto o atual presidente da República: se
Bolsonaro é o presidente que mais acusações sofreu na história, Rodrigo
Maia é o presidente da Câmara que mais ignorou denúncias de crimes
cometidos por presidentes da República. Além das 31 contra Michel Temer,
fez vista grossa a 66 acusações apresentadas à Câmara contra Jair
Bolsonaro.

C
omo escapar da arquitetura de abuso de poder engendrada por Cunha, Maia
e Lira sem cair no extremo oposto, no qual o presidente da Câmara se torna
um simples carimbador de papel?

Políticos e juristas parecem ter se conformado com um suposto poder


absoluto do presidente da Câmara para definir se e quando um pedido de
impeachment será analisado, como se esse poder fosse uma decorrência
natural da definição do impeachment como um “julgamento político”. Há
certamente vários significados para essa expressão, mas a atribuição de um
poder absoluto a uma única pessoa para bloquear um procedimento de
tamanha importância certamente não é um deles.

Não se trata de querer retirar o caráter político do julgamento do presidente


da República, mas de retomar a grande política, e deixar para trás a política
pequena e mesquinha estabelecida por Eduardo Cunha e continuada por
seus sucessores. O impeachment é necessariamente político, mas não deve
ser confundido com um joguete da mais baixa politicagem, um embate de
interesses paroquiais. A grande política é inteiramente compatível com as
garantias do direito. Não são conceitos excludentes. A grande política decide,
não esconde. Ela dá respostas aos cidadãos; não tergiversa e não se
esconde no silêncio. O direito não exige muito mais do que isso: uma
decisão, seja qual for. Decidir e fundamentar é o coração da atividade
jurídica.

O mais surpreendente em toda essa situação é o fato de que não se trata


daquilo que juristas chamam de caso difícil. Não estamos diante de uma
situação para a qual o direito não tem regras claras. As regras claras estão aí,
há décadas: estão na Constituição, na Lei do Impeachment e no regimento
interno da Câmara dos Deputados. Vivemos sob um eclipse causado pela
baixa política, que já dura mais de cinco anos. Já passou da hora de sairmos
dessa sombra. As instituições funcionam melhor quando expostas à luz do
sol.

E é importante ressaltar que a interpretação das regras constitucionais e


legais que defendemos aqui está longe de ser a mais restritiva para o papel
do presidente da Câmara. Entendemos que o regimento interno da Câmara é
compatível com a Lei do Impeachment, mesmo que atribua ao presidente da
Casa poderes que a lei não menciona. Essa também é a interpretação do
STF. Para quem entende que apenas a lei deve ser levada em consideração,
o presidente da Câmara não tem qualquer papel relevante: ele tem
simplesmente o dever de enviar todas as denúncias à comissão especial.
Não seguiremos esse caminho.

A Lei do Impeachment e o regimento da Câmara estabelecem que qualquer


cidadão pode denunciar o presidente da República à Câmara dos Deputados.
Diante de uma denúncia, o regimento (não a lei) prevê que o presidente da
Câmara tem duas opções: constituir uma comissão especial para analisar o
pedido ou indeferir o recebimento da denúncia, se entender que não estão
presentes os requisitos constitucionais, legais e regimentais. Se o presidente
da Câmara indeferir o recebimento da denúncia, cabe recurso ao plenário da
Câmara. Se não houver recurso, a denúncia é arquivada. Se houver recurso,
voltamos ao passo inicial, mas agora a decisão é do plenário, não mais do
presidente da Câmara: se o recurso for aceito, deverá ser constituída
comissão especial para analisar a denúncia; se for recusado, a denúncia será
arquivada.

Nem sempre há regras assim tão claras para resolver problemas jurídicos e
políticos. E as regras do regimento interno da Câmara, já analisadas e
esmiuçadas pelo STF em 2015, por ocasião do processo contra Dilma
Rousseff, têm a virtude de estabelecer clareza nos procedimentos e, ao
mesmo tempo, manter o caráter político das deliberações. E não toleram
qualquer poder individual absoluto.

É
claro que algumas perguntas podem ficar no ar. Um primeiro grupo de
questões diz respeito aos prazos. Quanto tempo tem o presidente da Câmara
para decidir por um dos dois caminhos mencionados acima? Se estiverem
presentes os requisitos constitucionais, legais e regimentais para a denúncia,
o presidente da Câmara deverá colocá-la na pauta da sessão seguinte. É o
que diz o regimento da Câmara (art. 218, § 2º). “Sessão seguinte” pode
significar ao menos duas coisas. A primeira, mais fácil de definir, é: sessão
seguinte à data do protocolo da denúncia.

Essa seria a única solução para quem entende que apenas a Lei de
Impeachment deve ser levada em consideração. Mas para quem entende,
como nós, que o regimento da Câmara também conta, é possível supor que a
análise preliminar do preenchimento dos requisitos constitucionais, legais e
regimentais da denúncia poderá levar algum tempo, e a inserção na pauta só
ocorreria na sessão seguinte ao término dessa análise preliminar, feita
individualmente pelo presidente da Câmara. Nesse caso, quanto tempo teria
o presidente para essa avaliação?

O regimento não define um prazo, mas o direito lida corriqueiramente com


esse tipo de situação. Costuma-se exigir que pedidos feitos aos poderes
públicos sejam despachados em “tempo razoável”. Por mais que “tempo
razoável” não seja um conceito cronologicamente inequívoco, trata-se de uma
ideia capaz de guiar inúmeros procedimentos.

No caso do impeachment, há elementos que indicam que o tempo razoável é


relativamente breve. Não apenas pela importância do tema, mas pela
previsão de que, feita a análise preliminar, o pedido deverá ser lido na sessão
seguinte. Faria algum sentido supor que o presidente da Câmara poderia
demorar o tempo que quisesse para fazer uma simples análise preliminar do
pedido e, feito isso, tenha que correr para colocar o pedido na pauta da
próxima sessão? Diante disso, alguém sustentará, de boa-fé, que um prazo
“razoável” possa se estender por anos, ultrapassando até mesmo o mandato
do presidente da República?

Outro indício de que tempo razoável é breve em casos de impeachment: o


art. 20 da lei dá à comissão especial de impeachment um prazo de dez dias
para emitir parecer de mérito sobre se a denúncia deve ou não ser objeto de
deliberação – uma análise muito mais complexa do que o juízo sumário que
se pede do presidente da Câmara. A pretensão de que a conduta atual de
Arthur Lira tenha respaldo jurídico é absolutamente insustentável.

É importante ressaltar que a interpretação segundo a qual o presidente da


Câmara não é o senhor do tempo diante de denúncias de impeachment não é
apenas a mais compatível com a Constituição, com a Lei do Impeachment e
com o regimento interno da Câmara dos Deputados. Ela é também a mais
adequada para manter o bom equilíbrio entre os poderes e para a realização
da justiça em qualquer cenário (e não apenas no contexto atual). Não se
trata, portanto, de uma interpretação casuísta destinada simplesmente a
encontrar um caminho para se livrar de um presidente da República que
comete crimes de responsabilidade. Ela mostra-se igualmente adequada em
outros cenários, porque além de evitar que o presidente da Câmara dos
Deputados blinde indevidamente um presidente da República aliado, também
impede que denúncias represadas sejam usadas como forma de chantagear
ou ameaçar um presidente da República que seja seu adversário do
presidente da Câmara.
S
e Lira – tanto quanto seus antecessores recentes – pratica abuso de poder ao
se omitir como tem feito até aqui, a principal pergunta que resta é: como fazer
com que o presidente da Câmara cumpra seu dever?

Uma resposta pode vir das instâncias disciplinares da própria Câmara dos
Deputados. Descumprir intencionalmente o regimento é quebra de decoro
(Código de Ética da Câmara, art. 3º, II, e 5º, X) e qualquer cidadão pode
então apresentar representação contra o presidente da Câmara no Conselho
de Ética e Decoro Parlamentar.

É verdade que representações a esse Conselho raramente levam a alguma


punição. Ainda assim, essa movimentação obrigaria outros parlamentares –
ao menos aqueles que integram o Conselho – a assumir o ônus de se colocar
publicamente como fiadores da omissão do presidente da Câmara. Além
disso, ajudaria a expor a própria conduta do presidente da Câmara como
potencialmente indecorosa. A Comissão não tem o poder de mandar o
presidente da Câmara decidir, tampouco de pautar o pedido em seu lugar,
mas tem plenos poderes para dizer que seu comportamento viola as regras
da Casa.

Uma segunda resposta poderia vir, naturalmente, do Supremo Tribunal


Federal, a quem compete conhecer, julgar e mandar corrigir ilegalidades
praticadas pelo presidente da Câmara dos Deputados. O STF tem uma
jurisprudência inconstante, mas majoritariamente contrária a intervenções
judiciais para corrigir desrespeitos aos regimentos internos das casas do
Congresso Nacional. Há exceções, como as decisões que, em 2015,
puseram um freio às manobras regimentais tentadas por Eduardo Cunha no
início da tramitação do processo contra Dilma Rousseff.

Mas os casos são distintos. No caso do impeachment de Dilma Rousseff, o


procedimento já estava deflagrado, e o STF interveio para corrigir decisões
tomadas por Cunha. No caso atual, uma intervenção do tribunal teria que ser
mais ousada: não corrigir uma decisão, mas determinar que a decisão seja
tomada. Ousada, porém, não é sinônimo de abusada, muito menos de
exótica. Impor ação aos presidentes da Câmara e do Senado não é novidade
para o tribunal, a exemplo das decisões que mandam instalar comissões
parlamentares de inquérito.

É importante ter em mente que a questão não se limita apenas ao regimento


interno da Câmara, pois é a própria Lei do Impeachment que exige que a
denúncia seja lida na sessão seguinte e despachada à comissão especial.
Não se trata, portanto, daquilo que o STF chama de questões interna
corporis, nas quais o tribunal entende não poder intervir. Por isso, as
pouquíssimas – e contraditórias – decisões já tomadas pelo STF nesse
âmbito não servem como parâmetro. Nestas, o que se pedia era que o
tribunal reformasse decisões tomadas pelo presidente da Câmara com base
no regimento interno. O que nos interessa aqui são as decisões não tomadas,
em afronta à lei.

É também fundamental lembrar que, tal qual a instalação de uma CPI, o


encaminhamento de denúncias de impeachment não é matéria propriamente
legislativa, na qual a deferência à autonomia do Poder Legislativo deve ser
maior. Trata-se de apuração de julgamento de condutas potencialmente
atentatórias às leis e à Constituição, praticadas pelo presidente da República.
Quando a prática de crimes está no horizonte, nenhum agente público tem a
discricionariedade de ignorar denúncias que lhe são encaminhadas: ele deve
agir, e suas ações são passíveis de controle por instâncias competentes para
revisá-las se for o caso.

Em um contexto conturbado como o atual, é impossível prever qual seria a


posição do STF. O tribunal também faz seus cálculos, especialmente como
forma de preservar sua autoridade. Mas se é a lei (e não apenas o regimento
interno) que estabelece o dever que tem sido descumprido pelo presidente da
Câmara, fica difícil encontrar argumentos para justificar a impossibilidade de
apreciação judicial desse descumprimento.

Em qualquer caso, a boa compreensão jurídica desse ponto específico dos


processos de impeachment exige não confundir, de um lado, a ausência de
condições políticas para que Lira (ou qualquer outro presidente da Câmara)
seja compelido a cumprir seu dever; e, de outro lado, a existência de um
suposto poder do presidente da Casa de tornar ineficaz, por vontade e
estratégia sua, o direito que a Constituição dá a todo cidadão de denunciar os
crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República, e o
dever que o Congresso tem de apurá-los e puni-los. Esse poder jurídico
simplesmente não existe: trata-se de uma prática arbitrária, que Arthur Lira
exercita porque herdou de seus últimos antecessores, e que hoje suportamos
apenas por impotência, complacência ou indisposição de quem deveria
combatê-la.

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