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28/07/2022 14:26 A Constituição e o descontrole de um Estado em busca de sua identidade

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POLÍTICA

A Constituição e o descontrole de um Estado em


busca de sua identidade
Quase tudo que deveria ser objeto de legislação ordinária acaba incluído no texto constitucional

JOSÉ EDUARDO FARIA

20/07/2022 13:50

O então presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, apresenta a Constituição de 1988. Crédito: Célio Azevedo/
Fotos Públicas

 “Não existe no mundo um país com instituições democráticas que viole tanto
suas próprias leis quanto o Brasil. Esse é um grande problema de descontrole
e um Estado que não consegue encontrar sua identidade.” Feita no seminário
Brasil Século XXI, promovido pela Unicamp, a afirmação é do cientista
político Philippe Schmitter, que lecionou nas Universidades de Chicago e
Stanford e dirigiu o European University Institute. Ao terminar sua exposição,
Schmitter – autor do livro “Conflitos de interesse e mudança política no
Brasil” — disse que o futuro das instituições políticas brasileiras está
condicionado à “desvinculação das Forças Armadas das funções de polícia”.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-e-o-descontrole-de-um-estado-em-busca-de-sua-identidade-militares-20072022?fbcl… 1/6
28/07/2022 14:26 A Constituição e o descontrole de um Estado em busca de sua identidade

Neste momento em que o governo de um tenente reformado no posto de


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capitão por ser um militar ignaro, despreparado e disfuncional vem batendo
recorde no número de mudanças na Constituição, para viabilizar sua
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reeleição e atender às demandas das próprias corporações militares, bem
como de igrejas evangélicas preocupadas apenas com a multiplicação dos
dízimos de seus pastores e de grupos político-partidários cujos integrantes
só pensam em capturar fatias crescentes do orçamento da União e da
máquina administrativa, a fala de Schmitter não poderia ter sido mais
realista.

Dois pontos de sua conferência merecem destaque. O primeiro é relativo ao


papel dos militares no processo político. O segundo é relativo à
desmoralização da ordem constitucional, seja por violações acintosas, seja
pelo processo de banalização de mudanças feitas ao arrepio das regras do
próprio processo legislativo, por outro lado.

Com relação ao primeiro ponto, Schmitter afirmou ser grave “a insistência


dos militares em continuarem sendo os defensores da ordem. É preciso
distinguir a desordem democrática da ordem antidemocrática. Tem que haver
uma evolução de ideias nesse sentido. A incerteza e o conflito fazem parte da
vida democrática. Será preciso, talvez, tornar os militares cidadãos”, afirmou,
apontando desse modo o baixo nível intelectual e cívico, o conservadorismo
em matéria de valores e o viés contrário ao Estado democrático de Direito
dos oficiais das Forças Armadas. “Aqui no Brasil eles têm uma visão
hierárquica da ordem que não é democrática.” É preciso lhes mostrar que “a
desordem democrática não está forçosamente relacionada com a
desordem social”, concluiu ele, após defender o controle dos militares pelo
poder civil.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-constituicao-e-o-descontrole-de-um-estado-em-busca-de-sua-identidade-militares-20072022?fbcl… 2/6
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O segundo ponto importante da exposição de Schmitter trata do excesso de


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mudanças constitucionais apressadas e condicionadas mais por interesses
conjunturais e eleitoreiros dos governantes do que por razões estruturais.
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Neste caso, sua crítica é dirigida às Constituições muito extensas e
detalhistas, como a brasileira. Segundo ele, há dois tipos de Constituições.
“Aquelas que são feitas por consenso entre os agrupamentos políticos, as
principais forças da nação. Neste caso, temos as constituições simples e
duradouras.” E aquelas que resultam da imposição de alguns grupos
políticos vitoriosos sobre outros derrotados: “Neste caso, as constituições
são detalhadas, enormes e não duram muito”.

É esse o caso da atual Constituição brasileira, promulgada em outubro de


1988, três anos após a derrocada da ditadura militar. Para Schmitter, o
tamanho e o detalhismo desse texto constitucional decorrem da
desconfiança generalizada dos diversos segmentos e grupos sociais em
relação à validade das leis ordinárias que regulam assuntos específicos.

Em outras palavras, quase tudo que deveria ser


objeto de legislação ordinária — principalmente
no que se refere a políticas públicas — acaba
incluído no texto constitucional, porque
somente assim esses dispositivos serão
obedecidos.

O problema é que essas políticas públicas vão mudando de governo para


governo, seja por necessidades conjunturais, seja pela evolução da própria
sociedade, seja pelas opções políticas e programáticas dos candidatos à
chefia do Executivo vitoriosos a cada nova eleição. Por isso, a
implementação das novas políticas públicas provoca uma
hipermutabilidade constitucional, aprofundando as incertezas jurídicas na
vida econômica e social do país.

Para se ter ideia desse problema, em dezembro de 2021 havia 1.344


Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) tramitando no Senado e na
Câmara dos Deputados[1]. Somente na última década o número de novas
PECs cresceu 190%. Atualmente, o número de emendas constitucionais

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passíveis de aprovação é quatro vezes maior do que os 250 artigos do texto


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constitucional em vigor, que é o segundo mais extenso do mundo.

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Falta de segurança do direito, colapso nas finanças públicas, instabilidade
econômica e fragilização institucional são alguns dos desdobramentos
naturais desse constitucionalismo abusivo, do qual a PEC que passa por
cima da regra do teto de gastos, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da
legislação eleitoral é o exemplo mais ilustrativo.

A flagrante inconstitucionalidade dessa PEC é apenas uma das facetas da


crise que podem ser analisadas a partir das considerações feitas por
Philippe Schmitter no seminário da Unicamp. Se essa PEC for derrubada
pelo Supremo Tribunal Federal, o que poderá levar à cassação do registro da
candidatura do presidente da República à reeleição, a decisão dará as
justificativas de que ele e seu patético entorno militar precisam para
aumentar ainda mais a contundência de suas afrontas à cúpula do Poder
Judiciário. E se a corte adiar o julgamento desse caso para depois das
eleições presidenciais, sob a justificativa de não criar mais tensões
institucionais às vésperas do pleito, ela correrá o risco de se deslegitimar no
exercício de seu papel fundamental de “guardiã da Constituição”[2].

Explicitado pela artimanha governamental de invocar uma situação de


emergência como pretexto para contornar a Carta Magna e incluir em seu
corpo emendas que contrariam seu espírito, desacreditando-a, esse
constitucionalismo abusivo dá a triste dimensão do que Schmitter falou no
seminário Brasil Século XXI, lembrando que não há no mundo uma nação
com instituições democráticas que viole tanto suas próprias leis e sua
própria Constituição como a nossa. O mais grave é que esse seminário não
ocorreu recentemente, como a mudança da Constituição para adequá-la à
legislação eleitoral, subvertendo o princípio da hierarquia das leis, pode dar a
entender.

Tendo alcançado ampla repercussão nos órgãos de comunicação, esse


seminário foi realizado entre os dias 4 e 8 de julho de 1988. Portanto, uma
análise objetiva, realista e crítica da incapacidade dos militares brasileiros de
diferenciar desordem democrática e ordem antidemocrática, ou, então, da
tendência de apoiar governos irresponsáveis que tentem a tornar uma
ordem constitucional mais vulnerável do que convenções condominiais tem
seu alcance e sua validade confirmados 34 anos depois.

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[1] Cf. jornal O Estado de S. Paulo, edição de 26/12/21, p. A 38.


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[2] Discuto mais profundamente esse risco em “Judicialização da política, ativismo


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judicial e tensões institucionais”, in Journal of Democracy, edição de outubro de 2021.

JOSÉ EDUARDO FARIA – Professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP e chefe do
Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito

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