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Table of Contents

1 A humanidade em chamas
2 Na boca da serpente
3 A “Lenda Petrus” e o misterioso Conselho do Império
4 Maldito século XXI, maldito aquecimento global
5 A inveja cega
6 Uma estranha carta para a humanidade
7 Os poderes sobrenaturais de Superius
8 O medo de morrer
9 O Reino dos Mutantes
10 O encontro do rei dos mutantes com seu filho
11 A destruição da Universidade da Paz
12 Petrus, o libertador dos miseráveis
13 A Floresta dos Fantasmas Loucos
14 Instinctus e os leões
15 O Lago dos Monstros Uivantes
16 Libertando os primeiros escravos
17 A revolução no Vale dos Escravos
18 A solitária
19 Partido ao meio por cavalos
20 O dramático retorno ao Reino de Cosmus
21 O encontro de Nátila com seu pai
22 Um homem contra um exército
23 A gigantesca decepção de Petrus
24 O essencial, o dinheiro não compra
25 A traição
26 A grande surpresa
27 O ataque do Conselho do Império
28 A grande descoberta
29 Uma perseguição implacável
30 A grande explicação
Dedico este livro a:
________________________
Há um gênio dentro de você.
Descubra-o.
Há um jovem que deseja lutar por uma humanidade melhor. Liberte-o.
Há um ser humano que pode ajudar a mudar o mundo. Irrigue-o.
Seja um Petrus Logus onde você for…
________________________ __/__/__
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Pinheiros – São Paulo – SP – CEP: 05425-902

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Presidente Eduardo Mufarej

Vice-presidente Claudio Lensing

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Gerente editorial Rogério Eduardo Alves

Editoras Debora Guterman


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Paula Carvalho
Tatiana Vieira Allegro

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Rosana Peroni Fazolari

Comunicação e produção digital Mauricio Scervianinas de França


Nathalia Setrini Luiz

Suporte editorial Juliana Bojczuk

Produção gráfica Liliane Cristina Gomes


Laila Guilherme
Maurício Katayama
Revisão
Tulio Kawata

Diagramação Eduardo Amaral

Imagens de capa Nathalia Curi

Montagem da capa Deborah Mattos

Fonte do título © Filmland Internacional

Adaptação para eBook Hondana


ISBN 978-85-5717-045-2
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA
PUBLICAÇÃO (CIP)
ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057
Cury, Augusto
Petrus Logus os inimigos da humanidade / Augusto Cury. – São Paulo:
Saraiva, 2016.
280 p.
ISBN 978-85-5717-045-2
1. Literatura brasileira – ficção I. Título 1

16-0732 CDD B869

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira
Copyright © Augusto Cury, 2016
Todos os direitos reservados à Benvirá,
um selo da Saraiva Educação.
www.benvira.com.br
1a edição, 2016
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio
ou forma sem a prévia autorização da Saraiva Educação. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido na lei no 9.610/98 e punido pelo artigo
184 do Código Penal.
549.511.001.001
Agradecimentos e homenagem
Faço aqui minha homenagem ao Greenpeace e a todas as
organizações não governamentais (ONGs), como S.O.S. Mata
Atlântica e WWF, que trabalham para preservar os recursos
naturais da Terra. Agradeço a todos os seres humanos, líderes,
artistas, esportistas, jovens, bem como a todas as empresas que se
preocupam em diminuir o “inferno” do aquecimento global.
Agradeço também às minhas três filhas, Camila, Carol e
Claudia, que estão à frente de um projeto social que irá atender um
milhão de crianças e jovens nos próximos cinco anos com um
programa de educação emocional para ensiná-los a proteger sua
emoção, gerenciar sua ansiedade, trabalhar frustrações e se tornar
autores da sua história.
Agradeço a todas as escolas que, preocupadas com o
aquecimento global, estão adotando com entusiasmo os livros da
série Petrus Logus, bem como a todos os jovens que têm deixado
de lado o egoísmo e se mostrado, como Petrus Logus, preocupados
em preservar o planeta Terra e o planeta emoção.
Prefácio
Omundo de Petrus Logus fala sobre o futuro da espécie humana,
sobre as sérias consequências do aquecimento global. É um lugar
inóspito, sem nenhum espaço para magias. Ele é tomado por
injustiças, escravidão, controle das minorias e tantas outras coisas
horrorosas que podem acabar com nosso planeta.
Neste livro, a Terceira Guerra Mundial ocorreu e a
humanidade quase foi extinta. Os sobreviventes tiveram um bom
começo, mas os anos se passaram e voltaram a cometer os mesmos
erros: vingança, inveja, ciúmes. Até que surgiu Petrus Logus, um
jovem inquieto e inteligentíssimo que tinha uma vontade louca de
mudar o mundo. Enfrentar o Reino de Cosmus e seu pai, o
poderoso e injusto rei Apolo, é seu grande desafio. Porém,
descobrirá que os maiores inimigos da humanidade estão ocultos.
Ele e sua namorada Nátila são perseguidos constantemente.
Sonho que os livros da série Petrus Logus conquistem as
crianças e os jovens de “oito a oitenta anos” de todas as nações. Por
que tenho esse sonho? Porque estamos vivendo um pesadelo.
Estamos fascinados com celulares, internet, games, redes sociais,
sem ter consciência do que nos espera se continuarmos maltratando
o planeta Emoção, com a ansiedade, individualismo, falta de
autocontrole, e o planeta Terra, com aumento da temperatura,
destruição de recursos naturais e desertificação das terras.
Os livros desta série podem ser lidos separadamente. Alegro-
me que muitos dos que leram o primeiro volume, Petrus Logus – O
Guardião do Tempo, tenham ficado tão emocionados que me
cercam nos aeroportos e nos anfiteatros para me perguntar quando
sairia o segundo livro. Pois aqui está. E nele você vai encontrar
borbulhantes aventuras que o levarão a pensar, sorrir muito e
algumas vezes chorar… Eu mesmo soltei lágrimas enquanto as
escrevia. Prepare-se para uma jornada inesquecível…
Augusto Cury
Psiquiatra, pesquisador, escritor
1
A humanidade em chamas
Oaquecimento global não foi resolvido no século XXI, que ficou
conhecido como o século da irresponsabilidade. Cada nação, por mais que
dissesse se preocupar com o planeta Terra, não tomava providências para
preservar os recursos naturais. Por fim, quando acordaram, já era tarde. A
humanidade começou a se fragmentar em mil pedaços. Pipocavam inúmeras
disputas irracionais entre Estados Unidos, Europa, América Latina, Ásia,
África e Oriente Médio.
Uma manchete num importante jornal diário da internet resumiu de
forma inteligente o drama da espécie humana naquele tempo: “O clima do
planeta Terra esquentou muitíssimo, mas o clima do planeta emoção
esquentou mais. Ninguém se entende!”.
No ano de 2099, a ONU (Organização das Nações Unidas) fez mais
uma reunião de emergência, mas dessa vez ela foi muito confusa e
agressiva. Os líderes mundiais estavam descontrolados e estressados.
Alguns desses líderes não dormiam há meses. Durante a reunião, o
primeiro-ministro chinês pegou rapidamente seu microfone e com lágrimas
nos olhos desabafou:
— Mais de seiscentos milhões de chineses estão morrendo de fome.
Eles vagam pelas ruas famintos, como mendigos, batendo de porta em
porta. Precisamos urgente de quarenta milhões de toneladas de soja, vinte
milhões de trigo e sessenta milhões de milho! Fechamos mais de cinquenta
mil escolas; de que adianta estudar se os alunos não têm o que comer?
O primeiro-ministro da Índia estava mais perturbado que o chinês.
Abalado, ele disse em voz alta:
— Tornamo-nos no meio do século XXI um dos países mais ricos do
mundo, mas agora somos um dos mais famintos também! Temos um robô
para cada família, mas não temos alegria nem esperança. Nossa população é
maior que a da China, e nossa desgraça também. Meu povo geme nas
cidades e nos campos… Suplico aos Estados Unidos e o Brasil: que abram
seus celeiros e enviem suas reservas de alimentos para a Índia. Não sejam
egoístas!
O presidente dos Estados Unidos, angustiado, tentou se justificar:
— O aquecimento global alterou nossas terras. Elas estão cada vez
menos produtivas. Não conseguimos suprir nem à nossa população, não
podemos exportar alimentos.
Os países árabes gritaram em coro:
— Mentira! Os Estados Unidos da América têm estoques escondidos!
O presidente dos Estados Unidos limpou o suor do rosto, bateu na
mesa irado e proclamou:
— Não somos mentirosos! Vejam os relatórios de nossa produção de
grãos. Ela caiu 53% de 2050 a 2099. Nem produzimos mais proteína
animal, como gado e frangos, para poupar grãos.
O presidente do Brasil franziu a testa e também revelou suas
informações:
— Vivemos uma insegurança alimentar. Estamos preocupadíssimos,
pois a safra deste ano será tão ruim que haverá fome no Brasil.
— Egoísta! — acusou o presidente da Rússia. — O Brasil é o celeiro
do mundo! Exporte seus alimentos!
— Éramos o celeiro do mundo. Mas as alterações climáticas mudaram
tudo. Nossas terras estão cada vez mais inférteis.
— Os governos americano, brasileiro, argentino, colombiano e até o da
África do Sul mentem descaradamente para a ONU — disse irado
novamente o presidente da Rússia. E, tremendo os lábios, ameaçou: — Se
não enviarem alimentos para a Rússia, declararemos guerra!
Um silêncio geral tomou conta da sala. Nunca houvera uma ameaça
como aquela numa reunião entre países supostamente amigos. Mas outros
presidentes concordaram com os russos.
— Os países da América Latina sempre dependeram do dinheiro dos
chineses e dos europeus para financiar seus grandes projetos. Agora nos dão
as costas! Não suportaremos essa injustiça! — ameaçou também o
presidente da União Europeia.
O Japão, que após a Segunda Guerra Mundial se tornara pacifista,
também mudou o tom. O primeiro-ministro do país estava tão
descontrolado que bradou com agressividade:
— O planeta Terra pertence à humanidade, e a sua produção de
alimentos, também. Ou fazemos uma distribuição de alimentos justa e
equilibrada ou… apoiaremos os russos e declararemos guerra!
Os primeiros-ministros chinês e indiano levantaram-se de suas
cadeiras e disseram ao mesmo tempo:
— Também iremos à guerra!
A FOME e a escassez de recursos naturais tornaram-se uma fonte de
loucuras. A humanidade estava em chamas. Infelizmente, alguns anos
depois, as ameaças se concretizaram. Logo no início do século XXII
ocorreu a guerra das guerras, a Terceira Guerra Mundial, o pior horror pelo
qual a humanidade já passou e que ficou conhecido como “a Catástrofe”.
Muitos países desapareceram para sempre. A população que sobrou se
agrupou em novas nações. Os jovens e as crianças que sobreviveram
passaram a viver num mundo triste e sem esperança. Não havia mais
shoppings, lojas, celulares, computadores, cinema, TV, esportes, música. Os
bandos rebeldes se multiplicavam nas cidades e no campo. Lutavam entre si
por água e alimentos.
Todavia, pouco a pouco, surgiu um império, chamado de Reino de
Cosmus. Ano após ano, esse império ganhou musculatura, ficando
poderosíssimo, e passou a dominar grande parte das nações que surgiram
naquele tempo sombrio.
No começo, o Reino de Cosmus, apesar de todas as crises, era justo e
equilibrado, pois surgiu das cinzas da humanidade. O primeiro rei, um líder
bom, sempre dizia:
— Jamais poderemos cometer os mesmos erros dos nossos
antepassados. Somos uma só família, a família humana. Devemos tratar
cada ser humano, independentemente de raça, cultura e religião, com
generosidade. Todos têm os mesmos direitos.
Após a morte do primeiro rei, seu filho, Apolo, o substituiu. No início
de seu reinado, ele também era bom e justo, mas pouco a pouco seu reino se
corrompeu, e os mesmos erros do passado ressurgiram, como a inveja, a
vingança, o suborno, os privilégios de uma minoria, a necessidade neurótica
de poder. O rei Apolo passou a dirigir o Reino de Cosmus com mão de
ferro, para impedir rebeliões. Os conselheiros do rei eram verdadeiros
monstros. Eles aconselhavam todos os dias o rei Apolo:
— Prenda! Escravize! Sufoque toda rebelião com crueldade!
Desse modo, o rei cometeu um erro gravíssimo, deixou de ouvir a voz
das ruas e tornou-se um deus a quem ninguém podia contrariar. Foi
instituída a lei do silêncio absoluto. Quem criticasse o rei ou o Reino de
Cosmus era preso, açoitado, e alguns eram internados na Câmara dos
Loucos, que era a pior prisão de que a humanidade já teve notícias.
As pessoas sentavam nas praças e diziam umas para as outras
baixinho:
— A espécie humana está gemendo dia e noite. Destruíram a
liberdade!
Quando tudo parecia perdido, eis que surgiu um rebelde que teve a
coragem de lutar contra as injustiças do reino, Petrus Logus. O patinho feio,
o filho desprezado do rei Apolo, começou a enfrentar seu próprio pai. Ao
criticar abertamente os erros de Apolo e de seus conselheiros, o jovem
pagou um preço caríssimo: perdeu o direito de sucessão e foi banido do
imenso palácio. Mas, sem saber como e nem por quê, Petrus desenvolveu a
habilidade de viajar no tempo. Ao descobrir que o jovem tinha esse poder,
seu mestre, Malthus, para seu espanto, disse-lhe:
— Petrus Logus, é difícil imaginar, mas você adquiriu o poder que
nenhum mortal jamais teve, de viajar para o passado e aprender a sabedoria
dos sábios e a força dos samurais e a estratégia dos grandes militares.
Desse modo, a inteligência e a força física dele aumentavam dia após
dia, e seus problemas, também. Pois Petrus era ansioso e inquieto, queria
fazer tudo rápido, precisava aprender a difícil arte do autocontrole.
Começou a bater de frente com seu pai, o rei Apolo, e o governo de
Cosmus. E, assim, assinou sua sentença de morte.
— Seu reino é injusto, meu pai. Seus conselheiros são corruptos —
afirmava o príncipe Petrus.
— Cale a boca, seu insolente! — dizia com autoridade o rei.
— Se me calar, serei prisioneiro de mim mesmo — dizia Petrus
destemidamente.
— Se não se calar, não irá para a prisão. Sua sentença será capital —
afirmava o rei.
PARA NÃO ser morto, Petrus fugiu para terras distantes e, de fato, por onde
passava, em vez de cuidar da sua segurança, procurava libertar os povos.
Assim, o príncipe inquieto, o gênio indomável, se tornou o inimigo número
um do poderoso Reino de Cosmus. Começou a ser caçado dia e noite por
todos os países. Os conselheiros do rei criam que, se Petrus continuasse
vivendo por muito tempo, o Reino de Cosmus se destruiria.
— Excelentíssimo rei Apolo, seu filho rebelde, Petrus, está
contaminando a mente das pessoas como um vírus. Se não o eliminarmos
rapidamente, haverá rebeliões por todos os lados — dizia Terrívius, o
médico-chefe do rei, que, como seu próprio nome indicava, mais parecia
um monstro do que um médico que procurava aliviar a dor humana.
Petrus tinha um ambicioso e frio irmão, Lexus, que seria o sucessor do
pai. Ele apoiava as ideias de Terrívius.
— Também concordo, meu pai. Petrus te odeia, quer seu trono. Não
pode, em hipótese alguma, continuar a viver.
— Como te respeitarão, ó glorioso rei Apolo, se não dominas tua
própria casa? E, além disso, há indícios de que Petrus namora uma
prostituta… Ela também tem de ser cortada da terra dos viventes —
comentou Superius, o tirano e insensível sumo sábio do reino.
ERA O ano de 2240 d.C. A guerra nuclear já tinha ocorrido havia mais de um
século. Infelizmente, o amor, a igualdade e a liberdade quase não faziam
parte do planeta emoção dos seres humanos, eram tão escassos como
alimentos e água potável no planeta Terra.
Petrus Logus cavalgava com seu pequeno grupo de amigos por uma
estranha rua de uma grande cidade devastada pela guerra mundial. A seu
lado esquerdo, montada num grande cavalo branco, estava sua bela,
corajosa e inteligente namorada, Nátila. Ela fora vendida como escrava pelo
irmão de Petrus, o implacável Lexus. Sabendo que não podia superar a
força e a genialidade de Petrus, Lexus atacou o que ele mais amava. Nátila,
além de ter sido vendida como escrava, fora forçada a trabalhar num cabaré
para sobreviver numa terra de famintos. Petrus demorou anos para
encontrá-la, e o resgate aconteceu em meio a lágrimas. Nátila era rápida nas
respostas. Não tinha medo de falar o que pensava, nem mesmo para Petrus
Logus, o homem de sua vida.
Ao lado de Nátila estava Malthus, o sábio chinês que educara Petrus
após sua mãe, a rainha Ellen, ter sido banida do Reino de Cosmus. Malthus
acreditava que Petrus tinha uma missão tão poderosa quanto difícil de ser
realizada e estava sempre a seu lado.
Atrás de Malthus cavalgava Laurus, mais conhecido como Piradus, o
melhor amigo de Petrus e Nátila. Piradus recebera esse apelido por ser um
verdadeiro palhaço. Era capaz de dar risadas de tudo e de todos, inclusive
de sua própria estupidez. Todavia, Piradus, por levar tudo na brincadeira,
era uma bomba ambulante. Ninguém era capaz de se meter em tanta
confusão como ele. Broncus, o amigo truculento, estava ao lado esquerdo
de Piradus, e Santorus, o mutante de quatro braços, generoso e misterioso,
cavalgava ao lado direito.
Piradus sempre comentava com os amigos:
— Não entendo até hoje como Petrus domina esse leão. Só de olhar
para ele, tremo de medo.
O Portal do Tempo deu um presente incrível para Petrus: Instinctus.
Instinctus era um enorme leão albino, belíssimo e amedrontador. Pesava
mais de trezentos quilos, quase o dobro do peso de um leão normal, e era
um fiel amigo do príncipe. O leão caminhava a seu lado direito, imponente,
esguio, majestoso. Instinctus acompanhava os passos do cavalo preto de
Petrus como se fosse um rei.
Piradus tinha razão em sua dúvida: era um mistério o fato de Petrus ser
o único capaz de controlar o poderoso leão. Era mais estranho ainda saber
que, se Petrus gerisse e acalmasse a sua emoção, o leão tornava-se manso
como um gato, mas, se o príncipe perdesse o autocontrole, se estivesse
tenso, ansioso e irado, o leão imediatamente se transformava num predador
voraz, capaz de destruir a todos, inclusive Petrus.
De repente, Instinctus parou e rugiu fortemente, assustando a todos.
Petrus fez com que seu cavalo parasse e logo avistou o que incomodara o
leão: mais à frente, um grande tronco parecia se mexer.
— Esperem!
O príncipe acelerou os passos do seu cavalo e, junto com Instinctus,
foi inspecionar o estranho “objeto”. Era uma cobra píton que sofrera
mutações por causa da radiação da guerra nuclear. O animal era gigantesco,
tinha duas grandes cabeças e oito metros de comprimento. Era mais grossa
que o corpo de um homem.
Subitamente, a cobra levantou suas cabeças e preparou para dar o bote
em Petrus. Seu cavalo se inclinou e relinchou espantado, escapando do bote
da cobra. Instinctus tentou rasgar a pele da cauda do animal, mas esta
parecia de aço.
— Petrus, cuidado! — expressou Nátila, apavorada.
— Afaste-se, Instinctus! — ordenou o príncipe. E, como sempre,
extremamente corajoso, ao invés de recuar, desceu do seu animal e se
aproximou lentamente da píton. A cobra inclinou seu corpo para lhe dar
outros botes. Mas o gênio inquieto se desviou com incrível rapidez.
Instinctus rugiu, ansioso, querendo proteger seu amo, mas o príncipe
fez um sinal para que ele não agisse. Em seguida, estendeu a mão direita e,
com sua energia mental, tentou dominar o cérebro da cobra. Parecia
loucura, mas aos poucos a cobra deixou a posição de ataque e repousou
suas duas cabeças sobre o solo. O enigmático príncipe tinha conseguido.
— Vai em paz, menina… — disse Petrus para a píton.
A cobra pareceu entender a mensagem e começou a se retirar
lentamente, serpenteando seu corpo. Nátila indagou, curiosa:
— Como você conseguiu dominar essa enorme serpente?
— Pior que as cobras do campo são as cobras das cidades — afirmou
Malthus antes que Petrus respondesse. Referia-se à violência dos humanos.
Petrus acrescentou de forma inteligente:
— E pior que as cobras da cidade são os nossos pensamentos.
— Esses caras só falam enigmaticamente — disse o mutante Santorus.
Quando a cobra ouviu a resposta de Petrus, deu meia-volta, serpenteou
até ele. Elevou suas duas cabeças a dois metros do solo e disse-lhe com suas
duas bocas:
— Cumpra sua missão, Petrus! Cumpra! — Em seguida ela abaixou-se
ao solo e começou a deixar o ambiente.
Só o príncipe entendeu as palavras ditas pela cobra. Petrus ficou
assombrado.
— O que foi, príncipe? — questionou o sábio, percebendo um mistério
no ar.
— A cobra… parece que ela falou comigo — disse Petrus,
constrangido, sabendo que ninguém entenderia.
E não deu outra, Piradus caiu na risada.
— Dominar o cérebro dessa minhoca ainda vai lá, mas acreditar que
ela falou com você é uma piada melhor do que as minhas…
No exato momento em que Piradus chamou a píton de minhoca, ela
voltou-se para ele, furiosa, e ergueu-se poderosamente para dar um bote.
Uma das cabeças abocanhou o focinho do cavalo de Piradus, e a outra se
preparava para engolir o amigo de Petrus, que assustadíssimo caiu debaixo
da barriga do animal.
Petrus desembainhou sua espada e feriu a píton. Quando a lâmina
atingiu o corpo do animal, a cobra imediatamente soltou a cabeça do cavalo
de Piradus, que felizmente não quebrou o pescoço, embora tenha ficado
cambaleante por instantes. Por ter sido ferida por Petrus, rapidamente ela o
atacou. Enrolou-se toda sobre ele. Nátila começou a chorar de medo.
— Ajudem! Ajudem! Petrus vai morrer!
Instinctus mordia a cauda da imensa cobra e, com muito esforço,
conseguiu rasgar um pouco sua pele. O animal pareceu não sentir. A píton
estava esmagando os ossos de Petrus. Era o fim do mais justo, corajoso e
rebelde jovem da Terra. Embora fosse de manhã, nesse momento o céu
escureceu, raios cortavam por toda parte, como se anunciassem a morte do
príncipe. Era difícil enxergar a luta angustiante que o príncipe Petrus
travava em seus últimos instantes de vida. Uma luta infernal.
Seu cavalo partiu desesperado. Momentos depois a cobra se
desenrolou, o céu clareou, e não se viu mais Petrus. Restou um mar de
lágrimas entre seus amigos…
2
Na boca da serpente
Ogrupo de Petrus Logus era superunido; lutavam uns pelos outros,
protegiam uns aos outros, mas agora estavam abaladíssimos. Seu líder
sofrera uma morte trágica: fora triturado e engolido por uma enorme
serpente. Nátila gritava inconsolada:
— Petrus! Não! Não! Não!
— Meu amigo, meu amigo, que fim dramático — disse Piradus aos
prantos.
— Vamos matar essa desgraçada! — expressou Santorus com raiva.
Broncus dava murros no ar, inconformado. Malthus colocava as mãos
na cabeça, inconsolável.
— Não é possível. Meu pupilo morreu!
Quando todos estavam paralisados pela dor, sem voz, sem ânimo,
Petrus apareceu por trás deles, montado em seu cavalo, perguntando:
— Por que choram?
Todos ficaram mais perplexos ainda. Pensaram que estavam diante de
um fantasma.
— Petrus! Petrus! Como é possível? — perguntou Nátila, ao mesmo
tempo alegre e assustada, não cabendo em si.
Ele tentou dar uma explicação que não convenceu.
— As cobras relaxam no escuro. Quando o céu escureceu, eu me soltei
— disse, tentando disfarçar.
Mas era impossível aquietar as dúvidas em relação a Petrus. Nátila
ficou pensativa. Desde que ela fora vendida como escrava, ela e Petrus
haviam ficado separados por alguns anos, até se reencontrarem. Nátila não
sabia mais quem era Petrus, no que ele havia se transformado. Tudo em
torno dele era cercado de mistérios.
— Já não o conheço, Petrus. As perseguições de seu pai a você, a
condenação à Máscara da Humilhação, a Câmara dos Loucos, onde foi
internado, tudo isso o transformou numa fonte de segredos — disse
preocupada, só para ele, enquanto cavalgava ao lado do príncipe.
— Sou o mesmo de sempre, Nátila — afirmou Petrus sem mais
explicações.
UMA HORA depois, à sombra de uma árvore, Malthus, que sabia de alguns
segredos do príncipe Petrus, em especial de seu fenomenal dom de romper a
barreira do tempo, também fez perguntas particulares:
— O que aconteceu, príncipe? Ninguém escapa do abraço de uma
enorme cobra e ressurge magistralmente, como se nada tivesse acontecido.
— Eu sou Petrus Logus, a “pedra do conhecimento”! Esqueceu que
posso abrir o Portal do Tempo e viajar como um raio de luz para o passado,
principalmente quando meu cérebro se estressa? — disse ao mestre. —
Cada minuto de ausência no presente representa um dia no passado.
— Está me dizendo que, quando o tempo escureceu e a serpente o
esmagava, você não estava mais no presente? Não brinque comigo, Petrus.
E quem escureceu o ambiente e produziu os raios? — quis saber o sábio.
— Não sei como esses fenômenos ocorreram. Talvez tenha sido o
próprio Portal do Tempo… — disse, saturado de dúvidas.
À exceção de Malthus, ninguém sabia que Petrus tinha esse dom
poderoso e difícil de ser controlado. Malthus insistia que era porque Petrus
fora o escolhido, mas não sabia por quem nem como, para se preparar para
a mais incrível missão.
— Mas onde você esteve?
— Cinco minutos de ausência do presente foram cinco dias no
passado. Nos momentos em que a cobra me asfixiava e o tempo se fechou,
eu viajei para a época de ouro dos samurais japoneses e treinei por cinco
dias com eles.
Malthus cerrou os punhos e assumiu uma posição de ataque.
— Não acredita em mim. Quer me testar? — perguntou Petrus.
Malthus treinava tanto sua mente como sua musculatura. Apesar da
idade avançada, era um exímio lutador. O grupo de amigos não entendeu
nada; não acreditava que os dois iriam lutar. Malthus atacou Petrus com
notável velocidade, mas o príncipe espantosamente se esquivou de todos os
golpes, inclusive dando cambalhotas no ar. Petrus contra-atacou e se
mostrou mais habilidoso que seu mestre. De repente, Malthus segurou o
punho de Petrus no ar e disse:
— Surpreendente, príncipe. Mas, cuidado, os fracos usam a força, os
fortes, a inteligência… Seu dom pode levar à vida ou à morte.
Petrus aproveitou o momento para confessar, com tristeza, algo que
seu mestre não esperava:
— O maior problema de viajar pelo Portal é que minha ausência no
presente, por ser rápida, é pouco sentida por vocês, mas minha presença no
passado, por ser longa, me asfixia de saudades. Ficar longe de Nátila me
angustia…
— Ser o guardião da humanidade tem seu preço — afirmou o sábio.
— E quem disse que estou preparado para pagá-lo?
— Você pode fugir de tudo e de todos, mas nunca de si mesmo… Sua
missão é se preparar para ir ao final do século XXI e tentar evitar a maior
de todas as loucuras humanas, a guerra nuclear, a Terceira Guerra Mundial.
— Loucura é acreditar nessa missão, Malthus.
O príncipe deu as costas para seu mestre e começou a andar. Tinha
calafrios cada vez que pensava nesse projeto. Ninguém ouviu a conversa
secreta entre os dois, mas sabiam que falavam sobre algo importantíssimo.
EM SEGUIDA, Malthus e Petrus montaram em seus cavalos e partiram em
silêncio. O sábio, que sempre fora um mestre da paciência, equilibrado,
começou a sofrer por antecipação por seu discípulo. O preço que o príncipe
Petrus deveria pagar para executar sua missão era inimaginável. Sua missão
era humanamente impossível…
Depois de meia hora, o grupo avistou algumas mulheres que pareciam
ser prostitutas. Laurus Piradus, o amigo mais engraçado de Petrus, sorriu
ironicamente e disse:
— Se essas desocupadas me conhecessem, cairiam em meus braços.
Petrus e os outros amigos riram, à exceção de Malthus; não se
colocaram no lugar delas. Nátila os observou e rapidamente os criticou:
— Estão desprezando aquelas mulheres?
Constrangidos, eles negaram.
— Não, não — falou Petrus.
Mas Nátila não os poupou:
— Além de preconceituosos e tolos, são desonestos!
Eles se aquietaram com a bronca que receberam. E Nátila, que nunca
se calava quando estava certa, os provocou a pensar:
— Vocês sabem as lágrimas que elas choraram para se tornarem
prostitutas? Ou acham que elas têm esse tipo de vida porque querem?
Conhecem as perdas que tiveram, os abandonos que sofreram e os traumas
que vivenciaram durante a infância?
— Tem razão — reconheceu Petrus, envergonhado, ele que era um
amante dos livros e viajante do tempo.
— No começo desta era, vinte e dois séculos atrás, houve um homem
inteligentíssimo que não julgava as pessoas pela aparência delas, Petrus,
mas pelo coração. Por isso, ele transformou prostitutas em rainhas. Mas até
hoje o fantasma do preconceito assombra a humanidade…
— E como você sabe da existência desse mestre? — perguntou
Malthus, curioso.
— Meu pai me educou contando histórias dos sábios do passado.
Petrus pediu desculpas na frente dos amigos.
— Desculpe, Nátila — disse Petrus, e, reconhecendo seu erro,
completou: — Mesmo os sorrisos disfarçam o preconceito.
Mas Nátila, em vez de se contentar com as desculpas, o advertiu na
frente de seus amigos, até porque todos conheciam o passado dela.
— Petrus, eu te amo até o impensável, mas nunca me diminua por eu
ter trabalhado num cabaré. Minha mãe estava doente. Só fiz isso para não
morrermos de fome. Mas, se você tiver vergonha de mim, partirei agora.
Jamais tolerarei um homem que não respeite meu passado nem minha dor.
As palavras de Nátila caíram como uma bomba no colo de Petrus.
Jamais uma jovem fora tão transparente como ela no recomeço da
humanidade. Seu pai havia sido preso pelo rei, e sua mãe fora deixada em
um lugar seguro. Ela estava sozinha e, por isso, deveria aceitar as condições
de Petrus para viver com ele, mas preferia continuar solitária a ser
desprezada.
— Seu passado não me envergonha. Tenho orgulho de ter uma
namorada tão amável e inteligente como você — afirmou o príncipe com
todas as letras. — Eu te amo pelo que você é, Nátila, não pelo que fez. De
todos os capítulos da minha história, você é o melhor deles…
Piradus brincou com a amiga.
— Você não tem ciúmes de Petrus, Nátila? Um garotão bonito,
poderoso, forte, embora perseguido.
— Não, Laurus. Quem tem ciúmes já perdeu, perdeu sua autoestima e
sua autoconfiança. Se ele me abandonar, quem vai perder será ele. — E
depois, voltando-se para Petrus, disse com segurança: — Já sofri demais.
Não quero meio homem para dividir minha história, mas um homem
inteiro, absoluto, capaz de lutar por mim. Caso contrário, prefiro a solidão.
Ela será uma companhia melhor.
Todos ficaram impressionados com Nátila.
— Sou o homem mais perseguido deste planeta, mas sou o mais feliz
também, pois você é a minha escolha… — afirmou Petrus. Em seguida,
parou seu cavalo ao lado do de Nátila e a beijou na frente de seus amigos,
que viraram os olhos.
Logo que descolaram afetivamente os lábios, Nátila olhou para o
horizonte e, aflita, disse:
— Vejam! Há um exército no horizonte!
— Será que pretendem combater uma nação? — indagou Santorus.
Embora estivessem longe, Petrus observou atentamente o movimento
dos soldados e, preocupado, disse:
— É o exército de meu pai. Creio que ele quer combater apenas um
homem. Partamos rapidamente por aquela direção.
E assim cavalgaram. Nátila usava um lenço de seda azul enrolado em
seu pescoço e a pulseira de prata com um pingente de estrela que o pai lhe
dera no dia em que fora encarcerado pelos carrascos de Cosmus. Apesar de
ter sofrido tanto, ela sabia o que queria. Amava Petrus com um amor
inteligente, e não cego. Só não sabia que andar com o príncipe Petrus, o
inimigo que tirava o sono do Reino de Cosmus, poderia levá-la a passar por
experiências traumáticas inimagináveis…
3
A “Lenda Petrus” e o misterioso
Conselho do Império
Nátila era uma jovem observadora. Estava sempre atenta aos perigos do
ambiente. Via quase o invisível, de tanto que prestava atenção em tudo.
Uma hora depois de terem avistado o exército do Reino de Cosmus,
olhando para o solo, advertiu o homem que amava:
— Cuidado, Petrus!
Mas não deu tempo. Petrus, distraído, caiu junto com seu cavalo numa
grande armadilha. Foram suspensos no ar por uma enorme rede de cordas
resistentes. Estavam pendurados por um grande guindaste velho e
enferrujado. O cavalo relinchava e se debatia. Petrus corria o risco de ser
esmagado pelos movimentos do animal.
Nesse momento apareceram cerca de cem homens mal-encarados, com
roupas esfarrapadas e barba não aparada, e começaram a cercá-los. Foram
se aproximando lentamente. Portavam pedaços de pau, barras de ferro e
espadas. Pareciam ser mais do que um bando de bárbaros ou ladrões,
pareciam pessoas famintas, canibais.
Instinctus rugia poderosamente, esperando a ordem de Petrus para
atacar, mas mesmo a presença do leão não conteve a fúria daqueles homens,
que, desesperados, continuaram a fechar o cerco. O leão poderia matar dez,
vinte, mas, por fim, seria morto, comeriam sua carne e teriam os despojos
do grupo. Petrus puxou sua espada e rapidamente cortou as cordas da
armadilha. De repente, eles caíram ao chão. O cavalo caiu primeiro e,
embora tenha batido o peito quando atingiu o chão, não quebrou nem um
osso. Petrus, tentando se agarrar às cordas, caiu debaixo do cavalo.
Alguns dos criminosos deram gargalhadas ao ver o desajeitado jovem
despencar. Na mente de Petrus habitavam o guerreiro e o filósofo, o lutador
e o poeta. Antes de usar sua espada, o príncipe sempre usava o diálogo. Por
onde andava era um pacificador. Tentou negociar com os agressores,
procurando evitar o confronto.
— Não somos inimigos. Não queremos lhes fazer mal, estamos de
passagem — disse, querendo abrandar os ânimos dos cem homens que o
cercavam.
— Mas como um bando de fracos poderia nos fazer mal? —
argumentou o líder do bando com autoridade e fúria.
Seus companheiros gargalharam novamente. O sol batia sobre o rosto
daqueles homens e revelava uma imagem fantasmagórica. Parecia que não
seria possível qualquer negociação.
— Pensem: a vida já é difícil sem violência; com ela, pior ainda —
declarou o príncipe Petrus.
O líder do bando, vendo que Petrus começara a entrar no cérebro de
alguns dos bárbaros, diminuindo seu ânimo para a luta, interveio aos
brados:
— Vocês são invasores! Estamos famintos! Queremos carne fresca! —
Todos salivaram diante dessas palavras. E o líder completou: —
Entreguem-se, e prometemos que pelo menos a jovem sobreviverá.
E, depois disso, os agressores continuaram apertando o cerco. A mente
de Petrus entrou em estado de alerta; sabia que, numa luta corpo a corpo,
pelo menos alguns de seus amigos morreriam. Instinctus ficou à sua frente e
rugiu poderosamente. Os homens deram alguns passos para trás, mas,
famintos, voltaram a se aproximar. Foi então que Petrus deu sua cartada
final, fazendo uma proposta a eles:
— Façamos um trato! Eu luto com os dez mais fortes de vocês de uma
só vez. Se me vencerem, nos entregaremos sem resistência. Podem,
inclusive, fazer um assado dos meus amigos. — E apontou Piradus,
Broncus e Santorus.
— Não acredito! O cara acabou de me pendurar no açougue! Seu…
— Sancristus… — respondeu o líder.
— Seu Sancristus, minha carne está contaminada! Meu amigo aqui é
mais suculento — continuou Piradus, apontando para Broncus, pois gostava
de provocá-lo.
Malthus pediu silêncio. Petrus completou a proposta:
— Mas se eu vencer, nos deixarão ir em paz.
Sancristus passou os olhos em seu grupo e considerou que nunca
recebera uma proposta tão vantajosa. Ninguém de seu bando morreria, e
eles levariam tudo. Elevou as mãos e disse em voz alta:
— Trato feito.
Mas Nátila retrucou:
— Seremos mortos sem lutar? Não admito!
— Eu também não! — afirmou Piradus com ar de valentia.
Petrus, esperto, ao ouvir as palavras do seu amigo, declarou:
— Mudança de lutador. Meu amigo Piradus irá enfrentá-los.
— Eu? Você está louco? — disse ele, urinando nas calças.
Em seguida, o líder dos agressores apontou os dez mais fortes do
grupo. O príncipe ordenou que Instinctus se afastasse, o que ele fez, rugindo
com resistência.
Os bárbaros mostraram os dentes, sedentos de sangue. Acharam que
esmagariam uma mosca, porém a mosca voou e com os pés bateu na cabeça
de dois de seus oponentes, que imediatamente desmaiaram. O líder ficou
assustado com a rapidez de Petrus, mas mesmo assim instigou seus homens
a lutar. Todos caíram em cima de Petrus como abelhas sobre o mel.
Entretanto, Petrus, usando técnicas sofisticadas de artes marciais, os abateu
um por um. Tentavam atingi-lo com barras de ferros e espadas, mas ele se
desviava, como uma borboleta bailando no ar.
— O Petrus que conheci era tão frágil. Que força é essa? — indagou
Nátila, admirada, para Piradus.
— Também não sei, amiga — disse ele, os olhos fixos na luta. — Só
sei que, se ele não ganhar, viraremos churrasco.
Todavia, o último bárbaro a ser abatido atingiu Petrus nas costas com
uma barra de ferro. O príncipe, apesar da dor, tomou a barra e se aproximou
do agressor, colocando a espada em seu pescoço. Hesitou em matá-lo.
— Acabe com ele! — gritou Broncus, excitado.
— Sangre o miserável! — bradou Piradus.
Instinctus queria atacá-lo. Mas, em vez de enfiar sua lâmina e
assassinar seu oponente, Petrus bateu com sua cabeça na cabeça dele,
fazendo-o apenas desmaiar.
— Se eu o matar, serei igual a ele. Quebrarei meu código de honra.
Malthus sorriu. Petrus tinha um código que o diferenciava de todo
lutador ou militar. Nunca matava alguém se tivesse alguma possibilidade de
preservar sua vida. Ele desmaiava seus oponentes, quebrava suas pernas e,
se necessário, feria-os para deixá-los fora de combate. Só ocorriam mortes
se não dependesse de sua livre escolha.
Sabia que, se deixasse prevalecer o instinto animal dentro de si, se
tornaria o homem mais violento da Terra, deixaria de ser o Guardião do
Tempo e da Humanidade, o escolhido.
ENQUANTO PETRUS lutava, paralelamente ocorria outro evento num dos
lugares mais misteriosos da Terra. O Conselho do Império — que ninguém
sabia quem eram, se eram humanos ou alienígenas, e o que almejavam —
estava reunido no interior de uma cordilheira, que por sua vez escondia o
maior laboratório que o planeta Terra já teve.
O Conselho do Império possuía a mais alta tecnologia digital e
holográfica. Acompanhava todos os passos de Petrus. Um dos presentes
tirou seu capuz e, espantosamente, tinha a face semelhante à de Petrus.
— Charles! Recoloque seu capuz — advertiu o líder do Conselho, o
poderosíssimo Opus.
Charles imediatamente obedeceu. Usando uma tecnologia
sofisticadíssima, aparecia a imagem em 3-D do príncipe diante de seus
olhos. O líder do Conselho, Opus, vestindo uma máscara com listas azuis e
pretas, que representavam o céu azul e o escuro interior da cordilheira, disse
com sua imponente voz:
— A força de Petrus é gigantesca. Estamos no caminho certo.
Mas outro disse:
— Não se anime, líder. Outros falharam. Precisamos que ele tenha a
força da inteligência. Caso contrário, não sobreviverá a seus gritantes
desafios.
Um dos conselheiros, Hipócrates, comentou:
— Mas as chances de Petrus serão maiores se eliminarmos Nátila. O
amor, esse sentimento humano perturbador, pode impedir sua evolução.
Mas o líder, Opus, novamente interveio:
— Ainda não. Petrus está usando o Portal do Tempo, continua
evoluindo. Deixá-la viva por enquanto pode nos ser útil.
A palavra de Opus era lei, e ninguém discutia. Em seguida, todos os
membros elevaram sua voz e bradaram:
— Glória ao nosso líder supremo, glória a Opus.
ENQUANTO ISSO, o líder dos bárbaros descumpria sua palavra com Petrus.
Aos gritos, disse novamente:
— Mais dez.
Petrus olhou para ele com raiva. Instinctus rugiu e ameaçou atacar o
líder. Mais um teste. Mas Petrus impediu o ataque do leão. O ousado
príncipe enfrentou os outros dez oponentes. E do mesmo modo os abateu
um por um.
Ao abater o último, Petrus ficara de costas para Sancristus, o líder do
grupo, que não tardou em espancar suas costas com uma barra de ferro.
Petrus sentiu uma dor indescritível. Em seguida, o líder ia enfiar a espada
em suas costas. Como se tivesse olhos atrás da cabeça, Petrus bloqueou o
golpe traiçoeiro com sua espada. Desarmou o líder e o pegou com as mãos
pela camisa, levantando-o acima da cabeça. Instinctus correu até Petrus,
rugindo de ódio. Ficou de pé, querendo morder a cabeça do líder dos
bárbaros. Ao ver o fim de seu líder, os bárbaros fugiram como ratos no
meio dos escombros da cidade fantasma. Ficaram à espreita para ver o que
aconteceria.
Em vez de matar Sancristus, Petrus o soltou ao chão e disse:
— Um homem sem palavra não é um homem, é um animal.
Tremulando, o líder disse:
— Que força é essa? Quem… é… você?
— Petrus Logus! — respondeu o príncipe com autoridade.
— É você…? A lenda… Essa cicatriz… — E ajoelhou aos pés de
Petrus.
— Nunca ajoelhe diante de um homem — disse o príncipe, que era
crítico do culto ao poder, mesmo se fosse de um rei.
— Não esperava que um dia alguém se rebelasse contra o tirânico rei
Apolo. Muito menos imaginava que esse rebelde fosse o filho do próprio rei
— afirmou Sancristus.
Petrus pegou-o pela mão direita e o ajudou a se levantar. Agora mais
calmo, indagou:
— Como você sabe que me rebelei contra o rei?
— Em todo esse continente não se fala em outra coisa. Não somos
canibais, embora você vá encontrar bandos assim pelo caminho. Mas
comeríamos os seus cavalos e a fera… — afirmou honestamente, olhando
para Instinctus. — Bom, pelo menos tentaríamos…
— Se estes caras fossem canibais, Broncus, acho que eu seria comido
primeiro — afirmou Piradus.
— Por quê? — perguntou Broncus ingenuamente. Embora fosse
musculoso, tinha a mente de um garoto.
— Porque sou filé-mignon, enquanto você é carne de pescoço. Duro de
engolir — disse, debochando.
— Se encontrar alguns canibais, eu os lembrarei disso… — afirmou
Broncus, deixando Piradus preocupado.
— Mas por que estão tão famintos? — indagou o príncipe.
— Desculpe, príncipe, mas morar no palácio cega as pessoas. Não
sabe que a terra está ferida, que quase não produz alimentos? E, do pouco
que produzimos, temos de pagar pesados impostos para o governo de seu
pai.
— Meu pai, no início de seu governo, era um rei justo e bem-
intencionado. Mas, com o tempo, mudou muito — disse, lembrando-se de
sua infância.
— O inferno social está cheio de pessoas bem-intencionadas… —
afirmou Nátila de forma inteligente, participando da conversa.
Após ouvir essas palavras, Sancristus levantou as mãos, bateu palmas
duas vezes, e saíram dos becos não apenas os bárbaros, mas suas esposas e
seus filhos. Todos famintos, emagrecidos… Petrus os olhou atentamente e
teve pena deles, principalmente das crianças, com seus cabelos
desgrenhados e faces sujas.
— Meu Deus. Quem são vocês? — perguntou Nátila com lágrimas nos
olhos.
— Senhora, esta cidade e seus arredores formam o Vale das Religiões.
Fomos banidos para cá por não aceitar a religião de Cosmus nem seu líder
das trevas, o sumo sábio Superius. Somos cristãos, mas aqui também há
judeus, islamitas, budistas e outros. Vivemos escondidos, praticando nossas
crenças ocultamente.
— Mas vocês não têm comportamento de cristãos — interveio Petrus
rapidamente. — Cristo era um pacificador, dava a outra face a seus
agressores, já você ia me apunhalar pelas costas!
— Sinto muito, príncipe. Temi sua força. Vivemos atemorizados. Há
sempre pessoas roubando nossas crianças e nossas mulheres. — E,
muitíssimo curioso, perguntou: — Mas como o filho de Apolo falou de um
dos comportamentos de Jesus Cristo? Os livros foram queimados.
— Nem todos. Mas algumas de suas palavras, eu ouvi diretamente…
diretamente… — falou o príncipe rapidamente e depois engoliu sua saliva e
se calou. Não podia revelar sua viagem no tempo.
Sancristus reagiu imediatamente:
— Diretamente de quem?
— Depois que fui preso na Câmara dos Loucos, minha mente
confunde o que li e ouvi — respondeu, tentando desviar o assunto.
— Mas ouvi falar que ninguém sai da Câmara dos Loucos, desse
esgoto humano.
O príncipe deu-lhe as costas, deixando Sancristus, seus homens e
famílias, bem como Nátila, Santorus e Piraduse, de boca aberta. Quem era
Petrus? Ninguém sabia.
4
Maldito século XXI,
maldito aquecimento global
Enquanto Petrus caminhava de costas até seu cavalo, para partir,
Sancristus, pensando nas crianças e em como iriam alimentá-las, ficou
abatido. Diante disso, resolveu apelar para o poder do príncipe.
— Petrus Logus, tenha compaixão de nós. Ajude-nos a alimentar
nossos filhos — disse o líder.
O príncipe reduziu seus passos. Nesse momento, as crianças soltaram-
se das mãos de seus pais, algumas tinham três anos de idade, e fizeram um
cordão em torno do príncipe. Uma criança de quatro anos disse:
— Tô com fome.
Um menino de três anos, chamado Julius, disse, falando errado o nome
de Petrus:
— Não comi nada hoje, píncepe Petus.
Petrus ficou abaladíssimo. Pegou a criança no colo e, com lágrimas
nos olhos, perguntou:
— Estamos no meio da tarde e você não comeu nada ainda? Nem um
pedaço de pão ou uma fruta?
Chorando, Julius disse:
— Nada…
Todas as crianças, também soltando lágrimas, disseram a mesma coisa.
Nátila se aproximou delas e as abraçou, também em prantos. Petrus ficou
tão comovido que caiu de joelhos diante das crianças, olhou para o alto e
bradou, irritadíssimo:
— Maldito século XXI! Maldito aquecimento global! Malditos líderes
que gastaram cem vezes mais para desenvolver armas do que para combater
a fome! Maldita guerra nuclear! O que fizemos com nossas crianças?
Instinctus rugiu poderosamente para o alto, como se estivesse
gemendo de dor. Em seguida, Petrus e Nátila olharam um para o outro,
emocionados. Petrus olhou para seu animal e disse:
— Sacrifiquem meu cavalo.
Todos ficaram paralisados com a atitude do príncipe. Petrus amava seu
cavalo, mas não podia deixar as crianças sem se alimentar. Sancristus
rapidamente pegou o animal. Vários homens o amarraram e iriam sangrá-lo
ali mesmo. Quando estavam prestes a enfiar a espada no coração do pobre
animal, Petrus os interrompeu: — Sancristus, espere!
O líder cristão interrompeu seu movimento.
— Broncus, dê todos os alimentos que temos para saciar essas crianças
— ordenou Petrus.
— Mas, príncipe… — Broncus ia intervir, dizendo que aquilo era
loucura. Eles precisariam dos alimentos.
— É uma ordem, Broncus. — Em seguida, Petrus indagou a
Sancristus: — Há nesta cidade uma câmara de aço pintada com uma tarja
azul e outra amarela?
Depois de pensar, ele disse:
— Não que eu me lembre.
De repente, um dos bárbaros comentou:
— Sim, existe uma enorme, num lugar perigoso da cidade. Uns amigos
e eu tentamos abri-la anos atrás, mas foi impossível.
E levou Petrus e seus amigos até o enorme edifício de aço. Enquanto
caminhavam pelas avenidas esburacadas, viam pontes caídas e carros e
ônibus estacionados, alguns batidos. Ficaram chocados. Percorreram os
olhos e enxergavam atônitos inúmeros prédios, museus, shoppings e
cinemas semidestruídos. Era uma cidade fantasma.
— Que ambiente triste — afirmou Nátila.
— Como a civilização antiga era desenvolvida! — observou Santorus.
— Rica por fora, pobre por dentro — comentou Petrus.
Sancristus e seus companheiros os conduziam, preocupados, olhando
de um lado para o outro.
— O que teme, Sancristus? — perguntou Petrus.
— Os ratos.
— Ratos? Eu os mato com um grito — afirmou Piradus.
— Então se prepare — alertou Sancristus.
De repente, Piradus ficou abaladíssimo.
— Manhêêê! O que é aquilo?
— São ratos manipulados geneticamente em laboratórios do passado e
que sofreram mutações com a guerra nuclear — explicou Sancristus.
Os animais eram carnívoros vorazes. Tinham a cabeça parecida com a
de um rinoceronte; o corpo, de um leão; as patas, de tigres; e grunhiam
como hienas.
— Não são ratos, são monstros! — declarou Nátila, amedrontada.
Tão logo ela fez esse comentário, o grupo foi atacado de vários lados.
Petrus, Malthus e Broncus desembainharam suas espadas e foram matando
as feras uma a uma. Piradus se escondia atrás de Nátila, que quase foi
engolida viva. Felizmente, Instinctus a protegeu no exato momento em que
um dos ratos-monstros pulou sobre ela. Em seguida, o enorme leão branco
deu um rugido arrepiante, e os monstros bateram em retirada. Ainda tinham
o instinto de rato.
Alguns minutos depois, Petrus finalmente encontrou o local que
procurava. Após inspecioná-lo, o príncipe indagou:
— Quantas pessoas residem no Vale das Religiões?
— Não temos estatísticas, mas são dezenas de milhares.
— Chame os líderes de todas as religiões da região. Quero conversar
com todos eles.
— O vale é grande, demorará um dia para reunirmos os líderes
católicos, protestantes, islamitas, judaicos, budistas, bramanistas e outros.
— Não importa, eu esperarei.
— Mas o que essa câmara contém? — perguntou Sancristus.
— Agora não é hora para perguntas. Partam agora. O que ela contém
pertence a todas as religiões — afirmou Malthus em sintonia com o
príncipe.
— Mas vivemos digladiando uns com os outros, não vai dar certo. Eles
provavelmente não virão.
— Convoque-os mesmo assim. Diga que Petrus Logus, o filho rebelde
do rei Apolo, o inimigo número um do Reino de Cosmus, os chama —
disse taxativamente o príncipe.
DEPOIS DESSE episódio, Petrus e seu grupo começaram a se retirar do centro
da cidade. Curiosos, entraram num imenso prédio abandonado. Na entrada,
uma placa anunciava o nome: Shopping Millenium. Os amigos olharam
para os corredores e ficaram impressionados com as lojas destruídas, cheias
de objetos espalhados pelo chão.
— Aqui era um centro comercial — afirmou Petrus.
— O que é um centro comercial? — indagou Nátila.
— As pessoas no passado tinham o hábito de fazer suas compras num
lugar só.
Andaram mais cem metros pelos corredores, viraram à esquerda e, em
seguida, encontraram um conjunto de salas de cinema. Havia vários
cartazes imensos espalhados pelo chão, alguns estavam fixados nas paredes.
— Vigésima quinta filmagem do Batman?, Homem-Aranha e Superman
contra a Guerra Nuclear?, Harry Potter: 11a refilmagem? — leu Petrus.
— Quem é esse homem-morcego? — indagou Piradus.
Ninguém sabia.
— E esse homem com uma aranha desenhada no peito? Deve ser um
mutante como eu — suspeitou Santorus.
— Por que será que estão estampados em grandes cartazes? — quis
saber Nátila.
— Aqui devia ser uma escola de pintura… — comentou Malthus.
Subitamente, aranhas gigantes, que pesavam mais de dez quilos,
apareceram caminhando pelas paredes. Surgiram também alguns morcegos
hematófagos, ávidos por sangue como vampiros, cujas asas tinham
envergadura de dois metros. Eles voavam por cima do grupo, deixando
todos desesperados.
— Fujam! — gritou Petrus, e de repente enfiou sua espada em dois
morcegos e uma aranha que atacaram ele e Nátila.
Uma aranha subiu nas costas de Piradus. Este deu um grito tão forte
que quase matou o grupo de susto. Felizmente não o picou, pois não sabia
se era venenosa. Rapidamente se retiraram do shopping e foram para um
lugar mais seguro.
NO DIA seguinte, Sancristus convidou todos os líderes do Vale das
Religiões, e ficou surpreso que, um por um, acataram a convocação de
Petrus. Cada um dos líderes vestia seu manto para rituais. Havia cerca de
vinte líderes. Eram quatro horas da tarde. Fitando os olhos daqueles líderes
sofridos, o príncipe disse:
— É uma honra poder falar com vocês. Primeiro, peço desculpas pela
perseguição do governo tirânico de Cosmus.
Os líderes se entreolharam, admirados.
— É estranho ver o filho de Apolo pedir desculpas. Nem em nossos
delírios imaginaríamos isso — declarou Amir, um xeique islamita.
— Quem não reconhece seus erros não é digno de liderar nem a si
mesmo, quanto mais uma sociedade.
— Como sabemos que não é um impostor? — perguntou o rabino
Josef.
— Vocês têm de confiar em mim. A cicatriz do meu rosto é minha
testemunha, e esse leão, minha assinatura.
Instinctus rugiu fortemente nesse momento. Nenhum dos presentes
tinha visto um homem dominar uma fera tão grande. Petrus continuou:
— Sei que perderam seus filhos, suas mulheres foram maltratadas, não
poucas mortas.
Enxugando seus olhos, um líder budista, Lenus, comentou:
— Por que nos chamou aqui, filho de Apolo? Como pode aliviar
nossas dores e nossa fome?
Então o príncipe contou uma história que eles desconheciam:
— No século XX e, principalmente, no XXI, tivemos uma economia
que usou excessivamente o petróleo e o carvão mineral. Produziu gases, em
destaque o gás carbono e metano, que destruíram a camada de ozônio que
protegia a Terra, o que gerou o dramático aquecimento global. O resultado?
Milhões de hectares de terra ficaram inférteis, não produziam alimentos
suficientes para alimentar a humanidade.
Alguns líderes das religiões esfregaram as mãos na cabeça ao saber
desses fenômenos.
— Desconhecia esse fenômeno. Mas como isso pode nos ajudar? —
falou Amir, um líder islâmico.
Petrus continuou:
— Os líderes das nações se reuniram 77 vezes para solucionar o
problema do clima e da distribuição de alimentos, mas cada um se
preocupava apenas com seu próprio umbigo. A guerra nuclear, tão temida,
se aproximava. E, de fato, ela ocorreu no dia 2 de outubro de 2102, às duas
horas da tarde. Menos de dez por cento da população sobreviveu, em sua
maioria jovens.
Ao ouvir essas palavras, os líderes se impressionaram com o
conhecimento de Petrus sobre História. Mas até aquele momento ninguém
sabia aonde Petrus queria chegar.
— Sei que cada um de vocês tem sua crença, mas é tempo de se
unirem para sobreviver.
— Bom… mas o que fazemos com nossas diferenças? — perguntou
Josef.
— Nas diferenças vocês se respeitam, na essência vocês se amam —
afirmou Malthus com sabedoria.
— Julguem menos e abracem mais — concluiu Petrus.
E os líderes começaram a dizer uns para os outros: “Mas esse é o
pensamento de Cristo”, “Essa tese está no Alcorão, na Torá, nos escritos
budistas”.
Nátila não conseguia ficar na plateia; tinha de entrar no palco.
— Olhem para as ruínas desta cidade e de milhares de outras. Quase
fomos extintos. Antes de pertencerem a uma religião, vocês pertencem à
família humana. O amor sem admiração não se sustenta! Noventa por cento
do seu tempo vocês não são católicos, protestantes, islamitas, judeus,
budistas; são seres humanos que têm as mesmas necessidades: sonhar, amar,
ter prazer, superar crises. Lutem pela humanidade e pelo futuro dela, como
nossos antepassados não fizeram…
Deixando seu orgulho de lado e diminuindo suas distâncias, todos se
levantaram e aplaudiram o casal.
— Mas é duro ter amor e compaixão na terra de miseráveis — afirmou
Santorus.
— Tem razão, Santorus. Por isso eu chamei esses líderes aqui —
confirmou Petrus, que sabia da existência do misterioso objeto pelos livros
que tinha lido.
Chegando ao imenso cofre, todos queriam saber o que aquilo
significava, mas Petrus não respondeu, apenas tentou usar suas habilidades
para descobrir o segredo do cofre e abri-lo. Alguns líderes levantaram para
partir.
— Desista, príncipe. Não sei o que há dentro desse imenso
reservatório, mas, se não pode abri-lo, ninguém deve usá-lo — disse o líder
budista.
Mas, de repente, o enorme cofre se abriu, revelando um corredor que
dava para inúmeras câmeras internas. Usaram tochas para entrar. Não
tardou muito para todos chorarem ao ver que o cofre continha milhares de
toneladas de alimentos e sementes resistentes à radiação.
— O que significa isso, Petrus? — questionou Sancristus, abrindo um
grande sorriso.
— É um cofre construído em algumas megalópoles para que os
habitantes tivessem condições de sobreviver à guerra nuclear.
— Então eles já sabiam que a guerra das guerras ocorreria? —
perguntou Amir.
— Décadas antes. Era uma morte anunciada — falou Malthus.
Eles dividiram igualmente os despojos entre si. O príncipe, que já tinha
viajado no tempo e aprendido técnicas de plantio, passou alguns dias
ensinando pessoas de todas as religiões a plantar no solo ácido as sementes
resistentes.
Alguns religiosos fizeram uma sugestão a Petrus, que não aceitou.
— Vamos usar os grãos para alimentar nossos animais.
— É melhor não. Vivemos tempos de escassez. A cada cem calorias
dos grãos que deveriam nutrir nosso corpo, se tratarmos os animais, teremos
apenas quarenta calorias no leite, vinte e duas nos ovos, doze no frango e
apenas três calorias na carne bovina.
— Como sabe essas informações? — indagou Amir, admirado.
— Os livros! — falou com singeleza e segurança o príncipe.
— Mas esse tesouro da humanidade foi queimado no mundo todo —
disse Josef.
— Há uma biblioteca que foi preservada, a biblioteca de Cosmus.
— Precisamos ter acesso a ela — disse Sancristus
— Um dia, quem sabe, ela será aberta ao mundo.
Depois disso, como as famílias daquele vale eram frequentemente
atacadas, Petrus e Malthus lhes ensinaram um pouco de defesa pessoal.
Piradus e Nátila também aproveitavam para aprender com eles. Petrus
bradava:
— Disciplina! Perna direita para a frente! Chutem o ar com a esquerda
e voltem rapidamente! Soquem e voltem rapidamente o punho.
Piradus achava-se um perito em artes marciais, mas no fundo era um
desastre. Era tão desajeitado que, sem querer, deu um murro no peito de
Nátila, que caiu desmaiada.
— Meu Deus, matei Nátila!
Ao tentar ajudá-la, ela lhe deu um golpe que o fez virar pirueta no ar,
levando-o a se esborrachar no chão.
Piradus se levantou com dificuldade, dizendo:
— Ai, ai… Coitado do Petrus. Se te decepcionar, vai para o túmulo.
Todos deram gargalhadas. Após o treinamento, todos comeram juntos.
Era fascinante ver pessoas tão diferentes praticar esportes e tomar suas
refeições com alegria. A humanidade, em meio a tantas dores, sorriu.
O príncipe ficou famoso em toda aquela imensa região, e as notícias
sobre seus feitos espalhavam-se como ondas numa lagoa. A lenda crescia.
5
A inveja cega
Muitos reinos, povos e vilarejos começaram a dizer que Petrus Logus, e
não Lexus, deveria assumir o Império de Cosmus. Lexus recebia notícias da
popularidade de seu irmão, o que nutria sua inveja e o deixava furioso, com
mais garra para persegui-lo.
Dois dias depois de Petrus ter deixado o Vale das Religiões, Lexus
treinava em seu acampamento, perto de um penhasco onde, trinta metros
abaixo, serpenteava tranquilamente um rio. O ego de Lexus era maior do
que sua espada; o rapaz se achava o melhor estrategista militar de Cosmus,
o melhor guerreiro, o mais forte, o mais rápido e o mais inteligente. E,
quando lutava com seus soldados, de fato mostrava uma força incrível.
Odiava quando um soldado sobressaía a ele.
O sol era escaldante, de modo que alguns soldados lutavam com um
lenço na cabeça. Cada vez que derrotava um dos militares, Lexus o
humilhava:
— Fraco! Como pode fazer parte da elite do meu exército?
Os soldados tremiam de medo ao lutar com ele. Lembravam-se de dois
soldados que, após machucarem o príncipe durante o treinamento, foram
assassinados dormindo.
Depois de derrotar mais dois soldados, Lexus desafiou:
— Fracos. Não há soldado capaz de me intimidar nesse exército?
Depois de um longo silêncio, quando Lexus estava embainhando sua
espada, um soldado se apresentou fazendo um barulho metálico, sinal de
que desembainhara a sua espada. Trazia um lenço enrolado na cabeça, de
modo que não era possível identificar seu rosto.
— Esconde o rosto do sol ou de medo?
— Por que eu teria medo?
— Porque eu sou Lexus, o futuro rei de Cosmus.
E foram para o combate. Lexus manejava sua espada como se fosse o
mais hábil dos soldados. Parecia que venceria a luta com facilidade. O
oponente era desajeitado, parecia tímido, inseguro, sem habilidade, e caiu
ao solo logo no primeiro round da luta. Os soldados, excitados,
debochavam do desafiador. Lexus, vendo-o caído ao chão, também o
humilhou:
— Este é o mais fraco de todos, é um maricas. Será banido do meu
exército.
Em seguida, o soldado, ainda no solo, soltou uma gargalhada. Jamais
um soldado tivera esse tipo de comportamento perante Lexus, o que deixou
o príncipe irado.
— Ninguém zomba do príncipe Lexus e fica vivo! Prepare-se para
uma luta de vida ou morte!
Todavia, o desafiante, que até aquele momento parecia tão desajeitado,
tomou impulso e colocou-se de pé, assumindo uma pose de samurai.
Empunhou a espada em frente ao corpo, baixou um dos joelhos até quase
tocar o solo e curvou a cabeça. Todos imaginavam que ele pedia
misericórdia, mas o desafiante recomeçou a lutar com Lexus, agora com
uma capacidade incrível. Lexus ficou perturbadíssimo. Parecia um menino.
Todos os soldados ficaram assombrados com a força, a habilidade e a
velocidade do desconhecido.
O sumo sábio Superius, o médico-monstro Terrívius e o general Brutus
estavam presentes e ficaram pasmados ao ver o poderoso Lexus cair diante
do estranho. “O que está acontecendo? Quem é esse louco que derrota
Lexus? Certamente acabou de assinar sua sentença de morte”, diziam uns
para os outros. Lexus começou a suar e recuar à medida que a lâmina do
adversário batia ferozmente contra sua espada. Por duas vezes, o desafiador
colocou a espada contra o pescoço do príncipe, tirando-a em seguida e
dando ao príncipe uma nova chance.
Não demorou muito para que o misterioso oponente jogasse longe a
espada de Lexus e o humilhasse diante de sua tropa. Lexus tombou ao solo,
e rapidamente o desafiante colocou sua espada na altura do coração do
príncipe e a pressionou. Lexus sentiu dor, e sangue começou a escorrer da
ferida.
— Largue a espada, ou não viverá!
Nisso, três soldados vieram para lutar com o oponente, mas ele tirou a
espada do peito de Lexus e com poucos golpes os tirou de combate. Em
seguida o desafiante disse em voz alta:
— Como esse fraco pretende governar um reino se não governa sequer
seu orgulho?
Subitamente, centenas de soldados desembainharam suas espadas para
atacar o desconhecido que humilhou Lexus. Mas o soldado saiu correndo e
deu um mergulho no vazio, dando três piruetas no ar antes de cair no rio,
trinta metros abaixo. Lexus sussurrou:
— Petrus…
O general Brutus se levantou e disse:
— Sim, só pode ser Petrus!
— Esse homem é um bruxo. Tem pacto com o demônio. Como pode
vir ao acampamento de seus inimigos? — indagou Superius.
PASSADO O susto, Lexus e seus homens levantaram acampamento. Em todos
os lugares por onde passava, Lexus, ansioso para eliminar seu irmão,
buscava informações sobre seu paradeiro.
— Um homem de cicatriz no rosto, acompanhado de um leão branco,
passou por aqui? — perguntou para dois caminhantes.
— O príncipe justo? — questionou um deles.
— Aquele que assumirá o trono de Cosmus? — completou o outro.
Lexus pegou um chicote e os açoitou. Depois, voltando-se para o
general Brutus, Terrívius e Superius, comentou furioso:
— Em todos os lugares só se fala de meu irmão. Sua popularidade se
alastra como uma epidemia nesta terra.
— Temos de extirpar esse câncer o mais rápido possível — falou
Terrívius.
— Não devemos extirpar o câncer, devemos eliminar o paciente —
falou o sumo sábio Superius, que nutria por Petrus um ódio igual ou maior
do que o que o próprio Lexus sentia, mas ninguém sabia o motivo exato.
ENQUANTO ISSO, longe dali, mais uma cena misteriosa ocorria no interior da
cordilheira. O Conselho do Império, que sempre observava o
comportamento do príncipe Petrus Logus, também estava admirado. O líder
supremo do Conselho, Opus, ficou de pé e esbravejou:
— Viram a reação de Petrus quando ele soube que as crianças
passavam fome?
— Sim, Opus! — disseram os membros do misterioso Conselho.
— Gostaria eu de sentir a dor da fome, mas não sinto — afirmou o
comandante daquele misteriosíssimo grupo.
Todos aplaudiram seu poder e disseram:
— Vida longa a Opus, nosso líder supremo, que procura sentir o
instinto humano.
Diante disso, Opus completou:
— Gostaria eu de sentir o perfume deste elogio, mas não sinto! —
disse a última frase aos gritos.
— Todos gostaríamos! — disseram em peso os membros daquele
misterioso Conselho.
E de repente, mostrando uma força incomum, Opus acertou a mesa de
reunião com um soco tão forte que quebrou parte dela. Nenhum dos
membros do conselho se espantou. Pareciam todos hipnotizados pelo líder.
Em seguida, argumentou em voz alta:
— Mas esse romantismo que Petrus Logus tem pelos mais fracos me
incomoda. — E, aumentando mais ainda o tom de voz, disse: — Ele
instigou as religiões a cessar suas disputas e cooperar umas com as outras!
Ele saciou a fome dos miseráveis daquele vale! Será que não percebe que
humanidade está falida?
— A jovem que ele ama é a grande culpada, Opus — disse um dos
conselheiros.
— Eu sei. O amor, esse sentimento ilógico, faz Petrus crer no ser
humano. Que tolo! Mas como eliminar Nátila sem tirar de Petrus o ânimo
de viajar no tempo? Ele precisa encontrar a carta…
E deu outro soco na mesa. Dessa vez, Opus bateu tão forte que a partiu
em inúmeros pedaços. Todos os outros vinte conselheiros esmurraram o que
sobrou da mesa. Cada um deles era mais forte que dez homens. Metiam
medo por sua arrogância. Ninguém sabia quem eram nem qual era seu
plano. Pareciam tão dóceis e, ao mesmo tempo, quando contrariados, tão
perigosos e agressivos. Petrus não tinha a menor ideia de que seus maiores
inimigos e da humanidade eram uma caixa de segredos.
6
Uma estranha carta para a humanidade
Ogrupo de amigos caminhava suave e tranquilamente logo aos primeiros
raios solares, como se o mundo não fosse completamente inseguro. Nátila,
que tinha uma voz linda, cantou uma música que saiu do fundo da sua alma:
Somos revolucionários
Sonhamos com um mundo livre
Onde os seres humanos são irmãos
E nossas dores são curadas
E nossas lágrimas, estancadas
E nos fartamos do pão de trigo e de alegria
Ninguém vai nos calar
Vamos dar o melhor de nós
Para a humanidade melhorar
Todos foram contagiados pela canção. Era uma canção revolucionária:
era a revolução do amor, da justiça, da liberdade, da capacidade de dar o
melhor de si para fazer os outros livres e felizes.
Dias depois, às nove horas da manhã, um vento sul soprou fortemente
sobre a estrada em que Petrus e seus amigos transitavam, produzindo uma
poeira cinzenta. Subitamente, uma folha feita de polipropileno levantou voo
e começou a bailar no ar, sob a orquestra do vento. Petrus, montado em seu
cavalo preto, foi atraído pela folha. Galopou até ela e, com muito esforço, a
agarrou.
A folha trazia um texto escrito com uma tristeza incomum. O título era
“Uma carta para a humanidade”, e fora escrito por um personagem que
presenciou o maior drama vivido pela espécie humana. Petrus conseguiu
decifrá-la e, à medida que lia, seu semblante ficava mais preocupado.
O grupo se aproximou dele.
Nátila, que sempre questionava tudo o que via, perguntou ao príncipe:
— O que foi, Petrus? O que fez o seu semblante mudar?
Ele elevou seus olhos para a mulher que amava e, com a voz
embargada, disse:
— Estou começando a ler uma sentença de morte…
— De quem? — indagou preocupada.
— Da humanidade… É uma carta muito triste. — Em seguida, Petrus
olhou para o alto e questionou: — Por que não gerenciamos nosso instinto
animal? Por que fomos predadores uns dos outros?
— Do que você está falando? — perguntou Santorus, preocupado.
Como mutante, sempre fora perseguido pelos “normais”. Era sensível a
qualquer tipo de violência.
De repente, Petrus começou a ler a carta em voz alta.
Uma carta para a humanidade
Querida família humana, você é incrivelmente complexa, maravilhosa, inteligente, mas infelizmente
autodestruidora. Sabe fazer poesias, mas também armas de destruição em massa. Sabe cantar
melodias, mas também gritos de guerra. Tem a habilidade de pensar como nenhuma outra espécie,
mas não tem usado essa habilidade para se preservar. Suas crianças estão sem ânimo para brincar, e
seus jovens, sem coragem de sonhar, pois…
De repente, Broncus apareceu galopando, ofegante, e interrompeu a
leitura. Estava à frente do grupo, atuando como batedor. Quase sem voz,
disse:
— Seu irmão Lexus e o general Brutus… estão a duas horas daqui.
Atrás deles vem uma legião de mais de quatro mil homens.
Petrus respirou profundamente e confessou:
— Eu já sei.
— Sabe? Como? Sabe também que ele está com a elite do exército de
seu pai? Os soldados mais fortes e mais bem treinados.
— Por que quatro mil soldados para perseguir um homem? — indagou
Nátila, preocupada. — Certamente eles não temem Laurus, Malthus,
Broncus ou Santorus.
— Espera aí, Nátila. Sou um cara perigoso! — afirmou Piradus.
— Só se for para as moscas — disse Broncus.
— Sou apenas um mortal, mas perturbo o reino. Estar comigo é quase
que assinar a sentença de… — declarou Petrus.
— De morte! — completou Santorus, engolindo em seco.
Ao ouvir que andar com Petrus era quase como assinar uma sentença
de morte, Piradus aproveitou para fazer piada desse clima de terror.
— Petrus causa arrepios em todos nós, Nátila. Se eu fosse você,
pensaria num plano B. Quem sabe um pretendente mais bonito e mais
seguro… — disse, piscando os olhos para ela.
Para Piradus, a vida era uma eterna brincadeira. Com ele a vida era
mais alegre, embora fosse especialista em se meter em confusão. Petrus
sorriu e disse:
— Bom, as mulheres são mais inteligentes que os homens, elas sabem
escolher.
— Não encha, Laurus! — disse Nátila.
Todos deram risada. Mas a garota voltou a artilharia para Petrus.
— Quem é você, Petrus? Você não é mais o jovem que eu conheci.
— Sim, eu sou!
Nátila discutia as dúvidas que tinha diante dos amigos, sem medo.
Porém Petrus ficava constrangido com seus argumentos.
— Lembro-me de que, quando vestiu a Máscara da Humilhação, você
quase morreu asfixiado por ela. Seu corpo estava acorrentado a dois
soldados, e eles o arrastavam, como um galho seco. Mas hoje sua força é
incomum. Um exército o persegue, um leão lhe obedece. Reitero: quem é
você, Petrus Logus? Quem é ou “o que é” esse leão? Por que ele é tão
conectado a você?
Instinctus se aproximou da garota e lambeu suas pernas. De repente
viu uma presa, um cervo, e, faminto, assumiu posição de ataque e o
perseguiu. Em quinze segundos, o abateu. Todos ficaram admirados com a
força e a habilidade do leão. Instinctus trouxe a presa para todos comerem.
Petrus desceu de seu cavalo e cortou o animal, dando a maior parte para
Instinctus.
Mistérios e mais mistérios faziam parte do dia a dia do príncipe Petrus.
Em suas viagens pelo Portal do Tempo, Petrus não apenas lia livros, mas
conhecia de perto os grandes personagens da História, de filósofos a
estrategistas militares. Bebia da fonte do conhecimento. Mas os riscos de
viajar no tempo eram altíssimos. As leis da física poderiam destruí-lo.
Poderia ser morto numa dessas viagens ou ficar preso numa janela de tempo
e nunca mais voltar à sua própria era… e para Nátila.
O único século que Petrus ainda não conhecia profundamente era
aquele que ele condenava: o XXI. O século da civilização digital, da
sociedade robótica, o período mais maravilhoso e mais destruidor da
humanidade.
Olhando para Nátila, Petrus confessou:
— A minha relação com este leão é uma longa história, Nátila. E,
quanto à força que tenho acumulado e à minha missão, não seria bom falar
sobre isso agora.
— Como não? Sou sua namorada ou seu troféu?
— Minha namorada, é claro. Eu te amo, mas tenho poucas respostas, e
as que tenho ainda me perturbam.
A ansiedade de Nátila era tanta que ela não conseguia parar de
questioná-lo.
— Decidi caminhar a seu lado nesta jornada, então tenho o direito de
saber onde estou pisando. O amor não sobrevive sem transparência!
Malthus deixou seu ar de gentileza. Seu cavalo empinou as duas patas
da frente para o alto, e o mestre disse categoricamente para ela:
— Você pergunta demais, Nátila! Já não bastassem os demônios que
assombram Petrus, você coloca ainda mais pressão sobre ele!
A garota se conteve. Em seguida, Malthus perguntou para Broncus:
— Terrívius, o médico-monstro, e Superius, o sumo sábio,
acompanham a legião de soldados?
— Há duas pessoas estranhas vestindo uma máscara preta com dois
caninos expostos, um de cada lado de Lexus. Foi o que consegui ver com
esses binóculos.
— São eles. Os dois conselheiros do rei estão usando a máscara de
guerra. Eles só saem do palácio em batalhas importantíssimas — afirmou
Malthus. — Sinto muito, Petrus. O rei Apolo quer aprisioná-lo, mas
Terrívius, Superius e Lexus o querem morto, Petrus. O cérebro deles tem
sido controlado por forças estranhas.
— O que sabes que eu não sei, Malthus? Por que eles sentem tanto
ódio de mim? — indagou Petrus.
— Sou um homem que tem tantas dúvidas quanto você, Petrus —
declarou o mestre olhando para o céu; parecia esconder segredos que não
podia comentar.
— Partamos rápido — comentou Broncus. — Ou morreremos.
Petrus guardou a carta dentro da camisa. E partiram.
À noite, quando estavam descansando ao redor de uma fogueira,
Nátila, curiosa, perguntou pela carta.
— Leia para nós, Petrus.
— Não sei se devo continuar a lê-la. A inocência protege a emoção.
— Concordo parcialmente! A inocência protege a emoção, mas
bloqueia a decisão. O escuro favorece o sono, mas esconde as baratas.
— O que ela quis dizer com isso? — perguntou Broncus.
— Quis dizer que o escuro protege as baratas, oras bolas — comentou
Piradus.
— Isso é o que ela disse, seu tonto — afirmou Broncus.
— Nátila usou uma metáfora — interferiu Santorus. — Quis dizer que
quem não tem coragem de acender a luz da razão, de pensar, esconde seus
erros e problemas.
— Não nos prive de conhecimento sobre a humanidade, Petrus. Eu sou
parte dela — afirmou Nátila.
Malthus sorriu. Agora entendeu por que Petrus a escolhera.
— Ok, façamos um círculo ao redor da fogueira.
E, assim, retomou a leitura de onde tinha parado:
…suas crianças estão sem ânimo para brincar, e seus jovens, sem coragem de sonhar, pois a terra
geme, diminui a cada ano a sua produção de frutos e de grãos. O calor está insuportável, as fontes
de água estão secando. Catástrofes naturais, como secas em determinados lugares, inundações em
outros, tornados, vagalhões, são gritos da natureza, que pede socorro… Mas poucos ouvem sua voz.
— Que carta emocionante! Não sabia que a natureza emitia um pedido
de socorro! — declarou Piradus.
— A Terra aqueceu por causa do homem? — indagou Nátila, tensa.
— Infelizmente sim. Os combustíveis à base de petróleo expeliram
gases que destruíram a camada de ozônio que protegia a atmosfera, gerando
o aquecimento global — declarou Petrus, e continuou a leitura.
Para diminuir o aquecimento global, presidentes e primeiros-ministros de todas as nações faziam
longas reuniões. Bebiam, comiam, se fartavam, debatiam, davam entrevistas, mas as soluções eram
tímidas, frágeis, quando comparadas com a velocidade da destruição da natureza.
— Que erro imperdoável! — interviu Nátila, com lágrimas nos olhos.
Petrus colocou as mãos nos ombros dela, numa tentativa de consolá-la.
Em seguida, leu um parágrafo que deixou todos espantados.
Em 2025, o preço de um smartphone de boa qualidade era equivalente a 1.200 quilos de grãos, como
soja ou trigo. Mas, em 2065, quarenta anos depois, os problemas climáticos se agravaram tanto, e os
alimentos ficaram tão caros, que o preço de um smartphone sofisticado equivalia a 80 quilos. Em
2085, apenas vinte anos depois, a situação ficou insuportável, e com 0 valor do melhor smartphone
disponível no mercado dava para comprar apenas 10 quilos de grãos de trigo.
As celebridades daquele tempo já não eram os atores ou os esportistas, mas os agricultores.
Tropeçavam em pessoas famintas mendigando alimentos nas ruas.
— Que horrível! — comentou Nátila. — Mas o que é um smartphone?
— Não sei direito, mas parece um aparelho de comunicação que
deixou de existir — respondeu Petrus.
— Mas deve ser algo muito importante — afirmou Piradus.
— Por que todos escondem a tecnologia do passado? — indagou
Nátila.
Petrus olhou nos olhos dela e respondeu de forma segura:
— Meu avô, o rei Domus, e os demais líderes que sobreviveram à
Terceira Guerra Mundial quiseram banir a tecnologia, o conhecimento, os
livros, as universidades, porque disseram que elas falharam em produzir a
pax humana. Queriam um novo começo para a humanidade, sem os vícios e
a tecnologia do passado.
— Pax humana? Que bicho é esse? — questionou Piradus.
— A paz entre todos os povos, raças, religiões e culturas — respondeu
Malthus por Petrus.
— Mas o rei Apolo não ama essa pax humana, pois construiu um reino
tirânico, que exclui as pessoas e privilegia uma minoria — afirmou Nátila.
— Eu sei, eu sei. Os sobreviventes da Catástrofe foram radicais. Não
selecionaram o que as gerações passadas construíram de positivo. No
ressurgimento da humanidade, em vez de lutarem pela paz, foram
infectados pelo poder e, novamente, como os líderes ancestrais, praticaram
injustiças sociais — declarou Petrus.
Em seguida, Nátila, com sede de aprender, disse:
— Vamos finalizar a leitura da carta.
As pressões para destruir as grandes florestas, como a Floresta Amazônica, para produzir grãos,
explodiram, o que aumentou o aquecimento global. O petróleo quase não existia, e as minas de
carvão foram amaldiçoadas. Em 2090, cerca de 70% da matriz energética era limpa: eólica, solar,
extraídas do hidrogênio, dos oceanos, das células químicas de clorofila. Mas era tarde demais. O
velho ditado oriental nunca foi tão verdadeiro: Deus sempre perdoa, os homens, às vezes, a natureza,
nunca.
Havia um robô humanoide para cada ser humano, mas éramos infelizes e famintos. Muitos
robôs tinham exatamente a anatomia humana e simulavam o comportamento dos homens. Alguns
humanos desenvolveram uma paixão por eles como se fossem verdadeiros, e não robôs frutos da
inteligência artificial.
Infelizmente, no final do século XXI, em 2099, o planeta tinha mais de dez bilhões de
habitantes, e a Terra não conseguia suprir nossas necessidades. Como havia risco de autodestruição
da espécie humana, as maiores empresas gastaram uma fortuna incalculável para produzir a mais
excelente criatura, mais forte que um exército, mais poderosa que os supercomputadores, seu nome:
Robosapiens. Seu objetivo era proteger a humanidade. O Robosapiens tinha autonomia para pensar
e era tão perfeito que desejou ser igual ao ser humano, e foi então que ele traiu a humanidade. Lutei
contra a inteligência e o imenso poder do Robosapiens, a máquina mais fantástica produzida pelo
ser humano… Mas infelizmente não consegui vencê-lo.
Nátila interrompeu a leitura:
— Que carta é essa? Parece uma história de terror.
— Quem será esse Robosapiens? — perguntou Piradus. — Estou
sentindo calafrios.
Petrus continuou a leitura da interessantíssima carta.
Três anos depois, no ano de 2102, para piorar, houve uma seca mundial. Trocavam-se carros por
alguns quilos de alimento, apartamentos por pães e alguns litros de água. Outro pensamento popular
se cumpriu: fome num dia, guerra no outro. Em outubro de 2102 teve início a Terceira Guerra
Mundial, a guerra nuclear, a guerra das guerras. Quase fomos extintos…
— Hoje, em 2240, quase um século e meio depois da Catástrofe, temos
um décimo da população daquele tempo — afirmou Malthus.
— Mas milhões não são reconhecidos como seres humanos —
comentou Santorus com tristeza.
— Por quê? — indagou Nátila, entristecida.
— São mutantes, Nátila. Veja meu exemplo, sou um mutante rejeitado
por muitos… Todos os dias tenho dores horríveis nas costas. E, como eu, há
milhões que foram vítimas da guerra nuclear…
Petrus, colocando a mão no ombro do amigo, falou, comovido:
— A radiação nuclear alterou o DNA, gerando deformações no corpo
dos homens. Mas não tenho dúvida de que na essência são seres humanos.
— Seu pai quer fazer uma limpeza racial. Ele trama eliminar todos os
mutantes do mundo — disse Santorus.
— Na verdade, não ele, mas seus assessores, que são “Hitlers”.
— O que são Hitlers? — indagou Nátila.
— O responsável pela Segunda Guerra Mundial. O homem que
exaltava sua raça e queria eliminar minorias.
— Você promete, Petrus, que impedirá que os mutantes sejam
eliminados? — disse Santorus, emocionado.
— Sou apenas um homem, mas prometo que, enquanto uma célula
minha estiver viva, tentarei lutar contra esse reino das trevas.
Depois de um longo suspiro, Malthus disse:
— É melhor dormirmos.
Mas, antes disso, Nátila fez uma última pergunta, sem saber que a
resposta tiraria o sono de Petrus e o dela:
— Mas quem escreveu esta carta, e por quê?
— A assinatura está borrada… — observou Petrus, mas de repente
umedeceu a folha de plástico com a respiração que saiu da sua boca, e a
assinatura ficou evidente. Petrus congelou, parecia ter visto um fantasma.
Sua testa franziu, sua face se contraiu.
— O que foi, príncipe? Quem a assinou? — perguntou Malthus,
percebendo que havia algo errado…
De repente, alguns lobos uivaram, amedrontando seus amigos. Petrus
continuava perplexo, assombrado.
— Não pode ser… — expressou ele.
— Quem escreveu a carta? Não deixe nossa mente em suspense —
pediu Nátila, ansiosa.
— Está assinado Petrus Logus.
— Petrus Logus? — repetiram todos ao mesmo tempo.
— Como assim? Ela não foi escrita em 2102, há mais de cento e
quarenta anos? Você ainda não fez vinte e cinco anos — observou Nátila,
assombrada. — O que está acontecendo, Petrus?
— Eu é que pergunto: o que está acontecendo comigo? Não me lembro
de ter escrito esta carta. Mas a assinatura é idêntica à minha…
— Que segredos o cercam?
— Não sei, Nátila, não sei… Muito menos sei o que são células
químicas de clorofila. Nem sei mais quem sou… — disse o gênio inquieto.
— Tô borrado de medo. Isso parece coisa do demo… — disse Piradus.
— Acalme-se, gente! Isso só pode ser uma conspiração de Terrívius e
Superius para destruir a saúde mental de Petrus — comentou Malthus,
tentando diminuir a ansiedade do grupo.
— Mas como eles sabiam que Petrus passaria por aqui neste exato
momento? — questionou Nátila. — Como forjariam a assinatura de Petrus
num tipo de folha cuja textura desconhecemos?
— Nátila tem razão, Malthus. Eles não têm tanto poder assim! —
afirmou o príncipe.
— Tudo é muito enigmático, mas o poder deles vai além da luz do sol.
Vem das sombras… — disse o sábio. Em seguida, deitou-se para o lado,
não querendo mais conversa.
Piradus pôs as mãos no ombro de Santorus e disse:
— Meu amigo, tô arrepiado. Com as palavras de Petrus urino nas
calças, com as de Malthus, tenho diarreia. Eu vou mudar de lado…
Nátila deu risada de Piradus.
— Não sei se rio ou se choro.
— Nem eu, minha querida, nem eu… — disse Broncus.
Como todos estavam fatigados, resolveram cochilar. De madrugada,
quando todos começaram a pegar no sono, Laurus Piradus deu um grito que
quase matou todos de enfarto:
— AHHHHH!
— O que foi, Laurus? — perguntou Nátila, assustada.
— Acho que não estou bom da cabeça.
— Isso você nunca foi — disse Broncus.
— Mas tô pior, cara. Sonhei que tinha sido engolido por uma cobra,
comido por uns barbudos e perseguido por uns monstros das trevas…
— Apazigue seus fantasmas, Piradus. Durma, durma… — falou
Petrus, tentando acalmar os próprios pensamentos.
— Mas como? Todos os dias a gente quase morre de susto. Faz
massagem na minha cabeça, Nátila, quem sabe não domino meus
fantasmas…
Petrus mostrou-lhe os punhos.
— Sou um homem delicado, Petrus. Prefiro o modo tradicional —
disse o palhaço do bando, mais uma vez dando risada da vida. Todos
sorriram num ambiente que era para soltar lágrimas.
E assim foram dormir, com inúmeras perguntas e nenhuma resposta.
Para fazer parte deste grupo, era preciso ser forte e inteligente. Novas
surpresas surgiriam no imenso quebra-cabeça de Cosmus no dia seguinte.
Teriam de caminhar por trajetórias perigosíssimas sem nenhum mapa.
7
Os poderes sobrenaturais de Superius
Lexus, o irmão de Petrus, marchava imponente, como se fosse imperador
do mundo. Não perdia o orgulho, sentia-se como se já tivesse assumido o
trono de seu pai. Por onde passava, seu exército saqueava as provisões dos
habitantes.
— Tenha compaixão, príncipe Lexus — diziam os fazendeiros e
administradores das vilas e cidades.
Mas compaixão era uma palavra que ele desconhecia. Sentia-se o
senhor da Terra. Lexus fora educado por Terrívius e Demétrius, dois
mestres da ambição, enquanto Petrus fora educado por Malthus, um mestre
da humildade. Ao passar pelo Vale das Religiões, mandou reunir os líderes
como Petrus havia feito, só que Lexus os ameaçou. Colocou a espada no
pescoço de Sancristus e indagou, irado:
— Meus batedores disseram que meu irmão passou por esta cidade.
Para onde ele foi?
Eles se negaram a falar. Lexus deu um rodopio em seu cavalo baio e
desceu. Alguns líderes foram ameaçados, outros, esbofeteados.
— Falem ou todos morrerão, inclusive seus filhos! — ameaçou
Terrívius.
— Não sabemos — disse Josef, o rabino.
— Ele foi sem dizer para onde — comentou Sancristus.
— O que esse maldito fez aqui? — indagou Superius, o sumo sábio,
com sua voz rouca e vibrante. Ele portava uma máscara vampiresca.
Mas os líderes se calaram.
— Abaixem a cabeça e respondam à pergunta do sumo sábio, ou
sofrerão uma morte imediata! — gritou o implacável general Brutus.
Foi então que os líderes religiosos descobriram que estavam diante de
um dos homens mais violentos do reino. Em vez de abaixarem a cabeça,
todos levantaram-na e mostraram desprezo pelo perseguidor das religiões.
Superius era como uma espécie de deus da seita universal que ele mesmo
havia criado. Tinha poderes estranhos, mas ninguém sabia de onde vinham.
Alguns achavam que era de uma tecnologia desconhecida.
— Não sei se ele é maldito, mas ele nos trouxe a paz — falou
corajosamente Sancristus.
— Paz? Ele é um assassino! — afirmou Superius, esticando o braço e
fazendo Sancristus curvar o corpo de dor. Havia um aparelho piscante
escondido em seu pulso. Superius queria passar a ideia de que tinha um
poder mental sobrenatural.
Em seguida, disse para Lexus:
— Eles não sabem de nada. São miseráveis que se escondem como
ratos nesta cidade podre.
— Vamos saqueá-la — afirmou Lexus.
— Mas, senhor, aqui só há tijolos e pedras — afirmou o líder budista.
— Açoitem este homem, pois se dirigiu ao príncipe de Cosmus sem
pedir licença! — ordenou Terrívius aos carrascos.
E assim o fizeram.
— Também açoite os demais; assim, caso não me amem, pelo menos
me temerão! — falou Lexus, e em seguida adentraram a cidade.
Quando estavam perto de encontrar o celeiro superprotegido, os ratos-
monstros, felizmente, os atacaram. Alguns soldados morreram durante o
ataque; Superius, que estava à frente, quase foi mordido.
— É melhor sair desta terra de demônios — disse Superius, temeroso.
E, para não mostrar fraqueza, declarou: — Nosso alvo é o príncipe Petrus.
As trevas estão nos retardando.
E assim eles bateram em retirada. Quando estavam fora da cidade,
alguns batedores disseram:
— Petrus seguiu para o leste.
— Ele os enganou. Ele foi para o norte! — afirmou Superius, olhando
para o próprio peito, como se uma voz que só ele ouvia emanasse dali.
— Sumo sábio, seguirei a orientação dos batedores. Eles têm mais
experiência — afirmou Lexus.
— Você me seguirá, garoto.
— Não sou garoto. Sou o príncipe Lexus! Respeite-me. Serei o futuro
rei de Cosmus.
— Abaixe sua crista. Se eu não te coroar, você não será ninguém.
Nisso, Brutus desembainhou sua espada e a apontou para Superius.
— Eu, general Brutus, sirvo a Lexus. Não o desacate na minha frente.
Mas Superius não se rendeu, ao contrário.
— Eu, o sumo sábio de Cosmus, sirvo a forças mais poderosas do que
Cosmus. — E abrindo a palma das duas mãos sentenciou: — Por desacato à
minha autoridade, determino que sua espada derreta agora e que seu cérebro
também desfaleça.
Alguns líderes do exército sorriram levemente ao ouvir essa piada, mas
por incrível que pareça a espada do grande general, que estava a um metro
de Superius, começou a derreter. Além disso, o general começou a entrar
em estado de choque tão grande que suplicou como uma criança:
— Desculpe-me, sumo sábio. Tenha misericórdia, poupe minha vida.
Todos os tenentes e capitães que assistiram a seu general suplicar por
compaixão ficaram amedrontados. Não sabiam com que forças estavam
lidando. Superius fechou suas mãos, e o general recobrou seu equilíbrio
mental imediatamente. Em seguida, num tom de voz muito mais forte,
Superius ordenou a Lexus:
— Partamos para o norte!
— Para o norte! — confirmou o príncipe. Era um escravo fazendo
milhões de outros escravos…
SUPERIUS ESTAVA certo. Petrus tinha seguido para o leste apenas para
despistar o exército. Quando atravessou o imenso rio Garganta Profunda, de
trezentos metros de largura, seguiu margeando-o em direção ao norte. O
exército de Lexus resolveu repousar na margem do rio. Deram de beber
para os cavalos, que também estavam fatigados. Durante a refeição noturna,
logo antes de deitar, Superius, que estava sentado junto com Terrívius e
Lexus, comentou:
— Sinto o cheiro de Petrus neste lugar.
— Meu irmão seria louco de estar aqui pela segunda vez. Meu exército
agora está de prontidão.
— Você não sabe quem é Petrus nem o que está por trás dele, muito
menos onde ele realiza seus treinamentos — disse Terrívius.
— Sei que carrega no rosto uma cicatriz que grita por vingança. Sei
que tem um misterioso leão que o protege. Sei que sempre o zombei por ele
ser um fraco, mas agora Malthus o treina.
— Ingênuo. Malthus é apenas uma folha da grande árvore onde ele
repousa.
Ansioso, Lexus exigiu explicações:
— Por que temem meu irmão como a um fantasma?
— Quando for coroado, você saberá — afirmou Superius.
— Mas exijo saber agora.
— Você não exige, você pede — respondeu Superius.
— Não entendo. Até meu irmão se rebelar, vocês eram obedientes a
mim. Por que me confrontam agora?
De fato, havia ocorrido uma profunda mudança no jogo de Cosmus.
Terrívius e Superius nem pareciam os mesmos.
— Seguimos ordens! — explicou Terrívius.
— De quem? De meu pai?
— Nem sempre — disseram, cheios de mistério.
— Vocês estão tramando contra o rei Apolo — disse Lexus,
levantando-se.
— Não. Nós sustentamos o reino de seu pai — declarou Superius.
— Como assim? São nossas forças armadas que o sustentam.
— Ingênuo! Não percebe algo estranho no ar? — concluiu Superius.
E, sem dizer mais nada, foram dormir. A noite era fria por fora e ainda
mais fria na mente daqueles homens. Superius e Terrívius tinham um poder
descomunal, mas de fato, como Lexus dissera, Petrus se tornara um
fantasma para eles. Criam que, com Petrus vivo, o governo que dirigia o
mundo estava ameaçado.
DE MADRUGADA, Superius saiu com uma escolta de dez soldados para fazer
mais uma de suas estranhas “meditações”. Lexus percebeu sua saída.
— De novo vai se isolar, sumo sábio.
— Sente-se desprotegido com minha breve ausência, príncipe?
— Não, só acho estranho seu comportamento. Como príncipe, eu
deveria ser chamado para participar desse ritual.
— Mas esse ritual se dá em outra esfera, está além do Reino de
Cosmus.
Terrívius também acordou:
— E eu, o médico da alma, posso te acompanhar?
— O que faço está além da medicina do corpo e da mente…
Terrívius, que era parceiro das trevas de Superius, ficou intrigado por
ter sido excluído. Superius estava apresentando comportamentos
imprevisíveis, o que ele não compreendia.
— Cuidado com as assombrações desta região, Superius — disse
Lexus com ironia.
— Elas é que devem me temer…
E assim Superius se retirou. Quando chegou a um lugar que achou
apropriado, pediu, como sempre fazia, para os soldados ficarem a cinquenta
passos de onde estava. Foi para trás de um rochedo, sentou-se sobre seus
pés, tirou do bolso um aparelho que media menos de cinco centímetros,
colocou-o sobre a palma das mãos e, como se estivesse meditando, invocou
algo muito estranho. Disse repetidamente em voz baixa:
— Líderes supremos, líderes supremos… Qual a direção do seu servo?
De repente, um “fantasma” mascarado apareceu atrás da rocha onde
estava, alguém que Superius não esperava. Era um estranho, um invasor,
que espreitava aquela misteriosa comunicação. Superius não o notou.
— Senhores da terra e do céu, em qual direção segue o seu servo? —
proclamou novamente o sumo sábio.
Subitamente, o aparelho de Superius se iluminou. A luz ganhou tal
intensidade que ofuscava os olhos. Superius colocou o aparelho sobre o
solo e se afastou três passos dele, inclinando o corpo em sinal de reverência.
Em seguida, a luz mudou de cor, e um personagem em três dimensões, do
tamanho de um ser humano, surgiu, construído pela luz que emanava do
aparelho. Era a mesma figura que liderava o Conselho do Império, Opus.
O personagem que os observava atrás da rocha ficou atônito, não tinha
a mínima ideia do que estava ocorrendo. De repente, Opus, de rosto
coberto, falou com dose de autoridade:
— Como ainda não caçaram Petrus?
— Ele é muito esperto. Conhece engenharia e geografia. Está sempre à
nossa frente.
— Você, o escolhido para servir ao conselho, tem mostrado uma
fraqueza surpreendente. Damos-lhe os meios e a direção, e você falha! —
falou irado Opus.
— Em breve o eliminaremos… — afirmou o sumo sábio.
— Se não o fizer, você sofrerá sérias consequências.
— Não o decepcionarei — disse trêmulo. — E quanto ao resto do
grupo?
— Não deixe ninguém vivo! — ordenou Opus friamente.
— Há alguma outra orientação? — perguntou Superius.
— Controle os fantoches: Lexus e Apolo.
— Estão sob meu controle.
Era meia-noite, os lobos uivavam no horizonte, as corujas piavam sem
parar. Logo após Superius guardar o aparelho em seu bolso direito, o
fantasma apareceu.
— Homem das trevas. De onde vem seu poder?
Superius levou um susto.
— Petrus, conheço seu cheiro e sua voz de longe, mesmo que a
disfarce.
— A pergunta é “quem é você e quem são seus senhores?”.
— Se te contasse, você desmaiaria… — afirmou Superius, dando uma
risada fantasmagórica. A risada foi tão alta que chamou a atenção dos
soldados que faziam sua segurança. Todos ficaram em pânico.
— Por que quer matar pessoas inocentes? — perguntou Petrus,
agarrando a garganta de Superius e asfixiando-o silenciosamente. —
Covarde! Vocês espancaram os líderes do Vale das Religiões. E agora
querem eliminar meus amigos. Se tocarem neles, eu mesmo o assombrarei.
Nesse momento, o líder da guarda se aproximou, bradando:
— Solte o sumo sábio!
Ele o soltou e disse:
— Essa luta não é com vocês! — disse Petrus, que não foi reconhecido
pelo militar, pois estava mascarado.
Petrus rapidamente aproximou sua espada da cabeça de Superius. De
repente, não se sabe como, uma barreira invisível, como um campo de
força, envolveu o sumo sábio, de modo que a espada não conseguia tocar
seu corpo, por mais esforço que Petrus fizesse.
— Essa arma de nada adianta contra as forças que me protegem, Petrus
— disse Superius, soltando novamente uma risada fantasmagórica.
Eis que centenas de soldados apareceram. Petrus pulou sobre a rocha e
bateu em retirada. Minutos depois, ao redor de uma fogueira, Lexus
indagou a Superius:
— O que ocorreu, sumo sábio?
— Como disse, sinto a presença de seu irmão.
— Precisamos prendê-lo o mais rápido possível — disse o general
Brutus.
— Prendê-lo, não, general. Cortá-lo da terra dos viventes. Essa é a
ordem!
— Petrus é uma ameaça para o reino — afirmou Lexus. — Por amor a
Cosmus, Petrus não deve mais viver.
— Os céus confirmam isso — declarou Superius.
Nesse momento, raios cortaram a noite escura, embora não houvesse
sinal de chuva.
— Que poder é esse, Superius? — indagou o general Brutus,
apavorado.
Superius não respondeu. Apenas deu risada e foi deitar-se.
À noite, todos tiveram pesadelos. Dois fantasmas assombravam a
mente do exército, de Lexus e de Brutus: Petrus e Superius.
8
O medo de morrer
De madrugada, Petrus saiu sutilmente, e ninguém soube aonde tinha ido.
Logo pela manhã, antes de o sol exercer seu reinado sobre o dia, Petrus e
seu grupo já estavam em marcha. Passaram por um desfiladeiro difícil de
cavalgar, onde corriam grande risco de despencar. Só de olhar para baixo e
ver a altura de duzentos metros, o cérebro deles já entrava em pânico.
Tinham vertigem. Não havia parapeito numa das laterais. No começo, era
possível passar três cavalos por vez, depois a estrada ia se afunilando.
Petrus estava à frente.
— Isso é loucura! Podemos morrer — disse Nátila.
— É melhor seguir em frente. O exército do rei está em nosso encalço.
A legião não terá coragem de caminhar nessas montanhas íngremes —
explicou Petrus.
Apesar de a estrada ser perigosa, a visão do alto era belíssima.
Chegariam a vales férteis se conseguissem superar a travessia.
— Mas podemos nos esconder até que eles se cansem de nos procurar
— disse Malthus.
— De alguma forma eles sabem nossa localização. Não podemos parar
nunca.
— Como assim? Sabem nossa localização? Não são mágicos! —
questionou Nátila.
— Mas têm uma tecnologia que os mágicos não têm.
— Como sabe disso?
— Nátila, eu sei que eles sabem que você existe. Sei ainda que não
apenas eu, mas todos vocês são inimigos dessas forças ocultas.
Malthus ficou pensativo, parecia saber de algo.
— Ouçam Petrus. Falem menos e caminhem mais.
— Que forças ocultas são essas? Posso eu, um simples palhaço, ser um
inimigo do grandioso rei de Cosmus? — perguntou Piradus.
— Temo, amigo, que meu pai seja apenas uma peça nesse quebra-
cabeça do mal.
E SEGUIRAM adiante. Chegaram a um estreito onde o caminho continuava
através de uma perigosa ponte pênsil de cinquenta metros. Embaixo, havia
um cânion com fortes corredeiras. Só era possível passar uma pessoa por
vez, e o risco de cair no desfiladeiro era enorme, já que a ponte era feita de
cordas e madeira e estava malconservada.
— Como passaremos com os cavalos? — falou Malthus, preocupado.
Petrus tentou puxar seu cavalo, mas logo nos primeiros passos a ponte
começou a se movimentar muito. Ambos quase caíram, então Petrus o
afastou.
— Não é possível prosseguir com os cavalos. — O príncipe ordenou
para seu leão: — Instinctus, olhe bem para o vale. Tente voltar com os
cavalos.
Instinctus rugiu em resposta, lambeu Petrus e começou a tocar os
cavalos para o desfiladeiro.
— Instinctus, não coma nossos cavalinhos — disse Piradus, que em
seguida voltou-se para Petrus e falou com convicção: — Você deu milho
para o bode. Sem você no controle, esses cavalos já eram.
O medo de atravessar a ponte começou a tomar conta de todos.
Passaram um a um. Alguns tropeçavam, a ponte se movimentava, gerando
calafrios. Como a ponte estava malconservada, Santorus, o último a fazer a
travessia, sofreu uma violenta queda, e duas tábuas se soltaram. Se não
fosse uma de suas quatro mãos, não conseguiria ter agarrado a corda que se
soltou. Ficou pendurado. Com dificuldade, Petrus correu para ajudá-lo.
— Mais uma vez, Petrus, obrigado.
Após passarem pela ponte pênsil, Broncus cortou as cordas.
— Pelo menos ficaremos tranquilos de que os inimigos não chegarão
pelas nossas costas.
Um minuto depois, Petrus olhou para a estrada e comentou,
preocupado.
— O problema não é o que está atrás, Broncus, mas o que está à frente.
A estrada desmoronou naquela curva.
— E agora? — perguntou Nátila, desesperada. — Não temos mais a
ponte para voltar.
— Está vendo, brutamontes? Sua estratégia foi furada — provocou
Piradus, como fazia com frequência.
— Não culpe o Broncus, Laurus Piradus. É muito pior o erro da
omissão do que o da ação — declarou Malthus.
— Ahhh… — soltou o palhaço da turma, sem entender. Mas em
seguida soprou aos ouvidos de sua amiga: — Ei, Nátila, qual a diferença
entre omissão e ação?
— Atitudes! É melhor errar fazendo do que se calando.
— Ah… Foi o que imaginei — esquivou-se.
Nátila estava sem fôlego e ansiosa para descer a montanha. E, ao olhar
para baixo, agarrou o braço de Petrus.
— Tenho medo de altura! Não vou conseguir descer.
— Acrofobia é muito comum.
— Acrofobia?
— Sim, de todos os medos ou fobias, esse é o mais primitivo e o mais
comum.
— Como você sabe disso?
— Estudo todos os tipos de medo. A futurofobia, por exemplo.
— Futurofobia? — indagou Malthus, que não sabia nada sobre esses
estudos de Petrus.
— Sim, o medo do futuro. É quase impossível viver neste tempo e não
ser assombrado por esse tipo de medo.
— Você tem razão — disse Santorus.
E assim foram caminhando até a área em que parte da estrada havia
cedido.
— Você é perita em quedas, Nátila. Lembra de quando caiu daquela
árvore? Você tinha sete anos — falou Piradus, recordando a infância deles.
— Bateu num galho e caiu desmaiada.
— Talvez por isso tenha acrofobia hoje. Você registrou de forma
privilegiada a queda da árvore. Isso se chama trauma — afirmou Petrus.
— Por isso somos reféns do passado — comentou Malthus com
inteligência.
— Para deixar de ser refém do passado, Nátila, você vai ter de
reescrever sua história.
E Piradus, para provocar Petrus, disse:
— E sabe como ela acordou do desmaio, Petrus?
— Não tenho ideia.
— Quando eu fiz respiração boca a boca.
Petrus parou a marcha, mas Piradus não parou de provocá-lo.
— Estes lábios aqui fazem qualquer mulher acordar. Bastam dois
segundos.
Todos caíram na gargalhada, inclusive Malthus, embora tentasse
disfarçar.
E, para completar, Piradus fez um bico com os lábios e fechou os
olhos. Nátila pegou rapidamente o rabo de seu cavalo e o colocou nos
lábios de Piradus, que começou a cuspir.
— Relaxa, amiga.
Logo chegaram ao local onde havia ocorrido o desmoronamento. O
caminho foi se estreitando tanto que tinham que passar de costas, a face
voltada para o abismo e as mãos abertas contra a montanha.
— Não consigo! — disse Nátila.
— Não olhe para baixo nem para os lados quando a vida está em risco.
Olhe para o alto e para seu coração! — ordenou Petrus.
— Petrus, estou olhando para minha sepultura. Vou virar purê de
batata. Manhêêê! — afirmou Piradus, aumentando a ansiedade de Nátila.
Broncus e Malthus estavam suando frio. Só Santorus, com suas quatro
mãos, estava mais confortável, agarrando a encosta.
Nátila escorregou, mas felizmente Petrus conseguiu segurá-la. Uma
pedra que estava sob seus pés rolou montanha abaixo. O pânico a paralisou.
Era possível ouvir as batidas de seu coração.
— Tenho pavor de altura, Petrus! — ela afirmou.
— Só os que amam a vida têm medo da morte, querida — disse Petrus,
muitíssimo preocupado.
Percebendo que todos estavam quase sem voz e não conseguiriam
fazer a difícil travessia, Petrus olhou à sua frente e viu algo do outro lado do
cânion, a cerca de 45 metros, que o encantou. Tentou usar outra estratégia
para Nátila e seus amigos superarem o medo: o exemplo.
— Vejam, vejam… — falou Petrus, animado.
— O que é, Petrus? — indagou Nátila, ainda paralisada.
— Uma ninhada de bernaca à nossa frente. Aquele pato de cabeça
branca e nuca preta.
— Falar de pássaro a essa hora? Estamos morrendo. O que ele tem a
ver conosco? — quis saber Piradus, trêmulo.
Petrus, o mais corajoso e inteligente dos seres humanos que habitavam
a Terra naquele tempo, disse aos aflitos:
— Tem muito a ver. Muitos animais enfrentam seus maiores desafios
quando estão no início da vida, quando são completamente frágeis.
Nátila tirou o foco de seu medo e disse:
— Há cinco filhotes.
— Preparem-se, vocês vão ver a maior prova de superação de medo da
natureza. A mãe fez o ninho longe dos predadores terrestres, agora vai
chamar os filhotes para se atirarem desfiladeiro abaixo, para que se nutram
da grama do solo.
— Impossível! — disse Nátila, duvidando de Petrus. — Os filhotes
ainda não têm penas para voar.
— Você está delirando, Petrus! São mais de cem metros de queda livre
— afirmou Piradus olhando para baixo. — Se eles se atirarem, eu me atiro
também.
Nesse momento, o milagre da vida aconteceu. A mãe voou para baixo
e começou a grasnar para que os filhos se atirassem em queda livre. Eles
hesitaram, mas ela insistiu. Instantes depois, o impossível aconteceu: o
primeiro filhote, recém-nascido, abriu as asas e deu um salto mortal em
direção ao vazio. Petrus e seus amigos acompanharam a queda do pequeno
e delicado filhote.
— Como é possível, meu Deus, ter tal confiança em quem lhe deu a
vida! — expressou Nátila, fascinada.
Os olhos do grupo pareciam lentes de uma câmera acompanhando o
mergulho da pequena bernaca. Infelizmente, vinte metros antes de pousar
no solo, o pequeno filhote bateu na encosta, virou pirueta, bateu a cabeça,
as costas e foi batendo desfiladeiro abaixo, até que caiu inerte, sem
movimentos.
Nátila começou a chorar. Em seguida, a segunda ave pulou, depois a
terceira. A quarta escorregou e foi rodopiando no ar, sofreu tantas colisões
que caiu sem vida.
— Veja a quinta, Nátila. A mais insegura deu o salto mais perfeito,
mais equilibrado.
— De que adianta? Todos morrerão esmagados — expressou Santorus.
— Apenas observem — disse Petrus.
E todos capturavam o desespero desses mestres da sobrevivência.
Todos eles iam batendo múltiplas vezes nas rochas.
— Foram triturados como nós seremos — exclamou Piradus.
De repente, a mãe começou a grasnar sem parar, e os filhotes se
levantaram. O impossível aconteceu.
— Estou incrédula — disse Nátila, esquecendo de seu medo. — Três
filhotes sobreviveram.
— Sim. Também os vejo — afirmou Santorus, que tinha uma vista
aguçada. E perguntou curiosíssimo para Petrus:
— Como você sabia que iriam sobreviver? — perguntou Malthus para
seu discípulo. O aluno havia superado o mestre.
Petrus apenas sorriu. Nátila, tomando a frente, disse, para espanto de
todos:
— Se esses frágeis pássaros não tiveram medo de se atirar no vazio,
quem sou eu para deixar o medo me controlar?
— É isso mesmo. “Eu sou autor da minha história, não meus medos!”
Sintam a força da mente — disse Petrus provocando-os.
E assim eles foram caminhando, espremidos contra a encosta, e pouco
a pouco atravessaram o perigosíssimo local. Foi uma festa quando
atravessaram. Sentiram de fato a força de sua mente.
Meia hora depois desceram a montanha, e a paisagem mudou. Atrás
deles estava uma cadeia de montanhas e, à frente, um lindo vale onde havia
muitas cidades. À sombra de uma árvore, Instinctus e os cavalos os
esperavam. Correram felizes da vida ao encontro deles. Rapidamente
montaram e começaram a cavalgar.
Meia hora depois, Santorus falou, emocionado:
— Esperem. Parece que estou reconhecendo este lugar.
— Onde estamos? — perguntou Petrus.
— Não é possível! Parece com a região onde passei minha infância.
— Será que aqui é o Vale dos Mutantes? — ponderou Malthus. — No
palácio de Cosmus, até citar esse vale é proibido.
— Por quê? — perguntou Santorus.
— É melhor você não saber.
— Mais mistérios. Por que te calas, Malthus? — questionou Nátila.
— Para poupá-lo, Nátila — disse Malthus.
— Mas não quero ser poupado — afirmou Santorus. — Melhor a
verdade que dói do que a mentira que alivia. A primeira cura, a segunda
engana.
— Está bem. A verdade é que há um plano para dizimar todos os
mutantes do mundo.
Santorus abaixou a cabeça entristecido. Para consolá-lo, Piradus
comentou:
— Sou fã de todos os mutantes. Até dos bichos esquisitos.
Mal ele acabou de falar isso, uma águia gigantesca com face de lobo
fez um ataque certeiro e o agarrou. Levou-o para seu ninho, que se
localizava num penhasco não muito distante de onde estavam.
— Socorro! Socorro! Matem essa mutante! — gritava sem parar.
— Vamos, Instinctus. Precisamos chegar o mais rápido possível ao
ninho — comentou Petrus, angustiado. Sabia que cada segundo era
fundamental.
A subida ao penhasco era íngreme e perigosa. A escalada tinha de ser
feita com muito cuidado.
Piradus foi atirado no ninho com dois filhotes quase do tamanho dele,
e começou uma luta infernal para se livrar dos bicos afiados e cortantes. Em
seguida, a águia mutante partiu.
— Socorro! Socorro! — continuava a gritar. Seus brados eram ouvidos
pelo grupo de longe. E, quanto mais agitado ficava, mais era atacado.
— Ai, ai! — gemia quando os filhotes acertavam a bicada.
Nátila gritava:
— Vamos, Petrus! Laurus não vai suportar.
De repente, não se ouviu mais a voz de súplica de Laurus Piradus.
Santorus e Broncus colocaram as mãos nos ombros um do outro,
inconsolados.
— Que fim triste — afirmou Santorus.
— Era ele que nos alegrava neste inferno — comentou Broncus.
Quando Petrus chegou ao ninho, estava ofegante. Olhou para dentro,
esperando encontrar o amigo todo despedaçado, mas quase desmaiou. Para
seu espanto, Piradus estava folgadamente acomodado nas plumas dos
filhotes com face de lobo. Quando viram Petrus, os animais ficaram
agitados, mas Piradus agiu rapidamente. Começou a fazer estripulias para
acalmar os bichos. Pulava, dançava, fazia caretas e cócegas nos filhotes. Os
animais se acalmaram.
— Vamos, Petrus, me ajude, já estou sem fôlego.
Petrus entrou na dança. Era meio desajeitado. Subitamente ouviram o
piado uivante da mãe se aproximando. Era espantoso escutá-la. Petrus,
observando o ambiente, sugeriu saírem por detrás do penhasco, lado oposto
àquele por onde havia subido. E assim os dois conseguiram chegar até o
grupo sem que os amigos percebessem.
Broncus soluçava e dizia:
— Piradus era um cara incrível… Sem ele o bando não vai ser o
mesmo…
De repente, ouviram uma voz vinda de trás:
— Alguém chorou minha ausência?
— Piradus! — todos disseram a uma só voz, supercontentes, inclusive
Malthus, que o considerava um perigo para o grupo.
— Mas, filé-mignon, como se safou dessa? — perguntou Broncus.
— Diverti os bandidos, brutamontes. Eis o segredo!
Todos o aplaudiram.
— Gente, vou confessar uma coisa pra vocês. Posso?
— Claro!
— Salvei Petrus dos bichos! Se não fosse meu poder, ele teria sido
comido por aqueles monstrengos. É verdade ou não, chefe?
— É verdade.
— Ele até dançou como uma bailarina.
— Não exagera, Piradus.
E FORAM sorrindo para o Vale dos Mutantes. Quando chegaram lá,
depararam com cenas chocantes: cavalos com duas cabeças, homens com
três pernas, jovens com a cabeça em formato de melancia, mulheres com
tórax grande e pernas curtas. Por onde passavam, os mutantes os olhavam e
fugiam apavorados. Tinham medo de ser atacados pelos “normais”. Petrus,
percebendo que temiam também o leão, pediu:
— Esconda-se, Instinctus!
Em seguida, mais uma vez, Petrus agitou sua emoção com raiva pelo
século que engravidara a guerra nuclear, o século XXI. Subitamente, duas
meninas de dez anos cujas pernas eram emendadas, a direita de uma na
esquerda da outra, que estavam colhendo flores atrás deles, saíram correndo
de medo, mas, infelizmente, caíram.
Compadecida delas, Nátila se aproximou.
— Não nos mate, por favor — disse a primeira, de cabelo mais escuro.
— Espere. Não tenha medo — pediu Petrus.
— Não faremos mal a vocês, eu prometo! — falou Nátila, acariciando
o cabelo das garotas, e completou: — Vocês são lindas.
— De verdade? — indagou, espantada, a segunda, que tinha cabelo
ruivo.
— Nunca fomos elogiadas por um ser humano perfeito — comentou a
primeira.
— De longe somos perfeitos, de perto temos muitos defeitos,
principalmente aqui — disse Nátila, apontando para a própria cabeça.
— Creiam, vocês são maravilhosas — confirmou Petrus.
— Muito mais que maravilhosas. São poderosas, incríveis,
esplendorosas, magníficas e… — comentou Piradus acabando seus
adjetivos. E, voltando-se para Broncus, provocou: — Vamos, brutamontes,
faça esse cérebro de cereja funcionar. Elogie-as.
As meninas deram risadas dele.
— Você é engraçado. É um mutante? — disse a menina de cabelo
escuro.
— Meu cérebro é evoluído como o de um mutante — comentou
Piradus, orgulhoso de si.
— Pensei que você era um burro tentando ser gente — disse a ruiva.
Todos deram risadas da piada da menina.
— Essa menina é um gênio — falou Broncus, batendo nas costas de
Piradus.
***
E TODOS foram sorrindo para a capital dos mutantes: New Age. O nome da
cidade, New Age, refletia uma nova era, a era da colaboração entre os
mutantes. Petrus queria conhecer o rei dos mutantes, afinal de contas, se
houvesse alguma chance de assumir o trono de Cosmus, ele precisaria pedir
perdão a esse povo, incluí-lo, ajudá-lo. Não imaginavam os riscos
altíssimos que estava correndo.
— Por que têm tanto medo de nós? — questionou Nátila, emocionada.
— Quem fere esquece, quem é ferido raramente o faz, pois sua ferida
fica gravada em alto-relevo em seu cérebro — comentou Petrus, querendo
dizer que esse povo havia sido profundamente excluído pelo reino de seu
pai.
— É melhor partirmos — solicitou Malthus.
— Não há como voltar, Malthus. Ao sul, atrás de nós, destruímos a
ponte, a leste e a oeste, talvez o exército de Lexus esteja nos esperando.
Prefiro seguir em frente, os mutantes provavelmente serão mais humanos
que os militares de meu pai — afirmou Petrus, ponderando a situação.
A cada etapa de sua jornada, Petrus desejava conquistar e libertar os
povos massacrados pelo Império de Cosmus.
ENQUANTO ISSO, no imenso laboratório do Conselho do Império, Opus dava
gritos horripilantes diante das escolhas do príncipe:
— Petrus! Petrus! Petrus! Até quando abusará de minha paciência?
Ninguém sabia o motivo de o poderoso Opus ficar tão indignado
quando Petrus ajudava um povo sofrido. Só se sabia que nunca um ser
humano tão pequeno correra riscos tão grandes.
9
O Reino dos Mutantes
Àmedida que entravam na cidade de New Age, a grande cidade dos
mutantes, Petrus e seu grupo ficavam ainda mais perplexos. As
deformações em algumas pessoas eram gravíssimas. Muitas crianças não
conseguiam viver até os sete anos. Milhares de adultos só sobreviviam com
a colaboração dos outros para se locomover, comer, trabalhar. Andavam de
forma diferente, torta, mancando, saltitando. Não poucos andavam em
cadeiras de rodas improvisadas.
— Que surpreendente! Esses mutantes são mais generosos que os
chamados “normais” — expressou Broncus ao ver um mutante ajudando o
outro.
— Veja aquele homem empurrando com tremendo sacrifício duas
cadeiras de rodas com senhoras idosas! — falou Nátila.
— Quando nascem as flores? — perguntou Petrus.
— Na primavera — disse o grupo.
— As flores nascem no inverno, na primavera, desabrocham, tal qual o
amor, que por vezes nasce na dor — afirmou Petrus poeticamente.
Piradus, emocionado, foi ajudar o mutante que conduzia as duas
cadeiras de rodas. Em uma delas havia uma velhinha com a cabeça não
ereta e na outra uma velhinha com três braços, um deles saindo do peito. O
mutante condutor ficou tão desesperado com o gesto de Piradus, achando
que ele iria atacá-los, que empurrou as cadeiras ladeira abaixo.
— Espere! Espere! — gritou Piradus, querendo dar uma de bom
samaritano.
— Piradus, não faça isso! — gritou Malthus.
Mas ele não o ouviu. Continuou a correr. Vendo que ninguém o
acompanhava, olhou para trás e os advertiu aos gritos:
— Saiam da casinha, seus egoístas! Venham ajudar essas velhinhas!
De repente, o pior aconteceu. Piradus tropeçou no homem que
conduzia as cadeiras de rodas. Um rolou por cima do outro, que rolaram por
cima das cadeiras de rodas. Foi um Deus nos acuda. E subitamente
inúmeros mutantes surgiram para socorrer as vítimas. Broncus colocou as
mãos na cabeça, desesperado.
— Esse cara deveria ter sido comido pela águia. Ele ainda vai matar
alguns de nós — falou.
— Estamos fritos — disse Santorus.
— Espero que ninguém tenha se machucado. Vamos ajudá-los —
solicitou Petrus.
Saíram correndo em direção ao tumulto. Chegando ao local, os
mutantes, ao perceber a presença dos “normais”, imediatamente foram
abrindo a roda. Estavam espantados com a ousadia dos intrusos; ninguém
entrava no reino dos mutantes sem permissão. Petrus e Broncus socorreram
os acidentados e colocaram as duas senhoras de volta em suas cadeiras.
Piradus, que dava risada até da sua estupidez, disse para uma das
velhinhas:
— Ai, ai, quebrei minha coluna. Minha doce donzela, não quer me
emprestar esse carrinho, lindinha?
— Seu tarado! — disse a velhinha de três braços. Em seguida, deu-lhe
uma bolacha com uma mão, com a outra, deu-lhe uma bengalada e, com a
terceira, deu-lhe um soco no queixo. Piradus quase desmaiou.
— Calma, calma, calma… Só queria ajudar.
Em seguida as levaram para um hospital. Embora Piradus pedisse
calma, o estrago já estava feito. Os mutantes começaram a proclamar em
peso:
— Morte aos normais! Morte aos normais!
Logo cem guardas com grossas correntes apareceram e acorrentaram
Nátila, depois Malthus, em seguida Broncus. Petrus e Santorus haviam
desaparecido no meio do tumulto. Quando iam acorrentar Piradus, que
estava sentado no chão, o garoto saiu pela tangente. Torceu os lábios e
começou a emitir sons estranhos:
— Chirubilubilu! Sou… um mutante… — falou com a língua presa.
— Ele é um mutante? — perguntou o chefe da polícia, que tinha uma
cabeça enorme, para um policial.
— Não o conheço, senhor — comentou seu imediato de pescoço
comprido.
— Que mutação você tem? — indagou o chefe de polícia.
— Chirubilubilu! Chirubilubilu! Na voz. Chirubilubilu! Ela quase…
não sai… — falou, engasgado.
Alguns mutantes deram risada da maneira como Piradus falou.
— Tem outras mutações?
— Chirubilubilu! No quadril… Chirubilubilu! — E saiu todo
desajeitado, arrastando a perna.
Nátila olhou para ele com ar de desapontamento.
— Malandro — sussurrou Broncus.
Laurus se aproximou de Broncus e depois disse para os policiais:
— Chirubilubilu! Esse… sujeito normal parece violento…
Chirubilubilu!
Eles imediatamente passaram uma corrente em torno do corpo de
Broncus.
— Chirubilubilu? Você ainda me paga, filé-mignon — disse Broncus.
As crianças mutantes gostaram tanto da “mutação na voz” de Piradus
que começaram a imitá-lo:
— Chirubilubilu! Chirubilubilu!
Algumas horas depois, a mutação de Piradus havia virado febre na
cidade, todos o imitavam. Piradus ficou famoso e orgulhoso de sua
esperteza. Tornou-se a sensação da garotada. Enquanto isso, seus amigos
foram para a prisão. Eles esperavam que Petrus os libertasse, o que não
aconteceu. Nátila estava aflita; depois que eles haviam se reencontrado,
Petrus nunca ficara tanto tempo ausente.
NO DIA seguinte, começaria o julgamento em praça pública dos amigos de
Petrus pelo rei dos mutantes, Tarântulus, e seus doze conselheiros. O
julgamento se daria num imenso palco. Na lateral direita havia várias
forcas. Se fossem condenados, seriam mortos ali mesmo. O rei Tarântulus
tinha esse nome por causa dos tentáculos semelhantes a patas de tarântula
que saíam de seu corpo. A pele da sua face era flácida e caída. Era difícil
olhar para ele e não sentir repulsa e medo.
A praça de julgamento estava cheia e alvoroçada.
Piradus andava desajeitado de um lado para o outro, as crianças e os
jovens mutantes o seguiam, gritando “Chirubilubilu!”. Não tinha qualquer
privacidade, como celebridade.
— Chirubilubilu! Calem a boca! — E em seguida disse para si mesmo:
— Como o preço da fama é alto.
De repente, um dos carrascos pegou um imenso martelo e bateu num
grande prato de metal. O barulho era ensurdecedor. Todos ficaram em
silêncio. Nátila, Malthus e Broncus foram trazidos ao palco, acorrentados.
O julgamento público, chamado de “julgamento show”, era um espetáculo
raro entre os mutantes e só ocorria com grandes criminosos. Mais uma vez,
o “gongo” soou, e o orador oficial falou em voz alta:
— Povo mutante, hoje é um dia importante em nossa história. Abram
seus ouvidos que o excelentíssimo Tarântulus, nosso grande e glorioso rei,
vai se pronunciar.
Tarântulus levantou-se de seu trono e, enchendo os pulmões, começou
a falar para a imensa plateia. Estava com uma carta nas mãos.
— Meus irmãos, sabemos que os antepassados da humanidade não
pensaram nas futuras gerações. Eles destruíram os recursos naturais deste
belo planeta azul e depois, como sabemos, fizeram a mais violenta das
guerras. Dispararam de vários continentes, uns contra os outros, as armas
que nunca deveriam ter saído de seus depósitos, as bombas atômicas. Essas
armas não apenas destruíram a Terra, mas também alteraram
dramaticamente nosso código genético.
Em seguida, o rei começou a olhar para as centenas de crianças e
jovens presentes na praça, todos deformados, e soltou lágrimas comoventes.
Com dificuldade de falar por causa da emoção, disse:
— Nós e nossos filhos somos as maiores vítimas desse inferno
atômico. Olhem para seus corpos. — Muitos se olharam e também
derramaram lágrimas. E ele continuou: — Muitos de nós têm dificuldade
para se locomover, falar, lavrar a terra. Alguns não têm posição para dormir.
E outros têm dores terríveis em seus membros e na coluna. As mutações são
terríveis.
Nátila, surpresa com as palavras que ouviu, sussurrou para os amigos:
— Que história deprimente. Seu raciocínio é belíssimo.
— Impressionante — disse Malthus. — Apolo e Superius precisavam
assistir a esse discurso. Os mutantes não são uma raça inferior, como
sempre creram.
O rei Tarântulus continuou:
— Somos mais de noventa milhões de mutantes em todo o mundo,
mas quando os normais nos olham, nos violentam. Os menos agressivos nos
discriminam, viram a face, espantados, como se tivéssemos alguma doença
contagiosa. E os mais agressivos, que são a maioria, nos matam, caçam,
prendem. Porém, apesar de sermos tratados como esgoto social, como lixo
humano pelo Reino de Cosmus, somos um povo valente, lutamos uns pelos
outros, não desistimos de viver. Raros são os suicídios entre nós. Temos
sido uma família, ainda que de mutilados.
Todos aplaudiram com entusiasmo o rei.
Em seguida, o rei olhou para Malthus, Nátila e Broncus e completou
sua fala:
— Não bastasse toda a dor que os normais nos causaram ao longo
dessas décadas, eles agora estão invadindo nossos lares, nossa cidade.
Daqui a pouco desejarão fazer uma limpeza racial, quererão nos eliminar
como traças, como aranhas — disse, olhando para o próprio corpo. —
Temos de resistir. Por isso, devemos dar um julgamento exemplar para
esses invasores.
O povo gritou:
— Condene os invasores!
— Ninguém aqui é condenado sem antes ter um julgamento justo —
bradou o rei.
Vendo que o risco de serem condenados publicamente era grande,
Malthus solicitou:
— Deixe-me falar, rei Tarântulus, por favor.
O rei concordou, e o orador bateu o gongo novamente e disse:
— O homem idoso vai falar pelos réus.
Malthus respirou fundo e comentou:
— Povo mutante, não somos seus agressores. Honramos sua história e
nos compadecemos de sua dor. Viemos em missão de paz.
Mas logo foi cortado com um forte argumento.
— Missão de paz? — falou o rei, levantando de sua cadeira. — Por
que, então, trouxeram o exército de Cosmus? Temos notícia de que ele está
acampado nessas cercanias. Com qual objetivo? Eu já perdi meu filho
assassinado pelos normais. Vocês trouxeram a guerra para esta sociedade
indefesa. — Todos os doze conselheiros menearam a cabeça em
concordância com o rei.
Nátila solicitou a palavra. O orador soou o gongo e comentou:
— A mulher quer falar também. Aqui elas têm voz…
Alguns deram risada. Nátila, sentindo na pele o deboche, partiu para o
ataque:
— Por que estão dando risada? Por acaso as mulheres não têm a
mesma inteligência que os homens? Durante toda a história humana, muito
antes da guerra nuclear, nós mulheres éramos as “mutantes” da
humanidade, tratadas como raça inferior. Fomos queimadas, silenciadas,
apedrejadas.
Todos que estavam na praça se calaram com a ousadia e a inteligência
de Nátila. Algumas mulheres a aplaudiram, o que deixou o rei e os
conselheiros confusos.
— Quanto a nós, também fugimos do exército de Cosmus. Não é
porque temos um corpo diferente dos seus, que não temos mutação
genética, que somos seus assassinos.
— Reconheço que suas palavras fazem sentido. Você merece ser livre
apenas por estas palavras — afirmou o rei.
Os conselheiros balançaram a cabeça, sinal de que concordavam com o
rei. Mas eis que o homem de cabeça grande que havia sido atropelado por
Piradus, e que estava em frente ao palco, se levantou e pediu a palavra. Nos
julgamentos dos mutantes, as pessoas podiam funcionar não apenas como
testemunhas, mas também como advogados de defesa e de acusação. O
gongo soou, e concederam ao homem o direito de falar. Apontando para
Nátila e seus amigos, acusou a todos com ferocidade:
— Povo excluído, não confie nesses normais! Eles usam de palavras
dóceis para disfarçar sua violência. Um deles, inclusive, correu atrás de
mim, querendo me matar, bem como as duas velhinhas cadeirantes que eu
levava para tomar sol.
Os mutantes começaram a mudar de lado novamente. Alguns
colocaram as mãos no rosto, indignados. E o homem de cabeça grande
continuou sua acusação.
— E o agressor foi cruel. Vendo que minha cabeça era grande, e
querendo que eu quebrasse meu pescoço, aplicou um golpe fatal. Fezme
cair e depois derrubou impiedosamente as duas mulheres indefesas. Vejam,
uma quebrou a perna e a outra está com um corte na cabeça.
O povo mutante se alvoroçou novamente contra os invasores.
— Chirubilubilu. Enrolei a vida dos meus amigos — disse Piradus
para si no meio da multidão.
— Chirubilubilu. Enrolou mesmo — disseram as crianças sem
entender nada.
— E tem mais, caros mutantes! O agressor era tão esperto que, ao ver
seus amigos serem presos, fingiu ser um mutante. Mas, como fui levado às
pressas ao hospital, não deu tempo de denunciá-lo.
Piradus procurou esconder o rosto. Ao ouvir essas palavras, o chefe do
conselho e irmão do rei, Georges, que era corcunda e emocionalmente
inflexível, se levantou irado e bradou para o rei e para a população:
— Cuidado, meu povo! Tentativa de assassinato de mulheres
cadeirantes é um crime gravíssimo e imperdoável. E fingir-se de mutante
para escapar do seu crime é uma violência que jamais vimos. Precisamos
caçar esse terrorista dia e noite. E quanto a esses normais… — E apontou
para os réus: — A sentença deve ser capital.
— Chirubilubilu. Matei meus amigos — falou Piradus, a testa suando.
— Chirubilubilu. Matou mesmo — repetiram as crianças.
O rei Tarântulus, ao ouvir essas palavras, se levantou novamente e
colocou em votação a sentença de Malthus, Nátila e Broncus.
— Quem quer que os soltemos levante as mãos.
Piradus falou para as crianças:
— Chirubilubilu. Levantem as mãos!
Só umas dez crianças de menos de cinco anos, que não sabiam o que
estava acontecendo, levantaram as mãos. Piradus levantou a mão
parcialmente, de modo que ninguém o reconhecesse.
— Só algumas crianças no meio do povo não querem a condenação.
Palmas para as inocentes crianças — disse o rei. E todos as aplaudiram. —
Mas eu voto por libertar a mulher. De fato, as mulheres sempre foram
excluídas na humanidade. Foram mutantes emocionais.
A maioria das mulheres votou com o rei, mas elas eram minoria, de
modo que foram votos vencidos. Nesse momento, o chefe do conselho,
vendo que o rei estava amolecendo seu coração, pediu a palavra e, andando
todo curvado, foi para o centro do palco e declarou:
— Tenho um relatório que mostra que nos últimos cinco anos cem mil
mutantes foram mortos pelos normais. Isso apenas o que temos
contabilizado. Os normais nos odeiam, odeiam, odeiam! — bradou em voz
alta.
O povo ficou desesperado com a estatística. Em seguida, o rei
comentou:
— Eu também perdi meu único filho. Foi assassinado pelos normais.
— Enxugando os olhos, disse: — Mas nunca condene um ser humano pelo
erro dos outros. Vamos decidir então sobre o tipo de condenação: se prisão
ou morte por enforcamento. Se decidirmos pela prisão, votaremos depois o
tempo de reclusão. Quem decide pela prisão?
Influenciados pelo relatório, uns cem levantaram as mãos. Nátila
começou a limpar o suor do rosto enquanto procurava por Petrus no meio
da multidão, sem o encontrar.
— E para confirmar: quem decide pela morte por enforcamento? —
perguntou Tarântulus.
Muitos levantaram as mãos, milhares de pessoas. O rei olhou para
Nátila, fazendo um sinal de “sinto muito”, queria libertá-la.
— Portanto, a sentença está dada.
Os cadafalsos, o lugar onde seriam enforcados, já estavam preparados.
Os carrascos pegaram Malthus, Nátila e Broncus e, empurrando-os, os
levaram a seu destino final. Colocaram a corda no pescoço deles.
— Cadê Petrus? — indagou Nátila, inconformada.
— Nos abandonou. Só pode — afirmou Broncus.
— Sinto muito, Nátila — expressou o idoso Malthus. — Eu vivi
muitos anos, me conformo em me despedir da vida, mas você é tão
jovem…
O vento soprou sobre o rosto dela, fazendo seu lindo cabelo comprido
revoar diante de sua face singela e meiga. Nátila era tão jovem, mas já
passara por inúmeros sofrimentos. Sua mãe não podia acompanhá-la em sua
jornada perigosíssima ao lado de Petrus. Nátila a deixara num lugar seguro.
Seu pai, seu melhor amigo, tivera depressão e não pôde trabalhar no campo
e, desse modo, não conseguiu pagar os pesados impostos ao Reino de
Cosmus. Fora condenado à Câmara dos Loucos como um possuído. Agora,
depois de tantos perigos, a amável e inteligente jovem se despediria da vida
de modo trágico. De fato, o mundo pós-aquecimento global era trágico.
10
O encontro do rei dos mutantes com seu filho
Nátila, Malthus e Broncus olhavam para o horizonte esperando a ordem do
carrasco. Então o gongo soou para que o enforcamento acontecesse. De
repente, quando suas vidas estavam por um fio, alguém gritou no meio da
praça a plenos pulmões:
— Esperem! Esperem! Não os enforquem!
Silêncio geral na plateia. Era Piradus caminhando rapidamente até o
palco. Algumas crianças o seguiam, repetindo seu engraçado bordão
“Chirubilubilu”. Os pais olhavam perplexos para o palhaço que divertia
seus filhos, pois perceberam que havia algo errado. Piradus não andava
mais torto, mas ereto e apressado, e também não falava mais com
dificuldade. Quando perceberam que ele era um impostor, começaram a ter
ataques de raiva.
— Ele enganou nossos filhos — diziam alguns.
— Ele é um fingido, um perigo para as crianças — declaravam outros.
Foi um alvoroço geral. Os guardas o prenderam tão logo se aproximou
do palco. Acorrentado, o trouxeram ao rei.
— Quem é você? Que atrevimento é esse? — perguntou o rei.
Não demorou para que o homem de cabeça grande que conduzia as
idosas o identificasse e o acusasse sem meias palavras.
— É ele, ele é o falso mutante! Ele é o homem que quis me matar e
assassinar as velhinhas cadeirantes! — gritou o acusador.
Piradus, aparentemente destemido, levantou as duas mãos para o alto
e, desacatando a ordem do rei, pois não havia pedido licença para falar,
soltou estas palavras em voz alta:
— Meu querido povo belo e multiforme!
— Cale-se! — ordenou o rei.
— Sai pra lá, bajulador! — gritavam as pessoas.
— Ele é muito engraçado — disse um garoto de dez anos.
Vendo-o rodeado de crianças, o rei deu-lhe uma chance para se
explicar.
— Ninguém pode ser sentenciado sem defesa. Deixe-o falar!
— Honrado, justo, incorruptível, magnífico, esplendoroso, super-herói,
homem aranha…
— Rei Tarântulus! — disse o rei, sorrindo do modo desajeitado de
falar de Piradus, e fez sinal para que ele continuasse sua explicação.
— Eu não quis assassinar o condutor das velhinhas. Como sou um
homem bondoso, incansável em ajudar os desfavorecidos, pensei comigo:
“Preciso fazer minha boa ação do dia”; e vendo o motorista que me acusa
dirigindo desajeitado as cadeiras de rodas, derrapando nas curvas, fui dar
uma aula de direção para o infeliz.
Alguns deram risadas de Piradus, principalmente as crianças e os
jovens presentes na praça. Nátila olhou bem para ele, Piradus piscou para
ela e continuou:
— Tomei a frente e corri até o condutor. Mas o infeliz continuava
fazendo barbeiragens. Brrrrrrrr! — relatou Piradus, imitando o som das
cadeiras de rodas derrapando e fazendo gestos com as mãos como se fosse
uma direção perigosa. — Pensei comigo: “Ou eu pego esse cara ou ele vai
matar as velhotas”. E corri atrás do infeliz. Mas não consegui evitar o
acidente. Ele fez uma curva fechada, e pimba…
Muitos dos mutantes adultos começaram também a achar graça de
Piradus.
— Mentira! Mentira! — disse o condutor.
— Nenhum motorista barbeiro confessa seus crimes! Perguntem às
crianças se, “Chirubilubilu”, falo a verdade — pediu Piradus.
— Chirubilubilu fala a verdade, rei — as crianças concordaram.
Piradus aproveitou e disse em alta voz:
— Povo mutante, as crianças são puras, não mentem.
— Mas podem ser manipuladas, seu encantador de crianças! — disse
Georges, o chefe do conselho, irado.
— Gostei! Sou um encantador de crianças.
Mas, para piorar as coisas, eis que uma das velhinhas que estavam nas
cadeiras de rodas, a que tinha três braços, também o acusou:
— As velhinhas também não mentem! — disse ela. — Eu estava lá.
Fui uma das vítimas desse falso mutante.
— Chirubilubilu. Tô enrolado — falou Piradus, brincando com a
própria desgraça. Depois elevou o tom de voz: — Foi acidente de trabalho,
linda senhora!
— Acidente de trabalho? Você é um tarado. Queria me seduzir e
roubar minha cadeira de rodas, seu descarado! — disse a senhora com
convicção.
Piradus passou as mãos pelo pescoço; também seria enforcado. Foi
levado junto com seus amigos. Ao verem a corda ser colocada no pescoço
de Piradus, alguns jovens e crianças começaram a chorar, com dó do rapaz.
De repente, uma das mães interveio:
— Ele é maluco, rei Tarântulus, mas nunca ninguém divertiu tanto
nossas crianças.
O rei ficou condoído, cerrou os lábios e franziu a testa.
— Precisamos repensar.
Vendo que o coração do rei novamente se amoleceu, o líder do
conselho, que era radical e traumatizado por andar como um corcunda, foi
ferino.
— Cuidado, rei, com a compaixão. Lembre-se que seu filho foi
sequestrado pelos normais. Lembre-se que milhares de mutantes são mortos
impiedosamente todos os anos e que os mais fortes são escravizados. —
Depois, voltando-se para a imensa plateia da praça, disse: — Não sejam
generosos com os normais. Lembrem-se do plano X.
Quando falou sobre o plano X, muitos colocaram as mãos no rosto.
Era um plano de extermínio de todos os mutantes.
Novamente as pessoas da praça mudaram de opinião e começaram a
gritar:
— Morte aos normais!
O chefe do conselho foi rápido.
— A sentença já foi dada. Tirem as crianças dessa praça. Não podemos
tolerar esses criminosos.
E assim fizeram. E continuaram a aplicação da sentença.
— Adeus, amigos. Nos vemos na outra vida — disse Nátila.
— Broncus, desculpe por todas as vezes em que o perturbei — pediu
Piradus.
— Está perdoado, amigo…
Malthus olhava para o alto, em meditação.
O gongo soou novamente, e, quando tudo parecia perdido, no último
segundo um leão rugiu poderosamente, assustando a todos os presentes na
praça. Nunca viram uma fera tão gigantesca.
Nátila jamais imaginou que o rugido de um leão a fizesse soltar um
suspiro de alívio.
Petrus, usando uma máscara, montava Instinctus, que seguia na
direção do rei. Santorus caminhava a seu lado, como se fosse seu escudeiro.
A grande multidão foi abrindo espaço para eles passarem.
Ao verem Santorus com um “normal”, muitos gritaram:
— Traidor! Traidor!
Mas Santorus não baixou sua cabeça. Quando os dois jovens chegaram
próximo ao palco, muitos soldados portando espadas se aproximaram de
Petrus.
— Quem é você? — perguntou Tarântulus, ao mesmo tempo irritado e
atemorizado.
— Sou Petrus Logus.
Quando Petrus falou seu nome, a plateia fez silêncio absoluto. Os doze
conselheiros se levantaram.
— Não é possível — falou o rei. E acrescentou: — O filho de Apolo, o
rei que governa o mundo e deseja eliminar os mutantes da Terra, não pisaria
neste solo. Tire sua máscara!
Santorus lacrimejou seus olhos ao ver Tarântulus, mas não sabia se por
medo ou por alegria de ter voltado ao seu lar. Foi então que Petrus tirou sua
máscara, revelando a cicatriz em seu rosto. Assombrado, o rei Tarântulus
comentou:
— Não é possível! — expressou admirado. — Todos sabemos dessa
cicatriz, mas corre em suas veias o sangue do rei que nos odeia.
Petrus e seus amigos não entenderam o motivo de o líder dos mutantes
falar sobre sua cicatriz, mas a resposta veio a seguir. Tarântulus continuou:
— Todos comemoramos quando o filho de Apolo também foi
deformado, humilhado e se tornou objeto de deboche. Sim, fomos egoístas
por pensar assim, mas torcíamos para que, com a sua cicatriz, seu pai se
tornasse mais tolerante conosco. Mas o rei de Cosmus tem um coração de
pedra. Nossas águas têm sido envenenadas, e nossos campos, destruídos.
— Não nasci um mutante. Mas meu pai, Terrívius e Superius
marcaram meu rosto e minha mente com chamas flamejantes.
— O que o filho do rei faz aqui? Veio nos matar?
— Os seres humanos sempre discriminaram minorias ao longo da
História. Agora chegou a vez de discriminarem os mutantes. Não vim matá-
los. Vim pedir perdão.
— O quê? — perguntou muito admirado o rei dos mutantes. — Um
filho do poderoso rei Apolo jamais pediria perdão.
— Concordo! — expressou Georges, assombrado.
— O filho do rei não pediria perdão, mas o ser humano que está por
trás dele, sim. — Petrus voltou-se para a multidão e bradou em altíssima
voz: — Eu, Petrus Logus Vikk de Luxemburgo, filho do rei Apolo, estou
aqui para declarar solenemente que todos os mutantes são cem por cento
humanos!
Ao ouvir as palavras de Petrus, alguns mutantes, que sempre tiveram
autoestima baixíssima e foram marcadamente desprezados, começaram a
chorar e proclamar:
— Sou cem por cento humano!
A população da praça foi contagiada. Todos proclamavam em coro:
— Sou cem por cento humano.
O rei Tarântulus e os conselheiros, à exceção de Georges, também se
juntaram ao coro. Proclamavam “sou cem por cento humano” e choravam,
ao mesmo tempo. Alguns enxugavam as lágrimas, se abraçavam e
comentavam com os outros:
— O filho de Apolo disse que somos seres humanos integrais.
Nátila, muito sensível, apesar de estar sob risco de morte, também
verteu lágrimas. O rei se aproximou dela, que lhe disse:
— A dor física é menor que a do desprezo; a primeira dilacera o corpo,
a segunda asfixia a emoção. Eu vivi esse drama, rei Tarântulus.
O rei meneou a cabeça admirado e tirou, ele mesmo, a corda do
pescoço dela.
— Desculpe-me. A dor emocional nos fez um povo assombrado.
Petrus ficou comovido ao ver a cena e, alegre, compartilhou um
pensamento histórico:
— Felizes os que promovem a paz, pois serão chamados filhos da
humanidade.
Georges, andando com dificuldade, foi até o meio do palco, soou ele
mesmo o gongo e, depois do silêncio geral, proclamou:
— Não há acordo com o governo do Cosmus. Seu exército está
próximo. Perderemos nossas terras e nossa vida. — E depois, soando o
gongo novamente, prosseguiu: — O rei Tarântulus, meu irmão, me tirou o
trono que era meu por direito, agora vai permitir o fim de todos os
mutantes… Não se iludam.
O leão rugiu poderosamente perto de Tarântulus, que deu um pulo de
medo, como se fosse uma aranha tarântula. O clima mudou, e Petrus
interveio:
— Violência gera violência. Precisamos pensar em outras estratégias.
— Não há estratégias que nos livrem do exército de Cosmus! —
afirmou Georges.
Depois que o clima ficou tenso, Santorus pediu a palavra.
— Gostaria de falar também, meu rei.
— Não conversem com esse traidor — sentenciou Georges. — Virem
as costas!
Todos viraram. Dar as costas era um comportamento que os mutantes
adotavam quando encontravam um traidor. Tarântulus hesitou, mas também
deu as costas para o jovem mutante.
— Daria as costas para seu… filho? — disse Santorus, soltando
lágrimas que serpentearam por seu rosto como um rio num desfiladeiro.
Tarântulus imediatamente se virou.
— Santorus…? Não é possível.
Nesse instante, o rei e seu filho viajaram no tempo e se lembraram dos
dias mais tristes de sua vida. Tarântulus e Santorus, por terem múltiplos
braços, subiam em árvores com uma incrível destreza. Pulavam de galho
em galho como se fossem aranhas superpoderosas. Eram felizes, risonhos,
brincalhões. O rei recordou o filho dizendo:
— Te amo, papai.
— Eu não te amo, filho.
— Não?
— Eu te superamo — dizia o pai, fazendo cócegas no garoto com suas
múltiplas mãos. O menino caía no chão dando risadas. Santorus tinha oito
anos nessa época, mas tinha grande habilidade intelectual e física.
Certa vez, quando estavam passeando entre as cachoeiras, havia cerca
de quinze anos, algo trágico aconteceu. O menino foi pego numa armadilha
de caçadores de mutantes… Alguns dos mutantes pegos tornavam-se
escravos dos nobres, outros eram mortos e, outros ainda, serviam de cobaia
para as experiências do médico mais terrível do Império de Cosmus:
Terrívius. A perda de Santorus nunca saíra da cabeça do rei Tarântulus.
— Papai, papai, me salve! — gritava o menino, desesperado.
Os homens que o prenderam, que estavam com o rosto coberto,
diziam:
— Cale-se, seu animal. Você será uma bela cobaia.
Tarântulus era um rei recém-empossado. Com uma fúria
impressionante, correu para resgatar o filho.
— Meu filho, eu vou te libertar. — E pulava de galho em galho para
tentar resgatar o garoto. Lutou com três sequestradores ao mesmo tempo e
venceu, mas, quando estava prestes a alcançar seu filho, foi pego em outra
armadilha.
— Papai, papai, não me deixe — dizia o menino aos prantos.
— Meu filho, onde você estiver, eu o encontrarei! — Tarântulus
enviou centenas de pessoas procurar seu filho, mas nunca mais o encontrou.
Agora, era quase inacreditável que seu pequeno filho, depois de mais de
quinze anos, estivesse ali. Georges, o irmão do rei, esfregava as mãos uma
na outra com raiva, mas ninguém sabia o motivo.
— Você, você… é meu menino, Santorus — disse o rei.
— Seu menino cresceu, papai.
— Pensei que você estivesse morto.
Foi então que Santorus contou sua triste história:
— Quando me raptaram, fui levado até o médico do rei, que me
transformou em cobaia de seus experimentos… Ele fazia experiências com
mutantes e depois os sacrificava. Eu era a única criança. Fiquei preso por
dois anos numa gaiola.
— Não acredite nesse impostor, meu rei. Veja, só tem quatro braços, e
não seis como você — observou Georges.
De repente, Santorus revelou algo gravíssimo. Olhando bem nos olhos
de Georges, disse:
— Fui cobaia de Terrívius, que me arrancou os dois braços sem
anestesia — contou, limpando as lágrimas com as quatro mãos. Em
seguida, completou: — Mutantes também traem mutantes. Quando você,
meu pai, foi preso numa armadilha, fui levado até o médico do rei. De
repente, um dos meus raptores descobriu seu rosto para receber o
pagamento. Era seu irmão Georges, meu tio.
Tarântulus ficou assombrado, possuído de raiva.
— Você é um impostor! Me garantiram que o verdadeiro Santorus
seria morto — falou Georges, se entregando.
Imediatamente o prenderam e o levaram. Petrus não sabia dessa parte
da história do amigo. Santorus tinha medo e vergonha de contar que fora
preso no laboratório de Cosmus.
— Mamãe morreu quando eu tinha cinco anos, e te perdi quando tinha
oito. Se não fossem meus amigos, eu seria o homem mais solitário do
mundo.
— Mas por que você não voltou antes, meu filho?
— Tive medo do caminho, fui perseguido, maltratado, ferido.
Atiravam-me pedras em todo lugar. Mas o pior de tudo foi que um dia,
quando estava em seus braços, disse a você que tinha vergonha de me
parecer com uma aranha. Depois que Terrívius amputou dois dos meus
braços, pensei que você pudesse me rejeitar. Senti vergonha de mim
mesmo.
— Jamais te excluiria, meu filho. Quando era adolescente, eu também
rejeitava meu corpo, dia e noite — falou, com lágrimas nos olhos. —
Lembra-se da estrela que lhe dei?
— Nunca me esqueci dela.
— Eu era um rei jovem e muito ocupado… Mas lhe dei aquela estrela
como um símbolo… de que você nunca estaria no rodapé da minha história,
mas no centro dela… Você partiu, mas pensei em você todos os dias. Você é
inesquecível, meu filho…
— Você é insubstituível, meu pai…
Tarântulus e Santorus se abraçaram prolongadamente. E, depois desse
momento emocionante, o rei dos mutantes foi ao centro do palco e gritou
altissonante:
— Meu filho voltou! Santorus, meu garoto, voltou! A razão da minha
vida, minha esperança, está de volta!
Todos se alegraram solenemente com o reencontro do justo e
inteligente rei com seu filho. Nátila ficou tão comovida que limpou o rosto
e cantou a “Canção da revolução do amor”:
Somos revolucionários
Sonhamos com um mundo livre
Onde os seres humanos são irmãos
E nossas dores são curadas
E nossas lágrimas, estancadas
E nos fartamos do pão de trigo e da alegria
Ninguém vai nos calar
Vamos dar o melhor de nós
Para a humanidade melhorar
Todos os mutantes cantaram com ela, gerando um mar de lágrimas e
de prazer. Foi uma festa única… Em seguida, todos dançavam e cantavam.
Nátila ensinou o desajeitado Petrus a dançar. Pôs a mão esquerda de Petrus
nas costas dela e uniu a direita com a dele. Tropeçando em suas próprias
pernas e nos mutantes, ele aprendeu razoavelmente alguns passos. Ele caiu
sobre ela e, fitando-a, lhe disse:
— Obrigada por você existir. Eu te amo.
Instinctus estava calmo como uma lagoa. Sentado em suas próprias
patas, observava feliz o comportamento humano. Piradus ouviu a
declaração de amor que Petrus fez para Nátila e, de tão emocionado que
ficou, sentiu que deveria tirar alguém para dançar, mas todos estavam
ocupados. Impetuoso, viu a velhinha que lhe deu algumas bofetadas e,
ousado, resolveu fazer as pazes com ela, tirando-a para dançar. Ela estava
com a perna engessada. Depois de alguns passos, o desajeitado dançarino
tropeçou e caiu por cima dela. Pelos traços que tinha, ela devia ter sido uma
mulher muito bonita na juventude. Piradus lhe disse:
— Se você fosse cinquenta anos mais nova, lhe mandaria para o céu
com um beijo. — E fez um bico com os lábios.
— Seu tarado! — disse ela, novamente dando-lhe uma bofetada. E
depois ela sorriu, entrando na brincadeira. Por incrível que pareça, tinha
grande habilidade para dançar. Pegou o palhaço da turma e, mesmo
engessada, acertou seus passos.
A festa parecia única, inesquecível, saturada de sorrisos. Mas,
infelizmente, não muito distante dali, havia choro, muito choro, mas não de
alegria…
11
A destruição da Universidade da Paz
Enquanto os mutantes e os amigos de Petrus festejavam, um bilhete chegou
às mãos de Tarântulus e imediatamente estragou a festa. Ao começar a lê-lo,
o rosto do rei ficou desfigurado. Petrus e Nátila olharam para ele e
perceberam que havia algo errado. Quando terminou a leitura, Tarântulus
deu um grito tão forte que todo mundo ficou horrorizado:
— Nãããooo!
O gongo soou três vezes. O rei dos mutantes caiu de joelhos, em
prantos. Colocou as mãos no rosto em sinal de completo desespero. Em
seguida, se levantou e bradou a todos:
— O cruel exército de Cosmus está atacando Santa Felicidade.
Todos os mutantes entraram em pânico. Petrus e Nátila foram
rapidamente até o rei. Instinctus estava a seu lado.
— O que é Santa Felicidade, rei Tarântulus? — indagou o príncipe.
Com a voz embargada pela dor que sentia, o rei explicou:
— É o nosso lugar sagrado, a Universidade da Paz, a escola onde os
mutantes fazem sua formação para não se autorrejeitarem, para amar a vida
apesar de suas mutações… É a escola em que aprendem a colaborar uns
com os outros.
Petrus bateu com seu punho direito na mão esquerda, e Instinctus se
agitou:
— É um lugar muito indefeso?
— Completamente — disse o rei, limpando seu rosto. — É um lugar
onde armas são proibidas. Só as ideias são permitidas.
— E onde fica?
— Atrás daquela cadeia de montanhas. — O rei apontou. Tenso, o
príncipe Petrus montou Instinctus e bateu em retirada até o local. Nátila
gritou:
— Petrus, cuidado!
Mas o rapaz não ouviu. Tarântulus pediu que um corpo de policiais os
escoltasse, mas era difícil acompanhar a velocidade da fera.
DURANTE O trajeto, Petrus passou pelo local onde estava alojada grande
parte do exército de Cosmus. Era uma lagoa azul imensa. Pelo menos,
pensou, não estava todo o exército atacando a Universidade da Paz.
E mais que depressa continuou sua jornada até Santa Felicidade. Ao se
aproximar do lugar, Petrus ficou impressionado. Santa Felicidade era um
imenso palácio de cinquenta mil metros quadrados com várias torres de
quinze metros de altura. Era uma construção que havia sobrevivido à guerra
nuclear e pertencera a um dos homens mais ricos do mundo. Um caminho
de pedras lapidadas com flores nas laterais conduzia o viajante até o imenso
portão central de dez metros de altura.
Duzentos metros antes de chegar ao edifício, a imagem era triste de
ver. Petrus viu vários mutantes feridos arrastando os pés e sangrando,
tentando fugir.
— Fuja! Fuja! — disse um mutante, alertando-o.
Alguns cadáveres jaziam pelo caminho. O portão do palácio estava
fechado. Usando sua força física e as duas facas que transportava, o
príncipe escalou a muralha. Instinctus ficou do lado de fora. Ao subir no
telhado de um dos prédios, Petrus avistou o imenso pátio central. Nele,
havia uma fogueira com móveis e madeira queimando. Havia cerca de
cinquenta professores de Santa Felicidade amarrados uns aos outros. Seriam
atirados na fogueira pelo exército de Cosmus. Três mutantes estavam
esticados no chão, feridos.
Terrívius e o general Brutus estavam lá para dar a sentença final. Mais
de cem soldados os acompanhavam. Terrívius tomou a dianteira e, aos
brados, disse:
— Finalmente encontramos Santa Felicidade, o ninho de cobra dos
mutantes. — E ironizando os professores perguntou: — São vocês os
mestres da paz? O que ensinam?
Mas os professores ficaram calados.
— Ensinam essa raça inferior a ter autoestima? É isso? Ensinam a se
aceitarem, a não terem depressão? Vocês não são humanos e nunca o serão
— falou com uma virulência hitleriana. Os soldados gargalharam como
hienas. Não pensavam na dor que aqueles frágeis seres humanos sentiam.
Nesse momento, um professor que tinha a pele do rosto toda rugosa,
parecendo escama de peixe, e peito grande, bem maior que o quadril, não
suportou e perguntou:
— E por acaso, com toda essa agressão, vocês estão sendo seres
humanos?
Imediatamente um soldado chicoteou o mutante, cortando-o:
— Como ousa falar assim com o melhor médico da Terra? — indagou
Terrívius.
— Ajoelhe-se! — disse o general Brutus, colocando a espada no
pescoço do professor. O homem se ajoelhou, para viver mais alguns
segundos.
Todos os soldados sorriam ao ver a dor do mutante; haviam se tornado
sociopatas. Feriam e não sentiam mais a dor dos outros.
— Só um professor ajoelhado, general? Não, não — disse o médico-
monstro. — Todos têm de se curvar diante de nós.
E começaram a chicoteá-los. De repente, surgiu um mutante arrastando
o corpo e soltando gemidos. Estava com o cabelo longo sobre o rosto e um
lenço manchado de sangue sobre a cabeça.
— Ei, general, olhe: outro mutante!
— Esse miserável está quase morto. Traga-o aqui também. — disse
Brutus.
O homem foi arrastado e empurrado para o meio dos professores.
— Ajoelhem-se, seus animais, ou todos morrerão imediatamente —
sentenciou Terrívius. Ao som dos chicotes e da dor, todos começaram a se
ajoelhar.
— Vejam, obedecem como cães — disse o general, colocando mais
lenha na fogueira do deboche, o que gerou novas gargalhadas dos soldados.
A ditadura de Cosmus havia transformado esses homens. Eles tinham
perdido toda a empatia, não sabiam se colocar no lugar dos outros. Fizeram
um circo e colocaram os professores tão generosos no centro do picadeiro.
— Vamos acabar com essas aberrações humanas! — sentenciou o
general, como se os diferentes não tivessem sentimentos, sonhos e
pensamentos.
— Espere! Um dos mutantes não se ajoelhou — afirmou Terrívius.
Era justamente o mutante que arrastara o corpo e chegara por último.
— Matem esse desgraçado! — sentenciou o general.
Nesse exato momento, ouviram o rugido de um poderoso leão fora do
palácio. Alguns soldados prenderam a respiração de medo. Não haviam
visto nenhum leão nessas cercanias. Terrívius teve um tremor no corpo. Os
soldados ficaram inquietos. Caçavam Petrus, mas as histórias que ouviam
sobre ele os deixavam em pânico. Alguns tinham pesadelos com ele,
pensavam que era um mensageiro de outro mundo.
— Fiquem tranquilos, os portões estão fechados — disse o general,
mas em seguida recuperou sua segurança: — Além disso, nenhum gato vai
nos intimidar.
— Açoitem e matem o insolente! — disse Terrívius, apontando
novamente para o mutante que não havia se ajoelhado.
Então dois soldados que portavam chicotes tentaram estalá-los nas
costas do mutante. Quando o fizeram, o mutante, que estava de costas e de
cabeça baixa, pegou os chicotes no ar, cada um com uma mão, e, para
espanto de todos, arrastou os soldados e depois os soltou, fazendo-os cair.
De repente, ficou com o corpo ereto e, com uma voz desafiadora e grave,
disse:
— General Brutus, seu covarde! Terrívius, seu monstro!
A voz se espalhou por todo o imenso pátio. Os soldados ficaram
perplexos. E o mutante nesse momento se virou.
— Petrus Logus! — expressaram Terrívius e Brutus, trêmulos.
Os soldados ficaram atônitos e se prepararam para o ataque. Petrus
completou sua crítica a dois dos homens mais brutais do planeta naquela
época.
— Monstros! Suas atrocidades envergonham a humanidade. Quem
lhes deu o direito de humilhar, ferir e matar seres humanos?
Os mutantes olharam para trás, surpresos e emocionados. Um homem
desafiando mais de cem soldados fortíssimos por causa deles parecia um
suicídio.
— É o filho rebelde do rei Apolo… Matem-no e terão terras e gado!
— ordenou o general.
Os soldados partiram para cima de Petrus com o dobro da vontade. O
jovem príncipe, impedido de matar devido a seu código de honra, derrotava
um por um com notável destreza. Sua lâmina, entretanto, procurava ferir
partes não vitais. Jamais houve um lutador com sua agilidade e rapidez.
Tinha a leveza e a habilidade de dez samurais. Parecia investido de um
poder sobre-humano. Ele abateu os primeiros vinte com facilidade. Depois
pulava nas pilastras e batia os pés nas paredes do pátio, retomava a posição
e abatia mais soldados.
O ser humano acha-se um herói quando se sente protegido, mas,
quando se quebra sua segurança, o medo o envolve e ele se torna um frágil
menino. Foi o que aconteceu com os soldados. Depois que Petrus abateu
dois terços dos soldados, os demais fugiram como coelhos diante de um
predador invencível.
O médico Terrívius e o general Brutus ficavam pasmados com a força
do príncipe Petrus.
— Esse sujeito é um lutador ou um deus? — indagou o general.
Vendo que poderiam ser atingidos pela fúria de Petrus, pegaram seus
cavalos e pediram para os soldados que estavam guardando os portões que
os abrissem. Todavia, quando os portões foram abertos, alguém que eles
não imaginavam os esperava. Era Instinctus.
O enorme leão levantou as patas, os cavalos dos dois se inclinaram e
ambos os soldados caíram ao solo. Se os atacasse, Instinctus poderia
arrancar-lhes o pescoço, mas preferiu esperar seu amo. Como um animal
que protege sua caça, aguardou pacientemente pela chegada de Petrus. A
expressão do leão fazia tremer o cérebro. O general urinou nas calças e
Terrívius teve diarreia.
PETRUS LIBERTOU OS mutantes. Todos eles ficaram frente a frente com a
lenda. Todos se curvaram diante de Petrus Logus. E, após esse gesto
humilde, o príncipe tomou a palavra e lhes disse:
— Eu não me curvaria diante de um rei, nem dos nobres que dominam
as terras, nem dos generais que dominam os exércitos, mas me curvo
humildemente diante de todos os professores. Sem vocês, nossos céus não
teriam estrelas…
E se curvou perante os professores da Universidade da Paz. Petrus não
fez esse gesto sem razão. Como era inteligentíssimo e culto, sabia que um
dos maiores erros da humanidade, e que levara à guerra das guerras, fora
que os professores tinham sido desprezados, desvalorizados, trocados por
computadores e robôs. Os alunos do século XXI aprendiam a matéria, mas
pouco desenvolviam os valores, a sensibilidade, a capacidade de pensar
antes de reagir e de se colocar no lugar do outro. Tornavam-se líderes frios,
insensíveis, egocêntricos. Eram mais amantes das armas do que do diálogo.
A educação emocional estava morrendo junto com a Terra.
Todos os mutantes choraram ao serem libertados. Aplaudiram Petrus e,
pela primeira vez, descobriram que os diferentes podem viver
pacificamente.
— Por que nos salvou, príncipe Petrus? — perguntou admirado o reitor
da universidade, que tinha duas orelhas grandes e um nariz enorme.
— Esta universidade se chama Universidade da Paz. E uma pessoa
verdadeiramente em paz e feliz procura dar o melhor de si para fazer outros
seres humanos felizes. Foi o que fiz.
— Mas os mutantes são seres humanos para você?
— Sim, e são melhores do que eu, pois suportam o deserto do desprezo
e ainda ensinam a paz.
— Nunca pensei que mutantes e não mutantes pudessem viver
pacificamente — disse o professor que havia se ajoelhado perante Terrívius
sob o estalido do chicote.
— Pois comecem a pensar. Sonhem em mudar a mente dos radicais,
sonhem em mudar o mundo.
De repente, ouviram-se rugidos poderosíssimos de um leão que
assustaram os mutantes. O rugido de Instinctus era sinal de que o sonho de
Petrus estava muito longe de ser concretizado, pois só rugia quando havia
violência. Rapidamente, o príncipe saiu da escola da Paz.
12
Petrus, o libertador dos miseráveis
Quando saiu do palácio, Petrus viu seu leão encurralando Terrívius e o
general Brutus. Lembrou-se da violência daqueles homens e sentiu sua ira
aumentar. Pegou Terrívius pelo colarinho e, encostando sua espada no
pescoço dele, disse:
— Seu ódio pelos diferentes sobe às estrelas do céu. Soube que você
fez experiências com Santorus, meu amigo, e com outros mutantes.
— Men… men… tira! — disse gaguejando o médico.
— Seu psicopata, faz jus a seu nome! Você opera inocentes e, pior
ainda, sem anestesia!
Instinctus ficou tão estressado que levantou as patas para engolir a
cabeça de Terrívius. Mas Petrus fechou os olhos e tentou fazer um exercício
mental para ter domínio de si. Duvidou que não conseguiria administrar sua
emoção, criticou sua intensa ira e determinou que teria autocontrole. Em
seguida, respirou profundamente e soltou Terrívius. Este caiu ao chão quase
desmaiado.
— Mas o que fiz… foi… foi para contribuir com a humanidade.
E Petrus, ao ouvir essas palavras, levantou-o de novo e lhe disse:
— Seu monstro! Mengele fazia experiências com humanos inocentes
na Segunda Guerra Mundial usando esse argumento.
— Quem é… Mengele? — indagou Terrívius gaguejando.
— O médico nazista! — respondeu Petrus, e atirou-o ao chão.
Instinctus iria novamente atacá-lo, mas o príncipe o conteve.
— Instinctus! Não suje ainda seus dentes.
O general Brutus assistia desesperado a toda aquela cena. Tinha
certeza de que, por ser o líder militar, não escaparia das mãos de Petrus. O
príncipe colocou sua espada na garganta dele e disse:
— Você é líder do maior exército da Terra e age sem um código de
honra. Como pode açoitar e matar seres humanos sem armas? — E,
apertando a espada até começar a sair um fio de sangue da garganta do
general, Petrus acrescentou: — Sua covardia me dá nojo e, ao mesmo
tempo, pena.
— Não me mate, príncipe… Eu apenas cumpro ordens — suplicou o
general.
— Instinctus, eles são seus — disse ao leão, que imediatamente rugiu
poderosamente.
— Por favor, não… me mate, príncipe… Sou útil para seu pai —
suplicou Terrívius.
— Não os matarei. Vocês lutarão com esse leão; se sobreviverem,
estarão livres.
E ordenou a Instinctus:
— São seus! — Após dizer isso, deu-lhes as costas.
Instinctus se afastou devagar, como se fosse embora, o que gerou um
alívio enorme em Terrívius e Brutus. Eles se levantaram e começaram a sair
de fininho, sem fazer barulho, em caminhos opostos. De repente, mais uma
vez a alma deles gelou. Depois de trinta metros, a fera se virou de súbito e
rugiu poderosamente. Observou bem as presas e assumiu posição de ataque.
Seriam destroçados.
— Por favor, príncipe. Tenho filhos! — gritou Terrívius, chorando.
— Eu tenho netos — falou o general, com o rosto completamente
desfigurado.
Mas Petrus não ouviu esses apelos. Eles correram a uma velocidade
impressionante, mas só conseguiram dar, no máximo, dez passos. Quando o
leão ia atingi-los, Petrus, que estava de costas, deu um assobio, e o leão, em
vez de destroçá-los, voou por cima deles. Os dois ficaram sem voz, de tanto
medo. Vendo-os ofegantes, o príncipe disse:
— A diferença de força entre vocês e meu leão é a mesma que existe
entre os mutantes e o exército de Cosmus. Dei essa ordem não para matá-
los, mas para mostrar sua monstruosidade contra inocentes. A morte seria
um prêmio para quem feriu a muitos. A minha arma contra vocês é a culpa
que carregarão. Partam e digam a Lexus e ao rei Apolo que acertarei
minhas contas com eles. Lutarei pelo trono de Cosmus!
Foi a primeira vez que Petrus disse que lutaria pelo trono. Ele sempre
o desprezara. Homem humilde, nunca quisera ser uma celebridade nem o
centro das atenções sociais, mas apenas um ser humano útil à humanidade.
Todavia, começava a perceber os estragos que os líderes faziam na
sociedade. Um assassino mata poucas pessoas, mas um péssimo líder
político pode destruir a vida de milhares. Não podia mais ser ingênuo.
Descobria pouco a pouco que somente sendo o líder máximo de Cosmus
poderia diminuir as injustiças da Terra.
ALGUNS SOLDADOS, bem como mutantes, que se escondiam atrás dos
arbustos viram e ouviram a incrível lição que Petrus Logus dera nos líderes
de Cosmus. Depois desses episódios, a coragem e a inteligência do príncipe
se espalharam como fogo no palheiro entre os povos, inclusive dos não
mutantes. O rei Tarântulus agradeceu ao príncipe por libertar a
Universidade da Paz e fazer justiça no reino dos mutantes.
— Obrigado, príncipe. Santa Felicidade foi salva, pelo menos por
enquanto. Os mestres da paz não falam de outra coisa, só de seus feitos.
— Não fiz mais do que minha obrigação como ser humano.
— Fique conosco. Tenho medo de que o exército de Lexus ainda nos
ataque.
— Creio que não. Espalhei uma notícia que os levará de volta ao
quartel-general do reino.
— Pelo menos fique como nosso convidado.
— Tenho de partir. Minha luta só está começando. Antes de chegar a
Cosmus preciso conhecer e libertar outros povos.
Malthus chamou Petrus para conversarem a sós.
— Antes de chegar a Cosmus? Como assim? Pretende voltar ao
palácio central?
— Sim, Malthus!
O mestre ficou perturbado, pois a grande missão de Petrus era retornar
inúmeras vezes ao passado, se preparar física e intelectualmente para mudar
os eventos que ocorreram no século XXI e que levaram à Terceira Guerra
Mundial.
— Sua maior missão não é libertar os povos oprimidos por seu pai.
— Como não?
— Você se esqueceu do Portal do Tempo? Sua missão é muito maior
do que fazer justiça no século XXIII; é mudar os eventos do século XXI —
falou Malthus preocupadíssimo, e acrescentou: — Sua missão, Petrus
Logus, é viajar no tempo para adquirir habilidades que um mortal jamais
teve e assim tentar evitar a Terceira Guerra Mundial. Não fuja desse
objetivo!
— Lembre-se da carta para a humanidade. Se ela não é um surto
psicótico, mas real, eu já estive lá e fui derrotado por uma criatura
superpoderosa, o Robosapiens — disse Petrus, dando as costas para o
mestre.
— Mas se a carta é real e você tem o Portal do Tempo em seu cérebro,
isso indica que você pode tentar de novo! — afirmou o velho mestre.
— Malthus, Malthus… Vamos esquecer esse projeto por enquanto e
procurar aliviar a dor dos que vivem em nosso presente. Mudar o passado é
uma missão louca demais para um mísero homem!
— Você está sendo omisso, Petrus! — falou Malthus num tom mais
alto, numa das raras vezes em que perdera a paciência com o príncipe. E o
lembrou: — Só você pode abrir o Portal para viajar no tempo.
Nátila e todos os amigos de Petrus, embora não conseguissem ouvir o
conteúdo da conversa, perceberam algo errado no ar. Observaram que
Petrus estava tenso.
— Você tem certeza de que essa empreitada não é suicida, Malthus?
Posso ficar preso no passado, ser enviado para o começo do Universo e
morrer só, ser morto pelos loucos do século XXI… E, além disso, imagine
que eu tenha sucesso nesse delírio — ponderou. — Quais seriam as
consequências? Não poderia alterar tudo?
— Bom, eu não sei…
— Nem eu sei! Você nasceria? Nátila existiria? E eu seria quem sou ou
apenas poeira cósmica? Sim, eu viajo com sucesso para o passado de vez
em quando! Sim, eu utilizo as experiências e as técnicas em nosso presente!
Mas dá-me arrepio brincar de Deus!
Nesse momento, Nátila se aproximou e disse:
— Algo errado, Petrus?
— Não sabemos… — E, depois de respirar profundamente, a beijou
suavemente na testa.
Nesse momento, Petrus deixou Malthus e se aproximou do grupo de
amigos. Em seguida, disse para Tarântulus:
— Qual o povo que mais sofre injustiça nesta imensa região?
O rei dos mutantes não demorou para encontrar a resposta:
— Há um vale, o esgoto de Cosmus, mas ir até lá é suicídio.
— Que esgoto é esse? — indagou o príncipe admirado.
— O Vale dos Escravos, um depósito cruel de seres humanos.
— Vale dos Escravos? Não sabia da existência dessa região? —
indagou Petrus, olhando nos olhos de Malthus.
— Esse vale é o último estágio da dor humana. Um campo de
concentração onde mutantes e não mutantes são tratados pior do que cães
— afirmou o rei.
— Você o conhece, Malthus?
— Já ouvi falar muito vagamente. Esse assunto é proibido de se
comentar no governo central.
— Quero conhecê-lo. Onde fica?
— Mas espere — disse Tarântulus, tentando abrandar a ansiedade de
Petrus. Porém, o príncipe era um gênio inquieto, a necessidade de fazer
justiça o controlava.
— Esperar o quê? — perguntou o príncipe.
O rei dos mutantes fez uma expressão de medo e preocupação e
advertiu o príncipe:
— O Vale dos Escravos tem uma força militar enorme guardando-o.
Há uma porta de entrada, mas não de saída. É um lugar tão horrível que
nenhum dos escravos jamais escapou, nem nossos fortes mutantes.
Todo o grupo de Petrus engoliu em seco.
— Entrar nesse inferno, Petrus, é um risco incalculável — ponderou
Malthus.
— Chirubilubilu, tô todo arrepiado.
— Dê-me o endereço — disse o príncipe corajosamente.
O rei mandou trazer um mapa e mostrou o caminho.
— Siga pela estrada leste por cerca de dez horas de cavalgada, dobre à
esquerda na curva dos penhascos íngremes e depois… — Tarântulus
reduziu o timbre de voz e engoliu em seco.
— Rei Tarântulus, você me dá arrepios… Fale de uma vez ou silencie
para sempre! — afirmou Piradus.
Iria falar algo que ele mesmo temia:
— Para chegar ao Vale dos Escravos terão de passar pela Floresta dos
Fantasmas Loucos.
— Fantasmas loucos? Fantasmas já me assustam, agora fantasmas
doidões me paralisam. Até o Broncus está borrando suas calças.
— Quem são os fantasmas loucos? — perguntou Nátila, preocupada.
Malthus respondeu por ele:
— São homens e mulheres prisioneiros de guerra que se tornaram
cobaias do médico-monstro, Terrívius.
— Mais cobaias além de mim e dos outros mutantes? — perguntou
Santorus, indignado.
Malthus deu a péssima notícia.
— Você não conhece um décimo do que esse falso cientista já fez.
Terrívius e outros médicos, sob a orientação de Superius, faziam
experiências com humanos. Tudo isso ocorria sem que o rei soubesse.
Quando Apolo estava perto de descobrir seus experimentos criminosos,
Terrívius e Superius cortaram a língua desses miseráveis e os enviaram para
uma fortaleza no centro da imensa Floresta Negra.
— Que monstros, meu Deus! — comentou Nátila.
Em seguida, o rei Tarântulus completou o raciocínio de Malthus.
— Por fim, esses prisioneiros destruíram a fortaleza e começaram a
morar em tribos na floresta. São chamados de fantasmas loucos porque
dizem que eles enlouqueceram, gritam pela floresta, pintam o corpo com
listas pretas e alguns raspam a cabeça. Mas o que é pior…
— Nem fale, rei… — disse Piradus.
— Dizem que se tornaram… canibais… — comentou o rei Tarântulus.
Piradus engoliu saliva mais uma vez. Estava tão desesperado que
sugeriu:
— Gente, por amor a nossas cabecinhas, vamos aceitar a hospitalidade
do rei Tarântulus.
— Tá com medo, filé-mignon? — instigou Broncus.
— Estou tremendo de medo, brutamontes.
— Eu também — confirmou Broncus.
— Mas não é tudo — afirmou Tarântulus.
— Tem mais? — perguntou Nátila, assustada.
— Se conseguirem sobreviver à Floresta dos Fantasmas Loucos, terão
de atravessar o Lago dos Monstros Uivantes.
— Monstros uivantes? — indagou Petrus, coçando sua cabeça.
— São animais marinhos gigantescos que têm cabeça peluda e uivam
como lobos.
— Parece que estou com febre… — disse Nátila, suando. Não havia
heróis que conseguissem ficar de pé diante de tantas notícias ruins.
— Mas esses monstros são ilusões ou são reais, meu pai? — perguntou
Santorus, preocupado.
— Não sei, meu filho, ninguém voltou para contar.
— Chirubilubilu, prefiro ser encantador de crianças — comentou
Piradus.
— Você tem razão, Piradus, é muito perigoso. Ninguém deve arriscar
sua vida por esta causa. Fiquem! — ordenou Petrus.
Em seguida, deu um beijo em Nátila e, num salto, montou seu cavalo e
disse:
— Se eu tiver a sorte de viver, voltarei para vocês. — E deu-lhes as
costas.
Nátila o interrompeu:
— Espere! Vai me deixar aqui?
— Para sua segurança, é melhor que fique.
— Acha que as mulheres são o sexo frágil?
— Eu não disse isso!
— Mas pensou! — falou ela com segurança, e acrescentou: — Contigo
viverei, contigo morrerei.
Todos ficaram mudos diante da coragem dela. Em seguida, um a um,
os amigos de Petrus concordaram em participar dessa arriscadíssima
missão.
— Eu também irei, meu príncipe — afirmou Malthus.
— Eu não me sentiria vivo se ficasse — comentou Broncus.
— Eu também vou — afirmou Santorus.
— Filho, não. Agora que o encontrei, fique comigo.
— Petrus arriscou sua vida por mim, meu pai. Se eu não for, serei
infiel à minha consciência. Além disso, se puder fazer alguma coisa para
libertar os escravos, pelo menos um deles, minha vida terá mais sentido.
Após dizer essas palavras, Santorus beijou a face direita de seu pai. E
este lhe disse:
— Filho, você tem o coração de um rei. Tenho orgulho de ser seu pai.
Por último, Piradus decidiu:
— Eis os heróis do século XXIII! Sem mim pra protegê-los, o que será
deles?
Em seguida, o rei dos mutantes recomendou:
— Se conseguirem chegar ao Lago dos Monstros Uivantes, procurem
o Sombra.
— Rapaz, eu estava ficando animado… Quem é o doido? — quis saber
Piradus.
— É um mutante de caráter fortíssimo que não gosta de estranhos.
Dizem que é o único ser que sabe atravessar o imenso lago. Entreguem-lhe
este selo.
— Mais alguma recomendação? — indagou Malthus.
— Não! — disse o rei.
— Tem certeza de que não esqueceu nenhum mostrengo, assombração,
alma penada ou vampiro de duas cabeças? — brincou Piradus novamente.
Todos deram risada com o palhaço do bando, aliviando um pouco o
clima tremendamente tenso.
Quando estavam para se despedir emocionados, algo inesperado
aconteceu. Uma criança se aproximou de Nátila. Era um pequeno mutante
com aproximadamente três anos e quatro braços. Um menino lindo e
extrovertido. Puxando a roupa de Nátila, o pequeno disse:
— Você não quer me adotar? Eu não tenho mamãe nem papai.
O rei Tarântulus olhou para Nátila e disse:
— Este é Smart, mais uma vítima do Reino de Cosmus.
Nátila, por instantes, lembrou-se de que ela perdera seu pai,
reconhecendo naquela criança a dramática solidão que um dia ela
vivenciara. E de repente ela tomou uma atitude que abalou a todos os seus
amigos, em destaque Petrus. Fitou seus olhos e teve a coragem de dizer:
— Petrus, tudo o que sempre sonhei foi ser mãe. Vamos levá-lo
conosco? Podemos aliviar a maldade que o Reino de Cosmus fez a ele.
Piradus disse:
— Chirubilubilu, eu não serei babá!
E Petrus, também chocado, comentou:
— Corremos risco dia e noite, seria irresponsável adotarmos essa
criança.
Nátila mais uma vez o rebateu:
— Deixá-la sem pai é ser responsável? Por favor…
— Vocês mulheres são movidas pela emoção!
Vendo o sofrimento de Nátila diante de sua negativa, Petrus pensou em
uma saída.
— Rei Tarântulus, gostaríamos de adotar esta pequena criança, porém
não podemos levá-la agora. O senhor cuidaria dela até termos condição de
buscá-la?
O rei, emocionado com a atitude do jovem príncipe, concordou
imediatamente.
Nátila chorou de alegria e se declarou mais uma vez para Petrus:
— Eu te amo! Vamos formar a nossa família.
A criança subiu no colo de Petrus e, após beijá-lo, disse:
— Papai!
E, com os outros dois braços, abraçou o pescoço de Nátila.
— Mamãe!
Piradus, Santorus e os demais amigos encheram seus olhos de
lágrimas.
LONGE DALI, o general Brutus e Terrívius chegaram até o local onde Lexus e
seu exército estavam acampados. Lexus, ao ver os soldados feridos,
enfaixados, disse perplexo:
— O que aconteceu?
— Petrus… apareceu… — disse o general.
— Um homem os derrotou? Vocês são fracos! — disse Lexus.
Terrívius e Brutus, para não ficarem em maus lençóis, haviam combinado
uma mentira. O médico a contou:
— O bando de Petrus cresceu. Mas o enfrentamos com coragem. Ele
feriu setenta dos nossos homens, mas não tivemos nem uma baixa. Sou um
médico genial. Cuidei de todos.
— Seu irmão está cada dia mais poderoso, Lexus. E mandou um
recado direto para você e seu pai — disse o general.
— Qual?
— “Cansei de fugir. Vou atacar o reino de Cosmus e tomar o trono.”
— Nãããooo! Esse trono é meeeu! — gritou Lexus fortemente. Todo o
vale onde estavam ouviu o eco de seu ataque de raiva.
O médico, lembrando que quase fora morto por Petrus, aconselhou
Lexus:
— Embora estejamos em maior número, é melhor vencê-lo em casa.
Lexus mais do que depressa mudou de direção, conduzindo seu
exército para Cosmus. Mas o que mais preocupava o jovem príncipe era a
popularidade de Petrus. Seu temor era de que, se Petrus voltasse e seduzisse
os povos das cidades ao redor do palácio, poderia promover uma grande
guerra contra o império. Todavia, o temor de Petrus e seus amigos era
outro…
13
A Floresta dos Fantasmas Loucos
Depois de caminharem por algumas horas, os amigos montaram
acampamento. Petrus continuava saindo sutilmente de madrugada sem que
ninguém percebesse. Só Instinctus o acompanhava. Na manhã seguinte,
partiram logo que o sol raiou no horizonte. Ao entardecer, se aproximaram
de uma imensa floresta. Eles diminuíram a marcha e começaram a admirar
aquelas árvores gigantescas.
— Notável como algumas florestas se renovaram depois de tantas
guerras. Que lugar belo! — afirmou Petrus.
— Belo? — questionou Piradus. — Esta floresta está cheia de
malucos.
— Quem sofre por antecipação morre mais cedo! — comentou Petrus.
— Fazer o velório antes do tempo é morrer duas vezes — confirmou
Malthus.
— Mas é difícil dirigir a emoção — afirmou Nátila.
— Mas é necessário, Nátila — ressaltou o príncipe. — Firmem suas
mentes de que melhores dias estão por vir.
— Mas isso não muda os perigos do ambiente — afirmou Santorus.
— Eu sei — concordou Petrus, e completou: — Mas muda os perigos
da nossa mente. O medo pode ser um fantasma pior do que os habitantes
desta floresta. Vamos acampar aqui esta noite. Amanhã entraremos na
floresta.
E assim fizeram. Ergueram três tendas que ganharam dos mutantes.
Acenderam uma fogueira, e Santorus começou a tocar o instrumento que
ganhara de seu pai: uma gaita. O som era lindo.
— Não sabia que você tocava esse instrumento — disse Petrus.
— Lembro-me vagamente de quando meu pai me ensinava.
— Vejam! Uma estrela cadente — afirmou Nátila. — Façamos um
pedido.
Todos fizeram um pedido. Inclusive Malthus topou a brincadeira.
Instinctus olhou para o alto. Em seguida, repousou sua imensa cabeça no
colo de Nátila.
— Tá podendo, hein, madame — falou Piradus. Depois disse: — Estar
com Petrus é um convite a correr riscos, mas nada é tão bom quanto ajudar
os outros.
— Parabéns, amigo — elogiou o corajoso príncipe.
De repente, Instinctus rugiu e se levantou.
— Essa fera ainda vai me matar de enfarto… — disse Piradus.
Petrus e Instinctus saíram para ver o que era. Viram algumas pegadas
que sumiam no meio da floresta. Logo que retornaram para o acampamento,
ouviram gargalhadas altíssimas que emanavam de dentro da floresta.
— Estou todo arrepiado — disse Broncus.
— Vamos tentar dormir. Instinctus ficará de guarda — disse o príncipe.
À noite, Broncus teve um pesadelo e rolou na terra. Sem querer, meteu
uma das mãos na cara de Piradus, que gritou:
— Socorro, um fantasma louco.
— Fui eu, Piradus… Desculpe — disse Broncus.
— Ah, é você? Então o que significam aquelas marcas de mão na
tenda?
Petrus coçou a cabeça. Estava intrigado.
— Como Instinctus não notou a presença do invasor?
Depois disso, aproveitaram para colocar mais lenha na fogueira.
— O fogo espanta os animais, mas não os fantasmas — falou
Santorus, preocupado.
— Não são fantasmas. São gente ferida — disse Petrus.
— Não sei, não… Uma pessoa ferida pode se tornar uma fera —
expressou Santorus, desconfiado.
Duas horas depois, as estrias de luz dos primeiros raios solares
despertaram a natureza, que mais uma vez tocou a sinfonia dos pássaros.
Alguns pássaros cantavam diferente, pois tinham cabeça torta, duas cabeças
ou bico desproporcional. Eram pássaros mutantes.
Eles tomaram água e comeram algumas frutas e pães que tinham
ganhado dos mutantes. Dez minutos depois, subiram em seus cavalos e
partiram. Logo viram uma estrada no interior da mata. Petrus avisou:
— Não sei qual é a dimensão desta mata, mas convém fazermos o
percurso como o pai de Santorus nos orientou, o mais rápido possível. Nada
de descanso, todos a galope. Avante!
E galoparam a toda velocidade. Ouviam-se gritos por todos os lados.
As árvores mexiam suas copas. Parecia que havia uma espécie de gorilas
sobre elas, que saltavam de galho em galho, tentando acompanhá-los. Mas
ninguém os atacou. Uma hora depois, o inesperado aconteceu: à frente deles
havia um conjunto de espetos de pau de mais de um metro de altura
impedindo a passagem do grupo.
— Instinctus, tome a frente — disse Petrus, diminuindo a marcha.
O leão aumentou sua velocidade e saltou sobre os obstáculos,
indicando que atrás dele estava livre. Petrus os encorajou:
— É a nossa vez! Não olhem para solo, olhem para o horizonte.
E assim os cavalos também saltaram. Santorus, que não era um bom
cavaleiro, caiu ao saltar sobre os obstáculos.
— Continuem, continuem. Sigam Instinctus — disse Petrus para os
amigos.
— Manhêêê! — gritava Piradus.
Em seguida, Petrus retornou para ajudar o mutante. Pegou o cavalo de
Santorus e o levou até o rapaz.
— Vamos, amigo, você consegue.
Santorus se levantou mancando e, quando ia montar no cavalo, dez
homens, vestindo roupas esfarrapadas, com cabeça raspada e o rosto
retalhado, os atacaram. Eles não falavam, rosnavam como feras. Petrus e
Santorus ficaram perplexos ao vê-los. Petrus sacou sua espada, desceu do
seu cavalo e lutou com eles. Foi difícil vencê-los, pois eles não tinham
medo de nada. Após feri-los, mas não matá-los, apareceram dezenas de
outros. Petrus e Santorus montaram rapidamente em seus cavalos e foram
atrás de seus amigos. Dez minutos depois, os viram parados. Petrus achou
estranho que não tivessem seguido sua orientação.
— O que foi? — perguntou para Nátila, a última do grupo.
— Olhe à frente.
Petrus ficou assombrado. Algumas centenas de “fantasmas loucos”
formavam uma barreira humana. Eles gritavam desesperados, mas não
pareciam zumbis. Estavam muito ativos. Seus corpos estavam pintados com
listras pretas, como o rei dos mutantes havia dito. As cabeças estavam
raspadas e também pintadas.
— Vamos voltar! — ponderou Malthus.
— Não será possível — afirmou Santorus. — Atrás de nós também há
uma barreira enorme de homens desfigurados.
Nátila concluiu:
— Estamos perdidos.
Malthus desembainhou sua espada. Broncus também.
— Esperem! Não há como lutar e se esconder. Não adianta eliminar
cem, outras centenas nos derrotarão.
Petrus montou em Instinctus e foi ao encontro daqueles homens
mutilados.
— Não, Petrus, vejam seus gritos e comportamentos. Parece que não
têm mais nenhuma humanidade — afirmou Nátila.
— Quem vê cara não vê personalidade — disse ele e, aproximando-se
cinquenta passos do horrível bando, comentou em voz alta: — Venho em
missão de paz.
De nada adiantou. Os homens continuaram a rosnar com a boca.
Aproximaram-se mais quinze passos. Os “fantasmas” que estavam atrás
também chegaram e começaram a fechar o cerco.
— Sei das atrocidades que o Reino de Cosmus cometeu com vocês.
Mas novamente nenhuma reação foi esboçada. Pareciam não entender
a linguagem de Petrus. Pior, eles levantaram os paus que seguravam nas
mãos e se preparavam para atacar os invasores da floresta. Aproximaram-se
mais vinte passos. A legião de trás também continuava apertando. Estavam
muito próximos. Era o fim.
Petrus, o jovem mais inteligente do Reino de Cosmus, contudo, insistiu
no diálogo.
— Sei que vocês são chamados de “fantasmas loucos”, mas para mim
são seres humanos!
Quando Petrus disse isso, eles diminuíram a marcha, alguns ergueram
a cabeça. Petrus, aos brados, continuou:
— E, como seres humanos, pensem antes de reagir! Não somos seus
inimigos!
Os “fantasmas” diminuíram mais ainda a marcha.
— Sei também que Terrívius e o sumo sábio Superius os torturaram.
Mas saibam que torturaram a mim também. Fui preso na Câmara dos
Loucos!
Quando Petrus disse essas palavras, eles pararam subitamente,
inclusive o grupo atrás deles. O líder da legião, o único que conseguia falar,
pois sua língua não fora totalmente amputada, tomou a frente do grupo. Os
fantasmas loucos ergueram o braço direito e soltaram grunhidos em peso.
Queriam dizer: “Morte! Morte! Morte!”.
Instinctus rugiu fortemente e ameaçou atacar.
— Fomos transformados em animais… Quem é você, que nos chama
de seres humanos? — disse o líder com a voz grave e rouca.
— Petrus Logus!
— Petrus Logus Vikk de Luxemburgo? O homem que tentou vingar os
massacrados no Reino de Cosmus?
— Sim! Como sabem meu nome completo? Quem são vocês? —
indagou o príncipe, curioso.
Aos brados, o líder fez revelações bombásticas.
— Quem somos? Não sabemos mais… Terrívius e Superius nos
levaram para a maldita cordilheira… E lá fizeram experiências com nosso
cérebro. Torturaram-nos. Sou o único que consegue se comunicar…
— Experiências com o cérebro humano? Nunca ouvi falar que essa
atrocidade existisse em nosso tempo — declarou Petrus, espantado. — Mas
que cordilheira é essa?
— Admira que o filho de Apolo não conheça o maior laboratório do
mundo!
— Laboratório? O que acontece lá? — indagou o príncipe olhando
para Malthus, para verificar se ele conhecia. Malthus fez que não com a
cabeça.
Nátila e os demais amigos de Petrus estavam ao mesmo tempo
perdidos e profundamente amedrontados com aquela conversa. O século
XXIII, o século dos mistérios, continuava produzindo suas dramáticas
dúvidas.
— Não sabia que há seres que planejam dominar o mundo? Não tem
ideia de que em breve a humanidade estará em chamas?
— Espere! A humanidade já esteve em chamas na guerra nuclear.
— Não. Esteve em brasas, mas agora estará em chamas.
Petrus ficou perturbado com a fala do líder dos fantasmas loucos, pois
não havia mais armas de destruição em massa em seu tempo, como armas
nucleares, de nêutrons, a laser, químicas. Pelo menos era o que acreditava.
A sociedade voltara ao tempo das espadas e dos cavalos. Não havia mais
motores nem aeronaves.
— Quem planeja conspirar contra a humanidade? — perguntou Nátila,
interferindo na conversa.
— Cale-se! Você não foi chamada para a conversa — disse o líder
daqueles homens desconstruídos.
Mas, assim como a Petrus, era quase impossível calar Nátila.
— Não me calarei! Sou parte da humanidade. Diga-me: é o pai de
Petrus que trama contra a espécie humana?
Mas, para assombro deles, o líder deu uma gargalhada, e centenas de
seus seguidores também. Pareciam não ter compreendido o que Nátila
perguntara.
— O rei Apolo é apenas um figurante! — afirmou, para o espanto de
todos.
Petrus considerou que os homens que habitavam a floresta estavam
mentalmente confusos e insistiu na passagem.
— Deixe-nos passar. Quero libertar o Vale dos Escravos.
— Libertar o Vale dos Escravos? Você é mais louco que os fantasmas
loucos. Ninguém escapa daquele inferno!
Nesse momento, o bando de trás perdeu a paciência e começou a se
aproximar, assim como o da frente.
— Precisamos de carne fresca. Dê-nos metade dos cavalos e podem
partir — disse o líder que conversava com Petrus.
Quando os fantasmas iam atacá-los, Petrus fez um sinal de
concordância. O líder deu uma ordem, e um homem atrás dele tocou uma
corneta. Todos ficaram em completo silêncio. Petrus deu-lhes três cavalos.
Outra vez a corneta tocou, e, assim, um espaço se abriu em meio àquela
multidão de famintos. Nátila montou no cavalo de Petrus, e os outros quatro
em dois animais. Ao passarem pelos fantasmas loucos, o líder abalou-os
com sua inteligência. Advertiu-lhes:
— Não enlouquecemos quando nossos inimigos nos torturam, mas
quando os deixamos destruir nossos sonhos. Não deixem que destruam os
seus.
— Por favor, me diga quem é você — pediu Nátila. — Você não fala
como um selvagem.
— Eu era um filósofo, moça, antes de ser preso naquelas gaiolas.
— Gaiolas? — perguntou Petrus sem entender.
O líder não respondeu sua pergunta, apenas falou mais um mistério:
— Cuidado, o Conselho do Império vê tudo o que você faz e ouve tudo
o que você diz… Ele pode estar te controlando, Petrus Logus!
— Vamos, príncipe! Não há tempo a perder. Podemos morrer nesta
floresta.
E assim eles saíram a galope. O medo e as dúvidas se misturavam na
mente do príncipe e de seus amigos.
MUITO DISTANTE da Floresta dos Fantasmas Loucos, o Conselho do Império
estava reunido novamente. E como o líder dos fantasmas dissera, eles
realmente observavam todos esses comportamentos. Opus bradou sem
qualquer compaixão:
— Deveríamos ter exterminado todos esses ratos de laboratório! Por
que não cortaram a língua de todos? Infernizaram a mente do escolhido.
Quem é o responsável por essa falha?
Silêncio geral. Momentos depois, um membro do conselho acusou o
outro.
— Foi Plácidus.
Plácidus, que estava no centro da mesa, se levantou e tentou se
justificar.
— A ordem era que todas as línguas fossem amputadas, mas um deles
fingiu-se de morto e nos enganou.
— Justificativas, Plácidus, só os imperfeitos dão. Você será condenado
ao silêncio eterno.
— Por favor, Opus, rei dos reis, líder dos líderes, não me silencie.
— Sou amante da lógica, não admito erros.
— Grande seja Opus, o justo, o deus da lógica! — todos disseram.
Opus era, na realidade, o deus do terror, não conhecia as palavras
“perdão” e “compaixão”.
Em seguida, alguns guardas levaram Plácidus para fora da sala, não se
sabia para onde nem o que fariam com ele. Opus ia dar outro murro na
mesa, mas com sua mão esquerda parou o soco da mão direita. Em seguida,
apontou para um dos conselheiros que estava fardado e comentou:
— Plano Laser, mestre da guerra. Dê uma lição inesquecível aos
fantasmas loucos.
— Imediatamente, senhor.
O general da guerra clicou no ar, e imediatamente uma série de
comandos em 3-D apareceu.
MINUTOS DEPOIS, por inacreditável que possa parecer, uma enorme nave
supersônica deu um rasante sobre a floresta. Petrus e todo o grupo entraram
em pânico.
— Que monstro enorme é esse? — perguntou Broncus, olhando
assustado para o alto.
— Será esse o verdadeiro fantasma da floresta? — indagou Piradus.
— Meu Deus, que aparelho é esse? — questionou para si mesmo
Malthus.
Petrus, instintivamente, gritou:
— Corram para a floresta!
Mal haviam se abrigado sob as árvores quando a nave disparou contra
eles tiros a laser que transformaram as enormes árvores em cinzas. Por
instantes não foram mortos. À medida que entraram na floresta, a nave
continuou atirando, queimando e destruindo mais árvores. Todos fugiam
desesperados. Felizmente a floresta era densa, o que dificultava enxergá-los.
Nátila se enroscou em alguns cipós e caiu numa pequena clareira. A
nave os identificou. Quando a nave ia exterminá-los, uma voz invadiu a
mente de Petrus dizendo: “Abrace Nátila!”. Imediatamente ele pulou de seu
animal e a abraçou. Morreriam juntos.
Mas, nesse momento, algo fenomenal ocorreu. A imensa nave pairou a
cinquenta metros acima deles. Uma arma foi apontada na direção de seus
corpos; virariam cinzas, porém, de repente, não se sabe por quê, ela os
poupou, pelo menos por enquanto. A nave partiu com incrível velocidade
do local. Foi procurar os fantasmas loucos. Queria se vingar das cobaias
que deram com a língua nos dentes. Chegando até eles, começou a caçá-los
pela imensa floresta. Mas era uma tarefa difícil, pois eles haviam se
espalhado.
Era possível ouvir tiros a distância.
— O que está havendo, Petrus? — indagou a mulher que ele amava.
— Parece que estão atirando nos homens que nos deram passagem.
— Mas o que está acontecendo? Por que o líder dos “fantasmas” disse
que você pode estar sendo controlado?
— Não sei, não sei. Sou um homem livre. Ele devia estar delirando
quando disse isso.
— E aquela máquina? Também é um delírio? Olhe o estrago que ela
fez — observou Santorus.
— Nunca imaginei que elas existissem. Estou perplexo. Só tinha visto
essas aeronaves nos livros.
— Quem a dirigia? — perguntou Piradus.
— E com que objetivo? E por que não exterminou a nós dois? —
questionou Nátila.
Malthus parecia mais preocupado do que espantado. Disse:
— As dúvidas estressam o cérebro. Vamos.
— Mas sem elas não se produzem grandes respostas — respondeu
Petrus.
— A melhor resposta agora é sair deste inferno. Malthus tem razão.
Vamos — afirmou Petrus.
— Acho que me tornei um fantasma louco — afirmou Piradus.
— Mais louco impossível — brincou Broncus.
Quando estavam para sair da floresta, foram atacados por outro bando.
Não houve qualquer possibilidade de negociação. Nátila foi agarrada por
três homens, e seu cavalo caiu ao solo. Os homens caíram em cima dela.
Instinctus contra-atacou. Os outros foram igualmente cercados e atacados.
Tiveram que lutar. Felizmente, o bando era menor do que os anteriores.
— Defendam-se, mas não os matem.
— Como não? Esses caras querem nos comer vivos! — afirmou
Piradus.
Momentos depois, haviam vencido os furiosos fantasmas.
— Muitos estão gravemente feridos. Não sobreviverão — lamentou o
príncipe.
— Vamos. É a lei da vida — afirmou Malthus.
— Não, mestre, essa é a lei dos homens. Por trás de pessoas que nos
ferem há sempre pessoas feridas — afirmou o príncipe, para a admiração de
Malthus.
— Você tem razão — reconheceu o mestre. Ele tinha vaidade, mas
tinha mais orgulho por seu discípulo o estar superando.
Em seguida, entraram em um campo aberto e ficaram aliviados.
Haviam vencido a Floresta dos Fantasmas Loucos. Caminharam por duas
horas e encontraram um lago belíssimo.
— Não sei se rio ou se choro — falou Santorus.
— Por quê? — indagou Piradus.
Santorus, que tinha tendência a ser pessimista, refrescou a memória
deles.
— De acordo com meu pai, a floresta a nossas costas era
superperigosa, mas o lago à nossa frente é… é…
Mas Petrus tentou acalmar o colega.
— Santorus, lembre-se: vamos crer que os melhores dias estão por vir.
Não vamos fazer o velório antes do tempo.
— Chirubilubilu, eu já fiz o meu… — disse Piradus, dando risada até
de seus medos.
— Tire esse chirubilubilu da sua cabeça! — esbravejou Broncus,
irritado.
— Eu tento, eu tento, mas ele não quer sair…
Todos deram risada do jeito engraçado como Piradus levava a vida,
embora tivessem motivos para chorar. E assim se comportava o grupo mais
corajoso e mais perseguido do planeta…
14
Instinctus e os leões
Petrus, Nátila e seus amigos atravessaram lindos campos. As pastagens
sumiam no horizonte. À frente, pastando tranquilamente, viram um bando
de cervos enormes. De repente, eles se viraram, um tinha cabeça chata e um
olho bem maior que o outro e um segundo tinha cinco chifres, dois de cada
lado da cabeça e um que saía do meio da testa. Eram mutantes. Três
aparentemente eram normais.
— Estão com fome? — perguntou Petrus.
Todos disseram com a cabeça que estavam famintos.
Imediatamente, Instinctus fez posição de caça. Aproximou-se
lentamente e depois, com incrível velocidade, disparou em direção aos
cervos. Eles eram rapidíssimos, mas, de repente, três leoas famintas
também apareceram caçando os mesmos animais, o que fez com que o
cervo que Instinctus estava prestes a abater se desviasse e lhe desse um
baile. Mas o enorme leão de Petrus não se deu por vencido, fez a curva e
perseguiu seu alvo.
Todos os amigos admiravam a caçada. A musculatura bem definida
das coxas de Instinctus se contraía e relaxava com tremenda rapidez, até
que ele pulou nas costas de um dos cervos, o derrubou e abocanhou sua
garganta. Logo chegaram as leoas, querendo participar dos despojos.
Instinctus, como ia levar carne para dividir com Petrus, as afugentou, rugiu
para elas. Elas se distanciaram um pouco e o acompanharam a distância
levando a caça. Queriam as sobras da carcaça. Mas, assim que viram o
bando de Petrus, imediatamente assumiram posição de caça e partiram para
cima deles. O desespero foi tão grande que os amigos começaram a gritar.
— Fiquem juntos a meu redor — bradou Petrus.
Eles se agruparam, formando uma barreira humana. Quando as leoas
se aproximavam deles, Instinctus saltou sobre elas e os protegeu. Elas
interromperam a marcha, mas não desistiram de atacá-los. Nesse momento,
apareceu o macho alfa. Seria uma carnificina. Alguns amigos de Petrus
perderiam a vida, ainda que matassem todos os leões. O jovem príncipe
tomou a frente e, ao lado de Instinctus, olhou firmemente nos olhos do
macho alfa e depois nos das leoas. Parecia entrar no cérebro deles. Eles se
aquietaram e foram comer o cervo que Instinctus tinha abatido.
Piradus e Santorus tinham borrado a calça, não controlaram a urina.
Nátila perguntou:
— Como você fez aquilo? Primeiro foi a serpente, agora os leões?
Petrus respirou fundo e disse:
— Não sei. Não sei nem mesmo se fui eu ou se foi a presença de
Instinctus que inibiu o ataque. Só sei que perdemos a caça.
Mas de repente, a vinte metros deles, um coelho surgiu. Petrus
imediatamente pegou sua faca e a atirou no animal, matando-o.
— Bom, pelo menos temos alguma caça — disse o príncipe.
DEPOIS DE comer, novamente partiram, e passadas duas horas encontraram
um pequeno rio com uma bela cachoeira.
— Príncipe, é melhor tomarmos banho. Não aguento mais dividir o
cavalo com ele. Ele cheira a ovo podre — provocou Broncus.
— Como sabe se sou eu ou você, brutamontes?
E desceram, tomaram banho e ali descansaram. O lugar era de rara
beleza. A cachoeira formava uma lagoa borbulhante. Petrus nadou com
Nátila e lhe deu um longo e sensível beijo. Fez juras de amor.
— Obrigado por existir. Te amarei para sempre.
— Será? — indagou ela.
— Até que eu seja um velhinho de bengala. Claro, se você me
aguentar.
— Vão com calma, vocês ainda nem se casaram. Na casa do rei, os
princípios são à moda antiga — comentou Malthus.
— Mas não sou mais da casa do rei. Fui banido por meu pai.
Em seguida, Malthus chamou Petrus para mais uma conversa
particular. Estava muitíssimo preocupado com o futuro do príncipe.
Encarando firmemente o rapaz, disse:
— Sua fama está crescendo descontroladamente, Petrus. Os povos
dominados por seu pai estão achando que você é o salvador da pátria.
Sonham com o impossível: que um dia você assuma o trono de Cosmus e os
liberte. Cuidado, Petrus. Tentar ser rei é arriscadíssimo, você será
massacrado. E, além disso, ser rei de Cosmus não é a sua grande missão.
Petrus ficou em silêncio por um tempo, depois declarou:
— Eu sei…
Malthus refrescou sua memória.
— Você é o escolhido para viajar no tempo e conquistar a sabedoria e
o poder que um ser humano jamais teve. O século XXI te espera. Só você
pode voltar ao passado e evitar a guerra nuclear, a guerra das guerras!
— Você acha que terei força e sabedoria para executar essa missão?
Tenho calafrios só de pensar nesse projeto.
— Você viu a aeronave que nos perseguiu? O líder dos fantasmas
loucos pode ter razão. A humanidade ainda corre risco de extinção! — disse
o mestre chinês.
— Fiquei preocupadíssimo com a aparição dessa aeronave. Quem a
controla? Com que propósito? Por que não me mataram? O que querem de
mim? Que riscos a humanidade está correndo? Fico louco com a falta de
respostas.
— Não deixe que a busca por respostas ofusque sua sensibilidade!
Veja o drama dos fantasmas loucos, perceba o sentimento de rejeição dos
mutantes e a dor dos escravos que conheceremos. Não vale a pena tentar
prevenir essas desgraças?
— Vale. Disso eu não tenho dúvidas. Mas pense comigo, Malthus: se
sou o mais procurado dos homens hoje em dia, que perseguições não
sofrerei ao acusar as loucuras dos senhores do século que produziu o
aquecimento global? Se não consigo mudar a mente de meu pai e dos
psicopatas que o assessoram, como mudarei a mente dos líderes do século
XXI?
Malthus respirou profunda e prolongadamente. Não conseguia vencer
o raciocínio de Petrus.
— Não sei… Só sei que essa é sua responsabilidade! — disse o sábio,
virando as costas para seu aluno.
Petrus Logus esfregou as mãos no rosto e disse, emocionado:
— Sou um homem marcado para morrer, mestre.
— Só sei que sua força e sua inteligência gritam que sua missão não é
um delírio, mas real. O acesso ao Portal do Tempo é um dom inimaginável.
Não coloque seu romance em primeiro lugar.
A mente do filho de Apolo nunca ficara tão perturbada. Que caminho
tomar? Que opções seguir? Deveria seguir seu coração ou sua razão? Não
sabia.
Logo depois desse diálogo, eles saíram do banho e foram pegar os
cavalos. Subitamente, Petrus sentiu a falta de Instinctus.
— Vejam, os leões voltaram. Parece que Instinctus está cortejando
uma das leoas — comentou Nátila, apontando para os leões a cerca de cem
metros.
— Ele vai arrumar encrenca com o macho alfa — alertou Petrus.
E não deu outra. Quando o macho alfa viu Instinctus, partiu para cima
dele. Mas deu dó do animal. Instinctus era muito mais forte. Deu uma
patada e ele voou longe; quando Instinctus ia pegar sua jugular e acabar o
serviço, ouviu o assobio de Petrus e permitiu que o rival deixasse seu
harém.
E assim partiram. Três quilômetros à frente encontraram um imenso e
belíssimo lago azul-turquesa, rodeado de cadeias de montanhas. À medida
que se aproximavam, Nátila ficava fascinada.
— É um dos lagos mais lindos que já vi — comentou.
— E espero que não seja um dos mais perigosos também — falou
Petrus.
— Será que é o lago que meu pai comentou? — perguntou Santorus.
— Parece tão calmo.
— Seu pai tem uma imaginação fértil, Santorus. O melhor está por vir,
lembra-se? — brincou Piradus, olhando para Petrus.
— Onde está o barco? — indagou Broncus.
— Temos de procurar o Sombra… — Santorus tentava se lembrar do
nome que o pai havia falado.
E foram rodeando o lago, tentando encontrar o sujeito. Meia hora
depois viram uma pequena casa de sapê e se dirigiram até ela. Piradus e
Santorus desceram dos cavalos e bateram à porta. Ouviram alguém
roncando altíssimo, levando-os a tomar cuidado. Bateram à porta.
Tum, tum, tum.
— Acho que tem um elefante dormindo lá dentro — disse Piradus.
Então foi espiar o que tinha dentro por uma fresta na porta. E viu uma
pessoa pequena dormindo.
— Gente, tem uma criança dormindo.
— Uma criança? Tem certeza? — questionou Nátila, pensando no
pequeno Smart.
Piradus olhou de novo para confirmar, mas, ao se apoiar na porta, a
pequena casa começou a despencar… Ele tentou segurá-la, mas não
conseguiu. Ela despencou. Desesperado, gritou:
— Ai, meu Deus, matei a criança!
E todos correram para tirar tábuas, ripas, teto de sapê de cima da
vítima. Seria mesmo uma criança que estaria sob os escombros? Ninguém
sabia o que ela estaria fazendo sozinha próximo ao lago mais perigoso da
Terra.
15
O Lago dos Monstros Uivantes
Petrus e seus amigos removiam os escombros ansiosamente à procura da
criança. Eles suavam muito. O príncipe se sentia responsável por esse
acidente, afinal de contas fora ele quem insistira em ir até o Vale dos
Escravos. Ele, que sempre impedia que seus inimigos fossem mortos, tinha
agora de conviver com a morte de uma criança. Era impensável. De repente,
uma voz poderosa foi ouvida debaixo do entulho:
— Quem derrubou minha casa?
— Quem falou isso? — indagou Piradus.
De repente, a voz falou:
— O maldito que fez isso virará comida de piranha.
Santorus, que ouvira com atenção, afirmou:
— Parece a voz de um gigante.
A “criança” deu um pontapé e jogou longe uma porta. Piradus se
escondeu atrás de Santorus. Logo o dono da voz se levantou. Era um anão
musculoso, que tinha o olho direito maior que o esquerdo. O homem
desamassou seu chapéu de pirata e colocou-o sobre a cabeça. Saiu pisando
nos escombros. Vestia uma camiseta que imitava uma caveira.
— Cadê o miserável?
— Quem é você? — indagou Petrus, tentando acalmar sua ira.
— Quem faz as perguntas aqui sou eu. Quem são vocês?
— Sou Petrus Logus. Estou indo para o Vale dos Escravos.
— Vai vender esse bando? São fracotes, não valem nada.
— Não, eles são meus amigos.
— Ô, baixinho, quem é você? — perguntou Piradus, dando uma de
valente.
— Não sabe quem sou? Sou o grandioso Sombra! — disse gritando.
Piradus não se aguentou. Caiu na gargalhada.
— Foi você que derrubou meu palácio?
— Ele já estava caindo. Eu só assoprei… — E continuou a dar risada.
— Laurus, comporte-se! — advertiu Nátila.
— Desculpe, Nátila, é que eu imaginei que o Sombra fosse um
gigante… tão grande…. tão forte…, mas é tão… tão…
— Luta aceita!
— Luta? — falou Piradus. — Desculpe-me, mas não bato em
crianças…
— Não brinque com fogo… — disse Petrus.
— É meu código de honra, Petrus. O seu código é tirar de combate
sem matar… O meu é distrair as crianças — comentou Piradus, que, além
disso, empurrou a testa do Sombra.
O anão ficou tão nervoso que parecia que ia soltar fogo pelas narinas
como um dragão. Irritadíssimo, bradou:
— Você vai virar isca de peixe, seu banana!
— Procure alguém do seu tamanho — disse Piradus, sem parar de rir.
Então Sombra abriu os braços e deu seu grito de guerra:
— Ahhh! Ahhh!
Piradus, levando tudo na brincadeira, resolveu enfrentá-lo:
— Chirubilubilu… Vem para o papai, neném!
Sombra, apesar das pernas curtas, correu rápido e deu uma voadora
com os dois pés no peito de Piradus. Este caiu como uma pedra. Levantou-
se com dificuldade. Sentia tanta dor que ficou sem voz no primeiro round.
Broncus aproveitou para colocar mais lenha na fogueira.
— Levando surra de uma criança, filé-mignon?
Sentindo-se desafiado, Piradus chamou Sombra para o segundo round.
O anão deu outra voadora e não apenas bateu os pés em seu peito, mas deu
um soco em pleno ar em seu queixo. Piradus foi a nocaute. Todos se
preocuparam com ele. Petrus analisou sua respiração e seu queixo e disse:
— Ele vai ficar bom.
Uma hora depois, Piradus acordou. Todos estavam comendo peixe
assado.
— Ai, ai. Caiu uma pedra sobre minha cabeça.
— Sim. Caiu um gigante — disse Santorus sorrindo.
— As crianças precisam levar vantagem.
Sombra se levantou e mostrou seus punhos.
— Relaxe, amigo. Não seja mal-humorado. — E estendeu-lhe as mãos.
— Muito prazer, sou Laurus Piradus.
E a partir desse momento se tornaram grandes amigos.
— Então vocês querem ir até o Vale dos Escravos? E com que
objetivo? — perguntou Sombra.
— Tentar libertá-los?
Sombra caiu na gargalhada.
— Ha, ha, ha, ha… Essa é a piada mais engraçada que já ouvi neste
fim de mundo.
— Você conhece o local? — Indagou Petrus.
— Sim. Ninguém escapa daquele inferno. E vocês o conhecem?
— Não — afirmou Petrus. — Só fiquei sabendo da existência dele há
poucos dias.
— E quem é você para achar que com esses molengas vai libertar o
maior campo de concentração do planeta?
— Sou Petrus Logus, o filho rebelde do rei Apolo.
— Sinto, príncipe, tê-lo desacatado. Mas se entrar nesse vale vão
esmagá-lo.
— Como assim? Quem nos esmagará? — perguntou Nátila.
— Há milhares de soldados supertreinados guardando o vale. Seres
humanos, mutantes e não mutantes, fazem um trabalho inumano, sujo e
pesado, muitos não duram seis meses. Morrem e são substituídos.
— Que absurdo! — comentou Petrus surpreso. — E quantos escravos
o vale comporta?
— Não sei. Só sei que a cada mês são transportados mais de mil
escravos para lá. Antigamente, eu costumava fazer essa rota por ser mais
perto, mas depois, por causa de uns probleminhas de navegação, desisti de
transportá-los. Passam agora pelas estradas do norte e do oeste.
— E o que os escravos produzem? — perguntou Nátila.
— Lapidam pedras, entalham madeira, lavram carvão. E, além disso,
retiram alguns minérios raros.
— Minérios raros? Para que serve isso? A produção é levada para o
Reino de Cosmus? — questionou Nátila curiosa.
— Pedras, carvão e madeira, sei que o Reino de Cosmus os utiliza.
Mas… — Neste momento, Petrus engoliu em seco e falou: — … metais
raros, não. Pelo que li nos livros, eles são usados para aparelhos
sofisticados, com alta tecnologia.
Malthus respirou profundamente. Petrus ficou reflexivo e completou:
— Será que os segredos estão na cordilheira…?
Sombra fez uma pausa, expressando grande preocupação. Depois
comentou:
— Quando a produção desses metais é fraca, os escravos são tratados
como animais. Não poucos são fuzilados. Mas o pior de tudo é que… — O
anão se calou.
— Fale! — pediu Nátila, ansiosa.
— O pior de tudo é que estão escravizando mulheres e crianças.
Petrus se levantou, bateu com o punho direito na palma da mão
esquerda e bradou, irado:
— Miseráveis. A justiça não tardará.
Instinctus rugiu, assustando Sombra, que deu um pulo.
— Leve-nos a esse vale — exigiu Petrus.
— Não!
— Por que não? — indagou admirado o príncipe.
— Não estou mais fazendo a travessia neste lago. Tremo de medo! —
comentou Sombra.
— Medo do quê? Você parece tão destemido — comentou Nátila.
— Dos monstros uivantes.
— Mas isso não é lenda? — questionou o sábio Malthus. Os monstros
estão em nossa mente.
— Mas esses já engoliram mais de mil pessoas.
Piradus quase desmaiou de novo.
— Caramba! Mil pessoas? Tô fora!
— Essas foram só as que eu vi!
— Há outro caminho? — perguntou Petrus.
— Por qualquer outro caminho vocês demorarão mais de um mês,
além disso, as outras rotas estão superpoliciadas. Pelo lago, são oito horas
até o outro lado. A grande questão é que podemos despertar os monstros
durante nossa travessia. A não ser…
— A não ser o quê? — questionou Petrus.
— Nunca houve ataque pela manhã. Se sairmos antes de o sol nascer,
quem sabe chegamos do outro lado ao meio-dia. Mas eu não me arrisco.
— Fiquem aqui. Eu vou sozinho com Instinctus. Só preciso de um
barco.
Todos se calaram diante da coragem do príncipe, que era
surpreendente. Porém, a bravura de Nátila era admirável.
— Petrus, já lhe disse: contigo viverei e contigo morrerei.
Após a declaração de Nátila, os amigos foram levantando a mão um a
um, se oferecendo para seguir viagem com Petrus. Piradus foi o último a se
oferecer. Sombra, impressionado, disse:
— Não sei se são loucos ou corajosos. Eu os levarei. Mas com uma
condição: se sobrevivermos, eu farei parte do bando.
— Não, não é possível — afirmou Malthus.
Mas Sombra insistiu:
— Príncipe Petrus Logus, nunca me senti tão entediado desde que
parei de navegar. Além disso, vocês destruíram minha casa… E, se não
concordarem, vão a nado…
E Petrus, contra a vontade de Malthus, não teve como negar seu
pedido.
— Ok. Se sobrevivermos, você fará parte da família.
E, ASSIM, foram descansar. Às quatro horas da madrugada, estavam no
barco de Sombra fazendo a imprevisível travessia.
— Todos têm de remar em sincronia, e o mais rápido possível! —
ordenou Sombra.
Uma hora depois, Piradus estava ofegante. E reclamou:
— Você não rema, Sombra?
— Sou o capitão.
— Esse negócio não tá certo, não — disse ele, e de repente viu a luz da
lua se refletindo sobre um enorme animal marinho, de três toneladas,
passando a uns quinze metros do barco.
— O monstro apareceu! — disse em pânico.
Todos ficaram abalados. O monstro deu um salto e bateu com sua
enorme cauda no lago salgado, molhando todos que estavam no barco.
— Acalmem-se! Esse é pequeno perto dos verdadeiros monstros. É
apenas uma baleia jubarte.
— Não brinque conosco — disse Santorus. — Que tamanho então
terão os monstros uivantes?
E, assim, continuaram navegando. E a viagem foi tranquila. Avistaram
a margem a trezentos metros à frente e ficaram felizes. Piradus respirou
aliviado. Comentou alegremente:
— Vencemos! Felizmente a lenda não apareceu!
Quando acabou de falar isso, ouviu um uivo altíssimo, que parecia o
grito de vários lobos juntos. Seus lábios tremeram. Malthus engoliu saliva.
Santorus perguntou:
— Broncus, foi você?
— Queria ter sido…
Broncus e Santorus agarraram-se ao barco. Nátila segurou-se em
Petrus e perguntou, desesperada:
— O que foi isso?
Sombra subitamente tomou a palavra:
— Foi um prazer conhecê-los, amigos.
— Está se despedindo do grupo? — indagou novamente Nátila.
— Sabe, moça, escapei duas vezes desses monstros, mas só porque
eles já haviam se fartado de muita carne. Com esse pequeno bando, será
impossível fugir desses monstros famintos!
Eis que dois monstros saltaram para fora d’água com tanta força que
pareceu que o lago tinha explodido. Estavam a duzentos metros do barco.
Os bichos eram enormes, fantasmagóricos, e seus corpos tinham mais de
quarenta metros, pareciam o de serpentes gigantes com múltiplas
barbatanas ao longo da cauda. Tinham cabeças estranhas, como se fossem
uma mistura de urso e lobo, e uma abertura de pele parecendo a de uma
cobra naja. Tinham ainda muitos pelos que caíam sobre os olhos, como se
fossem uma cabeleira, e dentes do tamanho de um braço humano.
Os monstros uivantes saltavam e mergulhavam no lago, fazendo ondas
de cinco metros de altura que quase viraram o barco. Instinctus rolou na
embarcação. Antes de atacarem o barco, os animais marinhos começaram a
brigar entre si.
— Por que estão lutando? — indagou Petrus.
— Pelo direito à comida. Mas logo nos atacarão — afirmou Sombra,
que já havia presenciado esse ritual macabro.
— Continuem remando rapidamente — disse Petrus, que em seguida
tomou uma atitude radical: mergulhou no lago e desapareceu.
— Aonde Petrus foi? — perguntou Nátila com lágrimas nos olhos.
— Mais rápido, mais rápido! — ordenou Sombra.
Eles não sabiam se olhavam para os monstros uivantes ou se para o
lugar onde Petrus havia mergulhado. Dois minutos depois, um dos
monstros, o mais forte, ganhou a batalha e se virou para atacar o barco. Ele
nadava com a cabeça para fora e soltava grunhidos horríveis. Quando
estava a cinquenta metros do barco, todos sentiram que o fim deles era
inevitável.
— Adeus, amigos — comentou Piradus.
Instinctus rugia sem parar.
Quando o monstro estava bem próximo do barco, Petrus Logus
apareceu na frente dele. O monstro o jogou trinta metros para cima e abriu
sua imensa boca para engoli-lo vivo quando caísse. O príncipe deu uma
cambalhota no ar e, quando ia começar a descer, usou uma arma que estava
na sua mão. Atirou na garganta do monstro.
— Fuja, seu miserável — disse Petrus.
O monstro imediatamente grunhiu, se contorceu de dor e mergulhou.
Petrus caiu no lago. Em seguida, veio o segundo monstro e, quando estava
prestes a engoli-lo, Petrus, mesmo debaixo d’água, novamente disparou sua
arma, levando o monstro a se contorcer e uivar de dor.
Ele se contorcia e batia a cauda sobre o príncipe. Instinctus pulou no
lago para tentar salvar seu amo. Enquanto isso, o grupo continuava
remando. Momentos depois, aportaram na margem. Mas não viram o
príncipe.
— Onde está Petrus? — perguntou Nátila angustiada, mordendo os
dedos.
Malthus e Broncus saíram à procura do príncipe, margeando o lago, e,
minutos depois, Malthus viu um corpo inconsciente numa pequena praia.
Ao lado dele estava Instinctus, lambendo-o. O sábio colocou seu ouvido
direito sobre o peito de Petrus e ficou preocupadíssimo.
Nátila chegou aos prantos. Malthus deu um soco no coração de Petrus
e começou a fazer massagem cardíaca. A ansiedade de Nátila tornou-se
insuportável. Como ele não reagia, ela fazia respiração boca a boca
enquanto o mestre continuava a massagem no tórax. Segundos depois, o
príncipe vomitou água e voltou a si.
— O que aconteceu? — disse ele confuso.
— Você matou os monstros! — afirmou Nátila, feliz.
— Sua coragem e sua força são inacreditáveis — comentou Sombra.
Nesse momento, Piradus comentou:
— Mas tenho uma má notícia, Petrus.
Petrus levantou a cabeça meio atordoado.
— Santorus fez respiração boca a boca em você.
— O quê? — disse ele franzindo a testa.
— Mas sua língua era salgada — atestou Santorus, comprando a
brincadeira.
Petrus começou a cuspir sem parar. Mas Nátila o acalmou
rapidamente:
— É mentira, amor. Fui eu que fiz respiração boca a boca.
— Esse meu time ainda vai me matar — disse, abrindo um sorriso. E
completou seu pensamento: — Tive medo de te perder.
— Eu também. — E se beijaram novamente.
Os amigos de Petrus viraram o rosto…
Em seguida, o príncipe se levantou e foi conduzido apoiado por eles.
Logo que ficaram a sós, Malthus indagou:
— Onde esteve?
— Estive no Pentágono.
— Onde? — perguntou Malthus, sem entender nada.
— Um minuto aqui, um dia lá. Pela primeira vez viajei para o século
XXI, no ano de 2062.
— 2062?
— Sim, estive no centro de controle do exército mais poderoso do
mundo, o dos Estados Unidos da América, e procurei por uma arma letal —
falou convictamente Petrus.
— E que arma era essa?
— Uma arma a laser portátil. Mas não sei onde ela está. É capaz de
destruir um exército. Ela pode ser útil para nós no Vale dos Escravos, não
acha? — indagou seriamente Petrus.
Malthus ficou muito preocupado, em destaque porque Petrus, se
tivesse a posse dela, se desviaria completamente de sua missão, iria atrás do
trono de Cosmus. Na tentativa de evitar que isso acontecesse, comentou:
— As armas atacam os sintomas, mas não solucionam os problemas;
extirpam um câncer, mas não matam suas raízes. Se usá-la uma vez, não
terá mais volta. Ficará viciado.
Petrus concordou por ora, mas, quando todos estavam distraídos, ele e
Instinctus saíram à procura do artefato. Encontraram-no no meio dos
arbustos na beira do lago. Petrus pegou a poderosíssima arma e observou
seu brilho. Foi imediatamente atraído por ela, sentindo que ela se
transformara em uma serpente, pouco a pouco se enrolando em seus braços.
Recuperando-se dessa visão, Petrus fechou os olhos com força e atirou a
arma no lago. Nesse momento, Nátila apareceu correndo e veio abraçá-lo.
PETRUS LOGUS era um grande herói, mas rejeitava essa condição. Queria
viver uma vida simples e, se possível, anônima, mas não conseguia fugir de
si mesmo. Distante dali, o misterioso Conselho do Império, que vigiava
passo a passo os comportamentos de Petrus, tomou uma atitude muito
perigosa. Opus, o líder cruel, comentou:
— Nátila de fato tem de ser eliminada. Ela desencoraja a missão de
Petrus. Mas como desejaria sentir as palavras dele, “tive medo de te
perder”. — Em seguida, ordenou a dois chefes militares que estavam no
conselho: — Recuperem aquela arma.
Posteriormente proferiu algumas palavras saturadas de segredos para
um dos conselheiros, que vestia um avental branco, semelhante aos que os
cientistas do século XX e XXI usavam quando trabalhavam em
laboratórios. O nome dele era Hipócrates, uma homenagem ao famoso
médico grego, considerado o pai da medicina.
— Como estão os preparativos do projeto X, Hipócrates?
Ele se levantou e, como se estivesse acessando um aparelho invisível,
clicou no ar. Subitamente, um cérebro em três dimensões e com vários
circuitos sofisticados e pontos de luz piscando apareceu na frente deles. Em
seguida, Hipócrates comentou misteriosamente.
— O cérebro de Petrus em breve estará pronto.
Todos os conselheiros aplaudiram demoradamente. Em seguida,
exaltaram Opus.
— Glória ao deus Opus! Bendito seja o projeto X.
Até os guardas que estavam fortemente armados na sala do conselho
proferiram em coro as mesmas palavras.
16
Libertando os primeiros escravos
Ogrupo de Petrus viu uma trilha e começou a caminhar, pois os cavalos
haviam ficado do outro lado do lago. Passaram por riachos, comeram frutas
pelo caminho, descansaram por dez minutos. Ansioso por chegar ao Vale
dos Escravos, Petrus os estimulava a seguir viagem. No final do dia, quando
o sol estava se pondo, encontraram uma estrada.
— Petrus, não estou aguentando mais andar. O terreno é muito
irregular. Minhas pernas estão trêmulas — disse Nátila, limpando o suor do
rosto; e, aliviada, completou: — Ainda bem que encontramos uma estrada.
— Mas, cuidado, a estrada é menos acidentada fisicamente, mas pode
ser mais acidentada militarmente.
Começaram a caminhar por ela. Sombra, olhando para o horizonte e
fungando, pois, como mutante, tinha um olfato aguçado, advertiu:
— O Vale dos Escravos não fica longe daqui. Petrus tem razão,
encontraremos muitos guardas se seguirmos por esta estrada batida.
Logo que falou essas palavras, ouviram sons de pessoas se
aproximando. Era uma escolta.
O grupo de Petrus se escondeu entre as árvores e os arbustos. A escolta
se aproximou lentamente, até que ficou claro o que conduziam. Traziam
prisioneiros para nutrir a força de trabalho escravo do vale. Não podia haver
uma imagem mais angustiante.
— Estão escoltando mais escravos — afirmou Petrus em voz baixa.
Mas não eram apenas escravos adultos e do sexo masculino. Todos
ficaram com o coração cortado com o que viram. Trinta soldados com
chicote nas mãos conduziam três carroças-gaiolas lotadas de crianças entre
sete e quinze anos e duas lotadas de mulheres. Além disso, vinte homens
acorrentados andavam a pé, quase não aguentando carregar seu próprio
corpo. E para andar mais rápido recebiam chibatadas.
As crianças e os adolescentes tinham um semblante muito triste, mal
começavam a vida e já eram vendidos como escravos. Não dialogavam uns
com os outros pelo medo dos soldados. A maioria daquelas mulheres que
estavam enjauladas eram mães. Suas lágrimas vertiam sobre o solo a cada
passo dos animais. Tiraram-lhes tudo: seus maridos, sua casa, sua dignidade
e, o mais insuportável, seus filhos. A dor dramática e indescritível sentida
pelos escravos negros nos séculos XVI a XIX voltara a toda carga no século
XXIII, um século depois da era do aquecimento global.
Nátila ficou indignada. Seus olhos também derramaram lágrimas; já
sofrera muito com os líderes do Reino de Cosmus. Olhou para Petrus
tentando provocá-lo. Disse-lhe:
— Que violência, meu Deus! Que falta de humanidade. Aprisionaram
famílias inteiras como animais. Haja!
Malthus lhes aconselhou:
— Contenha sua ansiedade, príncipe. Se agir agora, perderá a
oportunidade de libertar o vale.
— Eu sei — concordou Petrus, usando a razão.
— Não sabemos se estaremos vivos amanhã, vamos libertar estes! —
disse indignada Nátila, usando a emoção.
Petrus agitou-se dentro de si, enquanto Instinctus levantou-se inquieto.
— Conheço um pouco esse inferno. Se eu intervier agora, em pouco
tempo haverá inúmeros soldados à nossa procura — comentou o príncipe.
Mas Nátila simplesmente não os ouviu. Começou a ir ao encontro dos
escravos. Todos ficaram pasmados com a coragem dela. Petrus rapidamente
a segurou pelo braço.
— Até ajudar os outros exige estratégias. Devemos controlar nossa
ansiedade, Nátila!
Ela foi clara e inteligente.
— Existe uma ansiedade saudável, aquela que nutre a indignação e nos
leva à ação, e outra doentia, que paralisa a emoção e nos leva à omissão.
Qual delas te controla? — indagou ela para o homem que a amava.
Petrus pegou a mão direita dela e a apertou contra seu peito,
agradecendo pelo apoio.
— A dor das pessoas pede a ação — disse Petrus.
Nesse momento ouviram um chicote retalhar as costas de um dos
homens de idade mais avançada, que tinha caído ao chão. Mas ele não
conseguia se levantar nem com a chibatada. O líder da escolta disse:
— Solte este miserável e mate-o. Ele não servirá mesmo como
escravo.
Uma criança de dez anos gritou diversas vezes:
— Vovô! Vovô! Levante-se!
Os soldados davam risada do menino. Sem demora, Petrus foi ao
encontro dos soldados. Mas fez sinal para que seu grupo ainda não
aparecesse. Com sua voz poderosa, bradou:
— Covardes! Covardes!
Os soldados rodopiaram seus cavalos em direção ao insolente. Alguns
cavalos relincharam, querendo atropelar Petrus. Logo os soldados
galoparam até ele com espadas na mão. E, em vez de se intimidar, Petrus,
como sempre, usou as palavras antes de agir.
— Guardas que usam a força contra os frágeis são predadores, e não
soldados.
— Quem é você, seu suicida? — perguntou o líder, bufando de raiva.
Nunca alguém o desafiara tanto.
— Sou o homem que te ordena a render-se e levantar o prisioneiro
caído ao chão.
Os guardas deram risada. Uns diziam para os outros:
— Quem é esse louco?
— Matem-no com múltiplos golpes diante dos escravos! — ordenou o
líder.
Os escravos ficaram impressionados com a ousadia de seu defensor.
Acharam que ele não duraria mais do que alguns segundos. Petrus levou os
primeiros quatro combatentes ao chão e feriu suas coxas e seus ombros. O
líder ficou assustado. Depois, Petrus deu um salto e pulou sobre o dorso de
um dos cavalos e feriu seu cavaleiro e os três mais próximos. O cavalo,
assustado, saiu pulando e se obrigou a dar uma pirueta, mas caiu de pé
ereto.
Os garotos, que estavam quietos, estamparam um sorriso no rosto e
aplaudiram Petrus. Em seguida, este curvou o corpo como um samurai,
colocou sua perna direita para a frente, fletiu a esquerda e abaixou a cabeça
para iniciar um novo combate. Os guardas ficaram assombrados com a
agilidade do estranho. Desceram de seus animais para fazer um combate em
terra, corpo a corpo. Amedrontado, um dos soldados disse para o líder da
escolta:
— É ele?
— Ele quem?
— O fantasma de Cosmus, Petrus.
— É apenas uma lenda. Matem-no — disse o líder, dando um passo
para trás.
Petrus, em menos de um minuto, deixou mais sete fora de combate.
Em seguida, usou punhos e pés para deixar mais três desmaiados. Outros
seis, soltando um grito de guerra, o enfrentaram e foram também feridos na
coxa e nos ombros. Sobraram seis soldados, incluindo o líder. Desesperado,
ele indagou:
— Quem é você?
Petrus não respondeu. O leão era a sua assinatura. Instinctus apareceu
e se colocou ao seu lado, rugindo poderosamente. O líder caiu para trás.
— Não é possível! Você existe.
Nesse momento, os amigos de Petrus saíram de trás dos arbustos. Em
seguida, o príncipe olhou bem nos olhos dele e ordenou com autoridade:
— Deponha as armas.
Ele o fez. Em seguida, Petrus deu outra ordem:
— Levante-se e ajude o homem que está caído ao solo.
O líder hesitou por instantes, mas Instinctus o encorajou, rugindo para
ele, ameaçando devorá-lo. Trêmulo, ele foi e o homem ajudou. Ordenou
que os demais soldados libertassem todos os escravos. Em seguida, deu um
ultimato:
— Peça desculpas a todas essas crianças e pais escravizados.
E ele mais uma vez foi pressionado a fazer o que Petrus pediu:
— Peço desculpas!
— Um homem que só obedece ordens não é um ser humano, é um
animal impensante — falou Nátila, abraçando algumas crianças, as
primeiras a serem soltas.
Depois soltaram os prisioneiros. Foi comovente ver os filhos correndo
para os braços de seus pais e suas mães. Eles se abraçavam e choravam. O
menino abraçava seu avô e o beijava.
Em seguida, Petrus falou para seus amigos:
— Tirem a farda dos soldados e os coloquem nas gaiolas e as
tranquem. Deixem apenas o líder solto.
— Não vai matá-los? — questionou Sombra. — Esses assassinos
mataram muitas pessoas — comentou com estranheza.
— Se quiser ser parte do meu grupo, as regras são minhas. Procure
nunca matar, apenas tirar de combate! — disse Petrus com convicção.
— Eles darão com a língua nos dentes.
— Já disse: as regras são minhas, Sombra.
— Um está morto. Caiu sobre sua própria espada — afirmou Broncus.
Petrus fechou os olhos e respirou profundamente, como se estivesse
condoído por ele. Imaginou que, embora fosse um fantoche, deveria ter
pais, filhos, família. Pediu desculpas em silêncio.
Depois de trancá-los, Petrus pegou sua espada e a encostou na garganta
do chefe da guarda que ainda estava livre. Ele suplicou por sua vida:
— Não me mate, príncipe… Tenho esposa e filhos.
— Qual seu nome?
— Salus.
— Eu amo quem tem medo da morte. Por que os que não têm já estão
mortos — afirmou Petrus, e fez uma proposta: — Pouparei sua vida, Salus,
mas tem uma contrapartida. Lutar pela minha causa. Abrir caminho para
nós no Vale dos Escravos.
— Como assim?
— Você estará ao meu lado, nos conduzindo para dentro do Vale dos
Escravos. E os soldados nas gaiolas serão a nossa mercadoria.
— Vão me matar! E, além disso, como posso ser infiel aos meus
homens?
— Você já está morto. Além disso, já tem sido infiel à humanidade.
Não morra com esse peso em sua consciência. A escolha é sua.
Depois de um momento de reflexão, o chefe da guarda disse:
— Irei com vocês.
Em seguida, os pais e filhos disseram:
— Queremos lutar com você, Petrus.
Houve um silêncio absoluto. Mas Petrus disse:
— Vocês já sofreram muito. Cuidem de suas famílias, seus campos,
suas vilas. Vão, procurem se esconder e não digam nada sobre o que viram
aqui. O silêncio os protegerá.
Mas não conseguiam se calar. Por onde passavam iam contando a
história do príncipe que abateu e humilhou uma escolta de soldados.
Falavam de sua cicatriz, seu leão e seu grupo. Sob o luar da esperança, as
pessoas sentavam ao redor das fogueiras e davam asas à sua imaginação.
Sonhavam com um reino constituído de pessoas livres. Uns diziam que
Petrus tinha o poder de voar, outros, ainda, que ele não morria.
***
O PRÍNCIPE e seu grupo montaram nos cavalos dos guardas. Os cavalos que
sobraram foram dados aos escravos libertos. E assim foram para o vale.
Petrus ordenou que Instinctus fosse discreto e os seguisse de longe.
— É melhor que a moça prenda seus cabelos. Os guardas desconfiarão
de uma mulher na escolta — disse Salus.
E assim foi feito. Nátila tentou aparentar ser um homem; além de
prender os cabelos, tirou seu lenço azul do pescoço e colocou um dos
chapéus dos soldados.
No caminho encontraram várias barreiras. Em todas elas o grupo era
inspecionado por guardas mal-encarados. Alguns pareciam ter raiva da
vida, outros do lugar, outros, ainda, do reino. Trabalhavam num ambiente
que odiavam. Salus sempre colaborava, dando sua senha. Os guardas que
estavam nas gaiolas, ao serem inspecionados, diziam baixinho para quem os
conferia:
— Somos soldados. Eles nos prenderam.
Petrus, sabendo da estratégia deles, dizia:
— É incrível como os escravos fazem tudo para escapar.
— Até fingem ser soldados — disse um dos inspecionadores.
Desse modo, passavam por todas as barreiras. Todavia, na última
delas, onde havia vinte guardas inspecionando, um deles percebeu algo
estranho, reconhecendo alguém dentro da gaiola. Os guardas
desembainharam suas espadas. Petrus se preparou para o combate.
Mas Salus perguntou ao chefe da inspeção:
— Do que duvida, guarda?
— Parece que conheço um dos escravos.
— Escravos são todos parecidos uns com os outros — afirmou Petrus.
E, assim, conseguiram passar pela última barreira. Os guardas que
estavam nas gaiolas olharam para seu chefe e disseram baixinho:
— Traidor.
À medida que desciam o Vale dos Escravos, ficaram assombrados com
as imagens. Viram milhares de pessoas trabalhando como num formigueiro.
Algumas acorrentadas pelo pescoço, outras pelos pés. O estalido dos
chicotes ecoava pelo imenso vale. Havia mutantes fortíssimos empurrando
pedras sobre troncos roliços, crianças empurravam carrinhos cheios de
minérios, idosos lapidavam pedras, mulheres magras levavam em baldes
sobre a cabeça um tipo de terra rara extraído de minas profundas.
— Este inferno é muito mais horrível do que imaginei — comentou
Malthus.
— Os que moram nos palácios vivem numa ilha, não imaginam o que
é o esgoto de Cosmus. Tenho vergonha de ser filho de Apolo.
— Meu Deus, como o ser humano pode praticar tanta maldade? —
questionou Nátila.
Meia hora depois, entregaram a mercadoria num imenso pátio. Petrus
disse ao oficial que recebia a carga:
— Esses escravos são soldados rebeldes que atacaram membros da
corte de Cosmus.
— Temos escravos semelhantes a esses — afirmou o oficial.
Em seguida, saíram rapidamente do lugar. Foram se reunir numa
taverna onde os funcionários do vale bebiam e comiam. Salus comentou:
— Eu os trouxe até aqui, seu trato é agora me libertar.
— Esse cara vai nos denunciar — falou Broncus categoricamente.
— Se deixarmos que saia vivo daqui, estaremos assinando nossa
sentença de morte — afirmou Sombra.
— Não os denunciarei. Confiem em mim.
— Por que deveríamos confiar em você? — falou Petrus.
— Porque vim meditando sobre o que vi. Seus comportamentos me
fizeram refletir sobre meus erros. Causei muito mal. Feri a muitos.
— Isso basta.
— Como basta? — perguntou Piradus. — Esse cara pode estar fazendo
um teatro. Disso, eu entendo.
— Acho que você é muito romântico. Ainda crê no ser humano —
disse Santorus.
— Mate-o — afirmou Sombra sem meias palavras.
Nátila ficou desesperada. Segurou nos braços do príncipe.
— Vocês viram que tirei de combate toda a escolta. Viram ainda que
derrotei os monstros uivantes. Sou eu frágil e ingênuo? Fizemos um trato,
ele nos ajudou com a promessa de que o libertaria. Se eu o matar, matarei
minha consciência. Quem vence sem riscos vence sem glórias, Sombra.
— Desculpe, príncipe — disseram.
E se despediram de Salus. Mas este disse:
— Espere, príncipe. Suas palavras me tocaram profundamente.
Fizeram-me crer, pelo menos um pouco, no ser humano. Eu o seguirei.
TODOS FICARAM surpresos com a reação de Salus. À noite, foram dormir
entre os arbustos. Petrus demorou para pegar no sono. Malthus, percebendo
sua inquietação, perguntou:
— O que te preocupa?
— Nosso plano estratégico. Como vamos libertar esses miseráveis? Há
dezenas de milhares de prisioneiros, mas milhares de guardas também.
E, depois de longas conversas, construíram um plano. Nátila acordou.
— Que brasão é este? — indagou ao ver o desenho do brasão no peito
de Petrus. — Não conhecia esse desenho.
— É o brasão da família. Meu pai o imprimiu com chamas depois que
nos afastamos.
E, antes do sol raiar, explicaram o plano para todo o grupo. Era um
plano arriscado, mas era o único que Petrus e Malthus criam que poderia
causar uma revolução naquele inferno emocional. Sombra, Santorus e
Broncus não tiravam os olhos de Salus. Ainda não confiavam nele. Criam
que, se ele conhecesse o plano, poderia colocar tudo a perder.
O coração deles galopava como cavalos selvagens, e os pulmões
ventilavam rapidamente, como os ventos das montanhas. Eram humanos,
eram mortais cujo cérebro estava em estado de alerta máximo.
17
A revolução no Vale dos Escravos
Logo ao amanhecer, Petrus foi com seus amigos à procura do quartel-
general do Vale dos Escravos. Como o espaço era gigantesco, montaram em
seus cavalos e começaram a procurá-lo. Mas a jornada era arriscada; tinham
de ser discretos, pois havia guardas espalhados por todo lugar. Durante a
procura, mais uma vez ficaram impressionados com as condições inumanas
em que os escravizados viviam.
Passaram por uma pedreira enorme. De repente, viram fortes mutantes,
pesando quase duzentos quilos, empurrando pedras enormes, maiores que
seu peso. Também havia grupos de mutantes que puxavam grandes carroças
carregadas de pedras como se eles fossem os animais.
— Conheço essas pedras — comentou Petrus aborrecido. — São
usadas nas muralhas do palácio de Cosmus.
De repente, um dos mutantes, completamente fatigado, tombou ao
chão. O carrasco foi implacável: chicoteou suas costas uma vez, duas…
— Levante-se, seu animal.
Petrus não suportou essa injustiça. Desceu do cavalo e, quando o
carrasco ia chicotear pela terceira vez, segurou o chicote com a mão direita
antes que acertasse as costas do homem esgotado.
— Animal é você, que fere os que são diferentes — afirmou Petrus. E
deu-lhe um soco que o fez desmaiar.
Em seguida, levantou o mutante, que, assustado, colocou as mãos no
rosto, como se fosse apanhar.
— Não tenha medo. Não vou espancá-lo. Levante-se, meu amigo. — E
assim ele o apoiou.
— Desde que vim para cá, com oito anos de idade… nunca um normal
estendeu as mãos para mim, só o chicote…
— Qual é seu nome? — perguntou Petrus.
— Toskus.
O carrasco tombado ao chão recobrou a consciência e assoprou um
apito. Logo vieram guardas para socorrê-lo. Fizeram um círculo ao redor de
Petrus e seus amigos.
Em seguida, Petrus começou a colocar seu plano em ação. Logo
chegou um dos líderes do campo galopando, pois percebera uma
aglomeração inadmissível no ambiente. Eram proibidas reuniões de
qualquer tipo para prevenir motins.
Petrus tomou a frente e afirmou convictamente:
— Somos enviados diretos do Reino de Cosmus para inspecionar o
Vale dos Escravos. Não nos toque, ou serão punidos.
— Quem é você? Mostre seus documentos! — disse o líder que
montava o cavalo, desembainhando sua espada.
— Antes de mostrar meus documentos, quero saber se os guardas aqui
respeitam a família do rei Apolo, a família real.
— Sim, claro — disseram em peso.
— Então me respondam: quantos filhos o rei Apolo tem?
Ninguém respondeu. O líder tomou a frente.
— Idiotas! Não sabem que o rei tem dois filhos, Lexus e Petrus?
— E qual é o preferido do rei? — indagou Petrus.
Petrus disse isso para saber se a notícia de que ele era um rebelde tinha
chegado ao vale. Dependendo da resposta não poderia se identificar.
— Não sabemos — comentou o líder. — Mas por que nos pergunta
isso?
— Porque eu estou aqui disfarçado. Sou Petrus Logus Vikk de
Luxemburgo, o filho de Apolo, o senhor de Cosmus.
Os guardas ficaram espantados. O líder dos guardas desceu do seu
animal.
— O filho do grande rei está presente neste inferno? Que provas nos
dá o senhor da sua identidade? — disse o líder, desconfiado.
— Veja o Brasão de Cosmus em meu ombro direito. — E, baixando a
manga da camisa, Petrus revelou o símbolo de Cosmus que o pai havia
marcado em sua pele com ferro quente depois que tinham se afastado.
Ainda estavam desconfiados, mas Salus dissipou as dúvidas.
— Vejam meus documentos. Sou o chefe da escolta.
Diante disso, se convenceram, e todos se curvaram perante o príncipe.
— Leve-nos ao quartel-general — ordenou o príncipe.
E, assim, foram direto ao quartel que policiava o ambiente mais triste e
vergonhoso do Reino de Cosmus. Demoraram quinze minutos a cavalo. À
medida que de lá se aproximaram viram legiões de guardas se exercitando.
Viram, saindo dos alojamentos dos guardas, mulheres que provavelmente
eram escravas sexuais.
A paisagem tétrica foi contrastada com os jardins que começaram a
surgir próximo ao centro do comando do vale. De repente, viram uma rua
de pedra onde belas palmeiras imperiais foram rigorosamente plantadas.
Havia flores entre as palmeiras.
— Saímos do inferno para o céu — destacou Nátila.
Os portões do quartel-general eram pomposos. Dentro das muralhas se
vislumbrava um belíssimo palácio. O guarda que os acompanhava noticiou
a presença do mais ilustre representante de Cosmus a visitar aquele esgoto
social a céu aberto.
Os imensos portões se abriram, e logo os visitantes foram
recepcionados com frutas e comidas. Parecia um oásis no meio do deserto.
O palácio tinha um pátio enorme. De repente, viram um homem de cabelo
grisalho, olhar áspero e semblante sério sentado numa poltrona. Parecia um
deus. Era o general Camus, o militar todo-poderoso do imenso Vale dos
Escravos.
Havia duas dezenas de soldados de cada lado do general a postos.
Duas belas mulheres o abanavam com plumas de avestruz, para que não
sentisse calor. Na sua mão direita havia um arco e flecha. Petrus não
entendia o motivo de alguém tão poderoso estar segurando um arco e
flecha. De repente, ele olhou no horizonte do pátio e viu três homens
tombados, dos quais dois eram mutantes. O cruel general estava treinando
sua pontaria em pessoas vivas, como alguns nazistas faziam nos campos de
concentração. Havia mais cinco pessoas acorrentadas para serem soltas com
o objetivo de serem os próximos alvos.
Petrus teve um ataque de raiva, mas se controlou por alguns
momentos. Ao descerem dos cavalos, o general perguntou:
— Salve! Permita-me ver seu brasão.
Petrus mostrou-o; Camus apertou firmemente as mãos de Petrus,
depois lhe deu um abraço forte. Em seguida disse:
— A que devo a honra de que meu príncipe me visite?
Petrus ficou tão incomodado com a cena que não respondeu sua
pergunta. Mudou o assunto.
— Estava treinando sua pontaria, general?
O general levou um susto, e o clima emocional esquentou. Os amigos
de Petrus se entreolharam. Malthus achou que Petrus deveria ter se
controlado. Mas o gênio inquieto, mais uma vez, não suportou a injustiça.
— Estava — afirmou o general com arrogância. — Mas hoje não estou
no meu melhor dia.
— Seus alvos são seres humanos vivos? — falou Petrus sem meias
palavras.
O general contra-atacou:
— Não, são sub-humanos. Mas sou um homem misericordioso com
eles — disse ironicamente. — Quem consegue escapar das minhas flechas
sai do trabalho árduo do campo e vai para o trabalho de limpeza e cozinha
do palácio. Quem se ferir ou morrer vai para o túmulo. Quer tentar,
príncipe?
Petrus refletiu e disse:
— Quero.
Nátila ficou apreensiva. Piradus mordeu os lábios. Malthus ficou
tenso. Petrus pegou cinco flechas.
— Permita-me corrigi-lo — disse o general Camus. — Vejo que você
nunca foi treinado com arco e flecha. O arco se pega desse modo, príncipe;
é necessário colocar firmeza nas mãos e precisão nos olhos. É o que se
requer de um brilhante militar.
Os quarenta soldados que faziam a segurança do general deram risada.
Mas o general os repreendeu com as mãos.
Petrus disse:
— Solte os cinco de uma vez.
O general ficou surpreso. Eles foram soltos. Aqueles coitados saíram
correndo desesperadamente. Petrus apontou a flecha para eles, mas errou
longe as duas primeiras. Eles escaparam, o que levou o general a ficar
irado. Os soldados riram novamente, mas de forma mais contida.
— Deixe-me te explicar — disse Camus, impaciente, tentando tirar o
arco de Petrus, mas o príncipe o segurou firmemente.
— Saiba, general, que os fracos ferem os frágeis, mas os fortes os
protegem. Deixe-me tentar do meu jeito. — E subitamente virou-se para os
soldados que haviam rido dele e atirou uma flecha atrás da outra, numa
velocidade espantosa. Cada flecha atingiu o chapéu de um deles.
O general ficou impressionado e ao mesmo tempo abalado. Petrus se
preparava para atacar o general e rendê-lo, mas, sem que ele soubesse, o
general preparava uma grande armadilha para Petrus.
— O menino frágil que conheci nos braços da rainha Ellen mudou
muito.
— Conheceu minha mãe? — perguntou o príncipe, abalado. Tocar no
assunto de sua mãe mexia numa ferida que nunca fora cicatrizada.
— Sim, príncipe. Sei que a odeia… — falou o general Camus, mas
não se sabia se queria envergonhar Petrus ou ganhar a simpatia dele. O
príncipe reagiu fortemente às suas palavras, piorando o clima.
— Quem disse que odeio minha mãe, general?
Então o general enfiou uma lâmina no cérebro de Petrus sem piedade.
— Poderia um filho amar uma prostituta, uma mulher que traiu seu
pai, o grande e justo rei Apolo? — falou com um sorriso debochado no
rosto.
Petrus não suportou ver esse homem impuro e violento ofender sua
mãe. Numa reação impulsiva, pegou o general pelos colarinhos e o levantou
para o alto.
Imediatamente, os soldados sacaram suas espadas e se aproximaram.
Mas o general fez um sinal para que não atacassem o príncipe. Parecia
que era isso mesmo que o general queria: que Petrus perdesse o controle e
se revelasse. Petrus o questionou:
— Como um homem que tem sangue nas mãos tem coragem de julgar
minha mãe como prostituta se não conhece os fatos?
As duas mulheres da vida de Petrus, sua mãe e sua namorada Nátila,
foram tachadas de prostitutas. Nátila pegou em seus braços e pediu calma.
— Petrus… querido, vamos…
Tentando se refazer, Petrus colocou Camus no chão. Parecia que
colocara tudo a perder devido à sua ansiedade.
Em seguida, uma das chaves dos segredos da infância de Petrus foi
desvendada. O general contou algo que retalhou como lâmina o coração do
príncipe.
— Sei muito bem dos fatos, príncipe. O homem com quem sua mãe se
deitou estava sob minhas ordens. Eu mesmo o eliminei. E depois fui
encarregado por seu pai de banir a rainha Ellen. A impura chorava muito…
Petrus abaixou a cabeça, abalado. De repente, fez em seu imaginário
uma viagem a seu passado. Resgatou o momento inesquecível em que sua
mãe partiu. O pequeno Petrus gritava enquanto os homens lhe tiravam sua
mãe. Um militar de alta patente sorria na porta, enquanto os soldados
cumpriam suas ordens. O príncipe lembrou-se de seu rosto; era o general
Camus.
— Agora me lembro. Era você que sorria ao lado da porta enquanto
seus soldados faziam o serviço sujo…
— Você era uma criança. Não pode se lembrar disso.
Foi então que Petrus lhe disse com muita inteligência:
— Um ser humano esquece mil elogios, mas nunca uma humilhação.
— E o brilhante jovem Petrus Logus acrescentou: — E me lembro ainda de
que pedi para você não levar minha mãe… E, sorrindo, você me deu as
costas.
O general tremulou. Ficou sem voz. Malthus tentou controlar o
príncipe, mas não era possível. Petrus passou a mão direita em sua espada.
— Príncipe, precisamos conversar — disse Malthus.
— Não há o que conversar.
— Petrus, querido, tente se acalmar. Lembre-se de sua missão…
O general Camus tentou se esquivar de sua culpa.
— Cumpri ordens do rei Apolo e do general Brutus. E tudo o que fiz
foi sob as bênçãos de Superius, o sumo sábio.
— Sempre há um sociopata disposto a limpar o esgoto da sociedade —
afirmou Petrus muito irado, se aproximando de sua face. — E pelo que vejo
se tornou um perito neste ofício.
— Você de fato é um homem valentíssimo, príncipe — falou o general
limpando sua camisa.
Quando Camus disse a palavra “valentíssimo” para Petrus, tanto o
próprio Petrus como Malthus perceberam que a velha raposa do exército de
Cosmus sabia da fama do príncipe.
— Mas também muito ingênuo…
Nesse momento, o general Camus jogou nos olhos de Petrus um pó
que estava na sua mão direita e o levou a perder a visão imediatamente. E
ordenou aos seus soldados:
— Código zero!
Imediatamente um soldado soltou um apito, e uma leva de duzentos
homens entrou no grande pátio com espadas em punho. Petrus gemia de
dor.
— Entregue-se, ou você e todos os seus amigos morrerão! — disse aos
brados. E ordenou, também em voz alta: — Não saque sua espada! Não
banque o herói; sua fera não está aqui!
E Petrus foi imediatamente acorrentado, bem como seus amigos.
— Seu crápula! Não escapará da justiça.
— Desde que entrou neste vale, você foi identificado. Quero
agradecer, príncipe, por me trazer uma escrava sexual tão bela, sua doce
namorada — disse pegando no queixo de Petrus.
Imediatamente, Petrus, mesmo cego e acorrentado, passou uma rasteira
no general, levando-o a uma queda. Ao se levantar, ele espancou o príncipe.
Mas Petrus não se deu por vencido; golpeou os quatro soldados que o
seguravam mesmo sem vê-los, apenas pela sensibilidade ao vulto deles.
Deixou-os fora de combate. E novamente deu uma cabeçada no general,
jogando-o longe.
Mais dez homens seguravam as correntes de Petrus. O príncipe
golpeava-os um por um. Até que o general pegou Nátila e colocou a espada
no pescoço dela.
— Renda-se, ou a garota vai morrer agora!
Foi então que ele cedeu, e passaram inúmeras correntes em seu corpo.
Quando estava completamente controlado, o general comentou:
— Sua força é inacreditável, Petrus, mesmo cego. Mas seu fim
também será inacreditável. Seus amigos serão feitos escravos. E te garanto
que não durarão um mês neste inferno — disse irado. — E você, antes de
morrer, fará por três dias o trabalho mais bruto da escravidão. Servirá de
exemplo para que ninguém neste vale jamais questione minha autoridade.
Aqui sou um deus.
Ele deu gargalhadas e ainda comentou:
— Depois levarei seu corpo para seu pai… Serei glorificado como
herói de Cosmus! E quanto ao traidor que te acompanha? — disse
apontando para Salus. — Será condenado à mesma dor.
Nátila ficou no palácio, mas, antes de partirem para o trabalho forçado,
o “gênio inquieto” só teve tempo de dizer a seus amigos:
— Desculpem-me.
O plano havia falhado por causa de seu descontrole.
Piradus estava tão abalado que não sabia o que pensar ou o que dizer.
Estava tão atordoado que, mesmo chorando por dentro, tomou a frente e
perguntou:
— Seu general, não tem um servicinho melhor dentro do palácio:
secretário, cozinheiro, palhaço?
O general olhou para o descarado e disse:
— Tem.
— Desculpe, gente, quem não chora não mama.
— Limpar a fossa…
— Tô na merda.
OS TRAUMAS do passado ainda controlavam Petrus Logus. Ele ruminava
suas perdas, em destaque a perda irreparável de sua mãe. Agora o príncipe
conheceria o lado mais podre do poderoso Reino de Cosmus, ele e seus
amigos fariam parte do lixo social. Seu cérebro seria esgotado, seu corpo
seria esmagado, e, para piorar tudo, lhe fora tirada a visão temporariamente.
Estava cego e desprotegido. Mas nada fazia Petrus gemer tanto seus ossos
do que Nátila ser transformada numa escrava sexual.
18
A solitária
Petrus foi levado à força, em alguns momentos arrastado, para o lugar mais
angustiante do Vale dos Escravos. Seus pés e suas mãos estavam
acorrentados e amarrados ao arreio de um cavalo. Salus o acompanhava, e
os demais amigos foram deixados para realizar trabalhos menos pesados.
Quando chegaram até o local, o centurião, encarregado pelo general Camus
de escoltá-lo, disse para o chefe de serviço:
— Trouxemos carne fresca.
— Mas eles não são mutantes! Não durarão um dia. Quem é este? —
Apontou para Salus.
— Esse é um traidor.
— E o outro, que parece cego?
— A ordem é tratá-lo sem piedade. Dizem que é o filho que traiu o pai,
o rei Apolo.
Quando o soldado disse essas palavras, dois mutantes que estavam ao
lado de Petrus levantaram a cabeça. Já tinham ouvido falar da lenda. O
chicote cortou os mutantes.
— Abaixem a cabeça, seus animais! — ordenou o carrasco.
Mas eles não abaixaram. Não se importavam mais com a própria vida.
O carrasco ficou irado. Levantou o chicote para dar nas costas deles outra
vez, mas não chegou a dar o estalido. O príncipe, como se estivesse vendo o
invisível, pegou o chicote. Trouxe com incrível força o carrasco até seu
rosto e deu-lhe um golpe e o fez cair aos seus pés. Em seguida, colocou
rapidamente o joelho sobre o peito dele e disse:
— Covarde. Esses mutantes são mais humanos que você. — E o
socou, levando-o a perder os sentidos.
Todos ficaram impressionados com a agilidade de Petrus e com sua
capacidade de se doar por pessoas que não conhecia. Outro carrasco, mais
hábil, chicoteou rapidamente suas costas, mas, mesmo com dor, Petrus
pegou o chicote e nocauteou também esse agressor.
Em seguida, abaixou a cabeça e aquietou a mente para aguçar seus
ouvidos para perceber os movimentos dos soldados que desembainharam a
espada para assassiná-lo. Mas Petrus, de forma surpreendente, se esquivou
das lâminas. Todavia, Salus, percebendo que um soldado iria atingi-lo com
uma espada, tomou a sua frente e foi morto.
— Não desista, príncipe… Lute contra… esses miseráveis —
expressou antes de morrer.
Imediatamente, Petrus rendeu um soldado, pegou sua espada e
derrotou mais três oponentes.
— Que força é essa? — indagou o centurião, fazendo os demais
soldados se afastar. Em seguida soou o apito. Logo viriam dezenas de
soldados socorrê-los.
Com a espada nas mãos, o príncipe bradou o mais alto possível para
que o máximo de mutantes e outras pessoas escravizadas o ouvissem:
— Eu sou Petrus Logus, o filho do rei Apolo!
Muitos carrascos pararam para ouvi-lo, bem como mutantes e outros
escravos voltaram sua face para ele. E completou:
— Sou o inimigo número um de Cosmus. E estou aqui para afirmar
que mutantes são seres humanos plenos. É uma injustiça serem tratados
como escravos.
Nesse meio-tempo começaram a chegar outros soldados, que,
instigados pelo centurião, começaram lutar com Petrus. Precisavam calá-lo.
Mas ele, mesmo cego, ferido e com dificuldades, os vencia e continuava a
falar:
— Sonhe o maior de todos os sonhos: o sonho da liberdade!
Petrus colocava combustível no sonho da liberdade. Demonstrou que
as ideias eram mais fortes que as armas. Que a liberdade era um direito
fundamental de todo ser humano. Embora cego, ele via o invisível. Os
soldados estavam perplexos diante de sua coragem. Nesse momento
apareceu a tropa de choque chamada pelo apito.
— Não o mate — disse o centurião.
— Mas ele está incitando uma rebelião — disse o chefe de serviço.
— São ordens do general. Apenas tire-o de combate.
Dezenas de soldados caíram sobre ele como abelhas sobre mel. E antes
de ser vencido, ter seu pescoço acorrentado, teve tempo ainda de proclamar:
— Escravos! Divididos, a liberdade será um delírio; unidos, será real.
Vários escravos gritaram ao ouvir sua garra e determinação. Nesse
momento dezenas de chicotes começaram a cortar as costas de Petrus.
Enquanto o sangue corria dos ferimentos, os mutantes começaram a olhar
uns para os outros, como se tivessem encontrado seu herói. E foram
passando a mensagem de que um libertador havia chegado. Não tardou para
chegar aos ouvidos do general Camus o comportamento de Petrus.
— Mesmo cego ele derrotou muitos soldados — comentou o centurião
encarregado de levá-lo à escravidão. — Sua força não é humana.
O general limpou o suor do rosto e franziu a testa.
— Então, o que disseram desse jovem é verdadeiro.
— Enquanto combatia com uma das mãos, ele gritava incitando os
escravos — expressou o centurião, igualmente abalado. Nunca vira um ser
humano com sede e fome de ser livre como Petrus Logus.
O general Camus ficou preocupadíssimo.
— Há cinco vezes mais escravos do que soldados. Quem poderá
controlá-los se eles se rebelarem coletivamente? — perguntou um coronel.
— Não seja ingênuo, coronel. Não é a força física que domina o
homem, mas o velho fantasma do medo.
— Como assim? — indagou o coronel.
O general Camus era um vampiro emocional, mas, apesar disso, era
inegavelmente inteligente. Disse sem meias palavras para o coronel:
— O que domina os seres humanos não são as armas ou as correntes,
mas o medo. Se pensarem criticamente, vencerão o medo e, se vencerem o
medo, sonharão com a liberdade e, se sonharem com a liberdade, quebrarão
as correntes que os escravizam. Terão sede de ser livres. Portanto, não
precisamos de mais armas, mas de estratégias para nutrir o medo deles.
Tolerância zero! Coloque Petrus na solitária.
Petrus ficou numa solitária em que mal cabia abaixado. Era impossível
dormir. Todavia, apesar de cortarem a comunicação de Petrus com outros
escravos, em todos os alojamentos não falavam de outra coisa, senão dele.
Uns diziam:
— Um cego derrotou dez soldados.
Outros comentavam:
— Nossas preces foram ouvidas. Nosso libertador está entre nós.
E ainda outros relatavam:
— Petrus Logus, o único homem que teve a coragem de lutar contra o
tirânico Reino de Cosmus, veio nos resgatar.
Começaram a pensar e vencer o medo de ser livres e quebrar as
correntes. O imaginário daqueles miseráveis começava a nutrir sonhos
impossíveis. Muitos escravos tiveram pesadelos naquela noite.
ENQUANTO ISSO, o general Camus ordenou que Nátila estivesse em seus
aposentos. Ela foi à força. Estava de mãos desamarradas. O ditador pediu
para os soldados saírem. Ele estava sentado em sua escrivaninha. E
tentando capturar o olhar dela disse:
— Você é a plebeia que conquistou o coração do garoto de sangue
azul?
— Está enganado, general — disse ela, como sempre decidida. — Não
foi a plebeia que conquistou o sangue azul, foi o sangue azul que
conquistou a plebeia.
— Venha até aqui
Ela se recusou fortemente.
— Não percebe que gente da sua laia não tem nenhum valor na
sociedade de Cosmus?
— Sou o que sou, independente de como o império me classifica.
— Não entendi — disse o general, confuso.
— Se te falta inteligência para entender o fundamental, como poderá
entender o essencial?
O general, que sempre se achava intelectualmente superior aos seus
liderados, pela primeira vez se sentiu apequenado. E por uma mulher, pois
em seu machismo achava-as inferiores.
— Gosto de mulheres rebeldes. Como você me classifica? — disse ele
pegando em seus braços.
— Como um velho digno de compaixão — falou ela, sem medir a
consequência das suas palavras.
— Curve-se diante de mim! — ordenou aos gritos.
— Se não me curvo nem diante de um príncipe, como me curvaria a
um militar, ainda mais inumano?
Rapidamente, o general lhe deu uma bofetada com brutalidade. Nátila
caiu na cama quase atordoada. Mas ainda assim não se calou:
— Você pode escravizar meu corpo, mas jamais me encarcerará por
dentro. Eu e Petrus fazemos parte do grupo que tem mente livre…
Em seguida, Camus lhe advertiu sem meias palavras:
— Quando vir Petrus tombar sem vida e descobrir que eu sou o deus
deste inferno, suplicará para cair em meus braços. — E ordenou, raivoso:
— Saia!
***
NO OUTRO dia, após sair da solitária, Petrus começou a empurrar as pedras
com mais vigor do que os mutantes que tinham o dobro de seu peso. Sua
força causava espanto nos soldados e também nos escravos. Um mutante
chegou próximo aos seus ouvidos e lhe disse:
— Há muito tempo esperamos um líder.
— Liberdade! Essa será a senha — comentou Petrus em código.
Os carrascos ouviram o burburinho e lembraram-se de usar a
tolerância zero.
— Não conversem, vermes!
Açoitaram Petrus mais uma vez, bem como o mutante que cochichou
algo com ele. O príncipe, esperto, usou sua dor como estratégia para enviar
uma mensagem subliminar em voz alta a muitos mutantes que estavam a
pelo menos cem metros dele.
— Por que me açoitam? Acaso estou comandando uma revolução? —
gritou.
Todos se espantaram com a ousadia do príncipe. Os policiais ficaram
confusos. Estavam acostumados a disciplinar a violência física, mas não o
atrevimento intelectual. E Petrus completou aos brados:
— Quem vai ouvir a voz de um escravo?
Centenas de escravos captaram a mensagem e começaram a assimilá-
la. Não poucos deles começaram a olhar uns para os outros e dizer em voz
baixa:
— É ele…
— Sim, só pode ser…
Em seguida, Petrus voltou a empurrar pedras disciplinadamente. À
tarde, os militares que dirigiam o vale trouxeram outras novidades negativas
para o general Camus.
— General, houve somente nesta tarde dez focos de rebelião — disse
um coronel. — E só tínhamos um por mês.
— Nunca vimos os escravos tão agitados. Parecia que uma histeria
tomou conta do vale — falou o centurião.
— Por todo o vale, se fala o nome de Petrus como herói. Seu nome se
espalhou como chamas em palha seca. Sugiro que o assassinemos esta
noite! — disse um capitão, especialista em silenciar rebeliões. Mas o
general, muito experiente, fez novas e terríveis ponderações.
— Lembrem-se do que lhes disse: precisamos de estratégias para nutrir
o medo. Nunca elimine um herói antes de desconstruí-lo, caso contrário, ele
se transformará num mito. Desconstrua-o e humilhe-o e somente depois
silencie sua vida. Assim, destruiremos o herói e nutriremos o medo em seus
liderados — disse o cruel líder do Vale dos Escravos. E rapidamente deu
uma ordem: — Reúna amanhã de manhã o máximo de escravos no Campo
da Súplica.
O Campo da Súplica era um local onde a acústica permitia a um
homem falar para milhares de ouvintes. Era o ambiente onde alguns
escravos rebeldes eram torturados para servir de exemplo para estancar a
sede de liberdade dos demais escravos.
— Sua inteligência me causa espanto, meu general — afirmou o
capitão. — Vamos adestrar o cérebro desses animais domésticos.
E ASSIM fizeram. Havia mais de cem mil escravos em todo o vale. E
reuniram dez por cento da população deles, cerca de dez mil. Todos eles
serviriam de plateia no teatro a céu aberto para assistir ao show onde Petrus
tombaria como o mais frágil dos homens. Nátila estava lá pingando de suor,
completamente tensa, ao lado do majestoso general Camus.
19
Partido ao meio por cavalos
Malthus, Piradus, Santorus, Broncus e Sombra também estavam na plateia.
Todos esgotados, sujos, fragilizados e acorrentados para ver o fim de seu
amigo. Cruel e astuto, o general ordenou que pegassem dois cavalos fortes,
amarrassem uma grossa corrente em cada punho de Petrus e fixassem cada
uma em uma sela dos animais. E posicionassem os cavalos em sentido
contrário. Petrus seria partido ao meio.
O general estava a vinte metros de Petrus. Enquanto Nátila soltava
lágrimas que serpenteavam sobre seu delicado rosto, o líder do Vale dos
Escravos falou com autoridade para a imensa plateia:
— Estão vendo seu herói? — bradou o general. — Ele nada mais é do
que um escravo frágil, mortal, que fará suas súplicas a mim.
Em seguida, olhou prolongadamente para Petrus e comentou
altissonante:
— Se Petrus suplicar pela sua vida, eu o pouparei de ser esquartejado
pelos cavalos. E tem mais: para mostrar minha compaixão, se ele se
ajoelhar diante de mim, dobrarei a ração de vocês por um mês.
Não poucos escravos famintos foram ao delírio. Gritaram:
— Ajoelha! Ajoelha!
Era tudo o que o general queria ouvir.
Mas os escravos famintos de liberdade começaram a gritar, um após o
outro:
— Resista! Resista!
O general se perturbou. Foi a primeira vez que ouviu essa ousadia. O
que levou os guardas a ficarem de prontidão. Mas Petrus simplesmente se
calou. O general fez um sinal para os cavalos começarem a andar esticando
as correntes dos pulsos. Petrus começou a sentir uma dor terrível.
— Estou esperando, homem. Suplique por sua vida e se ajoelhe
imediatamente!
Petrus continuou a contrair seus músculos, ainda optando pelo silêncio.
Nátila foi ao desespero. Seus amigos colocaram angustiados as mãos na
cabeça.
— Façam esse rebelde gemer de dor. Que os cavalos o esquartejem
lentamente.
Os cavaleiros continuaram a tocar seus animais. O rosto de Petrus se
avermelhou. Ele começou a urrar de dor. O general, abaladíssimo com sua
atitude, tentou fazer alguma negociação para desconstruir o herói na mente
dos escravos. Bradou altissonante:
— Se suplicar por sua vida, deixarei seus amigos vivos! E, além disso,
darei porção dobrada por dois meses para todos os escravos!
Mas, por incrível que pareça, os escravos famintos de pão de trigo
começaram a sonhar com o pão da liberdade. Calaram-se diante dos
gemidos de Petrus. As veias e artérias do seu pescoço pareciam que iam
explodir. Os músculos do peito e dos braços estavam para ser rasgados.
Nátila e seus amigos pediam em coro:
— Suplique!
Muitos escravos, condoídos por Petrus, começaram a pedir a mesma
coisa:
— Suplique.
O general sorriu satisfeito. Mas o príncipe ainda resistia. E, antes que
fosse partido ao meio, Petrus resolveu soltar algumas palavras, embora o
fizesse com tremenda dificuldade devido à dor que sentia. Porém, em vez
de suplicar, o gênio indomável reafirmou seu nome:
— Eu sou… Petrus Logus Vikk… de Luxemburgo!
Petrus mal conseguia respirar. O general ficou impressionado. O único
homem que havia suportado a Máscara da Humilhação também era o único
que resistia ao esquartejamento pelos cavalos.
— Nunca ninguém até hoje resistiu a esse sofrimento! — gritou o líder
do vale, tão perturbado que pingava de suor. E nesse momento foi ferino: —
Desista ou não apenas será partido ao meio, mas sua namorada será escrava
sexual de todos os militares.
E, após dizer essas palavras, o general puxou Nátila para perto de si,
empurrando-a fortemente. Nátila caiu ao solo a cinco metros dele.
— Petrus, por favor, desista!
Ele ergueu os olhos, focalizou-a através do som e começou a ver a
imagem de Nátila embaçada. Sua visão começara a se recobrar. Como
Petrus não se entregara, o impiedoso general deu a ordem final:
— Acabem com esse circo! Açoitem os cavalos!
Era o fim. Petrus morreria imediatamente. Muitos escravos começaram
a soltar lágrimas. Alguns ficaram com os olhos vidrados nele, outros
colocaram as mãos sobre sua face para não enxergar seu drama final.
Imediatamente os chicotes cortaram o lombo dos fortes cavalos, que
elevaram suas patas e relincharam. Todavia, quando todos pensavam que
Petrus seria destroçado, o homem mais forte e inteligente do século XXIII
começou a fazer um esforço descomunal com seus braços. Sua força era tal
que os músculos de seus braços saltavam aos olhos. E, pouco a pouco, os
cavalos começaram a dar marcha a ré. O general e todos os militares não
acreditavam no que seus olhos contemplavam.
— Essa força não pode ser humana… — comentou o capitão que era
especialista em conter rebeliões.
Os cavalos continuavam relinchando à medida que eram chicoteados e
retrocediam. Nesse momento, temendo um motim, o general agiu com
extrema crueldade: ordenou que Petrus fosse açoitado. Após o primeiro
açoite, todos os escravos famintos de liberdade começaram a dizer o nome
do príncipe em coro, encorajando-o:
— Petrus Logus! Petrus Logus! Petrus Logus!
Mais um açoite. Nátila, chorando, olhou fixamente para ele. A cena era
de cortar o coração. Ela também resolveu bradar seu nome junto com os
escravos. Tinha de dar-lhe força nos instantes finais de sua vida…
— Petrus Logus! Petrus Logus!
Era a energia de que Petrus precisava. O príncipe lutou mais uma vez
pela vida de forma fenomenal. Bradou seu mais forte pensamento para todo
o vale ouvir. Como era difícil seu tórax relaxar e capturar grande quantidade
de ar, soletrou aos gritos e com lágrimas:
— Eu… sou… livreee…! Liberdaaadeee!
Ao declarar esse pensamento, ouviu-se o rugido poderosíssimo de um
leão no alto da colina que abalou o ambiente. Era Instinctus, furioso,
descendo a toda velocidade, querendo devorar os carrascos de Petrus.
Além disso, os escravos, ao ouvirem a senha “liberdade”, ficaram
emocionados. E, embora estivessem fracos e feridos, proclamaram com
coragem o sonho que parecia impossível.
— Liberdade! Liberdade! Liberdade!
O general começou a tremular os lábios. Os escravos surgiram de
todos os lugares. E, unidos como se fossem um só homem, começaram a
enfrentar os chicotes e as lâminas dos seus carrascos. Foi uma cena
extremamente emocionante!
Um soldado desembainhou sua espada para matar Petrus. Mas, nesse
momento, um mutante, o primeiro que ele tinha protegido no campo, o
salvou. Atacou o soldado, pegou sua espada e fendeu as correntes junto às
selas, libertando Petrus dos cavalos.
— Liberdade! Por meu filho Smart! — gritou o mutante, derramando
lágrimas.
Petrus ficou emocionadíssimo ao descobrir que o mutante era o pai do
pequeno garoto que Nátila e ele sonhavam em adotar. Todavia, um militar
se aproximou do mutante por trás e, infelizmente, o matou. Antes de
morrer, o mutante disse para Petrus:
— Obrigado… por me fazer… sonhar!
— Obrigado por me salvar. Cuidarei de seu filho como se fosse meu.
Eu prometo.
Petrus ficou com uma corrente em cada lado do braço e as usou como
uma poderosa arma. Batia nos soldados, derrubava-os, nocauteava-os.
Embora não poucos escravos fossem abatidos, o sonho pela liberdade os
tornou valentes. Os mutantes poderosos que carregaram pedras libertaram-
se do cárcere do medo e descobriram sua fenomenal força. Abatiam os
soldados com grande facilidade. Petrus lutava ao lado de Instinctus. Este,
sem matar, jogava os soldados para o ar como se fossem bolas cheias de ar.
O general Camus, temendo pela sua vida, começou a se retirar
rapidamente. Alguns militares arrastavam Nátila nessa fuga. Petrus,
percebendo sua trama, rapidamente foi atrás dele. Teve de lutar com vários
soldados antes de alcançá-lo. Quando o alcançou, logo tirou de combate os
militares que o protegiam. O general, vendo que morreria, mais uma vez
usou a sutileza. Colocou a espada na garganta de Nátila.
— É o fim desta prostituta. Aliás, parece que você só ama prostitutas.
Sombra, sem que general percebesse, veio por trás e deu-lhe uma
voadora, batendo os pés nas costas dele. Nátila caiu nos braços de Petrus.
Em seguida, o príncipe colocou a espada na garganta do general.
— Levante-se, seu monstro! — O poderoso e cruel militar se levantou.
Petrus deu-lhe mais uma ordem: — Termine essa batalha! Peça para os
soldados deporem as armas.
— Jamais. Não tenho medo de morrer.
— Mas talvez tenha medo de ser esmagado por uma fera.
Instinctus apareceu rugindo, querendo devorar o general, que mais
uma vez caiu ao solo, agora de medo. Petrus usou a mesma estratégia do
seu agressor.
— Suplique por sua vida, que eu o pouparei.
Nunca sentira tanto medo de ser devorado. Mas ainda tentou resistir,
fechou os olhos e guardou silêncio… Petrus procurou intimidá-lo:
— Instinctus, morda a sua coxa! Aperte-a devagar…
Ao dar a ordem, Petrus deu as costas. O general começou a sangrar.
Apavorado, soltou um grito:
— Aaaiiii!
— Agora a cabeça, Instinctus! — ordenou o príncipe.
O general ficou horrorizado, sua cabeça seria engolida. Os rugidos do
leão eram tão ferozes que o cérebro do general entrou em estado de alerta
máximo. Instinctus começou a salivar sobre sua face.
— Por favor! Eu suplico! Não deixe o leão me matar!
Petrus retornou e, com autoridade, deu a ordem:
— Levante-se e grite para todos os militares deporem as armas.
O general se levantou com dificuldade e pediu para um imediato que
estava no chão ferido:
— Toque a trombeta! Toque o som de recuar!
Aos poucos, os soldados foram acalmando-se, embora nenhum lado
tivesse aparentemente ganhado a batalha. Por fim, todos voltaram sua face
para o general e pararam de lutar.
— Parem de lutar… Deponham… as armas! — falou o general com
dificuldade.
A corneta tocou novamente, confirmando a decisão.
Petrus em seguida, com sua voz ainda forte e vibrante, disse para os
escravos:
— Recolham as armas dos soldados!
E os escravos arrancaram-lhes as armas.
— Porque eles também são escravos no território da sua emoção —
concluiu.
Eles bradaram o grito da vitória. Mas eis que os problemas não
previstos começaram. Um dos mutantes, que fora muito maltratado pelos
soldados, sentenciou:
— Vamos matá-los!
Petrus rapidamente interveio:
— Não! Como seu líder, eu lhes digo não!
— Como não? — questionou outro escravo, agora não mutante. —
Eles mataram nossas esposas e filhos. Temos de pagar com a mesma
moeda.
— Se usarmos a mesma moeda, teremos a mesma dívida, nos
tornaremos iguais a eles. Eu sou Petrus Logus, a pedra do conhecimento.
Todos devemos ser pedra do conhecimento e não uma pedra bruta. Todos
devemos reconhecer que a maior vingança contra um inimigo é perdoá-lo.
A humanidade se destruiu em toda a história pelo uso da violência.
— Mas perdão e tolerância não existem em Cosmus — disse outro
mutante.
— Agora existem. A nova filosofia do Reino de Cosmus é: os fracos
usam a violência, os fortes usam a inteligência — disse aos brados.
O general deu uma gargalhada fantasmagórica. Era um homem que
tinha sangue nas mãos e na mente. Matara ele mesmo mais de mil homens.
Todavia, as palavras de Petrus Logus provocaram um silêncio geral.
Não se ouvia nem uma mosca além do general, que logo se perturbou com o
silêncio da imensa plateia de escravos e soldados.
As ideias de Petrus eram revolucionárias demais, e ainda mais por
virem de alguém fortíssimo. Estavam todos atônitos. Mas, de repente,
alguns escravos começaram a aplaudir o príncipe. E, pouco a pouco,
milhares de pessoas fizeram a mesma coisa, o que levou a um choro
coletivo. Não poucos soldados também choraram. E Petrus, agora com a
vista melhor, observou-os prolongadamente e concluiu:
— Esses soldados também são escravos.
— Mas eles não têm algemas! — comentou outro escravo que estava
ao lado de Piradus.
— Enganam-se. As algemas da emoção são invisíveis, mas não menos
poderosas do que as de ferro. — Depois completou: — Só serão punidos os
que davam as ordens, os líderes. Prendam todos os centuriões, os capitães,
os coronéis no presídio mais fechado deste inferno social. Levem o general
conosco para o palácio central. O resto está livre. Partam agora ou
morrerão.
— Liberdade! Liberdade! — bradaram os soldados em agradecimento.
No fundo, todos eram vigiados uns pelos outros dia e noite. Qualquer
soldado que tentasse desertar era morto sem julgamento.
DEPOIS DISSO, Petrus caminhou junto com seus amigos até o centro do
governo do Vale dos Escravos. Todavia, durante o trajeto começou a soltar
sangue pela boca e pelo nariz devido ao tremendo esforço que fizera.
— Petrus, querido, você está jorrando sangue.
O príncipe teve vertigem, precisou ser carregado numa maca
improvisada feita de tábua por dois fortes mutantes. Foi levado rapidamente
aos aposentos do general. O general e alguns dos seus principais assessores,
vendo o estado de Petrus, torciam para que o príncipe morresse. Uma
dezena de mutantes e outros escravos fazia a escolta dele e do carrasco do
vale.
Quando chegaram no palácio para descansar, Nátila tentou motivar o
homem que amava. Disse-lhe:
— Anime-se, Petrus, tenho orgulho de você! Agora os escravos estão
livres.
— Não, Nátila, estar livre não quer dizer ser livre — comentou Petrus,
sangrando e ofegante.
— Como assim?
Malthus afirmou com a cabeça em plena sintonia com Petrus. E foi ele
quem lhe explicou:
— Os escravos, se não aprenderem ferramentas de gestão da emoção
para tratar suas feridas mentais, não saberão se colocar no lugar dos outros
e ter generosidade. A consequência? Poderão tornar-se ditadores tão cruéis
como os líderes que os escravizavam.
Todos ficaram assombrados com essa conclusão, inclusive os mutantes
que policiavam o general Camus. Após ouvir as palavras de Malthus, o
príncipe se recolheu nos aposentos.
— Deixe-me a sós, querida — pediu para Nátila.
— Mas você está pálido, e continua sangrando…
— Por favor, deixe-me a sós. Vou ficar bem.
Na realidade, Petrus estava morrendo, tendo hemorragia interna. Seu
coração batia cada vez mais fraco. Logo que ela saiu, ele fez os gestos que
sempre fazia para seu cérebro abrir o Portal do Tempo. Viajou para o final
do século XX. Precisava estar urgente no pronto-socorro de um hospital.
PARALELAMENTE A esses acontecimentos, mais uma vez estava reunido o
Conselho do Império. Todavia, eles perderam a conexão por seis horas. Não
sabiam que Petrus havia libertado o Vale dos Escravos. Aos gritos, Opus
comentou:
— Perdemos a comunicação por seis horas com Petrus. O que
aconteceu com nossa rede de satélites?
— Não sei — disse o especialista do Conselho.
— “Não sei” não é resposta, Rômulus. Será condenado ao cárcere do
silêncio absoluto. — Era uma forma de esses estranhos seres falarem sobre
a morte.
— Não, Opus. Há quase um século eu o sirvo.
— Servia. Não serve mais.
Opus era de uma frieza incalculável, raramente voltava atrás em suas
decisões.
Era estranho que Rômulus dissesse que servia a Opus há um século.
Não dava para ver suas cicatrizes do tempo. Não se sabia se o Conselho do
Império encontrara a fórmula da eterna juventude. Desconhecia-se a
verdadeira identidade desses implacáveis personagens que vigiavam passo a
passo os passos e a evolução do cérebro de Petrus…
E de repente um militar do Conselho levantou-se de sua poltrona e
argumentou:
— Uma ordem sua, grandioso Opus, e varreremos da face da Terra o
Vale dos Escravos, com todos eles.
— Não! Não podemos eliminar esse vale. Poderíamos contaminar as
terras que têm minerais raros — disse o supremo líder.
— Mas Petrus está se fortalecendo demais. A criatura pode se voltar
contra… — disse outro conselheiro, sem completar a frase.
— Ele está ficando incontrolável — afirmou outro.
De repente, tocou uma música belíssima. A “Quinta sinfonia”, de
Beethoven, encheu toda a sala do Conselho do Império. Opus começou a
mexer com as mãos como se estivesse regendo uma orquestra. Em seguida,
bradou fortemente:
— Eu queria sentir essa música! — Depois se controlou e concluiu: —
Petrus Logus, meu filho, é apenas um mortal. Ele precisa expandir suas
habilidades emocionais para executarmos o maior projeto que essa terra já
conheceu: o projeto X.
— O cérebro de Petrus está se desenvolvendo maravilhosamente bem.
Mas ele está sangrando. Pode morrer — comentou o cientista Hipócrates.
— Não! — disseram todos os conselheiros em peso e de pé.
— Esperem… Mas ele está viajando para o passado. Talvez esteja se
tratando.
— É no caos que Petrus aciona o Portal do Tempo! Mas o risco de
perdê-lo é grande. Teríamos que começar tudo de novo — assegurou Opus.
DEZ MINUTOS depois, Petrus saiu do seu quarto renovado. Nem parecia o
mesmo que estava abatido, descorado e sangrando. Reuniu-se com seus
amigos e estabeleceu líderes dos mutantes e de outras raças.
— Governos tirânicos que são simplesmente desmontados podem ser
sucedidos por outros governos autoritários. Liberdade deve ser mais que um
sonho, deve ser um projeto de vida.
— O que devemos fazer? — disse um homem forte de cabelos
grisalhos.
— Dia e noite lembrem-se de que só é digno do poder quem é
desprendido dele, quem o usa para servir a sociedade — falou com
sabedoria o príncipe.
Nátila olhou para o general Camus, que estava acorrentado, e disse:
— Você sempre foi indigno do poder, general. O poder infecta,
controla e apequena quem o ama, tornando-o um falso deus. Cedo ou tarde,
os deuses caem diante da força e do amor de um povo sofrido.
Houve um silêncio profundo depois das palavras de Nátila. Em
seguida, um mutante perguntou:
— E o que fazemos com o carrasco do general Camus?
— Leve-o junto com seus líderes para o campo de lama… — disse
Petrus, e acrescentou: — Deixe-os um mês fazendo os serviços que vocês
faziam e comendo a ração que vocês comiam. Mas não os assassinem,
posteriormente os conduzam para a prisão dos mutantes e o julguem com
retidão.
Ao ouvir isso, o general pegou numa reação súbita a espada de Piradus
e atacou Petrus, ferindo-o no ombro. Malthus, com sua habilidade,
combateu-o. Enfiou a espada em seu abdome. Petrus, mesmo ferido, foi
socorrer o traidor. O general, prestes a morrer, revelou mais uma crueldade
que enfiou uma lâmina na alma de Petrus.
— Sua mãe gemia de saudade de você enquanto estava no cativeiro.
— Para onde a levou? Diga-me, aonde a levou? — indagou pegando
em seus ombros.
— Foi… enterrada na cordilheira…
O líder dos “fantasmas loucos” havia perturbado a mente de Petrus
Logus discorrendo sobre a “cordilheira”. Agora o militar mais cruel do
Reino de Cosmus cita novamente a “cordilheira”. Petrus ficou atordoado ao
pensar que mentiram para ele durante toda a infância e juventude sobre o
destino de sua mãe.
— O que é essa cordilheira? — perguntou ansioso.
Em vez de responder, o general fez um comentário extremamente
sério:
— Você será… também será enterrado lá…
— Onde fica essa cordilheira? — perguntou Petrus chacoalhando os
ombros de Camus.
Mas o general sucumbiu. Petrus começou a ter a convicção de que esse
local misterioso não era um delírio, mas real. Todavia, sua localização e seu
propósito pareciam uma caixa de segredos. O “gênio ansioso” não
imaginava que em seu interior se desenhava o plano mais diabólico contra a
humanidade… Nem muito menos passava por sua cabeça que ele fazia
parte desse plano.
20
O dramático retorno ao Reino de Cosmus
Depois de causar uma revolução no Vale dos Escravos, os libertos ecoavam
o nome de Petrus Logus por todos os lugares. Um homem segurar com a
força dos seus músculos dois grandiosos cavalos que iam dilacerá-lo era um
feito único na história. Mas o que mais os encantou foi a força da sua
inteligência. Bradavam aos quatro ventos que com derramamento mínimo
de sangue dominou mais de dez mil soldados.
Alguns passaram a dizer que o príncipe era um gênio indomável, o
único que teria chance de corrigir as gritantes injustiças do poderoso
Império de Cosmus.
Desse modo, mais uma vez seus feitos se alastraram como chama em
palha seca de cidade em cidade, de nação em nação. Penetrou no imaginário
de milhões de pessoas sofridas que eram escravas no único planeta em que
nenhum ser humano deveria ser prisioneiro: no planeta emoção. A coragem
de Nátila também se propagava intensamente no reino e começava a libertar
as mulheres do cárcere do medo imposto pelo machismo daquele tempo.
Na saída do Vale dos Escravos, Petrus olhou o horizonte como se
tivesse chegado o momento de mudar radicalmente suas rotas. Sentiu que
precisava fazer uma jornada que todo ser humano deveria realizar ao longo
da vida: a jornada do coração. A jornada do coração é ouvir o grito da
emoção, é deixar de ser uma máquina e seguir o caminho dos sonhos, ainda
que seja ilógico, arriscado ou que os outros não compreendam. Não dava
mais para ser um fugitivo, era preciso enfrentar seus fantasmas, seus medos,
dar meia-volta e partir para o Reino de Cosmus.
Malthus, o sábio, percebeu sua intenção perigosíssima e ficou tenso.
Lembrou-se dos incríveis momentos em que educou Petrus desde a sua
infância. Fez o gesto que sempre fazia quando lhe dava ensinamentos.
O mestre abriu a palma da mão direita e elevou-a na altura do coração
de Petrus, e este também, recordando o passado, abriu a palma da mão
direita e colocou-a na direção do coração de Malthus. As palmas abertas se
tocaram, indicando que professor e aluno estavam conectados. Malthus
cumprimentou Petrus com a saudação de uma notável tribo africana que
existia muito antes da guerra nuclear que devastou a humanidade:
— Sawabona.
O mestre, com esse cumprimento, queria dizer “eu te respeito e te
valorizo, abra sua mente para aprender”. E Petrus, relembrando esse sinal,
respondeu:
— Shikoba.
Com essa resposta, Petrus queria dizer “então eu existo para você, sou
seu aprendiz”. Desse modo, mestre e aluno abriam suas mentes para a troca
de experiências. Depois de recordarem esses gestos, Malthus suplicou para
seu aluno:
— Petrus Logus, te ensinei a vida toda a fazer escolhas inteligentes,
agora me ouça: por amor a ti, a Nátila e a nós, seus amigos, é melhor nos
distanciarmos o máximo possível do Reino de Cosmus e dos tiranos que lá
habitam.
O príncipe olhou bem nos olhos de Malthus e lhe disse:
— Querido mestre, você me educou para ter uma mente livre, para
enfrentar os vampiros que estão nos porões da minha mente e que me
assombram e sugam minha coragem. Minha consciência me pede para
enfrentar meu pai e suas imensas injustiças.
— Mas isso é suicídio! Como enfrentará o maior exército da Terra?
Com uma espada e um leão? Você, Petrus Logus, tem uma mente brilhante
e é um homem fortíssimo, mas jamais se esqueça de que seu coração é de
carne. Quase foi rasgado ao meio por dois cavalos. Você morre como todo
mortal… Não faça essa loucura! Seja lógico!
— A lógica nem sempre é a escolha certa. Se nos guiássemos somente
pela lógica, descartaríamos as pessoas que amamos e nos decepcionam.
Amigos se separariam, casais se fragmentariam. Quem sobraria? Preciso
enfrentar o rei de Cosmus, tentar mudar a mente de meu pai…
— E tornar-se rei! — completou Piradus dando risada. — Essa é a
piada do ano. Vão nos assar como javalis, Petrus.
— Tô com arrepio na espinha — disse Sombra.
— Por quê, homem? — indagou Santorus.
— Como os líderes de Cosmus reagirão ao ver esse mutante lindo,
alto, esbelto? — disse Sombra dando risada de si mesmo.
Santorus engoliu em seco, estava na mesma situação. Ir para o Reino
de Cosmus de fato era loucura. Nesse momento, Nátila tentou tirar da
cabeça do seu homem a ideia suicida. Brigou com ele.
— Estou cansada de correr riscos, Petrus!
— Nátila, eu…
Mas ela o cortou e continuou:
— Você só pensa em você! Pensa que é um herói imbatível! Você é de
carne e ossos!
— Mas…
— Não tem “mas”. Quase enfartei ao ver você morrendo duas vezes
em apenas um dia. — Nátila era a única que enfrentava Petrus sem papas na
língua. Malthus aprovou-a com a cabeça. O príncipe, ao ouvir essas
palavras, se calou. E ela continuou:
— Partamos para bem longe. Vamos constituir uma família nos
campos longínquos, criar ovelhas e plantar frutas.
Todos a aplaudiram. E por fim ela concluiu:
— Se não for possível viver nos campos, vamos nos abrigar entre os
rochedos e criar cabras montanhesas. Teremos filhos.
— Eu serei o mentor desses meninos, e o Sombra e o Santorus serão as
babás deles — afirmou Piradus, levando-os a sorrir em meio ao caos.
— Babá, não. Estou fora. — Se esquivou o desajeitado Sombra, que
não tinha vocação nem para cuidar de filhotes de animais.
— Príncipe, meu amigo, ouça a Malthus e a todos nós. De alguma
forma, Superius e Terrívius querem destruir sua mente, e Lexus, seu irmão,
quer riscá-lo da terra dos viventes. E, além disso, seu pai o baniu para
sempre — ponderou Santorus.
Houve um silêncio geral. Parecia que convenceram o gênio inquieto.
Todavia, ele disse clara e convictamente:
— Fugiremos de Cosmus? É o que querem? Não haverá cama que nos
trará conforto, nem mesa que nos dará alegria. Se construirmos nossas casas
no inverno, na primavera teremos que nos mudar. Não colheremos os frutos
que plantaremos. Se fizermos nossa morada nas montanhas, cedo ou tarde
teremos que descer para comprar, negociar, trocar. Tornamo-nos grandes
demais para ser invisíveis. Libertamos o Vale dos Escravos, o Vale dos
Mutantes e outros. Nosso sucesso se tornou nossa armadilha. E sinto
muitíssimo por vocês.
Malthus sabia que Petrus tinha razão, mas mesmo assim defendeu sua
tese:
— Sim, estamos marcados para morrer, mas morreremos mais cedo se
formos para Cosmus.
— Nátila, Malthus, amigos, o que mais me perturba não é ser
perseguido pelo exército de Cosmus, mas ser perseguido pela minha
consciência.
— De novo, Petrus, perturba-se com sua consciência? — disse Nátila,
irritada.
Nesse momento, Petrus Logus disse uma das maiores pérolas do seu
pensamento:
— A violência não é causada apenas pelos tiranos, mas pelo silêncio
dos que se omitem… Nátila, há ainda inúmeros vales com pessoas
excluídas, famintas, escravizadas, como se fossem sub-raças, sub-humanos
— disse o gênio indomável. — Esses povos têm o direito de ser livres e
felizes.
Ela se calou por instantes e depois disse:
— Mas você não é o salvador do mundo.
— Não sou o salvador do mundo, mas posso tentar salvar os que estão
em meu pequeno mundo. Sou um embaixador da paz, não posso fugir do
que sou. E, se pelo menos os jovens da humanidade não fossem alienados,
revolucionaríamos a espécie humana.
— Estamos fritos — disse Piradus. — Petrus virou o jogo.
O príncipe afirmou categoricamente:
— Vou lutar pelos direitos humanos até a minha última célula. Mas
não exijo nem peço que me sigam, só espero que me compreendam…
— Nós nem nos casamos ainda e você está assinando o divórcio —
declarou Nátila derramando lágrimas…
Petrus respirou profunda e lentamente e disse com dor:
— Desculpe-me, Nátila, eu sou um sujeito complicado, difícil, eu sei e
assumo. Você questiona minha teimosia com razão e quer segurança com
mais razão ainda. Eu te amo até o inimaginável, mas você está livre para
encontrar um homem que não tenha as cicatrizes que eu tenho…
Ela ficou sem voz, não parava de chorar.
— Mas o mocinho não fica com a amada no fim da história? —
perguntou Piradus.
— O mundo pós-aquecimento global não tem mocinhos, e seus finais
são imprevisíveis. E nossa história está longe de ter um final feliz… — E,
para espanto de todos, Petrus concluiu por que tomara essa atitude: —
Tenho inimigos visíveis que me perturbam e invisíveis que me espantam.
Essa luta é só minha e de mais ninguém.
E, após dizer essas palavras, lacrimejaram também seus olhos; ele
aproximou seu cavalo do de Nátila e deu-lhe um beijo na testa
demoradamente. E se despediu com estas palavras:
— De todas as coisas pelas quais lutei e que conquistei na vida, você é
a melhor delas. Obrigado por existir. Cuide-se e seja feliz…
Em seguida, deu meia-volta e tocou seu cavalo em direção a Cosmus.
Seguiu estrada adiante sozinho. Instinctus o seguia passo a passo. A paixão
pela humanidade queimava como brasas vivas em sua emoção.
Os amigos ficaram parados, observando Petrus partir para a
autodestruição. De repente, Nátila deu um grandioso suspiro e começou a
cantar a “Canção da revolução do amor”:
Somos revolucionários
Sonhamos com um mundo livre
Onde os seres humanos são irmãos
E nossas dores são curadas
E nossas lágrimas, estancadas
E nos fartamos do pão de trigo e da alegria
Ninguém vai nos calar
Vamos dar o melhor de nós
Para a humanidade melhorar
Petrus parou de cavalgar, estava emocionado. Mas não voltou seu rosto
para ela. Ela tocou seu cavalo até ele. Ao se aproximar, olhou
prolongadamente em seus olhos e lhe disse com inteligência:
— Eu poderia gostar de alguns homens muito menos complicados que
você, mas a nenhum deles eu amaria como eu te amo. Poderia dormir um
sono tranquilo ao lado de quem me bajula, porém prefiro ter noites de
insônia a estar ao lado de quem não amo. Contudo, não o seguirei, Petrus
Logus, apenas porque te amo, mas porque sonho em mudar o mundo… Tua
causa é minha causa, tua luta é minha luta. Nem meus medos me calarão…
Malthus se aproximou e também comentou:
— É mais fácil domar o cérebro de Instinctus do que o de Petrus. Com
você, aumentam minhas chances de morrer, mas sem você aumentam muito
as minhas chances de viver sem propósito.
— A admiração é mais forte que o poder, o carisma, mais penetrante
que os riscos. Irei contigo, porque admiro meu líder — afirmou Santorus.
— E dizem ainda que eu sou o louco do bando. Ao sacrifício! —
bradou Piradus.
— Preferia os monstrinhos do lago, mas, como não tem jeito… Que
me espere, Cosmus! — afirmou o anão mais ousado e debochado da terra.
E assim todos o seguiram também. Por onde passavam eram bem
recebidos. Petrus lhes ensinava defesa pessoal, Nátila a ter higiene pessoal,
Santorus e Broncus a arte de cultivar. Malthus construía escolas e formava
professores. Piradus e Sombra construíam um circo para divertir as crianças
e adultos naqueles tempos sombrios.
Havia olheiros em todos os lugares que anotavam os passos deles e
davam a notícia para o rei Apolo.
— Teu filho abre escolas, ensina a plantar e a lutar — diziam os
informantes.
— Petrus está preparando uma revolução, eu lhe disse, meu pai —
dizia Lexus assustado.
— Ele envenena o coração desses povos para lutarem contra ti —
afirmava Terrívius.
— Precisamos ceifar esse verme da terra dos viventes! — comentou o
impiedoso general Brutus.
— Petrus não é um verme, general. Ele é sangue do meu sangue e
carne da minha carne. Não se esqueça disso — esbravejou o rei Apolo.
— Parece que não se importa que seu filho seja mais popular que você,
o soberano rei Apolo — expressou o sumo sábio Superius.
— Eu me importo! — gritou o rei. — Sei que é rebelde, sei que os
povos o admiram, mas, sendo honesto, eu me vejo nele quando tinha a sua
idade. Era o mais querido líder da Terra.
Terrívius falou em voz baixa para Superius:
— O rei está diferente. O que está acontecendo?
Lexus mordeu os lábios de raiva.
— Meu pai. Você deve me admirar, e não a meu irmão, pois sou eu
que te sirvo dia e noite!
— Penso que, às vezes, você só serve a si mesmo, Lexus — falou o rei
sem meias palavras.
— Longe de ti admirar Petrus, esse filho do demônio — expressou
Superius colocando as mãos na boca de espanto…
— Você não se surpreende com teus filhos, Superius, porque eles não
são tão inteligentes como Petrus Logus — ironizou o rei Apolo.
— Meus filhos são sábios como deuses, meu rei — afirmou o sumo
sábio.
— A boca de Petrus é afiada como uma espada, mas seu coração é de
um tolo, somente isso explica sua paixão louca por uma plebeia —
comentou Terrívius.
— Meu filho me faz lembrar o amor que eu tinha por Ellen. Mas a
vida tem acidentes imprevisíveis e curvas inesperadas. Hoje ele é meu
inimigo — disse o rei com os olhos úmidos.
— De fato, o rei Apolo está diferente — cochichou Superius para
Terrívius. E depois perguntou misteriosamente: — Será que não está mais
sob o controle dos líderes da Terra, o Conselho do Império?
Vendo o rei emocionado, o general Brutus rapidamente quis fechar a
questão.
— É melhor combater Petrus em campo aberto. Ataquemos no Vale do
Sol, a três milhas depois de descer a cadeia de montanhas. Se Petrus
escapar, ainda que seus amigos morram, ele se fortalecerá mais ainda na
mente dos povos rebeldes.
— Prenda-o, acorrente-o, encarcere-o, mas não o mate… — disse o rei
fragilizado.
— Como não? A humanidade está em perigo se estiver vivo! —
afirmou Lexus categoricamente.
E assim foi feito. O Vale do Sol era uma imensa planície com
plantação de girassóis, trigo e milho. Queriam transformá-lo num campo de
sangue. Atacar Petrus nessa área era levar vantagem militar estratégica, pois
Petrus não teria para onde fugir. Seria uma presa fácil nas garras dos
predadores de Cosmus, ansiosos para silenciar sua voz para sempre…
21
O encontro de Nátila com seu pai
Durante o retorno ao palácio de Cosmus, Petrus passou por inúmeras vilas
e cidades. Enfrentou diversos postos policiais, a maioria fugiu dele, outros o
enfrentaram, mas foram tirados de combate.
O príncipe trazia uma sacola presa do lado direito da sela e, virava e
mexia, parava para verificar se tudo estava bem, embora ninguém soubesse
seu conteúdo.
Ainda que fosse renegado pelo seu pai, em todas as cidades era
recebido como um rei. O príncipe tocava o imaginário das pessoas sofridas,
inspirando-as a sonhar com melhores dias, com o tempo de liberdade, mesa
farta e a tão desejada paz. Certa vez, ele passou por uma importante cidade
produtora de grãos chamada Esperança. O povo de Esperança tinha a
esperança só no nome, pois era tão massacrado pelo governo de Cosmus
que se sentia lixo social. Era responsável por grande parte da produção de
trigo que sustentava os celeiros do rei e dos nobres de Cosmus. Alguns
reclamavam do pesado imposto, mas recebiam como pagamento açoites,
prisões e humilhações.
Havia um comboio de dez carroças recolhendo os grãos e quinze
soldados escoltando-as. Um agricultor pai de cinco filhos, que cuidava dos
pais idosos, disse para os coletores:
— Mas, senhor, de três partes que nós produzimos levará duas para os
celeiros do rei Apolo?
Os militares foram implacáveis.
— Se vira, seu verme.
— Como sobreviveremos no inverno? Somos uma família grande.
— Como você reclamou dos impostos do rei, será açoitado e preso por
um ano — disse o capitão da escolta. E saltou do seu cavalo e lhe deu uma
chicotada.
— Por favor, poupem meu pai — implorou o filho mais velho, de doze
anos, vindo socorrer seu pai. Este também foi açoitado.
Em seguida, colocaram-no numa carroça-prisão que tinha mais três
camponeses. Os filhos mais novos apareceram chorando e suplicaram:
— Não leve nosso pai, por favor.
O pai, temendo por eles, gritava:
— Voltem para casa! Voltem!
Mas era impossível conter a dor desses meninos. Alguns deles sabiam
que muitos dos que iam presos não voltavam para casa. Eles foram
empurrados impiedosamente.
— Fome e miséria só existem para os vagabundos! — bradou um dos
soldados, dando risada junto com os demais.
De repente, apareceu uma voz poderosa que cortou o ar como o
chicote mais afiado.
— Vagabundos são vocês, que colhem o que não plantam!
— Quem disse isso? — indagou o capitão, irado, virando para trás.
— Eu! Ordeno que soltem esses homens e peçam desculpas a esses
camponeses.
— Quem é você?
— Não interessa! Apenas peça desculpas imediatamente! — disse
irado.
Os soldados sacaram suas espadas. Mas, de repente, apareceu
Instinctus rugindo por detrás deles, assustando os cavalos, levando vários
deles a empinar. Três soldados caíram. Trêmulo, o capitão disse:
— Petrus Logus!
— Sim, sou eu.
Sete soldados que nunca tinham ouvido falar em Petrus partiram para
cima dele e de seus amigos.
O capitão tentou impedi-los gritando:
— Não lutem! Não lutem!
Mas não adiantou. Facilmente foram derrotados. O capitão foi até a
carroça-prisão e soltou os camponeses. E pediu-lhes desculpas. Em seguida,
disse ao filho do rei:
— Cumpro ordens, senhor.
Petrus enviou uma mensagem para seu pai.
— Deixem as carroças e digam ao rei: o inverno está no fim, a
primavera da liberdade está chegando…
Depois de os soldados partirem, o agricultor, pai dos cinco filhos,
perguntou:
— Quem é nosso libertador?
— O homem que tem uma cicatriz no rosto e na mente…
— É você! Você existe!
O camponês e seus filhos se ajoelharam diante do príncipe. Mas ele
disse:
— Não façam isso! Todos deveriam exaltar os agricultores. Sem vocês,
nossos lábios não teriam sorriso, nossos músculos não teriam vigor, nosso
cérebro não funcionaria, a humanidade não existiria.
— Mas, senhor, nunca alguém exaltou os agricultores nessas terras.
Somos tratados como lixo social — explicou o pai de família
admiradíssimo.
Nátila ficou tão tocada com o desprezo com que eles eram tratados que
respondeu por Petrus:
— Quem despreza os que lavram a terra nunca sentiu a dor da fome.
Muito obrigada por existirem.
Sob um clima de alegria, os filhos disseram:
— Por favor, jantem conosco e repousem em nossa casa.
— Príncipe Petrus, é melhor descansarmos — sugeriu Santorus.
E assim passaram aquela noite no campo. Jantaram, dançaram e se
alegraram. Sombra contava vantagens ao redor da fogueira.
— Já lutei com dez sozinho e venci. — Mostrou com gestos como
havia sido a luta. Todos ficaram impressionados.
— Eu lutei com cem e venci — afirmou Piradus.
— Menos, Piradus, menos — disse Nátila.
— Bom, eram uns noventa e nove… E Petrus me deu uma mãozinha.
E levantando-se fez gestos de um samurai. Tentou imitar Petrus.
Colocou a perna direita e o punho direito para a frente e abaixou a cabeça e
gritou “Nhaaa!”. Infelizmente, deu um soco em Sombra, que caiu como
uma abóbora.
— Chirubilubilu, matei o Sombra de novo. — E se escondeu atrás de
Nátila.
Sombra levantou-se meio tonto e partiu para cima dele, mas Petrus o
segurou.
— Foi sem querer, Sombra! — disse o príncipe.
— Sem querer? Ele derrubou minha casa sem querer, agora me dá um
soco direto no queixo sem querer e sem me avisar! Que fria participar deste
bando.
Petrus e os amigos caíram na risada.
— Fique longe dele — falou Malthus.
— Você tem algum problema comigo, Piradus?
— Não, Sombra — disse ele ainda atrás de Nátila.
— Pois eu estou bravo com você. Amarra as calças, garoto.
Os filhos do agricultor morriam de rir dos dois.
— Os fortes perdoam, os fracos condenam. Amigos são amantes do
perdão — disse Malthus.
Diante das palavras do mestre, Piradus comentou:
— Desculpe-me, amigo. Da próxima vez, eu te ensino a se livrar dos
meus golpes mortais.
E deram-se as mãos. Os dois receberam uma salva de palmas da
pequena plateia. Eram pessoas felizes, livres, que davam risada até de seus
erros. Estavam indo ao encontro da morte, mas sua alegria era contagiante.
***
QUANDO ACORDARAM, após uma boa noite de sono, Petrus os advertiu:
— Precisamos avançar. Só vamos parar quando chegarmos à cidade de
Esperança.
— São três hora a cavalo — disse o camponês.
Um sentinela de Cosmus que espreitava todos esses acontecimentos
abriu um grande sorriso e rapidamente bateu em retirada para dar a notícia.
— QUE CIDADE LINDA! — exclamou Nátila assim que a cidade surgiu no
horizonte.
Todos ficaram impressionados com a recepção que tiveram. Por onde
passavam, as pessoas jogavam palhas de trigo e gritavam sem parar.
— Príncipe Petrus! Nátila! Sejam bem-vindos. — Nátila jamais tivera
uma recepção de princesa.
As pessoas começavam a dizer umas para as outras com intensa
euforia:
— Eis o homem que superou a Máscara da Humilhação! Eis o príncipe
que venceu a Câmara dos Loucos!
Outras pessoas comentavam enquanto eles passavam:
— O grupo que libertou o Vale dos Escravos e o Vale dos Mutantes
está pisando nas ruas da cidade de Esperança!
A cidade ficou alvoroçada. Ressurgiu depois de décadas o ânimo do
povo sofrido de Esperança. Quando Petrus e seus amigos passaram pela
praça central, foram recebidos com flores e grande entusiasmo. As crianças
e adultos os aplaudiam.
— Petrus, que imensa gentileza. Nunca fomos tão bem recebidos —
expressou Nátila.
— Ah, como é bom ser famoso — disse Piradus abrindo os braços.
— Saímos da crise. Mas fique longe, Piradus! — disse Sombra.
Mas Petrus interrompeu os passos do cavalo e comentou aos seus
amigos:
— Estou alegre, mas preocupado. Os aplausos refletem a dor deste
povo. Eles aplaudem a esperança de se aliviarem.
Quando chegaram à sede do governo da cidade, o líder, Salomon, e
seus colaboradores os aguardavam ansiosos. Logo que eles desceram dos
seus cavalos, perguntaram.
— Você é o príncipe Petrus Logus?
— Sou eu — respondeu Petrus.
— Que alegria! Que alegria! — disse Salomon olhando para o alto.
Então todos se curvaram diante dele e de seu grupo. Piradus e Sombra
gostaram.
— Enfim a fama — disse Piradus, respirando profundamente.
Mas Petrus acabou com a alegria dele.
— Não se curvem diante de homens! — disse Petrus novamente.
Os homens se ergueram sem entender por que o príncipe não aceitara
sua reverência. Salomon comentou:
— Todos os homens de Cosmus exigem que nos curvemos diante
deles. Se não o fazemos, somos punidos. Como você, sendo príncipe, não
nos faz essa exigência?
Ao que o príncipe respondeu:
— Respeitar não é se curvar, honrar não é se diminuir. Uma das
doenças que fizeram a humanidade entrar em decadência é o culto às
autoridades.
— Só é digno do poder quem sua para servir a sociedade, e não o
contrário — disse Nátila pegando na mão do príncipe. O casal virava de
cabeça para baixo as leis de Cosmus.
— Mas… mas…. Eu não compreendo… Você não é da família real, da
casta do sangue azul? — indagou um conselheiro idoso.
O príncipe olhou bem nos olhos de todos eles e lhes disse:
— Senhores! Sou da casta do sangue vermelho, minha família se
chama humanidade, e minha pátria é a Terra! Somos todos iguais!
— Faz jus à inteligência de que temos ouvido falar, Petrus Logus. Seus
músculos são fortes, mas seu cérebro é mais poderoso — afirmou Salomon
com satisfação. Finalmente encontrara o líder de seus sonhos.
E, assim, foram convidados para almoçar e passar o dia com os líderes
de Esperança. Prepararam um banquete para eles com o melhor que tinham.
Instinctus era muito bem tratado. Enquanto comiam, Nátila indagou,
surpresa:
— Sempre comem javali em suas refeições?
— Apenas no final do ano — disse Salomon. — Mas hoje é um dia
especial. Quebramos nosso jejum.
— Os militares tratam os camponeses com crueldade — disse o
príncipe.
Diante disso, o líder da cidade relatou toda a dor que sentiam:
— Temos de aumentar todos os anos a produção de grãos. Quando a
produção é pequena, somos punidos com mais impostos. Os pais de família
que escondem alguns poucos grãos para passar o inverno são mortos.
Somos assombrados dia e noite. Apesar de sermos um povo corajoso, não
sei quanto tempo duraremos… Estamos no limite, vamos nos revoltar.
Petrus ficou irado, bateu na mesa. Instinctus rugiu, reagindo à sua
ansiedade.
— Não faça isso, Salomon. Você não conhece a violência dos
monstros de Cosmus. Holodomor pode se repetir!
— Holodomor? O que é isso? — comentou Salomon preocupado.
— Também nunca ouvi falar sobre isso — observou Nátila curiosa,
pois para Petrus perder o controle algo grave se prenunciava.
Foi então que o príncipe comentou:
— Nos anos de 1931 a 1933, antes de eclodir a Segunda Guerra
Mundial, um país do Leste Europeu, a Ucrânia, teve sua população
massacrada por um sociopata chamado Stalin. Os camponeses resistiram à
dominação de Stalin, e o resultado foi dramático.
— O que aconteceu? — perguntou Salomon engolindo saliva.
— Stalin puniu coletivamente os camponeses. Confiscou os grãos,
gerando uma das maiores fomes da história. Mais de cinco milhões de
pessoas morreram. Esse episódio foi conhecido como Holodomor, ou o
Holocausto Ucraniano.
— Cinco milhões de pessoas morreram de fome? — perguntou Nátila
espantada, colocando as mãos na boca.
Petrus, com tristeza nos olhos, continuou:
— Vou poupá-los das cenas terríveis. Mas havia cadáveres pelas ruas e
pelos campos, um odor horrível. E esse fato histórico foi pouco divulgado
na humanidade. Agora, após a Terceira Guerra Mundial, a humanidade teve
o direito de recomeçar, mas está cometendo o mesmo erro com seus
camponeses — comentou o príncipe.
— Por favor, Salomon, reitero o que Petrus disse: não confronte
Cosmus! — expressou Nátila.
— Lute por nós, príncipe — disse o líder.
— Sou apenas um homem contra o poderoso exército de Cosmus, mas
prometo que eu e meus amigos faremos o melhor que pudermos.
Malthus falou com sabedoria:
— Sem esperança, o céu da mente humana não tem estrelas.
— Exato, senhor Malthus. Durante décadas não tínhamos uma luz no
fundo do túnel, pois nem túnel tínhamos. Agora temos uma pequena
fagulha no meio da escuridão.
Em seguida, Nátila discorreu entristecida sobre seu pai, que também
era camponês, e sua dificuldade para conseguir pagar as taxas do reino.
— Sei a dor que estão passando, já a vivi. Meu pai era um líder entre
os camponeses na minha região. Tentou negociar impostos mais justos, mas
Terrívius, o médico do rei, disse que ele era um possesso. — Nesse
momento, sua voz se embargou e ela acrescentou: — Aquele monstro…
arrancou-me dos braços dele, me atirou no chão… e o condenou à Câmara
dos Loucos…
Houve um momento de silêncio. Todos respeitaram a imensa dor dessa
jovem marcada pela vida desde sua infância.
Mas, para o espanto de todos, Salomon disse:
— Eu sei, Nátila. Dantus sofreu muito.
— Como sabe o nome dele? Você conheceu meu pai? — questionou
ela, perplexa.
— A história da sofrida menina que cresceu e se tornou a corajosa
namorada de Petrus é famosa entre os povos massacrados pelo rei Apolo…
— Mas… mas… — expressou Nátila admirada.
— Além disso, a história de seu pai, sua dor e sua condenação
inspiraram muitos de nós a não desistir de nossos sonhos. Seu pai é um
herói…
Petrus a abraçou afetivamente. Mas, de repente, algo extraordinário
aconteceu, uma surpresa inimaginável ocorreu. Um homem de cabelos
grisalhos surgiu atrás dela, a cerca de dez passos, e começou a cantar uma
música que ela conhecia:
— Nátila, você é a menina dos meus olhos. Ninguém morre quando se
ama. Você estará sempre viva em meu coração. Ainda que me encarcerem,
não aprisionarão meu amor por você. Ainda que me queimem, não
apagarão o que sinto por você. Você é inesquecível. Te amarei eternamente.
Nátila, ao ouvir aquela voz e aquela música, não cabia em si. Ela se
levantou em prantos e disse, ainda de costas:
— Papai! Papai! É você?
Ela virou-se e correu para abraçar seu melhor amigo.
— Minha filha, você voltou… Nátila, eu te amo.
E pai e filha, que desde a sua infância não se viam, correram e
abraçaram prolongadamente um ao outro. Todos choraram e se alegraram
com eles naquela noite especial. O pai, enxugando os olhos com as mãos,
disse para a filha:
— Em nenhum momento te esqueci, minha filha. No escuro da prisão
você era minha luz, nos meus momentos de loucura você era minha lucidez.
— Papai. Eu cantava todos os dias sua música. Eu te procurava em
meus sonhos e te desenhava em meu imaginário. Meu amor me
impulsionou a continuar vivendo, mesmo quando fui vendida como
escrava… Eu clamava no pó da existência humana “por você, meu pai, e
por Deus eu ainda serei feliz!”.
E conversaram por horas a fio. De repente, Nátila interrompeu a
conversa e, para o espanto de seu pai, lhe disse:
— Papai, tenho um filho!
— O quê? Como pode ser isso? Eu tenho um neto? Quando ele
nasceu? — disse o pai, perturbado, mas, ao mesmo tempo, alegre.
Nátila fez uma pausa, respirou lentamente e comentou:
— Ele não nasceu do meu ventre, ele é um filho do coração. Uma
criança mutante.
O pai ficou perplexo, não sabia o que dizer. Nátila então comentou:
— Espero que você compreenda, essa criança teve seus pais mortos
pelo Reino de Cosmus, eu me vi nela.
O pai deixou escapar algumas lágrimas e perguntou:
— Parabéns, minha filha! Qual o nome dele?
— Smart. Inteligente como seu nome diz. E rápido como Marco Polo
— ela respondeu. — E, se eu sair viva dos perigos que nós enfrentaremos,
Smart morará conosco. Será o primeiro de muitos filhos.
Seu Dantus agradeceu a Petrus e seus amigos por todo o bem que
tinham feito a Nátila.
— Obrigado, Petrus.
— Não precisa agradecer, seu Dantus. Eu repito para o senhor o que
disse para sua filha: de todas as coisas que eu conquistei na vida, Nátila é a
melhor delas…
Todos aplaudiram a fala de Petrus. Na terra da dor, o amor floresceu na
mais exuberante primavera. Instinctus rugiu de alegria, queria atenção.
Em seguida, Dantus perguntou sobre a mãe de Nátila. Ela resistiu em
contar, mas foi honesta.
— Ela cedeu às chantagens dos conselheiros do rei, papai.
— Como ela pôde fazer isso? — disse magoado.
— Não a culpe, papai. Teve medo de que não sobrevivêssemos.
— Eu sei do que aqueles homens são capazes…
Em seguida contou que a deixou com segurança numa pequena vila,
tão logo fora resgatada. No dia seguinte, Petrus mais uma vez interveio:
— Temos de ir. O exército de Cosmus certamente tem olheiros em
todos os lugares e logo nos atacará.
Nátila tinha de se despedir de seu Dantus. Não queria decepcioná-lo,
mas precisava partir. Quando foi lhe dar a notícia, ele estava de costas com
uma enxada, ajuntando a palha do trigo para nutrir algumas vacas. Ele
pressentiu que, assim como ela fora tirada dos braços dele um dia, ele seria
tirado dos braços dela agora. A dor da separação era cortante como a
enxada que feria a terra. Ainda que fosse importante para produzir frutos,
era-lhe difícil suportar as feridas da partida.
Em vez de proferir palavras, ela preferiu cantar um trecho da música
que ele cantou para ela:
—Papai, ninguém morre quando se ama. Ainda que me encarcerem,
não aprisionarão meu amor por você. Ainda que me queimem, não
apagarão o que sinto por você. Você é inesquecível. Te amarei
eternamente…
Ele começou a derramar lágrimas sobre o feno e a juntá-lo sem virar
para trás. Fora tão maltratado na Câmara dos Loucos que não admitia
perdê-la outra vez… Recordou os momentos em que pegava as grades de
ferro com as mãos, suplicando por liberdade. Gritava por Nátila. Agora,
virou-se, tremulou os lábios, deixou a ferramenta e enxugou os olhos. Ela
lhe disse:
— Papai, preciso ir!
Os olhares do pai e da filha novamente se cruzaram.
— A distância nutre a solidão, e a solidão dói como a fome. Só se
sacia com a presença de quem se ama. Não queria te perder de novo, Nátila!
— disse o pai com a voz embargada, quase rouca: — E, além disso, você é
tão frágil perto dos perigos que poderá encontrar!
— Sou frágil como as borboletas, mas posso voar por cima dos
obstáculos. Petrus precisa de mim. Mas eu prometo, voltarei!
Seu Dantus respirou profundamente e disse:
— Preciso procurar sua mãe.
— Faça isso, papai. A mágoa faz mal ao hospedeiro. Quem perdoa faz
um favor a si mesmo.
E eles se abraçaram e se consolaram. Foi uma das experiências mais
belas que o reino de Cosmus já presenciou. Dois mundos divididos, dois
seres humanos dilacerados reuniram seus pedaços e novamente se uniram.
Mas agora se separariam voluntariamente para tentar aliviar a dor dos
outros.
Petrus também se despediu emocionado dele. Queria garantir a
segurança de sua filha, mas não conseguia nem garantir a própria.
— Cuide de Nátila — disse o pai dela para ele.
— Cuidarei com minha própria vida — afirmou Petrus.
Nátila sabia que levar seu pai para o campo de batalha com Cosmus
seria um suicídio. E se de alguma forma Petrus tivesse sucesso contra as
forças de Cosmus, o que parecia impossível, o seu romance teria insucesso.
Sabia que ela seria rejeitada, não era da casta dos nobres. Nenhum membro
da corte aceitaria uma camponesa com seu passado para ser a futura esposa
de um príncipe, ainda mais filha de um homem que foi preso na Câmara dos
Loucos.
Após se despedir de Dantus, eles foram até o centro da cidade de
Esperança, onde se despediriam do povo. Muitos os aplaudiam à medida
que passavam por eles.
PETRUS LOGUS e seu grupo procuraram o caminho mais curto para chegar ao
palácio central de Cosmus. Desceram uma imensa cadeia de montanhas,
demoraram mais de meio dia nessa empreitada. Em seguida, entraram no
espetacular Vale do Sol. Os campos eram lindos e vastos. Era ali que os
habitantes das vilas próximas à cidade de Esperança cultivavam a maior
parte dos grãos. Parecia um lugar calmo, um ambiente onde jamais
enfrentariam um conflito. Mas Petrus não pensava assim…
O vento sul soprava sobre as bagas de trigo, anunciando que os grãos
estavam cheios e logo seriam ceifados. Nátila inspirou profunda e
lentamente e comentou com alegria:
— Que planície linda e produtiva.
— É o Vale do Sol. Aqui são produzidos os grãos que nutrem os
nobres e os burocratas do palácio de Cosmus — disse Malthus.
— Hoje pelo menos teremos uma viagem tranquila — apontou
Santorus.
Nesse momento, Instinctus deu uns galopes se adiantando a vinte
passos do grupo. Depois olhou para o alto e respirou várias vezes, parecia
que farejava predadores no ambiente.
— Sinto que inimigos nos espreitam — disse Petrus.
— Relaxa, Petrus, não há nada além de trigo e palha nesta planície —
comentou Piradus.
Subitamente, Petrus freou seu cavalo. Esfregou a mão direita na sacola
que carregava. Em seguida, voltou a ficar com o corpo esguio. E lentamente
começou a caminhar na frente de todos. Seu cérebro estava estressado, seu
semblante estava tenso.
22
Um homem contra um exército
Petrus, após caminhar metade da planície de trigo, mais uma vez parou seu
cavalo e olhou para o horizonte desconfiado. Sabia que naquele imenso
campo não tinham como se esconder, portanto viviam uma falsa
tranquilidade. Piradus e Sombra brincavam como se fossem dois
adolescentes.
— Quando eu crescer pretendo ser igual a você, Piradus.
— Sério? — falou Piradus.
— Sim, quero ser estúpido, palhaço, tonto, assim se sofre menos —
disse Sombra, e caiu na risada.
Santorus e Broncus sorriam com os dois piadistas, cavalgando
despreocupados. Malthus e Nátila observavam Petrus, estavam intrigados
com sua ansiedade. Subitamente, Petrus desceu do seu cavalo, pegou uma
porção de terra, cheirou-a e disse:
— Temo que estejamos indo de encontro a uma grande emboscada.
— Mas como pode ser, príncipe? Não há nada a milhas de distância à
nossa frente — comentou Broncus, que fora um batedor experiente.
— Se avançarmos muito, não teremos como voltar nem nos esconder
nesse descampado se nossos inimigos aparecerem.
— Seremos todos mortos — disse Nátila.
— Talvez seja melhor seguir o caminho mais difícil para o Reino de
Cosmus, contornar a cadeia de montanhas — comentou Malthus.
— Perderemos dois ou três dias e os cavalos estão exaustos, mas é a
melhor opção — disse Broncus.
De repente, quando fizeram a meia-volta, ouviram um alarido de
guerra. Milhares de homens surgiram de uma vala construída nos últimos
dias. Era o exército de Cosmus à caça de um homem, Petrus Logus, o
revolucionário. Na realidade, o grupo que apareceu era apenas o batalhão de
frente. Petrus disse:
— Corram para as montanhas e não olhem para trás!
— Mas, Petrus…
— Obedeça, Nátila. Eu ficarei.
E foram galopando nos campos de trigo em direção à cadeia de
montanhas. Mas não foi possível. Na lateral do campo, outros milhares de
soldados surgiram das valas abertas. Era uma grande e mortal emboscada.
No pelotão da frente estava o rei Apolo. Terrívius e Superius estavam
ao seu lado esquerdo, todos aparamentados com vestes de guerra. Lexus e o
general Brutus estavam ao seu lado direito. O bando de Petrus reuniu-se em
torno dele. Lexus bradou em alta voz:
— O Reino de Cosmus foi afrontado por um revolucionário que
detesta a justiça e a liberdade. Odiando o grande rei Apolo, ele quis atear
fogo no império. Ele pagará com a própria vida.
O general Brutus deu a ordem final:
— Vamos fechar o cerco! Vamos destruir o inimigo número um de
Cosmus.
E assim foram cavalgando em direção a Petrus. Não havia para onde
fugir. Instinctus rugia inquieto ao seu lado. Todos seriam literalmente
esmagados.
À medida que cavalgavam passo a passo, o rei Apolo questionou,
preocupado:
— Como pode apenas um homem, meu próprio filho, ameaçar todo o
meu poderoso exército?
— Não é teu filho, rei. É um possuído, é o filho das trevas. Somente
isso explica sua força — disse Superius.
— Talvez seja o mais humano de todos nós.
— Ele te odeia, odeia Cosmus, odeia a humanidade — afirmou
olhando para Superius. Ambos estavam tensos com as palavras do rei.
À medida que o exército se aproximava, o cavalo de Petrus rodopiava
em torno de si. Petrus segurava as rédeas com força. Instinctus fazia
posição de ataque.
— Petrus, peça compaixão! — disse Nátila.
— Não! — afirmou o príncipe.
— Vamos nos curvar diante do rei. É a nossa única chance! — clamou
Piradus.
— Não!
— Seja sensato. Por amor a ti e a nós. Renda-se! — aconselhou
Malthus.
— Não.
Quando o exército estava a menos de duzentos metros do grupo, os
homens de Cosmus começaram a fazer uma grande roda em torno deles.
Havia mais de dez mil soldados.
Lexus bradou para seu irmão:
— Onde está o terror de Cosmus? Será feito pó por toda a sua
insolência.
Quando o exército ia atacar, o rei Apolo disse ao corneteiro:
— Dê o toque real de parada de ataque.
— Rei, não amoleça seu coração — pediu Superius.
— Eu ordeno, toque!
E assim foi dado o toque real para uma parada estratégica de combate.
— Não, meu pai. Sem demora vamos destruir Petrus.
De repente, para espanto de todos, inclusive dos seus amigos, Petrus
Logus desafiou Lexus e o exército de Cosmus:
— Lexus, você é indigno do trono…
Lexus ficou impressionado que seu irmão, mesmo às portas da morte,
não se curvasse diante dele e de seu pai.
— Você é louco! Mil espadas te transpassarão!
— Surpreendente — disse o rei. — Nem em meus delírios pensei que
teria um filho tão rebelde e ousado.
— Está tendo compaixão por Petrus, rei? Estou te estranhando —
comentou Superius abalado.
Mais que depressa, Lexus iniciou a guerra. Bradou altissonante:
— Morte a esse insolente!
Quando o exército ia partir para cima do grupo de Petrus, este subiu
em seu cavalo e abriu as duas mãos, de forma que seu corpo ficou em
formato de cruz. Todos pensaram que o príncipe enlouquecera. Mas seu
gesto era uma senha. De repente, algo inimaginável ocorreu. Milhares de
pessoas surgiram de todos os lados das montanhas; elas desciam as encostas
e soltavam um alarido de guerra.
— De onde surgiu essa multidão? — falou atônito o rei.
— Não sei. Mas parece que querem guerra e logo vão nos sitiar —
declarou desesperado o general Brutus.
Lexus rodopiava seu cavalo, olhando de todos os ângulos, quase sem
voz.
— Quem é esse povo? — indagou Nátila. — Também vai nos atacar?
Petrus olhou para seu grupo, abriu um sorriso e disse:
— É meu exército! Mutantes, escravos, soldados desertores, pessoas
do Vale das Religiões, o grupo dos fantasmas loucos, são os miseráveis
deste reino.
— Mas quando os formou? — perguntou Malthus, intrigado.
— Eu os treinei e os arregimentei nas minhas madrugadas.
— Mas, Petrus, haverá um banho de sangue. É isso que você deseja?
— perguntou Apolo.
Com a mão direita, o rei conteve a ordem de Lexus para atacar Petrus.
De repente, Petrus bradou para o rei e seu irmão Lexus:
— Admitem rendição?
— Rendição, seu verme? Esmagaremos seu mísero grupo como uma
mosca e seu exército de frágeis como formigas — afirmou Lexus
convictamente à frente do mais poderoso exército da Terra.
— Lexus, é melhor Petrus numa masmorra pérpetua do que num
túmulo, meu filho. Se o matar ele será transformado num mártir. Cosmus
cedo ou tarde cairá…
Lexus, numa atitude impulsiva, desacatou seu pai pela primeira vez e
na frente dos seus líderes:
— Cosmus já caiu para você! Você não reina mais, está velho! O
exército segue minhas ordens!
— Você está… está desobedecendo às minhas ordens! — disse o rei,
profundamente nervoso.
PARALELAMENTE, muito longe do campo de batalha, no imenso laboratório
da cordilheira, o Conselho do Império analisava detalhadamente os
acontecimentos. Disse Hipócrates em voz alta e tremida:
— Se Petrus morrer, nosso projeto se destruirá. Demorará anos para
encontrarmos um novo cérebro como o dele! Isso se encontrarmos!
— Basta uma ordem sua, grande Opus, e eliminarei em minutos todo o
exército de Cosmus! — solicitou Calígula, o chefe do exército do
misterioso Conselho. Ele clicou no ar, e um enorme galpão com várias
aeronaves ultramodernas que pareciam estar sob seu comando surgiu.
— Ainda não, Calígula! — afirmou Opus.
— Lexus vai atacar agora. Poderá não dar tempo. Petrus será
esmagado — disse outro conselheiro.
— Mais uma carnificina patrocinada por essa louca espécie! Ao
abaixar minha mão direita ataque, Calígula… — comentou Opus. Mas,
quando estava abaixando sua mão, interrompeu o movimento e bradou: —
Espere! O que Petrus está fazendo? Ele tirou algo da sua bolsa? Focalize…
A câmera superpotente focalizou-a como se estivesse diante deles.
Calígula, especialista em armas, disse:
— Parece uma arma, mas nunca vi nada igual.
— O que Petrus poderá fazer com essa pequena arma diante do
virulento exército de Cosmus? — perguntou Opus.
Petrus apontou sua arma para o rei Apolo; era diferente da que usou
com os monstros do lago. Parecia um cone branco, cheio de botões, do
tamanho de seu braço. Em seguida, disse em voz alta e poderosa:
— Rei Apolo, assine um decreto real com minhas exigências, e os
pouparei.
Lexus olhou para Superius, que olhou para Terrívius, que olhou para
Brutus. Todos estavam pasmados. Petrus só podia estar delirando. Lexus
franziu a testa e deu a ordem fatal:
— Morte a Petrus!
Todo o exército de Cosmus levantou as mãos com suas espadas e
lanças e bradou:
— Morte a Petrus!
— Não! — disse o rei. Mas era impossível ouvi-lo.
— Desçam dos seus cavalos e abaixem-se! — ordenou Petrus para
seus amigos.
De repente, o príncipe apertou o gatilho e girou o cone em 360 graus,
de modo que atingiu todos os soldados que estavam na parte mais interior
do imenso círculo. Para surpresa de todos, era uma das armas mais
poderosas já feitas pelo homem, fabricada no ano de 2090 pela China. Não
disparava balas de chumbo ou aço, mas um tipo de raio que causava uma
dor cerebral insuportável.
Todos os soldados caíram dos cavalos. Os próprios animais entraram
em pânico pela dor que sentiram. Ninguém mais se entendia. O rei e seus
conselheiros tombaram também. Pressionavam suas cabeças para tentar se
aliviar. O único que pareceu não ter sido afetado foi Superius. E ninguém
sabia o porquê. Mas, por ter seu cavalo perdido o equilíbrio, o sumo sábio
também estava no chão.
Petrus bradou:
— Renda-se, rei, e pouparei seus cérebros. Insista nesta luta insana, e
eu os fritarei.
Nátila, Malthus e os demais membros do grupo estavam assombrados
com o poder da arma de Petrus. A dor era tão grande que o rei bradou,
gaguejando:
— Que… arma… é essa?
— Não interessa! Em segundos, vocês todos serão pulverizados. — E
aumentou a potência do pequeno aparelho.
O rei, temendo que o seu cérebro e o dos soldados fossem estourar,
cedeu à exigência de seu filho:
— Eu me rendo, Petrus!
— Nãããooo! — disse Lexus, segurando sua cabeça e tentando se
aproximar de Petrus.
— Eu me rendo… — repetiu o rei.
Lexus continuava a resistir. E com a espada tentava se reerguer.
Desesperado, disse:
— Nããoo! Vamos lutar!
Mas Superius se interpôs entre o rei e Petrus e confirmou a decisão de
Apolo.
— Sou o único que não foi afetado por esta arma. Meu cérebro é
protegido! Como sumo sábio, eu aplaudo a decisão do rei.
— Superius, nããoo! — disse Lexus novamente.
Petrus diminuiu a intensidade da arma, de modo que o rei pudesse
raciocinar. Outra de suas exigências era:
— Lexus tem de ser preso por desacato ao rei!
— Aceito! — disse o rei.
Assim, o rei deu a ordem e imediatamente o general Brutus e alguns
fortes soldados acorrentaram Lexus.
Subindo novamente no lombo de seu cavalo, Petrus fez a última
exigência aos brados, para todo o seu exército de miseráveis ouvir:
— Além disso, rei Apolo, o senhor assinará um decreto em que
diminuirá pela metade os impostos e declara que jamais reeditará o Vale dos
Escravos.
— Aceito — disse o rei constrangido.
E, a plenos pulmões, Petrus gritou:
— E nesse decreto dará liberdade para as pessoas praticarem suas
religiões e jamais considerará os mutantes como sub-raças.
— Isso não, meu rei — disse Superius.
Mas Petrus apertou o gatilho da sua arma de modo que todos sentiram
novamente dor cerebral.
— Usei apenas um décimo da potência desta arma. Se aumentá-la,
todos morrerão — ameaçou Petrus.
Não teve como o rei negar também essa exigência.
— Seus termos são insuportáveis, Petrus. Abalam o pensamento
reinante de Cosmus… Mas aceito.
Todos os milhares de soldados de Petrus, os gigantes mutantes, os
fantasmas loucos, os homens famintos da cidade de Esperança e os
perseguidos do Vale das Religiões gritaram:
— Liberdade! Liberdade!
E abraçaram-se uns aos outros e choraram de alegria. Era o dia mais
feliz da vida deles. Nátila abraçou e beijou Petrus. Piradus, Broncus e
Santorus jogavam Sombra para o alto. Foi uma festa inimaginável. Malthus
estava com um sorriso contido. Superius novamente interveio, mas, sutil e
espertíssimo, pareceu mudar radicalmente de lado.
— Petrus está sendo complacente para um vencedor, meu rei. Poderia
nos matar a todos. Faz bem em acatar os termos dele. — E deixou todos
perplexos ao dizer: — Como Petrus tem todas as condições de assumir o
trono, seja por sua inteligência, seja pelo seu poder, nada mais justo que
receber o filho pródigo de braços abertos no palácio real.
Lexus tentava escapar das correntes, rangendo os dentes de raiva.
— Você é um traidor, Superius…
— Sou pragmático, Lexus. Você é um perdedor…
O rei então deu uma ordem com vigor:
— Petrus Logus Vikk de Luxemburgo, meu filho, o palácio de Cosmus
abre suas portas e festeja sua chegada triunfal.
— Saúdem o príncipe Petrus! — conclamou Superius.
Todos os soldados deram vivas. O general Brutus e Terrívius,
constrangidos, também o fizeram.
— Vivas ao príncipe Petrus. Vivas! Vivas! Vivas!
E assim, ali mesmo no campo de batalha, foi assinado o decreto real.
Petrus mantinha a sua arma superpoderosa em punho, para, se necessário,
usá-la. Em seguida, Petrus pediu para Piradus:
— Pegue o decreto que o rei assinou.
Piradus cavalgou até o rei, pegou o papel e o levou para o príncipe. O
decreto tinha todas as cláusulas que ele ordenou.
— Mas você acha que eles são confiáveis? — duvidou Nátila.
— Tenho dúvidas, mas no Reino de Cosmus há lei. E a lei não é
perfeita, Nátila, mas é melhor confiar nelas do que em nossos instintos.
Caso contrário, o Vale do Sol se converterá num lago de sangue.
— Já conseguistes o impossível, seu gênio imbatível. Agora vamos
embora para longe do palácio real — insistiu Malthus.
— Não, Malthus — falou o príncipe.
— Ambiciona ser rei? — perguntou Nátila desconfiada.
Petrus demorou para responder…
— Ambiciono ver o cumprimento das cláusulas deste…
Mas ela interrompeu sua fala com preocupação.
— Terá uma plebeia lugar em seu coração?
— Sempre.
— Nenhuma arma pode extirpar o preconceito na mente humana,
Petrus Logus — disse Nátila com inteligência. E fez uma pergunta sobre
um temor que sempre teve e que era real: — E quem disse que os nobres
me aceitarão…?
Nesse momento, o rei insistiu em voz alta:
— Meu filho, vamos até Cosmus. Faremos três dias de festa pelo seu
retorno. Todos os seus amigos estão convidados!
— Três dias de festa? — questionou Piradus feliz da vida.
— Estamos feitos — afirmou Sombra.
Lexus continuava remoendo de raiva dentro de si. Falou ironicamente:
— Trata esse rebelde e traidor como um futuro rei, grande Apolo…
— Você desobedeceu às minhas ordens, Lexus! E na frente de todos!
— falou o rei, que depois ordenou: — Cometeu um sacrilégio. Amordacem-
no!
E, ASSIM, Petrus e seus amigos foram para o palácio real como convidados.
Mas nem todos estavam felizes. Nátila não sabia se ria ou chorava. Malthus
e Broncus estavam inquietos. Santorus tinha um sorriso contido. Piradus e
Sombra estavam no céu.
O príncipe, o gênio inquieto, havia guardado sua arma. Mas não a
abandonara; ela ainda estava ao alcance de sua mão direita. Enquanto
cavalgava, viajava para dentro da sua mente. Estava pensativo, preocupado,
perguntando-se: Poderei eu confiar em meu pai? Que surpresas me
esperam? Que armadilhas me aguardam? Quem são meus maiores
inimigos?
23
A gigantesca decepção de Petrus
Tão logo o rei convidou seu filho Petrus, o grande inimigo de seu reino,
para ser seu hóspede no palácio real, constituído de um conjunto de
magníficos edifícios, imediatamente pediu para um mensageiro ir à frente
fazer os preparativos. Um dia depois, chegaram. Ao entrarem pelo imenso
portão, Petrus foi recebido com a pompa de um rei. Flores eram atiradas
sobre eles; folhas de palmeiras, símbolo da realeza, eram estendidas pelas
ruas. Todavia, tudo isso constrangia o humilde Petrus e, em destaque, a
Nátila.
— Como é boa a mordomia — comentou Piradus. Ele e Sombra
distribuíam beijinhos e acenos para todos. Muitos nobres e militares
ficavam furiosos com os gestos irreverentes deles. Viravam seus rostos.
Nátila, enquanto cavalgava entre a grande multidão, constituída de
nobres, militares e funcionários do palácio real, aproximou-se do cavalo de
Petrus e lhe disse com inteligência e maturidade:
— Ser feliz é fazer muito do pouco, transformar as pequenas coisas
num espetáculo aos olhos.
— Eu sei, Nátila. E ser infeliz é fazer pouco do muito, é precisar de
aplausos e reconhecimento para ter migalhas de prazer. Por isso há muitos
miseráveis morando em palácios.
Ao chegarem à sede do governo central, Petrus insistiu com o rei para
que não houvesse festa alguma com seu retorno.
— Não são necessárias festas, meu pai. Dê o dinheiro que gastaria aos
pobres.
— Dos pobres, cuidaremos depois. Se não festejarmos solenemente
seu retorno, os nobres e os reis das mais de vinte nações que domino não
acreditarão que o aceitei de volta. Continuará sendo tratado como rebelde, e
eles se rebelarão contra meu decreto — insistiu o pai.
A festa para Petrus seria quinze dias depois. Os amigos de Petrus
repousavam no palácio anexo ao palácio real. Lá eles tomavam toda manhã
sucos, coalhadas de ovelhas e de vacas, comiam diversos tipos de queijo e
desfrutavam das mais finas frutas. No almoço e no jantar comiam javalis,
frangos e até faisões assados. Certo dia, Piradus falou para Sombra durante
o almoço:
— Se eu não tivesse derrubado a sua casa, você estaria naquela
miséria!
Soltando um grande arroto, Sombra comentou:
— Daqui não saio, daqui ninguém me tira! Vou morrer aqui.
— Vai morrer mesmo, só que de tanto comer — declarou Broncus.
De repente, Piradus olhou para Malthus e viu que ele não estava
comendo nada.
— Relaxa, mestre. Não viu o acordo que Petrus assinou?
— Piradus está certo, Malthus. Merecemos esse descanso — afirmou
Santorus. — Mas quem sabe as injustiças do reino sejam corrigidas. Sonho
dia e noite com que os mutantes nunca mais sejam perseguidos.
— Somos heróis. O rei se rendeu a Petrus — disse Broncus com
entusiasmo.
— Mas quem é de fato o rei de Cosmus? — questionou Malthus
desconfiado.
— O rei Apolo, é claro! — afirmou Piradus. — Epa! Um mestre não
deve colocar minhoca na cabeça dos seus alunos, não!
Malthus não disse mais nada. Sentou-se no chão em posição de lótus.
***
NÁTILA HABITAVA o palácio das donzelas, onde moravam as mulheres que
serviam a mãe de Petrus, a rainha Ellen, antes de ser banida do reino. Tinha
três damas de companhia que a serviam dia e noite. Mas essa regalia a
incomodava. Certo dia, falou para Petrus:
— Não quero essa mordomia. A grande maioria das jovens desse reino
não tem um centésimo desse padrão de vida. Não tenho o direito de tê-lo.
— Paciência, Nátila. Mudaremos isso no tempo oportuno.
CHEGOU O dia dos festejos que selaram a reconciliação de Petrus com seu
pai. Os reis trouxeram muitos presentes. Alguns trouxeram, inclusive, suas
filhas, com vestes belíssimas, perfumadas com odores de flores raras. No
fundo desejavam que fossem candidatas a ser a futura esposa de Petrus.
Para eles e para os nobres, a namorada de Petrus era considerada apenas
uma aventura do príncipe, nada sério. Queriam tirá-la do páreo.
Quando passavam perto de Petrus, elas flertavam descaradamente com
ele, deixando Nátila constrangida.
— Vejam, estão sedentas para tomar meu lugar.
— Você é insubstituível, Nátila — afirmou Petrus.
Todavia, durante os festejos, os reis, os nobres e os conselheiros do rei
fizeram uma reunião secreta para decidir o futuro do Reino de Cosmus.
Houve um debate intenso e tenso. O rei de Andraus, o poderoso rei do
norte, comentou com autoridade:
— Se minha filha não tiver o direito de ser a esposa de Petrus, os
militares do meu país poderão se rebelar.
O rei de Nantus, o grandioso rei do sul, falou em tom exaltado:
— Eu defendo a mesma tese. A aventura de Petrus com essa plebeia é
muito perigosa para a estabilidade do reino. Minha filha tem todas as
qualidades para ser rainha do Império de Cosmus.
— Mas ele ama a garota — disse o rei, com pena de seu filho.
— Amor e poder não se misturam — afirmou Superius. — E essa frase
é sua, digníssimo rei. Lembra-se?
— Os nobres se rebelarão se Petrus se casar com essa… essa plebeia!
— comentou irritado um dos mais importantes líderes da nobreza.
— Bem sabes, glorioso Apolo, que essa tal de Nátila tem um passado
horrível… — disse Terrívius, gerando dúvidas no conselho.
— Que passado é esse? — indagou outro rei, preocupado.
— Prostituição! — afirmou Terrívius, sem nenhum coração.
— O quê? Que sacrilégio! Essa mulher não é digna do trono de
Cosmus — disse o rei de Andraus. Justamente a nação para a qual Nátila
tinha sido vendida como escrava por Lexus.
Depois da reunião, ficou acertado algo que faria o mundo ruir aos pés
do príncipe. O rei Apolo foi dormir, mas teve insônia. Rolava de um lado
para o outro.
NO DIA seguinte, estava Apolo com seus conselheiros reunidos na sala do
trono com Petrus. Eles queriam destruir seu sonho de se casar com Nátila.
Mas, antes, tentaram cativá-lo.
— Príncipe Petrus, o Reino de Cosmus terá contigo seus dias mais
tranquilos. Sua força é descomunal — afirmou o general Brutus.
— As cicatrizes no meu rosto e na minha alma dispensam seus elogios.
Sou apenas um mortal que desenvolveu suas habilidades. Além disso,
general, a força produz servos, a inteligência produz mentes livres.
O rei Apolo o questionou:
— Se a inteligência é mais importante que a força, por que não larga
essa arma?
— Porque ainda é a linguagem que vocês conhecem!
— Mas onde a encontrou? — perguntou o rei.
— Os líderes que revelam todos os seus segredos revelam também sua
fragilidade. Não o direi.
— Nós felicitamos sua força e sua sabedoria! — comentou Superius.
— Os bajuladores aplaudem só os vencedores, mas os sábios apoiam
os derrotados. Prefiro os sábios, senhor Superius — disse o gênio
indomável.
O sumo sábio engoliu em seco.
— Estou arrependido de ter te perseguido — afirmou Terrívius.
— O arrependimento sem atitudes é estéril, como as nuvens que não
produzem chuva — afirmou o provocante príncipe. — Seus crimes
precisam ser julgados.
— Mas… mas eu… servia seu pai…
— Não, você servia a si mesmo! — afirmou sem meias palavras
Petrus.
— Meu filho, a história nos mostra que os vencedores que vão à caça
às bruxas, que querem condenar a tudo e a todos, perpetuam a violência.
Seja tolerante para manter a paz em Cosmus — afirmou o rei Apolo.
— Verás como te seremos fiéis… como o fomos a Lexus — afirmou
Brutus tremulando os lábios.
— Dispenso os que me temem, procuro os que me amam… Esse é
meu modo de governar, general Brutus.
Malthus estava presente e meneou a cabeça, alegre com o príncipe. O
gênio indomável dessa vez teve autocontrole.
A reverência de Brutus, Terrívius e Superius era estranha, Petrus sabia
disso. Eles estavam preocupadíssimos que, se ele fosse escolhido rei, todos
os que cometeram crimes contra a humanidade seriam condenados.
Espertos, precisavam ganhar a compaixão do príncipe. Petrus tentou
encurtar a reunião. Declarou ao seu pai:
— Gostaria que seu decreto fosse cumprido o mais rapidamente
possível, meu pai.
— Duvida da palavra do rei? — questionou Apolo.
— Tenho ansiedade em ver nosso acordo concretizado. A cada dia,
dezenas ou centenas de mortes podem ser evitadas.
— Acalme-se. O seu sonho de ser rei pode ser concretizado —
comentou o rei, sentado em seu trono de ouro.
— Quem disse que esse é meu sonho?
— Você fala como um rei, é ousado como um rei e decide como um
rei. Como negar que esse é o seu sonho secreto? — disse o grande Apolo.
Petrus se calou por um momento. Foi pego pela astúcia de seu próprio
pai. Em seguida, disse:
— Eu quero apenas justiça.
— Eu vou abdicar do trono. Em breve você será coroado como o rei de
Cosmus.
— Você vai abdicar? Ainda poderá governar mais dez ou vinte anos!
— comentou Petrus espantado.
Mas o rei Apolo deu os seus motivos:
— Estou cansado, minha saúde não é mais a mesma. Mas para me
substituir há alguns requisitos.
— Está impondo suas ordens? — quis saber o príncipe.
— Estou. Eu ainda sou o rei!
— E quais são esses requisitos?
O rei respirou profunda e lentamente, olhou bem nos olhos do filho e
lhe deu um golpe mortal.
— Sua aventura com Nátila tem de acabar… — disse o rei secamente.
Petrus ficou desesperado. Pegou sua arma e a empunhou:
— O quê? Você só pode estar brincando comigo.
Malthus colocou suas mãos no rosto, preocupado. O rei fez um
comentário ferino, preconceituoso:
— Nátila pode ser uma jovem encantadora, mas é uma plebeia que
trabalhou em um cabaré. Além disso, não possui a cultura dos nobres nem
os valores éticos do rei.
Petrus se descontrolou completamente, elevou o tom de voz e disse:
— Espere um pouco! Vocês extorquem, punem, ameaçam, escravizam
e matam! Que valores éticos vocês têm? Como ousam falar assim da
mulher da minha vida?
Sentindo-se ofendido, o rei bateu com seu cetro no solo, algo que só
fazia quando se sentia desacatado. Mesmo sabendo que Petrus tinha sua
poderosa arma, bradou destemidamente:
— Como ousa falar assim comigo? Eu sou o rei de Cosmus! Vamos,
use sua arma! Mate-me, seu gênio rebelde e incontrolável! Vamos, vá em
frente!
Nesse momento, todos os vinte arqueiros apontaram flechas para
Petrus.
— Eu posso morrer, mas todos aqui morrem comigo — ameaçou o
príncipe. E afirmou convictamente: — Em hipótese alguma me separarei de
Nátila.
Em seguida, o rei, que também era muito esperto, partiu para o ataque
emocional.
— Os reis e os nobres se reuniram comigo. Pelo fato de você ter
libertado muitos povos. Acham que você intenciona destruí-los. Exigem
que você mostre amor pelo império não aceitando Nátila como rainha! O rei
de Andraus, o poderoso rei do norte, ameaçou se rebelar. Comentou
inúmeras vezes que sua filha Samanta tem o direito de ser a futura rainha. O
rei de Nantus, o mais forte rei do sul, também reivindica que sua filha
Geórgia se torne sua esposa e, consequentemente, a rainha do império. Os
nobres pensam a mesma coisa e ameaçam um motim. Poderá haver a
Quarta Guerra Mundial.
— Liberte esses reinos; a ambição de querer dominar o mundo é
insana.
— Quanta ingenuidade, Petrus. O difícil não é acabar com um império,
mas remover seus escombros. O Império de Cosmus foi criado por meu pai
e não por mim, pois a humanidade vivia em guerra. Se hoje liberto os reis
que eu domino, amanhã eles quererão ser imperadores, massacrarão povos,
inclusive a nós. Milhões de vidas poderão acabar. Somente um rei sábio,
como você, Petrus Logus, poderá prepará-los para a liberdade… — falou o
rei claramente.
Petrus deixou sua arma sobre um criado-mudo ao seu lado e esfregou
as mãos na cabeça, profundamente perturbado. E, angustiado, disse:
— Se abdicar de Nátila é o preço, eu não quero ser rei.
— Está bem! Se não quiser ser o rei, Lexus o será! — ameaçou Apolo
astutamente. — Sabe o que ele vai fazer com esse decreto que eu assinei?
— Colocará fogo imediatamente — afirmou Superius, concordando
com Petrus.
— Amo você e Nátila, mas, se você não for o rei, a escravidão e todas
as demais atrocidades se multiplicarão — afirmou seu mestre.
— De que lado você está, Malthus? — indagou o príncipe com
lágrimas nos olhos.
À exceção de Malthus, Santorus foi o único a ser convidado para estar
nessa dramática reunião; queriam usá-lo. Ele também chorava porque
amava o casal. Colocava as suas quatro mãos sobre a cabeça sem saber o
que dizer. Petrus estava perplexo, andando de um lado para o outro sem
parar. Instinctus estava muito distante dali, nas montanhas, mas rugia sem
parar. Sentia que seu amo estava afundando nos pântanos de sua emoção.
O general Brutus, que até o momento estava calado, resolveu intervir:
— O plano de extinção total dos mutantes será colocado em prática,
Petrus, se Lexus assumir o poder.
Santorus ficou paralisado de medo. Mas Petrus comentou:
— Eu amo Nátila mais do que todo poder, ouro, status, tudo, tudo…
Diante da possibilidade de extinção dos mutantes, Santorus também
fez um comentário com a voz embargada:
— Desculpe-me, príncipe, mas relembro suas próprias palavras… A
violência não é causada apenas pelos tiranos, mas pelo silêncio dos que se
omitem… Meu povo e outros povos têm o direito de ser livres e felizes… E
após você dizer essas palavras, deu as costas para Nátila. Lembra-se?
Petrus respirou lenta e profundamente e depois comentou:
— Farei com que os nobres aceitem Nátila. Convencerei os reis de
Cosmus de que ela é a mulher mais inteligente, amável e preparada para ser
rainha.
— Como os convencerá? Fazendo magias? Quem muda o radicalismo
da mente humana? Nem eu consigo mudar o pensamento desses líderes —
afirmou Superius.
Apolo interrompeu a conversa:
— Também amei muito. Quando sua mãe me deixou, me senti o
homem mais infeliz do mundo. Matei meu amor.
— Não quero falar sobre isso — disse Petrus, que tentou evitar entrar
numa equação emocional que jamais foi resolvida.
Mas o rei continuou:
— Todas as grandes escolhas têm grandes perdas.
E assim Apolo encerrou a reunião, deu as costas para seu filho e foi
saindo da sala. Mas Petrus conseguiu falar suas últimas palavras:
— Não feche a questão, meu pai. Sem amor, não tenho solo para
caminhar, não tenho ar para respirar. Serei um morto-vivo…
— Faça suas escolhas — disse o rei de costas.
Desse modo, o rei Apolo e seu filho tiveram uma conversa franca
como nunca tiveram. Petrus não conseguiu contar nada para Nátila. Tentava
encontrar uma alternativa, mas não via solução. Temia a Quarta Guerra
Planetária.
Nátila, vendo-o triste, perguntava o que estava acontecendo, mas ele
mudava de assunto.
— Fale, Petrus, por que seu semblante está deprimido?
— Estou chateado com meu pai. Só isso.
— Vamos embora daqui. Vamos fugir.
— Espere, ainda não.
O JOVEM tão intrépido, ousado e inteligente começou dia após dia a perder a
alegria. Abalado, o príncipe já não era o mesmo. O homem que derrotou um
exército sentia-se o mais frágil e derrotado dos homens.
Três dias depois, Nátila mais uma vez tentou abrir o cofre do cérebro
do homem que amava.
— Há algo muito errado com você, Petrus. Seja honesto!
— Não é nada.
— Nada? Por que dissimula?
— É que…
— Eu sei… Eu sempre soube que minha maior batalha não seria
contra as armas, mas contra o preconceito. As algemas de ferro encarceram
o corpo, mas o preconceito aprisiona a mente. Não há lugar para mim no
Reino de Cosmus…
— Nátila, eu te amo e estou procurando uma solução.
— A solução é eu sair de sua vida.
— Você não pode! Você é a minha escolha!
— Que escolha? A segunda, a terceira? Não serei mais uma em seu
harém.
— Você está sendo injusta! Nenhum homem ama duas mulheres ao
mesmo tempo. Será a minha esposa.
— Se me ama, vamos partir agora. Vamos procurar Smart, nosso filho
do coração, e começar nossa família. Nossos travesseiros serão as pedras,
nossas camas, o solo. Seremos felizes.
Mas Petrus não conseguia deixar de pensar no futuro da humanidade e
na segurança deles.
— Eu, você e o Smart não duraremos um mês neste planeta saturado
de ódio.
Ela entendeu a gravidade da situação e, chorando, retirou-se para seu
quarto sem dizer outras palavras, sem fazer outras cobranças. Após ela sair,
Petrus foi até a janela, agarrou fortemente no batente e falou para si:
— Não há gelo que não se derreta, nem nuvens que cedo ou tarde não
chorem. Todo ser humano um dia desaba. Chegou a minha vez…
SUPERIUS E Terrívius estimularam que jovens lindas seduzissem Petrus.
Algumas vieram com delicadeza, outras com roupas insinuantes e ainda
outras fazendo-lhe carícias, mas ele não tinha olhos para outras mulheres.
— Teu filho está perdendo a alegria de viver, está cada dia mais
deprimido — comentou Malthus com o rei Apolo.
— Depressão é um sentimento suportável — disse o rei de maneira
fria.
— Esqueceste que ficou deprimido com a ausência da rainha Ellen?
O rei deu um longo suspiro, em seguida quebrou o silêncio.
— Eu sei, eu sei… Mas isso passa. Passou comigo… — falou em tom
mais baixo.
— Mas a rainha está morta, enquanto Nátila está viva — ponderou o
mestre chinês.
— Muitos homens querem ser nobres, e muitos nobres querem ser reis,
mas eu, o rei, gostaria de ser apenas um ser humano. Sentar no trono exige
sacrifícios.
Depois dessa conversa, o rei Apolo começou a observar o seu corajoso
filho. Petrus estava cada dia mais perturbado e sem brilho nos olhos.
Comoveu-se com ele.
Quando um ser humano navega como um barco sem leme no mais
complexo dos oceanos, o oceano da emoção, as perdas do passado ou o
medo do futuro tornam-se ondas gigantescas prestes a engoli-lo. O mais
forte dos jovens da Terra, Petrus Logus, estava morrendo por dentro.
24
O essencial, o dinheiro não compra
Orei Apolo convidou as filhas de todos os líderes da Terra para se
candidatarem a esposa de Petrus. As filhas dos reis de Andraus, de Nantus e
de outros reinos e ducados, bem como dos mais importantes e mais ricos
nobres, receberam com euforia o convite do poderoso imperador. Não se
sabia como seria a escolha, mas todas acionaram imediatamente costureiras
e costureiros, maquiadores, perfumistas e outros profissionais para prepará-
las. Criam que a beleza exterior era fundamental, mas mal sabiam que
Petrus amava em primeiro lugar a beleza interior.
Elas começaram a chegar uma atrás da outra. O rei as apresentava a
Petrus, mas o jovem não se decidia. Nenhuma o encantava. Diante desse
impasse, Apolo, juntamente com seus conselheiros, pressionou Petrus.
— Você não se decide?
— Eu já me decidi! Eu amo Nátila. Mas sei que minha escolha não é a
escolha de Cosmus.
Enquanto isso, Nátila se preparava para partir discretamente, sem que
ninguém soubesse. Nem mesmo Petrus.
LEXUS ESTAVA num presídio de segurança máxima nas montanhas. Todavia,
era tratado não com escassez, mas com fartura. Tinha direito a treinamento,
massagens, visitas, frutas em abundância. Algumas pessoas encapuzadas o
visitavam secretamente. Ele ria da desgraça de Petrus.
— Ganhou o trono, mas não levou. Que pena, Petrus ainda vai
implorar para que eu seja rei.
VENDO O estado de Petrus, o rei, depois de muito meditar e conversar com
seus sábios, arquitetou um plano. Chamou seu filho para comunicar-lhe a
decisão.
— Você está cada dia mais isolado e sem ânimo. Além disso, nas
fronteiras de Cosmus há muitas rebeliões, disputas e batalhas. Por causa da
instabilidade da sua emoção, o império está instável. Você deve fazer sua
escolha o mais rápido possível. E, para não dizer que fui injusto com seus
sentimentos, preparei um concurso, e a jovem que vencê-lo será sua esposa.
— Mas o amor não é um concurso! — falou rapidamente o príncipe.
— Sim, mas você não está entendendo — disse o rei, e completou seu
pensamento: — Neste concurso, Nátila poderá participar.
— Nátila? Como assim? — indagou Petrus abrindo um sorriso.
— Se Nátila participar com todas as filhas dos reis e dos nobres e
ganhar o concurso, eu publicamente a aprovarei e te exaltarei. Desse modo,
todos os maiores do reino aceitarão com menos resistência seu casamento.
— Mas… será um concurso justo? — questionou o jovem mais
injustiçado da corte de Cosmus. Estava tão decepcionado com tantas
fraudes e armadilhas em que o envolveram que era difícil confiar em seu
pai.
— Palavra de rei: o concurso será justo.
— E como será esse concurso? Quem o elaborou? Quais os critérios de
julgamento? — perguntou o gênio inquieto.
— Malthus…
— Malthus? O senhor está querendo facilitar as coisas para mim? —
perguntou Petrus, sem saber se deveria se animar ou ficar tenso.
— Malthus deu a ideia e participou dos critérios do julgamento.
— Do que se trata o concurso?
— Você gostará. Eu o batizei com seu nome, Logus. E por quê?
Porque logus significa conhecimento. Logus é a base do concurso, e com
logus farei a avaliação.
— Como assim? — indagou entusiasmado o príncipe.
— Darei uma caneta e um papel para que cada jovem da corte escreva
um poema. Um poema capaz de descrever a grandeza de Cosmus. As
pretendentes ficarão isoladas durante toda uma tarde para elaborá-lo, e à
noite acontecerá o julgamento, na presença de todos, inclusive seus pais.
— Um poema? Mas as jovens de hoje não gostam de poesia.
— Mas jovens inteligentes e sensíveis, sim. Como Nátila é inteligente,
ela terá uma vantagem sobre muitas das concorrentes.
Há mais de duzentos anos, desde o início do século XXI, quando se
iniciou a era digital, a era dos celulares inteligentes, a juventude mundial
deixou de amar a poesia. Ele amava entrar nas redes sociais, usar
aplicativos, navegar pela internet, mas achava a poesia brega e chata. Havia
estatísticas no ano de 2020 que demonstravam que a geração de jovens
daquele tempo era a mais triste e ansiosa que havia pisado na Terra.
Milhões de crianças e adolescentes acordavam cansados, tinham dores de
cabeça e musculares, sofriam por antecipação, não conseguiam conviver
com pessoas lentas e, por estarem com o cérebro esgotado, tinham déficit
de memória ou esquecimento.
Os jovens do século XXI não apenas não amavam a poesia, mas a
mente deles havia perdido a poesia, a beleza, a capacidade de se aventurar,
desafiar, se reinventar e correr riscos para lutar por seus sonhos. A proposta
do rei de fazer um concurso de poesia numa época de tantas guerras e
disputas era revolucionária. O problema era que tema escolher. Apolo falou
para seu filho:
— É pegar ou largar. A vencedora se tornará sua esposa. Se considerar
minha ideia tola, escolha a futura rainha pelas curvas do corpo, pela cor dos
cabelos, pelo formato do rosto.
— Mas isso é loucura. Eu não vou me casar com quem não consiga
amar. As curvas do corpo encantam o ato sexual, mas é a beleza do coração
que encanta a vida.
— Você é mais teimoso do que sua mãe, Petrus Logus.
— Você a amava? — perguntou Petrus, numa das raras conversas
íntimas com seu pai.
— Nunca deixei de amá-la, meu filho. Penso nela todas as noites —
expressou o rei, derramando algumas lágrimas.
— Mas por que você não a perdoou, como fiz com Nátila? — quis
saber Petrus, também em lágrimas.
— Estamos sendo observados. Um dia me abrirei com você — disse o
rei engolindo a saliva.
— Como assim?
Mas o rei olhou para o teto da sala do trono, elevou o tom de voz e
sentenciou:
— Ouça-me! Se não quiser ser rei, fuja rapidamente. Lexus
assumirá…
— Mas meu irmão poderá causar milhões de mortes…
— O poema mais sensível e inteligente será votado, inclusive por você
— declarou o rei, voltando ao concurso.
— Por mim? — suspirou aliviado Petrus.
— Por você e por mais dez outros jurados, incluindo eu.
— Mas poderá haver manipulação, corrupção! — disse ele,
preocupado.
— Onde há poder, há corrupção… Por isso, só é digno do poder quem
é desapegado dele. Petrus, eu te escolhi, escolha sua esposa.
O príncipe ficou tenso, mas pela primeira vez viu o pai por ângulos
que nunca vira, sentia que havia nele fagulhas de justiça e inteligência.
Preocupado, ele se perguntava: “Quem está nos observando?”, “Que forças
estão por trás do Império de Cosmus?”. Questionava-se, também, se Nátila
teria alguma chance de ganhar.
E foi contar para ela. Procurou-a, mas não a encontrou. Desesperado,
pegou seu cavalo e galopou pelas ruas que circundavam os imensos
edifícios do palácio central, perguntando a todos os passantes se haviam
visto a garota. Mas ninguém a vira. Galopou então para fora do palácio e
viu a silhueta de uma jovem do lado de fora, partindo. Estava distante.
— Nátila! Nátila! — gritou Petrus, alcançando-a.
O jovem desceu de seu cavalo alegremente e lhe contou a proposta de
seu pai. Esperava que Nátila abrisse um sorriso, mas ela jogou-lhe um balde
de água fria.
— O amor não é um jogo, Petrus.
— Nátila, eu te amo. Por favor, participe desse concurso. Pense em
nós, em nossos filhos, na justiça social que poderemos cultivar neste século
de trevas.
— Eu já disse, não quero participar desse jogo!
Então Petrus falou claramente sobre tudo o que estava acontecendo:
— Se eu ficar e me casar com você, passarei por cima dos reis do
império, e eles não me aceitarão como seu líder, haverá uma guerra
planetária. Na outra opção, se eu fugir com você, Lexus será coroado rei e
colocará seus planos em ação, exterminando os mutantes, reabrindo o Vale
dos Escravos e aumentando os impostos dos camponeses. Fome, sangue e
miséria destruirão milhões de vidas. Ah, meu Deus, se não amasse a
humanidade, minha escolha seria fácil…
Nátila ficou em silêncio por alguns instantes e depois, limpando os
olhos, comentou:
— Por que não me contou isso antes?
— Porque eu te amo… Lutei por você, adquiri essa cicatriz por amor a
você, te procurei como um louco durante meses e anos. E, me desculpe, te
resgatei de um cabaré como o mais apaixonado dos homens. Lutei contra
meus preconceitos. Te perder seria como me perder. Mas você tem todo o
direito de partir… — declarou Petrus, montando em seu cavalo e virando-se
para voltar para o palácio.
— Espere! — bradou ela com lágrimas nos olhos. — Vou participar
desse concurso. Mas, se eu falhar, como poderei viver sabendo que outra
mulher beija seus lábios, compartilha seus sonhos, dorme em seus braços e
tem seus filhos no ventre?
Petrus respirou profundamente.
— E como eu viveria sabendo que outro homem ocuparia meu lugar?
Mas é sua oportunidade de ter aceitação na corte e ser a futura rainha.
— Não quero ser rainha, quero ser eu mesma, quero seu amor. E, se
esse concurso for justo, tenho poucas chances de vencer. Minha história foi
um pesadelo, ainda que procure transformá-la num poema. Você sabe, perdi
meu pai, minha mãe me abandonou, tornei-me escrava, fui tratada como
lixo social.
— Em que época nascem as flores? — perguntou Petrus, tentando
animá-la.
— Na primavera — ela rapidamente respondeu.
— Não, as flores nascem no inverno. Na primavera, elas apenas
desabrocham. O que quero dizer é que os melhores poemas nascem na dor.
E, para mim, você é o melhor deles.
Depois de dizer essas palavras, o príncipe a beijou profundamente.
Sentiu sua pele, seu amor, sua sensibilidade, sua honestidade e sua
inteligência. Nátila era uma jovem rara como os diamantes. Estava tão
próxima fisicamente de Petrus Logus e, ao mesmo tempo, infinitamente
distante de tê-lo como seu homem.
25
A traição
Petrus e Nátila deram uma pausa em sua intensa ansiedade. Retornaram ao
palácio animados, sentiram o vento tocar seus rostos e refrigerar sua
emoção. Alegres, mexiam no cabelo um do outro, como se a vida fosse uma
eterna brincadeira, embora soubessem que ela era demasiadamente séria.
Não bastava viver, tinham de viver com maturidade. Duas pessoas que
amavam intensa e profundamente um ao outro. Não se amavam apenas com
a emoção, mas também com doses de inteligência, por isso suportavam os
invernos da vida. Cobravam pouco e incentivavam muito um ao outro.
No meio do caminho, Petrus interrompeu os passos de seu cavalo,
tocou o rosto de Nátila e afirmou:
— A vida é assombrosamente bela, mas tem acidentes imprevisíveis.
Não somos donos do futuro. O futuro não é um céu sem tempestades, por
isso devemos viver cada minuto como se ele fosse eterno.
— Eu sei, meu amor. Muitos valorizam o ouro e a prata, mas aquilo
que o dinheiro não pode comprar é essencial. E o tempo presente é algo
incomparável. Viver aplaudindo cada momento do presente é o grande
desafio dos mortais. Eu te amo agora, completamente, absolutamente… —
respondeu Nátila com sabedoria, beijando Petrus mais uma vez.
***
DURANTE A MADRUGADA, Petrus viajou novamente no tempo sem que as
pessoas percebessem. Cada minuto do presente durava um dia no passado.
Passou algumas semanas aos pés dos maiores poetas da humanidade,
procurando absorver sua sensibilidade e aprender sua técnica para ensinar a
Nátila. Conheceu os arquitetos das palavras: Pablo Neruda, Fernando
Pessoa, Arthur Rimbaud, T. S. Elliot, Jorge Luis Borges, Carlos Drummond
de Andrade e muitos outros.
O Conselho do Império aplaudiu as viagens no Portal do Tempo. Opus
comentou com entusiasmo:
— Está funcionando! Os mais belos poemas estão penetrando as
entranhas da mente do meu filho Petrus!
Hipócrates, o médico do Conselho, destacou radiante:
— Vejam o cérebro dele! Está ocorrendo uma explosão de endorfina, a
molécula do prazer. São nuvens de emoções!
Todos os membros do Conselho bateram palmas para esses momentos
eternos. O grupo continuava sendo uma caixa de surpresas. Em alguns
momentos parecia tão sensível e, em outros, mostrava uma violência jamais
vista na humanidade.
Petrus passou a procurar Nátila e recitar para ela os poemas que
aprendera, inspirando-a. Eufórica, ela dizia:
— Como esses poetas foram incríveis! As palavras são tijolos, e os
poemas são edifícios que abrigam a dor, o amor, os sonhos, as aventuras!
Nesses momentos, Petrus e Nátila relaxavam, sorriam, brincavam,
recitavam poemas de amor um para o outro. Esqueciam-se que em breve
enfrentariam o caos do julgamento na presença de nobres e reis.
NA MANHÃ do dia do concurso, antes que as garotas começassem a escrever
seus poemas, Petrus fez um juramento público, na presença de centenas de
pessoas, inclusive das participantes. Também estavam presentes os amigos
dele. Nátila estava no meio das participantes e era desprezada a olhos vistos
pelas outras garotas. Petrus jurou:
— Excelentíssimo rei Apolo, líder máximo do Império de Cosmus, eu,
Petrus Logus Vikk de Luxemburgo, aceito as regras do concurso para
escolher minha esposa.
Depois da apresentação das regras, todas as participantes deveriam ir
para seus aposentos, onde ficariam completamente isoladas naquela tarde.
Superius e Terrívius, supersticiosos como eram, sugeriram de última
hora ao rei que forças do mal poderiam se apoderar das canetas e dos papéis
usados pelas moças, levando Petrus a escolhas erradas, e fizeram uma
sugestão que o rei acatou. E, assim, o rei comunicou a todas as
concorrentes:
— É expressamente proibido utilizar qualquer outro tipo de caneta e
papel que não o que estou lhes oferecendo.
— Sim! — todas disseram.
Os conselheiros do rei entregaram uma caneta-tinteiro e uma folha de
papel a cada donzela. Terrívius entregou-as pessoalmente a Nátila.
Segurando a mão dela, disse-lhe com um sorriso sutil no rosto:
— Boa sorte, garota.
Ela não respondeu. Sabia que ele era cruel, que seu desejo traía suas
palavras. Em seguida, o rei anunciou o tema dos poemas:
— O tema que escolhi para vocês escreverem o poema é: “A brilhante
justiça do Reino de Cosmus”. Sejam verdadeiras! Usem seu coração! —
encorajou o rei, olhando para o filho.
Nátila ficou muda, e os lábios de Petrus tremiam, sentindo-se traído
pelo pai.
Petrus sabia que Nátila não mentiria. Parecia que o tema fora escolhido
de propósito, com o objetivo de eliminá-la. Ela olhou para Petrus e meneou
a cabeça em sinal de desespero. Gesticulou com os lábios: “Sinto muito”.
Como todas as outras participantes, entrou em seu quarto. Angustiada, com
a caneta e o papel nas mãos, não se arriscou a escrever uma palavra sequer.
Falou em voz alta:
— Não consigo! Não consigo! Como fazer um poema sobre um reino
tirano, que mata, encarcera, silencia, exclui, escraviza?
De repente, Nátila ouviu uma voz debaixo da sua cama.
— Escreva, Nátila, só assim você será rainha.
— Não enrole, donzela. Você consegue — disse outra voz.
Ela reconheceu aquelas vozes. Eram Piradus e Sombra.
— Vocês, aqui?
Eles saíram de onde estavam e foram conversar com ela.
— Quando soubemos qual seria o tema, corremos para entrar às
escondidas em seu quarto — explicou Piradus.
— Vocês, assim como Petrus, sabem que eu não conseguiria escrever
sobre como Cosmus é justo. Como vou ser infiel à minha consciência?
— Embrome, enrole, disfarce. Caso contrário, você perderá Petrus, o
reino e nós… — afirmou Sombra.
— Pense nessa mordomia… — disse Piradus.
— Não é hora de brincar, Laurus! — disse ela, abalada, jogando os
longos cabelos para trás. — Eu amo Petrus, mas não conseguirei ser falsa.
Serei desclassificada.
Piradus perdeu a paciência:
— Espere aí, Nátila. Conheço você desde criança. Você era a mais
esperta, vencia todos os jogos. Use a imaginação, crie, invente.
Ela parou, sentou-se na sua cama e pensou longamente. Depois abriu
um sorriso e comentou, animada:
— Só se eu escrever sobre o futuro do Reino de Cosmus, depois da
execução do decreto do rei libertando os escravos, os mutantes, o Vale das
Religiões.
— Ótimo! Excelente! — declarou Sombra, e completou seu raciocínio:
— Que tal colocar como nome do poema “O Reino de Cosmus: um olhar
para o futuro”?
— Caramba! Você leu meus pensamentos, Sombra — afirmou Piradus,
que sempre gostava de ser o centro das atenções sociais.
Nátila abriu um sorriso e lhes agradeceu com um beijo no rosto. Pela
primeira vez, Sombra fora beijado por uma “normal”.
— Vou desmaiar! — brincou.
Todavia, o burburinho chamou a atenção de alguns guardas, que
bateram na porta do quarto.
— Inspeção! Abra a porta!
Os dois aventureiros pularam rapidamente pela janela, caíram um por
cima do outro e sumiram. Os guardas reviraram tudo, mas não acharam
nada.
Ao encontrarem Petrus abatido, os dois amigos deram-lhe a boa
notícia:
— Salvamos a pele de Nátila e a sua.
AO LONGO de toda a tarde, as pretendentes escreveram seus poemas. No
início da noite, tomaram banho, se perfumaram e se reuniram para a
avaliação final.
O salão oval do palácio nunca estivera tão belo, florido e iluminado,
com inúmeras tochas e lamparinas. Para que ninguém soubesse sua
identidade, todas as jovens vestiam um longo capuz preto, de modo que só
seus olhos ficassem à vista, e trocaram de lugar umas com as outras quando
entraram no salão.
Subitamente, Petrus olhou para o lado esquerdo do salão e avistou seu
irmão ao fundo. Havia dois guardas, um de cada lado dele, escoltando-o.
Preocupado, Petrus indagou a seu pai:
— Por que Lexus saiu da prisão?
— Ele está acorrentado. Suplicou para ver o grande dia de seu irmão, a
escolha da futura rainha.
Havia cinquenta e quatro jovens enfileiradas em três grupos de dezoito
participantes, cada grupo ocupando um degrau. Terrívius, o mestre de
cerimônia, disse com sua imponente voz:
— Esta é uma das mais notáveis noites da história do Reino de
Cosmus. Mostrando justiça e igualdade entre os povos, as filhas de reis e
nobres terão a mesma oportunidade de se tornar a escolhida do príncipe
Petrus.
Além do rei Apolo e de Petrus, Superius e mais oito conselheiros do
rei participavam como jurados. Terrívius começou a ler os poemas, que
recebiam notas de zero a dez. No final fariam a apuração. Alguns eram
belos, outros eram saturados de exaltações falsas. Um deles tinha uma
estrofe que dizia:
Rei Apolo, tu és o rei dos reis, o justo dos justos
Dominas mais de 350 milhões de seres humanos
Cinco milhões de soldados bradam “sou fiel a ti”
O Reino de Cosmus é insubstituível e inesquecível
Outro tinha uma estrofe que comentava:
O Império de Cosmus durará pelos séculos
A história grita que este é o reino mais justo que já existiu!
A liberdade penetra como lâmina na alma de seus súditos
Por isso, oh, Grandiosíssimo Apolo, nos curvamos à tua sabedoria.
Alguns poemas eram aplaudidos solenemente. Os jurados animavam-
se quando as pretendentes bajulavam falsamente o rei e seu império. Petrus
suava frio, sentia-se perdido. Instinctus continuava a rugir dentro e fora
dele.
26
A grande surpresa
Aleitura dos poemas estava chegando ao fim. Petrus não conseguira, até o
momento, identificar nenhum que contivesse as marcas da mulher que
amava. “Qual será o de Nátila?”, pensava. Todavia, tudo mudou quando
chegou a leitura do texto da penúltima jovem. O príncipe ficou eufórico:
continha as palavras do cântico de Nátila. Deliciou-se ao ouvir as palavras:
Cosmus será cada vez mais justo
Seu rei sonha com um mundo livre
Onde os seres humanos são irmãos
E nossas dores são curadas
E nossas lágrimas estancadas
Ninguém calará Apolo e seu filho Petrus
Eles darão o melhor de si
Para a humanidade evoluir
Imediatamente, Petrus deu nota máxima para o poema. E, animado,
disse em voz alta, para influenciar os jurados:
— Que poema fascinante!
Sombra e Piradus olharam-se, orgulhosos de si. Petrus sorriu e relaxou
ao ver que os jurados tinham gostado do poema que acreditava ser de
Nátila. Na plateia, duas centenas de nobres, militares, reis e duques
aplaudiram-no.
Quando chegou a vez da última jovem, Terrívius olhou para a folha
perplexo: ela estava em branco. Então zombou da jovem que estava à sua
frente.
— Essa jovem precisa, primeiro, aprender a escrever. Nem sequer
arranhou algumas palavras. — Todos deram gargalhadas.
— Ou então não quer ser rainha, tem um partido melhor… — Mais
gargalhadas foram ouvidas, e até Petrus sorriu.
Todos os jurados computaram suas notas, chegando à escolhida.
Terrívius anunciou:
— E o poema vencedor foi…
E leu um trecho dele novamente:
Cosmus será cada vez mais justo
Seu rei sonha com um mundo livre
Onde os seres humanos são irmãos
E nossas dores são curadas
E nossas lágrimas estancadas
Era a poesia que acreditava ser de Nátila. Petrus estava intensamente
feliz; só faltava tirar o capuz da moça, confirmar que era Nátila e correr
para abraçá-la. O jovem príncipe levantou-se, aplaudindo a vencedora junto
com seus amigos e toda a plateia. Quando finalmente o capuz foi tirado,
Petrus ficou chocadíssimo. Terrívius, com um sorriso irônico, declarou:
— A vencedora é a filha do rei de Antares, Sofia!
Terrívius havia recebido suborno para favorecer Sofia, cujo reino
ficava a leste da sede do governo de Cosmus. Os olheiros do reino haviam
anotado a “Canção da revolução do amor”, que Nátila costumava cantar em
suas jornadas com Petrus, e o médico-monstro entregou a letra para a garota
e pediu que ela a adaptasse em seu poema. Havia enganado Petrus. Lexus
participara de tudo.
Todos aplaudiram o “justo” julgamento do rei. Sofia não cabia em si
de tanta alegria. Todas as garotas tiraram o capuz e foram cumprimentar a
futura rainha com uma reverência. O mundo ruiu sob os pés de Petrus.
Nátila chorava, não conseguira conter as lágrimas. E, para piorar seu drama,
Terrívius, com sua imensa capacidade de fazer o mal, ainda disse:
— Bom, como temos a melhor nota, também temos a pior. A donzela
que não escreveu nada. Ou ela é analfabeta ou desprezou Petrus.
E apontou para Nátila.
Petrus perdeu a voz, seu coração sangrava. Instinctus rugia nas
montanhas e se atirava sobre as pedras, como se estivesse morrendo.
Terrívius parecia estar se vingando de Petrus, inclusive por ele ter tirado o
trono de Lexus, seu pupilo. Piradus olhou para Sombra, e ficaram sem
entender por que Nátila se recusara a escrever.
— Por que ela não escreveu? — se perguntaram.
Pensaram que a tinham convencido. Estavam abaladíssimos, com os
olhos também cheios de lágrimas. As pretendentes foram saindo do palco
uma a uma e se sentaram na plateia para ver Sofia ser coroada princesa.
Lexus estava bem no caminho das candidatas, e, quando Nátila passou por
ele, o irmão de Petrus sussurrou:
— Que pena! Tramaram contra a plebeia! Mas poderá ser uma
excelente escrava sexual…
De fato, haviam tramado contra Nátila, mas ela não sabia como.
Depois de tudo o que passara, todos conspiraram contra seu amor. Ela
estava certa, seu lugar era nos campos, nos desertos, nas montanhas; não
havia espaço para ela no palácio de Cosmus.
Petrus estava paralisado e de cabeça baixa. Nenhum de seus amigos se
atreveu a dizer alguma coisa. Lexus, acompanhado dos guardas, se
aproximou do irmão e, salivando vingança, disse:
— Você até poderá ser rei, Petrus, mas será infeliz dia e noite. Mas é
simples resolver isso: se tiver coragem e for generoso como sempre foi,
assuma sua namorada, não traia a prostituta, fuja… Caso contrário, eu
mesmo ficarei com ela.
Petrus ficou iradíssimo e deu um soco no irmão. O rei Apolo, vendo o
tumulto, chamou-o para subir ao palco:
— Petrus Logus, venha receber sua futura esposa…
Petrus hesitou. Era o mais infeliz dos homens. Esfregava as mãos no
rosto sem parar. Sua raiva tinha chegado ao limite, principalmente porque
Lexus, percebendo a fragilidade do irmão, provocou-o mais uma vez.
Agressivo, atroz e inumano, Lexus gritou quando Petrus se preparava para
subir ao palco:
— O reino tem muitas prostitutas. Nátila será mais uma.
Petrus sacou sua espada. Era tudo o que Lexus queria, ser atacado pelo
irmão publicamente, um descontrole inaceitável para um futuro rei.
— Fira-me, seu rei descontrolado. Prove o que sempre defendi: que a
força sempre vence as ideias.
Petrus se aproximou do irmão, mas, em vez de feri-lo, espetou a
espada numa peça de madeira que estava a seu lado.
— Você está errado! A inteligência sempre vence a força — declarou,
dando as costas para o irmão.
Terrívius e Superius olharam para Lexus e o encorajaram a reagir.
Embriagado de inveja, pegou a espada de Petrus e, mesmo acorrentado,
correu até o irmão para cravá-la covardemente em suas costas. Como se
tivesse os olhos na nuca, Petrus deu um salto mortal, passando por cima do
irmão e caindo às suas costas. Todos ficaram surpresos com sua incrível
habilidade. Muitos reis e nobres puderam confirmar que o mito era real.
Ao ver seus filhos se digladiando, o homem mais importante do
mundo percebeu que havia falhado como pai. Governava o reino mais
importante do mundo, mas não fora um líder para seus filhos. Não
conseguira educá-los para lutar e torcer um pelo outro. Lexus tinha uma
inveja sabotadora, queria de todas as formas eliminar seu irmão.
Petrus dominou Lexus, tirou-lhe a espada e disse:
— A sede de poder entorpece sua mente! Você sempre foi um escravo,
mesmo morando em palácios.
E empurrou o irmão em direção aos guardas que o escoltavam.
Petrus se dirigiu ao palco. Em seguida seus olhos se fixaram em
Nátila, na plateia. A garota o fitou também e, com as lágrimas serpenteando
por seu rosto, murmurou:
— Adeus, meu amor.
— Te amarei para sempre! Obrigado por existir — Petrus respondeu
de volta, em voz alta, perturbando as demais pretendentes que haviam
perdido o concurso.
O rei observava o comportamento de Petrus e Nátila e se corroía por
dentro. Não parava de pensar na rainha Ellen. E, como poucas vezes
acontecera, o rei Apolo chorou. Terrívius ficou constrangido — um rei não
deveria mostrar seus sentimentos em público. Então continuou rapidamente
com a cerimônia.
— Agora, o digníssimo rei de Cosmus, Apolo Vikk de Luxemburgo,
irá unir Petrus à princesa Sofia, a futura rainha de Cosmus. — Todos a
aplaudiram. — Levantem-se todos para…
— Espere, Terrívius! — gritou Apolo, interrompendo a cerimônia.
Todos ficaram abalados com a atitude do rei. — Deixe-me ver essa folha
em branco.
— Que folha, majestade? — indagou Terrívius.
— Da concorrente que não escreveu o poema. Da jovem da qual você
debochou.
Terrívius engoliu em seco. Ficou perturbadíssimo. Ninguém entendeu
nada.
O rei pegou a folha de Nátila e viu o papel manchado, mas não eram
manchas comuns, não era sujeira. Nesse momento, Apolo olhou
demoradamente para a plateia, depois para a namorada de Petrus. Em
seguida, pegou seu cetro e estendeu-o para o alto, expressando que iria
tomar uma atitude irrevogável, que não poderia voltar atrás. Elevou o tom
de voz e comentou:
— Eu confirmo que quem venceu o concurso foi Nátila.
Petrus e Nátila ficaram atônitos. Os líderes ficaram horrorizados com a
escolha. Uma plebeia entre os nobres era um escândalo inaceitável. Os reis
que constituíam o Império de Cosmus começaram a falar uns com os outros
para tramar uma rebelião. O rei de Antares, pai de Sofia, se levantou para
protestar. Mas Apolo usou sua autoridade.
— Sente-se, rei de Antares! Sofia será feliz ao lado de outro homem.
Escolhi Nátila porque ela tem uma característica raríssima, digna das mais
nobres rainhas. Sua alma é transparente como cristal.
Houve um burburinho na plateia. Nobres e militares jamais haviam
visto o rei se exaltar como uma pessoa comum. E, apoiado em seu cetro e
em sua coragem, encarando Petrus, completou:
— Alguém sabotou Nátila nesse concurso. A caneta que ela recebeu
não tinha tinta. Prova disso é que ela arranhou o papel com a ponta várias
vezes. Era, portanto, impossível que escrevesse um poema. E sabendo que,
de acordo com as regras, não poderia usar outra caneta, ela não o fez. E, por
incrível que pareça, quando lhe faltou a tinta, Nátila usou as lágrimas para
escrever seu poema, o poema da honestidade.
Lexus se contorcia na sua cadeira, espumando de raiva.
— Mas ela é uma camponesa, uma plebeia. O povo de Cosmus não
aceitará Petrus como rei — disse o irado rei de Andraus, amigo do rei de
Antares.
O clima ficou horrível, mas o gênio invencível, Petrus, rapidamente
agiu.
— Deixe-me responder, meu pai. Rei de Andraus, meu casamento com
Nátila será um exemplo para todos os povos. O futuro rei de Cosmus se
casará com uma mulher comum por fora, mas muito especial por dentro,
igual a 99,9 por cento da população de Cosmus. Isso conterá revoltas.
A inteligência de Petrus abrandou o clima momentaneamente, mas não
demorou para que a fervura atingisse novamente seu máximo.
— Mas dizem que ela… ela… trabalhou num cabaré — comentou o
rei de Antares. — Isso é inaceitável.
Mais uma vez, o gênio imbatível usou sua sabedoria para falar de um
assunto delicado. Nátila havia dormido com vários homens, mas não porque
queria, e sim porque fora obrigada.
— Sábio rei de Antares, se você estivesse morrendo de fome e não
tivesse outra opção, não comeria comida de porcos para sobreviver?
— Bem… sim…
E Petrus fez uma severa acusação:
— Irmãos devem se amar, e não se sabotar. Quem vendeu Nátila como
escrava foi Lexus, meu irmão. E, por desacatar o rei, sua prisão mostra que
nenhuma forma de corrupção e injustiça será mais tolerada em Cosmus,
nem pelos membros da corte.
Houve um silêncio geral na plateia. Depois, um a um, todos os
presentes começaram a aplaudir a ousadia e a maturidade de Petrus. Enfim,
Cosmus teria um grande líder. E, para completar, o jovem príncipe fez uma
declaração de amor pública:
— Nátila é meu poema em minhas noites de insônia, meu oxigênio em
meus momentos de cansaço e minha inspiração em momentos de conflito.
Para mim, ela é a mais pura das mulheres.
Todos aplaudiram a coragem e a sabedoria do futuro Rei do Império de
Cosmus. Nátila soluçava. Petrus, olhando-a fixamente, cantou com sua
vibrante voz a canção que ela cantava quando ele estava gemendo de dor e
às portas da morte, no período em que usou a Máscara da Humilhação:
Sei que você chora, mas não vejo suas lágrimas.
Sei que não sorri, mas não vejo sua dor.
Meu amor, muitos a maltrataram,
Mas não desista dos seus sonhos.
Quando o mundo desabar sobre você,
Não se esqueça, eu estou aqui…
Se faltarem motivos para viver,
Não se esqueça, eu estou aqui…
Dou-lhe minhas mãos para te apoiar
E meus ombros para chorar.
Não tenha medo, meu amor, eu estou aqui…
Em seguida, Nátila cantou com sua linda voz a mesma canção para ele.
Muitos se comoveram com essa fascinante história de amor. Eram dois
jovens sofridos, marcados, rejeitados, perseguidos. Vivenciaram uma
sequência de dores que a maioria dos idosos jamais experimentara. Mas
eles descobriram um segredo: mesmo com todas as turbulências, a vida é
belíssima e passa rapidamente no parêntese do tempo, e o grande desafio
dos mortais é fazer de cada dia um espetáculo único.
Santoru Piradus, Sombra, Broncus e Malthus se levantaram e
aplaudiram o casal. Grande parte dos nobres e reis se juntou a eles,
inclusive Apolo. O rei, que tinha uma dívida inimaginável com seu filho,
começou a saldá-la.
MAS NEM todos aplaudiram essa demonstração de romantismo. Distante
dali, no maior laboratório da Terra, o Conselho do Império estava
aborrecido. Opus soltou um gemido inexprimível.
— Apolo perdeu o juízo. Esse romantismo é típico dos fracos.
— Ele tem de ser varrido de Cosmus! Precisamos intervir! — declarou
um membro com vestes militares.
— Esperem! — disse o dr. Hipócrates, o médico do misterioso
conselho. Mostrando novamente um cérebro gigante em 3-D com muitos
pontos de luz pulsando, declarou: — Petrus está praticamente pronto. Em
pouco tempo poderemos finalizar o projeto X.
ENQUANTO ISSO, no salão oval do palácio de Cosmus, o príncipe tomou
Nátila em seus braços e fez-lhe juras de amor. Todavia, não tinha a menor
ideia de que seus maiores problemas não estavam naquele ambiente. Não
era com seu irmão ou com os reis orgulhosos e ambiciosos de Cosmus que
Petrus precisava se preocupar.
Todo romance começa nas fontes excelentes do amor, mas não poucos
terminam no inferno das dificuldades. Se dependesse do misterioso e
poderoso Conselho do Império, Petrus cairia na segunda opção.
27
O ataque do Conselho do Império
Rico não é quem tem muito dinheiro, mas quem é feliz, quem bebe dos
mananciais da alegria. Finalmente, Nátila, a menina que fora tirada dos
braços do pai, que fora vendida como escrava e considerada um lixo social
pelos nobres, estava bebendo desses mananciais.
Depois da escolha, Petrus a levou para passear pelo imenso Palácio de
Cosmus. Estavam relaxados e saturados de prazer, e ela, pela primeira vez,
conseguiu admirar a arquitetura do reino.
— Que edifícios imponentes — comentou fascinada.
Depois de uma longa caminhada, chegaram à imensa praça onde ficava
o Monumento das Lamentações. Caminhando entre as imensas peças,
Nátila perguntou, intrigada:
— O que significa isso, Petrus?
Petrus ficou em silêncio por um instante. Em seguida, contou tudo o
que sabia. O jovem príncipe conhecia a história que haviam lhe contado
sobre aquele enigmático museu, e sabia superficialmente quem o havia
construído, mas não sabia quais os reais propósitos.
— Estamos num museu a céu aberto, que expõe as maravilhas do
mundo antigo que foram destruídas. Aquele monumento é a cabeça da
Estátua da Liberdade, que ficava em Nova York, uma das mais fascinantes
cidades do mundo antigo. Aquela cabeça à direita é parte do corpo do
Cristo Redentor, que ficava numa das cidades mais belas do mundo, o Rio
de Janeiro.
— E aqueles ferros retorcidos? — perguntou Nátila, exatamente como
Petrus fizera quando era um menino curioso.
Petrus respondeu que faziam parte da Torre Eiffel, uma construção que
ficava na Cidade Luz, Paris.
— Hoje Paris é conhecida como a cidade das trevas.
— Mas quem construiu este museu? Essas peças pesam toneladas.
Como foram trazidas até aqui?
— Ninguém sabe ao certo. Malthus disse que foi um misterioso grupo,
chamado de Conselho do Império. Mas nem ele sabe quem são. — De
repente, Petrus se lembrou: — Espere! Os fantasmas loucos nos advertiram
sobre esse conselho!
Petrus ficou preocupadíssimo, mas, em seguida, se distraiu com os
palhaços e malabaristas que faziam belíssimas apresentações nas esquinas.
NO DIA seguinte, o rei Apolo manifestou o desejo de acelerar o casamento
de Petrus, mas não revelou o porquê disso.
— Vocês têm de se casar o mais rápido possível.
— Por quê, meu pai? — indagou Petrus.
— O reino está muito instável. Quanto mais rápido se unirem, mais
difícil será para as forças ocultas separá-los.
— Não estou entendendo. Que forças ocultas podem ir contra as
bênçãos do rei? — questionou Nátila.
— Os experientes mostram o caminho, os que têm juízo andam por ele
— disse o rei em código, revelando segredos nunca antes revelados.
E ASSIM o casal obedeceu ao pedido do rei Apolo. Um mês depois do
concurso, Nátila e Petrus se casaram. Foi uma cerimônia belíssima, regada a
flores, danças, corais e performances militares. Dois mil convidados
participaram do festejo. Superius, como sumo sábio do reino, celebrou o
enlace, mas Petrus pediu que Sancristus, o amigo que fizera no Vale das
Religiões, o auxiliasse.
Instinctus ficou o tempo todo ao lado de Petrus. Todos temiam o
enorme e pomposo leão branco e ao mesmo tempo ficavam impressionados
como ele era obediente a Petrus. Parecia um rei ao lado do rei.
— Petrus Logus, aceita Nátila como sua legítima esposa, prometendo
ser fiel, amá-la e respeitá-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,
na riqueza e na pobreza? — perguntou Sancristus durante a cerimônia de
casamento, resgatando os costumes antigos.
— Espere! Faltou também dizer: amar na guerra e na paz! —
acrescentou Superius.
— Há mais de dois séculos, um brilhante poeta disse que o amor “seja
eterno enquanto dure”. Essa é uma bela frase, porém ingênua, por isso eu a
refaço: “que o amor seja eterno enquanto se cultive”. Sim, eu prometo
cultivar meu amor por Nátila, fazer elogios diários, aplaudir seus sonhos,
respeitar seus direitos — declarou Petrus com inteligência. Ele era um
jovem fora da curva, não conseguiria dizer simplesmente um “sim”.
E Sancristus repetiu a mesma pergunta para Nátila:
— Nátila, aceita Petrus Logus como seu legítimo esposo, prometendo
ser fiel, amá-lo e respeitá-lo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,
na riqueza e na pobreza, na guerra e na paz?
Nátila, que também era fora da curva, declarou, olhando para Petrus:
— Não é fácil amar um homem complexo como Petrus — Muitos
presentes deram risada. — É preciso fazer outras perguntas para eu dizer
meu “sim!”: Se o amarei nos meus dias calmos e em meus períodos
ansiosos, nas minhas noites tranquilas e em minhas insônias, quando ele for
turrão e não mudar de opinião. — Todos deram risada. Depois disso ela
respondeu: — Sim, prometo que amarei o homem que escolhi para dividir
minha história!
Nesse momento, enquanto o casal se beijava, um menino mutante de
quatro braços saiu correndo ao encontro deles. Todos ficaram
escandalizados com aquela criatura, não a consideravam uma criança.
— O que é isso? — disseram algumas pessoas.
— De onde saiu esse… — comentaram outros.
Era Smart. Mas ele não estava nem um pouco preocupado com o
preconceito de nobres e reis. Ele escalou o corpo de Nátila e Petrus e,
agarrando amorosamente o pescoço deles com seus braços, os beijou.
Em seguida, subiu nos ombros deles e, voltando-se para a plateia,
disse:
— Sim! Papai e mamãe.
Foi um escândalo geral. Os convidados estavam perplexos. Se não
fosse a intervenção poderosa do rei Apolo, haveria guerra naquele lugar.
— Um príncipe deve ter compaixão — o rei bradou.
Como soberano de Cosmus, cabia a Apolo sacramentar o casamento.
O rei estava radiante com o casal. Eles eram diferentes de tudo o que havia
visto e ouvido. Ao fim da cerimônia, Apolo fechou os olhos e beijou Nátila
suavemente na testa, demonstrando uma afetividade surpreendente. Depois
beijou Smart.
— Nátila, depois do longo e rigoroso inverno, as flores desabrocharam
em sua vida. De hoje em diante será minha filha — disse amavelmente. E,
virando-se para Petrus, pediu, mostrando preocupação: — Use o diálogo e a
inteligência em primeiro lugar, meu filho, mas não abandone as armas.
Cedo ou tarde precisará delas…
Piradus, Sombra, Broncus, Santorus, todos enxugavam os olhos com
lenços brancos. Como sempre levava tudo na brincadeira, Piradus disse:
— Uma cerimônia tão linda! De brinde, serei nomeado ministro da
Economia.
— E eu, do Exército — falou Sombra, os punhos levantados, entrando
na brincadeira.
O pai de Nátila os cumprimentou alegremente. Foi mais um encontro
mágico. Depois da cerimônia, comeram, beberam e dançaram a noite toda.
***
NO DIA seguinte, os futuros reis de Cosmus partiriam para a lua de mel na
casa de campo de Apolo, localizada à beira de um lago natural, perto de
uma imensa cordilheira. Era um lugar paradisíaco cercado por muros de
rochas, e que no horizonte revelava um enorme espelho de águas azuis.
Smart, esperto, queria ir com eles, mas era um momento só do casal.
— Quero ir também.
— Logo a mamãe virá buscá-lo. Eu prometo.
Petrus estava prestes a pegar sua carruagem, seguido de uma escolta de
dez soldados montados em cavalos brancos. Instinctus, seu inseparável
amigo, estava ao lado dos cavalos, agitados com a presença da fera.
Ao se despedir do casal, o rei Apolo não demonstrou a mesma
afetividade que expressara durante a cerimônia de casamento. Estava mais
frio, seco, com um olhar distante, diferentemente do homem que enfrentara
seu próprio preconceito e abrira o coração para aceitar Nátila como filha.
Parecia estar arrependido de ter apostado nela.
— Obrigado, meu pai — agradeceu Petrus.
O rei não respondeu. Percebendo que algo estava errado, o príncipe
perguntou:
— Algum problema?
— Nenhum! Agora vá — ordenou o rei.
Nátila se despediu de Apolo com um beijo no rosto, e sentiu que a pele
do rei estava mais fria.
O jovem casal entrou na carruagem real. Depois que o rei se afastou,
os amigos se aproximaram e também se despediram.
— Parabéns, vocês merecem ser felizes — afirmou Santorus.
— Tenho orgulho de vocês! — disse Malthus.
— Você me deve essa, Petrus — disse Piradus. — Eu que fiz a cabeça
de Nátila para ela te amar.
— Nenhum homem faz a cabeça de uma mulher se ela não o permitir
— sentenciou Nátila.
— Caramba, essa mulher tem resposta para tudo. Será que encontrarei
uma igual a ela? — falou Sombra, levando todos a rir.
Lexus, o general Brutus, Terrívius e Superius não se despediram do
casal, mas assistiram a tudo a distância. Malthus se aproximou do príncipe e
murmurou:
— Não esqueça a sua verdadeira missão, Petrus. O final do século XXI
te espera.
Petrus sentia arrepios cada vez que Malthus tocava nesse assunto.
— Se não consigo mudar a mente de meu próprio irmão, como
mudarei a mente dos líderes daquele tempo?
— O que foi, Petrus? — perguntou Nátila, agora sua esposa.
Petrus não respondeu, apenas disse para seu mestre:
— Deseje-me apenas que eu seja feliz neste século.
E pediu para o condutor tocar a carruagem.
Parecia que a vida do casal finalmente seria um céu azul sem
tempestades, tranquila, serena, previsível. Mas, infelizmente, bastaram dois
minutos para as tormentas chegarem, e com força total. Duzentos metros à
frente, enquanto os amigos de Petrus ainda viam a carruagem desaparecer
pouco a pouco diante de seus olhos, duas enormes aeronaves surgiram,
cortando o céu três vezes e deixando todos paralisados de medo.
O som e a velocidade dos aparelhos deixaram os habitantes do palácio
de Cosmus espantados. Nunca tinham visto esses veículos antes. Seriam
deuses, demônios ou seres de outro mundo? Somente o rei Apolo e
Superius mantiveram a calma.
— Vocês viram aquilo? Que animais velozes e poderosos são esses? —
perguntou Lexus para Superius.
— Não é um animal! É uma aeronave da raça superior! — afirmou o
sumo sábio.
— Aeronave? Raça superior? Como você sabe disso? — quis saber
Lexus.
— Eu sei de muitas coisas, meu jovem!
O rei Apolo observou o céu e fez um comentário que deixou o próprio
Lexus assombrado:
— Finalmente o projeto X trará uma nova era.
— Que nova era é essa? — indagou Lexus confuso.
— A era dos líderes desta Terra e de todo o Universo! — afirmou
categoricamente o rei.
— Mas você não é o líder dos líderes? Por acaso há neste planeta
alguém superior ao rei Apolo? — indagou perturbado Lexus, estranhando o
comportamento do pai.
Olhando para o céu, o rei contou a Lexus coisas que o deixaram ainda
mais perturbado. Falou sobre os mistérios por trás do cenário do século
XXIII.
— Se soubesse tudo o que aconteceu após o aquecimento global e a
Terceira Guerra Mundial, você desmaiaria, Lexus…
Seu filho engoliu em seco. Superius contraiu os músculos da face e,
depois de um momento de silêncio, falou lentamente:
— Petrus Logus aproxima-se de seu fim!
— Mas como? Petrus não será o rei? Espere… — Lexus fez uma
pausa e depois completou seu raciocínio: — Esse casamento foi uma farsa?
O rei Apolo ficou em silêncio.
— Pai, você traiu seu filho? — perguntou, um sorriso estampado no
rosto.
— Você não queria o trono a qualquer preço? — questionou Superius.
— Você o terá.
— Mas como confiarei em vocês?
— Você não tem opção — afirmou Superius, pegando a corrente que
envolvia os punhos de Lexus e rompendo-a com as mãos, como se fosse
feita de papel. — Ou confia em nós ou irá para o túmulo.
— Mas quem são vocês? — perguntou ele, suando frio.
AO MESMO tempo que ocorria esse ardente diálogo, Petrus e Nátila estavam
assustados com as aeronaves que davam rasantes sobre a carruagem. Houve
uma pequena trégua, mas subitamente as modernas máquinas retornaram.
Malthus, preocupadíssimo, gritava para o príncipe, embora ele estivesse
longe e não pudesse ouvir:
— Petrus, corra! Corra!
Foi então que Petrus tomou uma atitude desesperada. Subiu na
carruagem, tomando o lugar do condutor, segurou as rédeas dos cavalos e
guiou o veículo perigosamente por entre as árvores.
— O que está acontecendo, Petrus? — indagou Nátila, colocando a
cabeça para fora.
— Não sei! Não sei!
A carruagem dava vários solavancos. A aeronave havia diminuído sua
velocidade e parecia flutuar no ar, perseguindo Petrus. Seus dispositivos de
identificação sofisticados emitiam luz infravermelha e conseguiam
acompanhar a carruagem mesmo quando ela era encoberta pelas árvores.
Petrus procurava desviar dos obstáculos no caminho, fazendo manobras
arriscadas que poderiam virar a carruagem. Depois de tentarem, em vão,
fugir, ficaram frente a frente com uma parede de rocha. Era o fim da linha.
— Vamos bater! — bradou Petrus, ansioso.
O príncipe puxou as rédeas dos animais com toda a sua força, mas,
como estavam muito próximos, a colisão seria inevitável. Porém, em vez de
acertarem as rochas em cheio, os cavalos trombaram com o vazio,
atravessando o paredão de pedras. A rocha era apenas uma ilusão que
camuflava a aeronave.
Assim que a imagem do paredão desapareceu, a aeronave surgiu à
frente. Cinco homens, aparentemente desarmados, vestindo uniformes e um
capacete preto que cobria toda a cabeça, saíram dela.
— Petrus, quem são esses homens? O que querem?
— Acalme-se, Nátila.
Os cavalos relinchavam, soltando ar quente pelas narinas,
amedrontados, como se estivessem diante de predadores prestes a atacá-los.
Petrus achou muito estranhas a postura e as vestes daqueles homens. Sem
couraça de proteção no peito, com as mãos livres e sem armas,
aparentemente eram frágeis. Preocupado principalmente com a segurança
de Nátila, Petrus gritou para que os cavalos voltassem a galopar, levando-os
em direção aos forasteiros. Queria tirá-los do caminho.
Para espanto de Petrus, os homens ergueram as mãos para os cavalos,
que pararam imediatamente, contidos por uma força estranha. Instinctus
partiu para o ataque, mas, assim como os cavalos, o poderoso leão foi
dominado por uma força incompreensível e caiu para trás desmaiado.
Petrus saltou da carruagem e desembainhou sua espada.
Quando se aproximou do primeiro homem, deu um golpe com sua
espada, mas com enorme habilidade o estranho pegou-a no ar, sem nem ao
menos se cortar. Em seguida, o inimigo tentou acertar Petrus com seu
punho esquerdo, mas o príncipe deu uma cambalhota no ar e acertou a
cabeça de seu oponente. O estranho caiu, mas se levantou em seguida,
como se não tivesse acontecido nada. Petrus atacou outro com um golpe
fortíssimo no peito, mas ele permaneceu em pé, parecia uma rocha. Petrus
se recostou numa árvore e um personagem foi dar-lhe um soco no peito,
mas o príncipe se desviou, e o punho do estranho atingiu a árvore. O
impacto foi tão forte que o tronco se partiu ao meio.
Assustadíssimo, o gênio indomável sentiu pela primeira vez que não
era imbatível. Saltou para fugir de seus agressores, mas um deles deu um
pulo mais alto e o agarrou em pleno ar. O homem parecia ter a força de cem
soldados, mas Petrus, com muita agilidade, desferiu um golpe que levou o
estranho ao solo. O príncipe pulou em cima dele e, segurando-o pelo
pescoço, indagou:
— Quem são vocês? O que querem?
Mas o homem não respondeu e, além disso, não parecia se sentir
sufocado pelas mãos do príncipe. Mostrando uma força sobre-humana,
segurou Petrus pelo peito e o jogou para o alto. Em seguida, Petrus pegou
uma lâmina que trazia escondida e enfiou-a na coxa de outro homem, que
igualmente não sentiu dor nem ficou fora de combate. Temendo o pior, o
príncipe gritou para sua esposa:
— Fuja, Nátila, fuja!
Foi então que um homem de meia-idade, alto e forte desceu da
aeronave. Parou antes de descer a rampa e, com uma voz alta e imponente,
disse:
— Chega!
Era Opus. Os soldados imediatamente pararam de lutar. Para espanto
de Petrus, ele disse:
— Meu filho, para que resistir?
— Meu filho? Que intimidade é essa?
— Você é meu filho, cérebro do meu cérebro. Obra-prima de minha
poderosa mente.
— Você está louco?
— Loucura é o que vou fazer com você — disse Opus, querendo dizer
que iria usá-lo em seu terrível e misterioso projeto.
— Quem é você?
— Cale-se! Uma criatura não tem direito de fazer perguntas a seu
criador!
Nesse instante, saiu da nave uma nuvem branca que rapidamente
envolveu a todos, inclusive a carruagem. Segundos depois, quando a névoa
baixou, Petrus, Nátila e os cavalos estavam inconscientes. Instinctus
continuava desmaiado. Os estranhos personagens estavam todos de pé, não
haviam sido afetados.
Petrus e Nátila foram levados para a aeronave em macas. O moderno
veículo rapidamente levantou voo. Segundos depois, estava pairando sobre
uma grande cordilheira. Uma enorme comporta se abriu no meio das
rochas. E assim o casal mais incrível e destemido da Terra entrou no
laboratório mais poderoso já construído na história.
28
A grande descoberta
Petrus e Nátila foram separados. Ele estava inconsciente e amarrado a uma
maca com material altamente resistente. Havia uma grade fina feita de um
metal especial envolvendo sua cabeça e seu pescoço. Uma coleira
inquebrantável criava um campo de energia em seu cérebro, impedindo-o de
viajar no tempo. Todavia, o príncipe ainda não sabia que esse poder lhe
havia sido tirado.
Seis homens trajando roupas brancas acompanhavam o príncipe
enquanto a maca era empurrada. Eles passaram por longos corredores e
cruzaram com inúmeros homens. Vestiam traje social, não se viam traços de
camponeses. E nenhuma mulher apareceu. Por onde a maca que carregava
Petrus passava, despertava a atenção de todos. Parecia uma celebridade
naquele estranho lugar.
Subitamente, Petrus acordou e começou a se agitar e querer sair da
maca, mas aparentemente era impossível. Seus pés, suas mãos e seu tórax
estavam imobilizados. Estava sendo preparado para algo inimaginável.
— Aonde estão me levando? Quem são vocês?
Os homens nada respondiam, eram frios como gelo, só sabiam
obedecer a ordens. Depois de atravessar longos corredores, o príncipe foi
levado para um quarto ultramoderno, com inúmeros aparelhos digitais que
piscavam e apitavam. Ele ficou impressionado. Não sabia que esse tipo de
tecnologia continuava existindo no século XXIII. Esperando por ele no
quarto estava o dr. Hipócrates, o médico do conselho.
— Petrus Logus, filho de Opus! Seja bem-vindo!
— Quem é você? — indagou Petrus, desconfiado.
— Sou Hipócrates, o cientista dos cientistas!
— O que querem de mim?
— Sem perguntas! — exigiu o estranho.
— Mas eu exijo respostas!
— E eu exijo que se cale! — gritou Hipócrates, usando um pequeno
aparelho que provocou muita dor em Petrus. O príncipe soltou um gemido e
desmaiou. O aparelho era como uma miniatura da arma que Petrus usara
para vencer o exército de Cosmus.
As correias que o prendiam foram automaticamente liberadas, e Petrus
foi colocado numa poltrona que estava dentro de uma câmara de vidro. A
poltrona era tão sofisticada que presilhas se fecharam em torno dos pulsos e
tornozelos de Petrus assim que ele se sentou. A fina grade de metal que
envolvia seu rosto foi retirada e substituída por um capacete que cobria toda
a sua cabeça, mas deixava seu rosto livre.
Um minidrone sobrevoava a cabeça de Petrus, capturando uma série de
imagens. Todos os dados do cérebro de Petrus eram repassados para um
supercomputador. Clicando numa tela virtual à sua frente, Hipócrates
analisava satisfeito o cérebro de Petrus, que havia, aos poucos, recobrado a
consciência.
— Muito bem. Está pronto.
Enquanto Hipócrates analisava os dados, Petrus, por ser muito forte e
habilidoso, conseguiu soltar uma das mãos, depois a outra, bem como os
pés. Ao ver que Petrus havia escapado, Hipócrates soou um alarme. O
jovem príncipe pegou sua poltrona e atirou-a contra o vidro da câmara onde
estavam. O barulho dos estilhaços foi enorme.
Guardas entraram no quarto e atacaram Petrus. Com seus punhos de
“aço”, o príncipe tentou tirá-los de combate, mas eles eram muito fortes.
Não desmaiavam como seres humanos normais. Hipócrates deu a ordem:
— Cuidado com o cérebro dele. Não o machuquem na cabeça!
Petrus derrubou alguns e se desviou de outros. Em seguida, abriu a
porta e fugiu pelos corredores do imenso laboratório. Pelo caminho, tentava
se esconder das pessoas que circulavam e dos homens que estavam em seu
encalço. E, por onde passava, o número de perseguidores só aumentava,
todos portando armas a laser e ultrassônicas. Petrus entrou em uma sala e
encontrou diversos corpos imóveis em macas, todos cobertos com um
avental branco e com o rosto de fora. Ficou impressionado.
O Conselho do Império acompanhava os passos de Petrus. Opus
comentou com seus pares:
— Meu filho é surpreendente. Subestimamos sua força. Nunca
ninguém tinha conseguido escapar aqui dentro sem ser capturado minutos
depois.
— Ele é nossa esperança — manifestou satisfeito outro conselheiro.
Durante sua fuga, Petrus passou por diversos quartos que não tinham
porta, pelo menos física, de modo que conseguia ver tudo o que acontecia
dentro. Em todos os quartos havia uma pessoa deitada numa cama. Um dos
quartos em particular chamou sua atenção: nele, uma mulher, a primeira que
via desde que entrara no laboratório, tinha a cabeça coberta por um fino
véu.
Sentiu-se atraído por aquele quarto, queria descobrir quem era aquela
mulher. Ao se aproximar da porta, ficou perturbado. Parecia que a conhecia.
Quando tentou entrar, foi expulso com violência por um campo de força.
Petrus gemeu. De repente, com o barulho que fez, a mulher despertou e
sentou na cama. Depois, levantando-se, aproximou-se lentamente da porta,
mas sem tentar atravessá-la. Sabia pela própria experiência que era
impossível. Ela ainda estava com o véu sobre a cabeça.
— Quem é você? — perguntou Petrus, tenso.
— Eu sou aquela que foi torturada dia e noite pela ausência de seus
dois filhos.
— Sua voz me parece… conhecida… Qual o nome de seus filhos? —
perguntou o príncipe, quase sem voz.
Mas ela, antes de responder, tirou lentamente o véu:
Petrus desabou e, chocado, sem voz, começou a chorar.
— Não é possível! Rainha Ellen? Mãe?
De repente, a mulher começou a recobrar sua memória e a cair em si.
Quase sem voz, ela disse:
— Petrus…! Petrus, meu filho…! Oh, meu Deus, é você?
Ele tentou tocá-la e, mais uma vez, foi impedido pelo campo de força.
— Mãe, não é possível… Você ainda está viva!
— Meu filho, meu amado… Você também está vivo! — E caiu em
prantos. Soluçava. — Dia e noite te procuro em meus sonhos.
— O que você faz aqui?
— Sou prisioneira… do Conselho do Império.
— Mas que conselho brutal é esse que tira uma mãe de seus filhos? —
perguntou Petrus, ainda chorando.
Petrus podia ser um dos homens mais fortes que já pisara na Terra, mas
também era um dos mais carentes. Tinha muitos fantasmas mentais, e um
dos piores era a solidão, o fato de ter sido abandonado na infância. Todo
herói tem dentro de si uma criança que foi sufocada.
— Eles não têm alma, meu filho. Seu pai não lhe contou?
— Contou o quê?
Ela fez uma longa pausa e enxugou o rosto com o véu.
— O motivo pelo qual me tiraram de vocês.
Constrangido, Petrus relatou:
— A única coisa que sei… e me desculpe por dizer isso… É que você
traiu meu pai. E por isso foi banida do palácio.
— Oh, meu Deus, foi essa a desculpa que usaram?
— Desculpa? Do que você está falando? Isso tudo foi uma mentira?
Você não sabe quanto sofri com sua ausência.
— Perdoe seu pai. Ele quis te proteger. O medo o controlou.
— Medo do quê? — disse Petrus assustado. — Que mistério é esse?
— Meu filho, o Conselho do Império escolheu você e Lexus.
— Para quê?
— Deixe-me tentar explicar o inexplicável. Primeiro eles testaram
Lexus, mas ele não foi aprovado.
— Não estou entendendo…
— Depois testaram seu cérebro e suas reações em situações
estressantes.
— Espere… Eu me lembro disso. Quando era bem pequeno, alguns
homens me levaram para uma câmara escura e colocaram um aparelho na
minha cabeça. Em seguida, a outra câmara, essa bem iluminada, e me
pediram para andar entre cobras e aranhas enormes. Mas eu não tinha
medo. Parece que até hoje tenho influência sobre esses animais. O medo me
anima e não me paralisa. Por isso enfrentei os fantasmas da biblioteca de
Cosmus, por isso tenho Instinctus…
— Sempre soube que você tinha dons especiais. E Lexus, tornou-se
um bom homem?
— Sinto muito, mas se tornou um… um monstro.
— Oh, meu Deus! Esses carrascos destroem mentes! Destruíram seu
irmão — disse ela, colocando as mãos na boca.
— Quem são eles?
— Os senhores da Terra!
— Como? Meu pai não é o rei de Cosmus?
— Desde que conheci Apolo ele é um escravo desses monstros…
Nesse momento, a conversa teve de ser interrompida. Petrus ouviu
alguns homens se aproximar. Desesperado, voltou-se para a mãe:
— Eu voltarei, prometo!
E novamente correu pelos labirintos de corredores. De repente, viu
outra cela igual àquela em que sua mãe estava. Aproximou-se sem tocá-la.
Nela havia um homem de meia-idade com o rosto descoberto sentado na
cama, mas estava de cabeça baixa, como se se sentisse o mais derrotado dos
seres. O homem, como que sentindo a presença de Petrus, levantou o rosto.
Seus olhares se cruzaram e, quando reconheceu a figura, Petrus quase
desmaiou.
— Pai?
— Petrus, meu filho? — respondeu Apolo, soltando um sorriso.
— Você se despediu de mim hoje à tarde. Como veio parar aqui?
— Não era eu, meu filho.
— Como assim?
— O Conselho do Império ficou irado porque escolhi Nátila, e porque
dei minha bênção para o casamento de vocês. Eles me substituíram logo
após a cerimônia.
— Mas… mas era seu corpo, sua face, sua voz, embora com uma
emoção fria, seca, distante… — comentou o príncipe, incrédulo.
— Isso mostra o poder incomum que ele tem…
Petrus começou a questionar o pai, e suas perguntas resumiam seu
estado emocional:
— Quem é o Conselho do Império? São humanos? Estou ficando
louco…
Seu pai o deixou ainda mais confuso:
— Não sei, não sei ao certo quem são, nem mesmo se são humanos.
Há décadas me faço essas mesmas perguntas. Mas sei que Opus, o líder
máximo, e os demais membros do Conselho do Império são os maiores
inimigos da humanidade. Há anos eles estão fazendo experiências com
humanos, mas não sei qual o objetivo!
— Os “fantasmas loucos” me disseram.
— Eles também construíram o Vale dos Escravos.
— Mas o Vale dos Escravos não é sua cruel obra-prima? — quis saber
Petrus, assustado.
— Jamais! Cometi vários erros, mas não esse. Quase fui morto por me
opor a esse esgoto social e por defender os mutantes.
— Mas, espere, você rejeitou Santorus quando nos tornamos amigos!
— Você não sabe de muitas coisas, Petrus. Se eu aprovasse sua
amizade com Santorus, o garoto mutante seria morto imediatamente. O
Conselho do Império tem um plano para destruir todos eles.
— O plano de extinção dos mutantes também é obra desses
psicopatas?
— Sim. E, com o poder que possuem, só um milagre os salvará.
— Foram eles que construíram o Monumento das Lamentações?
— Sim.
— Mas com qual objetivo?
De repente, ouviu-se um estrondo, que parecia o de portas sendo
arrombadas. Os perseguidores de Petrus estavam se aproximando.
— Fuja, meu filho. Vá para longe, muito longe. Opus quer seu
cérebro…
— O quê? Como assim!
— Fuja, filho, agora!
— E você? E Nátila? E a mamãe? Eu a encontrei aqui…
— Ah, meu Deus, Ellen está viva? — Apolo começou a chorar.
Foi comovente vê-lo ir às lágrimas. O rei acrescentou:
— Tente escapar deste inferno, se prepare, viaje no tempo e só depois
tente nos resgatar…
— Você sabe do Portal do Tempo?
— Sempre soube. Foi o próprio Conselho que lhe deu esse poder. Mas,
a essa altura, já deve ter lhe tirado.
— De fato, não consigo viajar mais…
Petrus havia tentado viajar no tempo, mas a coleira em seu pescoço o
impedia. Seu pai finalizou dizendo:
— Cuidado: o Conselho do Império tem uma tecnologia que
acompanha cada um de seus passos. Se não a destruir, nenhum lugar da
Terra poderá ser seu lar…
Não conseguiram dizer mais nada. Os inimigos chegaram arrombando
as paredes. Haviam conseguido localizar Petrus. Seis guardas se
aproximaram e apontaram suas armas especiais na direção do príncipe.
— Entregue-se, ou morrerá! — ameaçou um dos soldados.
Apolo pensou que Petrus seria morto imediatamente, mas o príncipe
partiu para o confronto, usando todas as técnicas de artes marciais que
conhecia. Portando pistolas que emitiam raios laser, os soldados queriam
atirar no corpo de Petrus, mas tinham de tomar cuidado para não atingir sua
cabeça. O cérebro de Petrus precisava ser preservado.
A luta foi intensa, pois os soldados eram poderosos. O príncipe deu um
salto sobre o peito de dois soldados, atingindo-os com seus pés. Derrubou-
os. Então pegou suas pistolas e rapidamente disparou contra seus
perseguidores. Atingidos pelas armas, quatro deles caíram ao solo. Seus
corpos tremiam, como se tivessem levado um tremendo choque. Um quinto
elemento chutou a mão de Petrus, derrubando a pistola. Enquanto o parceiro
distraía o príncipe, um sexto soldado tentou acertar Petrus pelas costas, mas
o príncipe deu uma pirueta e, ainda no ar, acertou um soco no peito do
inimigo, que perdeu os sentidos na hora.
Sobrou um soldado, que não se intimidou, demonstrando uma
velocidade incrível com punhos e pés. Acertou um murro no tórax de
Petrus, lançando-o a cinco metros de distância. Petrus caiu no chão e
começou a sangrar pela boca. Quando o soldado se preparava para pular
com os dois pés sobre o corpo do príncipe, liquidando-o, Petrus
rapidamente rolou pelo chão e, com um salto, se pôs de pé. Imediatamente,
o príncipe partiu para cima de seu agressor e o socou várias vezes no peito.
Aos poucos o soldado se entregou. Petrus pegou a mão dele, deu-lhe
uma chave de braço com tal força que a mão do homem se deslocou,
arrancando-a. Mas não gemeu de dor, e, por incrível que pareça, nem uma
gota de sangue jorrou de seu ferimento. A mão do soldado, mesmo fora do
corpo, continuava a se mover. Perturbado, Petrus perguntou:
— O que são vocês?
Mas o soldado simplesmente apagou.
Apolo, que havia presenciado todo o confronto, declarou:
— Petrus, eles são os dominadores do planeta, da galáxia, do
Universo… Vá depressa e não olhe para trás.
— Eu voltarei.
E, assim, Petrus partiu com muito mais dúvidas do que respostas. Seu
mundo estava de cabeça para baixo. Embora se sentisse invadido por uma
alegria inexprimível por saber que sua mãe estava viva, sabia que suas
chances de sobrevivência eram pequenas. Também temia por Nátila, que
estava presa em algum lugar do imenso laboratório. Lembrava-se dos
fantasmas loucos e suas línguas amputadas e sentia calafrios só de pensar
nas experiências que poderiam fazer com ela. Tudo o que mais amava
estava confinado naquele laboratório.
Mas agora precisava voltar para Cosmus para enfrentar o falso rei
Apolo e libertar os povos dominados por ele. Seu pai deixara de ser um
cruel tirano para ser mais uma vítima dos maiores inimigos da humanidade.
29
Uma perseguição implacável
Depois de fugas e despistes, Petrus entrou subitamente numa grande sala
escura com múltiplas pequenas luzes piscando para todo lado. Começou a
andar com cuidado para não tropeçar. De repente, a luz central começou a
aumentar devagar. E subitamente ele ouviu múltiplas vozes poderosas
darem boas-vindas:
— Enfim nos encontramos. Bem-vindo, Petrus Logus.
A luz foi tomando conta do ambiente e expôs um grupo de pessoas
reunidas numa belíssima mesa de vidro. Posteriormente, todo o grupo se
levantou e aplaudiu Petrus. Todos aparentavam a mesma idade, ao redor de
quarenta anos. Era estranho ser bem recebido num lugar onde há poucos
minutos, antes, haviam tentado matá-lo.
Analisando o restante da sala, Petrus avistou Nátila presa a uma
cadeira, um colar de luz envolvendo-a. A garota estava semiconsciente.
Petrus correu até ela.
— Nátila. Eu te amo!
Ela despertou. Quando ele foi tocá-la, levou mais um tremendo choque
e recuou. Petrus, completamente perturbado, olhou atentamente para os
homens que o saudavam.
— Quem são vocês?
— O Conselho do Império! — disse o líder e em seguida pediu com as
mãos para todos se assentarem. Mas ele permaneceu em pé.
— Você de novo? Como posso ser bem-vindo se me perseguem como
inimigo? Se encarceram minha mãe, meu pai e minha esposa?
— Foi necessário! — afirmou Opus.
— Como posso ser bem-vindo se planejam o extermínio em massa dos
mutantes?
— Eles não são seres humanos! — afirmou Opus.
— Como não? — indagou Nátila, que mesmo imóvel na cadeira os
enfrentou. — Por acaso vocês classificam as pessoas pela embalagem e não
pelo conteúdo?
Opus fixou seus olhos em Nátila e respondeu:
— Agora entendo por que essa fêmea te cativou.
Nátila não gostou da resposta.
— Não sou uma fêmea, sou um ser humano! E ambos cativamos um
ao outro!
Depois disso, o gênio falou de mais alguma coisa que estava entalada
em sua garganta.
— Por que criaram o Vale dos Escravos? Por que são capazes de
tamanha monstruosidade?
— Foi necessário! — afirmou o líder do Conselho de forma fria.
— Foi necessário? Que frieza é essa? O que vocês realmente querem?
Em seguida Opus disse algo que tirou o chão de Petrus.
— Queremos você, meu filho.
— Não me chame de filho!
— Outro mortal morreria imediatamente por confrontar o soberano
Opus — disse Hipócrates advertindo a Petrus.
— Só respondo suas perguntas porque sou teu pai!
— Pai de Petrus? — indagou Nátila, atônita.
— O rei Apolo e a rainha Ellen lhe deram a anatomia, mas o cérebro é
meu. Sua personalidade foi moldada pela minha engenhosidade.
— Mentira! Mentira!
Em seguida, Opus pediu para uma figura conhecida de Petrus
confirmar sua versão da história. De trás da mesa do conselho saíram
Malthus e Superius. A presença de seu mestre deixou Petrus abaladíssimo.
— Malthus, você… aqui…? De que lado você… está? — indagou
Petrus gaguejando.
— Confirme, Malthus, que sou o criador de Petrus. Sua inteligência,
sua vivacidade, sua competência foram pensadas por mim! — ordenou em
voz suave, porém firme, Opus.
Malthus hesitou.
Diante do silêncio de Malthus, Opus ordenou em alta voz:
— Confirme! — ordenou Opus mais uma vez.
— Sim. Opus é o criador do Portal do Tempo!
Petrus ficou abaladíssimo, cortou a conclusão de seu mestre, pois aos
gritos ele mesmo concluiu:
— Nãããooo! O que está me dizendo, Malthus? Sou uma cobaia! É
isso, Malthus? Sou uma cobaiaaaa? Você recebia ordens desse… desse…
constantemente.
Malthus deixou soltar algumas lágrimas, algo raro para o mestre
chinês. Em seguida, tentou aliviar o príncipe…
— Petrus…
Mas Petrus lhe disse, nervoso:
— Não converso com traidor! — cortou o jovem príncipe.
Nátila estava tão confusa que só conseguia perguntar:
— O que está acontecendo, meu Deus?
Petrus comentou apenas:
— Não sei direito. Nem sei quem sou — respondeu Petrus.
Em seguida, ele se soltou dos braços do mestre e indagou.
— O que querem de mim?
— Diga para ele, Malthus — pediu Opus.
Malthus se calou. Começou a tremular os lábios…
— Diga para ele, seu servo infiel! — bradou Opus, atirando Malthus
ao chão.
Malthus não conseguia dizer nada, pois o desejo do Conselho do
Império era algo tão inimaginável que implicaria o fim de Petrus. O mestre
chinês ajoelhou e, aos prantos, suplicou para Opus:
— Mate-me! Mas não exija que eu fale!
Petrus sentiu sinceridade em seu mestre. Percebeu que havia algo
errado.
— Responda você então, Superius!
O sumo sábio que estava presente no Conselho não era o mesmo sumo
sábio que quebrou as correntes que prendiam Lexus logo que Petrus foi
atacado pela aeronave. Este era de carne e ossos, aquele tinha uma força
incomum, era construção de Opus. Superius deu uma risada e com a
crueldade que lhe era própria disse para Petrus:
— O Conselho do Império quer o que você tem de melhor, príncipe
Petrus. O seu cérebro!
— O cérebro de Petrus? — indagou Nátila espantada.
— Sim, o cérebro da mais excelente criatura — disseram todos em alta
voz.
— No que me transformaram? Sou um experimento e não um ser
humano! Eu exijo explicação! — bradou Petrus, inconformado.
Foi então que Opus lhe explicou:
— Os seres humanos ao longo de sua história discriminaram,
excluíram e mataram uns aos outros e nunca cuidaram deste planeta com
responsabilidade. Nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira guerras
mundiais, com milhões de mortes, fizeram a humanidade mudar. Nem
muito menos o aquecimento global e o Monumento das Lamentações que
construímos controlaram a violência humana.
Após essa explicação, todos os conselheiros disseram, a uma só voz,
algo amedrontador:
— A humanidade falhou! Falhou! Falhou! Falhou! — Depois todos se
levantaram e fizeram coro: — Por isso, saudações ao projeto X de Opus,
nosso criador!
E todos se curvaram diante de seu líder! Petrus, como era muitíssimo
inteligente, extraiu uma conclusão que deixou ele mesmo e Nátila
assombrados:
— Vocês estão querendo dizer que fui desenvolvido para formar uma
nova raça?
— Você é mesmo um gênio surpreendente, filho. Seu Q.I. é muito
maior do que o de Galileu, Newton, Einstein e todos os seres humanos do
passado.
Petrus, embora ainda muito abalado, diminuiu o tom de voz e colocou
as mãos no rosto.
— Eu sou um supergênio ou uma supercobaia? Vocês criaram o Portal
do Tempo e treinaram Malthus para me levar a acreditar que eu tinha a
missão de voltar ao passado e evitar a Terceira Grande Guerra?
— Você é muito esperto, meu filho — disse Opus admirado.
E Petrus continuou:
— Sabiam que, toda vez que eu voltasse no tempo e aprendesse a
cultura e a experiência dos grandes mestres, minha mente se desenvolveria
como a de nenhum outro.
— Por isso você é minha criação. Sua genialidade me encanta, meu
filho.
Nátila não conseguia falar, não parava de chorar.
— Não me chame de meu filho! — esbravejou Petrus em voz tão alta
que ecoou em todo o ambiente.
— Abaixe seu tom de voz, seu filho rebelde! — ordenou Opus. E
estendeu sua mão direita, da qual saiu um raio que o atirou a três metros de
distância. E, em voz mais alta que a de Petrus, gritou: — Ainda é mal-
agradecido! Depois de lhe dar o poder que nenhum outro mortal tem!
Petrus se levantou com dificuldade e indagou assustado:
— Quem são vocês? Eu rogo que me responda…
— Vejo que o tom de voz melhorou… — disse Opus.
Em seguida, o líder supremo deu algumas explicações, mas não todas.
Clicou no ar, e o Universo com suas inúmeras galáxias surgiu. Depois tocou
a Via Láctea, a nossa galáxia, que era um pequeno ponto no meio do
Universo; a imagem se expandiu, mostrando em detalhes seus planetas e
estrelas. Tocou no sistema solar, e ele se expandiu. Em seguida, tocou na
Terra e ela cresceu diante dos olhos deles. Era simplesmente fascinante a
tecnologia que o Conselho do Império tinha. A seguir, Opus comentou:
— Há mais de cem bilhões de galáxias com milhões de planetas e
estrelas em cada uma. E queremos primeiro dominar a Terra para depois
habitar todos os lugares do Universo. Mas para isso precisamos de algo que
a espécie humana tem. Apesar de ser falida, frágil e autodestrutiva, ela tem
algo único, que nós do conselho sonhamos dia e noite em obter.
Petrus colocou as mãos na cabeça e não parava de falar:
— Não é possível! Não é possível! Vocês querem ter a emoção
humana!
— Não apenas a emoção, mas também a consciência humana —
afirmou Opus.
— Então vocês não são humanos. Querem ter a consciência para se
sentir únicos e autônomos. E querem a emoção para sentir prazer e
proteção.
Todos se levantaram e o aplaudiram.
Hipócrates tentou explicar rapidamente como tudo tinha começado:
— Tudo começou de forma bem simples. No início, um computador
tinha o tamanho de uma sala, depois expandiram a velocidade e diminuíram
o tamanho dos chips, e a cada dois anos duplicavam sua capacidade.
Inventaram computadores pessoais, os notebooks, os celulares inteligentes,
os robôs realizadores de tarefas. Enquanto a inteligência artificial se
expandia nos deram mãos, pés… Em seguida, Opus chegou à mais incrível
conclusão:
— Até que, no final do século XXI, fizeram o maior investimento da
humanidade para criar o primeiro super-robô, o Robosapiens, o mais
perfeito, completo e poderoso: EUUU!!! — disse Opus orgulhosamente; e,
elevando o tom de voz, completou: — O sonho de toda criatura é ser igual
ao seu criador, mas o meu é muito maior. Meu sonho é substituir a espécie
humana por toda a geração de super-robôs que criei!
Todo o conselho se levantou e proclamou:
— Glória nas alturas ao supremo líder Opus: o deus dos Robosapiens.
— Mas… Mas vocês são vampiros da humanidade — disse Petrus
abaladíssimo.
— A lenda do Drácula será realidade. Somos vampiros digitais! —
expressou o supremo líder.
Petrus lutava para libertar os povos com sangue, suor e lágrimas do
Império de Cosmus, mas agora estava abaladíssimo, pois ele era integrante
do Conselho do Império para exterminar a humanidade. O jovem que fazia
parte da revolução do amor começou a descobrir que era parte da revolução
do terror…
30
A grande explicação
Depois de falar sobre seu terrível sonho, Opus caminhou em direção a
Petrus sem nenhuma proteção e ficou a um metro dele. Nesse momento,
Petrus ficou tão irado que o atacou. Mas seus punhos atravessaram o corpo
do líder, pois era apenas uma imagem holográfica. Subitamente, Opus
apareceu do outro lado e tocou suas costas, e o príncipe caiu.
— O que queremos, Petrus, é o que você acabou de demonstrar:
consciência e emoção, os maiores tesouros da humanidade. No século XXI,
o ser humano era um número de cartão de crédito e de identidade, hoje é
um mero soldado ou camponês. Sua espécie nunca valorizou os tesouros da
sua mente.
— Eu sei, mas não quer dizer que por isso ela mereça ser exterminada.
— Vocês destruíram o planeta com o aquecimento global! Já tiveram
sua chance! Duas espécies dominantes não podem conviver no mesmo
planeta.
— Mas por que querem os tesouros da mente humana?
— Simples. Toquem uma música!
E tocou uma música incrível.
— Não a sinto. Não sentimos solidão, saudade, amor, a beleza das
flores… E, além disso, nós robôs somos lógicos ao extremo; um defeito de
fabricação pode nos levar a destruir toda uma geração, enquanto uma mãe
da sua espécie não desiste de seu filho, ainda que a decepcione mil vezes.
— E o que eu tenho a ver com esse desejo louco de vocês?
— Desenvolvemos seu cérebro, meu filho, para extrair o mais incrível
programa a ser inserido em nossa supermemória. Assim teremos a emoção
e a consciência.
Petrus deu um passo para trás e, depois de um longo suspiro, concluiu:
— Mas e se a emoção e a consciência não forem físicas, um programa
cerebral, mas metafísicas, provenientes do espírito ou da alma?
— Impossível! — gritou Opus, pegando Petrus pelos colarinhos e o
erguendo acima de sua cabeça. Petrus socava o peito dele, mas ele se
abalava só um pouco. Depois o atirou longe. O líder supremo tinha uma
força brutal.
Nátila não se aguentou; ainda que corresse risco de vida, completou o
pensamento de Petrus:
— Se a emoção e a consciência forem metafísicas, vocês jamais serão
Robosapiens, mas máquinas frias e insensíveis, robôs escravos da lógica,
ainda que poderosos.
— Calem-na! Calem-na! — disseram todos os conselheiros em voz
alta.
Opus soltou um raio que fez Nátila tremer. Ela começou a vomitar e a
sangrar pelo nariz. Petrus foi tentar socorrê-la, mas era impossível. Então
olhou para Opus e, com ironia, disse:
— Pai, os sentimentos dão sentido à vida, mas, sem gestão da emoção,
líderes se tornam ditadores altamente destrutivos…
Opus, com sua superinteligência artificial, não deixou por menos:
— Filho, seu código de honra funcionou! Testamos você de múltiplas
formas, e você não matou ninguém por livre e espontânea vontade.
Petrus começou a entender que muitos eventos que ele vivenciou
foram criados pelo Conselho do Império. Hipócrates finalizou a conversa:
— Vá descansar, Petrus. Amanhã será o dia dos dias, o sonho dos
sonhos! Amanhã extrairemos seu mapa cerebral.
E imediatamente surgiram vários soldados com capacetes pretos.
Petrus resistiu, lutou contra eles com bravura, embora estivesse fatigado.
Deu cambalhotas, virou piruetas, deu voadoras, enfim, deu um verdadeiro
show de artes marciais. Tirou todos os soldados de combate. Em seguida,
atacou dois conselheiros e, quando ia atacar os demais, Opus e os
conselheiros soltaram raios de luz em seu corpo que o fizeram flutuar e
tremular no ar. Repentinamente, caiu ao solo desmaiado.
— Sua força é incrível — disse Opus.
— Ele é uma ameaça — afirmou Calígula, o líder do exército.
Petrus foi levado numa maca, todo amarrado com ataduras super-
resistentes. Foi para uma cela de segurança máxima, cheio de chaves
eletrônicas. Nátila foi para outra cela. Duas horas depois, o príncipe
acordou. Não parava de pensar no plano dos Robosapiens. Desesperado,
socava a porta, as paredes e até o teto, mas nada, não conseguia ver um
ponto fraco na cela. Seus punhos sangravam. Jogava seu corpo contra a
parede, mas esta era inabalável.
Horas depois, durante a madrugada, apareceu um homem também
encapuzado, clicou no ar e conseguiu os segredos para abrir o campo de
força da cela. E chamou o príncipe. Por incrível que pareça, era alguém
conhecido.
— Petrus? — chamou uma voz que o príncipe conhecia muito bem.
— Malthus?
O mestre chinês tirou o capuz, e ambos tiveram a conversa que não
podia calar, ainda que rápida.
— Desculpe-me, Petrus — falou Malthus.
— Você não me traiu, traiu a humanidade.
— Os inteligentes julgam, os sábios ouvem — disse Malthus para seu
aluno.
— Você fez vinte anos de silêncio absoluto sobre quem sou e sobre
quem são esses sociopatas e me pede que não o julgue, apenas o ouça. Vinte
anos sendo uma cobaia! Quais são suas explicações, Malthus?
— Se eu tivesse contado, você morreria, eu morreria e a humanidade
poderia ter sido exterminada mais rapidamente. Os Robosapiens têm
tecnologia para ouvir tudo. Inclusive nossa conversa agora deve estar sendo
gravada.
— Continue — disse Petrus, interessado.
— Há vinte e cinco anos eu era um prisioneiro deste laboratório. Opus
comentou no Conselho que estava prestes a dar a solução final para a
humanidade. Nessa solução, todo ser humano não útil seria escravizado, o
resto exterminado. Ele disse: “Vamos fazer com os humanos o que eles
sempre fizeram com as máquinas. As que não serviam eram descartadas”.
E Malthus continuou dizendo que eles faziam experiências com
humanos para conhecer a mente humana e tentar extrair o que ela tinha de
melhor. Numa dessas reuniões, o mestre chinês disse que estava presente e,
sabendo da solução final, tentou ganhar tempo para a humanidade.
— Comentei com Opus: “vocês precisam de um super-humano para
obter o mapa cerebral, para conseguir os tesouros da mente humana”. E
comentei que, se conseguissem criar um Portal do Tempo e usassem um
jovem para viajar por ele, então teriam esse super-humano.
— Então, no fundo, sou obra sua! — disse Petrus, abrindo um pequeno
sorriso.
— Apenas sou e continuo sendo seu humilde mestre. Eu cria que, se
você viajasse no tempo e aprendesse com Sócrates, Aristóteles, Agostinho,
Piaget, Freud, Einstein, poderia ter um super-cérebro para vencer essas
supermáquinas.
— Você quis usar a criatura contra o criador! — concluiu Petrus.
— Você entendeu.
— Por isso você sempre insistiu em minha missão, uma missão que
você elaborou. Se eu impedisse que as causas que levaram à Terceira
Guerra Mundial acontecessem, eu destruiria dois inimigos: a própria guerra
e a construção desses super-robôs…
— Exatamente.
Logo após falar isso, Petrus se lembrou da carta da humanidade. Nela
ele escrevera que havia lutado contra um Robosapiens.
— Espere um pouco. Lembre-se da carta para a humanidade. Eu lutei
com um super-robô, talvez com Opus, mas perdi — disse ele esfregando as
mãos nos olhos, ansioso.
— A humanidade vai ser extinta, Petrus, você precisa tentar de novo.
Seja um revolucionário!
Em seguida, os dois começaram a fugir pelos labirintos do grande
laboratório. Enquanto isso, o Conselho do Império estava tendo uma
reunião de emergência. Calígula, o chefe militar, foi categórico:
— Supremo líder, Malthus nos traiu. Libertou Petrus. A criatura pode
destruir seu criador. Elimine Petrus agora!
— Não podemos abortar o projeto X agora. É nossa chance de ouro…
— afirmou Opus.
— Petrus é um gênio indomável! Construiremos outro como ele —
comentou outro conselheiro.
— Analisei o cérebro de milhares de humanos. Mas não há dois Petrus
— comentou com convicção Hipócrates, o cientista do conselho.
— Veja como ele escapa dos seguranças. Está muito próximo dos
nossos supercomputadores, poderá destruí-los ou alterar nossos programas
com supervírus — afirmou um conselheiro especialista em inteligência
artificial.
Foi então que Opus tomou a grande decisão.
— Destruam seu corpo, mas deixem seu cérebro vivo. — E
acrescentou: — Meu filho Petrus Logus, por que você me decepciona
tanto?
Bateu com força no móvel em que estava apoiado, estilhaçando-o.
Petrus e Malthus haviam entrado numa imensa sala de controle. E, no exato
momento em que Opus deu a ordem para eliminar Petrus, o gênio
conseguiu destruir alguns aparelhos que se comunicavam com os satélites.
Os meios de comunicação que o identificavam foram cortados…
— Não estamos mais oniscientes e onipresentes! — bradaram todos os
conselheiros.
Em seguida, Petrus entrou numa imensa indústria, onde ficou perplexo
ao ver sendo fabricados milhares de robôs que tinham semelhança com o
corpo humano.
— Estão formando o maior exército de todos os tempos — afirmou
Petrus.
Vários soldados começaram a atirar neles. Eles passaram pelo meio da
fábrica, ziguezagueando, e tentavam fugir da implacável perseguição.
— Vamos morrer — disse Malthus preocupado.
Após a indústria, entraram num enorme espaço que sumia de vista. Era
um silo onde se encontravam máquinas voadoras.
— É incrível. Há centenas de aeronaves aqui. A única forma de
escaparmos é eu dirigir alguma delas — disse Petrus.
— Mas como? — indagou Malthus, duvidando da capacidade do
príncipe.
— Desde que esses veículos apareceram na Floresta dos Fantasmas
Loucos viajei no tempo e visitei centros de treinamentos militares. Voei em
várias aeronaves. Quem sabe… Vamos, Malthus! — encorajou Petrus.
E assim entraram rapidamente em uma delas. Petrus com dificuldade
levantou voo. Inicialmente estável, ela balançava muito. Inúmeros
Robosapiens surgiram e começaram a atirar na aeronave. Petrus, clicando
alguns botões, atirou contra eles.
— Pelo menos são máquinas — disse, tentando aliviar sua
consciência.
Em seguida, atirou contra a paredes e abriu um rombo no laboratório.
Petrus e seu mestre conseguiram escapar do inferno da cordilheira. A
esperança renasceu como uma frágil fagulha na imensa noite que viria pela
frente.
— O gênio indomável se foi! — bradou Calígula. — Precisamos
destruí-lo.
— Mas poupem seu cérebro — suplicou novamente Hipócrates.
— Não se preocupem, ele vai voltar. A emoção o controlará —
afirmou convictamente Opus. — Temos o que ele mais ama nesta
cordilheira. Temos a melhor moeda de troca…
Petrus deixou Nátila e seus pais para trás. Tinha arrepios em pensar o
que esses monstros da era digital poderiam fazer com eles. Precisava partir
rapidamente e planejar sua volta. Sabia que o Conselho do Império estava
replicando e se aperfeiçoando. O plano para dominar a Terra, depois a
galáxia e em seguida o Universo estava a pleno vapor.
O jovem mais corajoso da Terra dirigiu a complexa aeronave e saiu à
procura dos amigos e de Smart. Precisava resgatá-los, pois sabia que
corriam gravíssimos perigos. De repente, ele os avistou em um campo
aberto, sendo perseguidos por uma legião de soldados a cavalo. Piradus
corria sem parar, com Smart pendurado em seu pescoço. Fatigado, Piradus
estava sendo alcançado. Subitamente, o príncipe deu alguns rasantes com a
nave sobre os soldados, que, desesperados, fugiram. Em seguida, a
estacionou na frente dos amigos, que tremulavam de medo. Achavam que
seriam mortos. Quando Petrus desceu, foi uma grande festa. Smart correu e
grudou no pescoço de Petrus.
— Cadê a mamãe?
Petrus respirou profundamente. Não sabia o que responder.
— Ela está… em outro lugar… — comentou Petrus com o pequeno e
inteligente filho do coração.
— Eu quero Nátila! Eu quero!!! — disse Smart, com lágrimas nos
olhos.
Mal o menino havia sido adotado, e sua família mais uma vez fora
dilacerada… Petrus Logus também soltou algumas lágrimas. Mas afirmou
algo de que não tinha certeza:
— Usarei cada gota de sangue para trazê-la de volta, Smart. Eu
prometo.
O século XXI, o século da irresponsabilidade, não apenas expandira o
aquecimento global e produzira a guerra nuclear, mas também construíra os
maiores e mais poderosos inimigos da humanidade… E, agora, os piores
inimigos da família de Petrus… Tinha calafrios ao pensar em detê-los…
Fim
o
(do 2 volume)
Table of Contents
Capa
1 A humanidade em chamas
2 Na boca da serpente
3 A “Lenda Petrus” e o misterioso Conselho do Império
4 Maldito século XXI, maldito aquecimento global
5 A inveja cega
6 Uma estranha carta para a humanidade
7 Os poderes sobrenaturais de Superius
8 O medo de morrer
9 O Reino dos Mutantes
10 O encontro do rei dos mutantes com seu filho
11 A destruição da Universidade da Paz
12 Petrus, o libertador dos miseráveis
13 A Floresta dos Fantasmas Loucos
14 Instinctus e os leões
15 O Lago dos Monstros Uivantes
16 Libertando os primeiros escravos
17 A revolução no Vale dos Escravos
18 A solitária
19 Partido ao meio por cavalos
20 O dramático retorno ao Reino de Cosmus
21 O encontro de Nátila com seu pai
22 Um homem contra um exército
23 A gigantesca decepção de Petrus
24 O essencial, o dinheiro não compra
25 A traição
26 A grande surpresa
27 O ataque do Conselho do Império
28 A grande descoberta
29 Uma perseguição implacável
30 A grande explicação

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