Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Que é ser professor hoje? – a profissionalidade docente revisitada (1998). Revista da ESES,
9, Nova Série, 79-87.
1
professores”, sem se ter em conta a enorme mudança estrutural ocorrida entretanto por
força do alargamento da educação a todos os cidadãos.
Este padrão de profissionalidade docente - que correspondeu ainda aos professores que
muitos de nós tivemos como alunos - constitui-se também num referente subconsciente
poderoso para todos os que exercemos a profissão neste final do século em que tanta coisa
mudou no papel da escola e dos professores - ou pelo menos nas expectativas e
necessidades a que se espera que dêem resposta.
É um facto insofismável que o exercício da função do professor mudou. Todavia, atrevo-me
a afirmar que é igualmente inegável que, no essencial, a função profissional não mudou…É
a partir deste aparente paradoxo que partimos para a reflexão proposta neste texto.
A caracterização da profissionalidade
2
liberais, ou em quadros institucionais, ou empresariais. Outras profissões aproximam-se
mais do domínio da livre criação
( no campo do cinema, teatro, artes, por exemplo) e a sua prática caracteriza-se por níveis
mais largos de autonomia, na decorrência da própria natureza da actividade.
Contudo, o que permite identificar uma profissão não deixa de resultar da presença dos
quatro eixos definidores da profissionalidade acima referidos, ainda que articulados e
exercidos de formas muito diversas.
Quando pensamos na profissão docente, deparamo-nos com um quadro histórico e uma
representação social de certa ambiguidade, na medida em que o exercício da profissão
docente se tem aproximado, de forma variável e em contextos diferentes, ora a um estatuto
mais próximo do funcionário, ora do técnico ou , pelo contrário, socialmente idealizado
em termos mais próximos do artista ou do missionário. Por alguma razão é tão frequente,
entre professores, formadores e público em geral, a referência à “vocação” e ao “jeito” para
ser professor - o que não nos ocorre dizer tão facilmente a respeito do médico ou do
arquitecto, por exemplo, embora também essas profissões requeiram, como todas, um nível
satisfatório de motivação e empenhamento.
Não cabe nos propósitos deste artigo uma análise socio-histórica deste complexo e
fascinante percurso da construção da profissionalidade docente, análise que pode ser
excelentemente aprofundada em Nóvoa (1989; 1991), Giméno Sacristán ( 1994)ou Donald
Schön (1987).
Pretendemos com esta reflexão inicial situar a questão em contexto, partindo dos
pressupostos seguintes:
O professor define-se como um profissional da educação
Qualquer profissionalidade incorpora a sua história e interage com quadros sociais
dinâmicos e evolutivos.
A profissionalidade implica a construção colectiva de uma cultura profissional que define a
pertença do profissional ao grupo.
3
Função
4
Saber
Poder
5
Reflexividade
Intimamente associada ao poder sobre a sua prática - que nada tem a ver com uma lógica de
auto-permissividade mas antes com um estatuto de exigência profissional assumido - está
uma outra dimensão, amplamente desenvolvida por toda a linha de estudos sobre as
questões da profissionalidade docente desenvolvidos por Donald Schön(1987) )e .K.M.
Zeichner (1993), entre outros - a reflexividade.
O pleno exercício de uma profissão pressupõe a possibilidade, a necessidade e a capacidade
de o profissional reflectir sobre a função que desempenha, analisar as suas práticas à luz dos
saberes que possui e como fontes de novos saberes, questionar-se e questionar a eficácia da
acção que desenvolve no sentido de aprofundar os processos e os resultados, os
constrangimentos e os pontos fortes, a diversidade e os contextos da acção, re-orientando-a,
através da tomada fundamentada de decisões, ou da “gestão de dilemas”, na expressão de
Giméno Sacristán (1994).
Importa então retomar o aparente paradoxo com que se iniciou esta reflexão - o que mudou
e o que permanece na profissão professor?
As mudanças são sobejamente conhecidas e têm de articular-se com as alterações profundas
ocorridas na sociedade, por um lado, e, consequentemente, no papel social da instituição
escolar e no conteúdo mesmo da sua actuação: o currículo, ou seja, o conjunto organizado e
finalizado daquilo que se espera que a escola faça aprender aos que a frequentam.
Identificam-se, na origem de todas estas mudanças, factores económicos e sociais - a
ineficácia das respostas tradicionais da escola face à complexidade crescente das sociedades
actuais, a pressão económica para responder às mudanças estruturais - e extremamente
complexas - do mercado de trabalho e da globalização da economia constituem apenas
alguns dos factos novos com que a escola e os professores actualmente se confrontam.
Por outro lado, dimensões políticas e culturais integram também esta complexidade de
factores. As sociedades e os sistemas políticos vêem-se perante a emergência de novas
conflitualidades, potenciais ou expressas, inerentes ao carácter cada vez mais multicultural
e multiétnico das sociedades modernas, a par do conflito entre o esbatimento das fronteiras
políticas tradicionais dos estados e a reafirmação de nacionalismos ou regionalismos muitas
vezes com contornos fundamentalistas. As respostas da escola e o seu papel social
atravessam assim uma profunda mudança situada na interface entre a oferta de uma base
cultural sólida comum mas integradora das diferenças e aquilo que parece ser a
necessidade de oferecer currículos diferenciados - leia-se as aprendizagens de todos os
6
tipos que serão necessárias a indivíduos diferentes como cidadãos iguais neste tipo de
sociedades. O professor que, num passado não muito distante, trabalhava com e, sobretudo,
para o sucesso de uma faixa restrita e relativamente homogénea da sociedade, tem hoje
uma diversidade de públicos considerável. A finalidade da sua acção não se limita mais à
confortável percentagem de sucesso para 60 a 70% dos alunos ditos “médios” e “bons” (que
o seriam quase “naturalmente”) , mas situa-se na procura de tornar a educação efectiva e de
qualidade para todos - num tempo em que o direito de todos tem que passar dos princípios
aos factos, mas em que esses todos são cada vez mais diferentes.
O avanço do que poderemos considerar a revolução comunicacional acarreta, por sua vez,
mudanças rapidíssimas e de impactos imprevisíveis que todavia não dispensam, antes
requerem, a formação e educação dos indivíduos para a gestão da informação disponível a
uma escala antes impensável e a sua capacitação para o uso de tecnologias cada vez mais
sofisticadas. Também esta mudança estrutural requer novas conceptualizações do que se
pede que a escola não só torne acessível a todos, mas inteligível por todos, num mundo em
que não aceder à informação definirá cada vez mais a irremediável exclusão (Comissão
Europeia, 1995), gerando “novos descamisados do conhecimento”, na expressão
recentemente usada por Marçal Grilo a este propósito.
A própria concepção dos saberes científicos, na base dos quais se construiu
tradicionalmente o currículo escolar, atravessa hoje uma mudança de paradigma (Kuhn,
1993; Popper, 1988; Santos, 1987) na perspectiva da ciência pós-moderna, em que matrizes
unificadoras, tidas por estáveis, dão lugar a matrizes diferenciadoras, contingentes e
conjecturais. Os saberes disponíveis, outrora encapsulados de forma simplificada nas
disciplinas escolares, extravasam hoje esses limites, modificam-se e complexificam-se a um
ritmo acelerado. Tais mudanças apelam a um domínio mais consistente e construtivo do
conhecimento, exigindo da escola e dos professores não já os saberes enciclopédicos de
outrora, mas saberes de referência e ensino de processos que permitam aos alunos continuar
a progredir no conhecimento autonomamente.
7
fazer? na criação de situações inovadoras? apenas na decisão classificativa? ou só na
escolha do manual que se segue passivamente?); e quanto à reflexividade (na modificação
de estratégias em contextos diferentes? na reinvenção de soluções em anos e turmas
diversas? no confronto com as práticas dos colegas? no debate científico e pedagógico?).
Não concluo, todavia, com um tom relativizador aparentemente optimista. As várias leituras
da profissão ao longo dos tempos não se equivalem e algumas têm afastado
lamentavelmente o docente do estatuto de profissional de pleno direito.
Em jeito de síntese, decorre de toda esta reflexão o reconhecimento de que estamos perante
uma nova relação do professor com a sua profissão, nomeadamente no que se refere ao
currículo com que trabalha. Esta mudança emerge essencialmente a dois níveis: quanto ao
seu papel de decisor e gestor do processo curricular e na imperiosa necessidade de se
entender o currículo como uma unidade integradora do que se quer fazer aprender a todos
os alunos de forma eficaz e não mais como uma espécie de propriedade solitária de uma
disciplina que se justificava por si e não em função do direito do aprendente aos saberes
diversos de que irá necessitar como cidadão de um mundo cada vez mais complexo e
mutável.
Outra implicação refere-se ao conceito mesmo de escola, chamada, por força da
complexidade social e da diferença de contextos, a instituir-se em centro fundamental de
decisão educativa e de gestão curricular diferenciada e contextualizada, em relação
interactiva com as envolventes sociais e com outras instâncias e parceiros sociais e
educativos, não apenas no espaço local próximo mas aos diversos níveis das agências
produtoras de saber e de competências, qualquer que seja o seu âmbito.
A escola está a tornar-se afinal o locus privilegiado da gestão das dialécticas curriculares e
o gerador de novas culturas educativas.
Parece assim clara a necessidade de reconceptualização dos papéis e lógicas de trabalho dos
profissionais docentes. A investigação educacional vem apontando há muito (Goodlad,
1984) o trabalho colaborativo sistemático como um dos indicadores mais fiáveis da
qualidade da oferta educativa das escolas. É nesse sentido que terá de evoluir a nossa
prática institucional e profissional, bem como a própria concepção da formação,
distanciando-se da ideia repetidamente invocada e persistentemente inoperante de “formar
para” cada situação nova pontual ou para cada alteração surgida no sistema ou na escola.
Tratar-se-á cada vez mais de “formar em” e de “formar com”, de modo a que sejam os
profissionais a gerir colaborativamente os processos de formação, contextualizando-a,
assumindo iniciativas, mobilizando recursos e saberes onde existam, munindo-se de
8
competências significativas e operacionalizáveis que lhes permitam, de facto, formar-se
continuadamente ao longo de todo o percurso do seu desenvolvimento profissional
A diversificação dos públicos escolares nas sociedades actuais tem de ser concebida, do
ponto de vista educativo, como base para uma estratégia de diferenciação curricular
orientada para a subida do nível de qualidade real da aprendizagem de todos os alunos e não
como uma espécie de “streaming” oculto, em que, a pretexto de diferenciar, se reduz o
nível de aprendizagem e de exigência para uns - os portadores de diferenças, os mais
difíceis, etc. - e se acentua a selecção social dos que melhor se adaptam à norma.
Romper esta lógica e inventar - porque de algo realmente novo se trata - os modos de
educar melhor, mais e mais adequadamente, mais e cada vez mais diferentes alunos,
constitui o desafio inevitável a que a escola e os profissionais docentes do presente, e
sobretudo do futuro, terão de dar resposta.
A profissionalidade dos professores em Portugal tem tido, ao longo de décadas, por razões
que certamente o explicam, um esbatimento considerável, em favor de uma lógica
encorajadora do que Nóvoa designa por “funcionalização da profissão”. O contexto de
mudança actualmente visível na educação em todos os sistemas ocidentais não é, por si só,
orientado para o reforço da profissionalidade. Oferece sim situações e problemas novos que
possibilitam a emergência de condições mais favoráveis a esse reforço ou que podem, pelo
contrário, conduzir á redução maior dos docentes a um estatuto passivo de simples
executantes de políticas massificadoras.
Da massa crítica dos docentes, da sua capacidade para gerirem colaborativamente uma
indispensável diferenciação de práticas, do aprofundamento e troca dos seus saberes e da
qualidade e reforço da identidade e da cultura profissional, em todas as dimensões que a
definem, dependerá o futuro da profissão. Com sublinhava Nóvoa, já em 1989 (74), “a
aceitação desta diferenciação no seio do professorado obriga a pôr em causa uma espécie de
“normalização pela mediania” que caracteriza a profissão docente e a assumir desafios bem
mais complexos. Obriga a pôr em causa o estatuto de funcionários públicos e a imaginar um
outro futuro para os professores”.
REFERÊNCIAS
Amiguinho, A.(1992). Viver a Formação, Construir a Mudança. Lisboa: Educa.
Apple, M. (1997). Os Professores e o Currículo: Abordagens Sociológicas. Lisboa. Educa.
Comissão Europeia (1995). “Livro Branco” sobre a Educação e a Formação ao longo da
Vida.
Giméno Sacristán,J. (1994, 4ª ed). El Curriculum: una reflexión sobre la práctica. Madrid:
Morata.
Goodlad, J. (1984). A Place Called School. London: McGraw.
9
Musgrave, G.(1979). Sociologia da Educação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Nóvoa, A. (1989). Os Professores: Quem são? Donde vêm? Para onde vão? Lisboa: ISEF.
Nóvoa, A. (1991) (org). Profissão Professor. Porto: Porto Editora.
Nóvoa, A. (1991). As ciências da educação e os processos de mudança. In A.Nóvoa e
B.Campos (Eds.) Ciências da Educação e Mudança, 21-67. Porto: SPCE.
Roldão, M.C. (1993). A função profissional do professor. Educação e Ensino, 8, 4-7.
Setúbal: Associação de Municípios do Distrito de Setúbal.
Roldão, M.C. (1997). Currículo como projecto - o papel das escolas e dos professores. In
Actas Colóquio CIDInE. Porto: Porto Editora, Colecção CIDInE (no prelo).
Schön, D. (1983) . The Reflective Practitioner: How professionals think in action. New
York: Basic Books.
Schön, D. (1987). Educating the Reflective Practitioner. New York: Jossey-Bass.
Zeichner, K.M. (1993). A Formação Reflexiva de Professores: Ideias e práticas. Lisboa:
Educa
10