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Capítulo 3 – Ser Professor no Ensino Superior hoje: Desafios e

Superação.

Laurinda Ramalho de Almeida


Vera Maria Nigro Souza Placco

3.1 Introdução
Ser professor no século XXI é tema e tarefa de enorme complexidade.
Reconhecer esse fato nos conduz a cuidar da temática de forma a não cair em
explicações simples, mas entender que tal complexidade decorre de múltiplas e
interdependentes variáveis. E, questão docente complexa, é necessário avançar com
cuidados. É o que pretendemos fazer neste texto, a partir de alguns pontos, que
aceitamos e que são recorrentes na literatura sobre a docência.

1. Nossa relação com a informação e o conhecimento tem sido grandemente


influenciada pelos novos e sempre crescentes recursos que nos trazem, em muitos
casos, em tempo real, os acontecimentos daqui, e do mundo todo. Os avanços da
mídia, em suas várias modalidades, produzem informação e levam à diversidade de
conhecimento, e isso afeta nosso desenvolvimento como pessoas – e aqui nos
referimos ao desenvolvimento integral: cognitivo, afetivo, social. O impacto sobre a
educação é profundo, e nem sempre paramos para refletir sobre isso. Continuamos
nossas tarefas como se nada estivesse nos afetando. No entanto, a quebra do
paradigma (ou mito) – que nós, professores, por muito tempo assumimos – a
pretensão ao conhecimento abrangente de nossa área específica – nos desgasta e
nem sempre sabemos lidar com isso.

2. Nossa relação com os novos rumos da política econômico-social não é tranquila.


Acostumamo-nos a falar, ouvir, discutir sobre globalização, mas nem sempre nos
apercebemos de seus efeitos sobre a educação. Percebemos os mais evidentes: a
nova forma de capitalismo não trouxe os esperados avanços, aumentou a
desigualdade social, o contingente dos marginalizados levou à quebra do sentimento
de pertencimento ao nacional. Mas não nos apercebemos que a tendência cultural
desse novo capitalismo tende a concentrar tudo no presente, dado que o futuro é
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incerto. O presente tem que ser sobejamente aproveitado, e as questões éticas são
suplantadas pelas econômicas. Se a educação foi valorizada através dos tempos,
com o novo capitalismo, ela se reveste da maior importância.

3. Como decorrência da abundância das informações que nos cercam, algumas


conflitantes, outras alarmantes, outras alentadoras, e do novo desenho
socioeconômico que a globalização trouxe, um dos traços de nossa cultura
contemporânea é a falta de sentido. Não se discute para onde nos levam as
mudanças – para uma sociedade mais justa e com equidade, ou para uma sociedade
que aceita como natural a exclusão de muitos do novo modelo econômico. Não nos
perguntam se caminhamos para (ou já estamos em) um individualismo que deixa as
coisas como estão ou para um individualismo que recupere em cada um o seu papel
de sujeito na História – constituído, sim, pela sociedade emergente, mas também
constituinte dela.

4. A emergência dessas novas condições indica a importância de uma dimensão que


até pouco tempo ficara à margem do processo ensino-aprendizagem, a dimensão
afetiva. Esta aparece na literatura recente como dimensão nova e importante no
exercício profissional do professor. Tal importância começa a transparecer não só
nos estudos sobre a formação do professor, como na avaliação de seu desempenho.

5. Esses pontos nos remetem (e nisso também a literatura atual é recorrente) a uma
reflexão sobre o caráter profissional da atividade docente. Conceitos como
profissionalização, profissionalidade, profissionalismo, constituição de identidade
profissional são amplamente discutidos. Essa reflexão remete a outro conceito – o
conceito de coletivo. O caráter altamente complexo da profissão professor leva a
aceitarmos que a responsabilidade pelo acerto/desacerto no desempenho não é
individual, mas passa também pelo coletivo – coletivo que envolve a instituição
como um todo e cada um de seus participantes. Referimo-nos aqui à proposta de
avançar do conceito de aula como unidade de desempenho do professor para nos
referirmos à instituição na qual está alocado o professor como sua unidade de
desempenho.

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6. Para sintetizar este quadro preliminar que desenhamos como pano de fundo para a
discussão dos tópicos que se seguem, um último comentário. Ramo (2010), em um
provocativo livro que engloba narrativa de eventos de diferentes partes do mundo,
entrelaçando fatos com teorias, para levar a pensar sobre o funcionamento global e a
influência cultural nas formas de ver o mundo que nos rodeia, dá a seu livro um
sugestivo título: The age of unthinkable. É nesta “era do impensável” que estamos
vivendo; e por aceitarmos que a educação é ainda uma das mais potentes formas
para o avanço a uma sociedade mais justa e igualitária, entendemos que, mesmo
numa era cheia de contradições, interrogações, acertos e desacertos, cabe ao
professor valorizar a docência universitária como atividade intelectual, crítica,
reflexiva e transformadora.

3.2 A construção da profissionalidade docente


Considerando a complexidade que a profissão docente vem assumindo nas
últimas décadas, não só no Brasil, como em outros países, está se consolidando um
movimento de profissionalização, que muitos autores caracterizam como
desenvolvimento profissional, envolvendo formação inicial e continuada, processos de
educação formal e não formal.
Profissionalização (TARDIF & FAUCHER, apud MORGADO, 2011)
“corresponde ao processo de transformação de uma pessoa num profissional,
habilitando-o a assumir funções profissionais complexas e variadas”. Isso requer
evidentemente a conquista de um espaço socialmente reconhecido e valorizado para a
constituição da profissão.
A profissionalização envolve duas dimensões que são complementares, porque
se articulam num processo dialético de construção social: profissionalidade e
profissionalismo. Entendemos por profissionalismo o processo de reivindicação de
status e de reconhecimento da profissão perante a sociedade, para mostrar que a
atividade docente exige um preparo específico que não se resume apenas ao domínio da
matéria; tal domínio é necessário, mas não suficiente. “Entendemos por
profissionalidade (grifo nosso) a afirmação do que é específico na ação docente, isto é, o
conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que
constituem a especificidade de ser professor”. (GIMENO, 1995, p. 65)

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Vamos nos deter no conceito de profissionalidade docente, porque este se refere
especificamente à atuação do professor enquanto agente do processo educativo, ao
espaço privativo de seu trabalho.
Tardif (2000), a partir de pesquisas realizadas sobre o trabalho docente, chegou
às seguintes conclusões quanto aos saberes profissionais dos professores:
• Os saberes profissionais dos professores são temporais. E o são em três
aspectos: 1) boa parte do que os professores sabem sobre o ensino e como
ensinar, e sobre o papel que devem desempenhar, são decorrentes de sua
história de vida, particularmente de sua história de vida escolar; 2) os
primeiros anos de vida profissional são decisivos no estabelecimento de
rotinas e fortalecimento do sentimento de competência; 3) os saberes
profissionais se desenvolvem no âmbito da carreira, na qual se dá a
socialização – a aprendizagem do viver na escola.
• Os saberes profissionais dos professores são plurais e heterogêneos. E o são
em três aspectos: 1) os saberes provêm de diferentes fontes: da cultura
pessoal, dos conhecimentos acadêmicos, do saber ligado à experiência do
trabalho, do contato com outros professores; 2) os saberes são ecléticos e
sincréticos, isto é, um professor raramente tem uma concepção unitária de
sua prática; 3) os professores, em sua atuação para atingir diferentes
objetivos, lançam mão de tipos diversos de competências.
• Os saberes profissionais dos professores são personalizados e situados.
Personalizados porque são constitutivos da pessoa do professor. Situados,
porque utilizados em função de situações de trabalho específicas.
Shulman (1986), preocupado com o resgate do status do professor como
profissional, propõe um modelo referente aos saberes docentes. Investiga 21 alunos –
professores de diferentes áreas (matemática, inglês, ciências sociais, biologia),
procurando apreender o que eles sabiam sobre os conhecimentos que ensinavam, onde e
quando os adquiriram, e como e porque esses conhecimentos se transformaram durante
sua formação e ainda, como deveriam ser utilizados com alunos concretos na sala de
aula.
Concluiu que todo professor tem uma base de conhecimento que decorre da
intersecção do conteúdo específico de sua matéria, com o conteúdo pedagógico e de sua
capacidade para transformar seu conhecimento específico da matéria em formas de
atuação que sejam eficazes, porque adaptadas à heterogeneidade dos repertórios e
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habilidades dos alunos. O professor tem, então, diferentes tipos de conhecimento nos
quais se apoia para tomar decisões sobre seu curso.
O modelo de Shulman inclui: conhecimento do conteúdo, conhecimento
pedagógico do conteúdo e conhecimento pedagógico.
• Conhecimento do conteúdo (Content Knowledge) – Conhecimento
específico da matéria.
• Conhecimento pedagógico do conteúdo (Content Knowledge in Teaching),
que engloba: a-conhecimento sobre a matéria (subject matter content
knowledge); b-conhecimento didático da matéria (pedagogical content
knowledge); c-conhecimento curricular da matéria (curricular knowledge).
• Conhecimento pedagógico (Pedagogical Knowledge) – conhecimento de
teoria e princípios de ensino e aprendizagem, conhecimento de princípios e
técnicas de manejo de classe, características dos alunos, incluindo também
conhecimento de princípios e técnicas que estão ligados à sua área de
conhecimento específica. Trata-se de um conhecimento pedagógico geral.

Em adição ao conhecimento pedagógico geral e de conteúdo específico,


nosso modelo inclui conhecimento pedagógico do conteúdo. Esse
conhecimento inclui uma compreensão do que significa ensinar um tópico
particular, assim como conhecimento dos princípios e técnicas requeridas
para tal. Contextualizados por uma conceituação de conteúdo específico do
ensino, professores têm conhecimento sobre como ensinar a matéria, como os
alunos aprendem a matéria (quais são as dificuldades de aprendizagem
relativas especificamente à matéria, quais são as capacidades
desenvolvimentais dos estudantes para adquirir conceitos particulares, quais
são as concepções errôneas mais comuns), como matérias curriculares são
organizadas na área e como tópicos particulares são incluídos no currículo.
Influenciado tanto pelo conteúdo específico da disciplina quanto pelo
conhecimento pedagógico, o conhecimento de conteúdo pedagógico emerge
e cresce quando os professores transformam seu conhecimento de conteúdo
específico tendo em vista os propósitos de ensino. Como essas espécies de
conhecimento se relacionam umas às outras permanece um mistério para nós.
(WILSON, SHULMAN e RICHERT, apud MIZUKAMI, 2002, p.155).

Ou seja, os professores desenvolvem um processo de raciocínio pedagógico, um


tipo de conhecimento específico da docência, que entrelaça conhecimento da sua
disciplina, conhecimento pedagógico geral, e mais: conhecimento sobre as dificuldades

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que os alunos costumam apresentar em um tópico particular, quais as concepções
errôneas que normalmente trazem, quais as estratégias para ajudar os alunos a vencer as
dificuldades e desenvolver conceitos científicos. Além disso, conhecimento sobre como
e porque tal tópico, bem como sua disciplina, estão incluídas no currículo.
Profissionalismo, profissionalidade e saberes profissionais desaguam no
conceito de constituição da identidade profissional.

3.3 A constituição identitária do professor


Um ponto a destacar, igualmente importante, quando se pensa no “ser
professor”: a formação identitária do professor se constitui, em grande parte, nas
situações de trabalho, via movimentos de atribuição e pertença, em função da
legislação, da instituição na qual se atua, em função dos valores assumidos.Um autor
que oferece contribuição à compreensão dessa questão é Claude Dubar (2005), o qual
tem feito estudos e apresentado teorizações sobre a constituição identitária no trabalho.
Postula o autor que as formas identitárias (denominação que prefere usar, dado que são
várias as identidades que assumimos) são produzidas e construídas nas interações com
as pessoas e as situações, num processo permanente e dialético. Dubar (2005) esclarece
que a constituição de formas identitárias decorre de dois processos: o relacional e o
biográfico, que ele assim caracteriza: o relacional refere-se à identidade para o outro,
enquanto o biográfico corresponde à identidade para si. Desse modo, do antagonismo e
complementaridade desses dois aspectos, a identidade se define como um processo de
construção permanente, decorrente do contexto vivido e da história individual do sujeito
(que também é uma história social), no qual se articulam atos de atribuição (do outro
para si) e de pertença (de si para o outro).

Assim, para pensar o ser humano hoje, duas questões básicas se impõem:
como cada pessoa lida com a pertença e com as atribuições nas condições
sociais descritas? Cada indivíduo pode assumir ou não uma atribuição,
identificando-se com o que lhe foi atribuído ou rejeitando-o. (PLACCO,
2010, p.142)

Em se tratando de professor do ensino superior, as atribuições chegam do


sistema escolar (legislação que regula os formatos dos cursos), da organização da
instituição na qual atua (e esta diverge na interpretação dada às atribuições do sistema,

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algumas vezes) e dos agentes educacionais da escola (coordenadores de cursos, por
exemplo, que, via de regra, se põem como intérpretes do sistema e/ou da instituição
escolar). Já o processo de pertença implica numa adesão ou rejeição às atribuições que
lhe são imputadas, adesão ou rejeição que representam o sentido que o professor confere
a tais atribuições, reconhecendo-as como valiosas e necessárias, ou não, porque atendem
à sua formação, à sua concepção de escola, do curso, do aluno e do ser professor.
Essa constante tensão atribuição-pertença, pressões da instituição e de alunos,
exigências de mercado e outras afetam o professor, levando-o a expressar suas emoções
e sentimentos de diferentes formas.

3.4 O atendimento à diversidade


Um ponto a destacar, quando se discute “ser professor” é o trato com a
diversidade, e o fazemos sob três aspectos: 1) atendimento à diversidade da escola,
porque cada escola é uma realidade pedagogicossocial dotada de cultura própria,
embora com os condicionantes do sistema educacional ao qual pertence; 2) atendimento
à diversidade dos diferentes segmentos e cursos que integram a instituição escolar; 3)
atendimento à diversidade dentro do grupo classe.
Cada instituição tem uma história, uma trajetória que compreende um processo
de criação, consolidação, dificuldades pelas quais passou, acertos e desacertos em suas
escolhas.
Embora tendo que respeitar o instituído legal pelo sistema escolar ao qual
pertence, tem sua cultura própria, seus modos de comunicação com a sociedade, com
outras instituições, suas teorias de integração entre profissionais e alunos. Conhecer a
cultura da escola faz parte do saber do professor.
Numa mesma instituição de ensino superior há cursos que são considerados
“carros-chefe”, outros considerados de menor importância, o que pode desgostar o
professor e desmotivá-lo em sua atuação.
Porém, quando o professor consegue atender à diversidade do seu grupo-classe,
reconhecendo os recursos e lacunas de seus alunos e dando-lhes possibilidade de
avançar em conhecimento e, portanto, em satisfação com o curso, este curso cresce de
importância e pode projetar-se na instituição. Este é o professor descrito por Almeida
(2011, p. 68):

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[...] mestres que me fizeram vibrar ao perceber que meu conhecimento podia
se ampliar e que eu podia penetrar em outros mundos; que me deram chaves
para a entrada nesses novos universos. Esses mestres, apesar das muitas
diferenças em seu modo de encarar a vida e em seus métodos de ensino,
tinham algumas características que os aproximavam. A principal: eles me
levaram a sério, como criança, como jovem, como adulta. Viveram nossa
relação professor-aluno com gravidade e profundidade. E como fizeram isso?
Confiando em minha capacidade de aprender, de explorar e compreender a
mim mesma. Enfim, foram pessoas que me viram como uma pessoa separada
das demais, que me ouviram, que se comunicaram plenamente comigo.

Esse é o atendimento à diversidade que faz diferença para o aluno, que interfere
na constituição de sua identidade e, em contrapartida, na identidade do professor.

3.5 O processo de reconfiguração profissional do professor


Para atendermos aos reclamos da sociedade complexa na qual estamos inseridos,
em constante mudança, e, portanto, às demandas dos alunos que procuram o Ensino
Superior, o professor precisa ser, nas palavras de Rui Canário (1996), um analista
simbólico, um artesão, um profissional da relação, um construtor de sentido.
Para este autor, o professor é um analista simbólico, na medida em que é
“solucionador de problemas em contextos marcados por incertezas” (p. 19/20). Isso
implica em capacidade de abstração, de experimentação e de desenvolvimento de
modos de aprendizagem em exercício, em interação com pares. Enfim, implica na
presença de visão sistêmica dos processos de ensino-aprendizagem.
O professor é um artesão na medida em que a singularidade das práticas
educativas exige e implica em singularidade de procedimentos didático-pedagógicos, o
que faz com que o professor necessite ser um “re-inventor de práticas, reconfigurando-
as de acordo com os contextos e os públicos” (p. 20).
O professor é um profissional da relação, dado que continuamente está face-a-
face com seu interlocutor, o aluno. Nesse sentido, esta é uma profissão que se define,
não só pelo que o professor sabe, mas fortemente por aquilo que ele é. Assim, não só os
saberes científicos e técnicos precisam ser conhecidos e ampliados, mas também exige-
se do professor uma dimensão cultural e humana relacionada a uma visão total e
complexa da profissão. Além disso, nessa relação com os alunos, os professores
aprendem, se transformam e se tornam melhores professores. Portanto, os professores

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devem ser bons comunicadores, definidos pela sua capacidade de “escuta”, isto é,
segundo Schön (1992), pela sua capacidade de serem “surpreendidos pelo que o aluno
faz”, e por tentarem compreender porque foram surpreendidos. Segundo Canário, a
lucidez é requisito essencial para a docência, na medida em que, acreditamos, é ponto
de partida para a compreensão de si e de seu próprio trabalho docente.
Finalmente, para Canário (1998), o professor é um construtor de sentido. Ao
reconhecer a centralidade do sujeito – seja o sujeito professor, seja o sujeito aluno -, no
processo de aprendizagem, entendendo-se este como um processo de hominização, de
produção de si, o professor auxilia o aluno na seleção, na organização e interpretação
das informações, de forma a construir sua visão de mundo e, assim, compreender os
outros e a sociedade, a partir da sua própria história pessoal.
Essa reconfiguração do papel do professor vem atender à nova função do Ensino
Superior: se, desde os tempos do Império, quando se criou, no Brasil, o Ensino
Superior, a função primordial dessa modalidade era produzir conhecimento e transmiti-
los a um grupo social privilegiado e restrito, hoje, o professor passa a conviver com
outra função – a de produzir e transmitir conhecimentos para camadas menos
privilegiadas, que reivindicam seu direito ao Ensino Superior. Nessa transição,
aparecem questões como: para que ensinar, a quem queremos ensinar, o que ensinar, e,
finalmente, como ensinar este novo contingente, nesses novos tempos?

3.6 A dimensão afetiva no processo ensino–aprendizagem


Nosso pressuposto de que cognição e afetividade são dimensões inseparáveis no
processo ensino-aprendizagem nos leva a considerar que não se pode deixar à margem a
questão da afetividade, quando se trata de discutir “ser professor”.
Almeida e Mahoney (2011) empreenderam uma investigação com o objetivo de
identificar e analisar as emoções e sentimentos que permeiam a atividade dos
professores do Ensino Superior, a partir de depoimentos escritos e orais de 17
professores com formação em diferentes áreas (administração, economia, engenharia,
medicina, matemática, física, letras, pedagogia) com idades variando de 28 a 59 anos, e
tempo como professor de Ensino Superior de 1 a 33 anos. Identificaram que os
sentimentos de tonalidades desagradáveis suplantavam sentimentos de tonalidade
agradáveis quando os professores descreviam suas atuações em sala de aula.
Sintetizando, os resultados evidenciaram:

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a) O que tornava os professores alegres, esperançosos, animados:
• Relacionamentos professor-aluno nos quais os alunos respondem ao
ensino porque este atende às suas necessidades; o professor percebe
que ele ensina e que o aluno aprende e vice-versa;
• Relacionamentos flexíveis; professor e aluno negociam acordos e o
professor ajusta suas propostas sempre que necessário às
necessidades dos alunos;
• Gosto pelo ensinar, vibração pela atividade docente.
b) O que tornava os professores ansiosos, irritados, desanimados, inseguros:
• Pouco tempo para se dedicar ao preparo das aulas; pouca confiança
em sua competência para dar conta da tarefa;
• Não participação dos alunos nas atividades propostas;
• Indisciplina;
• Relacionamentos pouco satisfatórios do ponto de vista afetivo;
• Falta de espaço para troca de experiências com colegas.
Ou seja, os resultados da pesquisa indicaram que o professor do Ensino Superior
apresentava sentimentos de tonalidades agradáveis (alegria, animação, vibração,
esperança) quando o aluno: demonstrava vontade de aprender e interesse pelo curso,
participando e questionando; revelava envolvimento com o curso; apresentava respeito
com os colegas e professores, sem conversas paralelas ou uso de celulares; apresentava
valores éticos e senso crítico.
Porém, sentia-se desestimulado quando, na situação concreta de sala de aula seu
aluno: não participava; não se envolvia com o curso; demonstrava desinteresse,
indiferença, apatia; não lia os textos; via a aula como uma obrigação chata; demonstrava
descaso, distância, desrespeito, ausência de comunicação e contato; demonstrava visão
estreita de mundo e interesse apenas por questões técnicas; reivindicava compreensão
dos professores para seus atrasos, faltas, pouca ou nenhuma leitura, sem dar nada de si.
O desestímulo decorria também da falta de tempo para preparar melhor suas aulas; falta
de condições para chegar ao começo das aulas sem agitação ou atropelo; falta de espaço
para trocar experiências com seus pares; falta de condições para ter maior e melhor
contato com os alunos. Essas situações com tonalidades desagradáveis produziam:
ansiedade, irritação, tristeza, raiva, frustração, insegurança, desânimo, solidão.
Os sentimentos de tonalidades agradáveis são as expressões de necessidades
de: ter o trabalho reconhecido, ser respeitado e ter limites estabelecidos na

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relação professor-aluno e professor-instituição; ter um trabalho que garanta
formação de bons profissionais, que inclui formação de atitudes e valores;
sentir-se progredindo em suas habilidades de professor; ser compreendido
pelo outro (aluno) não só no conteúdo, mas em sua forma de ser; trabalhar
em ambientes promotores de relações interpessoais harmoniosas e
produtivas. (ALMEIDA e MAHONEY, 2011, p.161).

O que então se destaca na pesquisa é a “crise institucional das universidades”


(SANTOS 1999). São indicadores dessa crise, entre outras, as referências dos
professores ao número excessivo de alunos, à falta de tempo para preparar suas aulas, a
sentir-se sozinho, a não ter com quem trocar experiências, a não poder formar um bom
profissional, a não ser respeitado pelos alunos e pela instituição.

3.7 Considerações finais


Várias questões foram discutidas. Resta-nos responder, de forma objetiva, à
questão: “O que é ser professor? O que o distingue de outros profissionais?”, porque,
antes de ser um professor de curso superior, temos um professor. Roldão (2007)
responde: o caráter distintivo do professor é a ação de ensinar, e argumenta:
A função de ensinar, nas sociedades atuais, e retomando outra linha de
interpretação do conceito é antes caracterizada, em nossa perspectiva, pela
figura de dupla transitividade e pelo lugar da mediação: ensinar configura-se
assim, nesta leitura, essencialmente como a especificidade de fazer aprender
alguma coisa (a que chamamos currículo, seja de que natureza for aquilo que
se quer ver aprendido) a alguém (o ato de ensinar só se atualiza nesta segunda
transitividade corporizada no destinatário da ação, sob pena de ser inexistente
ou gratuita a alegada ação de ensinar). (ROLDÃO, 2005).

Retomamos, então, alguns pontos que nos parecem particularmente relevantes:


 Ser professor não implica dom, sacerdócio ou missão; é uma construção
diuturna – a pessoa professor constitui-se nas relações sociais, que
começam antes da educação formal, durante a mesma e no exercício da
profissão;
 O processo ensino-aprendizagem implica dois polos: professor e aluno;
não se pode afirmar que alguém ensinou algo a outro, se esse outro não
aprendeu o ensinado;

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 Professor e aluno estão em constante embate de subjetividades: o
professor entra com suas expectativas, desejos, anseios, frustrações; o
aluno com iguais expectativas, desejos, anseios e frustrações, decorrentes
da trajetória de vida de cada um;
 Para o professor ser surpreendido pelo que o aluno faz, precisa estar
atento não só ao grupo-classe, mas a cada aluno em particular;
 As novas exigências da sociedade global que se instaurou na
modernidade exigem do professor uma reconfiguração do seu papel;
deve ser um analista simbólico, um construtor do sentido, um
profissional da relação e um artesão;
 A especificidade do trabalho do professor é o ensino, e essa
especificidade implica saberes que lhe são próprios: profissionais,
pedagógicos, disciplinares, curriculares e experienciais;
 Nos processos formativos, as dimensões são postas em movimento, num
processo constante de atualização;
 Quando os processos formativos fazem sentido para o formador e o
formando, relações pedagógicas e pessoais tornam-se significativas e
repercutem em aprendizagem efetiva;
 Um processo formativo deve / pode mobilizar formador e formandos
para questionar suas crenças e valores.

Finalmente, ser professor no Ensino Superior significa enfrentar inúmeros


desafios, decorrentes da complexidade da sociedade e, em decorrência da demanda dos
alunos que o procuram. Significa também superar deficiências decorrentes de inúmeras
circunstâncias, que impedem um adequado planejamento, um melhor desempenho, um
relacionamento mais satisfatório com seus alunos. Resta ainda, no entanto, a alegria de
perceber que seu ensino afeta o aluno e se transforma em aprendizagem que o modifica
como pessoa e profissional.

3.8 Referências bibliográficas


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